“Passaporte para a cidadania”: a comunicação comunitária na construção de uma política sindical na área da saúde e segurança no trabalho

June 6, 2017 | Autor: R. Midiática | Categoria: Communication, Community Development, Citizenship, Trade unions
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Rozinaldo Antonio MIANI

Universidade Estadual de Londrina – Londrina, Brasil

“Passaporte para a cidadania”: a comunicação comunitária na construção de uma política sindical na área da saúde e segurança no trabalho “Pasaporte a la ciudadanía”: una comunicación comunitaria en la construcción de una política sindical en la salud y seguridad en el trabajo

“Passport to citizenship”: a community communication in building a political union in the health and safety at work

Recebido em: 10 jul. 2012 Aceito em: 21 nov. 2012

Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Visual e coordenador da Especialização em Comunicação Popular e Comunitária da UEL; doutor em História pela UNESP, com pós-doutorado em Comunicação pela ECA/USP. Contato: [email protected]

Revista Comunicação Midiática, v.7, n.3, p.129-145, set./dez. 2012

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RESUMO Como parte de uma política sindical na área da saúde e segurança no trabalho, a Feticom/SP desenvolveu a campanha “Peão, não! Cidadão”. Dentre as ações desenvolvidas, merece destaque a produção da cartilha “Passaporte para a cidadania” que sintetiza, por meio de charges, o conteúdo da Norma Regulamentadora 18 (NR-18) que legisla sobre os direitos dos trabalhadores no ambiente de trabalho no setor da construção. O presente trabalho tem como objetivo analisar o processo de produção da cartilha “Passaporte para a cidadania”, produzido a partir de importantes pressupostos da comunicação comunitária, bem como analisar sua importância estratégica no contexto da constituição de uma política sindical voltada para a cidadania e para a formação política dos trabalhadores. Palavras-chave: comunicação comunitária; charge; saúde e segurança no trabalho; NR18; “Passaporte para a cidadania”.

RESUMEN Como parte de una política sindical en la salud y la seguridad en el trabajo, la Feticom/SP desarrolló la campaña “Peón, no! Ciudadano”. Entre las acciones realizadas, merece atención la producción de la publicación “Pasaporte a la ciudadanía”, que sintetiza por medio de las charges, el contenido de la Norma Reglamentaria 18 (NR-18) que regula los derechos de los trabajadores en el sector de la construcción. El presente trabajo tiene como objetivo analizar el proceso de producción de la cartilla “Pasaporte a la ciudadanía”, producida a partir de los supuestos de la comunicación comunitaria, y analizar su importancia estratégica en el contexto de la formación de una política sindical que apunta a la ciudadanía y a la educación política de los trabajadores. Palabras clave: comunicación comunitaria; charge; salud y seguridad en el trabajo; NR-18; “Pasaporte a la ciudadanía”.

As part of a political union in the health and safety at work, the Feticom/SP has developed the campaign “Not a Pawn, Citizen”. Among the actions taken, we would like to mention the production of the booklet “Passport to citizenship” which synthesizes through cartoons, the contents of the Regulatory Norm 18 (NR-18) that regulates the rights of workers in the construction sector. The present work aims to analyze the production process of the booklet “Passport to citizenship”, produced from the Community communication important assumptions, and analyze its strategic importance in forming a political union that points to citizenship and the political education of workers. Keywords: community communication; charge, health and safety at work; NR-18, “Passport to citizenship”.

