Partidos politicos e politica externa brasileira na era da globalizacao (2016)

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Partidos políticos e política externa brasileira na era da globalização Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org; http://diplomatizzando.blogspot.com) 1. Introdução e produção bibliográfica acumulada pessoalmente Desde muitos anos venho estudando e seguindo, com bastante atenção, mas também com inevitáveis interrupções, a ampla temática das relações entre o Congresso e a política externa, com uma atenção especial para o papel dos partidos políticos (desde sempre reconhecido como reduzido) nas relações internacionais do Brasil, seja no plano histórico-comparativo, com base na literatura disponível, seja no contexto da agenda da diplomacia brasileira em sua interação com o Parlamento e os partidos nele presentes. que como tais foram objeto de pesquisas, análises e trabalhos que elaborei e publiquei ao longo dos anos seguintes. O tema me tinha sido despertado quando do retorno do Brasil a um sistema democrático, em meados dos anos 1980, depois de 21 anos de regime autoritário (quando também se iniciava o debate em torno de uma nova constituição), e também pelo fato de que eu recém retornava de um segundo estágio europeu, depois do primeiro, nos anos 1970, durante um autoexílio de estudos aos tempos de ditadura militar no Brasil, uma estada já como diplomata de carreira, na primeira metade dos anos 1980. Ao iniciar minha carreira de diplomata pela Europa, aproveitei o período para retomar e concluir meu doutoramento em sociologia política, com a apresentação de uma tese sobre desenvolvimento econômico e sistemas políticos, que eu havia iniciado ao final de meu primeiro estágio europeu, e interrompida quando de meu retorno ao Brasil em 1977. A tese, defendida em 1984 na Universidade Livre de Bruxelas, foi publicada apenas três décadas depois, com uma nova introdução que retoma a questão das relações entre capitalismo e democracia, e a do papel das revoluções burguesas no processo de desenvolvimento político no período decorrido desde então: Révolutions bourgeoises et modernisation capitaliste: Démocratie et autoritarisme au Brésil (Sarrebruck: Éditions Universitaires Européennes, 2015).1 O doutorado me habilitou a começar a dar aulas de Sociologia Política no Departamento de Sociologia da UnB e no

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Versão revista da tese apresentada na Universidade de Bruxelas: Classes Sociales et Pouvoir Politique au Brésil: une étude sur les fondements méthodologiques et empiriques de la Révolution Bourgeoise (1984); nova introdução, atualizando o debate, disponível nos links: https://www.academia.edu/15889842/2862_Capitalisme_et_Democratie_au_Bresil_a_trente_an 1

Instituto Rio Branco, o que fiz nos anos 1985 a 1987, quando permaneci fugazmente no Brasil, paralelamente ao seguimento de debate político então em curso, que no caso do Itamaraty envolvia uma reflexão relativa às interações referidas no campo da política externa e da agenda diplomática brasileira, já então voltada para a integração regional. O Brasil dava então início a um processo de reconstrução constitucional que resultaria numa nova Carta fundamental, em outubro de 1988, após intensos trabalhos de um Congresso Constituinte e mesmo um exercício anterior de uma Comissão de Estudos Constitucionais, que reproduzia, por sinal, uma primeira experiência feita décadas antes, meio século atrás, quando da elaboração de uma segunda constituição republicana no curso do governo provisório de Getúlio Vargas. Curiosamente, tanto a primeira, quanto a segunda comissão se reuniram no Itamaraty do Rio de Janeiro, com participação de personalidades da sociedade civil e representantes das “corporações de ofício” de nossa nação de feições tão cartoriais, e ambas foram dirigidas por uma das famílias patrícias mais identificadas com o regime republicano no Brasil: os Melo Franco: a primeira o foi pelo então chanceler Afrânio de Melo Franco, e a segunda por seu filho Afonso Arinos de Melo Franco, que dedicou ao pai uma obra clássica, em três volumes, Um Estadista da República, que de certa forma replica o que Joaquim Nabuco tinha feito em relação ao seu, chamando sua igualmente imponente obra Um Estadista do Império. Sintomaticamente, os resultados respectivos das duas comissões não influenciaram decisivamente o resultado final, pois as duas Cartas, a de 1934 e a de 1988 foram bem mais moldadas pelos debates em comissões setoriais e em plenário, e objeto de intensas barganhas parlamentares e destes com o poder executivo. Analisando retrospectivamente o papel dos partidos políticos na política externa a partir de 1930, e complementando essa pesquisa com a observação conjuntural (nos últimos anos da década de 1980) do processo de elaboração constitucional, logo em seguida seguindo com grande interesse a campanha para a primeira eleição presidencial livre desde 1960, pude elaborar uma série de trabalhos, alguns publicados, vários outros inéditos, que cobriam essas diversas áreas da interseção entre a política externa do Brasil (no sentido mais sociológico da palavra) e a comunidade política (parlamento e partidos) do país.2 Vários deles foram reunidos em 1996 num volume auto-editado, 2

