Passar dos limites: registros memoráveis das harmonias de Mediante em repertório popular no Brasil. IASPM AL 2015

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XI CONGRESO IASPMAL • música y territorialidades: los sonidos de los lugares y sus contextos socioculturales

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PASSAR DOS LIMITES: REGISTROS MEMORÁVEIS DAS HARMONIAS DE MEDIANTE EM REPERTÓRIO POPULAR NO BRASIL Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas Professor na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc, Florianópolis, Brasil) e membro dos grupos de pesquisa “Processos músico instrumentais” (Udesc) e “Música Popular: história, produção e linguagem” (Unicamp). Atualmente coordena a pesquisa “Para tudo na vida tem um acorde? Da persistência das ideias românticas na apreciação valorativa da música popular”. E-mail: [email protected].

O estudo parte da observação empírica de que o versado acorde ou área tonal da Mediante (p.ex., Mi maior na tonalidade de Dó maior) agrega valor em obras que, por diversos fatores, se distinguem no repertório da música popular produzida no Brasil ao longo do século XX. Para desenvolver a argumentação são apresentados breves comentários analíticos que procuram sinalizar a eficácia desta ambiência harmônica em obras de personagens influentes, tais como Pixinguinha, Anacleto de Medeiros, Jacob do Bandolim, Vadico, Noel Rosa, Custódio Mesquita e Tom Jobim e seus parceiros. Como mote, destaca-se a canção “Vitoriosa” de Ivan Lins e Vitor Martins, pois nesta canção emprega-se a região de Mediante justamente para ambientar o verso “Quero toda essa vontade de passar dos seus limites, e ir além, e ir além”. PALAVRAS-CHAVE:

Mediante. Tonalidade associativa. Teoria e crítica da música popular.

El estudio tiene como punto de partida la observación empírica de que el versado acorde o región tonal de Mediante (por ejemplo, Mi mayor en tonalidad de Do mayor) añade valor en obras que, por diversos factores, se distinguen en el repertorio de la música popular producida en Brasil a lo largo del siglo XX. Para desarrollar el argumento se presentan breves comentarios analíticos que buscan señalar la eficacia de esta armonía en obras de personajes influyentes como Pixinguinha, Anacleto de Medeiros, Jacob do Bandolim, Vadico, Noel Rosa, Custódio Mesquita y Tom Jobim y sus colaboradores. Como lema tendríamos la canción «Vitoriosa» de Ivan Lins y Vitor Martins, puesto que se logra la armonía de Mediante exactamente cuando oímos las palabras «Quiero toda esta voluntad de pasar sus límites, y más allá, y más allá”. PALABRAS CLAVE:

Mediante. Tonalidad asociativa. Teoría y crítica de la música popular.

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1. COMBINAÇÕES DE ACORDES E PASSAR DOS LIMITES? De maneira geral e introdutória, a questão que se levanta aqui pode ser recolocada assim: no âmbito da música popular harmônica e tonal, seria pertinente pressupor que combinações de acordes podem sugerir conotações? Tal questão convida outras: Se tais combinações e conotações estão na cultura e possuem cultura, seria prudente observar que, também no âmbito das alturas – intervalos, acordes, áreas tonais e tonalidades –, os sentidos implicados não são propriamente inerentes e estáticos? Tais conotações, ainda que inexatas e mutáveis, se encontram mais ou menos convencionadas? Focando o chamado nível “poiético” dessa produção popular seria possível admitir que, ao escolher acordes, os músicos não trabalham exclusivamente com relações abstratas e puramente sonoras? E ainda um pouco mais: seria contributivo perceber que tais acordos aculturados agregam distinção e prestígio em embates valorativos que se dão nos campos da música popular? Ou seja, tais acordos entre sons e sentidos interferem nas disputas por êxito e consagração, nas

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desse passar dos limites pode ser amplificada quando recorre aos efeitos do acorde ou área tonal de Mediante.1 Vale ressalvar que, nesta oportunidade não se recupera propriamente um percurso filosófico ou cultural desse passar dos limites, o como, quando e por que este sentimento ou vontade penetrou nosso ser tornando-se uma necessidade, ou mesmo obrigação moral, que tanto estimula como atormenta as subjetividades contemporâneas. E também não se questiona aqui a sua valia. Por ora, dá-se por pressuposto o fato de que tal passar dos limites é anseio consabido e pelo qual cultivamos alta estima. Anseio que, atualmente e no senso comum, aprendemos a alimentar e que podemos rememorar através de um vasto florilégio de máximas nostálgicas e motivacionais que, com seus corolários, se prestam para diversos fins. Máximas morais belas e persuasivas, concisas e potentes, ingênuas e até mesmo cruéis como: “No limits”. “The only limits in your life are the ones you create with your mind”. “A curious mind knows no limits”. “Love knows no limits”. “Com trabalho duro, não há limites”. “Breaking down barriers”. “Disobey”. “Dream”. “Ir além”.

