PASSOS, Luiz Mauro do Carmo. A metrópole cinqüentenária: fundamentos do saber arquitetônico e imaginário social da cidade de Belo Horizonte. 1996. 309f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Belo Horizonte.

August 17, 2017 | Autor: Luiz Mauro Passos | Categoria: Historia Urbana, Teoria História e Crítica da Arquitetura e do Urbanismo, Historia Cultural
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LUIZ MAURO DO CARMO PASSOS

A metrópole cinqüentenária Fundamentos do saber arquitetônico e imaginário social da cidade de Belo Horizonte (1897-1947)

Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de Minas Gerais 1996

LUIZ MAURO DO CARMO PASSOS

A metrópole cinqüentenária Fundamentos do saber arquitetônico e imaginário social da cidade de Belo Horizonte (1897-1947)

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História. Orientadora: Prof. ELIANA REGINA DE FREITAS DUTRA - UFMG

Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de Minas Gerais 1996

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A meus pais. A Márcia.

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Agradecimentos

A professora Eliana Dutra, por suas argutas observações, por suas proveitosas críticas e indicações, pelo seu incentivo à descoberta de meus próprios caminhos, pelo constante estímulo e apoio que marcaram a sua orientação desta dissertação. A Márcia Michelin Laboissière, companheira de tantas histórias, que além de ter dado uma inestimável contribuição à realização deste trabalho desde o seu início, no levantamento de fontes, na leitura dos ensaios iniciais e em discussões e sugestões, compartilhou as dúvidas, as aflições e as escolhas com amorosa atenção. Aos professores e colegas do curso de Mestrado em História, com os quais tive o prazer de um convívio onde a dedicação ao trabalho somou-se a uma estimulante camaradagem. A Carla Simone Chamon, pela sua solidariedade ao longo deste percurso. A Marco Antônio Marinho Júnior, pela colaboração na coleta de fontes. Aos funcionários do Arquivo Público Mineiro e das Bibliotecas da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e da Escola de Arquitetura da UFMG, pelo prestimoso atendimento. A CAPES, que me concedeu uma bolsa de estudos. Aos amigos e a todas as pessoas que contribuíram e me apoiaram neste trabalho, sou imensamente grato.

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Sumário Introdução......................................................................................................... 6 1. Cinqüentenário de Belo Horizonte ............................................................... 14 1.1. As comemorações do cinqüentenário .......................................................17 A solenidade e os discursos oficiais .....................................................21 Outras comemorações .........................................................................25 1.2. Os topos do discurso laudatório sobre a cidade .......................................27 "Vertiginoso progresso" ........................................................................30 Origens e evolução da cidade ..............................................................50

2. A Nova Capital: o território e o local. ............................................................ 70 2.1. Centralidade e salubridade nos estudos dos locais .................................85 2.2. A organização econômica do território e a noção de progresso...............112

3. A construção da Nova Capital. ..................................................................... 135 3.1. O modo de composição urbana da Planta Geral ......................................141 Aspectos barrocos e o modo de composição da área urbana ..............143 Os arquétipos da cidade ideal e os paradigmas utópicos de ordenação ............................................................................................167 3.2. A regulamentação da ocupação e edificação da Nova Capital..................177 Os limites da cidade: população, densidade e extensão. .....................177 Diretrizes da ocupação inicial ...............................................................189 Distribuição do espaço ........................................................................193 Regulamento de Construções ..............................................................201 3.3. A ocupação inicial do espaço....................................................................207

4. Da capital à metrópole .................................................................................. 219 4.1. A "jovem metrópole" dos anos 30: Para uma grande cidade ....................223 A industrialização e o papel civilizador da capital .................................224 A cidade sob o ponto de vista do urbanismo ........................................234 Embelezamento e Remodelação..........................................................246 Regulamentos das construções ...........................................................257 Um novo ciclo na arquitetura da capital................................................263 4.2. A "grande metrópole" no anos 1940 .........................................................274

Considerações finais ........................................................................................ 292 Bibliografia e fontes .......................................................................................... 301

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Introdução Esta pesquisa iniciou-se tendo por objeto a arquitetura da cidade de Belo Horizonte nos anos 30 e 40. Este período é considerado por vários estudos historiográficos da cidade como caracterizado por grandes transformações, sob diversos aspectos, que iniciam, nos anos 30, uma marcante modificação da cidade construída segundo o plano urbanístico delineado no final do século XIX, cuja consolidação ocorreu durante os anos vinte. Interessava-nos abordar conjuntamente os fatos e as estratégias dos processos de construção urbana que determinaram estas transformações e as imagens da cidade que sustentavam ou que refletiam estes processos. Sendo a Nova Capital construída a partir de um plano urbano, buscávamos compreender estas transformações, relativas às funções e a forma da cidade, em relação às disposições estabelecidas por seu plano inicial e à arquitetura da cidade consolidada até os anos vinte. Por arquitetura da cidade não nos referimos à arquitetura das edificações tomadas isoladamente, mas à arquitetura da própria cidade, enquanto uma construção social ao longo do tempo, como propõe Aldo Rossi1. Neste conceito de arquitetura da cidade incluem-se o traçado urbano, seus lugares e edifícios polarizadores, sua ocupação no plano horizontal e no vertical e as características tipológicas das edificações, enquanto um processo histórico de formação. A arquitetura da cidade não se refere apenas à estrutura material da cidade, mas também, e de maneira indissolúvel, às imagens coletivas produzidas ao longo de sua construção. Como observa Argan, o espaço urbano "não é feito apenas daquilo que se vê, mas de infinitas coisas que se sabem e se lembram, de notícias"2.

1 2

Rossi, Aldo. La arquitectura de la ciudad, Barcelona. Gustavo Gilli, 1981. Argan, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 234.

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Verificando diversos artigos publicados na imprensa durante os anos 30 e 40, constatamos freqüentes alusões à transformações das funções e da forma da cidade, as quais agrupamos em torno de quatro temas: o papel da capital, a expansão ou o crescimento urbano, a remodelação do traçado da área urbana, e os novos modos de edificação na área central, ou seja, o surgimento dos chamados arranha-céus. Estas transformações eram caracterizadas como uma remodelação da cidade ou ainda como um novo ciclo evolutivo da Capital. Por ocasião do cinquentenário da Nova Capital mineira, em 1947, foram publicados um grande número de artigos na imprensa e ainda algumas edições comemorativas, constituindo um conjunto de discursos sobre a cidade, em geral de caráter laudatório, que apresentou-se para nós como um registro sintético das apreciações da cidade naquele momento, bem como de sua relação com o passado. Nestes discursos, identificamos temas recorrentes que definiam certas perspectivas dominantes na percepção e avaliação da cidade. De modo geral, considerava-se ter ocorrido nos últimos dez anos um "vertiginoso progresso", alterando radicalmente a "fisionomia arquitetônica" e os hábitos da cidade. O surgimento e proliferação dos "arranha-céus", bem como a expansão da área urbanizada eram tomados como índices visíveis deste progresso, que alterou, num curto prazo, a constituição arquitetônica da cidade bem como os seus hábitos, elevando-a à condição de metrópole. Além deste fato, saudava-se o início da industrialização e previa-se que em breve a cidade se tornaria um centro industrial e não apenas a capital administrativa e cultural do estado papel que se considerava ter sido predominante até os anos 20. Afinal, a cidade há pouco saíra da gestão do "prefeito-furacão" Juscelino Kubistschek (1940-45), que executara um amplo programa de modernização, em diversos setores, que incluía medidas como: expansão e asfaltamento da rede viária, implementação de núcleos urbanos satélites - a Cidade Industrial e a Pampulha - e de novos bairros, início de um programa de habitação popular com o conjunto do IAPI -, patrocínio oficial à arte moderna, como no conhecido 7

conjunto arquitetônico da Pampulha. Ao mesmo tempo, os edifícios de vários andares - os chamados "arranha-céus" se disseminavam na área central da cidade e a periferia urbana se adensava e expandia: sinais e empreendimentos de uma novo modo de construção urbana. Contudo, não se pode atribuir à gestão de JK a transformação da cidade apontada pelas avaliações publicadas no Cinquentenário, nem restringi-las ao seu período (1940-5). O programa de modernização ocorrido neste período havia sido precedido, ao longo da década de 30, por discussões, planos e ações no sentido de uma remodelação ou modernização da cidade, notadamente na gestão do prefeito Negrão de Lima. Além disso, verifica-se também empreendimentos e processos no âmbito privado que sinalizavam e instituíam novas formas econômicas e construtivas na cidade - tais como a proliferação dos bairros periféricos (as chamadas "vilas") e o primeiros "arranha-céus". Se a afirmação de um vertiginoso progresso pelo qual passava a cidade nos últimos anos e a percepção das transformações da fisionomia da cidade era um lugar comum no ano do Cinquentenário (1947), identificamos então pelo menos duas perspectivas a respeito: para alguns, estas transformações, iniciadas a partir dos anos 30,

modificavam drástica e incessantemente a

fisionomia da cidade estabelecida até os anos vinte e traziam um novo tempo para a cidade - que, sob alguns aspectos era caracterizado como uma ruptura em relação ao passado; outros, reconhecendo a amplitude das recentes transformações, compreendiam-nas como parte de um ciclo evolutivo que caracterizaria a história da cidade, estabelecendo uma certa continuidade das transformações com o passado. Estas duas perspectivas, muitas vezes associadas, colocaram para nós o problema das relações que o processo de transformação reconhecido nos anos 30 e 40 mantinha com a cidade construída a partir do plano urbano da Nova Capital, definido no final do século XIX. Tomamos assim este problema como o objeto central de nossa dissertação.

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De modo geral, o conjunto das apreciações acima mencionadas sobre a cidade no seu cinquentenário, ao apontar para a uma transformação da cidade, por um lado indicavam a emergência de uma nova forma urbana e novos papéis da capital, e por outro, qualificavam estas transformações como uma metamorfose - ou seja, como a realização de um príncipio inerente à cidade - ou ainda como um ciclo evolutivo, iniciado com a própria construção da cidade planejada para ser a Nova Capital do estado. Estas apreciações apresentavam portanto uma imagem da cidade, como uma obra em contínuo progresso, definida a partir de um princípio ordenador, porém em contínua transfiguração de sua forma, como uma característica da capital desde sua fundação. Entendemos por imagem da cidade não apenas as interpretações ou as representações da cidade e de suas transformações, mas também à própria construção da cidade enquanto um fato social, em seus componentes técnicos ou

instrumentais

e

em

seu

componentes

simbólicos,

como

aspectos

indissociáveis - tomando como referência o que propõe Castoriadis a respeito do imaginário social3. Assim, as imagens sociais da cidade não se reduzem, para nós, a posteriores representações simbólicas de sua construção, mas são também intrínsecas aos processos efetivos de construção da cidade. Buscamos portanto compreender esta imagem da cidade desde os fundamentos e os processos de sua implementação inicial como cidade planejada.

Cabe aqui algumas considerações preliminares a respeito do plano e da construção de Belo Horizonte - a Nova Capital mineira fundada no final do século XIX. Belo Horizonte, construída para ser a Nova Capital do Estado de Minas Gerais, logo após a instituição da República, foi uma cidade caracterizada por ter sido fundada a partir de um planejamento assentado em procedimentos

3

Castoriadis, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

9

técnicos. A própria escolha do local, embora tenha sido uma decisão política, foi objeto de minuciosos estudos realizados por engenheiros e um médico. O plano da Nova Capital, foi elaborado segundo uma previsão de população e estabelecia zonas diferenciadas e hierarquizada, definidas em seus traçados e em seus modos de ocupação. A despeito do rigor geométrico do traçado da área principal e do grande controle exercido pelo Estado na implementação inicial, o plano não definia um configuração urbana acabada e inteiramente a cargo do poder público; previa-se uma implementação por etapas, bem como deixava uma abertura à expansão. O período da fundação da cidade (1897) até meados dos anos trinta pode ser considerado como de construção e consolidação da cidade enquanto, predominantemente, a nova capital do estado de Minas Gerais. Neste período, suas funções e sua vida urbana se relacionavam basicamente com a condição de capital, de centro político, cultural e de serviços, sendo a atividade industrial pouco significativa em relação à outras cidades mineiras, ainda que se verifique um certo crescimento econômico, seja decorrente da própria atividade construtiva, seja do desenvolvimento das atividades comerciais e de serviços e industriais que se estabeleceram na Nova Capital. Do ponto de vista da configuração urbana e arquitetônica, o que acontecia era um desdobramento, ou seja, a construção efetiva, do plano urbanístico de Aarão Reis e dos pressupostos urbano-arquitetônico nele implícitos. Ainda que ocorressem algumas modificações localizados do plano inicial, em linhas gerais, seu desenho foi mantido. Quanto a dinâmica da ocupação urbana então ocorrente, o que se verificava nos parece coerente com seus pressuposto implícitos - e com a política do Estado de gestão do loteamento - , ou seja, o fato da ocupação da então chamada área urbana (dentro dos limites da avenida do Contorno) se dar a níveis muito baixos, enquanto rapidamente se formava uma periferia em torno. Quanto ao perfil das edificações e suas estratégias de configuração, pode-se dizer que, em linhas gerais, até os anos trinta, se situavam dentro de um mesmo 10

modelo de assentamento, de um mesmo esquema de organização interna e dentro de um mesmo repertório estilístico, ligado à tradição academicista e eclética.

Tomando como ponto de partida a imagem de uma transformação da cidade nos anos 30 e 40, enunciada pelas publicações por ocasião do cinquentenário, definimos como questão a ser problematizada por nossa dissertação, a relação desta transformação com o plano inicial da Capital. Interessa-nos investigar e discutir até que ponto estas transformações, relativas à função e a forma urbana da Capital, consistiriam numa ruptura dos pressupostos e das diretrizes formuladas por este plano, ou se elas poderiam ser compreendidas como uma possibilidade aberta pelo próprio Plano. Buscamos então compreender e interpretar a imagem da cidade definida no processo de mudança e construção da Nova Capital mineira, com o objetivo de avaliarmos em que medida e sob quais aspectos as transformações verificadas nos anos 30 e 40 poderiam ser consideradas como uma ruptura deste plano ou como compatíveis com os dispositivos deste plano, impondo indiscutíveis modificações na forma urbana. Um comentário de Aarão Reis, o engenheiro planejador da Nova Capital, em artigo publicado em 1926 à guisa de avaliação de sua empreitada, trouxe importantes subsídios para a discussão da questão acima mencionada: "preparei e armei apenas o 'esqueleto' [...]. Aos mineiros tem cabido a árdua tarefa de 'encarnar' esse corpo jovem". O grande potencial desta metáfora é que, mesmo afirmando o caráter acabado e irretocável de seu plano, Reis reconhece a cidade em construção, o que implica reconhecer seu plano como sujeito à transformações. Resta saber até onde pode-se falar de uma permanência ou de uma transformação - radical ou gradual - do seu caráter fundamental. Constituiuse esta numa questão problematizada por esta dissertação, questão essa que foi 11

desdobrada nos diversos componentes que definiram a imagem da cidade, seja a da Nova Capital, seja a da metrópole dos anos 30 e 40. Definimos como ponto de partida de nossa dissertação, a análise dos discursos publicados no ensejo das comemorações, relativo às transformações dos papeis da capital e da fisionomia e dos modos de construção da cidade que constituem o tema do primeiro capítulo. Situando nossa análise no ponto de vista daquele momento, este capítulo constitui-se num prelúdio às questões discutidas nos demais capítulos. A partir dos aspectos da imagem da cidade delineada pelos discursos do Cinquentenário, mais especificamente quanto às relações entre as transformações então observadas dos papéis e da forma urbana definida a partir da fundação da Nova Capital. Consideramos necessária à investigação e discussão da questão acima formulada, uma ampla compreensão dos processos da mudança da capital mineira e do seu plano urbano. Com o objetivo de compreender os papéis atribuídos à nova capital, o segundo capítulo trata da questão da localização da capital, e mais especificamente, os critérios e os procedimentos pelos quais se pautaram os estudos e discussões a respeito da escolha do local da Nova Capital, como fatores constituintes da imagem da cidade. Procuramos inicialmente analisar as condições e os propósitos da mudança da capital mineira no final do século XIX, logo após a instituição da República. A partir dos procedimentos e critérios da escolha da localidade, buscamos identificar quais os objetivos e papéis que a capital deveria cumprir na ordenação do território do Estado. No terceiro capítulo, dedicado à configuração urbana e arquitetônica estabelecidas pelo plano urbano da Nova Capital e outras disposições complementares, são examinadas o modo de composição urbano - ou seja, o traçado viário, o zoneamento, os critérios de localização dos edifícios públicos e o regulamento das construções - e as diretrizes de ocupação da cidade. Neste capítulo dedicamo-nos a compreender os fundamentos e os procedimentos da 12

elaboração da Planta Geral da Nova Capital, as etapas de sua implementação, as perspectivas do crescimento futuro da cidade e o controle de sua ocupação inicial. O quarto capítulo trata da transformação da arquitetura da cidade entre meados dos anos 30 e meados dos anos 40, objeto dos discursos sobre a cidade no Cinquentenário. Abordamos aqui a mudança dos papéis da capital, o crescimento e a expansão urbana, as obras de remodelação promovidas pela municipalidade, as modificações do regulamento das construções e o surgimento de novos modos de edificação - aspectos que constituíram os marcos da transformação da capital na metrópole moderna neste período. Ao tratar da relação entre o plano de construção da Nova Capital e as transformações urbanas nos seus primeiros cinquenta anos, esta dissertação apresenta uma abrangente abordagem das análises sobre a cidade, buscando retomar e discutir as questões por elas propostas. Pretende também ser uma contribuição à reflexão sobre a construção da cidade e de seu imaginário, no momento em se já comemora o centenário da inauguração da Nova Capital.

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1. Cinqüentenário de Belo Horizonte "A data é, realmente, digna de todo o apreço, devendo ser festejada com entusiasmo e assinalada com alguma cousa duradoura, que possa estimular as gerações futuras para as festas do centenário." José Mamede Silva, "Salve, capital de Minas!"1

As comemorações dos qüinquagésimos aniversários, denominadas jubileu, encerram uma tradição milenar da civilização ocidental. O significado de jubileu como o qüinquagésimo aniversário de uma instituição - que se estendeu para aniversário solene em geral - deriva do hebreu jobel, trombeta que de 50 em 50 anos anunciava o ano festivo, denominando também o termo o costume hebraico antigo de remissão de dívidas e culpas de 50 em 50 anos - de onde deriva seu significado católico de indulgência. O tom jubiloso que apresentam as publicações alusivas ao Cinquentenário de Belo Horizonte condiz bem com a tradição destas celebrações. A ocasião ensejou principalmente a proliferação de discursos laudatórios, muitos assumidamente ufanistas, que celebravam, às vezes hiperbolicamente, as qualidades do local - no caso, sua excelência climática e beleza paisagística - e a grandiosidade e ousadia de seus fatos construtivos, seja os da fundação da capital, seja principalmente os do período recente. Por outro lado, os discursos cinqüentenários inserem-se numa prática discursiva anterior, cujos ensaios e crônica-reportagens de tom laudatório constituem um sub-gênero épico - pelo tema da realização da civilização mineira e das circunstâncias extraordinárias da construção de uma

nova capital

planejada nos primórdios da República - que assumem um certo componente trágico - pelo tema do destino da cidade marcado por suas origens, que, para

1

Revista Social Trabalhista, Edição especial comemorativa do cinquentário de Belo Horizonte, Belo Horizonte, n. 59, dez 1947, p. 337.

14

alguns discursos, remonta em seus fundamentos, ao Arraial bandeirante sobre o qual foi construída. A ocasião solene teve portanto um efeito de instigar tal prática. Contudo, e de ser uma ocasião propícia ao cultivo do amor ao local, dos mitos de suas origens e das glórias dos tempos atuais, o momento cinquentenário impressionou notadamente seus comentadores pela grandeza e pela rapidez das modificações da cidade transcorridas num período recente, seja quanto à forma da cidade, seja quanto aos seus papéis e hábitos. Apesar de marcada pelo signo da modernidade desde sua construção como Nova Capital do Estado de Minas Gerais, no final do século XIX, a condição de metrópole moderna - enquanto lugar de rápidas transformações, simbolizadas pela imagem do vórtice e da vertiginosidade - emerge a partir de condições incipientemente lançadas nos anos vinte e ampliadas ao longo dos trinta e quarenta, que parecem, no Cinquentenário, consolidar um processo de contínua ruptura com o passado e a instauração de um novo modo de construir e habitar a cidade. A perspectiva do momento, segundo estes discursos, é a de constatação de um processo de transformações então definitivamente estabelecido porém inexaurível, que trouxe consigo um novo modo de construir, habitar, pensar e contemplar a cidade. Ressaltando-se sempre a intensidade do progresso e a evidência das transformações recentes e então em pleno curso, este processo é também freqüentemente visto como resultado de uma seqüência de fases e ciclos, que se compreendiam e se reforçavam sucessivamente, e que eram, a cada vez, mais rápidos e de maior amplitude - razão pela qual se qualificava muito freqüentemente o progresso de "vertiginoso". Estas fases e ciclos foram definidos por modificações marcantes em determinados setores da produção do espaço urbano e por um conjunto de políticas e empreendimentos promovidos pela gestão municipal ou estadual, que se acumularam e resultaram no quadro que se compunha no Cinquentenário. 15

Considerando serem os fatos construtivos de uma cidade processos de longa duração e caracterizados por uma inércia, tanto das matérias e tecnologias construtivas (incluídas nestas a arquitetura), como dos hábitos e modos de vida que eles abrigam, pode-se compreender como as transformações na forma e no modo de construção da cidade, acumuladas ao longo destes ciclos e com crescente visibilidade a partir do começo dos 40, na época do Cinqüentenário são vistas ainda com perplexidade, mas propaladas como irreversivelmente estabelecidas. Portanto, ainda que há muito urdida, a ruptura do modo de construir

a

cidade

parece

ganhar

contornos

nítidos

neste

momento,

principalmente quanto à percepção da "volubilidade fisionômica" da cidade. Contemporâneos às estas enfáticas percepções e afirmações de intensas transformações na forma urbana, nos modos de construções - seja quanto às dimensões ou estratégias compositivas ou estilísticas -, nos hábitos e nos papeis da capitalmetróple, alguns dos discursos cinqüentenários manifestam

o empenho em

reconstituir uma continuidade virtual com o passado, sem deixar todavia de louvar o progresso do presente. Procuram demonstrar um caráter potencial da cidade, alçando das origens do local sobre o qual foi construída a Capital - um arraial de fundação bandeirante do sec. XVIII - e da sua desde então reconhecida excelência climática e paisagística, uma predestinação do papel civilizador que assumiu a nova Capital de realização e monumento do povo mineiro. Contudo, compõem este caráter não só essa qualidade quase imanente do local, mas a ação realizadora do homem, do povo e do Estado, nesta equação, associados. Assumem estes discursos uma indisfarçável admiração pelo "vertiginoso progresso", mas com moderação, como se buscassem uma conciliação entre a percepção entusiasmada - dominante nos discursos consultados - e a evocação nostálgica, resignada ou inconformada, dos bons tempos antigos, característica de uma outra categoria de avaliação da cidade e de suas transformações.

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1.1. As comemorações do cinqüentenário

Foram cuidadosa e antecipadamente planejados vários e grandiosos eventos e marcos comemorativos para a ocasião do Cinqüentenário da Cidade, em 12 de dezembro de 19472, segundo informa o historiador Abílio Barreto3. Vale

acompanhar

detalhadamente

os

episódios

da

preparação

das

comemorações, pois através deles percebe-se a forte expectativa oficial quanto ao evento, bem como entrevê-se a situação política da época. Dois anos antes do evento, em julho de 1945, o Prefeito nomeou uma eminente Comissão, formada pelo Diretor de Obras, pelo Inspetor da Educação e pelo Organizador do recém-fundado Museu Histórico de Belo Horizonte, o próprio Barreto, encarregada de organizar o programa das comemorações. Entretanto, três meses depois, com o fim do Estado Novo e a instabilidade política subseqüente, os zelosos preparativos foram prejudicados, pois a gestão municipal passou por prolongada descontinuidade administrativa, conforme relata Barreto4. Ainda assim, os atribulados acontecimentos da vida política não foram de pronto suficientes para obstar de imediato o empenho da referida Comissão que, no ano seguinte, "desenvolvendo intensa e contínua atividade, [...] organizou, em linhas gerais, um grande programa de comemorações", para o qual a prefeitura destinou "um crédito de um milhão de cruzeiros para as realizações cinqüentenárias e foi esse o maior recurso financeiro de que dispôs a administração municipal para quanto teria de fazer a respeito"5.

2 3

4

5

A data refere-se à inauguração oficial, em 1897, da Cidade de Minas, como era chamada então a nova capital. Resumo histórico de Belo Horizonte (1701-1947). BH: Imp. Oficial, 1950. Este livro é uma ediçào ampliada da matéria publicada, com título homônimo, em um dos suplementos comemorativos do Cinquentenário do jornal oficial Minas Gerais [12 dez 1947, 4ª seção]. Idem, p. 170. No período de dois anos e um mês que seguiu-se à gestão de Juscelino Kubitschek (18 abr 1940 - 30 out 1945), até o empossamento do prefeito eleito Otacílio Negrão de Lima, na data do cinquentenário, a cidade teve cinco prefeitos efetivos, o que dá uma média de cinco meses para cada um. Idem, p. 331.

17

Previa o "grande programa" das comemorações cinquentenárias os seguintes empreendimentos: "uma Exposição Nacional, uma Exposição Retrospectiva, um Monumento Comemorativo, um Cruzeiro luminoso no pico da Serra e um Álbum", e ainda a realização de festas populares6. Provavelmente caberia à "Exposição Nacional" demonstrar as qualidades da Capital e do Estado no presente, enquanto a "Exposição Retrospectiva" cumpriria papel equivalente em relação ao passado, ao mesmo tempo demonstrando o progresso da Capital ao longo do tempo, bem como a permanência de um certo caráter essencial à Capital e ao povo mineiro. Embora estas Exposições não tenham se realizado, a análise dos textos sobre a cidade publicados na ocasião do Cinquentenário sugeriu-nos a interpretação acima. Estes textos, conforme veremos mais adiante, apresentam como tema central a intensidade das transformações da cidade, bem como a afirmação da permanência de traços essenciais do caráter da cidade - ou seja, enquanto reconhecem as transformações, empenham-se em demonstrar uma identidade, subsistente e em consonância com a nova face da cidade. Pretendia-se também realizar marcos de maior permanência a serem inscritos com destaque na paisagem urbana, de modo a perpetuar um momento que se julgava significativo por assinalar a realização da obra monumental que era a própria cidade. Esta era vista na ocasião por Barreto - e por muitos outros - como uma demonstração da capacidade criadora, empreendedora e realizadora do povo montanhês, pois a verdade é que Minas através de toda a sua existência jamais realizou no passado e no presente e talvez jamais realize no futuro outra obra que tanto a engrinalde de glórias como esse monumento eterno que é a sua nova Capital.7

O desmedido entre o programa das comemorações e os seus recursos fica evidente no "grande monumento comemorativo ao Cinqüentenário da cidade" - bem como de resto no caráter de grandeza que Barreto, personagem 6 7

Idem, p. 333. Idem, p. 14.

18

ativa dos acontecimentos, imprime a todos os eventos programados. Este monumento, projetado por José Peret8, não foi erigido, pois a soma das contribuições arrecadadas junto aos municípios mineiros para tal obra "não foi além de trinta mil cruzeiros, ao passo que o monumento projetado estava orçado em três milhões, cento e onze mil cruzeiros"9, ou seja, mais de cem vezes o valor dos recursos disponíveis. Mesmo somado ao crédito anteriormente referido de um milhão de cruzeiros, destinados pelo Estado à toda programação do Cinqüentenário, os recursos não seriam suficientes para custear nem um terço desse monumento. Eram, pois, ambiciosos os planos para os eventos comemorativos, porém as

verbas

inicialmente

destinadas

se

mostraram

insuficientes.