Entre os trabalhos mais representativos desse período, posso citar o artigo “Partidos políticos e política externa”, Revista de Informação Legislativa (Brasília: ano 23, n. 81, julho-setembro 1986, p. 173-216); versão ulterior, mais completa e atualizada, foi publicada, sob o título de “A política da política externa: os partidos políticos nas relações internacionais do Brasil, 19301990”, como capítulo, in: José Augusto Guilhon de Albuquerque (Org.), Sessenta anos de 2

disponível na plataforma Academia.edu: Parlamento e Política Externa: ensaios sobre o sistema político e as relações internacionais do Brasil (Brasília: edição do autor, 1996; http://www.academia.edu/25900723/Parlamento_e_Politica_Externa_1996_). Em vários dos meus livros e artigos posteriores aos anos 1990 eu continuei seguindo, ainda que episodicamente, essa problemática, aproveitando para atualizar a informação sobre os partidos na política externa, notadamente por ocasião das diversas campanhas presidenciais realizadas nos anos 1990 até quase a atualidade. Dentre estes trabalhos destaco os capítulos 6 e 7, respectivamente “A política da política externa: o papel dos partidos políticos” e “A política externa nas campanhas presidenciais, de 1989 a 2002, e a diplomacia do governo Lula”, do livro Relações Internacionais e Política Externa: história e sociologia da diplomacia brasileira (2a. ed., revista e atualizada; Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004), e o capítulo 3, “A estrutura constitucional das relações internacionais no Brasil”, no livro O Estudo das Relações Internacionais do Brasil: um dialogo entre a academia e a diplomacia (Brasília: LGE, 2006). Durante todo o período decorrido desde então, continuei a pesquisar e a elaborar trabalhos de diversos escopos nessas grandes áreas, muitos dos quais foram publicados seja como artigos independentes, seja como capítulos de meus próprios livros, ou colaborações a obras coletivas. Desde o início dos anos 2000, e em especial a partir dos governos lulopetistas, minha produção no campo da análise da política externa e da diplomacia brasileira se intensificou, com destaque natural para as novas orientações políticas nessas áreas, emanadas então do Partido dos Trabalhadores. Para não ter de citar uma gama relativamente extensa desses trabalhos, ofereci uma relação dos principais, publicados ou inéditos, numa listagem que se encontra disponível online.3 Não figuram ali, no entanto, alguns outros do período anterior a 2002, relativamente importantes do ponto de vista da reconfiguração constitucional do Brasil – a exemplo de “Relações exteriores e Constituição” (Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 29, n. 115-116, 1986); “Uma interpretação econômica da Constituição” (Ciência e Cultura, vol. 39, n. 1, 1987); “As relações internacionais na ordem constitucional” política externa brasileira (1930-1990), vol. IV: Prioridades, atores e políticas (São Paulo: Annablume-Nupri-USP, 2000), p. 381-447. 3 Cf. “Uma seleção de trabalhos sobre a política externa brasileira na era Lula: 2002-2016”, disponível no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/06/apolitica-externa-brasileira-na-era.html) e na plataforma Academia.edu (link: http://www.academia.edu/25901782/Trabalhos_PRA_sobre_a_politica_externa_brasileira_na_e ra_Lula_2002-2016_); os textos mais recentes figuram no livro Nunca Antes na Diplomacia...: A política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014). 3

(Revista de Informação Legislativa, vol. 26, n. 101, 1989); “Relações econômicas internacionais e interesse nacional” (Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, vol. 39-41, 1987/89); “A estrutura constitucional das relações internacionais no Brasil” (Contexto Internacional, vol. 6, n. 12, 1990) – mas que foram incluídos no volume auto-editado em 1996, disponível em Academia.edu. Feita esta introdução bibliográfica orientada a meus próprios trabalhos, e à exclusão da produção de terceiros – que no entanto são citados nesses textos – passo a apresentar as demais seções. A seção seguinte fará um panorama bastante sumário das evoluções observadas nos anos 1990, tanto em termos de quadro constitucional quanto da diplomacia brasileira da “era neoliberal”, um termo altamente equivocado por sinal. Depois se poderá analisar a política externa do partido hegemônico, o PT, não porque ele o tenha sido de modo absoluto – tendo de compor, no Congresso, com diversos outros partidos, que ele tentou, entretanto, subordinar a seus interesses, inclusive pelos meios mais escusos que se conhecem – mas porque no terreno da política externa ele reinou praticamente sozinho, inclusive subordinando a diplomacia profissional do Itamaraty a orientações claramente partidárias, em dissonância com antigos consensos nacionais em relação a certos temas. Finalmente, se tentará elaborar alguns argumentos a respeito do novo período que se abriu com o afastamento do PT do núcleo central do poder, ainda que suas concepções continuem a gozar de aceitação em determinados meios políticos e de amplo apoio no meio acadêmico. 2. A política externa brasileira na terceira onda da globalização Embora a política externa, em qualquer tempo e regime, seja mais imune aos sobressaltos dos sistemas políticos do que os azares da política doméstica, é evidente que sempre haverá alguma influência na diplomacia dos Estados a partir da natureza de seus regimes políticos ou das orientações das forças políticas predominantes ou hegemônicas numa determinada conjuntura da trajetória política dos países. No caso do Brasil não poderia ser diferente, uma vez que ele adentrou igualmente, em meados dos anos 1980, num regime quase normal de alternância democrática, com base num regime organizado por meio de partidos políticos concorrenciais entre si, mas caberia, antes de adentrar no argumento substantivo quanto ao papel destes últimos na política externa, definir o que está exatamente compreendido no título desta seção, começando pelo final, ou seja, pelo processo de globalização, dos anos 1990 ao presente. A economia mundial e o próprio Brasil atravessaram diferentes fases, resumidas a seguir. 4