lutas pelo ingresso e permanência em instâncias legitimadoras, nas convergências e conflitos protagonizados por músicos, audiência, críticos, analistas, professores, escolas, associações, academias, franquias, estúdios, indústria, editores, produtores e demais agentes do meio musical? Somando esforços aos estudos que procuram respostas afirmativas para questões deste tipo, esta comunicação aborda uma associação específica. A saber: Aquela entre o versado anseio de passar dos limites e combinações de dispositivos tonais que, de diferentes maneiras, consolidaram-se como meios para a expressão musical desse anseio. Particularizando ainda mais: argumenta-se aqui que, em certa medida e não de forma taxativa, a enunciação

1

Como se sabe, o termo “Mediante” permite diferentes entendimentos na Teoria Musical. Em sentido restrito, neste texto, “acorde de Mediante” é um III grau maior em franco uso em tonalidade maior. Os termos “região” ou “área tonal” de Mediante também são correntes, indicam que não se trata tão somente de um acorde, senão de um conjunto de notas e acordes funcionalmente relacionados ao acorde de Mediante. Para comentários e referências sobre a Mediante, cf. Freitas (2010).

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2. ACERCA DO “IR ALÉM” DE IVAN LINS E VITOR MARTINS: AINDA O EFEITO BEETHOVEN?2 Para localizar o assunto em época relativamente recente, e já situá-lo na cena da música

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dó#, nota aparentemente diatônica (a sensível do tom principal), que neste instante está falseada como a 5ª justa de um acorde de F#7M. Uma remota tônica? Sim, o vitorioso I grau da região de Mediante.4

popular produzida no Brasil, vale reouvir a canção “Vitoriosa” de Ivan Lins e Vitor Martins.3 Na segunda parte da canção, gravada por Ivan Lins em Ré maior, encontramos um segmento que alcança a remota região de Fá# maior. Neste trecho (Fig. 1), os materiais musicais se combinam em uma ambiência contrastante que tanto é potencializada quanto potencializa os anseios da enunciadora: “Quero toda essa vontade / De passar dos seus limites / E ir além / E ir além...”. Ocorre aqui uma espécie de imbricação entre notas, acordes e versos. Matizando a sugestão de superação, as palavras “vontade de passar de seus limites” ressoam em um desenho melódico cromático, algo singular nesta canção, que é harmonizado por uma estereotipada preparação harmônica (a progressão “dois cinco”) que nos leva adiante. Daí os limites de Ré maior são mesmo ultrapassados, os seis sustenidos do segmento vão além daqueles

FIGURA 1. A passagem de Ré maior para Fá# maior em “Vitoriosa”, Ivan Lins e Vitor Martins, 1985.

dois regularmente preconizados pela armadura de clave. Num jogo de redobradas negações ao diatonismo principal, a palavra “limites” repousa sobre a nota lá#, nota acidentária harmonizada como 5ª justa de um acorde que, no tom de Ré maior, é algo extraordinário: D#m. A canção parece indagar: como chegamos aqui? Qual é o limite da tonalidade de Ré maior? Quando, em primeira vez, ouvimos a sílaba forte da palavra “além”, a melodia prolonga a nota

2

A expressão “efeito Beethoven” faz alusão ao trabalho de Fischerman (2004).

3

A canção “Vitoriosa” foi lançada em 1985, no álbum “Metamorfose” de Verônica Sabino. Foi gravada por Ivan Lins no LP “Ivan Lins” de 1986. Trata-se do décimo terceiro disco do artista (Som Livre, LP 530.018), foi gravado em parte no Brasil e em parte nos EUA e contou com produção de Max Pierre e Ivan Lins. A contracapa do álbum informa que os arranjos são criação coletiva de “A Famiglia”, composta pelos músicos Ivan Lins (voz e teclados), Cláudio Lins (vocal), Guilherme Dias Gomes (teclados), Heitor TP (guitarra), Paulinho Braga (bateria) e Will Lee (contrabaixo elétrico).