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ABSTRACT

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Introdução

A Federação dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção, do Mobiliário e Montagem Industrial do Estado de São Paulo (Feticom/SP), que representa os sindicatos do ramo da construção no estado de São Paulo1, impulsionou, na segunda metade da década de 1990, uma importante política sindical na área da saúde e segurança no trabalho. Especificamente para o setor da construção, merece destaque, dentre as estratégias e ações definidas, a campanha “Peão, não! Cidadão”. Tratava-se de uma campanha permanente de organização e mobilização sindical, desenvolvida junto aos sindicatos da categoria filiados à Feticom/SP, na luta por melhores condições de trabalho. A intensificação das fiscalizações, a garantia de cumprimento da legislação sobre o ambiente de trabalho nos canteiros de obra, o fortalecimento das comissões internas de prevenção de acidentes (Cipa) no interior das empresas e a formação/informação aos trabalhadores em relação aos seus direitos na área da saúde e segurança se apresentavam como as principais metas da referida campanha. Em especial no campo da formação/informação no setor da construção civil, havia, à época, uma grande necessidade e um desafio por parte dos sindicatos de levar aos trabalhadores o conhecimento da Norma Regulamentadora 18 (NR-18)2, que trata das Condições e Meio Ambiente do Trabalho na Indústria da Construção, que havia sofrido uma significativa alteração e que ganhara nova redação a partir da publicação no Diário Oficial da União de 07 de julho de 1995. Diante de tal demanda, a Feticom/SP decidiu desenvolver uma cartilha ilustrada, intitulada “Passaporte para a cidadania”, contendo as principais informações acerca dos direitos dos trabalhadores da construção em relação à saúde e segurança no trabalho, previstos pela NR-18. Nesse sentido, o objetivo desse trabalho será analisar o processo de produção da referida cartilha, desenvolvido a partir de importantes pressupostos da

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Atualmente a Feticom/SP representa apenas parte dos sindicatos do ramo da construção no estado, pois os sindicatos do ramo filiados à Central Única dos Trabalhadores (CUT) criaram a Federação Solidária da Construção e da Madeira (FSCM-CUT). 2 A NR-18 foi instituída em 1978 por meio da Portaria nº 3.214 e tinha como título “Obras de Construção, Demolição e Reparos” e passou a ser intitulada “Condições e Meio Ambiente do Trabalho na Indústria da Construção” a partir de sua reformulação em 1995, principalmente por exigência do cumprimento da Convenção 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O setor da construção é dividido em construção pesada, montagem industrial e edificações; este último segmento compreende a construção de edifícios residenciais, comerciais, de serviços, institucionais e industriais, além de edificações modulares verticais e horizontais e é o foco da NR-18.

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comunicação comunitária, bem como analisar sua importância estratégica no contexto

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da constituição de uma política sindical na área da saúde e segurança no trabalho voltada para a cidadania e para a formação política dos trabalhadores. Para tanto, para a realização desse artigo, apresentaremos, em primeiro lugar, as principais questões em torno da legislação na área da saúde e segurança no trabalho no setor da construção, em especial a história e a trajetória da Norma Regulamentadora 18. Em seguida, trataremos da importância política da produção de um material comunicativo nos pressupostos da comunicação comunitária e faremos uma breve análise do processo de produção da cartilha “Passaporte para a cidadania”. Por fim, analisaremos o referido material em sua forma e conteúdo no contexto de constituição de uma política sindical voltada para a cidadania, explorando algumas questões específicas da área da saúde e segurança no trabalho.

NR-18: uma conquista na área da saúde e segurança no trabalho no setor da construção

Dentre as várias categorias trabalhistas, o setor da construção é um dos principais responsáveis pelos altos índices de acidentes de trabalho no Brasil. As péssimas condições de trabalho oferecidas pelos empresários do setor (empreiteiros, construtoras), aliado à falta de informação sobre os direitos dos trabalhadores na área de saúde e segurança no trabalho, bem como ainda, devido à falta de cultura dos trabalhadores em relação ao uso adequado dos equipamentos de proteção individual (EPIs), são responsáveis por acidentes de trabalho que, não raro, são fatais. De acordo com Adriane do Vale,

Em razão disso, e da ação política das organizações sindicais classistas em defesa dos interesses dos trabalhadores, o setor da construção conta com uma regulamentação bastante importante no que se refere à saúde e segurança no trabalho. Trata-se da Norma Regulamentadora 18 (NR-18) que versa sobre as Condições e Meio “Passaporte para a cidadania”: a comunicação comunitária na construção de uma política sindical na (...)