A terceira onda da globalização – sendo as duas primeiras, pela ordem, a que sucedeu aos descobrimentos, logo sufocada pelos exclusivismos comerciais dos impérios precoces, e a que precedeu a Grande Guerra, a da chamada belle époque, contemporânea dos grandes impérios europeus do período ascendente do capitalismo – e aquela que se instala a partir das importantes reformas chinesas da era Deng Xiaoping e, sobretudo, da derrocada dos regimes socialistas no Leste europeu e da implosão da própria União Soviética, na segunda metade dos anos 1980 e início dos 90. Essa terceira fase do processo da globalização vem se desenvolvendo, obviamente, desde essa época, com seus altos e baixos em função de crises nacionais (em países dotados de alto impacto sistêmico) e suas derivações internacionais, impulsos de desglobalização (países que se retraem da integração à economia mundial, como os bolivarianos, por exemplo) ou de reglobalização (os que fazem o caminho inverso, como parece ocorrer atualmente com a Argentina), entre os quais ficam os reticentes (como o próprio Brasil). Nessa vertente, desde o fim “oficial” do socialismo – mantido, embora, em duas economias insignificantes situadas nas antípodas – e a transição ao capitalismo daquelas economias enquadradas nos sistemas de planejamento centralizado lideradas pela China (a que primeiro abandonou os cânones do antigo sistema) e pela União Soviética (que simplesmente desapareceu, sobrevivendo apenas uma mal designada Comunidade de Estados Independentes, ou seja, um frouxa assemblagem aduaneira de antigas satrapias soviéticas da Ásia central), ocorreram importantes mudanças na economia mundial, a começar pelo que foi designado como a “primeira crise financeira” do século 21, a crise do México, em 1994, seguida mais tarde pelas crises de países asiáticos, em 1997, pela moratória russa em 1998 e pela crise terminal do sistema argentino de conversibilidade, entre os anos 1999 e 2001. Essas crises atingiram sobretudo países emergentes. O Brasil chegou a ser impactado pela crise mexicana, mas superou as primeiras dificuldades cambiais pela adoção, desde abril de 1995, de um regime de bandas de flutuação, que funcionou relativamente bem, até o país ser afetado mais severamente pela moratória russa e ter de fazer um primeiro acordo com o FMI e com países credores, ao ressentir de uma queda brutal em suas reservas em divisas, no final de 1998. Ainda passamos por dois novos acordos com o FMI, justamente logo após o agravamento da crise argentina, em 2001, e no curso da campanha presidencial do Brasil, em 2002, quando os temores sobre os efeitos de uma política econômica de ruptura, como reiterada e antecipadamente anunciada pelos economistas do PT, alteraram negativamente todos os indicadores econômicos do Brasil, a começar pelo 5

câmbio, pela inflação e pelo chamado “spread” (vinculado ao preço dos títulos da dívida brasileira nos mercados financeiros internacionais). Mais recentemente, a economia mundial foi afetada pela crise financeira americana de 2008 – ela mesma derivada da crise imobiliária naquele país, em 2007 –, a partir da qual efeitos sistêmicos se disseminaram por outros países, notadamente na Europa e em alguns países emergentes. Examinei as principais características dessa onda da globalização, com sua incidência sobre o Brasil, em diversos trabalhos meus, aos quais remeto,4 o que me dispensa de discorrer sobre seus desenvolvimentos mais relevantes. Cabem algumas palavras, no entanto, sobre a fase recente da globalização, uma vez que ela foi insuficientemente coberta nos citados trabalhos, a não ser em postagens de conjuntura em sites mais flexíveis de referência como Mundorama ou Meridiano 47, ou nas minhas próprias ferramentas de informação e de comunicação, site pessoal, blog ou espaços públicos de interação. Uma caracterização de ordem geral é importante ser feita, uma vez que os anos 1990 e os anos 1990 foram bastante diferentes tanto no que se refere às “externalidades” da globalização, quanto no seu impacto sobre o Brasil, sua economia e sua política, o que é relevante para explicar, ou contextualizar, o “sucesso” ou “fracasso” relativos da projeção (ou falta de) internacional do país, tanto no ambiente regional, quanto no cenário internacional. Também aqui é necessário ser sintético. Os anos 1990 – que corresponderam, primeiro, ao governo Collor e suas turbulências econômicas e políticas, depois ao governo transitório de Itamar Franco e seu combate bem sucedido à aceleração inflacionaria, finalmente aos dois governos de FHC, com a importante emenda constitucional da reeleição – foram muito diferentes dos anos 2000, o período quase completo do lulopetismo, iniciado em 2003 e terminado (provisoriamente?) em 2016, em vista do processo de impeachment ainda em curso e as investigações em torno do maior caso de corrupção da história brasileira, atingindo fortemente os principais líderes do Partido dos Trabalhadores, com desenvolvimentos “prometedores” nos próximos meses e anos. Na primeira década, a economia mundial 4