4

Para evitar exagerar as funções tonais da Mediante, vale relembrar algo do entorno que amplificava esta “vontade de passar dos limites / e ir além...”. Como se sabe, 1984 é o ano das “Diretas já” e 1985 é considerado o último dos 21 anos do regime militar no Brasil e, com isso, também o primeiro de uma “Nova República”. E, sabemos que, tais contingências afetavam e eram afetadas pela MPB. Pela estagnação econômica e uma inflação descontrolada, a época é lembrada como a “década perdida”, circunstância que impactava a indústria do disco no Brasil. É também nesta década que Ivan Lins procura ultrapassar os limites do mercado nacional e consolidar carreira internacional. Destaca-se ainda a presença desta canção em “Roque Santeiro”, telenovela de Dias Gomes e Agnaldo Silva que, enfim superando a censura, foi exitosamente exibida pela Rede Globo entre 1985 e 1986. Nesta telenovela, “Vitoriosa” foi tema de Lulu, personagem interpretada por Cássia Kiss que, na trama, enfrentava questões de gênero que intensificavam e eram intensificadas por esta canção.

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Na cultura tonal, tanto no repertório quanto na esfera dos discursos sobre a arte musical,

vras, podemos considerar que, talvez a passagem mais célebre seja mesmo aquela do “Lamen-

esse tipo de associação entre sons e sentidos possui precedentes ilustres em diversos gêne-

tos” de Pixinguinha (Fig. 2). Este choro tem datação movimentada: ao que consta, foi composto

ros e estilos. No campo da música de concerto, uma ocorrência similar bastante comentada

em 1920 por ocasião da conhecida e lamentosa violência racial publicamente imposta a Pixin-

é a passagem de Dó maior para Mi maior no primeiro movimento da Sonata “Waldstein”. A

guinha, em 1928 foi gravado pela primeira vez e, em 1962 ganhou versos de Vinícius de Moraes.

Sonata para Piano nº21, Op. 53, escrita por Beethoven entre 1803 e 1804: “a famosa passa-

Observando o revolucionário “Lamentos” na tonalidade de Ré maior, encontramos a área tonal de

gem [...] tem sido corretamente considerada como um importante passo de Beethoven em

Fá# maior a partir da quarta quadratura (compassos 13 a 15), bem ao momento em que o poeta

direção ao que Tovey chamou de “travessia do Rubicão” (Drabkin, 1996:218). O analista bri-

encaixou o sofrido “Mas, ai, o meu tormento é tanto que eu vivo em prantos...”.5

tânico Donald Tovey (1875-1940) empregou a expressão para destacar que, tal combinação tonal é uma espécie de limítrofe entre a era da harmonia moderna (séculos XVII e XVIII) e a era da harmonia contemporânea (século XIX e além). Nos dicionários lemos que a expressão “atravessar o Rubicão” tem sentido de decisão revolucionária, ação arriscada e sem volta, ato de insubordinação e enfrentamento. A culta alusão convida ao menos uma breve observação: mesmo no âmbito da música sem palavras – poética que oferece desafios específicos para a crítica e validação das associações entre sons e sentidos –, a vinculação entre “passar dos limites” e harmonias de Mediante pode se deixar notar.

FIGURA 2. A passagem de Ré maior para Fá# maior em “Lamentos”, Pixinguinha, 1920.

Uma ocorrência anterior se acha em “Santinha”, choro de autoria do maestro Anacleto 3. HARMONIAS DE MEDIANTE EM REPERTÓRIO POPULAR NO BRASIL: CHORO E CANÇÃO

de Medeiros (1866-1907) grafado em Sol maior e que, nos compassos 10 a 12 da terceira parte, francamente em Dó maior, traz um segmento claramente articulado sobre os 4 sus-

Se “o choro e a alma musical do Brasil”, como se diz que Villa-Lobos dizia, e se a intenção é ar-

tenidos da região de Mi maior. Outra passagem de Dó maior para a região de Mi maior pode

gumentar que as Mediantes possuem lugar sutil na música popular produzida no Brasil, faz-se

ser encontrada nos compassos 7 e 8 da segunda parte do choro “Tua Imagem” da lavra do

oportuno comentar algo acerca do valor dessas harmonias neste campo. Notando que no choro,

violonista Canhoto da Paraíba (1926-2008). E uma passagem de Sib maior para a área tonal

como ocorre com a sonata beethoveniana, lidamos preponderantemente com música sem pala5

Com Rezende (2014:47) observa-se que o adjetivo “revolucionário” decorre do capítulo “Carinhoso e Lamentos, revolução no choro” do conhecido livro “Choro: do quintal ao Municipal” de Henrique Cazes.