Alguns

expedientes foram tentados para a obtenção dos recursos à altura das grandiosas comemorações programadas: a "grande Loteria do Cinqüentenário", que seria a principal fonte de custeio das comemorações, não pôde realizada, devido a impedimentos decorrentes da nova Constituição, que exigia sua aprovação pelo Congresso, o que não ocorreu; a Comissão propôs então uma campanha estadual para coleta de donativos por subscrições a serem registradas no "grande Livro do Cinqüentenário", que tendo sido "aprovada pelo Prefeito da ocasião", não foi cumprida pelo seguinte. Assim, devido à insuficiência de verbas frente à magnitude do programado e às descontinuidades administrativas, ao correr da data, as solenidades e festividades do cinqüentenário foram consideradas decepcionantes pelo historiador oficioso da cidade, pois quase nada se realizou das "obras marcantes projetadas" e do que julgava apropriado à data10. Restariam do faustuoso programa oficial as festividades populares, que também foram bastante reduzidas. A Prefeitura repassou o encargo e as verbas destas festas para a Secretaria da Agricultura

8

Escultor residente em Belo Horizonte, formado na Itália e autor de "bustos, baixos relevos e outros trabalhos de notaIdem. Idem, p. 290. 9 Idem, p. 333. 10 Idem, ibidem.

19

do Estado, que quase nada realizou, pois "quase toda a verba de Cr$ 400.000,00, que lhe havia sido entregue foi aplicada em melhoramentos da Feira Permanente de Amostras do Estado". Por estas razões, Barreto conclui sua obra em tom lamentoso: A instabilidade da administração municipal e, portanto, a falta de uma ação contínua no sentido da orientação dada pela Comissão prejudicaram demasiadamente o plano traçado por esta e Belo Horizonte não pode ter a sua data insigne comemorada grandiosamente como merecia e foi projetado pela Comissão.11

As comemorações oficiais, grandiosamente planejadas, parecem ter sido reduzidas a duas: a promovida pela Prefeitura em homenagem aos "veteranos" - isto é, aqueles "que habitavam Belo Horizonte quando nela se instalou a Capital"12; e a solenidade oficial, realizada a cargo do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, cujos discursos serão comentados a seguir. A Prefeitura também apoiou indiretamente outros eventos comemorativos, adquirindo pinturas e composições gráficas realizadas no ano cinquentenário, em torno do tema da cidade no presente e no passado, provavelmente tendo em vista a Exposição oficial acima mencionada. Estas obras compuseram uma das duas exposições artísticas que se efetivaram na ocasião do Cinqüentenário, por iniciativas particulares.

Publicações nos moldes do "Álbum" concebido pela

Comissão das comemorações vieram a se concretizar, como a "Edição especial comemorativa do cinquentenário de Belo Horizonte" da Revista SocialTrabalhista - uma volumosa coletânea (348 p.) com artigos e reportagens de vários autores, sobre os diversos setores da vida da cidade e recheada de anúncios de seus patrocinadores - e os suplementos do Minas Gerais, dentre os quais o Resumo histórico de Belo Horizonte (1701-1947) de Barreto, reeditado em 1950 como livro.

11 12

Idem, p. 336. Revista Social Trabalhista, Edição especial comemorativa do cinquentário de Belo Horizonte, Belo Horizonte, n. 59, dez 1947, p. 36.

20

Ainda que as programações oficiais tivessem sido em grande parte frustadas, as publicações acima mencionadas e diversos outros artigos, suplementos e edições comemorativas sobre a cidade acabaram constituindo, em seu conjunto, o monumento efetivo do Cinquentenário, assim como um registro das imagens da cidade naquele momento.

A SOLENIDADE E OS DISCURSOS OFICIAIS Na solenidade acima mencionada, a cargo do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, realizada "na noite do dia 12 de dezembro de 1947", foram proferidos uma conferência por Nelson C. O. de Sena, o "orador oficial, convidado pelo governo da Cidade para a comemoração da Capital Mineira", e um discurso do governador Milton Campos. Abordaremos inicialmente estes dois discursos, não apenas

pelo seu caráter oficial, mas

também por apresentarem os temas freqüentes nas publicações comemorativas do Cinquentenário. No primeiro discurso, predomina o tema da fundação e construção da Capital e de seus primeiros anos13. O orador inicia evocando a questão da idéia da mudança da capital, louvando o acerto da escolha do local, lembrando que já fora a "localidade previamente estudada e escolhida", antes mesmo dos estudos da Comissão de 1893, que então assinalaram ter encontrado aqui, a um só tempo, um clima altamente saudável, águas de fácil captação, boa topografia, muitas belezas naturais, áreas amplas e disponíveis, posição na parte central de Minas, abundância de materiais de construção.14

13

Nelson de Sena, "O cinquentenário de Belo Horizonte", Revista do Instituto Histórico Geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte, Imprensa Oficial, v. 3, 1946 [1948], p. 8-18; v. IV, 1957, p. 113-125. Sena foi professor do Ginásio Mineiro, mudando-se para Belo Horizonte em 1898. É autor de A terra mineira: Chorografia do Estado de MG [1ª edição, 1922; Nova edição correcta e ampliada, Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1926]. 14 Idem, p. 10.

21

Prossegue o conferencista, abordando tópicos relativos à construção e aos "primeiros tempos" da Capital, que ocupam quase a totalidade de seu discurso: "Origens históricas de Belo Horizonte", sobre o Curral del Rei e sua fundação pelos bandeirantes; "Quanto custou ao tesouro a construção da Nova Capital", comparando-a com a de La Plata e e Camberra, "tão arrojadas como a dos Mineiros", mas que "custaram quantias muitíssimo mais elevadas"; "O ramal férreo de Belo Horizonte"; "Instalação oficial de 12 de dezembro de 1897"; "Reminiscências dos primeiros tempos de vida na capital mineira"; "Antigos moradores de Belo Horizonte, nos primeiros tempos da capital"; e as "Considerações finais sobre a formosa capital mineira". Destacaremos destes tópicos alguns temas, reiterados ao longo do discurso. As qualidades do meio são mencionadas em várias passagens. Ressaltase as do clima, de temperaturas "tão suaves, que dão a Belo Horizonte foros de cidade salubre, verdadeiro sanatório natural", as do "sol luminoso que inunda de raios benéficos a metrópole", bem como as qualidades do terreno, "levemente acidentado com pequenos planos interpostos, na série de graciosos morros", conferindo, pela variedade de perspectivas que oferecia sempre à vista o "céu de cobalto", uma "beleza panorâmica" à capital geometricamente traçada, - o que inspirou o cronista João do Rio a "crismá-la Miradouro dos Céus", lembra o orador. Em suas "reminiscências dos primeiros tempos da Capital", Sena recorda que ao mudar-se para esta em 1898, encontrou-a "ainda na sua infância, quase toda por se calçar, empoeirada nas suas ruas e avenidas quase desertas", contrapondo a "monotonia e desconforto" de então com a "hoje tão notável metrópole". Em seu discurso, são freqüentes as lembranças de aspectos e episódios da "então descampada" e "jovem cidade". O passado remoto é contrastado ao estado atual, acentuando-se os contrastes e sugerindo uma

22

extraordinária evolução da cidade até à condição metropolitana15. Ainda que não trate extensamente da condição atual e nem do processo de transformação da Capital, não deixa o orador de ressaltar, em suas "Considerações finais sobre a formosa capital mineira", que nem só de clima, de paisagem, de ventilação, de espaço, de luz solar, de jardins de parques se constitue o orgulho de Belo Horizonte, pois a cidade, beirando hoje seus 300 mil habitantes, com mais de 40 mil edificações, possue todos os melhoramentos que uma grande Capital moderna já pôde apresentar para o conforto de seus moradores e visitantes.16

Contudo, pondera que seu estado atual já estava virtualmente determinado desde suas origens ancestrais no Arraial do Curral del Rei: Belo Horizonte foi e é uma cidade predestinada, pois o seu glorioso futuro já vinha assinalado até nas crônicas e reminiscências mais antigas, que a tradição oral conservou e nas quais já se previa que o Povo Mineiro havia de ter aqui a sua mais formidável realização construtiva.17

A permanência dos desígnios estabelecidos no passado, principalmente a respeito da relação entre a fundação bandeirante e a construção da Capital como sendo ambos fatos realizadores da civilização mineira, é um tema repetidamente mencionado nos textos cinqüentenários, como veremos adiante. Outro tema também freqüente na época, e correlato ao anterior, é o da construção da capital - e seu desenvolvimento posterior - como expressão do caráter mineiro. O orador recorre a este tema ao justificar seu "patriotismo, cheio de justa ufania": por haver o Povo Mineiro, sempre tão modesto e retraído em seus planos e projetos, se animado a planejar, construir e oferecer à admiração de compatriotas e estrangeiros uma cidade sem igual, em paragem tão distante do oceano e levantada às portas do sertão mineiro, com o arrojo, a energia, a

15

Nelson de Sena, "Belo Horizonte" [Continuação de "O cinquentenário de Belo Horizonte"], Revista do Instituto Histórico Geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte, Imprensa Oficial, v. 4, 1957, p. 115-120. 16 Idem, p. 123-4. 17 Idem, p. 120.

23

clarividência e a tenacidade de uma gente empenhada em deixar aqui realizado obra tão magnífica e portentosa.18

Destaca-se também neste trecho o papel civilizador do sertão exercido pela Capital, que assim prossegue e cumpre a obra iniciada pelos bandeirantes. Concluindo a conferência com uma "Peroração", na qual dedica-se a piedosas preces pelo "crescente progresso" da cidade, o orador fecha seu discurso com uma retórica chave de ouro, que encerra uma representação freqüente nos discursos cinqüentenários da Capital: são também meus votos finais por que e para todo o sempre, no coração da terra montanhesa, permaneça esta Metrópole mineira um relicário da Liberdade e um escrínio de Civilização para maior glória de Minas e do Brasil.19

A imagem do escrínio - pequeno cofre para guardar jóias - de Civilização, expressa bem um dos papéis que se atribuía à capital, ou seja, o de pólo civilizador do sertão - já no começo do século formulado no epíteto de "Capital do interior", dado por Rui Barbosa à Belo Horizonte, em discurso por ocasião de sua visita à Nova Capital, publicado em uma outra edição comemorativa do Cinqüentenário. O tema da penetração do progresso e da civilização no sertão, ligado ao objetivo de propiciar uma centralidade à economia mineira, ocorre repetidamente nas considerações sobre a cidade na época do Cinqüentenário. O discurso do governador Milton Campos procura explicar a surpresa dos que se admiram com o progresso da cidade "com apenas cinqüenta anos de existência", principalmente aqueles que têm do "caráter mineiro a impressão de reserva, da modéstia e da medida". Para o governador, estas virtudes decorriam dos "outros traços peculiares à nossa gente, que são o fundamento mesmo daquelas virtudes mais nobres e notórias: a energia e a determinação", adquiridas nas origens deste povo: "Do trabalho das minas, aprendemos a penetrar verticalmente o sentido profundo das coisas; e dos vagares do

18 19

Idem, p. 122. Idem, p. 125.

24

pastoreio nos vieram a calma e a tranqüilidade com que nos detemos diante da vertigem do tempo".20 Vê-se neste discurso um exemplo da conciliação da propalada moderação mineira - notável na construção da imagem da mineiridade por diversos intelectuais e literatos - com o surto de progresso assinalado pelas reportagens e crônicas da época. A evocação à tradição se dá num quadro onde domina, na produção discursiva sobre a cidade, o enlevo com o progresso e a aspiração de um modo de vida cosmopolita e atualizado com a civilização moderna, particularmente associada às metrópoles norte-americanas, bem como à São Paulo e ao Rio. Permanece, todavia, como traço distintivo de Belo Horizonte frente às metrópoles nacionais, a suposta capacidade de conciliação entre modernidade e tradição.

OUTRAS COMEMORAÇÕES Promovidas por iniciativas particulares, foram realizadas duas exposições de pintura: uma de "diversas e magníficas telas inspiradas na história de Belo Horizonte" pintadas pelos "nossos melhores artistas brasileiros", e a outra, também a propósito da construção da Nova Capital, por dois pintores amadores (Gabriela de Melo e Haroldo Galliac) que "reproduziram a óleo, todas as fotografias históricas daquela obra"21. Ao contrário da Exposição de Arte Moderna, realizada em Belo Horizonte em 194422, as exposições do Cinqüentenário não se filiavam às tendências da arte moderna. Quanto à segunda exposição mencionada, esta conclusão é

20

Milton Campos, "Discurso do governador", Revista do Instituto Histórico Geográfico de Minas Gerais, v. 3, 1946 [1948], p. 146-7. 21 Barreto, op. cit., 1950, p. 289. 22 Esta exposição, promovida pela administração municipal de Juscelino Kubitschek com o expresso objetivo de colocar o público mineiro em contato direto com a arte moderna paulista e carioca, provocou reações de rejeição por parte dos críticos mineiros tradicionais e do público. Ribeiro, Marília Andrés. "Juscelino Kubitschek e a arte moderna em Belo Horizonte". Revista do Departamento de História, Belo Horizonte: UFMG, n. 5, dez 1987, p. 56-66.

25

evidente. Quanto à primeira, o mesmo se pode inferir não só por sua temática histórica, como também pelas amostras que dela reproduz Barreto, dentre as quais a que abria o catálogo da Exposição, a "Composição a bico de pena, do artista Julius Kaukal, [...], representando os Governos do Estado e da cidade quando foi esta construída, inaugurada e no ano cinqüentenário"23. Estas figuras, circundando o brasão de armas da cidade, ocupam dois terços da composição, encimando dois quadros comparativos: um dos tempos do pacato e ordeiro Arraial do Curral del Rei, e o outro da metrópole em vertiginoso crescimento . Como esta, várias peças comemorativas de artes gráficas foram produzidas para a ocasião, sendo algumas adquiridas pelo Museu Mineiro. São, em geral, composições por montagem de desenhos a bico de pena e fotografias, recortados em contornos caprichosos e dispostos como fragmentos e flagrantes da cidade; apresentam, infalivelmente, o brasão das armas da cidade. Destas, sobressai-se, pela qualidade da fotomontagem, dos desenhos e do arranjo e pelos significados que promove, a "fantasia a bico de pena de J. Kaukal"24. Em torno do recorrente comparação dos tempos antigos e dos novos, a gravura compõe-se de duas imagens: à esquerda, um desenho de um gracioso e aristocrático casal de crianças, vestidas elegantemente à moda do século XIX, tendo ao fundo o Arraial e o horizonte montanhoso da Serra do Curral; à direita, uma fotomontagem da cidade atual, enquadrando a Praça Sete e os edifícios alinhados ao longo da Avenida Afonso Pena, e em primeiro plano o desenho de um casal adulto, smart e cheios de dinamismo, em seus trajes modernos, talhados com rigor geométrico e despojamento de enfeites; no céu, sobrevoa um avião, completando a imagem de modernidade atribuída à cidade. Entre as duas, o tradicional e indefectível brasão de armas da cidade. Completa o quadro molduras, faixas e louros caprichosos e alusivos ao evento, comprometendo a composição com uma linguagem tradicional, clássica e levemente graciosa, a

23 24

Barreto, op. cit., 1950, p. 335. Barreto, op. cit., 1950, p. 332.

26

despeito da modernidade da figura da cidade e do casal atual e do tratamento gráfico desta fotomontagem. As imagens ilustram, em alegorias diversas, o tema da comparação do passado e do presente, ressaltando os seus contrastes. Das pinturas que fizeram parte desta exposição de pintura sobre a história da cidade, outras duas se destacam por terem sido repetidamente reproduzidas nas publicações comemorativas do Cinquentenário: a primeira, um retrato de João Leite da Silva Ortiz, o bandeirante colonizador da região em que se construiu a Capital, representado como seu fundador ancestral - um quadro a óleo de Delpino Júnior (1947); a segunda retrata a Comissão Construtora, por Aldo Borgati (1947). A análise destas duas obras será feita mais detalhadamente ao se tratar especificamente do imaginário das origens e da construção da Capital nos textos comemorativos. Vemos neste exame das representações iconográficas relativas à cidade no Cinquentenário delinearem-se os temas da demonstração dos contrastes entre passado e presente, demonstrando a evolução da cidade, bem como a recorrência ao passado, garantindo-lhe uma identidade num momento de grandes transformações.

1.2. Os topos do discurso laudatório sobre a cidade Como se viu, o Cinqüentenário não desperta interesse pelo brilho dos festejos nem pela grandeza dos monumentos. Foi no campo da produção de textos - reportagens, artigos e ensaios sobre a história e sobre a situação da cidade, em geral, ilustrados por fotografias e corroborados por tabelas estatísticas - que teve-se a maior e mais rica comemoração e registro da ocasião e da cidade na época. Tal é o corpus documental que observaremos em uma análise das imagens da cidade então construídas e propagadas. Os temas centrais desses textos são a percepção das transformações em curso nos 27

últimos anos - em diversos aspectos da cidade, particularmente em sua fisionomia arquitetônica e nos modos de sua construção - e a relação dessas transformações com o passado. A propósito das transformações da cidade e de seus lugares nos anos 30 e 40, particularmente quanto às demolições e novas construções de edifícios, Vera Chacham verifica, nas crônicas e artigos jornalísticos sobre o tema, que a avaliação destas transformações se davam, de modo geral, sob dois "prismas": "o nostálgico e o progressista"25. Os comentários progressistas manifestavam um entusiasmo pelo que se considerava então um "surto de construções", avaliado como um sinal da superação da condição provinciana e burocrática da capital e do "começo de uma nova era para a sua história"26, marcada pela condição metropolitana e em incessante progresso. Já os comentários nostálgicos avaliam as demolições dos edifícios e as mudanças dos lugares sob o "prisma da perda", notando também, em um destes comentários, "uma certa angústia em relação a 'eterna' reforma, reconstrução, reformulação da cidade"27. Pondera Chacham que "tais prismas muitas vezes - talvez a maioria delas - não se chocavam frontalmente", pois tanto os comentaristas nostálgicos "se conformavam com as perdas", como os progressistas reconheciam certos inconvenientes das rápidas transformações da cidade, observando que "eram evitadas avaliações extremas"28. A alusão ao progresso "vertiginoso", "surpreendente", "intenso" e "admirável", é notavelmente freqüente nos discursos cinqüentenários. Como vimos, o tema não é novo. Entretanto o ocasião jubilar não só é propícia à sua proliferação, como parece ser quando ele se manifesta de maneira conclusiva e unanimente reconhecida como em pleno e inarredável curso - ainda que sejam

25

Chacham, Vera. A memória dos lugares em um tempo de demolições: a Rua da Bahia e o Bar do Ponto na Belo Horizonte das décadas de 30 e 40. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 1994 (Dissertação de Mestrado em Sociologia), p. 180. 26 Idem, p. 109. 27 Idem, p. 184. 28 Idem, p. 180.

28

diversas sua avaliações do progresso e sutilmente variadas as explicações quanto a sua origem e relações com o passado, como veremos mais detalhadamente adiante. Aponta-se este progresso em todos os setores, sendo muito freqüentemente tomadas as transformações arquitetônicas da "fisionomia da cidade" como fato marcante e demonstrativo deste progresso. Buscando apresentar a emergência de um novo tempo da cidade, estes artigos recorrem à comparação por contraste com o passado, demonstrando a partir de um momento uma ruptura, ou pelo menos uma arrancada, em relação ao papel econômico e à configuração arquitetônica da cidade. Contudo, muitas vezes busca-se estabelecer uma continuidade deste progresso com alguns fatos das origens da cidade. Ainda que em geral entusiasticamente celebrado, particularmente no campo material e na arquitetura da cidade, o progresso também tem seus críticos e insatisfeitos, que manifestam uma nostalgia quanto a hábitos em extinção e denunciam a perda de valores culturais. Uma outra postura, que por vezes aparece dissimulada naquelas duas, reconhece e louva o progresso, porém com certa moderação, ao mesmo tempo que propõe uma explicação mais ampla, fundada numa evolução progressiva. Sustenta esta postura capitaneada pelo historiador Abílio Barreto - cuja obra constituiu o lugar-comum das referências gerais sobre a história da cidade - um exame minucioso da história da cidade, a partir de um ponto de vista evolutivo, que busca nas origens da cidade como fundamento de uma evolução que se desenvolveria em ciclos ampliados de progresso, resultado da ação do homem e do povo, através do Estado como fator de realização da civilização mineira. Através da análise desta postura atingiremos o cerne das questões e oposições que se evidenciam como centrais e generalizadamente recorrentes nos discursos sobre a imagem da cidade e da história de sua construção: a percepção de um ciclo de transformações nos papeis, na forma, na imagem e nos hábitos da cidade, que colocam uma questão sobre o significado desta transformação como ruptura, 29

continuidade ou superposição evolutiva em relação ao período inicial da construção da Capital, situado até os anos vinte.

"VERTIGINOSO PROGRESSO" A audácia e a amplitude da Nova Capital eram temas freqüente nos textos sobre a mesma, escritos por seus habitantes e por visitantes, já nos primeiros anos do século, logo após a sua inauguração. Se o discurso laudatório foi uma prática corrente ao longo de toda a história da cidade, observamos neste discursos características, inflexões, temas

e mesmos certos qualificativos

característicos de determinados momentos ou períodos. Desde a inauguração da Capital até os anos 30, as apreciações sobre a cidade destacam as qualidades do seu sítio e do clima, bem como à racionalidade atribuída à regularidade geométrica do seu traçado. Neste período, o tema do progressivo crescimento da cidade também ocorre, porém a ênfase é mais no papel da capital como pólo civilizador, politica e culturalmente centralizador do Estado, do que propriamente nas suas atividades econômicas. Ainda em 1936, um jornalista, ao apresentar uma entrevista com o prefeito Negrão de Lima, pondera: Não vamos dizer que Belo Horizonte já é uma dessas metrópoles estuantes e trepidantes de movimento e vibração. Mas está no jeito de ser. [...] E chegará a ser metrópole de um povo que progride e se engrandece, apesar dos pesares.29

A avaliação ganha relevância considerando-se que a matéria é ufana e entusiasticamente aprobativa da gestão do prefeito, responsável pela "plena fase de remodelação" aludida em manchete. Neste ano, na ocasião do aniversário, um caderno especial apresenta uma avaliação semelhante a propósito da cidade que será, "em breve, uma imensa metrópole"30. Na mesma ocasião, Barreto

29 30

"A capital em pela phase de remodelação", Folha de Minas, 24 mai 1936, p. 1. "Bello Horizonte", Folha de Minas, 25 dez 1936, 4ª seção, p. 1.

30

descreve a Capital como "punjante de vida, palpitante de atividade, esplendente de beleza, em franco surto de progresso, podendo vangloriar-se de possuir foros de grande cidade moderna"31. Já recorre à imagem da vertiginosidade - como o fará mais adiante (em 1946 e 1947) - avaliando que "o elemento decisivo determinante de nosso progresso vertiginoso de determinado período em diante foi a ligação das linhas férreas", ocorrido no começo dos anos 20. A partir desta última data, para Barreto, a cidade entra numa série de ciclos evolutivos, caracterizados por um progresso crescente e a cada vez mais intenso. O uso disseminado do topos do "vertiginoso crescimento" ocorre, associado à qualificação da cidade como "metrópole", aproximadamente a partir dos últimos anos da década dos 30. O artigo intitulado "A jovem metrópole" é um exemplo pioneiro da ocorrência dessas imagens: A metrópole admirável, que surgiu como um milagre à entrada do sertão, é hoje um dos grandes marcos do progresso nacional. [...] O desenvolvimento de Belo Horizonte tem sido realmente vertiginoso. [...] Em quarenta anos os mineiros construíram a sua cidade, e é com grande satisfação que assistem a sua transformação num magnífico centro de progresso e de civilização.32

Na mesma época pode-se observar outras apreciações semelhantes, ao lado de outras que destacam a beleza bucólica e/ou o caráter ordenado da cidade, como vimos anteriormente. A partir daí, o topos do "vertiginoso crescimento" e suas variantes aparecem freqüentemente,

em motes de

reportagens,

-

durante

generalizadamente

a

administração

considerada

pela

de

JK

imprensa

(1940-5) "fecunda",

a

qual

é

"dinâmica"

e

"empreendedora". Não se pode deixar de atribuir a ausência de opiniões dissidentes ao cerceamento da liberdade de imprensa e à força da propaganda oficial e oficiosa durante o então vigente Estado Novo (1937-45). Contudo, no período da redemocratização constitucional em que se dá o Cinquentenário (1947), persiste o entusiasmo com o "vertiginoso crescimento" da cidade, 31 32

Abílio Barreto, "Pelo 39.º aniversário da cidade", Minas Gerais, 12 dez 1936, p. 8. "A jovem metrópole", Folha de Minas, 01 mar 1938, p. 3.

31

mesmo naqueles que manifestavam, como o historiador Abílio Barreto, uma desaprovação, embora ambígua, ao Estado Novo. Os artigos publicados na época do cinqüentenário, a respeito das transformações da paisagem urbana e da arquitetura, em geral aludem ao progresso em relação ao arraial e aos primeiros tempos da Nova Capital, e mais acentuadamente, ressaltam uma arrancada a partir de alguns momentos de reorientação político-econômica e de alguns fatos da construção da cidade. Tais marcos, situados na metade dos anos vinte, na metade dos trinta e no início dos quarenta, concorreriam para a nova forma e o novo papel da capital como metrópole, que se reconhecem como em pleno estabelecimento na ocasião do Cinquentenário. A associação do progresso econômico com as novas dimensões urbanas e com a densidade e grandiosidade das construções ocorrem, como se poderia esperar, nos discursos laudatórios publicados pelos arquitetos mineiros em sua recém-fundada revista, mas também na "Edição especial comemorativa do cinquentenário" da Revista Social-Trabalhista, em diversos de seus artigos e sob diversos pontos de vista, e ainda em outros vários artigos da imprensa diária. Além das inúmeras demonstrações e comentários, alguns destes artigos empenham-se em análises mais explicativas que atribuem o progresso e a transformação da cidade a uma reorientação de seu papel no estado, no sentido de ultrapassar as funções de centro político e cultural e atingir o papel de centro econômico e industrial. Na revista Arquitetura e Engenharia - fundada em 1946 pela primeira geração de arquitetos formados na Escola de Arquitetura de Belo Horizonte, a partir

de 193633 - dois artigos alusivos ao Cinquentenário, não assinados e

provavelmente expressando o ponto de vista geral da publicação, manifestam 33

Dentre eles, Raphael Hardy Filho, Shakespeare Gomes, Eduardo Guimarães Mendes Jr. e Sylvio de Vasconcelos. A Escola foi fundada em 1930, em caráter privado, por um grupo de arquitetos e outros profissionais liberais, porém apenas reconhecida oficialmente em 1940, a nível estadual e a nível nacional em 1944, sendo incorporada, dois anos depois, à Universidade de Minas Gerais.

32

exemplarmente o entusiasmo com o "vertiginoso progresso" da capital. O primeiro, "Belo Horizonte - A Metrópole de 50 anos", publicado no número inaugural da revista - no ano anterior ao cinquentenário de Belo Horizonte inicia-se com um resumo que encerra temas recorrentes nos discursos da época: Do primitivo burgo de Curral del-Rei à moderna metrópole, sede política e centro de irradiação cultural e econômica de Minas Gerais, a evolução operada em apenas dez lustros encerra algo de mágico que, a seiscentos quilômetros do litoral, surpreende, encante e até certo ponto escandaliza o forasteiro menos advertido...34

Ressaltava-se, portanto, o contraste com o antigo arraial, os papéis fundamentais da nova capital e principalmente a rapidez de sua evolução, aqui sugerida como contínua, mas que no desenvolvimento do artigo é apresentada como característica de um período mais recente e em curso. Prossegue o autor com a evocação dos epípetos dados à Capital - gênero discursivo já tradicional nas efemérides35 - em termos semelhantes aos usados por Barreto36: "Coelho Neto e Paulo Barreto celebraram-na em títulos poéticos: Cidade Vergel, Miradoiro dos Céus. Outro lírico definiu-a como Acrópole das Rosas. Monteiro Lobato preferiu Cidade Certa". O articulista acrescenta a estes qualificativos já antigos - referentes às qualidades paisagísticas e urbanísticas (beleza e ordenação) da Capital - outro mais de acordo com sua época, "Cidadesurpresa", considerando que "seu facies arquitetônico apresenta em cada ano transformações e novidades que espantam, num ritmo vertiginoso de progresso e embelezamento".