Ver, entre outros trabalhos, este: “As duas últimas décadas do século XX: fim do socialismo e retomada da globalização”, in: José Flávio Sombra Saraiva (org.), História das relações internacionais contemporâneas: da sociedade internacional do século XIX à era da globalização (2a. revista e atualizada; São Paulo: Saraiva, 2006, p. 253-316; disponível: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/96HistRelaIntContemp2006.html). Textos adicionais sobre a globalização figuram em meu livro Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002), e nos capítulos comercial e financeiro deste livro mais recente: Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da globalização (Rio de Janeiro: LTC, 2012). Textos adicionais estão disponíveis nas plataformas Academia.edu e Research Gate. 6

atravessou crises concentradas nos principais países emergentes, tanto na América Latina quanto na Ásia, à exceção da China e da Índia, que, graças a reformas profundas empreendidas desde o início da década, empreendiam uma bem sucedida trajetória em direção a uma postura mais afirmada no cenário internacional. O fato é que o Brasil foi fortemente atingido pelas crises sucessivas (mexicana, asiáticas, russa e argentina) do sistema financeiro, enfrentando desafios de não pouca relevância: negociação da dívida externa com bancos comerciais e credores oficiais em 1992-93, estabilização e Plano Real em 1994, mudanças macroeconômicas em 1999 – sistema de metas de inflação, regime de flutuação cambial, superávit primário para enfrentar o serviço da dívida pública, lei de responsabilidade fiscal – e enfrentamento dos desafios internos nos processos de ajuste e modernização (privatizações, inclusive de bancos estaduais, negociações das dívidas de estados e municípios com assunção dos encargos pelo governo federal, sustentação do sistema bancário em forte stress sem os ganhos do floating inflacionário derivados da indexação generalizada, e uma completa redefinição do papel do Estado na economia, com a criação de agências públicas). Todos esses fatores não deixaram de afetar o status e a presença do Brasil no sistema internacional, à diferença dos anos 2000, quando todos esses desafios tinham sido encaminhados de maneira bastante satisfatória. Na primeira década do novo milênio, a situação do Brasil, assim como o cenário internacional mudaram para um ambiente positivo, o que beneficiou amplamente os dois mandatos de Lula, abrindo grande latitude de ação tanto no terreno estritamente econômico, quanto no plano político. Depois de dois choques limitados no início da década – o apagão e a crise argentina em 2001, e a deterioração da situação econômica do Brasil, em decorrência da campanha presidencial de 2002 –, o cenário se alterou para números azuis durante a maior parte do período; houve o maior crescimento sustentado da economia mundial desde antes da primeira crise do petróleo (1973), com uma média de 4,5% de expansão do PIB global desde 2003 até 2008; os países emergentes, com exceção justamente da América Latina e do Brasil, cresceram o dobro dessa taxa, e o Brasil, infelizmente, três vezes menos que os emergentes, mas ainda assim em ritmo superior ao de quase duas “décadas perdidas”, nos anos 1980 e 90. O crescimento desses anos, ainda que modesto para os padrões mundiais, foi impulsionado pela grande bonança chinesa nos mercados de praticamente todas as commodities exportadas pelo Brasil. As reformas macro e micro efetuadas nos anos FHC, assim como a desvalorização cambial pós-1999, foram extremamente positivas 7

para a impulsão dos negócios e a atração de investimentos estrangeiros, o que inundou o Brasil de dólares, trazendo até o temor da valorização da moeda e a perda dos superávits comerciais do início da década. A China converteu-se no principal parceiro comercial do Brasil em 2009 – superando os EUA, que tinham ocupado essa posição nos cem anos anteriores – e permitia saldos positivos de 4 a 5 bilhões de dólares a cada ano. Mesmo a crise americana de 2008 não atingiu o Brasil de modo significativo, salvo em 2009, quando os instrumentos keynesianos anticíclicos não tinham ainda desenvolvido todas as suas potencialidades. Um crescimento “chinês” em 2010 – mais de 7% – permitiu a Lula, já reeleito facilmente em 2006, eleger sua sucessora, que infelizmente manifestou toda a sua incapacidade gerencial desde 2011, conduzindo a fracassada “Nova Matriz Econômica” que inverteu todos os indicadores positivos da década precedente. Não houve nenhuma influência, a não ser marginal, da “crise internacional” na maior crise brasileira de toda a sua história, que foi toda “made in Brazil”, resultado exclusivo da incompetência econômica dos dirigentes e de sua arrogância em persistir em políticas equivocadas, implementadas em virtude de uma concepção rústica da economia, feita de um keynesianismo de botequim e de um cepalianismo mal assimilado por aprendizes de feiticeiro saídos de faculdades “desenvolvimentistas”. No plano da política externa, o quadro é igualmente contrastante entre uma e outra década, e de forma bastante clara: nenhum analista sério da diplomacia brasileira nos anos 1990 seria capaz de acusar a política externa de FHC de ser “tucana”, uma vez que ela basicamente seguiu o consenso da diplomacia profissional, isto é, do Itamaraty, de décadas anteriores, sem grandes rupturas com o passado (a não ser, talvez, a adesão aos regimes restritos de não proliferação, começando pelo MTCR, o regime de controle de tecnologia de mísseis, até o TNP, o famigerado tratado de não proliferação nuclear, que o Itamaraty tinha recusado durante mais de três décadas). Até no plano da discussão de um acordo hemisférico de livre comércio, tal como proposto pelos EUA no projeto da Alca, a diplomacia desses anos foi discretamente negativa, sem ser confrontacionista. Já os anos Lula foram manifestamente (e inequivocamente) marcados por uma diplomacia partidária, como o próprio presidente reconheceu no Itamaraty, num dia do diplomata (20 de abril) de meados da sua gestão, ao confessar que seu assessor especial para assuntos internacionais, um apparatchik do PT, fortemente identificado com o Foro de São Paulo, servia para complementar a “diplomacia de Estado” da instituição oficial ao relacionar-se com “partidos irmãos” da América Latina; De fato, foi até mais do que isso, pois a política externa inclinou-se fortemente em favor dos regimes de 8