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de Ré maior pode ser localizada nos compassos 6 e 7 da primeira parte do choro “Será que

Vadico para a música popular brasileira”, Santos (2006) retrocede a 1933 e chama atenção

é isso?” da lavra do influente flautista Copinha (1910-1984).6

para aparição da área tonal de Sol maior na tonalidade de Mib maior na célebre canção “Fei-

Contudo, nenhum comentário acerca das mediantes nesta tradição seria convincente

tio de Oração” de Vadico e Noel Rosa. A rara ambiência de Mediante sugere mesmo uma

sem uma menção aos canônicos choros de Jacob do Bandolim.7 Destaca-se assim a pas-

singularizar individualidade (“É o meu samba”) que assina o verso final (“Em feitio de oração”)

sagem de Dó maior para a região de Mi maior nos compassos 13 e 15 da segunda parte de

da canção.

“Noites Cariocas”. E também a passagem de Sol maior para a região de Si maior nos compassos 13 e 15 da segunda parte de “Doce de Coco”. Com o auxílio da análise de Rezende (2014:132-134 e 372-375), vale citar um engenhoso emprego da área tonal de Mediante no choro “Cadência” de Juventino Maciel (1926-1992), conforme a gravação de Jacob do Bandolim em seu influente álbum “Vibrações” de 1967: de saída, nos compassos 3 e 4, ouvimos a primeira cadência que, estereotipadamente, prenuncia resolução em Si maior, no entanto, logo se percebe que se trata de uma contundente cadência de engano, uma vez que, no compasso 5, somos surpreendidos por um acorde de Sol maior, o indubitável I grau da tonalidade principal. Embora sucintos, estes apontamentos já indicam uma direção: também neste campo, a qualidade invulgar destas harmonias contribui para a distinção destes personagens. Mediantes denotam maestria, uma habilidade musical acima da média que pode agregar um valor de esmero e originalidade ao já consagrado lugar de destaque que estes nomes ocupam no panteão dos grandes do choro e, com isso, também no panteão dos grandes artífices daquela “alma musical do Brasil”. As idealizações de um éthos musical brasileiro passam também, é claro, pelo universo

No estudo que Nascimento dedica ao cancionista Custódio Mesquita (1910-1945), destaca-se um comentário acerca do fox-canção “Dormindo na Rua” de 1932: Na harmonia de Dormindo na rua encontramos o primeiro emprego, pelo autor, daquele recurso da região de mediante superior, o terceiro grau maior em tom maior. Como tal recurso expressivo se apresenta, em termos históricos, como uma das últimas aquisições na expansão do vocabulário tonal europeu, [...] podemos aqui salientar o “frescor” de seu uso em canções populares dos anos trinta (Nascimento 2001:102). Sobre a valsa “Mês de Maio” de Custódio Mesquita e Edgar Proença gravada por Orlando Silva em 1942, o autor observa: Esta valsa cumpre bem o propósito da representação romântica com altas doses de nostalgia [...]. Custódio imprime, de maneira muito natural, um acorde bem menos frequente no vocabulário harmônico da canção popular, [no verso “maio das virgens brancas e serenas”] um mi maior [...], região de mediante em dó maior, a tonalidade da valsa. Apenas um “capricho de príncipe” (Nascimento 2001:89-90).

da canção. Neste vasto, rico e diverso campo, as inflexões da Mediante vêm sendo notadas

Indo além, nas canções da Bossa Nova a presença modernizadora da Mediante já é con-

em estudos que abordam personagens da “Era do Rádio”. Comentando a “contribuição de

sideravelmente menos rara. Sumariamente, vale apontar que as Mediantes estão presentes em algumas das mais exitosas canções de Tom Jobim e seus parceiros. Canções que se

6

As pautas podem ser consultadas em Sève, Souza e Dininho (2009, 2011a, 2011b).