34

"Belo Horizonte - A Metrópole de 50 anos. Síntese histórica e evolução arquitetural", Arquitetura e Engenharia, n, 1, p. 35-44, mai-jun 1946. A autoria deste artigo é atribuída ao arquiteto Raphael Hardy em seu currículo. 35 Como se vê em diversos artigos relacionados por Gravatá, Hélio. "Contribuição bibliográfica sobre Belo Horizonte". Revista do Arquivo Público Mineiro, 1982, p. 9-174. 36 Em "Como nasceu e cresceu Belo Horizonte", [O Diário, 12 dez 1947, p. 4-6] e em Belo Horizonte e sua história [BH: Imprensa Oficial, 1937], citado no artigo que analisamos.

33

O autor passa então a discorrer, baseando-se em Barreto, sobre "um pouco de história", tendo por objeto o "modestíssimo vilarejo" de Curral del-Rei e os episódios da transferência e construção da capital até sua inauguração. Daí salta para "o período de maior progresso de Belo Horizonte", iniciado a partir da metade dos anos 20, mas - pelo que se pode presumir da avaliação do autor efetivamente

realizado

com

a

construção

dos

"arranha-céus"

e

empreendimentos como o conjunto da Pampulha, ocorridos a partir da metade dos anos 30 e acentuados nos últimos anos, transformando a paisagem urbana e demonstrando ser "a marcha do progresso [...] firme e nítida". Desenvolve a seguir uma comparação entre os primeiros anos da capital e o presente, tomando alguns "índices curiosos de evolução", relativos à número de edificações, pavimentação de vias, transportes, serviços públicos. A comparação evidentemente apresentava marcantes diferenças entre os dois momentos, já que construída sobre o Arraial arrasado, nos primeiros anos a Capital estava ainda em fase de estabelecimento. Em vista do extraordinário crescimento que busca ressaltar por estas comparações, o autor destaca um mais recente, ou seja, a tendência da cidade "tornar-se dentro em breve um dos maiores centros mecano-fatureiros de todo o País". Sua imagem da cidade do momento era, pois, marcada pela admiração do movimento de crescente renovação reconhecida sob diversos aspectos, como vê-se na conclusão deste artigo: a Capital Mineira é sempre uma surpresa que entusiasma os observadores. Por toda a parte se constrói, se edifica, se aformoseia a "urbs". Há uma vibrante intensificação de trabalho, inequívoca prova da vitalidade econômica e de confiança dos destinos da Capital. Intensificação industrial e comercial pelo maior número de estabelecimentos que se fundam. Intensificação social, intelectual, educacional, [...]. O panorama físico, social e econômico de Belo Horizonte causa entusiasmo àquele que visita a cidade pela primeira vez, e surpreende os que a conheciam há mais de um lustro37.

37

"Belo Horizonte - A Metrópole de 50 anos", Arquitetura e Engenharia, n, 1, p. 35-44, mai-jun 1946, p. 41.

34

Situando uma transição entre meados dos anos 20 e fins dos 30, o articulista avalia que mesmo alguns fatos inovadores deste período já estavam obsoletos, tal o grau das transformações nele ocorrentes. Considera o autor que, até este período dominava o tradicionalismo no apego às memórias da antiga capital bem como nas escolhas estilísticas ecléticas e na modesta escala das edificações: Até então, o estilo das residências particulares era deplorável. [...] Fachadas cheias de arabescos, um alpendre com pinturas ingênuas, um jardim ao lado. [...]. Tudo acanhado, primitivo, sem conforto e sem arte. Sentia-se nas menores coisas que o povo ainda morria de saudades da velha capital. Em muitos muros, paisagens ouropretanas. Na praça da Liberdade, uma miniatura ridícula do Itacolomi".38

A "miniatura ridícula do Itacolomi" a que se refere o arquiteto fora uma reprodução em pedra do pico próximo a Ouro Preto, em escala reduzida e com aproximadamente cinco metros de altura, compondo com um pequeno lago uma imitação de um ambiente natural, à moda do paisagismo inglês, cuja influência comparece em outros recantos da referida Praça e no Parque Municipal. O conjunto paisagístico foi removido no começo dos anos vinte, quando a praça sofreu uma remodelação, que lhe imprimiu feições mais classicistas. O monumento, pode ser visto como um totem, um símbolo ancestral que estabelecia uma continuidade com a antiga capital. Sua retirada parece marcaria simbolicamente a ruptura com o tradicional modelo da cidade vigente até os anos vinte, quando também ocorre o primeiro fator do ciclo de progresso apontado, ou seja, a ampliação das ligações ferroviárias. Contudo, o ciclo parece para o arquiteto realmente ganhar intensidade a partir

do

final

dos

anos

30,

com

o

novo

porte

das

construções,

comparativamente bem maior que o usual até então. Neste período intermediário emergiu um movimento transformador, que a partir daí ganharia cada vez maior velocidade. 38

Idem, p. 40.

35

Mas o saudosismo passou. O povo resolveu esquecer-se da 'velha amada' e o clima da nova Capital enche-o de energia. Pôs-se a trabalhar e a produzir. A cidade, que aí está cheia de arranha-céus, é de ontem. Os arquitetos e engenheiros construtores descobriram que edificações mesquinhas enfeiavam as largas avenidas. Não mais construíram casinhas para se perderem na densa arborização. [...]. O cimento armado começou a ser um elemento vastamente empregado. Surgiram os críticos. Não compreendiam o arranha-céu numa cidade de amplas rua vazias. Citavam Nova York, para impressionar, pela sua escassez de áreas. Mas Belo Horizonte, cidade com grandes extensões a edificar, os altos prédios passaram a ser encarados como verdadeiros absurdos. Apesar disso, o arranha-céu vai se multiplicando e vencendo. A marcha do progresso é firme e nítida. Cinemas, casas de apartamentos, hotéis, edificações que se perdem de vista39.

Ao descrever o ambiente urbano então contemporâneo, o autor - um arquiteto modernista da primeira geração formada em Belo Horizonte - se referia então, com incontido entusiasmo, aos edifícios verticais como índices de progresso e da condição metropolitana que a cidade, a seu ver, atingia. Fica evidente nesse trecho a associação entre a grandiosidade e arrojo técnico dos arranha-céus com o desenvolvimento econômico; a analogia da vitória dos arranha-céus com a marcha do progresso tem um tom futurista da apologia da velocidade e da potência possibilitadas pela industrialização e pela concentração de poder e de capacidade de transformação do ambiente socio-físico. A altura, a grandiosidade e a concentração de matéria, atividades e pessoas características dos edifícios verticais os tornavam símbolos da vitória e poder do homem sobre a Natureza e sobre as condições sociais herdadas do passado, vistas como precárias e ultrapassadas. Se considerarmos que na década de 40 os "arranhacéus" eram poucos e se "erguiam" numa paisagem urbana dominada por edificações de pequeno porte (1-3 pavimentos) - as "casinhas" - e onde as largas avenidas forneciam uma referência de escala de modo a produzir uma imagem espacial de amplidão, o destaque que esses altos edifícios produziam lhes

39

Idem, ibidem.

36

conferiam uma qualidade monumental, anunciadora do ingresso da cidade na era do progresso tecnológico e dos grandes empreendimentos. Em um texto paralelo, nas legendas das fotografias das edificações da cidade,

o

autor discorre

sobre o tema da inovação na arquitetura,

particularmente a residencial, com a entrada "em cena dos rapazes" da Escola de Arquitetura de Belo Horizonte, nos anos 40 - segundo o autor, afinados pelas lições courbusianas da Arquitetura Moderna. Assim, os novos arranha-céus, de feitio eclético ou classicista, já lhe pareciam obsoletos, ainda que admiráveis por sua ousadia. A nova arquitetura parecia, para o articulista, trazer o complemento necessário do progresso econômico e cultural que vislumbrava. O "ritmo vertiginoso de progresso e embelezamento" permitia-lhe pois celebrar as recentes construções como signo dos novos tempos, mesmo considerando-os já obsoletas e prevendo sua breve substituição. Ao comentar a ocupação da região próxima à Praça Raul Soares, o arquiteto lembra que se dez anos atrás, o local "ainda era um matagal", sua transformação tornara-se um fato contínuo, subvertendo o caráter estável que se atribui às edificações: "Hoje, nela já existem prédios que serão demolidos para dar lugar a novos edifícios de apartamentos e escritórios". Para o autor naquele momento, "a cidade cheira a novo ..." e "os contrastes entre o velho e o novo" apontados por seu artigo, já se apagavam com as progressivas reconstruções. Complementa este artigo um outro, intitulado "Visões da mais moderna metrópole brasileira"40, tratando do mesmo tema e recorrendo igualmente ao tom laudatório, às comparações estatísticas entre os antigos e os novos tempos e aos "flagrantes" fotográficos que documentavam o crescimento e as novas formas da capital cinqüentenária celebrados no anterior - no qual, como lembra o autor, fora feito uma "síntese histórica [...] desde os primórdios da metrópole originada do humilde e pitoresco arraial de Curral del-Rei, e que hoje se ergue

40

"Visões da mais moderna metrópole brasileira. Homenagem de AE ao Cinquentenário de Belo Horizonte", Arquitetura e Engenharia, n. 6, nov-dez. 1947, pp. 24-33.

37

como autêntico milagre urbanístico", bem como uma demonstração de sua "evolução arquitetural". Além de aludir à evolução em "meio século" desde as origens da Capital, este segundo artigo privilegiava o presente da metrópole: Exigindo sempre novos adjetivos. Ganhando em latitude e altura. Ampliando e aformoseando incessantemente suas ruas, avenidas, praças, jardins e parques. Criando novos bairros, vilas e estilos residências notáveis por seu sentido inovador e revolucionário. Crescendo incrivelmente em população, em negócios, na rede de transportes, na indústria, no comércio, na educação, na cultura, nas artes, em tudo que define e configura o progresso social e econômico, com o "bro-ha-ha" característico das velhos e jovens metrópoles.41

O autor deste artigo, além de reconhecer as transformações e inovações da cidade postas à visão, assinala a percepção do novo ambiente através do sentido da audição - de maneira semelhante ao anterior, que de modo mais metafórico, referia-se ao cheiro de novo da cidade. Aqui, as novas sonoridades urbanas - vistas pelo autor com indisfarçável orgulho - é apresentada como mais um índice do crescimento e da ascensão da capital à condição metropolitana, sendo valorizada como condição de dinamismo e intensidade da vida urbana, sem manifestar contudo qualquer reserva quanto ao desconforto por elas acarretado. Assim, o que hoje consideramos como poluição sonora, soava então como uma sinfonia dissonante e admirável da metrópole. Os chamados "arranha-céus" são insistentemente mencionado em várias outras apreciações da cidade no Cinqüentenário. O tema do "o alto progresso de sua civilização material" é ilustrado, ou mais precisamente, atestado pela nova paisagem urbana surgida com a construção dos arranha-céus, no artigo "19171947"42, o qual traz duas fotografias da área central da cidade dos respectivos anos, como registros de duas épocas distintas. Um curto comentário comparativo está disposto discretamente ao lado das tais fotografias, que dominam o quadro da matéria, pois o que se queria demonstrar estava melhor

41 42

Idem, p. 24. Folha de Minas, 12 dez 1947, p. 1.

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evidenciado no registro fotográfico, que, como diz o artigo, "atestavam" - como convinha a um tempo de entusiasmo com o rigor técnico apresentado pelas provas fotográficas e estatísticas - o dito progresso. O primeiros dos "dois flagrantes de Belo Horizonte, colhidos do mesmo local, com um intervalo de 30 anos", mostrava uma cidadezinha provinciana com o ar que hoje ostentam algumas cidades do interior mineiro, um panorama em que a monotonia das construções atarracadas se prolongava até a encosta das colinas, apenas sobressaindo da pobreza arquitetônica geral, a Igreja de São José, que constituía verdadeira audácia por entre a chatice do casario.

O desprezo do articulista pela paisagem contínua e horizontal de 1917, onde as construções se prendiam ao plano da terra, "atarracadas", ou seja, pesadas e sem elegância, parece compor para o autor uma cidade de feição provinciana, semelhante à paisagem da cidade medieval, dominada pela Igreja. A respeito da fisionomia arquitetônica da cidade a que se refere o articulista, pode-se considerar que, até vinte anos depois, mantinha-se ela basicamente a mesma. Nesta ocasião (1936), a cidade-capital já ostentava dois edifícios mais verticalizados, como o Ibaté, a Feira de Amostras, com 10 pavimentos. Porém, a maioria dos edifícios de maior porte da cidade - como o Palácio da Municipalidade, o Banco do Comércio e Indústria e um hotel situado à av. Amazonas esquina com rua Caétes - não ultrapassavam o limite dos vinte metros de altura característicos do urbanismo europeu. A cidade apresentava então, de maneira incipiente, o padrão urbanístico francês da cidade classicista moderna, cujo modelo era Paris e que se verificava também em cidades-capitais como Buenos Aires. Este modelo sofre uma solução de continuidade justamente a partir deste momento, não chegando, pois, a ser consolidado, dando lugar a um outro modelo urbanístico, e uma outra imagem, ou seja, o modelo americano da metrópole, com seus arranha-céus comprimidos na área central. Assim, o que o articulista vê na fotografia de 1917 é depreciado como provinciano, pois não correspondia à nova imagem que se construía por volta do 39

cinqüentenário, que desta vez já não tinha como referência a cidade-capital européia, mas a metrópole americana. Era o que a segunda fotografia, do momento atual, mostrava, para o orgulho do articulista: Hoje, 30 anos após, a situação daquele Templo, quase afogado entre edificações de grande porte, dá-nos a exata noção de quanto progrediu a cidade, pois a diferença geral que esses 6 lustros determinaram, é idêntica para quaisquer outras comparações que se faça daqui a 30 anos.43

A imagem da Igreja São José como um templo "afogado entre edificações de grande porte" exprime cruamente a perda do caráter de referência coletiva do edifício sagrado, fato que não é considerado pelo articulista, em seu entusiasmo como o progresso da cidade. Assim, a referência da grandeza da capital não é mais a excelência de seu clima, nem a harmonia e sobriedade de seu traçado e edificações, tampouco a arborização abundante e bem alinhada e nem mesmo a racionalidade "certa" de seu traçado, mas o nascente sky-line, ou seja o novo horizonte formado pelos prédios altos. A metáfora da "volubilidade fisionômica"44, utilizada por um articulista da "Edição especial comemorativa do cinqüentenário de Belo Horizonte" da Revista Social-Trabalhista, sintetiza bem as descrições e avaliações sobre a cidade na época de seu cinquentenário. Cumprindo mais uma etapa do "Ciclo dos arranhacéus" iniciado em 1935 com o Edifício Ibaté, inaugurava-se então, segundo Ramalho, "o mais alto, concluído neste ano de 1947, do cinquentenário, o Edifício do Banco Financial da Produção, com 26 andares". Na afã de fazer coincidir a celebrada data com mais um "expressivo recorde" do progresso da cidade, o autor se esqueceu que no ano anterior havia sido finalmente concluído "o portentoso Acaiaca", com o mesmo número de pavimentos. Estes e outros edifícios compõem uma lista dos "altaneiros" arranha-céus, que, perfazendo o

43 44

Idem, ibidem. Raul Ramalho, "Fragmentos da História de Belo Horizonte", Revista Social Trabalhista. Edição especial comemorativa do cinquentário de Belo Horizonte, Belo Horizonte, n. 59, dez 1947, p. 5-36.

40

total de dez, não incluía, segundo ele, "nem a metade dos gigantescos prédios que se arremetem para os céus"45. A construção destes edifícios, apesar de ser bastante comentada pela imprensa, não constitui, do ponto de vista quantitativo, um surto de arranhacéus. O movimento das construções durante a 2ª Guerra foi decrescente, ocorrendo mesmo uma drástica diminuição no número de construções e na área total construída na cidade. Contudo, em 1945, conforme observava um articulista, os "grandes prédios altos e vastos", construídos "nos últimos anos mudou muito a fisionomia da cidade": "são todos prédios cujos tetos se elevam aos céus numa expressiva demonstração da grandeza econômica e da força de realização da gente mineira46. A concentração, em alguns pontos, de edifícios bem mais altos do que os vizinhos, bem como as associações simbólicas que esses edifícios despertavam, tornavam-os objetos de referência coletiva e seu número crescente apontava para uma nova forma de construir e habitar a cidade. A despeito da diminuição relativa do volume das construções no período 1940-6 - e dos baixos índices de industrialização da região metropolitana de Belo Horizonte47 -, o período foi marcado pela construção de estruturas urbanas e de elementos simbólicos que permitiam qualificar a cidade como uma metrópole. A mudança da política de desenvolvimento do Estado e da relação capital-território, bem como suas consequências para a forma urbana, é analisada por Rubens Pontes, na "Parte III: Economia e finanças" da "Edição especial comemorativa do cinqüentenário de Belo Horizonte" da Revista SocialTrabalhista48. Constatando então que "a metrópole cresce com a vertigem de um sonho", Pontes pondera que tal crescimento deu-se "apenas de uns 20 anos 45

Idem, p. 33. O número é aproximadamente correto. Pelo censo predial da época, a cidade tinha 25 edifícios de dez pavimentos ou mais, num total de 39.309 edificações. 46 "BH era uma das capitais onde mais se construía antes da guerra", Folha de Minas, 11 fev

1945, p. 5. 47

PLAMBEL. O desenvolvimento da região metropolitana de Belo Horizonte, Vol. I, "Experiência e estratégia". Belo Horizonte: PLAMBEL, 1974, p. 43-5. 48 Revista Social Trabalhista, dez 1947, p. 99-103.

41

para cá", quando "os governos se preocupavam em transformar Belo Horizonte num grande centro, dando-lhe base econômica através do estímulo às indústrias", acrescentando ainda que "somente após a Revolução de 30 é que se evidenciou um propósito firme de estimular [...] o crescimento e a pujança econômica da Capital". Na sua visão: A lentidão do progresso da Capital se deveu à política dos antigos governos que não se empenhavam em tornar a cidade um grande centro comercial, considerando que Belo Horizonte deveria ser apenas uma cidade-sede do Governo, tranqüila e sem grandes progressos materiais, embelezada e artística, copiando a política yankee em relação à Washington. Julgavam os antigos administradores que o importante era apenas o desenvolvimento das cidades do interior, à cuja sombra viveria a Capital.49

Prevalecia, portanto, o modelo da capital político-administrativa e cultural de um território onde as atividades produtivas situavam-se no meio rural ou dispersas em alguns centros urbanos e industriais de âmbito local ou regional. Contudo, a partir dos marcos citados, aplaude o jornalista ter o governo promovido "uma série de obras que mudaram por completo a fisionomia da cidade": A nova política da Prefeitura, voltando periodicamente suas vistas para determinado ponto e transformando-o, através de uma série de melhoramentos, [...] produzia alucinante valorizações de lotes e logo determinava o surgimento de novas áreas habitadas, fazendo a cidade crescer em todas as direções.50

Como índices da transformação do papel da Capital e de seu dinamismo econômico, Pontes relacionava "o aumento de vulto das transmissões de imóveis" nos últimos dez anos, o desenvolvimento do comércio na cidade, o "aumento extraordinário de sua população" e ainda o crescimento das atividades industriais - principalmente de tecidos e calçados. Além disto, o jornalista destacava as atividades econômicas das cidades vizinhas, nos setores de turismo e industrial, lembrando que "em torno da cidade, ou não muito distante 49 50

Idem, p. 101. Idem, p. 102.

42

dela, estão as grandes usinas siderúrgicas e a maior reserva de minério de ferro do mundo: Itabira". A despeito do crescimento do comércio e da indústria de bens de consumo, Belo Horizonte não era ainda considerada como provida de um parque industrial diversificado e de grande porte, sendo que as indústrias de base, ligadas ao setor siderúrgico, até então estavam localizadas nas cidades próximas. Um fato reputado pelo jornalista como de grande vulto, que iria modificar este quadro e promover a concentração industrial na capital, era a recente criação da Cidade Industrial, onde já se instalavam as primeiras fábricas e que: quando terminada, transformará a cidade por completo, pois que lhe dará a base sólida que sempre lhe faltou. Esse cometimento fará fumegar, ao lado da metrópole, chaminés de fábricas de todas as modalidades, produzindo o cimento (e já o está produzindo a Cia. de Cimento Portland Itaú), para a edificação de novas vias e de novos bairros; o tecido, materiais de toda espécie, ferro e aço51.

Vislumbra o jornalista que "Belo Horizonte sentirá o pulso de suas possibilidades imensas, ilimitadas" na nova fase que se instaurava. Seu papel como centro rodoviário, "através da Estação Rodoviária [...] que centraliza e uniformiza o sistema de transporte rodoviário do Estado", demostrava ter-se tornado "Belo Horizonte o centro de convergência de toda Minas". É interessante notar aqui a modificação do papel atribuído à capital nas primeiras décadas, ou seja, o de organizador e difusor da civilização, para o papel concentrador dos fluxos econômicos e populacionais, que se impunha com o estabelecimento da indústria na metrópole: "Para aqui, executado todo o plano governamental, afluirão o elemento humano e a riqueza do hinterland, num fluxo e refluxo que determinarão um constante crescimento da cidade, tornando-a o centro mobilizador da vida de Minas Gerais" - conclui o artigo52. Diversos artigos e anúncios publicitários da mesma "Edição especial comemorativa do cinqüentenário de Belo Horizonte" referem-se ao progresso da 51 52

Idem, ibidem. Idem, p. 103.

43

cidade. José Osvaldo de Araújo situa em meados de vinte o marco das transformações da cidade, que até então "não passava de cidade burocrática, comércio provinciano, indústrias incipientes, operariado procedente do interior do Estado, ainda reduzido [...]"53. Já na "Parte VI. Governo", apresentava-se, numa fórmula muito repetida, a causa da "vida febril da metrópole": O Governo [...] foi sempre o promotor de realizações felizes ou o esteio em que se apoiaram inspirações geniais: foi sempre o mágico transformista que conseguiu Belo Horizonte - metrópole-mocidade - gerada na Curral del Rei inexpressiva.54

Alude ainda ao tema do crescimento a "Parte IV: Transportes, comunicações, hospedarias"55, considerando que o atendimento de transporte coletivo e a telefonia não vinham acompanhando "o rápido crescimento da cidade" e "o vertiginoso crescimento da metrópole"; as hospedarias são avaliadas como "um setor progressista da Capital", "por ser Belo Horizonte o centro para onde convergem todas as atenções de Minas Gerais, bem como as do comércio e indústrias de outros estados". Contudo, pondera-se que a cidade, "num futuro bem próximo [...] será uma metrópole dotada de tudo o que há de melhor no gênero, podendo atender, destarte, ao seu progresso em todos os setores". Vários anúncios de estabelecimentos comerciais e industriais fazem seu próprio louvor aludindo ao progresso da capital cinqüentenária.

O Escritório

Cícero C. Ribeiro considera a cidade "um esplêndido e vibrante atestado de ordem e de progresso, glorificando o esforço denodado dos desbravadores destas montanhas mineiras!"56. A remissão à fórmula da ordem e progresso e ao papel dos intrépidos bandeirantes como fundadores da civilização mineira refere-se à imagem da capital como centro realizador e difusor da civilização. Já a Drogaria Araújo, "ao ensejo do cinquentenário [...], brinda a população da 53

"Um Olhar sobre cinqüenta anos de jornalismo em Belo Horizonte", Revista Social Trabalhista, dez 1947, p. 312. 54 "Parte VI. Govêrno", Revista Social Trabalhista, dez 1947, p. 155. 55 "Parte IV: Transportes, comunicações, hospedarias", Revista Social Trabalhista, dez 1947, p. 121-142. 56 Revista Social Trabalhista, dez. 1947, p. 23.

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Capital e ao povo de Minas Gerais", com uma "fotografia histórica" , "por onde se pode estabelecer um magnífico contraste, entre aquela cidadezinha nascente e a maravilhosa urbs de nossos dias"57. A fotografia retrata um trecho da rua dos Caetés, em 1920, composto de uma uniforme seqüência de prédios comerciais comuns na época - ou seja, prédios de um pavimento, com platibandas em moldes neoclássicos - dentre os quais o primeiro edifício que sediou aquela Drograria - já então substituído por um novo e ampliado estabelecimento. A comparação sugerida pelo anúncio visa reforçar a associação explícita no texto, entre o crescimento e prosperidade do estabelecimento com o da cidade, celebrando pois a correspondência da transformação de ambos. Trata-se de um recurso comum a anúncios de outros estabelecimentos comerciais desta edição, que ressaltam seu próprio crescimento associando e louvando o da cidade58. Em outra parte da mesma Edição Comemorativa, dedicada à "Arquitetura e construções"59, as homenagens referem-se ao crescimento da cidade: "A Industrial, de Augusto de Souza Pinto & filhos", empresa de atuação nos ramos das construções, madeireiro e agrícola, considera suas atividades "ligadas ao progresso vertiginoso de Belo Horizonte"60. Já a "Empresa Belo Horizonte de Imóveis Ltda. e Empresa Belo Horizonte de Construções SA" descreve, exultante, fatos do crescimento da forma urbana - que podem ser situados a partir de meados dos anos 30 - nos quais esteve envolvida, ressalvando serem resultado da "obra orientadora dos poderes públicos" e do "esforço dos particulares": 57

Idem, p. 236. Anunciam nos mesmos termos, dentro outros, os seguintes estabelecimentos: a Casa Campolina, "sempre à altura do crescente progresso da Capital" [p. 138]; a Cerâmica Minas Gerais, "uma grande indústria, a serviço do progresso de Belo Horizonte" [p. 186]. a Empresa Mineira de Carnes, "caminhando progressivamente ao lado do desenvolvimento da cidade [p. 374], a Almeida Gardini, "mostra quanto progrediu a indústria de Belo Horizonte" [p. 385], a Casa Tupinambás, "acompanhando o progresso intenso da Capital" [393], a firma A. Munayer, concorrendo "de maneira decisiva para o progresso vertiginoso" da cidade [p. 400], a Fortunato Ferreti "acompanha o progresso vertiginoso da cidade" [415], a Loja Santa Branca, "um estabelecimento à altura do progresso vertiginoso da metrópole mineira" [p.470], a Tinturaria Arco Iris, "um estabelecimento à altura de seu progresso" [p. 477]. 59 Revista Social Trabalhista, dez. 1947, p. 167-200. 60 Idem, p. 173. 58

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A cidade se desenvolve em todos os sentidos, num surto grandioso de progresso e beleza. As ruas sobem os morros. Vadeiam os rios. Rasgam os campos. O chão vermelho cede lugar ao paralelepípedo e o paralelepípedo se retira para que a esteira reluzente e negra se estenda, formando a maior área asfaltada do Brasil.

Ainda que intercalando algumas exclamações típicas das apreciações mais tradicionais da cidade, associadas à amplitude da paisagem e à arborização ("Cidade linda de ruas largas! cidade-jardim..."), este texto é concluído com descrições que evocam

imagens ufanas, evocadoras de

crescimento urbano e de domínio da natureza: "Os arranha-céus gigantescos erguem-se para os ares, num esforço desesperado de alcançar as nuvens. Os bairros se multiplicam, formando os mais lindos conjuntos de casas residenciais que o Brasil tem conhecido"61. Compartilha deste entusiasmo com os papéis emergentes da cidade como metrópole industrial, a "Metalgráfica Mineira", que considerando a si própria "um atestado eloqüente do progresso local", pondera: Pode parecer [...] que a capital de Minas Gerais seja apenas uma cidade burocrática [...]. Entretanto, o desenvolvimento comercial e industrial da cidade [...] a transformaram num dos maiores parques industriais da América do Sul e tornando-a [...] a única metrópole encravada no centro do continente, em que haja penetrado a civilização no verdadeiro sentido de progresso humano.62

O texto faz a associação entre a imagem da "metrópole do interior", civilizadora do sertão, e o seu recente progresso industrial, lembrando que além da finalidade político-administrativa a capital tinha um desígnio maior, que então se cumpria. Assim, lembra que, "para atender ao grande progresso industrial, cujo ritmo é cada vez mais acelerado", havia sido construída a Cidade Industrial, provando que Belo Horizonte não era apenas uma "cidade bonita", mas também uma "operosa capital"63.