esquerda da região e de outros parceiros “não-hegemônicos” no plano mundial, o que destoou, como seria de se esperar, da postura profissional e razoavelmente “apolítica” que o Itamaraty sempre manteve. Já analisei amplamente, em artigos redigidos e publicados ao longo dos anos lulopetistas, os principais traços dessa diplomacia partidária,5 inclusive em seu contraste com o período anterior.6 Cabe fazer, a partir daqui, uma análise do período, pois ele representa, justamente, o maior peso possível de um partido, mas não necessariamente do Congresso, sobre a formulação e execução da política externa, como raramente tinha ocorrido no passado, mesmo quando chanceleres provinham dos partidos políticos representados no Congresso. 3. As roupas novas da diplomacia brasileira nos anos lulopetistas Os governos do PT trazem inovações institucionais e políticas extremamente significativas do ponto de vista da política externa, e não apenas no plano das grandes orientações diplomáticas, mas também na forma de se conduzir essa políticas, nas “ferramentas” escolhidas para fazê-lo e, sobretudo, no que se refere ao processo de decisão que fundamentou as novas orientações e sua pertinente “documentação”. A primeira observação a fazer, contudo, situa-se no tocante à recepção dessa “diplomacia partidária” na chamada “comunidade de política externa”, um termo difuso que serve para designar os estudiosos, os colunistas da “grande mídia”, os militantes partidários e, talvez, até os profissionais da diplomacia. Com exceção destes últimos, normalmente discretos em termos de preferências políticas explícitas, e de alguns jornalistas de orientação conservadora, a política externa petista recebeu acolhimento muito favorável nesses outros meios, inclusive em função de uma espécie de compensação a ser feita por uma política econômica acusada pelos próprios petistas de ser “neoliberal”. Os observadores externos geralmente ficam na superfície das muitas iniciativas adotadas por essa diplomacia partidária e pelas posturas supostamente “ativas e altivas” da nova política externa, visivelmente dada a grandes gestos de pirotecnia externa, sempre engajada na promoção pessoal do “Nosso Guia” – como designado pelo seu 5

A referência é o já citado livro de 2014, Nunca Antes na Diplomacia, que compila os mais importantes artigos escritos desde meados da década anterior. 6 Em especial estes artigos: Um exercício comparativo de política externa: FHC e Lula em perspectiva”, Meridiano 47 (n. 42-43, jan./fev. 2004, p. 11-14; disponível: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-100_files/Meridiano_42_43.pdf); “Uma política externa engajada: a diplomacia do governo Lula”, Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: IBRI, a. 47, n. 1, 2004, p. 162-184; disponível: http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v47n1/v47n1a08.pdf). 9

chanceler de oito anos, diplomata de formação, mas o único na história do Itamaraty a ter aderido a um partido político – e fortemente comprometida com alguns grandes gestos simbólicos (como o engajamento no Haiti, tentativas de “paz” no Oriente Médio, interferência no tratamento pelo P5+1 do programa nuclear iraniano, etc.). Eles não conseguem avaliar precisamente o quanto essa política externa se afastou, ou destoou das bases essencialmente técnicas e ponderadas da diplomacia anterior, a profissional do Itamaraty. Uma consulta eventualmente feita aos próprios diplomatas, num ambiente já desanuviado dos anos de “pensamento único” dos lulopetistas no poder, como pode ser este período “pós-petista”, revelaria certamente um conjunto de reservas, tanto de fundo quanto de forma, em relação a diferentes dossiês da agenda oficial nos anos ditos “gloriosos” daquela diplomacia. Determinadas decisões tomadas nos anos lulopetistas – curiosamente na direção de regimes alegadamente “aliados” do PT e ideologicamente simpáticos às mesmas orientações – o foram em condições não convencionais, e talvez com documentação escassa a respeito do processo decisório, provavelmente sem refletir opções ou escolhas que seriam normalmente adotadas pelo próprio staff profissional se este tivesse efetivamente conduzido a definição dessas políticas. Esse é provavelmente o aspecto mais negativo, do ponto de vista basicamente técnico, que pode ser apontado em desfavor da “diplomacia partidária lulopetista”, em contraste, portanto, com sua recepção amplamente positiva em largos estratos dessa comunidade “epistêmica”, fruto dos enormes investimentos, inclusive em propaganda, com que ela foi gratificada durante todo o período. É bem verdade que, nesses anos, os recursos orçamentários foram multiplicados, os quadros ampliados enormemente e o número de representações no exterior estendido a países de escasso significado até para suas antigas metrópoles, o que implicou em aumento do divisor de gastos sem que o numerador financeiro fosse proporcionalmente aumentado. O próprio chefe de Estado lançou-se no maior número possível de iniciativas diplomáticas, até o limite de certa “irresponsabilidade funcional” – que significa negociar diretamente com chefes de Estado estrangeiros decisões e posturas não analisadas detidamente pela diplomacia profissional, no plano técnico, antes da sua adoção formal – e determinadas decisões chegaram a se chocar frontalmente com posições estabelecidas na tradição diplomática (inclusive sem uma preparação adequada), o que justifica precisamente o julgamento de “fim de consenso” que foi feita a respeito dessa diplomacia partidária. O Mercosul, por exemplo, se afastou por completo do mandato original, que era basicamente comercial. 10