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As condições de trabalho na construção civil sempre foram muito adversas. A velocidade com que uma obra se realiza dificulta a organização do ambiente, há interferência direta de fatores climáticos, vários são os agentes físicos, químicos, biológicos e ergonômicos a exporem os trabalhadores aos riscos, sem mencionar a baixa qualificação dos que realizam as tarefas, o que definitivamente atrapalha a prevenção dos acidentes e doenças ocupacionais (VALE, 2005: 1).

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Ambiente do Trabalho na Indústria da Construção. A NR-18 foi instituída em 1978, mas passou por algumas modificações até se tornar objeto de um significativo processo de alteração no final da primeira metade da década de 1990. Esse processo foi assim descrito por Vale: Em 1983, a NR-18 passou por uma primeira modificação, lhe foi conferida maior abrangência e um conteúdo mais técnico e atualizado. No entanto, ainda não havia chegado o momento do tão esperado salto de qualidade nas questões de segurança e saúde do trabalho. O início deste processo, ainda em andamento, só ocorreu alguns anos depois, mais precisamente em junho de 1994, quando foi iniciado o trabalho de revisão da norma por um Grupo Técnico de Trabalho (VALE, 2005: 2).

Após determinação da Secretaria de Segurança e Saúde no Trabalho do Ministério do Trabalho (SSST/MTb), foram formados dez grupos de trabalho por todo o país para apresentarem propostas de alteração para a NR-18. Depois de muitas discussões e sistematizações dos grupos de trabalho, foi elaborada uma primeira versão de reformulação da NR-18 que foi, posteriormente, encaminhada para cerca de 110 entidades, empresas e profissionais para emitirem sugestões e contribuições. Vencida essa etapa, a SSSM/MTb publicou em Diário Oficial uma minuta do Projeto de Reformulação da NR-18 para que novas sugestões e contribuições pudessem ser apresentadas. Ao longo desse processo, foram recebidas “cerca de três mil sugestões, propostas e contribuições de aproximadamente trezentas entidades, empresas e profissionais da comunidade” (FUNDACENTRO, 1998: 8). Para a sistematização de todo o material recebido, bem como para conduzir o processo de elaboração da última versão do novo texto da Norma Regulamentadora 18, foi constituída uma comissão tripartite e paritária3. Depois de várias tentativas, a comissão chegou a um consenso e, em 07 de julho de 1995, foi publicada no Diário Oficial da União a nova redação da NR-184. Dentre as principais questões tratadas pela NR-18 destacam-se a exigência de

indústria da construção (PCMAT); detalhamento das condições nas áreas de vivência para os trabalhadores (canteiros de obra); procedimentos para demolição, escavações e 3

A comissão tripartite e paritária foi constituída, em maio de 1995, por representantes do governo (SSST/MTb, DRT e Fundacentro), representantes dos empregadores (CNI, CBIC, CNICM) e representantes dos trabalhadores (CNTI, CUT e Força Sindical). 4 A NR-18 sofreu pequenas alterações ao longo dos últimos 15 anos, através de portarias do Ministério do Trabalho, mas nada que merecesse uma “revisão conceitual” da referida norma regulamentadora.