7

Sobre “O problema da tradição na trajetória de Jacob do Bandolim” ver Rezende (2014).

tornaram ícones internacionais de determinada concepção de brasilidade. Pensando a canção “Garota de Ipanema”, de Jobim e Vinícius de Moraes de 1962, na tonalidade de Fá maior,

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vamos ouvir a passagem para a região de Lá maior na seção B, junto ao verso “Ah, porque tudo é tão triste”. Aqui a engenhosidade da trama convida uma breve digressão. Em seu estudo sobre “o significado em música”, Oliveira (2010:127-140) retoma pesquisas da área da psicologia que visam medir experimentalmente os qualias associados aos acordes. A partir de testes aplicados em ouvintes familiarizados com a música ocidental, foram obtidas impressões que caracterizam a harmonia de Mediante como: diferente, calorosa, surpreendente positiva, algo que causa satisfação. O estudo traz conclusões como: “as Mediantes [...] parecem evocar uma sensação de brilho e força maior do que uma tríade maior isolada ou pertencente ao campo harmônico [diatônico]” (Oliveira 2010:138). Com isso, voltando a 8

“Garota de Ipanema”, vale perguntar: seria apropriado associar qualias de Mediante ao comovente verso “Ah, porque tudo é tão triste”? Ocorre aqui um erro de harmonia ou de composição? Não. Trata-se mais é de um chiste, de uma fina ironia retórica: a figura musical parece afirmar o oposto daquilo que o sofredor eu lírico verseja. A ironia delata o jogo de sedução: Não há propriamente “solidão” – lembrando que o verso anterior, “Ah, porque estou tão sozinho”, está matizado pelo patético acorde Napolitano (Gb7M) seguido de seu melancólico IV7 blues (Cb7). E, é claro que, na trama da canção nem tudo é assim “tão triste”. As contras9

tantes e ecléticas figuras de harmonia – Napolitano, IV7 blues, Mediante (região de Lá maior, usualmente evocada por seu relativo menor, e mais acabrunhado, F#m) – permeando o diatonismo de Fá maior, são inflexões de comoção a serviço de um conhecido ardil masculino:

Este tipo de “intenção poética”, em sentido algo wagneriano,10 já se percebe no “Desafinado”, canção de 1958 assinada por Jobim e Newton Mendonça. Racionalizando novamente na tonalidade de Fá maior, vamos ouvir o acorde Napolitano (Gb7M) matizando a palavra “Deus” (em “O que Deus me deu”). Mais adiante, surge a inflexão de Mediante (Lá maior) que parece distinguir a principal novidade que a canção apregoa: “Que isso é bossa nova / Que isso é muito natural”. O caso de “Triste”, canção de Jobim de 1967, também pede atenção. Na tonalidade de Sib maior, e logo após a prudente advertência (“ninguém pode viver de ilusão”), ouvimos com a sílaba forte do enfático advérbio “nunca” (no verso “que nunca vai ser”), a estranha nota dó#, ambientada na área tonal da Mediante (Ré maior). Contudo, rapidamente o tom principal (Sib maior) se recompõe: o “sonhador tem que acordar”, a inflexão da Mediante (D7M) só pode significar anseio e mera “ilusão”.11 Para interromper esta célere antologia de ocorrências de Mediantes em determinado repertório reconhecido como popular e brasileiro ao longo do século XX, voltemos para a década que viu surgir a canção “Vitoriosa”. Mais precisamente 1981, para reouvir o influente samba choro “Samambaia” de César Camargo Mariano. Sem palavras, como nas tradições da sonata para piano e do choro, a pós bossanovista “Samambaia” foi gravada em Dó maior. Em contraste, a primeira quadratura da seção B está ambientada na área tonal de Réb maior 10

Conforme se observa em Freitas (2013:17-30), em linhas gerais, no vocabulário conceitual do compositor e ensaísta alemão Richard Wagner (1813-1883), a “intenção poética” (dichterische Absicht) é percebida como uma espécie de “semente fertilizadora” com a qual “a poesia insemina a música”. Nesta sugestiva analogia, a poesia é o “princípio masculino”, o componente “racional, reflexivo, mas incapaz de conseguir um envolvimento genuíno e emocional da audiência”. Por seu turno, a música é o “princípio feminino”, a “expressão que só toma forma definida sob a influência verbal ou conceitual”. “Dessa união procriativa nasce o drama musical” (Grey, 1995:258-259).

11

A primeira parte do plano tonal de “Triste” (compassos 1 a 16) é demarcada pelos acordes Bb7M, Gb7M, D7M e Bb7M, conformando o simétrico “ciclo de terças maiores”, ou “ciclo de mediantes”. A este respeito confira Freitas 2014a.

a chantagem emocional que visa persuasão amorosa.