Não cabe retomar aqui uma descrição detalhada dessas iniciativas duvidosas, o que foi objeto de diversos capítulos a respeito dessa “diplomacia exótica”, inseridos em meu livro Nunca Antes na Diplomacia, sendo que determinados episódios dificilmente poderão ser devidamente esclarecidos, seja pelos atuais diplomatas, seja em pesquisas dos historiadores do futuro, exatamente por lacunas e omissões deliberadas ou pela falta de documentação adequada a respeito de determinados casos. Muitos deles têm a ver com a diplomacia regional, mais exatamente em conexão com os chamados regimes bolivarianos ou de orientação socialista, que sempre contaram com a simpatia prévia e sem reservas dos lulopetistas no poder. Não é difícil adivinhar porque, embora certas aproximações talvez tenham respondido menos a simpatias ideológicas e bem mais a certos estímulos de “negócios”, de todos os tipos, sobretudo daqueles que contaram com a participação das mesmas grandes empreiteiras que figuram com todas as honras nas investigações em torno do maior caso de corrupção da história do Brasil. Vários dos casos mais notórios de “diplomacia partidária” envolveram, quase que “naturalmente”, a Venezuela de Chávez e de Maduro, a Bolívia de Evo Morales, o Paraguai de Fernando Lugo, o Uruguai de Tabaré Vásquez e José Mujica, a Honduras de Zelaya, o Equador de Ruben Correa, ou o Chile socialista, quando não Angola e outros regimes supostamente anti-hegemônicos em outras partes do planeta. Todos eles contaram com a “parceria estratégica”, ou com fortes simpatias – quando não com o financiamento secreto, o que é flagrantemente inconstitucional – do PT no poder, ou seja, uma fonte decisória externa à diplomacia profissional, em alguns casos oposta a seus avisos ou recomendações. Essa diplomacia partidária significou também uma fragmentação de sua unidade decisória, já que vários responsáveis se “apossaram” de algumas áreas, transformadas em “feudos” pessoais: o assessor da presidência para assuntos internacionais, por exemplo, foi muitas vezes identificado, pela imprensa – mas a partir de comentários dos diplomatas profissionais –, como o “chanceler para a América do Sul” (mais provavelmente, e de fato, um chanceler do Foro de São Paulo). Esse tipo de postura tampouco deixou de afetar, como alertado acima, princípios e valores das relações internacionais do Brasil, tal como inscritos no artigo 4o. da CF88, ou em tradições diplomáticas bem assentadas. Uma das mais antigas regras nessa área é o princípio da não intervenção nos assuntos internos de outros Estados; como se sabe, nenhum candidato dito “progressista” na região – e até fora dela – poderia alegar que que lhe faltou o apoio aberto e entusiasta do chefe de Estado brasileiro, inclusive com visitas em campanha, no decorrer de suas campanhas eleitorais. As circunstâncias 11

que cercam, por exemplo, a nacionalização dos ativos da Petrobras na Bolívia, ou o ingresso do presidente Zelaya na representação diplomática brasileira na capital de Honduras, ou ainda determinados contratos de financiamento em países do mesmo arco político, estão até hoje envoltas em mistério e não se sabe se o processo decisório que levou a tais tomadas de decisão serão esclarecidas no futuro. Existe, assim, um amplo espaço aberto a análises mais bem fundamentadas no chamado “interesse nacional” – sem dúvida difícil de definir, mas instintivamente percebido como sendo aquele de maior consenso entre diferentes atores do mundo político e empresarial – ou na “memória coletiva” do Itamaraty, do que nas simpatias e ardores militantes dos partidários da “diplomacia ativa e altiva”, promovida com altas doses de autopublicidade e recebida acriticamente por amplos estratos, quando não pela quase totalidade, da comunidade acadêmica, que multiplicou estudos, dissertações e teses louvando essa diplomacia durante os anos de vigência do lulismo no poder. Agora que o encanto se desfez – e poderá ainda se desfazer ainda mais, em função de novas investigações sobre determinadas “operações” no exterior – pode ser que uma nova atitude, mais equilibrada venha a substituir o acolhimento favorável pelos aliados da causa “progressista”. Dificilmente os “apoiadores profissionais” deixarão, pelo menos numa certa fase, de prestar suas homenagens à, e lamentar a interrupção da diplomacia partidária, mas cabe de toda forma empreender a tarefa de construir interpretações dessa fase mais marcadas pela análise objetiva, e isenta de simpatias ideológicas, e menos colorida por esse entusiasmo militante como foi o caso nos últimos 13 anos. 4. Retomada da diplomacia profissional e papel dos partidos políticos Com a inauguração, em meados de maio de 2016, de um novo governo, ainda que “interino” e dispondo de uma estrutura organizacional ainda improvisada, abriu-se uma nova fase tanto para a diplomacia profissional, quanto para a política externa propriamente dita, quando não para os partidos que gravitam em torno da nova coalizão governamental, e que exclui, precisamente, o PT e partidos “satélites”, que formavam o núcleo da maioria derrocada pelo processo de impeachment em curso nesta conjuntura. Ocorreu, como era inevitável, uma nova definição de objetivos políticos, cujo perfil se parece muito com a antiga forma de trabalhar do Itamaraty tradicional e quase nada com a diplomacia partidária dos últimos 13 anos, a começar, precisamente, pelo afastamento dos critérios partidários na formulação e implementação das linhas básicas da atuação internacional do Brasil nos próximos dois anos, pelo menos. 12