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elaboração e cumprimento do Programa de Condições e Meio Ambiente de Trabalho na

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fundações; condições para realização de trabalhos de carpintaria, armações de aço, estruturas de concreto e metálica, entre outros; estabelecimento de medidas de proteção com rampas, passarelas e andaimes, contra quedas de altura e contra incêndio; cuidados com instalações elétricas, máquinas e equipamentos; obrigatoriedade do uso de equipamentos de proteção individual (EPIs); garantias para o transporte de trabalhadores em veículos automotores; condições para treinamento periódico; organização de comissão interna de prevenção de acidentes (Cipa); dentre outras questões gerais e específicas. Do conjunto de “diretrizes de ordem administrativa, de planejamento e de organização, previstos pela NR-18, que objetivam a implementação de medidas de controle e sistemas preventivos de segurança nos processos, nas condições e no meio ambiente de trabalho na indústria da construção” (FUNDACENTRO, 1998: 15), a Feticom/SP decidiu investir, em sua política sindical para a área da saúde e segurança, na formação e informação dos trabalhadores no que diz respeito, principalmente, às condições dos canteiros de obra. Dessa decisão política resultou a produção da cartilha “Passaporte para a cidadania”, que além das contribuições políticas para uma política sindical na área da saúde e segurança no trabalho, também colocou em prática alguns pressupostos da comunicação comunitária.

A produção da comunicação sindical em pressupostos comunitários

Considerando tratar-se, dentre outras características, de uma comunicação marcada pelos processos participativos e voltada para a consolidação de relações democráticas e horizontalizadas nos processos decisórios, a comunicação comunitária foi o pressuposto metodológico que norteou o processo de produção da cartilha “Passaporte para a cidadania”. Segundo Cicília Peruzzo, “a comunicação comunitária, quando desenvolvida em base democrática, simboliza o acesso democrático e a partilha

Sobre a importância da participação nos processos de produção da comunicação comunitária, Raquel Paiva afirma: A participação efetiva da comunidade na elaboração das produções é exatamente o que vai distinguir um veículo comunitário. É uma conquista a ser alcançada o envolvimento de todo o grupo social, “Passaporte para a cidadania”: a comunicação comunitária na construção de uma política sindical na (...)

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do poder de comunicar” (PERUZZO, 2003: 250).

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mesmo que existam na comunidade pessoas exclusivamente responsáveis pela montagem do veículo (PAIVA, 1998: 159).

Diante desses apontamentos, que nos remetem a alguns dos pressupostos teórico-metodológicos da comunicação comunitária, reconhecemos que se trata de uma prática comunicativa contra-hegemônica. Nessa perspectiva, Rozinaldo Miani afirma: Considerando a comunicação comunitária como o processo de produção de experiências comunicativas, portanto uma prática social, desenvolvido no âmbito de uma comunidade com vistas à conquista da cidadania, através de práticas participativas, e possibilitando aos indivíduos interagentes a construção de uma nova sociabilidade, admitimos que essa modalidade de prática comunicativa participa de maneira significativa no processo de disputa pela hegemonia no campo da comunicação (MIANI, 2006: 9).

No contexto sindical, em especial nos sindicatos que possuem uma razoável infraestrutura material e de recursos humanos, o que se observa de maneira predominante é o encaminhamento das ações e políticas sindicais de forma verticalizada. Considerando que as diretorias foram eleitas pelas suas bases, a grande maioria dos sindicalistas acredita gozar de legitimidade para delegar e decidir sobre todos, ou pelo menos a grande maioria, dos assuntos de interesse dos trabalhadores. Essa cultura acaba, não raras vezes, estabelecendo tensões e crises junto aos trabalhadores de base, pois estes acabam não vendo, necessariamente, seus interesses e opiniões ouvidos e respeitados pelas diretorias de suas respectivas entidades de classe. No campo da comunicação e da produção de materiais formativos e informativos essa é uma realidade muito frequente, principalmente nos sindicatos que têm a sua própria equipe de profissionais da comunicação. No caso de uma Federação, que é uma instância superior (mais abrangente) ao sindicato na hierarquia da estrutura sindical oficial, a situação se apresenta um pouco diferente, porque a base de uma Federação é constituída, fundamentalmente, pelos próprios sindicatos5. Sendo assim, as possibilidades de proporcionar processos mais

exclusivamente da vontade política da direção da referida entidade.