61

Idem, p. 193. "Uma indústria de Belo Horizonte para Minas e para o Brasil", Revista Social Trabalhista, dez. 1947, p. 368. 63 Idem, ibidem. 62

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A despeito do tom predominantemente entusiástico com o progresso da capital, alguns artigos manifestavam certa nostalgia ou mesmo lamentavam perdas em decorrência do progresso. Versavam, particularmente, sobre seus hábitos e valores "dos tempos que já se foram" comparados aos atuais e são marcadas por uma nostalgia ou um pesar resignado. A postura nostálgica destoava das manifestações predominantes de entusiasmo com o progresso e com os novos tempos, que se reconheciam e se celebravam na ocasião do cinquentenário, mas apontavam também para drásticas mudanças nos últimos anos. O tom de júbilo é predominante na "Edição especial comemorativa do cinqüentenário de Belo Horizonte" da Revista Social Trabalhista, a começar por sua epígrafe: "Belo Horizonte completou 50 anos... e os mineiros orgulham-se de sua capital, resultado de sua capacidade construtiva e de seu gênio realizador!" Contudo, alguns de seus artigos manifestam reservas, e outros clara desaprovação - particularmente de cunho moral - quanto às perdas de valores e hábitos culturais advindos do progresso. O primeiro artigo da "Parte I", já mencionado anteriormente, dedicado à história da cidade, é apresentado como um retrato da "vida citadina, no seu progresso sem ritmo, na sua evolução sem compasso, na sua marcha sem cadência", já insinuando um certo tom ambíguo64. Buscando "condensar numa crônica ligeira [...] certas notas sobre o nascimento e crescimento até os 50 anos, da mais linda cidade da América do Sul, capital e orgulho dos mineiros", concluindo com o denominado "ciclo do arranha-céus", correlato à expansão da "cidade-menina, vivaz, que cresce vertiginosamente". Contudo, o autor lastima alguns aspectos e conseqüências do progresso, principalmente quanto à carência de serviços urbanos, considerados "insuficientes" face à crescente demanda populacional65. Mais 64

Raul Ramalho, "Fragmentos da História de Belo Horizonte", Revista Social Trabalhista, dez. 1947, p. 5-39. 65 idem, p. 34.

47

"penoso ao cronista" era "registrar que a população está hoje menos polida do que há um decênio". A perda da "decantada cortesia do povo mineiro" é atribuída pelo cronista à miscigenação racial advinda da imigração, que fazia crescer a população, tornado-a "heterogênea, com elementos estrangeiros e nacionais, primários e afoutos", corrompendo assim a "boa cepa" do mineiro sertanejo, simples mas solidário. Ainda assim, a excelência do clima parece ao cronista compensar tais danos ao caráter da população mineira. O artigo que segue, completando a "Parte I" da referida edição comemorativa, não compartilha o entusiasmo do anterior, sendo bem mais contundente e pessimista em sua avaliação das consequências do progresso nos hábitos e valores da população belo-horizontina66. Tecendo comparações dos costumes sociais entre "os tempos que já se foram" e os atuais, "Zé de Minas" vislumbra, com acentuado tom lamentoso, um desconcertante quadro dos "tempos que hão de vir ...". Compara, de modo a ressaltar fortes contrastes, hábitos e valores do passado provinciano e pitoresco, caracterizados pela amenidade e solidariedade social, e os novos tempos metropolitanos, marcados pela impessoalidade e pela prioridade dos interesses econômicos sobre os morais. Manifesta-se dentro da mesma temática da decadência dos valores a saudação à capital cinqüentenária de José Mamede Silva, em nome dos "Trabalhadores de Minas

Gerais". O artigo reconhece as consequências

benéficas do progresso, porém com ressalvas: [...] Os arranha-céus, as praças cuidadosamente ajardinadas, o movimento intenso de veículos de diversas espécies, [...] significa, sem dúvida, progresso material, riqueza, luxo e bom gosto de uma sociedade civilizada; todas as grandezas que o trabalho, a técnica e a indústria, realizaram no domínio da matéria, causam na realidade, suprema admiração [...].

66

Zé de Minas, "Dos tempos que já se foram aos tempos que hão de vir ... ", Revista Social Trabalhista, dez. 1947, pp. 39 -44.

48

Admiramos as pontes, os palácios, os soberbos monumentos, os jardins, os templos magníficos das grandes metrópoles, mas lamentamos a miséria que chora nos tugúrios, como resultado de uma situação economico-social desajustadas, atestando a impiedade e a injustiça dos que devoram, num jantar de aniversário, o que sustentaria famílias inteiras durante muitos dia.67

Apesar da veemência de suas críticas às injustiças sociais advindas com a expansão capitalista e sua tecnologia, a questão parece ao autor eminentemente moral - como nos artigos anteriores - e particularmente relativa à perda dos valores cristãos. Outras crônicas publicadas nos jornais da cidade, tratavam o passado sob um olhar nostálgico, em "A história sentimental de Belo Horizonte"68, que tem como o tema os hábitos relativos ao amor e da "fisionomia lírica" das ruas. O autor, menos preocupado com a questão da decadência moral com o advento do progresso, manifesta-se menos pessimista que os anteriores. Sua posição é de uma certa reserva, e mesmo ambigüidade, ao tratar os efeitos do crescimento nos hábitos. Por um lado, aponta a perda dos costumes corteses do passado, por outro louva o asfalto como fator, ou como metáfora, da maior dinamismo das relações sociais. Observamos que, de modo geral, nas apreciações nostálgicas da cidade, tanto na edição comemorativa acima mencionada como em outras publicações da época do Cinquentenário, as perdas lamentadas são relativas a hábitos e valores, não havendo menções reprovativas às transformações paisagem urbana e da arquitetura e da cidade - as quais, por vezes, são até louvadas. Além da constatação, entusiástica ou nostálgica, do progresso da cidade, identificamos uma outra postura nos textos publicados na época do Cinquentenário: a que procura conciliar a exaltação da renovação com a admiração reverente pelos fatos e tradições do passado, compreendendo os ciclo de transformação sociais e formais da cidade em um processo evolutivo, a

67 68

"Salve, capital de Minas!", Revista Social Trabalhista, dez. 1947, pp. 337- 8. Folha de Minas, 12 dez 1947, p. 1-2.

49

cada vez ampliado, que desdobra-se cumprindo os desígnios da construção da Nova Capital, desenvolvendo as condições e potencialidades de sua origem e local, conservando portanto uma identidade fundamental estabelecida no passado. Esta postura, capitaneada pelo historiador Abílio Barreto - cuja obra constituiu o lugar-comum das referências gerais sobre a história da cidade -, apoia-se num exame minucioso da história da cidade, que busca nas suas origens a potencialidade da evolução futura da cidade. Evolução esta caracterizada por ciclos ampliados de progresso, resultado da ação do povo, através do Estado, e que se apresenta como fator de realização da civilização mineira.

ORIGENS E EVOLUÇÃO DA CIDADE "Como nasceu e cresceu Belo Horizonte", "Fragmentos da História de Belo Horizonte", "Um pouco de história", "Como cresce Belo Horizonte", "A nova capital custou ao Estado pouco mais de 20 mil contos", "Resumo histórico de Belo Horizonte (1701-1947)" são alguns títulos de reportagens e ensaios jornalísticos publicados no Cinquentenário, em geral fazendo parte de edições comemorativas da ocasião69. São textos com certa pretensão historiográfica, dedicados, cada um a seu modo, à reconstituição ou divulgação da história da cidade. Essa reconstituição do passado e, particularmente, a rememoração dos episódios da fundação e construção da Nova Capital é um tema freqüente dos discursos sobre a cidade na época do Cinqüentenário. Afinal, comemorava-se um aniversário de uma cidade que, concebida e construída num período relativamente curto e bem definido, contava com uma data de inauguração bastante precisa. 69

"A nova capital custou ao Estado pouco mais de 20 mil contos", Folha de Minas, 12 dez 1947, p. 1-4. "Cinquentenário da capital", Minas Gerais, 12 dez 1947, 2a. secção, p. 1. Abílio Barreto, "Como nasceu e cresceu Belo Horizonte", O Diário, 12 dez 1947, pp. 4-6. Barreto, Abílio, "Resumo histórico de Belo Horizonte, Minas Gerais, 12 dez 1947, 4a secção, p. 1-15 [Versão inicial de Barreto, Abílio. Resumo histórico de Belo Horizonte. BH: Imp. Oficial, 1950].

50

Muitos dos textos publicados na época do Cinqüentenário visam reconstituir e divulgar a história da cidade, desde suas origens, como um percurso de crescimento evolutivo, acentuando a intensidade cada vez maior do progresso da cidade. A cidade é caracterizada, desde a sua ancestral fundação como Arraial do Curral del Rei, por um destino determinado pelas qualidades do meio e realizado pela ação de grandes empreendedores, que promovem o processo civilizador. A reconstituição das origens e do passado da cidade parece-nos cumprir o papel de estabelecer a identidade da cidade, de modo a fornecer um fundo de referência que possibilitasse destacar as transformações assinaladas no ciclo recente - que, como vimos, culminavam naquele momento - e, simultaneamente, inscrevê-las num encadeamento contínuo. Vê-se no seguinte trecho de um artigo comemorativo do Cinqüentenário a aspiração por estabelecer o fio da história, que fornecesse uma tradição ao progresso celebrado: Belo Horizonte tem sua história, uma história singela como a própria Capital, onde se sente em tudo o espírito de sobriedade e recato do mineiro, mas de qualquer forma uma história curiosa, que começa com Silva Ortiz que a fundou e vem até os nossos dias, registrando toda essa soma de trabalhos graças aos quais a metrópole mineira se tornou uma das mais belas, das mais progressistas e das mais importantes cidades do Brasil. [...]70

Assim, desde a colonização, a cidade é celebrada nestes discursos como fadada, por suas condições de origem e localização, a desempenhar um papel geo-político central e impulsionador do progresso do Estado de Minas Gerais. Este papel apresenta-se, nos discursos do Cinqüentenário, dois aspectos: primeiro, o de centro irradiador de civilização intrínseco à Nova Capital, mais freqüentemente associado à sua construção e ao período subseqüente até os anos vinte; segundo, o de centro congregador e concentrador da população e das atividades do Estado, notadamente associado ao período onde se verifica

70

"A nova capital custou ao Estado pouco mais de 20 mil contos", Folha de Minas, 12 dez 1947, p. 1.

51

um crescimento econômico caracterizado como "vertiginoso" e a ascensão da cidade à condição metropolitana, em meados dos anos trinta. Estes aspectos e os seus respectivos atribuições são apresentados de modo a estabelecer uma relação de continuidade e de complementariedade, ou seja, como sendo o último decorrente do primeiro e atingido por ciclos progressivos de transformações. O momento do Cinquentenário é visto então como um ponto de consolidação, isto é, o fecho de um ciclo ao longo do qual teriam sido estabelecidas as condições para a emergência da metrópole concentradora do fluxos econômicos e populacionais do território (Estado), industrializada e em contínua expansão. Além dos aspectos temáticos, cabe também algumas observações a respeito das modalidades dos discursos relativo ao passado da cidade. Pode-se verificar, no tratamento deste tema, a partir da distinção entre memória coletiva e história proposta por Halbwachs71, a convivência de um modo de narração de memórias com um modo de reconstituição historiográfica. Ao lado da recordação dos primeiros tempos da cidade, principalmente quanto aos seus hábitos e costumes

cotidianos,

é

marcante

nos

discursos

do

Cinquentenário

o

reconhecimento da história da cidade e o empenho em reconstitui-la a partir de documentos. De modo geral, a modalidade memorialística ocorre tanto naqueles que constatam as transformações nos novos tempos e lamentam perdas de valores e hábitos do antigos, como naqueles que recorrem às suas lembranças para celebrar o progresso atual da cidade - a exemplo do discurso de Nelson de Sena, visto anteriormente. A modalidade da reportagem historiográfica, amparada por dados estatísticos e fotografias, é preferida por aqueles que visam ressaltar os benefícios do "crescente" e "vertiginoso progresso" da cidade, assim como por aqueles que buscam estabelecer uma continuidade evolutiva ao longo da história da cidade. A apresentação de Abílio Barreto de "Como nasceu e cresceu Belo Horizonte", um artigo publicado por ocasião do Cinquentenário, é bastante clara 71

Halbwachs, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

52

em seu empenho historiográfico: "Não farei mais que um relato fiel e sintético de acontecimentos históricos fidedignamente comprovados"72. Assim, ao lado das reportagens sobre o estado atual da cidade em seu cinqüentenário, vê-se distinguir-se destas textos que se dedicam a "Um pouco de história", ou seja, que buscam demarcar uma diferenciação entre uma cidade do passado e a cidade do presente. Sustentava-se então que a cidade - ainda jovem com seus cinqüenta anos, como avaliam vários artigos - já possuía uma história, da qual se distinguia o seu presente, mas que constituía uma espécie de lastro e essência da cidade, que lhe forneceria a necessária tradição com a qual ingressava na era do progresso. A obra do historiador Abílio Barreto constituía uma referência básica para os artigos sobre a história de Belo Horizonte publicados na ocasião do Cinquentenário - e ainda para a historiografia da cidade até hoje. Tal era objetivo do autor, ou seja, "fornecer aos cronistas e historiadores do futuro seguros elementos básicos para outros estudos sobre a Capital", fazendo sua obra "a coletora e o repositário" de vasta documentação. Além de suas narrativas e comentários, os extensos volumes compõem-se de ampla e variada compilação de estudos e regulamentos oficiais, de reportagens, documentos técnicos, crônicas e de relatos orais, "permanentemente guardados para a história do futuro"73. O primeiro volume de seu Belo Horizonte, Memória História e Descriptiva, intitulado História Antiga, sobre "O Arraial (1701-1893)" e "O Problema da mudança da Capital (1700-1893)", foi publicado em 192874. O segundo volume, intitulado História Média, sobre o "Planejamento, estudo, construção e inauguração da Nova Capital (1893-1898)", foi publicado em 193675. Além destes, o autor publicou diversos textos sobre o assunto, em geral

72

O Diário, 12 dez 1947, pp. 4-6. Barreto, Abílio. Belo Horizonte, Memória História e Descriptiva - História Média. Belo Horizonte: Livraria Rex, 1936, p. 9. 74 Barreto, Abílio. Belo Horizonte, Memória História e Descriptiva - História Antiga. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1928. 75 Barreto, op. cit., 1936. 73

53

por ocasião de aniversários publicados, e alguns na época do Cinqüentenário, sendo um deles, já bastante extenso, ampliado e publicado como livro três anos depois76. Apesar das publicações de Barreto terem predominantemente um objetivo historiográfico, em um artigo publicado em 1936, a propósito do 39º aniversário da cidade, o estilo é o de um memorialista: Vejo-me chegando a um modesto arraial denominado Belo Horizonte, com as suas quatrocentas e poucas casas velhas e centenares de cafuas, [...], lugar esse em que trabalhava, havia um ano, a referida Comissão, edificando a nova Capital. Depois de um labutar insano dessa Comissão [...] vejo a cidade ir surgindo do solo como por encanto, [...].77

O caráter memorialista também se observa em um capítulo da Memória História e Descriptiva, denominado "Aspectos de Belo Horizonte, em fins de 1895, vistos pelo autor deste livro ao chegar"78. Vê-se, pois, conviver no autor, que também era literato, a memória de eventos vividos e a historiografia de fatos documentados, porém a predominância é da última. Os dois volumes acima mencionados, que continham para o autor a "história fundamental de Belo Horizonte (1701-1897)", deveriam ser continuados por um terceiro, relativo à "história contemporânea", que não se realizou. Contudo, a partir de um texto publicado em jornal por ocasião do Cinquentenário, Barreto editou um livro denominado Resumo Histórico de Belo Horizonte (1701-1947), o qual além de resumir os anteriores, apresentava "esquematicamente" o terceiro volume que o autor então pretendia escrever. O tom laudatório e ufano de Barreto, e ainda suas pretensões enquanto historiador da cidade, são claramente manifestados em sua apreciação geral da cidade, na apresentação deste livro: Assim, pois, o resumo que aqui deixo será um índice, um roteiro para o historiador do futuro, e, no momento, será elemento útil às gerações que se vão 76

Barreto, Abílio. Resumo histórico de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Imp. Oficial, 1950. "Pelo 39º aniversário da cidade", Minas Gerais, 12 dez 1936, p. 8. 78 Barreto, op. cit., 1936, cap. IV, pp. 366-374. 77

54

sucedendo, para que formem uma idéia aproximada de como se gestou e se edificou a grande cidade e possam bem compreender o alcance da capacidade criadora, empreendedora e realizadora do povo montanhês, pois a verdade é que Minas através de toda a sua existência jamais realizou no passado e no presente e talvez jamais realize no futuro outra obra que tanto a engrinalde de glórias como esse monumento eterno que é a sua nova Capital.79

A temática da história da cidade sob uma perspectiva evolutiva, freqüente no Cinquentenário, emerge na segunda metade dos anos trinta, época em que ocorrem providências e marcos de transformações nos âmbitos relativos à estrutura, às construções e à imagem da cidade. No Cinquentenário afirma-se a imagem de um ciclo que emerge em meados dos anos trinta, caracterizado por suas mudanças na fisionomia, nos papéis e nos hábitos sociais da cidade. Este ciclo, por sua vez, era inscrito numa cadeia maior, marcada pela criteriosa acuidade da escolha do local quanto às suas qualidades mesológicas e pela enérgica ação da construção, movida por um designo calculado e amplamente executado. Trataremos a seguir dos temas relativos à reconstituição do passado, tomando

como

fio

condutor

os

escritos

de

Barreto,

publicados

no

Cinquentenário, que resumem suas obras anteriores, bem como outros artigos publicados no Cinquentenário, onde vemos a influência do historiador repercutir. Finalmente, examinaremos o que consideramos uma postura conciliatória entre as apreciações entusiásticas e as nostálgicas das transformações da cidade, delineando a história da cidade enquanto um processo evolutivo - postura esta fundamentalmente reconhecida nos trabalhos de Abílio Barreto. No tratamento do tema das origens do local onde se construiu a Nova Capital cruzam-se o encontro da enérgica ação desbravadora dos mineiros fundadores de povoados com a excelência do local. Constitui-se este numa fórmula bastante freqüente nos discursos cinqüentenários e nos seus antecedentes, desdobrada em algumas associações simbólicas que visam 79

Barreto, op. cit., 1950, p. 14.

55

estabelecer a identidade e os destinos da cidade, como algo inscrito em suas origens. Barreto, em sua exposição sobre o Arraial, aponta na formação deste a antecedência das condições da Nova Capital, destacando a ação pioneira do bandeirante fundador na colonização do interior: Em 1701, João [...] Ortiz, entre ousados bandeirantes que penetraram pelo solo mineiro, impelidos pelo sedento sonho de descobrimento de terras, metais e pedras preciosas, aqui chegava, sentia-se atraído e empolgado por esta bela natureza que nos rodeia, apossava desta localidade e lançava as base do arraial de Curral d'El Rei, fundando a sua fazenda do Cercado, [...]. 80

A associação destes termos é explícita num artigo não assinado que abre, à guisa de editorial, um conjunto de reportagens sobre os diversos aspectos da cidade no cinquentenário, publicados no Minas Gerais, jornal oficial do Estado: [...] a velha fibra dos bravos e destemidos homens que penetraram em nossas terras virgens e nelas abriram, a golpes de coragem e astúcia, os caminhos da civilização - rudes e pioneiros de nossa grandeza - repontou com as mesmas virtudes ao se erguer a nova Capital. E se nos primórdios de nossa história foi com a inteligência alerta e o braço rijo que puderam vadear os rios, desbravar as matas e revolver as montanhas, à procura do metal raro e precioso, foi ainda com a inteligência, que tudo dominava, e com o braço, que não cedia ao peso das tarefas mais árduas, que venceram as resistências naturais do velho Curral del-Rei e no anfiteatro de montanhas que circundavam o burgo humilde projetaram a cidade que haveria de ser, cinqüenta anos depois, esta maravilhosa Belo Horizonte, [...].81

A última e longa frase vincula pois a ousadia bandeirante à construção republicana da Nova Capital como uma mesma obra civilizatória, que se prolongava até o presente. O capitão Ortiz, visto como o ancestral fundador do primeiro estabelecimento que origina o Arraial - e, tal como uma crisálida, segundo a metáfora de Abílio Barreto, se transforma na Capital - funda ou consubstancia as qualidades do povo mineiro, bem como de sua Capital, firmando o gesto que caracterizaria o caráter do lugar. A ação do bandeirante,

80 81

Abílio Barreto, "Como nasceu e cresceu Belo Horizonte", O Diário, 12 dez 1947, p. 4. "Cinquentenário da capital", Minas Gerais, 12 dez 1947, 2a. secção, p. 1.

56

conquistadora, colonizadora e civilizadora é, enquanto primordial, "rude"; porém nela já se manifesta a inteligência e a força, bem como o papel civilizador, que irão caracterizar a construção da Capital. Ilustra o artigo acima citado, um retrato do "bandeirante capitão João Leite da Silva Ortiz, primeiro povoador da região em que assenta a capital, num desenho do jovem e brilhante artista Delpino Filho". Segundo Barreto, que também o reproduz, trata-se de um "quadro a óleo, imaginativa de Delpino Júnior, 1947"82. Confeccionado na ocasião do Cinquentenário, provavelmente destinado à exposição comemorativa antes mencionada, o quadro - fruto da livre imaginação do artista - acentua as imagens de equilíbrio, solidez e energia contida, determinação, sobriedade, com que se caracteriza, através da figura do bandeirante, o povo mineiro - como já visto antes, quanto ao discurso do governador Milton Campos. Para este último a Capital incorporaria, como síntese do Estado, as qualidades do "caráter mineiro", sendo o reflexo e o instrumento da civilização mineira em construção no final do século XIX. Vê-se nesse quadro, não apenas a imagem quase mítica do bandeirante fundador, mas uma alegoria do próprio caráter mineiro, bem como, por metonímia, uma imagem primordial da cidade, que ausente no quadro, parece ser vislumbrada pelo olhar do seu ancestral fundador. Para outros discursos cinqüentenários, não apenas "a velha fibra bravos e destemidos" bandeirantes "repontou com as mesmas virtudes ao se erguer a nova Capital", mas também reponta a trajetória e o papel do bandeirante que abandonando o litoral penetra os sertões, extraindo da terra as riquezas. O tema do papel colonizador e civilizador da cidade se repercute em diversas imagens a propósito do seu papel de elemento civilizador e integrador do Estado, sendo notável o uso de termos relativos à conquista e penetração do interior, associados tanto à colonização bandeirante como da construção da Capital, como ciclos de um mesmo processo que, pela ação do homem faz emergir as 82

Barreto, op. cit., 1950, p. 21.

57

potencialidades do lugar e realiza - ou difunde - a civilização em Minas como na exposição de JK sobre suas ações e em diversos outros artigos, dos quais mencionamos o seguinte publicado no Cinquentenário: [...] decidimos fazer rápida busca no passado da cidade para que pudéssemos compará-lo ao presente e, dest'arte, concluir-se, sob hipóteses bem fundadas, o que será esta metrópole incrustada no peito do continente sul-americano como verdadeira pedra preciosa; esta ponta de lança do progresso que penetra o sertão brasileiro numa triunfante arrancada rumo ao Oeste; esta soberba e esplendorosa conquista da civilização que, abandonando o litoral comerciante, constrói a grandeza de uma Nação e dinamiza riquezas em potencial, riquezas que ficaram esquecidas ou abandonadas, desde quando descobertas pelos bandeirantes conquistadores, [...].83

Além da vinculação da fundação bandeirante e da construção da Capital quanto ao papel civilizador, as qualidades mesológicas do local são sempre celebradas. São consideradas por Barreto o motivo do estabelecimento do bandeirante Ortiz, "atraído e empolgado por esta bela natureza que nos rodeia", assim

como elemento determinante

da escolha do local e do sucesso da

Capital, de modo que os motivos da fundação do Arraial parecem prenunciar e predispor a Nova Capital. Buscando sustentar uma origem da cidade ao mesmo tempo mítica e racional, Barreto mostra que as qualidades do local já se revelara aos habitantes do Arraial e sua escolha para a Nova Capital cumpria um "poderoso vaticínio" de um deles: A sua beleza topográfica, a doçura e amenidade do seu clima, a salubridade do seu solo e a sua abundância em materiais para construção com que o dotara a natureza, um dia, em 1829, inspiraram a um dos seus vigários, o padre Francisco de Paula Arantes, [...]: " [...] está situada em campos amenos na extensa planície de uma terra, donde manam imensas fontes de cristalinas e saborosas águas; a atmosfera é salutífera; o clima e a região é temperado; está circundada de pedras e mais materiais de que se podem fazer soberbos edifícios; a natureza criou este lugar para uma famosa e linda cidade, se algum dia for auxiliada esta lembrança."84

83 84

Antídio Almeida Júnior, "Depoimento", Revista Social Trabalhista, dez 1947, p. 3. Abílio Barreto, "Como nasceu e cresceu Belo Horizonte", O Diário, 12 dez 1947, p. 4.

58

Somadas às qualidades do clima, da salubridade, da "excelência das frutas", do povo "ordeiro e bom", Barreto - como tantos outros - celebra "a beleza sublime da localidade" como a pedra de toque do acerto da escolha do arraial, que: sob a majestade de um céu azul, emoldurado pela coloração caprichosa das serranias ondulantes que o cercavam, tinha surpreendente encanto, sobretudo nas luminosas manhãs ou [...] quando o sol poente lhe desenhava na longínqua orla quadros lindos, de cambiantes fantásticas, esse mesmo empolgante e já célebre espetáculo que lhe deu o nome de Belo Horizonte. Fadado a ser metamorfoseado na formosa Capital de Minas, assim veio encontrar Olavo Bilac, em 1893, [...]85.

A questão das condições do meio - como já vimos no discurso de Nelson de Sena - aparece em várias publicações na ocasião do cinquentenário. No artigo "A Medicina em Belo Horizonte", da já mencionada "Edição especial comemorativa do cinqüentenário", E. F. Pacheco reafirma metaforicamente a imagem da fundação inspirada, que perpassa diversos outros textos, configurando uma gênese ao mesmo tempo mítica e racional da origem da Capital: "A nossa Capital tem um acervo tão grande de coisas belas e boas, que nos ficam a impressão de que fados benignos e gênios tutelares presidiram ao conclave que resolveu a escolha de Curral del Rei para local de sua fundação!" O elenco das qualidades da capital apresentado enfatiza às relativas ao meio e, por extensão, ao povo: Clima, proximidade de bons mananciais de água, ar ozonificado, panoramas dilatados, horizontes infinitos, farta extensão territorial para seu crescimento, povo laborioso e unido, instituições beneficientes em profusão, manifestações humanas com cunho característico de progresso, sentimento de alevantado altruísmo, [...].86

85 86

Barreto, op. cit., 1950, p. 41-3. "Parte IX: Medicina e higiene", Revista Social Trabalhista, dez. 1947, p. 229-231.

59

resultado, para o articulista, de uma "harmonia rara entre as atividades humanas e os dons naturais" e constituindo-se nos "fatores de atração irresistível que Belo Horizonte possui". Cabe, portanto, marcar aqui que a freqüente evocação às origens do Arraial e às qualidades do local sustenta o empenho para se atribuir à Capital uma identidade e um futuro modelados e mesmo predestinados pelas condições de sua origem. Assim a construção da Nova Capital

repetiria, de maneira

ampliada, a história ancestral do lugar, porém cumprindo um novo papel adequado ao seu tempo. Verifica-se em diversos artigos a recorrência às origens do Arraial como o marco inicial da cidade de modo a estabelecer-se, a partir deste, um fio da história que lhe daria a continuidade de certas características, as quais constituiriam a identidade da cidade. A evocação das origens da capital confirma e explica o papel colonizador e civilizador, como uma das etapas de uma evolução que assumiria, ao longo da história da cidade até a época cinqüentenária, diversos ciclos, mais ou menos distintos, de uma transformação. À construção da capital, e principalmente, a partir da década de 20, são descritos uma seqüência de ciclos considerados de intensas e crescentes transformações, conforme se verá adiante. Abílio Barreto busca atribuir, portanto, às condições do estabelecimento bandeirante e de seu local, "berço do arraial [...] e crisálida da cidade de Belo Horizonte, capital de Minas", os traços originais e essenciais do caráter da cidade - ou seja, a ação colonizadora acolhida pelas qualidades do sítio87. A metáfora da crisálida enquanto um estádio intermediário entre a lagarta e a borboleta, expressa justamente a condição do arraial enquanto intermediário entre o estado natural, mas prenhe de potencialidades, e o estado civilizado instaurado pela Nova Capital. Em textos de 1936 a 1947, Barreto narra, como uma heróica epopéia, a construção da capital: "considerada então como verdadeira maravilha da ciência 87

Barreto, op. cit., 1950, p. 22.