Em seu discurso de assunção do cargo, realizada no Itamaraty em 18 de maio, o novo chanceler, o senador por São Paulo José Serra (PSDB), apresentou o que ele chamou de “Delineamento da Nova Política Externa Brasileira”, organizado em torno de dez diretivas, as quais, segundo sua informação, tinham sido lidas, revistas e aprovadas pelo presidente interino Michel Temer, configurando, portanto, o que se chamaria de “política de governo”. A primeira diretiva se refere, precisamente, à ruptura com a anterior “diplomacia partidária”. Em suas próprias palavras, essa diretriz reza o seguinte: 1. A diplomacia voltará a refletir de modo transparente e intransigente os legítimos valores da sociedade brasileira e os interesses de sua economia, a serviço do Brasil como um todo e não mais das conveniências e preferências ideológicas de um partido político e de seus aliados no exterior. A nossa política externa será regida pelos valores do Estado e da nação, não do governo e jamais de um partido. Essa nova política não romperá com as boas tradições do Itamaraty e da diplomacia brasileira, mas, ao contrário, as colocará em uso muito melhor. Medidas que, em outros momentos, possam ter servido ao interesse nacional, quero dizer, podem não ser mais compatíveis com as novas realidades do país e com as profundas transformações em curso no cenário internacional. (ênfase agregada PRA) Mais ainda, em contraste com a aliança implícita ou explícita do lulopetismo com as piores ditaduras do continente ou alhures, à condição que fossem da mesma orientação “anti-hegemônica” que o antigo partido hegemônico, a nova orientação é ainda refletida na segunda diretriz: 2. Estaremos atentos à defesa da democracia, das liberdades e dos direitos humanos em qualquer país, em qualquer regime político, em consonância com as obrigações assumidas em tratados internacionais e também em respeito ao princípio de não ingerência. (ênfase agregada PRA) Trata-se, sem dúvida alguma, de uma importante mudança em relação aos antigos postulados da “diplomacia partidária”, tanto no plano estritamente regional, ou seja, das relações bilaterais do Brasil com os países ditos bolivarianos, mas também bastante significativa do ponto de vista das posturas políticas assumidas pela diplomacia brasileira no contexto mais vasto da política internacional. As demais diretrizes não se distanciam muito das posturas mais tradicionais do Itamaraty, a não ser, talvez, o fato de se retomar o discurso de uma reciprocidade estrita nas negociações comerciais bilaterais ou multilaterais, o que ainda precisa, de toda forma, ser testado no terreno da prática. As prioridades geográficas continuam a ser em grande medida aquelas do regime anterior – China, Índia, América Latina, países africanos – mas com uma ênfase de cunho mais 13

comercialista e focada em resultados concretos, países e regiões que agora receberam a agregação explícita dos principais parceiros desenvolvidos de economias de mercado. A Argentina continuará a ser o parceiro privilegiado, tanto em termos políticos quanto econômicos, com a qual se buscará, sobretudo, revitalizar o Mercosul, objeto de fortes críticas anteriores do senador agora chanceler. A promessa, inclusive pela necessidade de superar o atual quadro de recessão no Brasil, é a de fazer com que as áreas econômica e diplomática trabalhem em perfeita coordenação de intenções e de mecanismos negociadores nos próximos dois anos, com vistas a conquistar novos mercados e expandir as fronteiras da presença econômica do Brasil no plano internacional, sem a pirotecnia publicitária do governo anterior. Uma tal atitude – e uma nova política de mobilização plena da própria diplomacia profissional, em lugar de apparatchiks partidários influenciando ou distorcendo consagradas políticas do Itamaraty – poderá alterar significativamente a postura internacional do Brasil, distanciando-se daquela observada nos últimos treze anos, quando a diplomacia partidária do PT subordinou a política externa a preferências ideológicas claramente perceptíveis, e praticou uma enviesada diplomacia Sul-Sul que não produziu quase nada como resultados efetivos. O Brasil prepara-se pois para abandonar o universo restrito desses alinhamentos políticos a regimes de esquerda na América Latina, retomando sua antiga vocação universalista e pragmática, com foco principal em metas e objetivos econômicos e comerciais. Grande parte desse esforço será conduzido no próprio Cone Sul, agora reconfigurado também pela mudança de orientação política na Argentina, com a qual o Brasil precisará se coordenar para impulsionar um novo cenário econômico, e até geopolítico, em escala continental e até mundial. Sem que se recorra ao “fantasma” da liderança regional do Brasil, uma postura sempre rechaçada pelo Itamaraty,7 o Brasil poderá retomar uma agenda política de coordenação regional (sem o anti-imperialismo implícito ou explícito da gestão anterior) que sirva, antes de mais nada, aos objetivos da integração física continental, um tema gerido de forma inepta nos últimos treze anos (não inteiramente devido à já referida diplomacia partidária do PT, mas também devido às políticas econômicas erráticas de diversos parceiros preferenciais desse partido). Essa constitui, aliás, uma das mais importantes agendas da diplomacia brasileira na presente gestão, como aliás 7