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As chamadas bases inorganizadas, que são os trabalhadores de uma determinada categoria em cidades que não têm um sindicato do ramo constituído, também são atendidas pelas Federações, mas no caso da Feticom/SP, houve uma intensa campanha de vinculação dessas bases aos sindicatos já constituídos, localizados mais próximos das respectivas cidades.

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participativos e democráticos se apresentam muito mais viáveis, pois depende

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Nesse sentido, para a produção de um material formativo e informativo para impulsionar uma política sindical na área da saúde e segurança do trabalho, a Feticom/SP convidou os representantes das referidas áreas dos sindicatos filiados para várias reuniões com o objetivo de discutir a forma e o conteúdo da cartilha. Para levar adiante o projeto, foi constituída uma comissão com os sindicalistas interessados. Depois de muitos debates e discussões, a decisão foi pela realização de uma cartilha ilustrada, tratando de maneira simples, direta e objetiva sobre as principais condições de trabalho que devem existir nos canteiros de obra. Para a produção gráfica da cartilha foi contratado Francisco Marcatti, um chargista bastante conhecido da imprensa sindical, que elaborou as imagens a partir das orientações apresentadas pelos sindicalistas e que contou com a assessoria técnica da engenheira do trabalho Fernanda Giannasi. Depois de submetido à comissão e aprovado pelos sindicalistas, o material foi finalizado e impresso, com o apoio da Fundacentro6, para ser distribuído e discutido entre os trabalhadores. Vale ressaltar que a participação da Fundacentro no processo de produção da cartilha esteve limitada ao financiamento para impressão gráfica do material. O aparecimento do logotipo da referida fundação (que é vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego) segue a exigência de todo órgão público que financia ações individuais ou coletivas para fomento de pesquisas e/ou políticas sociais, mas não houve ingerência direta sobre as definições quanto ao conteúdo e à forma do material produzido.

“Passaporte para a cidadania” e a luta pela defesa da saúde e segurança do trabalhador

O setor da construção no estado de São Paulo é marcado pela intensa presença de trabalhadores oriundos de outras regiões do país e, nesse sentido, um contingente significativo de trabalhadores acaba “morando” no próprio local de trabalho e, para

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A Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), inaugurada em 28 de agosto de 1969, é uma entidade governamental, vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego, que atua em pesquisa científica e tecnológica relacionada à segurança e saúde dos trabalhadores.

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tanto, habitam os alojamentos dos canteiros de obra.

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Para combater as “práticas arbitrárias e desrespeitosas dos patrões”7 em relação às condições de trabalho, e oferecer instrumentos políticos, através da informação, para que os trabalhadores pudessem exigir o cumprimento da legislação a respeito do ambiente de trabalho na indústria da construção, a Feticom/SP produziu a cartilha “Passaporte para a cidadania” no contexto da campanha “Peão, não! Cidadão”.

Figura 1: Cartilha “Passaporte para a cidadania”, 1998: Capa, Feticom/SP

Trata-se de uma cartilha ilustrada em formato ¼ de ofício, colorida, com 28 páginas, apresentando algumas das garantias que os trabalhadores têm e que estão previstas na Norma Regulamentadora 18. A cartilha começa com a imagem de um trabalhador em seu ambiente de trabalho (uma obra da construção) dialogando com o leitor e mostrando todo o seu orgulho de ser operário do setor da construção civil. O personagem, que irá aparecer em

trabalhadores a se organizarem para garantir o que está previsto na referida legislação. Observe-se que o solo onde o prédio em construção está “edificado” representa o próprio planeta Terra, mais especificamente, localizado na região do mapa que 7 Trata-se de um jargão muito frequente entre os sindicalistas para se referir à conduta dos empresários em relação aos seus empregados.