60

e da arte moderna"88, surgira na visão do historiador-memorialista, "do solo como por encanto" pelo "labutar insano" da Comissão89, "dentro do angustioso prazo de quatro anos improrrogáveis"90 definido pela lei da transferência da capital (1893) - ainda que na sua inauguração não houvesse sido construído o estabelecido pela Planta Geral e pelos seus projetos complementares relativos aos edifícios e obras viárias, cuja conclusão se daria, após diversas adaptações e modificações, em meados da década de 30. Assim como na obra de Barreto, diversos artigos publicados na ocasião do Cinquentenário evocam a construção da Capital em termos heróicos, salientando seu papel como feito civilizador,

bem como

a sua ousadia e

grandiosidade - que teria, como vimos, sua antecedência no Arraial. Uma reportagem da Folha de Minas julgava que "no dia em que Belo Horizonte festeja o seu cinquentenário de fundação nada mais justo que recordar aqueles que traçaram e iniciaram a construção da nova Capital do Estado"91, estampando, em destaque, a reprodução de um quadro que retratava a Comissão Construtora. Trata-se de um quadro pintado naquele ano por Aldo Borgati provavelmente para a exposição comemorativa do Cinquentenário referida anteriormente

- assemelhando-se

uma

fotografia,

sendo

provavelmente

decalcado de diversas outras que vê-se reproduzida por Barreto [1936]. Mostrando em solene formação "os homens que construíram a nova capital" - ou mais exatamente doze deles, dentre chefes e auxiliares, equilibradamente dispostos em torno de Aarão Reis, que sentado, tem a Planta Geral da Nova Capital sob suas mãos, todos olhando para a mesma direção, exceto um deles o quadro, por sua simetria, pelo número e pela disposição dos componentes e pelo caráter quase sagrado que ostenta, lembra A última ceia de Leonardo da Vinci. Se a analogia foi intencional ou não, é difícil determinar. Contudo, é claro o 88

Barreto, op. cit., 1936: 248. Abílio Barreto, "Pelo 39º aniversário da cidade", Minas Gerais, 12 dez 1936, p. 8. 90 Abílio Barreto, "Como nasceu e cresceu Belo Horizonte", O Diário, 12 dez 1947, p. 4. 91 "A nova capital custou ao Estado pouco mais de 20 mil contos", Folha de Minas, 12 dez 1947, p. 1-4. 89

61

efeito sagrado que a solenes poses e a disposição simétrica produzem, de modo que nos sintamos que naquele momento um grande fato naquele momento se instituía. Ressaltando o papel colonizador e civilizador daqueles "engenheiros e outros funcionários técnicos", a legenda da ilustração lembra que eles revolveram as terras do antigo Curral Del Rei, desbravaram matas, sanearam regiões inóspitas e deram cumprimento aos anseios dos mineiros em dotar o Estado de uma Capital à altura de sua grandeza na época e de suas possibilidades no futuro.

Destacando a excelência do traçado, "executado de acordo com os preceitos modernos de urbanismo", e a eficiência dos construtores que "em pouco mais de 3 anos deram cumprimento à sua árdua tarefa"92, a reportagem sintetiza as principais representações da nova Capital que vê-se dispersa por muitos outros textos: o papel civilizador e a ousadia inicial, vocacionado a cidade ao progresso. Como já foi apontado, são pelo menos duas as representações de progresso associadas à capital, verificadas no discurso cinquentenário: a que se refere à ela como instrumento de realização e difusão da civilização, e a que se refere ao seu papel de centro concentrador de atividades econômicas e de população. Ainda que por vezes ambas se confundam, em geral o primeiro papel é associado ao período até pelo menos os anos vinte, enquanto o segundo, é associado ao período daí em diante, mais acentuadamente a partir da metade dos anos trinta - quando demarcam a maioria das reportagens cinqüentenárias o início do ciclo de "crescimento vertiginoso". De uma forma ou de outra, o papel civilizador da capital e sua vocação para o progresso são temas recorrentes no discurso sobre a cidade na época do cinquentenário, cultivando-se e cultuandose uma imagem da cidade que remonta sua própria fundação. Constituem-se numa espécie de razão de ser da cidade, marcando-lhe sua origem e destino.

92

Idem, ibidem.

62

Notamos dois enfoques e dois papéis respectivos na representação do passado da cidade: um, em que os primeiros tempos são apresentados como medida comparativa para os novos tempos de progresso, que apresentam notáveis índices de evolução ou de transformação em relação aos primeiros; no outro, as condições de origens (o local escolhido por suas qualidades mesológicas) e a epopéia da construção é apresentada como fundamento da identidade da cidade e causa do seu fadado progresso. O primeiro marca uma ruptura, um novo ciclo evolutivo, que "surpreende" e ultrapassa as expectativas do primeiro. O segundo sustenta uma continuidade e uma características essencial que atravessa toda a história da cidade e lhe dá seu fundamento e sua essência. A contradição é apenas aparente, se considerarmos que o que se procurava era conciliar e reforçar a permanência da tradição com as mudanças estruturais e fisionômicas que se reconhecia estar passando a cidade. À primeira vista, no Cinquentenário reconhecia-se uma nova forma que transfigurava a antiga;

contudo,

mantinham-se

aquelas

qualidades

distintivas

que

caracterizavam a cidade em sua fundação. Assim, como vemos na periodização formulada por Barreto, a cada ciclo de transformações e crescimento sucede-se outro de amplitude ainda maior. Tal encadeamento visa demonstrar que, a despeito das mudanças que tornavam a cidade a cada vez nova e admiravelmente distinta do estado anterior, mantinha-se aquilo que o gesto fundador continha, ou seja, a criteriosa escolha do local e a potência transformadora do homem em adequa-lo às suas necessidades, através da ação do Estado em concorrência com a iniciativa do povo mineiro. Vejamos como o historiador Barreto narra a "evolução" da cidade nos anos anteriores ao Cinquentenário, em três textos publicados nesta época, que serão analisados conjuntamente por sua semelhança no tratamento do tema93.

93

"Palestra sobre a história de Belo Horizonte", Revista do Instituto Histórico Geográfico de Minas Gerais, vol. II, 1946, p. 60-64. "Como nasceu e cresceu Belo Horizonte", O Diário, 12

63

Reportando a história da "encantadora capital", um deles propõem-se a "recordar como se tem processado a sua evolução em quase dois e meio séculos de atividade, desde o seu berço mais remoto"94. Em outro texto, Barreto propõem-se a examinar as "as principais etapas que teve de vencer para se consubstanciar no que realmente é, em nossos dias, uma cidade sui generis, fascinante, deslumbradora, fadada aos mais imprevisíveis triunfos"95. Numa seqüência de fases que se sucedem em crescendo, a imagem do progresso retumba em grandiloqüentes adjetivos e feitos, atingindo o clímax na época do Cinquentenário. Reproduzo, entremeados, trechos destas publicações que, variações sobre o mesmo tema, expressam a visão ufanista e épica que marca o discurso sobre a cidade no momento do Cinquentenário. Em 1946, Barreto avalia que até 1921, a evolução da cidade foi lenta [...] Mas a partir de 1922 [...] tomou novo e vigoroso surto evolutivo [...]. Entretanto, o período áureo da evolução de Belo Horizonte partiu de 1935, [...]. Desde então, sem solução de continuidade, a cidade passou a adquirir novos aspectos urbanísticos, cresceu vertiginosamente, aprimorou-se, alastrou-se com firmeza e decisão por todos os lados, povoou-se de arranha-céus, foi quase toda pavimentada, engalanou-se com novos bairros elegantíssimos e aprazíveis, palpitou de vida e de animação, tornando-se um dos mais notáveis centros urbanísticos de atividade e de beleza do País.96

Em 1947, o historiador repete aproximadamente os mesmos termos a vitoriosa epopéia do progresso. [...], de 1922 em diante não parou mais o ritmo vertiginoso de progresso da Capital, culminando essa evolução a partir de 1935, quando assumiu as rédeas do Governo Municipal o grande prefeito Otacílio Negrão de Lima, que beneficiou a cidade com os mais notáveis melhoramentos, entre eles a realização da maravilhosa represa da Pampulha em seguida completada e aprimorada pelo não menos dinâmico Prefeito de larga visão que foi o dr. Juscelino Kubitschek

dez 1947[a], p. 4-6. "Resumo histórico de Belo Horizonte (1701-1947)", Minas Gerais, 12 dez 1947[b], 4a. Secção. 94 "Palestra sobre a história de Belo Horizonte", p. 60. 95 "Como nasceu e cresceu Belo Horizonte", p. 5. 96 "Palestra sobre a história de Belo Horizonte", p. 63.

64

de Oliveira. Pode-se mesmo dizer [...] que de lá para cá não obstante os grandes males da ditadura, teve a cidade seu período áureo97.

Para Barreto, "nem mesmo as consequências da hecatombe da Segunda Guerra Mundial (1939-45) conseguiram emperecer-lhe a marcha evolutiva gloriosa", cumprindo o destino fadado ao triunfo a que ele se referira antes98 . Assim, segundo Barreto, apesar da descontinuidade administrativa que seguiuse nos dois anos após a queda de Vargas, enfrentando a "cruel situação financeira que nos legara o fasto período ditatorial", os prefeitos "conseguiram manter e animar brilhantemente o nosso ritmo progressista. E a Capital evoluiu, engrandeceu-se sempre e agora", conclui Barreto chegando ao presente: no Cinquentenário de sua fundação [...] é, enfim, uma cidade modelar que deslumbra os seus visitantes, evaidece justamente os horizontinos, honra e orgulha o povo mineiro e engrandece o Brasil.99

A "vertiginosa evolução da cidade" é, portanto, considerada por Barreto e muitos outros - como um destino irresistível, inarredável e necessariamente conseqüente de suas origens. Admitindo o efeito da instalação da rede ferroviária, a partir de 1922, e, mais recentemente, da rede rodoviária como fatores de crescimento da cidade, para o historiador a "causa fundamental" deste fadado sucesso encontra-se em suas condições iniciais dadas pelo local escolhido para a nova capital, ou seja, as condições do meio, habilmente dirigidas pela ação do Governo ao longo dos anos: a

sua

belíssima

topografia,

a

sua

perfeita

salubridade,

corroboradas

grandemente pela ação brilhante e devotada de seus Prefeitos, no carinho dedicado aos serviços de urbanização da cidade, dotando-a de todos os requisitos reclamados por um grande centro civilizado e culto.100

Cabe aqui notar a sincronia entre as transformações da cidade, registrada pelos discursos cinqüentenários e por outras fontes descritivas, e a investigação

97

"Como nasceu e cresceu Belo Horizonte", p. 6. "Palestra sobre a história de Belo Horizonte", p. 63. 99 "Como nasceu e cresceu Belo Horizonte", p. 6. 100 "Resumo histórico de Belo Horizonte (1701-1947)", p. 14-15. 98

65

e divulgação historiográfica, intimamente associada a postura conciliadora e evolucionista, liderada pelo historiador Abilio Barreto, acima mencionada. Parece-nos haver nesta última a intenção de apresentar uma compensação das perdas apontadas em alguns discursos e uma assimilação das por muitos ditas vertiginosas transformações a uma cadeia evolutiva que tem seu início nas origens da ocupação do local, atravessando diversas ciclos. Em síntese, o Cinquentenário ensejou uma profusa publicação de apreciações e avaliações da cidade, marcada por dois temas recorrentes: - 1) o reconhecimento de uma nova forma e de um novo tempo da cidade, em plena manifestação na época, que se desdobra em alguns tópicos de um discurso relativos à percepção e construção de uma nova fisionomia, nova configuração, novos papéis e novos hábitos; e, paralelamente, - 2) a reconstituição do passado arcaico da cidade e os episódios de sua fundação e construção, como origem da evolução que caracterizaria a cidade. Verifica-se, enfim, uma afirmação entusiástica de uma nova cidade que parecia estar emergindo, onde se identificava um crescente progresso, trazendo consigo mudanças na forma e na vida da cidade, em geral tidas como benéficas, ou pelo menos, inevitáveis. Se na década de trinta os temas centrais eram as obras de remodelação e embelezamento da cidade, as discussões sobre as possibilidades futuras da cidade - tais como no debate sobre a conveniência do asfaltamento e dos arranha-céus - na época do Cinquentenário tem-se do reconhecimento de um novo tempo e de uma nova forma em progresso, contraposta à cidade "de ontem". A ocasião do Cinquentenário é particularmente interessante, pois nela se contempla os primeiros resultados de uma cidade imaginada, projetada e construída já desde a metade dos anos 30, em contínuo processo de empreendimento ao longo dos 40, mesmo que não apresentando um transformação tão acentuada como se desejava ver na época101. Pode-se pois 101

Apesar do grande empenho em apresentar evidências e comprovações da intensidade das transformações e do progresso, através de fotografias e dados estatísticos, alguns estudos sobre o período indicam uma situação de decrescimento dos índices econômicos nos anos

66

delimitar, a partir das análises da época do Cinquentenário, como momento conclusivo do disposto nos planos iniciais, justamente aquele situado nos meados dos anos trinta, quando já se estabelecia, em seus rudimentos, as estruturas e os modos construtivos da metrópole. A partir deste momento, vemos portanto coexistir o empenho em estabelecer-se a história da cidade e a emergência de um novo modo de configuração urbana, abrindo assim um ciclo que, do ponto de vista cinquentenário, atingia então sua realização e visibilidade, enquanto uma nova forma urbana. Em todas as perspectivas que identificamos no discurso sobre a cidade no Cinquentenário, manifestam-se a percepção e o reconhecimento de transformações sociais e na arquitetura da cidade, que remontam a alguns anos e que naquele momento se colocam de maneira evidente a todos os sentidos e de

maneira

irreversível

e

incontestável.

Celebra-se,

entusiástica

ou

ponderamente, ou mesmo lamenta-se, melancolica ou resignadamente, um novo modo de construir, habitar e pensar a cidade, enquanto fato e representação simbólica. Entre a atitude de entusiasmo e nostalgia, verificamos uma outra, que ainda entusiástica com o progresso, o vê como uma evolução progressiva e contínua, bem como busca no passado as origens desta evolução, bem como uma identidade subsistente ao longo das transformações. Esta última perspectiva, claramente assumida e elaborada por Barreto, filia-se às representações do caráter ponderado e determinado do povo mineiro, mostrando sua capital como perfeita expressão deste, como o faz Milton Campos. Conciliadora dos valores da ordem e do progresso, esta visão busca , portanto, a moderação,

tanto ao avaliar a amplitude e os benefícios do

crescimento socio-econômico e as suas repercussões na forma urbana,

quarenta, relacionados, dentre outros fatores, com a II Guerra. Aspectos como o volume das construções e a industrialização da cidade ou dos movimentos demográficos, considerados em seus índices quantitativos, não apontam para o "vertiginoso crescimento", ao contrário os dois primeiros mostram retração no período 1939-45. Tal situação chega mesmo a ser reconhecida na metade da década, porém, ressalvando-se que, a partir de então, tudo se modificaria, nos tempos de paz mundial e de redemocratização nacional.

67

atenuando o impacto das transformações ao inseri-las num processo contínuo e progressivo, bem como ao cultivar os valores e qualidades do passado, como intrínsecos à cidade e condição do seu progresso, estabelecendo um fio de ligação que trespassa a história da cidade. Assim, parece pretender abrandar os excessos do entusiasmo com as transformações do presente, situando-lhe num quadro mais amplo, bem como aliviar e confortar aqueles que manifestam pesar pela perda dos costumes e da identidade da cidade, persuadindo-lhes da permanência destes e das vantagens que o progresso moderado e ancorado nas imagens e papéis fundamentais da cidade. A evocação das origens e do meio, bem como o delineamento de um ciclo evolutiva da cidade, cumprem nesta perspectiva conciliatória um papel fundamental. Além disto, a evocação das origens e do caráter do local, bem como do caráter racional do Plano da Nova Capital, inspiram sutilmente a prioridade necessária

da

ordem,

assim como a admiração pelo crescimento e

embelezamento, reconhecidos na "nova fisionomia urbanística da nossa Capital"102, confirmando a assertiva anterior quanto à precedência da ordem, demonstra sua necessária consequência, ou seja, o progresso, reestabelecendo assim a identidade ameaçada pela "volubilidade arquitetônica" da cidade. Esta interpretação da influencia positivista nos textos de Barreto, evidencia-se na sua conciliação da admiração pelo avanço da civilização e pelo seu progresso com o respeito pela tradição e pela ordem. Assim parecer subsistir a própria influência positivista assumida pelos fundadores da Capital, particularmente por Aarão Reis. Os discursos do Cinquentenário congregam, ou melhor, buscam conciliar, duas distintas representações da noção de progresso, relativas aos elementos que o caracterizariam, aos seus fatores concorrentes e aos principais setores de atividades em que teria lugar. Distinguem-se também quanto ao caráter da

102

Joaquim Ribeiro Costa, "Conferencia na União dos Varegistas de MG" (1940), apud Barreto, op. cit., 1950, p. 318.

68

centralidade atribuída à capital,

pelo conteúdo e pelo sentido das relações

centro-Estado. Sob o domínio da primeira representação de progresso, tem-se o que à primeira vista parece ser um restrito papel político e cultural, isto é, a capital como centro ordenador do território, administração, centro difusor de poder e costumes, civilizador. Associa-se a esta a qualidade do clima e da topografia, bem como a ordenação geométrica do traçado, produzindo um espaço marcado pela racionalidade e pela ordem. A segunda refere-se à cidade como metrópole polifuncional, acentuando o papel emergente como centro de convergência da população e dos recursos econômicos do estado, enfim como cidade comercial e industrial. Tais noções apresentam duas temporalidades distintas: a primeira remontava à

fundação da cidade e se encontrava já

consolidada, enquanto a segunda tem sua emergência insipiente em meados dos anos 30, e parece estabelecer-se, no Cinquentenário, de modo irreversível, embora ainda não completamente efetivada.

As imagens na época do Cinquentenário, da cidade como em intensa transformação e como uma obra em metamorfose e em evolução a partir de seu estabelecimento como capital planejada, levou-nos a remontar ao plano da Nova Capital, buscando compreender como este instituiu os papéis e a forma urbana da cidade e quais eram suas perspectivas de transformações futuras da cidade.

69

2. A Nova Capital: o território e o local.

Desde os Apontamentos históricos de Joaquim Nabuco Linhares [1905], poucos anos após a inauguração oficial da cidade, a questão da mudança da capital tem sido tema recorrente em vários estudos sobre Belo Horizonte. O estudo do tema tem, portanto, uma história que acompanha a própria história da cidade, e as interpretações em torno da

Nova Capital mineira têm sido

elementos concorrentes na própria construção do imaginário da cidade. Afinal, trata-se do problema da origem e da fundação, questão que frequentemente vem a tona ao se tratar da história da cidade, bem como da cidade do presente. No estudo anterior sobre o Cinquentenário vimos que este tema ocorre frequentemente, o que não é surpreendente, pois tratava-se da comemoração do aniversário do próprio evento de fundação da cidade. Identificamos então algumas posturas na percepção do passado e do presente da cidade, das quais destaca-se a tentativa de se estabelecer uma continuidade evolutiva, que ligava o presente e o passado, num momento onde se reconhecia acentuadas transformações na configuração arquitetônica, nos papéis econômicos e nos hábitos da cidade. Vimos também que os trabalhos do historiador Abílio Barreto, amplamente divulgado por artigos e resumos por ele publicados ou através de citações, constitui-se notável referência a todos que escrevem sobre a cidade, por ocasião do cinquentenário, foram fundamentais na construção da idéia da continuidade evolutiva da cidade. É quase desnecessário mencionar a importância de Barreto na historiografia da cidade - a ponto de ser considerado, por um dos coordenadores da mais recente edição de sua obra, como o "maior historiador da cidade". Dedicados ao historiador do futuro, Barreto define sua Memória histórica e descritiva como "história fonte", "coletora e repositária" da documentação da

70

história de Belo Horizonte, tornando-se assim referência para os diversos estudos posteriores sobre a cidade, seja para aqueles que o tomaram como documento ou para aqueles que, mais recentemente, buscam realizar sobre ele uma crítica historiográfica. A despeito destes últimos, prevalece entretanto, a visão da obra de Barreto como uma história fonte, isenta de interpretação1. Contudo, além de simples repositário de documentos e a despeito de sua pretendida neutralidade cientifica, a Memória de Barreto é também uma interpretação da história de Belo Horizonte, norteada por um tema central, o qual já foi referido anteriormente: a idéia de uma evolução progressiva, que desdobra e realiza uma predestinação já presente desde as origens do lugar da Nova Capital, isto é, o Arraial de Curral del Rey. Nesta perspectiva, a construção da Nova Capital e suas transformações posteriores desempenharam para Barreto, um papel civilizador e realizador do progresso, e mais ainda, o papel de "monumento eterno" da civilização mineira, prova "da capacidade criadora, empreendedora e realizadora do povo montanhês". Ao analisar a seqüência das fotografias da Memória, Heliana Angotti Salgueiro observa que ela apresenta uma "questão fundamental: a da metamorfose"2. Como já vimos, a idéia da metamorfose é explicitamente assumida por Barreto, em obra posterior à Memória [1950], ao considerar o estabelecimento do bandeirante Ortiz como "berço do arraial [...] e crisálida da cidade de Belo Horizonte, capital de Minas", associando seu papel colonizador ao papel civilizador da Nova Capital. Um vínculo de continuidade une portanto ao Arraial ao presente, ou seja, o papel civilizador. Sob esta mesma visão, Barreto descreve as sucessivas tentativas de mudança da capital de Vila Rica, no período colonial e imperial, 1

2

Por exemplo, para Maria Auxiliadora Faria, "a pretendida 'neutralidade científica', ancorada na verdade do empirismo, assim também sua pretendida isenção enquanto sujeito do discurso histórico, acabou conferindo à sua obra características de uma crônica, onde do relato ordenado dos eventos e da citação quase enfadonha de documentos não se pode esperar interpretação nem análise crítica do acontecer histórico". Faria, Maria Auxiliadora. "Belo Horizonte, Memória Histórica e Descritiva: À guisa de uma análise crítica". In: Barreto, Abílio. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva. História antiga e história média. Edição atualizada, revista e anotada. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro,1995, v. 1, p. 29. Salgueiro, Heliana Angotti. "A 'volta' da história". In: Barreto, op. cit., 1995, v. 1, p. 39.

71

como passos da "evolução da idéia", estabelecendo uma continuidade entre estas várias tentativas, deste a intenção mencionado pelos Inconfidentes de mudança da capital. Mais do que uma simples fonte de informações, pode-se atribuir a Barreto um papel na construção do imaginário da cidade. Ao reconstituir as origens do Arraial do Curral del Rey, Barreto traça a partir deste uma linha genealógica e épica da Nova Capital, destacando o papel dos bandeirantes como precursores da civilização mineira. O mesmo papel civilizador é conferido por Barreto à Nova Capital, como um desdobramento da origem da civilização mineira sob as circunstâncias modernizadoras da República. Abílio Barreto compõe uma epopéia onde a necessidade histórica da civilização mineira de mudar de Vila Rica sua capital encontra seu lugar na "natureza rica em elementos de vitalidade" do Arraial de Belo Horizonte3, tal como previsto por vários "vaticínios". Assim, "a idéia do maior cometimento que havia de glorificar o Estado de Minas", a despeito dos seus adversários, "marcha para sua realização"4 pela ação de valorosos e tenazes "propagandistas" e realizadores da idéia - cujos retratos são dispostos em sua obra como um tipo de galeria dos pais fundadores - e, não menos importante, pela ação da "mão do destino"5. Como veremos mais adiante, a visão da Nova Capital proposta por Barreto respalda imagens e papéis atribuídos a esta desde a sua fundação.

Buscando discutir as condições, os critérios e os objetivos da mudança da capital mineira e a escolha do local da nova capital, examinaremos adiante outras

interpretações

mais

recentes

sobre

o

assunto,

voltando-nos

particularmente para a questão das relações entre o local da nova capital e o território do estado.

3 4 5

Barreto, op. cit., 1995, p. 272. Idem, p. 296. Idem, p. 432.

72

A mudança da capital mineira, pretendida na Província e efetivada com a República, está ligada, para Paul Singer à fragmentação econômica do território em regiões cujas atividades se voltavam para mercados externos ou locais, mantendo escassas relações entre si, e não vinculadas a um centro que estabelecem conexões entre elas6. Nestas condições, uma nova capital era vista como o meio de estabelecer a unidade econômica e política do território, o que Singer julga "um ilusão", pois toma "o efeito pela causa", isto é, supõe que um novo centro político faria com que a economia se polarizasse em torno dele. A ausência de integração econômica de Minas deve-se, para o autor, às características da ocupação e da formação econômica do território, bem como pelas suas características geográficas. Já desde sua origem, no final do século XVII, a capitania das Minas Gerais teve sua colonização motivada pela exploração aurífera, em grande parte concentrada na região central - onde diversos povoados se formaram, e em um deles, Vila Rica, foi estabelecida a Capital. A princípio, estando as áreas mineradoras distanciadas da ocupação litorânea por grandes vazios e suas atividades diretamente voltadas para o mercado externo, tanto o escoamento de sua produção como seu abastecimento se davam predominantemente pelo Rio de Janeiro, o que não favorecia a ocorrência de relações econômicas entre as regiões da capitania, as quais pudessem se vincular a um centro7. Contudo, como observa o autor, com o desenvolvimento da mineração na região central, as regiões vizinhas foram sendo ocupadas com atividades agropecuárias e artesanais, voltando seus excedentes para o mercado daquela região8 - que assim poderia ser considerada um centro econômico. O esgotamento da mineração provocou, a partir do último quartel do século XVIII, uma dispersão de sua crescente população da capitania, sendo ocupadas novas terras com atividades agropecuárias. Como a zona de 6 7 8

Singer, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana. São Paulo: Nacional, 1977. Idem, p. 199-201. Idem, p. 202-204.

73

mineração não oferecia mais mercado para a produção das demais regiões, em cada região desenvolveram-se atividades agrárias e artesanais, voltadas para subsistência ou para mercados locais ou vizinhos, inclusive de outras províncias9. A capitania "perde sua identidade, tornando-se um mero conglomerado administrativo de áreas economicamente autônomas"10. A partir da metade do século XIX, a cafeicultura para exportação desenvolve-se crescentemente na zona da Mata, pela expansão da área de cultivo do vale do Paraíba (RJ), e posteriormente, no Sul de Minas e no Triângulo, vinculadas à São Paulo. A cafeicultura dinamiza a economia destas regiões, promovendo a implementação das ferrovias (principalmente a partir de 1870) e tornando Juiz de Fora "o grande entreposto cafeeiro da época", diretamente vinculado ao Rio de Janeiro11. Estas transformações, segundo Paul Singer, acentuam as forças centrífugas e reforçam o dilaceramento da província, que se divide cada vez mais profundamente em regiões autônomas, estanques entre si, e que se entrosam com economias circunvizinhas, agrupadas ao redor de pólos de crescimento exteriores a Minas Gerais.12

Nestas condições, Singer vê na mudança da capital efetivada no final do século, após a Proclamação da República - bem como nas tentativas anteriores ocorridas na Província - uma pretensão ilusória ou mesmo paradoxal de dotar o Estado de um centro "de uma economia que não o podia ter, [...], já que não havia qualquer conexão econômica entre as várias regiões"13. Avaliando 9

10

11 12 13

Na região ao sul, a criação leiteira; região norte, a pecuária, a oeste, a pecuária e a suinocultura. Além desta, deve-se mencionar o algodão, que ocorre dispersamente, abastecendo uma "atomizada e interiorizada indústria domiciliar de tecidos" e fábricas de tecidos. Quanto a siderurgia mineira do século XIX, ocorrem várias forjas de pequeno porte e alguns empreendimentos de funcionamento instável, mas não atingem uma produção em larga escala. [Paula, João Antônio. "Dois ensaios sobre a gênese da industrialização em Minas Gerais: a siderurgia e a indústria têxtil". In: II Seminário sobre a economia mineira, Belo Horizonte: CEDEPLAR/FACE/UFMG, 1983, p. 50-73]. Singer, op. cit., 1977, p. 205. Além disso, a constituição geográfica do território reforçava, para Singer, o isolamento entre as regiões, pois a zona central (mineradora), situada numa região montanhosa e divisora de águas, acabou se tornando um obstáculo à comunicação entre as diversas regiões que foram ocupadas a partir dos vales dos rios que se originam naquela zona. Idem, p. 210. Idem, p. 213. Idem, p. 218.