Ocupei-me desse falso problema numa entrevista que teve divulgação restrita: “A questão da liderança regional do Brasil: um posicionamento analítico-diplomático”, in Diplomatizzando (5/06/206; disponível: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/06/a-questao-da-liderancaregional-do.html). 14

refletido nesta outra diretriz enunciada no mesmo discurso efetuado na tomada de posse no Itamaraty, no dia 18/05/2016: 7. Um dos principais focos de nossa ação diplomática em curto prazo será a parceria com a Argentina, com a qual passamos a compartilhar referências semelhantes para a reorganização da política e da economia. Junto com os demais parceiros, precisamos renovar o Mercosul, para corrigir o que precisa ser corrigido, com o objetivo de fortalecê-lo, antes de mais nada quanto ao próprio livre-comércio entre seus países membros, que ainda deixa a desejar, de promover uma prosperidade compartilhada e continuar a construir pontes, em vez de aprofundar diferenças, em relação à Aliança para o Pacifico, que envolve três países sul-americanos, Chile, Peru e Colômbia, mais o México. Como disse Enrique Iglesias, muito bem observado, não podemos assistir impassíveis à renovação de uma espécie de Tratado de Tordesilhas, que aprofundaria a separação entre o leste e o oeste do continente sul-americano. Em relação ao México, será prioritário aproveitar plenamente o enorme potencial de complementaridade existente entre nossas economias e hoje das nossas visões internacionais. (ênfase agregada PRA) É um fato que América Latina, durante a maior parte da história contemporânea, foi estatista, protecionista, dirigista, características geralmente justificadas por um projeto qualquer de “desenvolvimento nacional”. As reformas liberais dos anos 1980 e das décadas posteriores estabilizaram parcialmente economias assoladas por inflações virulentas, mas poucos países continuaram a seguir o caminho das reformas estruturais para abrir suas economias, reduzir os gastos do Estado, capacitar a mão-de obra ou melhorar as infraestruturas. Os países que o fizeram, de maneira mais acabada, foram justamente recompensados por taxas de crescimento sustentadas, como foi o caso do Chile. Os países menos capazes de avançar nas reformas – seja por falta de liderança política, seja por alguma maldição dos recursos naturais, como acontece facilmente com o petróleo – foram em grande medida condenados a repetir a história de booms and busts, de um crescimento errático seguido de uma crise, ou até de uma recessão. Ocorreu, também, que os países mais reticentes à globalização, como o Brasil e a Argentina só conseguiam avançar, modestamente, em marcha irregular, comumente chamada de “voo de galinha”, em virtude desses saltos frustrados, buscando uma decolagem sempre comprometida pelo peso do Estado, pela falta de poupança e de investimentos, ou pela ausência de inovação técnica, dos quais decorre o “eterno retorno” à exportação de matérias primas. O Brasil e a América Latina parecem ter sido confirmados no papel de fornecedores de matérias primas para países industrializados, inclusive, e sobretudo, para a China, que tornou-se a primeira parceira de vários deles, assumindo um lugar que antes tinha pertencido às antigas potências coloniais. 15

A América Latina apresentava-se, até recentemente, mais ou menos fragmentada entre, de um lado, forças favoráveis à globalização – como exemplificado pelos países da Aliança do Pacífico – e, de outro, aos países vagamente chamados de bolivarianos, sendo que no meio desses polos opostos situavam-se os reticentes, como poderiam ser o próprio Brasil e a Argentina, que agora mudaram significativamente de postura.8 Pode ser que a dispersão e o caráter errático das políticas econômicas – que sempre constituiu a verdadeira causa das “assimetrias” entre os países – venha a ser superada por políticas mais sensatas nos próximos anos. Caberia neste caso ao Brasil e à Argentina, como as maiores economias do continente, e os dois principais membros do Mercosul, liderar o esforço sempre adiado de constituição de um amplo espaço econômico comum na região. Para tanto, eles deveriam, em primeiro e mais importante lugar, retomar os objetivos originais do Mercosul, não apenas no sentido de cumprir as metas comerciais estabelecidas no Tratado de Assunção, mas também de caminhar na direção de uma esperada coordenação de políticas macroeconômicas ali também expressas. Não é seguro que eles consigam retomar esse tipo de objetivo estratégico, mas, pela primeira vez em muitos anos, talvez se possa aspirar que tal agenda seja seriamente considerada. Não se trata de uma agenda puramente regional, mas propriamente global; e, no plano das políticas públicas, ela não é absolutamente partidária, e sim nacional. É muito provável que, no que se refere ao Brasil, a maior parte dos partidos representados no Congresso – a exceção daquele pequeno grupo de “bolivarianos nacionais” – retome e ratifique uma política externa que sempre expressou um largo consenso, ainda que difuso, existente na sociedade brasileira, muito bem representado pela diplomacia profissional do Itamaraty. Depois de quase uma década e meia de posturas externas em clara dissonância com valores e princípios tradicionais da diplomacia brasileira, tal postura representará a retomada de um “curso natural” na história da política externa.

Paulo Roberto de Almeida Brasília, 8 de junho de 2016

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Descrevi essa situação, válida até pouco tempo atrás, neste artigo: “A América Latina na geopolítica mundial: perspectivas históricas e situação contemporânea do Cone Sul”, Revista Eletrônica de Direito Internacional (Belo Horizonte: CEDIN, vol. 17, 2016, p. 342-367; disponível: http://www.cedin.com.br/publicacoes/revista-eletronica/#Volume_17). 16

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