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todas as situações retratadas ao longo da cartilha, explica o que é a NR 18 e convoca os

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corresponde à América do Sul e ao Brasil. Podemos compreender que, o que se pretendia com essa representação era reforçar o sentido de que os trabalhadores do setor da construção (também) participam da construção da própria realidade social e política nacional, isso porque, no contexto do sindicalismo brasileiro, o setor não goza de muito prestígio junto aos setores de vanguarda do movimento sindical, ocupando geralmente espaços políticos secundários.

Figura 2: Cartilha “Passaporte para a cidadania”, 1998: 4-5, Feticom/SP

A dinâmica da cartilha é de apresentar um trabalhador da construção civil, consciente de seus direitos, se questionando sobre o por quê ele deveria aceitar condições precárias de trabalho (e com isso mostrando que essa é uma realidade muito comum nos canteiros de obra no setor da construção) se a NR-18 prevê e determina condições adequadas para o exercício de sua atividade profissional. Os temas abordados são: instalação de bebedouro, transporte confortável e decente, uso de equipamentos de proteção individual, dormitórios limpos e equipados,

água quente e piso antiderrapante, áreas de lazer suficientes; e instalação de lavanderia. Em cada um desses temas são apresentadas duas imagens; uma mostrando a situação precária que se pretende combater, acompanhada de uma pergunta provocadora do porquê de se dever aceitar tal situação, e outra imagem representando a situação ideal “Passaporte para a cidadania”: a comunicação comunitária na construção de uma política sindical na (...)

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refeitório amplo e adequado, banheiros com instalações apropriadas, chuveiros com

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que os trabalhadores deveriam ter, com uma referência textual à garantia oferecida pela Norma Regulamentadora 18 em relação àquele determinado tema ou situação. O exemplo das imagens a seguir é bastante representativo da proposta da cartilha.

Figura 3: Cartilha “Passaporte para a cidadania”, 1998: 10-11, Feticom/SP

Vemos na primeira imagem um trabalhador completamente destituído de proteções individuais (capacete, luvas, botas, macacão) o que acaba por provocar um acidente de trabalho, ou seja, o trabalhador é ferido por uma viga que lhe atinge e esmaga o pé. As representações gráficas e sua expressão de dor dão o tom dramático da situação enfrentada por milhares de trabalhadores no setor da construção (inclusive, com um quadro estatístico bastante perverso em termos de mortes por acidentes de trabalho)8. A pergunta que é feita ao leitor é “Por que tenho que viver perigosamente?” e a resposta aparece no rodapé da imagem ao lado “Se a NR-18 prevê uniforme e

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De 1970 a 1994 a construção civil era responsável por 20% dos acidentes de trabalho no Brasil. Com a implantação da NR-18, esta porcentagem caiu para aproximadamente 5,8% em 2003, segundo avaliação do SindusCon-SP, ano em que foram registrados 23.904 acidentes e 310 mortes no setor (VALE, 2005: 3). Apesar de uma diminuição nas estatísticas de acidentes fatais com a NR-18, outros dados mais recentes do Ministério do Trabalho ainda revelam que o patamar de mortes por acidentes de trabalho no setor da construção é muito elevado e que a retomada das atividades do setor nos últimos anos trouxe consigo um aumento expressivo de acidentes de trabalho.

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equipamentos de proteção”. A imagem que acompanha o texto de resposta é uma

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representação de um trabalhador adequadamente protegido para o exercício da atividade profissional, com uniforme, capacete, luvas e botas apropriadas. Para essa questão, a NR-18 garante a obrigatoriedade do fornecimento, por parte das empresas, de equipamentos de proteção individual (EPIs) e remete à NR-6 que versa exclusivamente sobre todas as disposições de uso e condições dos EPIs. Vejamos um segundo exemplo:

Figura 4: Cartilha “Passaporte para a cidadania”, 1998: 14-15, Feticom/SP

Nessa sequência, temos uma primeira imagem onde aparece o trabalhador fazendo sua refeição em condições precárias. Ele está no próprio local de construção, como se pode perceber pelos blocos amontoados bem ao seu lado, num abrigo improvisado (em razão da chuva), em posição de cócoras e segurando sua marmita com uma das mãos (que fora esquentada num “fogareiro” improvisado) e se questionando sobre o “por que tenho que comer assim?”. Por sua vez, como resposta à sua própria pergunta, o trabalhador reconhece que não deveria aceitar tal situação, uma vez que a

Para mostrar como deve ser o ambiente do refeitório para os trabalhadores da construção, de acordo com a NR 18, a imagem apresenta um trabalhador sentado confortavelmente à mesa, em um ambiente limpo, iluminado, protegido da chuva e alimentando-se de uma refeição adequada, servida em bandejas apropriadas.

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NR 18 “determina refeitórios amplos, arejados e limpos”.

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Essa mesma dinâmica acompanha toda a cartilha e o trabalhador; diante das imagens, pode-se observar as duas situações contraditórias relacionadas ao ambiente de trabalho no canteiro de obras, ou seja, a situação que se deseja combater, e que é muito comum na realidade do setor da construção, e a situação ideal, que seria garantida caso a NR-18 fosse cumprida devidamente. Ao final da cartilha, o “trabalhador consciente”, que conduz a reflexão, apresenta uma síntese sobre a importância da Norma Regulamentadora 18 ao afirmar que “A NR-18 prevê e garante o mínimo para que nós possamos trabalhar com orgulho e dignidade”, mas faz um alerta ao leitor (o trabalhador da indústria da construção de modo geral) de que “é preciso que todos nós tomemos consciência disso e lutemos para garantir que a NR-18 seja posta em prática”. Essa conclusão se apresenta como a própria justificativa para a produção do material em questão, ou seja, mesmo com a existência de uma legislação que atenda de maneira satisfatória à necessidade de garantir o direito do trabalhador da construção à dignidade no ambiente de trabalho, ela não se apresenta, como de resto muitas das leis em vigência em nosso país, uma prática aplicada à realidade nos canteiros de obra, exigindo, para tanto, uma ação política e sindical de organização e mobilização dos trabalhadores para garantir a sua efetiva aplicação. Como ação política, a produção da referida cartilha teve o seguinte encaminhamento. Dezenas de milhares de cartilhas foram impressas e distribuídas para os sindicatos filiados à Feticom/SP. Cada sindicato organizou sua forma de distribuição, mas a orientação era que as cartilhas fossem entregues aos trabalhadores numa ação política combinada com a fiscalização nos locais de trabalho. A ação dos sindicalistas deveria ser acompanhada por um fiscal ou engenheiro do trabalho para que se pudesse, no ato de entrega da cartilha, conversar com os trabalhadores sobre o seu conteúdo, esclarecendo as dúvidas, e sobre as incompatibilidades de sua realidade com o que prevê a Norma Regulamentadora 18 e, com isso, potencializar a mobilização e a conscientização dos trabalhadores em relação aos seus direitos na área da saúde e Rozinaldo Antonio MIANI

segurança no trabalho.

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A luta em defesa da saúde e segurança no trabalho como prática de cidadania

Apesar de considerarmos uma temática bastante problemática, não podemos deixar de reconhecer que todo o processo de discussão, elaboração, produção e disseminação da referida cartilha perpassa o debate da cidadania. Admitimos a perspectiva conservadora e funcional de cidadania, em seu sentido político-ideológico, como bem expressa Ivo Tonet, quando o autor afirma que “a cidadania moderna é inseparável da entificação da sociabilidade capitalista” (TONET, 2012: 3). Nesse sentido, reconhecemos que o discurso da cidadania está, necessariamente, circunscrito aos limites da própria lógica capitalista, restritos ao âmbito jurídico-político. Segundo Décio Saes, a própria idealização de cidadania, expressa nos estudos de Thomas H. Marshall, não são exequíveis numa sociedade capitalista; para o referido autor, “uma cidadania plena e ilimitada [...] situa-se além do horizonte da sociedade capitalista e das suas instituições políticas” (SAES, 2003: 38). A despeito de assumimos tal perspectiva, consideramos que cidadania, nos marcos do capitalismo, pode ser entendida como [...] o conjunto de processos e práticas sociais que atuam na perspectiva de atendimento das condições preconizadas pelo Estado de Direito, no que se refere a direitos e deveres do cidadão, em toda a precariedade que possa ser admitida por situar-se na ordem e na órbita da sociedade capitalista (MIANI, 2012: 6).