74

ironicamente tal pretensão como "o toque mágico que distinguiria a eleita, ao redor da qual se uniriam as demais por liames administrativos que, não se sabe por que meio, se tornariam também liames econômicos", Singer a julga como contraditória às condições estruturais da economia mineira, e sugere que a que a mudança da capital teria se dado mais em função do acirramento das disputas regionais, cujo desfecho, a escolha por Belo Horizonte, parece ao autor ter sido fruto de circunstâncias conjunturais. Pode-se reconhecer na análise de Singer duas limitações, relacionadas entre si. Ela subestima a possibilidade da nova capital estar vinculada a um projeto - ou pelo menos a um empenho - de transformação econômica do Estado, seja no sentido de equilibrar as desigualdades regionais que colocavam em risco a integridade política do Estado, ou de apoiar a exploração de ferro na região central - como propõem outros estudos examinados adiante. Além disto, o modelo explicativo - adotado por Singer - da formação da cidade capitalista por acumulação dos excedentes do campo, concentrando as atividades comerciais e posteriormente as industriais, adequado à cidade européia, não se ajusta tão bem às cidades da colonização americana14, originadas mais de iniciativas externas do que emergentes da econômica local. Como observa Pereira Queiroz, na colonização do território brasileiro - que num sentido amplo ocorre além do período de dominação portuguesa - a fundação de povoados surge da "necessidade de implantar um mínimo de disciplina em áreas outrora desertas, estendendo até elas os elementos de administração indispensáveis ao entrosamento com a sociedade local"15. Assim, a fundação das cidades, ainda que básica à exploração econômica, nem sempre decorrem 14

A especificidade destas cidades, que surgem como uma base político-militar para a colonização, é reconhecida por Singer, porém ele considera que seu papel econômico "era essencialmente estéril" - a despeito de reconhecer que, além de sediar a administração e os instrumentos de dominação política e ideológica da colonização, a cidade "desempenhava um papel estratégico [...] na repartição do excedente" explorado. Singer, Paul. Economia política da urbanização. São Paulo: Brasiliense, 1976. 15 Pereira Queiroz, Maria Isaura. "O coronelismo numa interpretação sociológica". In: Fausto, Boris (org.). História Geral da civilização brasileira - III. O Brasil republicano. São Paulo: Difel, 1985, 1o. vol., p.180.

75

do resultado do desenvolvimento das forças produtivas do território, mas é, em geral, condição para o estabelecimento neste território de atividades econômicas integradas à uma economia mais ampla, seja da metrópole ou do próprio Estado independente - o que Singer parece não ignorar. Contudo, ao julgar como estruturalmente insustentável a nova capital se constituir no centro da economia mineira, a análise de Singer relega - ou pelo menos considera ingênua ou irrelevante - o projeto da mudança da capital como um fator de reorganização econômica e política do território. Esta questão é tratada em alguns estudos posteriores ao de Singer, que reconhecem no processo decisório da mudança da capital uma política de reorganização, política ou econômica, do território do Estado, bem como identificam os papéis e imagens atribuídos à nova capital neste processo. Estes estudos serão aqui abordados como ponto de partida para o aprofundamento dessas questões, particularmente quanto ao papel da nova capital enquanto centro do território do Estado de Minas, e quanto aos requisitos que a nova capital deveria cumprir. Resende vincula, assim como Singer, a decisão da mudança da capital às lutas regionais, isto é, entre os "novos e expressivos grupos econômicos da Mata e no Sul", emergentes do desenvolvimento da cafeicultura, e as forças políticas da "decadente zona de mineração", que mantiveram o poder político após a proclamação da República. Contudo, a autora busca demonstrar que a decisiva posição assumida por Afonso Pena, enquanto presidente da Província, na questão da mudança deveu-se ao seu empenho na superação dos desequilíbrios regionais em favor da unidade política do Estado - como condição de maior participação de Minas Gerais no governo federal, preparando assim a centralização oligárquica consolidada posteriormente16.

16

Resende, Maria Efigênia Lage de. "Uma interpretação sobre a fundação de Belo Horizonte". Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 39, jul. 1974, p. 129-161.

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Conforme outro estudo da mesma historiadora, o federalismo instituído pela República ampliou a ação do Estado, para o qual convergiram diversas demandas: "as regiões cafeicultoras pleiteavam maior amparo governamental na solução da carência de mão-de-obra; as regiões estagnadas reivindicavam estradas de ferro para dinamizar a produção local"17. Excluídas do governo que assume após a Proclamação, os grupos da Mata e do Sul - as zonas de maior importância econômica e demográfica, de onde provinham a maior fonte de receita do estado, os impostos sobre as exportações - reclamavam a liderança política, bem como insinuavam ameaças separatistas18. Reivindicavam também maior participação dos municípios nos impostos neles arrecadados, bem como a transferência da capital de Ouro Preto - as duas principais questões da Constituinte Mineira de 1891. Nas discussões e medidas governamentais em torno da mudança da Capital na Constituinte de 1891 destacaram-se: a posição assumida pelo governo do Estado - sob o domínio político da zona central - expressa em mensagem do governador Augusto de Lima favorável à Belo Horizonte; as reivindicações da zona da Mata e do Sul por alguns locais nestas situados; e a proposição de Afonso Pena de mudança da capital para a região do vale do Rio Doce, a leste do Estado. Esta última visava, para Resende, a promoção da economia do Norte através de um esquema exportador centralizado na nova capital, ligada aos portos do Espírito Santo, contrabalançando o existente na Mata e no Sul e introduzindo assim econômico interno"19.

um "fator de correção do desequilíbrio

Em vista a falta de consenso quanto à localização,

disputada por vários interesses regionais, e mesmo colocando uma ameaça separativista, conciliou-se momentaneamente os interesses, e pela Constituinte de 1891 foi aprovada a mudança da capital, cuja definição quanto à localização

17

Resende, Maria Efigênia Lage de. Formação da estrutura de dominação em Minas Gerais: o novo PRM (1889-1906). Belo Horizonte: UFMG/PROED, 1982, p. 26. 18 Idem, p. 51 (Cf. Resende, op. cit., 1974, p. 139). 19 Resende, op. cit., 1974, p. 137-143 e 147-149.

77

deveria ser tomada posteriormente, pelo Congresso20. Logo após, em uma seção extraordinária do Congresso Legislativo Mineiro é promulgada uma lei adicional à Constituição, definindo os locais a serem estudados: Belo Horizonte, Paraúna, Barbacena, Várzea do Marçal e Juiz de Fora21. As localidades atendiam às diversas forças políticas regionais: as duas primeiras, ao Centro e Norte, e as três seguintes, à Mata e ao Sul; não sendo contemplada, entretanto, a proposição de Afonso Pena. Ainda segundo Resende, o fortalecimento dos grupos políticos locais e regionais, resultante da autonomia política municipal instituída pela Constituição de 1891, implicou em uma "multiplicidade de lideranças" em constantes conflitos, dificultando "no plano estadual, a formação de fortes grupos de poder". Estas disputas, além de ameaçarem a integridade política do Estado - fragmentada pelos grupos de poder local em torno dos coronéis - expressavam-se em divergências que enfraqueciam a representação mineira no Congresso Federal. Entre 1891-1892, os conflitos do então Presidente do Estado Cesário Alvim com Floriano Peixoto culminaram na renúncia do primeiro, em fevereiro de 1892, assumindo seu vice, até a eleição de Afonso Pena, empossado em julho de 189222. Nestas condições, a atuação de Afonso Pena como Presidente do Estado foi, para Resende, marcada pelo empenho em superar o desequilíbrio econômico interno, bem como de garantir a unidade política necessária ao fortalecimento de Minas no plano federal. É sob seu governo que é nomeada a Comissão d'estudo da localidades indicadas para a nova capital, sob a direção do engenheiro Aarão Reis, que apresenta seu relatório em junho de 1893, aprovando Várzea do Marçal e Belo Horizonte, com preferência pela primeira. 20

Idem, p. 139-142. Lei Adicional n. 1, de 28 de outubro de 1891, apud Resende, op. cit., 1974, p. 155. As duas primeiras localidades situam-se na zona central, no vale do rio das Velhas, sendo a segunda mais ao Norte, aproximadamente no centro geométrico do território do Estado; as duas seguintes, no extremo sul da zona central (Campo das Vertentes), bem próximas das zonas da Mata e do Sul, e a última na zona da Mata. 22 Resende, op. cit., 1982, p. 80-81. 21

78

Contudo, em face da conclusão algo ambígua do relatório do engenheiro-chefe, bem como de pontos de divergência nos relatórios parciais da Comissão, mantém-se o impasse entre a primeira, do interesse do bloco Mata-Sul, e a segunda, do bloco Centro-Norte. A questão das condições de salubridade das localidades, que constava como exigência da decisão constitucional, polarizou os intensos debates que se travam, mas para a historiadora, Da leitura das atas da sessão extraordinária de Barbacena, fica a nítida impressão de que se tratava uma discussão na qual a maioria dos congressistas disputava coisa muito diferente, que não se situava no plano de determinar qual era de fato o melhor local a ser escolhido para capital23.

Analisando a composição da representação que finalmente aprovou Belo Horizonte, por pequena margem de votos, Resende observa que as polarizações regionais permaneceram, de modo geral, inalteradas após os estudos e debates. Os que votaram por Belo Horizonte eram predominantemente do Centro e do Norte, além de alguns aliados destes de outras zonas, enquanto os que votaram contra eram da Mata, do Sul e do Triângulo, além de uma parte dos representantes da zona dos Campos. Contudo, para Resende, a atuação de Afonso Pena parece ter desempenhado "papel decisivo na luta por Belo Horizonte", tendo em vista, além outros indicadores, a atuação do senador José Pedro Drumond, seu substituto e correligionário, que apresentou ao Congresso "um bem preparado estudo" onde concluía pela superioridade de Belo Horizonte. Sua posição é compreendida por Resende como motivada por um interesse que ultrapassa o regionalismo, ou seja, a busca do equilíbrio econômico como condição da unidade política do Estado: Evitar que a capital fosse colocada em zona estrategicamente favorável à Mata e ao Sul, era evitar o agravamento do desequilíbrio econômico, numa fase em que o

separativismo,

originado

desse

mesmo

desequilíbrio,

ameaçava

constantemente a unidade política do Estado24.

23 24

Resende, op. cit., 1974, p. 145. Idem, p. 149.

79

Em síntese, Resende entende a fundação de Belo Horizonte como resultado de um "plano de equacionamento" das tensões políticas e do desequilíbrio econômico entre as regiões, onde as reivindicações da Mata e Sul pela transferência da capital de Ouro Preto são contrabalançadas pela proposta por Belo Horizonte. Assim, a posição de Afonso Pena em relação à questão é considerada como o início da formação da centralização oligárquica que se consolidará pelo domínio do PRM a partir de 1897. Os estudos de Le Ven25 e do PLAMBEL apontam para um aspecto além do jogo político e da busca do equilíbrio das forças políticas e econômicas do Estado - tal como propõe Resende - presumindo uma "intenção de industrialização implícita no projeto de mudança"26 - a partir de algumas indicações neste sentido, bem como consideram, de maneira mais ampla, Belo Horizonte "um novo instrumento de organização do espaço mineiro"27. Contudo, sua argumentação se dá mais no sentido de demonstrar a presença da atividade industrial nas primeiras décadas da cidade - questionando o estereótipo da cidade de funcionários - não tratando de como esta intenção é pensada no projeto de mudança da capital - como avalia Ozório28. Este último autor compreende a nova capital como um projeto de "modernização conservadora" da elite dominante da região do Centro, em reação às "ameaças das novas elites da periferia do sistema cuja força política era devida ao crescimento econômico provocado pelo ciclo do café"29. Para Ozório, este projeto, ainda que não tenha assumido uma formulação sistemática, visava a exploração do ferro da zona central, a ser exportada pelo litoral

25

26 27 28

29

Le Ven, Michel Marie. As classes sociais e o poder político na formação espacial de Belo Horizonte, 1893-1914. Belo Horizonte: DCP/FAFICH/UFMG, 1977 (Tese de Mestrado em Ciência Política). PLAMBEL. O processo de desenvolvimento de Belo Horizonte: 1897-1970. Belo Horizonte: Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropolitana - Plambel, 1979, p. 36. Idem, p. 24 Ozorio Coelho, Paulo Henrique. La creation de Belo Horizonte. Jeu et enjeu politiques, Grenoble: Universite des sciences sociales de Grenoble, 1981 (tese de doutorado em etudes urbaines et aménagement), p. 17. Idem, p. 25 [tradução nossa].

80

capixaba, beneficiando também a região Leste e Norte. Buscando reverter a "dependência das regiões centro e norte à zona cafeeira" e superar, no plano político federal, a "situação periférica [de Minas] em relação ao Rio de Janeiro e a São Paulo", a elite do centro contaria assim com condições para que "a negociação política com as oligarquias da região cafeeira, a longo prazo, se fizesse em situação de igualdade e não em posição de dependência econômica"30. Para este autor, a escolha de Belo Horizonte foi a última vitória da oligarquia governante do centro que, prevendo a ascensão das forças do Sul, garantiu assim sua presença na composição e na centralização oligárquica em torno do PRM, que pôs fim ao instável domínio do Centro sob a liderança de Cezário Alvim e às disputas locais entre os coronéis31. Se por um lado Ozório aponta o caráter conservador do projeto da mudança da capital, por outro lado Julião demonstra a recorrente expectativa da nova capital como fator de progresso e do estabelecimento da civilização industrial, assinalada nos diversos discursos do período da mudança e dos primeiros anos da capital. Associava-se a esta expectativa a depreciação do passado - representado por Ouro Preto e pelo antigo Arraial - frente ao qual a Nova Capital apresentava-se como instauradora de novos padrões de civilização. Entretanto, Julião nota também a presença de atitudes contraditórias à anterior, seja a nostalgia do estilo de vida do passado rural, seja a imagem da cidade e da multidão como focos de degeneração e perturbação social, e ainda um terceira, oposta à anterior, ou seja, a da cidade vazia e estritamente administrativa, incapaz de cumprir seu desígnio como fator de progresso32. Para a autora, frente a "essa forma de vida indefinida e híbrida" - a cidade moderna e industrial e a bela cidade dos funcionários - refletida nas imagens contraditórias

30

Idem, p. 105 [tradução nossa]. Idem, p. 137 32 Julião, Letícia. Belo Horizonte: Itinerários da cidade moderna (1891-1920). Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 1992 (Dissertação de Mestrado em Ciências Políticas). O assunto é tratado ao longo do capítulo "A cidade imagem" [pp. 9-58]. 31

81

acima mencionadas, as opiniões se dividiam então "entre o fascínio e o temor diante da possibilidade de um desenvolvimento inédito e insuspeitável"33. Apesar

das

divergências,

de

modo

geral,

os

trabalhos

acima

mencionados privilegiam a questão da localização como objeto de disputa das forças políticas ou como fator de promoção de um projeto de modernização da economia mineira. Outra perspectiva é apontada no estudo de Maria Ester Reis34. Se na interpretação de Resende as discussões sobre a salubridade como critério escolha da localização da Nova Capital são considerados como pretextos para as disputas regionais, o trabalho de Reis busca nesta questão os elementos que qualificariam a Nova Capital. Para a autora, se "os interesses de grupos políticos foram envolvidos na escolha", os argumentos mobilizados nas discussões não devem ser subestimados, pois "esses interesses não poderiam ser vencedores sem que estivessem sustentados por determinados critérios"35. Identificando nos debates sobre a escolha do local a grande importância dada à salubridade, particularmente quanto ao "clima e seus efeitos sobre a população"36, Maria Ester Reis, apoiando-se na noção de biopolítica formulada por Michel Foucault, conclui que "o poder político tem no clima um ponto de intervenção, na medida em que este fator é capaz de agir sobre a natureza da espécie humana"37, ressaltando também o respaldo científico que buscava-se dar à questão. Para Reis, o novo espaço projetado pelo governo do Estado emergente com a República visava "construir a capital para o governo da população". O federalismo instituído pela República impunha a necessidade do Estado "aglutinar

as

diversas

forças

políticas/sociais

agora

dispersas

sem

a

33

Idem, p. 52. Reis, Maria Ester Saturnino. A cidade "paradigma" e a República: o nascimento do espaço Belo Horizonte em fins do século XIX. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 1994 (Dissertação de Mestrado em Sociologia). 35 Idem, p. 4. 36 Idem, p. 6. 37 Idem, p. 13. 34

82

centralização imperial"38. No tratamento de diversas questões enfrentadas pelo governo estadual nesse momento - principalmente as relativas à transição do trabalho escravo ao trabalho livre - Maria Ester Reis verifica que se colocava, de forma acentuada, a questão do governo da população, ou seja, "a necessidade de mecanismos capazes de 'gerir' essa mesma população". Neste sentido, seu estudo destaca a questão da salubridade como ponto central das discussões sobre a escolha do local, ou mais especificamente, o "clima e seus efeitos sobre a população"; assim, dentre as divergências de opiniões verificadas sobre o local, a historiadora considera que "inconcebível, contudo, seria uma defesa que não levasse em consideração as condições de salubridade da localidade"39. O critério do clima e da salubridade, considerado pela autora como determinante nas discussões, reflete a preocupação de seus efeitos sobre o comportamento da população. Mesmo reconhecendo a existência de outros critérios, Maria Ester Reis empenha-se em demonstrar que o critério clima e salubridade teria sido mais importante que a questão da localização no território e das disputas regionais, considerando irrelevante a questão da centralidade. Seu objetivo é demonstrar, portanto que a importância conferida ao clima devese a uma estratégia bio-política de poder sobre a população, como parte do empenho em sustentar a governabilidade no novo regime instalado pela República federativa. Assim sendo, tal critério foi tornado o objeto de um "esquadrinhamento" desempenhado pelo saber científico concorrente nos Estudos das Localidades, no qual concorriam a medicina social e a engenharia40. A questão da salubridade é, sem dúvida, um tema insistentemente presente nos estudos e discussões a respeito do local da Nova Capital. Contudo, sob o nosso ponto de vista, parece coexistir com a questão da localização no território no sentido de chegar-se a uma centralidade geo-política e econômica, a 38

Idem, p. 14-15. Idem, p. 9 40 Idem, p. 81. 39

83

ponto de tornar-se difícil estabelecer uma prioridade dos critérios. No primeiro tópico que se segue, abordaremos como foram tratadas estas duas questões nos argumentos em favor da mudança da capital mineira, considerando terem sido estas duas qualidades, isto é, a salubridade e a centralidade da Capital, os temas centrais dos estudos relativos à escolha da localidade. Vale observar que, assim como o clima, a centralidade como fator de integração e desenvolvimento do Estado é uma qualidade freqüentemente atribuída à Capital, nas apreciações posteriores sobre a mesma - como vimos nos discursos sobre a cidade na época do Cinquentenário. Além disso, a partir das questões levantadas nos estudos acima mencionados, buscamos compreender os processos pelos quais a nova capital se vincularia às políticas públicas de organização econômica do território. Apesar da ausência de um plano oficial especificamente dedicado a este assunto, algumas indicações nos discursos do governo nas décadas de 1890 e 1900 possibilitaram-nos chegar à hipótese de que a organização do território era pensada

pelo

governo

como

um

processo

orgânico

e

evolucionista,

impulsionado e dirigido pelo Estado. Nesta concepção de progresso, que pressupunha a superação de etapas sucessivamente caracterizadas por crescente diferenciação e complexidade, o desenvolvimento da agricultura e a colonização do território eram considerados prioritários e condição para o desenvolvimento futuro das atividades industriais e de extração mineral. Desta maneira, o principal papel inicialmente destinado à capital seria o de diretor da organização econômica do território, expresso na metáfora da capital como cabeça, bem como o de ponto de partida para a colonização moderna, isto é, através das ferrovias e de uma economia integrada, a partir da agricultura e passando gradativamente para atividades mais complexas. Encontramos assim na noção de progresso vigente na época da construção da capital - ou seja, do progresso enquanto evolução gradativa e acumulativa, ao mesmo tempo preservando e assentando-se em certos 84

aspectos do passado e produzindo paulatinamente novas formas - uma fórmula que parece explicar a contradição das imagens apontada por Julião entre a expectativa de progresso e os temores quanto aos seus efeitos. Trata-se, em resumo, da conciliação positivista proposta por Comte entre a ordem e o progresso, que parece ser ampla e difusamente compartilhada pelos atores, políticos e técnicos, da construção da Nova Capital, e que, aplicada à cidade, resulta na imagem de sua constante e gradual metamorfose dirigida ao progresso, mantendo-se porém um destino e uma essência herdada do passado. Esta imagem - que, como vimos, caracteriza as obras do historiador Abílio Barreto e outros textos da época do Cinqüentenário - parece-nos fundamentar o projeto político e técnico da construção da capital no final do século XIX. A questão dos papéis atribuídos à Nova Capital nos projetos de organização do território mineiro após o federalismo republicano, assim como a visão de progresso que orienta a definição desses papéis, será pois objeto do segundo tópico deste capítulo.

2.1. Centralidade e salubridade nos estudos dos locais Ao longo do século XIX, algumas propostas de mudança da capital da Província de Minas, então sediada em Vila Rica, colocavam a questão da localização da capital no território. Apesar de não efetivadas, estas propostas demonstram a estreita relação da localização da capital com a própria definição do território da Província. Ou seja, localizar a capital não pressupunha um território dado por estabelecido e consolidado, mas um território a ser constituído e mesmo passível de uma redivisão. Em 1842-44, o presidente da Província Francisco José de Souza de Andréa, considerando a capital insatisfatória quanto às comunicações com o território, apontava para a necessidade de sua mudança. Seu empenho é mais 85

ambicioso, pois pretendia a própria redivisão do território do Império, da qual resultaria uma província composta pela parte leste de Minas e pela região litorânea do norte do Rio de Janeiro ao sul da Bahia, a qual exigiria uma nova capital41. A proposta evidencia a fragilidade da unidade política da Província, frente ao problema da reorganização do território do Império e dos movimentos separatistas42, e talvez pretendesse orientar a economia desta nova província para a exportação. Sem indicar uma localidade, Andréa preconizava que as capitais, ou chefes lugares de qualquer divisão de terreno devem ser nas posições mais vantajosas não só às comunicações internas e externas dos seus habitantes, como de preferência nos lugares em que mais interesses se jogarem; e quanto ser possas próximas ao centro desse país [...].43

Além de ressalvar que os "últimos meios de comunicação [...] dispensam o rigor desta última condição", pode-se depreender da opinião de Andréa que a centralidade não é simplesmente geométrica, mas relativa às circunstâncias aos "interesses" diversos que nele "jogarem", às condições de circulação e à sua vizinhança - ou seja, é geopolítica e econômica. A localização da capital, ainda que central, teria preferencialmente como fatores as injunções de um território que, para Andréa, deveria ser redefinido. Pode-se concluir que a centralidade não se colocava em termos geométricos, mas como um equacionamento dos vetores geopolíticos e econômicos, relativa aos pólos internos e externos ao território do Estado, ao equilíbrio dos seus interesses. Localizar a capital implicava reorganizar ou mesmo reconstituir o território do Estado. Em 1851, o presidente provincial José Ricardo de Sá Rego propôs a transferência da capital para Mariana ou São João del Rei. Segundo sua opinião, 41

Ou seja, que "compreendesse, por exemplo, toda a costa do mar entre Campos [RJ] e Belmonte [sul da Bahia], e a parte desta Província entre os rios Jequitinhonha, das Velhas, Paraíbuna até o Paraíba, e por este até o mar. É esta uma divisão sonhada, para a qual ficaria fora de propósito uma Capital neste lugar [Vila Rica]". Andrea, Francisco José de Souza Soares de, "Falla dirigida à Assembléia Legislativa Provincial de Minas Geraes na abertura da sessão ordinária do anno de 1843", apud Gravatá, Hélio. "Contribuição Bibliográfica sobre Belo Horizonte. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, ano XXXIII, 1982, p. 20. 42 Cf. Singer, op. cit., 1977, p. 214. 43 Andrea, "Falla dirigida ...", apud Gravatá, op. cit., p. 19.

86

a primeira, próxima de Vila Rica, não acarretaria em nenhuma alteração nas relações entre a capital e as outras regiões da Província; a segunda, por "sua feliz situação, a amenidade de seu clima, a fertilidade de seu solo, a disposição para facilitar os transportes em toda a circunvizinhança da cidade e sua maior proximidade da ação do governo geral", parece ser sua preferida44. Consideravase, pois, tanto num caso como noutro, a localização relativamente a polaridades geopolíticas, seja da província ou a do centro do governo do Império. A última proposta do período imperial, a do deputado provincial Padre. Paraíso em 1867, considerando a mudança da capital como uma "medida de salvação", também evocava o papel da capital no equilíbrio do Estado, ainda que pleiteando um "lugar mais central": "a povoação de Jequitibá, margem do rio das Velhas" - que podemos reconhecer como sendo o centro geométrico da Província.

Também

justificada

pelas

"vantagens

a

uma

fácil

e

boa

administração", a proposição pretendia superar "o atraso completo em que nos achamos quanto às vias de comunicação, o esquecimento calculado desse vasto, imenso e fertilíssimo território, que se chama norte"45, incentivando a navegação do rio das Velhas e do São Francisco. Ainda que recorrendo ao critério da centralidade geométrica, a nova capital era considerada sobretudo como fator de alteração dos "destinos" da Província, redefinindo sua economia e integrando seu território, desempenhando portanto um papel na própria constituição deste. Estas propostas de mudança da Capital, divergentes quanto às localidades indicadas, assemelham-se ao considerarem a configuração do território como definida por polaridades diversas e desiguais - e não como uma superfície homogênea. A questão da centralidade não se colocava pois como um problema meramente geométrico, mas como resultado de um cálculo de

44

José Ricardo de Sá Rego, "Relatório que à Assembléia Provincial da Província de Minas Gerais, apresentou na Sessão ordinária de 1851, [...]", apud apud Gravatá, op. cit., p. 21. 45 Agostinho Francisco Paraíso (padre), "Discurso" [1867], apud Barreto, op. cit., 1995, v. 1, p. 288-9.

87

interesses, levando-se em conta o própria papel da Capital na definição do território. Ainda que sob outros aspectos estas propostas de mudança diferem da efetivada na República, elas têm em comum com esta última a busca de uma centralidade, entendida não em termos geométricos, mas como resultado de um equilíbrio de forças geopolíticas e econômicas, questão que, como veremos mais adiante, esteve bastante presente nos estudos e discussões sobre a Nova Capital. Cinco dias após a Proclamação da República dos Estados Unidos do Brasil, o governo federal outorga plenos poderes aos governadores dos Estados de reordenação administrativa do seu território, decretando que a eles competiam "estabelecer a divisão civil, judicial e eclesiástica do respectivo Estado e ordenar a mudança de sua capital para o lugar que mais convier"

46.

Segundo Resende, o decreto federal veio ao encontro de uma antiga aspiração pela mudança da Capital, principalmente por parte da Mata e do Sul, insatisfeita com Ouro Preto, reduto dos antigos políticos do Império47. De fato, dias antes da promulgação do decreto, a Câmara Municipal de São João del Rei já havia proposto que para esta cidade - localizada entre a região da Mata e do Sul fosse transferida a capital do Estado48.

Entretanto, será no Centro que se

desencadeará uma intensa campanha em favor da mudança da capital para o antigo Curral del Rey, promovida pelo Clube Republicano da localidade e pelo jornal O Contemporâneo, de Sabará, em cuja comarca localizava-se o arraial. O primeiro governador do Estado, Cesário Alvim (25/11/1889 10/02/1890), declarara-se contrário à idéia de mudança da capital49, e seu sucessor, João Pinheiro (12/02/1890 - 19/07/1890), embora tivesse se manifestado favorável à mesma, não chegou a tomar medidas neste sentido50. 46

47 48 49 50

Governo da República dos Estados Unidos do Brasil, Decreto n. 7, de 20 de novembro de 1889, Dissolve e extingue as assembléias provinciais e fixa provisoriamente as atribuições dos governadores do Estado, Art. 2º, § 1º, apud Gravata, op. cit., p. 23. Resende, op. cit., 1982, p. 74. Cf. Resende, op. cit., 1974, p. 138-9. Barreto, op. cit., 1995, p. 297. Idem, p. 297-299. Idem, p. 300.