8

9

Oliveira (2010) comenta a pesquisa de David Huron (Sweet Anticipation: the psychology of musical expectation). Os recortes amostrados aqui estão evidentemente abreviados e intencionalmente selecionados. Para uma apreciação apropriada, recomenda-se a leitura da referência citada. Sobre o “Acorde Napolitano” ver Freitas (2014b). Sobre a inflexão blues na seção B de “Garota de Ipanema” ver Freitas (2010:785-791).

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(a região do acorde Napolitano) e as próximas duas quadraturas (compassos 5 a 11 da se-

São eventualmente capazes de sonorizar idealizações de juventude, individualidade, sonho

ção B), atravessando o Rubicão, se articulam basicamente sobre o ambiente diatônico da

e desobediência que podem trazer algum alívio frente os limites cerceadores da vida. Me-

Mediante: Mi maior. Reconhecer tais combinações de acordes, e também os giros melódi-

diantes são percebidas como evidência de dom, de inspiração e sentimento, de sensibilidade,

cos e outros recursos musicais não comentados nesta oportunidade, convida notar como

criatividade e fantasia. São sinais de engenho, agudeza e entusiasmo, de gosto invulgar e

em “Samambaia” ressoa uma tácita e eloquente conversa entre César Camargo Mariano e

inconfundível. Mediante é coisa de gênio, está associada ao complexo e implica virtuosismo.

vultosos personagens que o antecedem, tais como Beethoven, Pixinguinha e Jobim.12

Está associada ao que é espontâneo, instintivo, vibrante e intenso. Colateralmente, apreende-se que a Mediante é também uma figura conservadora, pois sua excedência depende da norma para ser reconhecida e valorizada. Tal figura expressa ação de embelezamento, algo

CONCLUSÕES

pré-sancionado no âmbito da cultura tonal, assim, a oposição posta pela Mediante é uma expansão atualizadora de valores intrínsecos da velha harmonia: trata-se de um fora da ordem

A apreciação das combinações de acordes em música popular é um expediente que pode

contido na ordem. Trata-se de um “ir além” que não oferece riscos aos limites.

contribuir para a compreensão de aspectos da identificação subjetiva que aproxima ouvintes e tal música. Tal expediente técnico, crítico e analítico pode também nos ajudar a perceber que, em tais combinações ressoa uma rede de reminiscências – a difusa rede que as

REFERÊNCIAS

músicas tonais tecem entre si – que não se revela prontamente. Essas formas conversativas de invenção reiteram e renovam conotações que, agregando sutil valor, interferem nas disputas que se travam no campo da música popular. As harmonias de Mediante tomam parte desta rede, não possuem superpoderes, mas, combinadas com outros componentes, podem entonar idealizações diversas. Digamos: Mediantes podem evocar nostalgias de liberdade e aspirações correlatas de vontade própria, superação, rebeldia e inconformismo.

12

Como se observa em outra parte (Freitas 2010:300-302), em “Samambaia” ressoa também o grato convívio de César Camargo Mariano com o compositor, cantor e pianista carioca Johnny Alf (1929‐2010). Vale acrescentar que, em “Samambaia” a travessia por áreas tonais remotas não termina aqui, nesta Mediante (Mi maior). Antes de retomar a tonalidade principal (Dó maior), a última quadratura da seção B alcança a antípoda região de Fá# maior. Para referências acerca desta última relação (a região de #IV ou bV na tonalidade maior), ver Freitas (2010:752-754).

Drabkin, Willian. 1996. “Um panorama da música de Beethoven”. In: Cooper, Barry (Org.). Beethoven: um compêndio. Rio de Janeiro: Zahar Ed., pp. 214-226. Grey, Thomas S. 1995. “Um glossário wagneriano”. In: Millington, Barry (Org.). Wagner um compêndio. Rio de Janeiro: Zahar Ed., pp. 254-270. Fischerman, Diego. 2004. Efecto Beethoven: complejidad y valor en la música de tradición popular. Buenos Aires: Paidós, Freitas, Sérgio Paulo Ribeiro de. 2010. Que acorde ponho aqui? Harmonia, práticas teóricas e o estudo de planos tonais em música popular. Tese: Doutorado em Música. Campinas: Unicamp. ______. 2013. “Acordes e desacordos: ideário schoenberguiano, harmonias wagnerianas e valoração em música popular”. In: Música Popular em Revista, v. 2, pp. 01-35.

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