Sendo assim, toda legislação (e aqui especificamente a legislação relacionada à área da saúde e segurança no trabalho no setor da construção, materializada na NR-18) consolida tal perspectiva, e o que se constituiu com o desenvolvimento dessa política sindical, através da produção da referida cartilha, pode ser aceita como uma prática de cidadania. Essa convicção foi manifestada pela própria diretoria da Feticom/SP em sua

Com a produção desta Cartilha e de outros materiais dessa campanha, a Feticom e os Sindicatos filiados fazem um grande esforço dentro do compromisso que têm com os trabalhadores da categoria de lutar, não apenas por melhoria nas condições de trabalho, mas, principalmente, para organizar e elevar o trabalhador a condição de cidadão que tem direitos e, como tal, deve ser respeitado (FETICOM, 1998: 27).

Além disso, a última imagem da cartilha também faz referência à cidadania. O trabalhador que protagonizou toda a discussão da cartilha se dirige ao leitor e, com “Passaporte para a cidadania”: a comunicação comunitária na construção de uma política sindical na (...)

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mensagem final contida na cartilha.

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simpatia, assume os dizeres como se fossem suas próprias palavras. “O caminho para a CIDADANIA passa pela forma de nossa organização. Vamos garantir que se cumpra a NR-18”. O detalhe a se observar é que a palavra “cidadania” aparece em destaque, sugerindo que o objetivo com todo aquele trabalho apontava para essa questão. Além disso, vale notar que, como pano de fundo, há uma representação sugerida de que a ideia de cidadania nos torna sujeitos iguais no que se refere ao acesso a direitos. As “carinhas” sorridentes podem ser entendidas como uma representação da satisfação com a conquista dos direitos previstos pela NR-18.

Enfim, podemos admitir que o processo de produção da cartilha “Passaporte para a cidadania” procurou contemplar a materialização de uma política sindical na área da saúde e segurança no trabalho no setor da construção, através de pressupostos da comunicação comunitária (em especial pela constituição de um processo participativo “Passaporte para a cidadania”: a comunicação comunitária na construção de uma política sindical na (...)

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Figura 5: Cartilha “Passaporte para a cidadania”, 1998: 26, Feticom/SP

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no âmbito de uma comunidade) e com vistas a conferir ao trabalhador a sua condição de cidadão.

Considerações finais

Com a realização deste artigo, pretendemos apresentar uma experiência comunicativa no âmbito da comunicação sindical que, além de sua relevância política no contexto da organização sindical, se desenvolveu de maneira importante a partir dos pressupostos da comunicação comunitária. Outras questões e outras abordagens poderiam ser exploradas em nossas análises, como por exemplo, o fato da cartilha “Passaporte para a cidadania” ter sido produzida como um material comunicativo de natureza essencialmente visual (por meio de charges) que, pelo público a quem se dirigia, qual seja, os trabalhadores da construção, se apresentava como uma estratégia comunicativa das mais eficientes. Porém, por uma questão de foco, decidimos não aprofundar essa questão neste artigo; nesse sentido, essas e outras questões poderão ser retomadas em outra oportunidade e receberão o devido tratamento analítico.

Referências

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Rozinaldo Antonio MIANI

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“Passaporte para a cidadania”: a comunicação comunitária na construção de uma política sindical na (...)

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