88

Contudo, atendendo pedido encaminhado pelo Clube Republicano do Arraial, João Pinheiro assinou, em abril de 1890, decreto que "muda a denominação do Curral del Rei, município de Sabará, para Belo Horizonte"51. Visando livrar o nome do arraial do estigma do Império e manifestar seu apoio ao novo regime, a iniciativa dos curralenses assinala o início de uma campanha em vista à mudança da capital para esta localidade. A atitude do governador sugere também que já cogitava construir neste local a Nova Capital, pois um ano depois outro governador assumiria a intenção de instalar em Belo Horizonte a Nova Capital do Estado52. Três meses depois deste episódio, o Cel. Júlio César Pinto Coelho envia ao Governo do Estado informações sobre o "Arraial do Belo Horizonte" acompanhadas por uma "estatística" elaborada pelo Clube Republicano do arraial - onde conclui que o local tinha, "a par de tantas vantagens, uma salubridade que nada deixa a desejar! Está, portanto, talhado este lugar para a futura capital do grande Estado de Minas". As diversas vantagens do local eram: - proximidade da Estrada de Ferro Central do Brasil, terrenos e materiais propícios à construção, bem como solos próximos em condições de prover o abastecimento da população, e, principalmente, "excelente água, [...] em quantidade suficiente para uma população de mais de 30.000 almas, sendo fácil, se preciso for, aumentar o suprimento à vontade". Além disto, destaca Coelho,

51 52

Decreto n. 36 de 12 de Abril de 1890, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 1, p. 232. De acordo com Barreto, tal suposição ocorreu na época, contudo ele não acreditava em tal hipótese: "o ato da mudança de nome não se relacionava com o caso em apreço e o governo não se inclinava por esta ou aquela localidade segundo cremos" [Barreto, op. cit. 1995, v. 1, p. 315]. Esta convicção é compatível com a imagem que o historiador compõe da escolha da capital como cumprimento de um destino ou de uma inevitável necessidade histórica da civilização mineira. Segundo Barreto, "João Pinheiro, a princípio, não concordou com a mudança pedida, sob o fundamento de que esta viria criar dificuldade à administração em seus primeiros dias de novo regime" [idem, p. 231], o que entretanto indica uma relação da mudança de nome com a transferência da capital, que o governo julgava prematura tratar naquele momento.

89

"o aspecto geral é essencialmente aprazível à vista, bem justificando o merecido nome de Belo Horizonte"53. Ainda que as qualidades do local relacionadas por Coelho não estivessem classificadas sistematicamente, pode-se identificar, ao longo de seu relatório, diversas observações relativas à salubridade. Além do "clima temperado", o relatório destaca que os terrenos são "perfeitamente escoados e arejados, isentos de pântanos, charcos e alagadiços" e que "todos os cursos d'água têm a necessária declividade para que as águas corram sempre desimpedidas". A impermeabilidade dos solos e a conseqüente facilidade de escoamento das águas, apontadas aqui serão aspectos de grande interesse nos estudos posteriores realizados para a escolha do local da Nova Capital, tal como veremos adiante. No mesmo ano de 1890, o jornal O Contemporâneo, de Sabará, publica artigo, assinado por "Civis", apoiando a "propaganda patriótica, feita em favor da mudança da Capital". Assentando-se em argumentos já lançados anteriormente, o artigo afirma que o arraial de Belo Horizonte, "situado no centro deste Estado, [...], contém em si as condições indispensáveis para que seja uma grande capital modelada conforme todas as exigências quanto à higiene, topografia, clima, riquezas naturais e uberdade do solo"54. Dentre outros dos vários artigos publicados pelo jornal em campanha por Belo Horizonte, destaca-se um em particular, preocupado em ressaltar que as qualidades do local se impunham acima de qualquer interesse local. Ponderando inicialmente não ser "daqueles que concordam com a mudança da capital, [...], pois o Estado não se acha por enquanto em condições de fazer grandes despesas", mas reconhecendo que "a

53

Júlio César Pinto Coelho, "Arraial de Belo Horizonte" [datada de 10 de julho de 1890], Anuário de Minas Gerais. Belo Horizonte, v. 6, n. 1, 1918, p. 512-519, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 1, p. 234-5. 54 Civis, "Mudança da Capital", O Contemporâneo, Sabará, 29 jun. 1890, apud Magalhães, Beatriz de Almeida & Andrade, Rodrigo Ferreira. Belo Horizonte, Um espaço para a república. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1989, p. 50.

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maioria dos mineiros [...] apóia aquela mudança", o articulista pretende livrar sua conclusão de qualquer suspeita: fico certo de que os homens da ciência, depois de estudarem as localidades para a mudança da Capital darão preferência ao Belo Horizonte, sendo esse o juízo imparcial de um pobre roceiro, porém conhecedor de todas as localidades do Estado e grato ao povo Ouro-pretano [...].55

Vê-se portanto urdir-se uma campanha em favor de Belo Horizonte como uma aspiração dos cidadãos mineiros comuns, buscando apoiar-se no conhecimento destes das qualidades do local, que esperavam ser confirmadas pelos "homens da ciência", e, enfim, resultar na decisão do Estado. Com efeito, os critérios mencionados nesta campanha teriam notável persistência nos estudos posteriores, seja a salubridade resultante dos fatores mesológicos (clima, constituição do terreno e aspectos hídricos), a centralidade do local no território do Estado, bem como seus recursos para construção e abastecimento. Vê-se aqui anunciado em favor de Belo Horizonte, o critério que um ano depois seria incorporado na decisão oficial de 1891 - a salubridade - além de outros aspectos como a centralidade, a beleza do local e a estimativa da população inicial da capital em 30.000 mil habitantes, que serão tratados e respaldadas pelo discurso científico da Comissão de estudos da Nova Capital [1893]. Tratava-se naquele momento de observações enunciadas por cidadãos mineiros - um "coronel", "civis" ou um "pobre roceiro", e não por especialistas na questão da construção de cidades: médicos e engenheiros, profissionais que no século XIX se ocupavam dos problemas urbanísticos. A salubridade e a centralidade, enquanto argumentos favoráveis ao local, parecem ser conceitos típicos da mentalidade da época. Apoiam-se estas observações, que não podem ser ainda consideradas científicas, num saber sobre a construção das cidades, cujos conceitos reproduzem conceitos hipocráticos da salubridade dos lugares, preceitos platônicos relativos à 55

M.V., "Mudança da Capital", O Comtemporâneo, Sabará, 9 nov. 1890, p. 2, apud Gravatá, op. cit., p. 9.

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localização central, e as recomendações de Aristóteles, na Política, sobre a localização das cidades. Adiantamos aqui que estes conceitos - muito prezados pela idade clássica (moderna) da Europa até o século XVIII - serão admitidos nos estudos científicos para a escolha da nova capital, reelaborados sob o conceito positivista da evolução acumulativa do saber científico. No mesmo ano de 1890, em que se desenvolve esta campanha por Belo Horizonte, o governo do Estado de Minas ainda que evitasse assumir claramente posição quanto à transferência da capital - provavelmente pela instabilidade política do período imediatamente posterior à Proclamação da Republica56 e pelas disputas locais57 - tomava providências quanto à questão, pois em novembro de 1890, o engenheiro Herculano Veloso Ferreira Pena apresentou um parecer encomendado pelo governo sobre a "Escolha do local para a mudança da Capital do Estado de Minas", conclusivo por Belo Horizonte58. A condição de centralidade foi, segundo o relatório do engenheiro, uma decisão prévia ao exame dos locais, estabelecida em "conferência" com "o governo e alguns dos mais conspícuos promotores dos interesses públicos", onde "tratou-se como primeira condição a atender-se, a da colocação da capital em ponto mais central do que o atual, não tanto no sentido geométrico do termo, que, a meu ver, não tem grande importância, mais sim em relação à maior facilidade de comunicações com os diferentes centros de interesses criados e a criar, de modo que a resultante oferecesse a maior soma possível de vantagens aos interesses agrícolas, industriais e políticos do Estado de Minas, considerados em seu conjunto59.

Cuidando de esclarecer não se tratar do "centro geométrico" do território, mas um centro relativo à comunicação com outros centros numa situação em movimento, Pena recorre à noção de resultante, que na Mecânica Clássica ou Newtoniana - disciplina na qual certamente o engenheiro era versado - significa 56

No período entre 15/11/89 e 16/06/91 sucederam-se cinco governadores nomeados. Barreto, op. cit., 1995, v. 1, p. 304. 58 Herculano Pena, "Parecer" [23 de novembro de 1890], O Movimento, Ouro Preto, 12 abr 1891, p. 1, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 1, p. 307-313. 59 Idem, p. 308. 57

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"a força que é a soma vetorial de todas as que agem sobre um corpo"60, ou seja, relativa às forças num sistema de coordenadas. Da referência aos "centros criados e a criar", pode-se inferir ter o engenheiro em vista um sistema dinâmico, o qual a nova capital modificaria, ou seja, a nova capital deveria ser considerada em função das forças presentes na configuração dos sistemas de comunicações existentes, sendo também um fator de produção de novas configurações destes sistemas. A análise das comunicações exposta por Pena - respaldando a região escolhida, ou seja, "a parte do rio das Velhas compreendida entre a cidade de Sabará e a povoação de Traíras" - delineava uma grande rede de ligações que atingia dimensões quase continentais. Através de ligações ferroviárias concluídas, em construção e em estudos, bem como de ligações fluviais, a região tornaria-se para o engenheiro, uma "passagem natural, senão forçada, da grande artéria da rede de comunicações, pelo interior, desde o extremo-norte do Brasil até a capital federal e Estados do Sul", e mesmo até "as repúblicas platinas". Destacava também o engenheiro que no sentido transversal (LesteOeste), delineava-se um eixo de ligações ferroviárias e fluviais passando pelo vale do rio das Velhas, desde os portos de Vitória [ES] e de Caravelas [BA], até o vale do Rio Grande e "em pouco tempo" até Goiás61. Formava esta ampla rede de ligações e centros - "criados e por criar" - o sistema de forças, cujo âmbito ultrapassava o Estado do Minas, no qual encontrou-se a "resultante" no vale do rio das Velhas. Deve-se observar que estas forças relacionavam-se a um projeto de intensificação da ocupação do interior do país através das ferrovias e da navegação, onde caberia à Nova Capital - ela própria um novo centro - um papel básico na propulsão e organização desta ocupação62.

60

Aurelio Eletrônico, versão 1. 32, Nova Fronteira, 1994. Herculano Pena, "Parecer", apud Barreto, op. cit., 1995, v. 1, p. 308-9. 62 A tendência de interiorização do desenvolvimento mineiro foi considerada posteriormente, no relatório que subsidiou a definição do local, como fator favorável à localização da Nova Capital em Belo Horizonte, ainda que não como condição prioritária, tal como no relatório de Pena. 61

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Avaliando um elenco de oito localidades da região delimitada inicialmente, o engenheiro Pena descartou, dentre outras, Sete Lagoas que, apesar de suas "excelentes condições topográficas" e "capacidade para o desenvolvimento de uma cidade maior do que qualquer das grandes capitais européias", oferecia dificuldades quanto ao abastecimento de água. Já Belo Horizonte, "sem ter a vastidão do planalto de Sete Lagoas", pareceu-lhe mais indicada pelos seus recursos de abastecimento e pela sua salubridade. Portanto, depois da "primeira condição", a da centralidade, os critérios do abastecimento e da salubridade se impuseram sobre as condições topográficas de construção, particularmente do sistema viário urbano, bem como sobre as possibilidades de expansão da cidade - aspectos em relação aos quais Sete Lagoas mostrava-se superior. Fundamentado neste parecer, o Governador Augusto de Lima chega a lavrar decreto transferindo a capital para Belo Horizonte, mas recua frente às pressões63. Abrindo mão das prerrogativas concedidas pelo decreto federal, o governador delega a decisão para o Congresso Constituinte de 1891, enviando a este, na ocasião de sua instalação, mensagem favorável a "uma nova capital", afirmando que "nenhum outro lugar reúne maior soma de condições para o fim em vista do que o planalto denominado Belo Horizonte"64. A Comissão encarregada do assunto, dispondo de outro parecer favorável à Belo Horizonte65, propõe a mudança da Capital para o Vale do Rio das Velhas,

63

Jornal de Minas, Ouro Preto, 3 abr 1891, p. 1, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 1, p. 316. Congresso Constituinte. Anais: ata da instalação do Congresso Constituinte do Estado de Minas Gerais aos 7 de abril de 1891. Ouro Preto: Imprensa Oficial, 1896, p. 25, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 1, p. 317. 65 Trata-se do parecer do engenheiro (e ex-vice-governador) Domingos José da Rocha, que incumbido de estudar Paraúna e Belo Horizonte, ambas na zona central (vale do Rio da Velhas), apresenta apenas parecer sobre a última, concluindo ter esta "área na qual pode-se desenvolver uma vasta cidade". Domingos José da Rocha, "Relatório apresentado ao Governador do Estado de Minas Gerais sobre Belo Horizonte, datado de Ouro Preto, 16 de maio de 1891, apud Gravata, op. cit., p. 16. Ver também Domingos Rocha, "Parecer", Minas Gerais, Congresso Constituinte de 1891, Anais, Ouro Preto, Imprensa Oficial, 1896, p. 260, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 1, p. 322-3, 326 e 330 (n. 218). 64

94

sendo também apresentadas diversas outras propostas66. Diante da falta de consenso quanto à localização, disputada por vários interesses regionais e sob a "ameaça separativista", é aprovada, pela Constituição Mineira de 1891, "a mudança da capital do Estado para um local que, oferecendo as precisas condições higiênicas, se preste a construção de uma grande cidade"67. A exigência explicita a condição da salubridade como de reconhecida importância, mas esconde - e revela - a tensão em torno da questão da centralidade, que voltará a ser considerada nos estudos posteriores para a localização da Nova Capital. Posteriormente, em outubro de 1891, como já mencionado, uma seção extraordinária do Congresso Legislativo Mineiro promulgou lei adicional definindo os locais a serem estudados: Belo Horizonte, Paraúna, Barbacena, Várzea do Marçal e Juiz de Fora. Transcorre-se mais de um ano, em meio de uma tensa situação política no Estado e no País68, até ser nomeada a Comissão d'estudo da localidades indicadas para a nova capital, sob a direção do engenheiro Aarão Reis, que apresenta seu relatório em junho de 1893, aprovando Várzea do Marçal e Belo Horizonte, com preferência pela primeira. Esta Comissão foi composta

pelo

engenheiro-chefe



citado,

por

cinco

engenheiros

respectivamente encarregado de cada localidade e por um médico, encarregado dos "estudos sobre os climas e as condições higiênicas das cinco localidades mineiras indicadas para a nova Capital".

66

Art. 117, Aditivo ao ante-projeto da Constituição do Estado proposto pelo Deputado Augusto Clementino da Silva e assinado assinado por seis dos onze componentes da comissão, apud Resende, op. cit., 1974, p. 133. 67 Minas Gerais, Constituiçào Política do Estado de Minas Gerais, Ouro Preto, 15 de junho de 1891, Disposições transitórias, art. 13, apud Gravata, op. cit., p. 26. 68 O período 1889-97 é políticamente conturbado. O fortalecimento dos grupos políticos locais e regionais, resultante da autonomia municipal instituída pela Constituição, implica em uma "multiplicidade de lideraças" em constantes conflitos, dificultando, "no plano estadual, a formação de fortes grupos de poder". Entre 1891-1892, soma-se a ameaça sepatista da Mata e do Sul aos conflitos do então Presidente do Estado Cesário Alvim com Floriano Peixoto, que culminam na renúncia do primeiro, em fevereiro de 1892, assumindo seu vice, até a eleição de Afonso Pena, empossado em julho de 1892. Resende, op. cit., 1982, p. 80-81.

95

Segundo as Instruções fornecidas pelo governo do Estado de Minas, a Comissão d'estudo deveria estudar as localidades indicadas, "tendo-se em vista o estabelecimento de uma cidade de 150 a 200 mil habitantes", segundo os seguintes critérios: 1º. as condições naturais de salubridade; 2º. abastecimento abundante de água potável; 3º. os esgotos e conveniente escoamento de águas pluviais; 4º. as facilidades oferecidas para a edificação e construção em geral; 5º. garantia de um farto abastecimento dos produtos da pequena lavoura indispensáveis ao consumo diário; 6º. a iluminação pública e particular; 7º. as condições topográficas em relação à livre circulação dos veículos e ao estabelecimento de carris urbanos; 8º. ligação ao plano geral da viação estadual e federal; 9º. a despesa mínima, finalmente, que exigirão as instalações mínimas indispensáveis para o regular funcionamento da nova capital69.

Portanto, os estudos científicos dos engenheiros e médicos mobilizados pela Comissão compartilham critérios e avaliações dos estudos anteriores, aprofundando-os e legitimando-os na forma de um inventário mais extenso e sistemático. Contudo, os relatórios trazem alguns novos elementos, discutindo noções anteriores, ainda que não as recusando de forma absoluta - por exemplo, o médico, em seu relatório, chega a colocar certas discussões a respeito dos fatores mesológicos e microbacterianos de salubridade. De modo geral, as questões são examinadas partindo-se de fundamentos do saber clássico sobre a cidade e rediscutidas à luz de conceitos científicos modernos. No conjunto dos relatórios, e particularmente na conclusão do engenheiro-chefe, duas questões, como já assinalamos, são notoriamente relevantes: a questão da salubridade e a questão da posição ou da centralidade - enquanto um ponto de equilíbrio de um sistema de forças e não enquanto centro de um espaço geométrico. Além destas, a aptidão topográfica para o estabelecimento de uma "grande cidade", bem como a viabilidade técnicofinanceira da construção também são consideradas.

69

"Instruções", apud Barreto, op. cit., 1995, v. 1, p. 338-9, citadas em suas frases iniciais.

96

A Comissão de Estudos procedeu de uma análise do particular para o geral, ou seja: estudou cada localidade separadamente, segundo diversos critérios, e todas as localidades segundo o critério do clima e das condições higiênicas. O Relatório do Engenheiro-chefe resumiu esses estudos, comparou e classificou as cinco localidades segundo cada critério e, finalmente, apresentou suas conclusões. Nesse Relatório o primeiro item - "condições naturais de salubridade" - foi decomposto em seus diversos aspectos concorrentes, na análise das localidades: em relação à posição geográfica, à altitude, à configuração topográfica, à natureza do solo e do sub-solo e regime das águas superficiais e subterrâneas, à climatologia, à nosologia, e, finalmente, aos melhoramentos que convenha adotar para garantir, ou modificar tais condições naturais, à medida que for se desenvolvendo a futura população local70.

Nestas observações - que ocupam quase a metade de seu relatório e que será tema central das discussões posteriores sobre a escolha do local - pode-se reconhecer como principais fatores da salubridade as condições mesológicas, tal como estabelecidas pelos princípios hipocráticos, admitidos por Aristóteles em sua Política. Em seu tratado sobre "Os Ares, as Águas e os Lugares", Hipócrates estuda os efeitos dos elementos naturais (exposição aos ventos, natureza das águas e do solo) sobre a constituição física e emocional, a saúde e a disposição moral dos habitantes71. As recomendações hipocráticas são corroboradas pelo clássico tratado sobre a Política, de Aristóteles, onde, versando sobre a "localização da cidade", o filosofo considera decisivo o aspecto da salubridade, definida pela "influência do ar e da água". Para ele, a localização deve permitir a exposição da cidade aos ventos benéficos e da proteção aos ventos nefastos, condições resultantes da orientação do sítio e de seu relevo72, sendo

70

Reis, Aarão. Comissão d'estudo da localidades indicadas para a nova capital - Relatório apresentado a Affonso Pena, presidente do estado, jan-mai. 1893. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1893, "Relatório do Engenheiro-chefe", p. 14. 71 Martin, Roland. L'urbanismme dans la Grèce antique. Paris, A.&J. Picard, 1974, p. 17-18. 72 Aristóteles. Política. Brasília: Editora da Unversidade de Brasília, 1985, p. 245.

97

considerado mais conveniente os sítios mais íngremes. Outros aspectos da escolha do sítio apontados por Aristóteles são o abastecimento de água e as condições relativas às atividades administrativas e militares. Quanto a este último, ressalta sua dependência da forma de governo da cidade: cidadelas, ou seja, fortificações concentradas situadas em cumes, são mais

favoráveis à

monarquia ou à oligarquia, enquanto as cidades planas mais adequadas à democracia; à aristocracia seria preferível "várias posições fortificadas esparsas". Outras recomendações aristotélicas, relativas ao tamanho da cidade e à disposições dos estabelecimentos públicos, serão examinadas mais adiante, ao tratarmos da Planta da Nova Capital. No conjunto dos relatórios da Comissão de Estudos, é uma preocupação central a análise da formação físicas dos terrenos que favorecessem uma boa circulação dos ventos e das águas, fatores, aspectos que remontam as recomendações hipocráticas. Destaca-se principalmente a importância dada à impermeabilidade dos solos e a ausência de alagamentos, promovendo o fácil escoamento das águas fluviais e pluviais e dos esgotos e evitando-se emanações resultantes de matérias orgânicas em decomposição. A importância dada aos terrenos favoráveis ao movimento dos ares e das águas, evitando-se a estagnação dos fluídos - fonte dos temidos miasmas - mostra clara vinculação com as estratégias higienistas intensamente adotadas na segunda metade do século XVIII na Europa, fundada nos ensinamentos hipocráticos da Grécia antiga, revistos pela importância assumida pelo movimento dos fluidos, induzidas pelas descobertas de Harvey sobre a circulação sanguínea73. Vê-se também, nos relatórios Comissão d'estudo da localidades indicadas para a nova capital, a presença da recente microbiologia, aplicada nas análises bacteriológicas e no inventário das doenças ocorrentes nas localidades, questões estudadas pelo médico da comissão, mas que pouco peso teriam no parecer final e na decisão. No próprio relatório do médico José Ricardo Pires de 73

Corbin, Alain. Saberes e Odores. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 47-8 e 119-122.

98

Almeida74, o tratamento da salubridade sob o ponto de vista mesológico, ou seja, dentro dos princípios hipocráticos, apresenta maior relevância. Apesar de aplicar uma "análise físico-química e bacteriológica das águas [...] e das poeiras atmosféricas" - um "processo moderno", como ressalta Reis - e de realizar um levantamento das "moléstias mais freqüentes nas localidades percorridas", o médico pautou sua classificação das localidades mais por critérios mesológicos, segundo os princípios hipocráticos, do que por critérios microbiológicos. Conclui que das localidades estudadas, "sobressai de muito em relação às condições higiênicas a cidade de Barbacena, pela sua colocação em lugar elevado", por sua "atmosfera límpida, transparente" e por "seu solo seco"75. Considerando a luminosidade e a exposição à luz solar como o principal fator da salubridade de um lugar, deduz "que tanto mais serão expostas as localidades quanto maior for sua altitude, e quanto mais desafogada estiver". Conforme observara antes, Barbacena, além de "banhada por brisas constantes e regulares e varrida periodicamente pelos ventos do quadrante sul", apresentava, "pela sua exposição direta aos raios solares" decorrente de sua altitude, uma "atmosfera diáfana e pura, e conseguintemente isenta da ação terrível do paludismo, que - nos lugares baixos e inundados - tanto perturba a marcha das moléstias todas"76. Em

segundo

lugar

coloca

Belo

Horizonte,

por

seu

clima

"inquestionavelmente mais temperado que o das demais localidades"77. Contudo, alerta para a necessidade de medidas de controle do bócio, moléstia que observa nesta localidade, sobre cujos perigos ele discorre extensamente, chegando a questionar: "havendo onde escolher lugar em boas condições [...] valerá a pena aproveitar o Belo Horizonte, que exige para o seu saneamento

74

"Relatório dos estudos sobre os climas e as condições higiênicas das cinco localidades mineiras indicadas para a nova Capital desse Estado, pelo Dr. José Ricardo Pires de Almeida, médico-higienista da Comissão, 1893", in Reis, op. cit., 1893, Anexo F. 75 Idem, p. 86. 76 Idem, p. 20-2. 77 Idem, p. 87.

99

essa medida extrema?"78. Várzea do Marçal é colocada em terceiro lugar, já que nesta "o solo é úmido, com lençol muito superficial"79, apresentando portanto os aspectos opostos aos que levaram-no a concluir pela superioridade de Barbacena. Apesar da divergência de Reis quanto à classificação das localidades feita pelo médico, ambos partilham das referências à tradição hipocrática, buscando somá-las a outros conceitos mais modernos. Além disto, não é apenas quanto às noções hipocráticas que vemos a recorrência a noções do pensamento clássico nos critérios da escolha do local80, - ainda que estas noções sejam somadas ou revistas à luz de conceitos mais modernos, em um esforço de assimilação e conciliação. Adiantamos que, na questão da localização e mais especificamente sobre a importância da centralidade, a referência à tradição clássica pode também ser notada, ainda que, da mesma maneira quanto à salubridade, são mobilizados outros conceitos que procuram considerar a centralidade não mais sob um ponto de vista estritamente geométrico, conforme as recomendações platônicas, mas sob a consideração da centralidade segundo os conceitos de sistema de forças e suas tendências de movimento. A questão da salubridade é de importância indiscutível na escolha da localidade da Nova Capital, fato evidente já no próprio artigo 13 das disposições transitórias da Constituição de 1891, que decidiu a mudança da capital - como vimos anteriormente. O tratamento das questões ligadas às condições higiênicas pela Comissão d'estudo [1893] demonstra fartamente esta preocupação. É a condição consensual em meio a disputas regionais pela localização. Contudo, antes do decisivo artigo acima mencionado, identificamos a importância da questão da localização geográfica, e sua prioridade sob o local, como no

78

Idem, p. 27 Idem, p. 87. 80 Além deste ponto, a recorrência à herança clássica é notável tambem quanto à configuração urbana e arquitetônica da Nova Capital - como se verá adiante. 79

100

relatório de Herculano Pena, visto anteriormente. Além disto, no relatório da Comissão de Estudos, após extensas considerações em torno da questão da salubridade, é em consideração ao tema da centralidade e do equilíbrio de força que Aarão Reis dá seu parecer final. Como vimos, a despeito das questões de salubridade serem bastante presente nos Relatórios, não se pode desprezar a questão da localização geográfica, como faz Maria Ester Reis81. Sem dúvida, o clima é um parâmetro considerado como eliminador de localidades sob esse aspecto consideradas inconvenientes, mas é extremamente difícil saber até que ponto o argumento era utilizado com fins de defesas de interesses regionais. Que o argumento seja relevante, sem dúvida é indicador de que tais preocupações eram centrais para a época. Contudo, na escolha da localidade da Nova Capital, diversos outros argumentos são mobilizados. O problema se torna inexistente, se ao invés de pretendermos concluir pela prioridade de um critério sobre o outro, admitirmos a convivência e a importância de ambos. A análise das discussões e estudos indicam um enorme esforço de conciliação em torno do que seria o melhor possível frente as diversas condições, interesses e pareceres técnicos, apoiando-se na tradição clássica, revista a luz de conceitos científicos modernos. A questão da centralidade é prioritária no parecer do engenheiro Samuel Gomes Pereira, encarregado dos estudos sobre a localidade de Belo Horizonte, que, mencionando o relatório anterior do engenheiro Herculano Pena, entende que a localidade, "pela sua posição", reunia as melhores condições para sediar a Nova Capital: será Belo Horizonte um ponto forçado da grande artéria que tem de ligar o norte com o sul da República e o ponto central das ramificações para todo o litoral e para as repúblicas do Prata e do Pacífico, [...] oferece a maior soma possível de vantagens aos interesses agrícolas, industriais e políticos do Estado de Minas.82

81 82

Reis, Maria Ester, op. cit., p. 8-10. "Relatório dos estudos feitos em Belo Horizonte, pelo engenheiro civil Samuel Gomes Pereira, 1893", in Reis, Aarão, op. cit., 1893, Anexo B, p. 30.

101

A questão da centralidade aparece também, sob conceitos e operações muito semelhantes aos empregados por Herculano Pena em 1890, no relatório de Aarão Reis, o engenheiro-chefe da Comissão de Estudos, ainda que colocada em outro quadro metodológico e com outro peso. Incumbida de estudar as cinco localidades determinadas pelo Congresso, em outubro de 1891, segundo critérios relativos às condições específicas de cada local, definidos por "Instruções" previas83, essa comissão procede diferentemente de Pena, ou seja, não partindo-se de uma localização regional. A questão da posição geográfica não recebe grande destaque ao longo do relatório, constituindo um sub-item do item "I - Condições naturais de salubridade", mas as observações a propósito feitas neste item e principalmente o peso que tem a questão da centralidade na conclusão final demonstra que Reis não era alheio à questão84. Após examinar as condições da localidade de Paraúna, Aarão Reis conclui que Se, pois, pela sua excelente posição geográfica no mapa do Estado, de que ocupa, por bem dizer, o centro geométrico, esta localidade se impunha naturalmente como uma das que deviam de ser incluídas entre as indicadas para a nova capital, sua altitude e sua topografia a colocam em condições de inferioridade relativamente às outras com que concorre.85

Referindo-se à centralidade geométrica como uma condição que "naturalmente" favorece a localidade, Aarão Reis parece defrontar-se com um critério amplamente reconhecido então, ou pelo menos, digno de consideração ainda que não a considere uma condição suficiente. A ausência de maiores explicações sobre o assunto, provavelmente por considerá-lo algo que se impunha

evidentemente, motiva-nos a fazer algumas conjecturas acerca de

suas referências ao discutir o tema. A propósito da localização central da Capital, recomendada por Alexandre Le Maitre em La métropolite, no século XVII, como ponto privilegiado de difusão 83

"Instruções", apud Barreto, op. cit., 1995, v. 1, p. 338-9. A opção pela posição central provalmente também orienta a incumbência que teve a comissão dirigida por Domingos José da Rocha [1891] de estudar Belo Horizonte e Paraúna. 85 Reis, op. cit., 1893, "Relatório do Engenheiro-chefe, p. 24. 84

102

das leis e como modelo moral do Estado, Foucault identifica o dispositivo da "eficácia política da soberania sobre uma distribuição espacial", como característico deste período86. Contudo, a localização da cidade no centro de sua região de domínio pode ser remontada à recomendação dada neste sentido por Platão nas Leis, diálogo a propósito da fundação de uma nova cidade, que estabelece, já na Antiguidade Clássica, um modelo respeito do problema87. Seja tendo em mente Le Maitre ou Platão, ou mesmo uma noção que lhe parecia incorporada no senso comum, Reis parece estar se referindo a um conceito sobre o qual pesava então certo reconhecimento. Mais adiante, na "Conclusão geral", Aarão Reis pondera que a situação central do Paraúna, quase no centro geográfico do Estado, não basta para superar os inconvenientes que essa localidade oferece [...] e a contraindica, pelo menos na atualidade, o grande afastamento em que se acha dos meios de rápida e fácil comunicação, de que, por enquanto, dispõe o Estado, cujo centro geográfico não coincide ainda, e nem coincidirá tão cedo, com o centro, que chamarei de gravidade, porque representa a convergência das forças vivas estaduais.88

Aqui ele evoca, de forma ainda mais precisa do que Pena, a distinção entre "centro geográfico", isto é, geométrico, e o que, por uma analogia ao conceito da Mecânica Newtoniana, Reis chama de "centro de gravidade". O centro geométrico é uma propriedade invariante de um corpo, qualquer que seja sua posição relativa, no espaço ou no tempo. Já o centro de gravidade de um corpo é determinado pela sua posição relativa a outros corpos, bem como pelas novas posições que pode tomar em uma situação em movimento. Reis procura pois determinar o centro do território em relação às "forças vivas estaduais", centro este que assume um caráter análogo ao de um corpo submetido a gravidade. Estando "vivas" estas forças, faz-se necessário considerar suas

86

Foucault, Michel. "Securité, Territoire, Population", apud Reis, Maria Ester, op. cit., p. 95. Platão, Leis e Epínomis, Belém, Universidade Federal do Pará, 1980, p. 158 [745b]. 88 Reis, op. cit., 1893, "Relatório do Engenheiro-chefe", p. 75 [grifos do autor]. 87

103

tendências de movimento, daí a ênfase na dimensão temporal de sua análise mesmo sendo, como no caso de Paraúna, remota a possibilidade do centro geométrico vir a coincidir, ao longo do tempo, com o centro de gravidade, por forças que viessem a alterar a situação estática identificada naquele momento. Vê-se, portanto, uma analogia à Estática, isto é, a "parte da mecânica que estuda o equilíbrio dos corpos sob a ação de forças", bem como à Dinâmica, isto é, "parte da mecânica que estuda o movimento dos corpos, relacionando-os às forças que o produzem"89. Além disto, trata-se de forças "vivas", sujeitas a movimentos não previsíveis apenas pela Mecânica, o que as colocaria no gênero orgânico, ou seja na Fisiologia, e "estaduais", ou seja, políticas, o que colocaria o problema como um fenômeno social. O tratamento da questão nestes termos mostra, como veremos adiante, notáveis pontos de contato com o Positivismo e particularmente com conceitos centrais do sistema das ciências proposto por Auguste Comte em seu Cours de philosophie positive - sistema este que culmina com a Física Social. Dando seqüência à sua linha de argumentação, ao avaliar Juiz de Fora que fora aprovada e classificada em terceiro lugar quanto às "condições naturais de salubridade" - Aarão Reis desaconselha esta localização por ser "afastada do verdadeiro

centro

territorial

mineiro",

considerando

sua

"inconveniente

proximidade da Capital Federal" e "suas tendências já acentuadamente comerciais e industriais"90. Nota-se novamente, considerações a propósito das forças relacionais e suas tendências futuras, aplicadas aos fenômenos geopolíticos e socio-econômicos. É na avaliação, conclusiva de seu Relatório, das duas localidades que são aprovadas - por suas igualmente "ótimas" condições - que os conceitos e operações que estão sendo aqui identificados aparece de maneira mais nítida:

89 90

Aurelio Eletronico, op. cit.. Reis, op. cit., 1893, "Relatório do Engenheiro-chefe", p. 396.

104

entre a Várzea do Marçal e o Belo Horizonte é difícil a escolha. [...] na atualidade, a Várzea do Marçal representa melhor o centro de gravidade do Estado e acha-se ligada, por meios rápidos e fáceis de comunicação com todas as zonas, daqui a algumas dezenas de anos Belo Horizonte melhor o representará, de certo, e mais diretamente ligada ficará a todos os pontos do vasto território mineiro91.

Assim, de um ponto de vista estático, isto é, da configuração das forças na situação então atual, Várzea do Marçal podia ser qualificada como o "centro de gravidade do Estado", enquanto que, sob um ponto de vista dinâmico, isto é, considerado a tendência de movimento das forças em "algumas décadas", Belo Horizonte "melhor representará" este centro. Deve-se notar que o prognóstico de Reis vem acompanhado de uma previsão de um prazo para sua realização, manifestando a convicção na gradualidade dos processos de transformação do território, bem como do papel que a capital deveria assumir enquanto centro do Estado, promovendo sua unificação. Os conceitos da Mecânica, e particularmente a analogia das forças sociais com as gravitacionais, empregados no Relatório provavelmente são provenientes da obra de Comte. O próprio já havia Reis manifestado em diversas ocasiões suas convicções positivistas. O mesmo pode dito ser a propósito da visão do progresso enquanto uma evolução gradual e acumulativa, aqui sugerida e desenvolvida posteriormente por Reis, e que será objeto de estudo do tópico seguinte deste capítulo. Um exame destas questões no Cours de philosophie positive92, de Comte, permite-nos explicitar as referências epistemológicas dos argumentos utilizados por Reis. Na "hiérarchie des sciences positives" delineada por Comte, a Estática e a Dinâmica, ou seja, as duas divisões de sua Mecânica Racional, desempenham destacado papel. Servem de modêlo metodológico geral para as ciências e particularmente para aquela que ele busca fundar, a "Física Social", dividida em 91 92

Idem, ibidem. Comte, Auguste. Cours de philosophie positive. 3e. ed. Paris: J.B. Baillières et Fils, 1869 [1e. ed., 1830].

105

"Estática Social" e "Dinâmica Social" - sendo a primeira dedicada ao estudo das "leis da harmonia" ou da "ordem" social, e a segunda às "leis de sucessão" ou do "progresso" social. Considera também Comte a lei da gravidade como exemplo de lei sobre os fenômenos naturais a ser atingido pelo conhecimento no seu estado "positivo"93. Comte hierarquiza uma sucessão de ciências - "la mathématique, l'astronomie, la pysique, la chimie, la physiologie e la physique sociale"94 - sendo que cada categoria era fundanda sob os princípios da anterior95. Fazem parte da Matemática, a "Mecânica Racional", dividida em Estática e Dinâmica, que tem "pour objet de découvrir les équations des phénomènes"96 que se apresentariam às demais ciências. Para Comte, no seu tempo, apenas a matemática e a astronomia haviam atingindo definitivamente o estado científico ou positivo, em decorrência da sistematização newtoniana da Mecânica celeste97. A Mecânica, ou seja, a Estática e a Dinâmica, definindo as leis gerais dos fenômenos do movimento, era fundamental à todas seguintes, que a cada vez adquiriam maior complexidade em função de seus objetos naturais. A Física, a Química e a Fisiologia já se encontravam, para Comte, em adiantada evolução, próxima do "estado positivo" - enquanto a Física Social, sendo a mais particular, complexa e dependente das demais, encontrava-se ainda muito distante daquele estado. Sendo assim, seu objetivo geral de "fournir la base rationnelle d'une physique concrète" - conceito que englobava todas as ciências - encontrava na última sua finalidade maior, pois restava então, ao "espírito humano", "terminer le système des sciences d'observation en fondant la physique sociale98.

93

94 95 96 97 98

Para Comte, o estado "positivo" ou "científico" do conhecimento como da sociedade, atingindo após os estados "teológico" e "metáfisico", instauraria uma etapa última, porém infindável, da evolução humana. Comte, op. cit., 1869, t. I, p. 8-9. Idem, t. I, p. 88. Idem, t. I, p. 68. Idem, t. I, p. 105. Idem, t. II, p. 21. Idem, t. II, p. 22.

106

Buscava Comte em seu Cours unificar todas as ciências segundo o procedimento geral característico do "estado positivo", isto é, "de regarder tous les phénomènes comme assujettis à des lois natureelles invariables", que conduziria à "découverte précise et la réduction au moindre nombre possible" destas leis99. Conquanto rejeitasse considerar a priori os fenômenos "comme des effets divers d'un principe unique, comme assujettis à une seule et même loi"100 - pois isto seria postular um princípio não fundamentado no estado dos conhecimentos que então reconhecia -, a redução dos fenômenos ao menor número de leis restava para Comte como um objetivo a ser perseguido, que se tornaria no estado positivo cada vez mais próximo. A propósito deste princípio único, Comte considera que si on pouvait espérer d'y parvenir, ce ne pourrait être, suivant moi, qu'en rattachant tous les phénomènes naturels à la loi positive la plus générale que nous connaissions, la lois de la gravitation, qui lie déjá tous les phénomènes astronomiques à une partie de ceus de la physique terrestre.101

Comte julgava a teoria da gravitação como a mais próxima deste almejado "princípio único", pois foi após o desenvolvimento desta teoria que a astronomia havia atingido a perfeição filosófica, através da "réduction de tous les phénomènes, soit quant à leur nature, soit quant à leur degré, à une seule loi générale"102. Além disto, as leis da gravidade representavam a própria garantia da possibilidade do conhecimento positivo ou científico atingir leis gerais e definitivas, pois era assim que as considerava Comte. Embora a noções absolutas e, portanto, "la perpétuité nécessaire et inaltérable de la théoire de la gravitation", afirma ele a propósito das leis estabelecidas por Newton: Mais, quand même cela pourrait jamais arriver, et qu'il fallût alors construire une autre loi de gravitation, il resterait éternellement vrai de toute nécessité, que la loi actuelle satisfait aux observations en se contentant de la précisionn des

99

Idem, t. I, p. 16. Idem, t. I, p. 44. 101 Idem, t. I, p. 44-5. 102 Idem, t. II, p. 20 100

107

secondes, angulaires ou horaires, propriété qui suffit pleinement sans doute à nos besoinns réels.103

Parece pois que, além de uma analogia a um domínio do saber familiar a um engenheiro, a utilização do modelo mecânico e da lei da gravidade por Reis na conclusão do seu Relatório deriva das leituras que deve ter feito este do Cours de philosophie positive de Comte. Cumprir-se-ia assim um dos objetivos a que este professor da École Polytechnique de Paris se propôs, no seu Cours104. Além de contribuir para o aperfeiçoamento do estudo científico dos fenômenos naturais, e particularmente, dos fenômenos socais, Comte pretendia com seu trabalho fornecer uma base teórica aos engenheiros, aos quais caberia, para o mesmo, "d'organiser les relations de la théorie et de la pratique"105. Considerando que "le corps de doctrine propre à cette classe nouvelle" não caberia num Cours de philosophie positive - que deveria ter um caráter geral e fundamental - Comte esperava que as teorias específicas de cada arte, e para as quais contribuíriam diversas ciências, fossem "une des conséquences les plus utiles" da sistematização das ciências que ele julgava empreender em seu Cours106. Portanto, pode-se supor que a forma hierárquica do seu Cours, partindo do geral para o particular, tinha por fim mais uma visão compreensiva dos fenômenos naturais, ou seja, fornecer uma visão de mundo, fundamental aos cientistas especializados nas ciências naturais, diversas e em crescente número, bem como aos artistas, ou melhor, aos engenheiros, do novo mundo que ingressava no estado positivo. Pode-se supor também que, em se tratando das "artes",

enquanto ação do homem sobre a natureza, com seus problemas

103

Idem, t. II, p. 176. Ver também a "24e. leçon, Considérations fondamentales sur la loi de la gravitation", p. 150-176. 104 Comte foi "Répétiteur d'Analyse transcendante et de Mécanique rationnelle à l'École Polytechnique, et Examinateur des Candidats qui se destinent à cette École", como é apresentado na edição de seu Cours. 105 Idem, t. I, p. 54. 106 Idem, t. I, p. 56.

108

concretos e envolvendo diversos tipos de fenômenos, tal procedimento - do geral para o particular - não seria o mais indicado. Assimilando conceitos e operações estabelecidas no Cours de Comte, o procedimento de Reis, tratando da análise de um problema concreto, segue uma ordem inversa, ou seja, parte dos aspectos particulares, seguindo as "Instruções" definidas preliminarmente aos próprios estudos107. Apenas no final, e abordando um critério que não constava nas Instruções - ou seja, a posição da Capital no território - Reis aborda os aspectos mais abstratos e gerais da questão, ou seja, a posição geopolítica dos locais, isto é, relativa às "forças vivas estaduais" e suas tendências de movimento. Observamos que, quanto à este ponto, sua conclusão não se sustenta em estudos tão minuciosos como dos demais aspectos, e portanto, trata-se de uma conclusão que, apesar de apontar para a superioridade de Belo Horizonte, não é assumida por Reis no seu parecer final. Na situação de "escolha difícil" entre as duas localidades, Reis prefere se ater a "dados positivos", ou seja, fundar seu julgamento final no fato de "que na Várzea do Marçal há muito maior área de terrenos devolutos [...] e a execução das obras dispensáveis à instalação desta exigirá menor dispêndio" - que pode ser calculado em aproximadamente 12% a menos do que o estimado para Belo Horizonte. Com esta decisão, Reis mostra-se imparcial, já que Belo Horizonte parecia ter a preferência do governo estadual, todavia oferecendo fortes argumentos em favor desta localidade. Ainda que nos debates decisivos da questão, a salubridade ocupasse maior espaço, a questão da centralidade geopolítica como fundamento da unidade política e da reorganização econômica do Estado já se colocava como um requisito para a Nova Capital. Naquele momento, porém, não se tornou explícita a discussão em torno da centralidade, pois isso seria justamente enfrentar o ponto de disputa dos interesses regionais, sendo apenas mais tarde

107

Estas "Instruções" foram definidas já com a participação de Reis como encarregado da direção dos estudos para a localização da Nova Capital.

109

que o atributo da centralidade passa a se constituir um forte elemento da imagem da capital. Se parece-nos difícil estabelecer qual foi o peso de cada um desses critérios na decisão por Belo Horizonte, notamos no tratamento que foi dado a eles uma perspectiva epistemológica semelhante. Tanto na questão da salubridade como da centralidade, verificamos a evocação de noções clássicas a respeito da construção das cidades, revistas à luz de novas teorias científicas da época, sob uma visão da ciência como um processo evolutivo e acumulativo, onde o estabelecido pelo passado é reelaborado no presente, porém conservando uma continuidade. A evolução da Ciência, bem como da sociedade, como um processo acumulativo e gradativo108 é considerada por Hobsbawn como característica do pensamento científico da segunda metade do século XIX. Esta visão é expressa por este historiador pela seguinte metáfora: "o mundo da ciência andava para frente nos seus próprios trilhos intelectuais e o seu progresso interior parecia, como o das ferrovias, oferecer a perspectiva da colocação de mais trilhos do mesmo tipo em novos territórios"109. A comparação é bastante sugestiva, pois, vinculando os processos científicos à expansão da civilização industrial efetivada pelas ferrovias, remete justamente à semelhança entre o desenvolvimento científico e o social, que verificamos na questão da Nova Capital, onde esta visão de progresso aparece tanto nos saberes recorridos então pelos estudos dos locais, como na visão da sociedade que orientava as políticas públicas de organização política e econômica do Estado mineiro nos primeiras décadas republicanas.

108

Sobre a evolução do conhecimento, para Comte, "on n'en peut dire avec exactitude, comme de tous les autres grands événements humains, qu'elle s'est accomplie constamment et de plus en plus" ["não se pode dizer com certeza, assim como de todos os outros grandes acontecimentos humanos, senão que ela se realiza constantemente e cada vez mais"]. Comte, op. cit., t. I., p. 19. 109 Hobsbawn, Eric J. A era do capital (1848-1875). Rio de Janeiro: Paz e Terra,1977, p. 265

110

Além disto, observa o historiador que na segunda metade do século XIX, na Europa, "a imagem básica do sociólogo era a imagem biológica de um "organismo social", a cooperação funcional de todos os grupos na sociedade", a qual Hobsbawn considera "difícil de se combinar com a outra imagem biológica do século, que propunha mudança e progresso"110. Contudo, é justamente esta conciliação que engendra o postulado positivista, e seu decorrente conceito de progresso como evolução gradativa, pois para Comte, "L'ordre et le progrés, que l'antiquité regardait comme essentiellement inconciliables, constituent de plus en plus par la nature de la civilisation moderne, deus conditions également impérieuses"111. Como conciliação - e evolução - das aspirações pelo progresso das doutrinas revolucionárias e liberais com as aspirações pela ordem

das

doutrinas restauradoras, Comte vislumbrava "l'unanime prépondérance d'une doctrine également progressive et hiérarchique"112, capaz de conduzir e regularizar

o

suposto

desenvolvimento

espontâneo

da

sociedade

pelo

conhecimento de suas "lois naturelles d'harmonie et de succession"113. Portanto, além de uma perspectiva relativa à ciência, a visão de progresso evolutivo - tal como formulada por Comte e por outros pensadores adeptos do Positivismo e do Evolucionismo Social - é também aplicada aos processos sociais. Reconhecendo esta visão como fundamental ou subjacente ao pensamento social e político e às ações governamentais de organização do território nas primeiras décadas da República, buscamos uma interpretação do papel da Nova Capital do Estado de Minas Gerias no projeto de modernização ou de civilização industrial que tomou corpo após a Proclamação da República. Projeto esses no qual a capital se colocava como centro de difusão e de impulsão da civilização industrial, implementada a partir de uma seqüência gradativa e evolutiva de realizações, segundo a noção de progresso acima

110

Idem, p. 272. Comte, op. cit., t. IV, p. 17. 112 Idem, t. IV, p. 18. 113 Idem, t. IV, p. 292. 111

111

mencionada. Neste sentido, procuramos identificar de que forma a Nova Capital se inseria nos projetos de organização do território mineiro e como se colocava enquanto um instrumento de reorganização do Estado em direção à civilização moderna. Ao que nos parece, tudo isso se daria segundo um processo que se desdobraria em fases gradativas, no qual a industrialização, ainda que fosse uma intenção relativa à Nova Capital, parece não ter sido uma prioridade imediata, posto que esta só seria possível após o cumprimento de outras condições consideradas necessariamente anteriores.

2.2. A organização econômica do território e a noção de progresso. A importância da posição geográfica ou da centralidade da Nova Capital no território parece-nos relacionar à concepção desse território pelo Estado, naquilo que dizia respeito à sua organização econômica e à promoção da sua colonização segundo a perspectiva de uma ação civilizatória, a partir da instituição do regime republicano federativo. Neste tópico, procuraremos pois compreender como a Nova Capital se inseria neste processo. A mensagem de Augusto de Lima propondo que a "nova capital seja centro de atividade intelectual, industrial e financeira e ponto de apoio para a integridade de Minas, seu desenvolvimento e prosperidade"114, sugere, dentre outras, a função industrial115. Contudo, dada a generalidade deste enunciado, 114

Congresso Constituinte, Ata da instalação do Congresso Constituinte do Estado de Minas Gerais aos 7 de abril de 1891, apud Barreto, 1995, v. 1, p. 317. 115 A partir dessa indicação e de uma fala do deputado Silviano Brandão nas discussões sobre a necessidade da existência de condições do local da capital para indústria, Plambel defende que "a intenção de industrialização implícita no projeto de mudança é constante: mudar a capital para ter-se um polo econômico" [Plambel, op. cit., 1979, p. 36]. O principal empenho deste estudo é discutir e contestar a tradicional imagem de cidade burocrática que mantém Belo Horizonte até pelo menos os anos 30. Para isto, além de apontar as duas menções à função industrial acima referidas, procura demonstrar a existência de atividade industrial já na década de 1910, principalmente através da "estrutura ocupacional" da cidade, contrapondo-se à tese defendida por Singer [op. cit., 1977].

112

parece precipitado inferir dele a intenção de se estabelecer imediatamente na Nova Capital um polo industrial. Nas considerações preliminares de um decreto não-promulgado, pelo qual o governador ensaiou uma tentativa de transferir a Capital, destaca-se, através de uma metáfora orgânica, um relevante sentido que se atribuía àquela. Para o Governador, a exigüidade de Ouro Preto em relação à extensão e à população do Estado constituía "um fenômeno de microcefalia de funestas conseqüências para o funcionamento normal do organismo do Estado"; argumentava também que era "a aspiração antiquíssima do povo de Minas Gerais, a remoção de sua Capital para outro local em que seja edificada uma cidade digna de ser a cabeça do primeiro Estado da República"116. A interpretação exposta ao longo deste tópico é que o papel da Capital como "ponto de apoio da integridade" do Estado, como diretora de suas atividades, apresentava-se como prioritário ao objetivo de sediar um polo industrial - ainda que prepararia o desenvolvimento futuro deste. Reforça esta interpretação o fato de que a questão da conveniência do local à atividade industrial não ter sido objeto de consideração detalhada pela Comissão de Estudos, nem mesmo nos debates do Congresso sobre a localidade a ser escolhida. Ainda que se possa reconhecer menções à industrialização nos debates sobre a Nova Capital, não se verifica uma discussão e, muito menos, uma formulação sistemática neste sentido. Sendo escassos os elementos que permitiriam identificar a relevância dada à função industrial da Nova Capital, buscamos identificar o significado da industrialização no projeto da elite política mineira da Primeira República, a partir de elementos mais gerais verificados nas discussões sobre a organização política e econômica do território. Tudo isso visando compreender como a Nova Capital se inseria nesses projetos de

116

Este decreto é citado integralmente por Vignoli, Orlando. Ensaio de Geografia Urbana de Belo Horizonte. BH: [s.n.], 1958, p. 40.

113

organização econômica e política do Estado a partir da instituição do federalismo republicano. As discussões que se seguem têm como objetivo trazer algumas evidências para a hipótese aqui esboçada, ou seja, de não ter sido uma intenção, pelo menos no momento da fundação da cidade, o estabelecimento industrial na Nova Capital. Outros aspectos tratados mais adiante, como as tendências ruralistas da política econômica brasileira e mineira no período, e ainda a visão de progresso como uma evolução gradual ao longo de estágios que deviam ir do simples ao complexo e que deveriam ser cumpridas seqüencialmente - fundamentam a hipótese aqui defendida da capital como "ponto de apoio" da integridade do Estado e de um projeto de organização do território. Encontramos no programa de governo de João Pinheiro, anunciado em 1906, fontes básicas acerca das concepções que orientavam as políticas de organização econômica do território mineiro, após a instituição da República, principalmente quanto à noção de progresso na época. A propósito desta última, encontramos uma formulação bastante esclarecedora num escrito do engenheiro Aarão Reis sobre o papel do Estado, o qual, embora de caráter teórico e não diretamente relacionado com a Nova Capital mineira, oferecem-nos elementos que nos permitem compreender a algumas noções que fundamentaram o projeto desta última.

114

Ainda que João Pinheiro117 não tenha tido uma notável participação nos momentos aparentemente mais decisivos da mudança da capital - ou seja, da decisão da mudança pelo Congresso Constituinte Mineiro de 1891 e da escolha da localidade, em 1894 -, foi ele um defensor da mudança da capital desde quando se destacou como propagandista republicano, na década de 1880. Além disso, é considerado um influente representante da mentalidade política mineira nas primeiras décadas republicanas, principalmente a propósito da questão do progresso. Para Wirth, Progresso, para a geração de João Pinheiro, originar-se-ia com mudanças tecnológicas e crescimento econômico, que produziria diferenciação social, que em seqüência levaria logicamente, e no tempo certo, à política democrática moderna.118

Ao assumir o Governo Provisório em 1890, João Pinheiro apregoava, em sua declaração "Aos mineiros", que cumpria "o delineamento e a execução do soberbo edifício" - ou seja, a República -, "reorganizando-se o trabalho, favorecendo as indústrias e, entre elas, a agricultura principalmente, cuidando-se dos meios de comunicação e fazendo-se executar sistematicamente planos de viação férrea"119. Na ocasião, o governador ponderava também que "a

117

João Pinheiro (1860-1908), nasceu no Serro (MG). Cursa o seminário em Mariana, mas não continua carreira eclesiastica, indo estudar engenharia na Escola de Minas de Ouro Preto, onde toma contato com as obras de Comte, de Spencer e dos evolucionistas e desempenha as funções de professor de Latim, História e Filosofia. Reorientando sua carreira, transfere-se para a Faculdade de Direito de São Paulo. Enquanto estudante, dedica-se ao jornalismo e também é "preparador da cadeira de Física da Escola Normal de São Paulo" [Moreira, Vivaldi. "Apresentação". In: Pinheiro, João. João Pinheiro e sua doutrina. Brasília: Câmara dos Deputados, 1984, p. 21]. Gradua-se em 1887, e, retornando a MG, funda o partido republicano e dirige o jornal O Movimento. Com a República, é nomeado Governador provisório do Estado (1890) e eleito deputado no Congresso Constituinte mineiro de 1890-91, participa da redação do projeto da Constituição apresentado pelo governo [Barreto, op. cit., 1995, v.1, p. 322]. Afasta-se da política em 1893 para se dedicar a atividades industriais, retornando em 1905, eleito senador e, em seguida, presidente do Estado de Minas (1906), falecendo em meio ao mandato. [Sobre as influências do Positivismo em Pinheiro, ver Lins, Ivan. História do positivismo no Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1964, p. 54 e 208220]. 118 Wirth, John D. Minas Gerais in the Brazilian Federation,1889-1937. Sanford, California: Stanford University Press, 1977, p. 225 119 João Pinheiro, "Aos mineiros" [O Movimento, de 29 de abril de 1890], In: Pinheiro, João, Idéias políticas de João Pinheiro. Cronologia, introdução, notas, bibliografia e textos selecionados por Francisco de Assis Barbosa. Brasília: Senado Federal; Rio de Janeiro: Fundação da Casa de Rui Barbosa, 1980, p. 113.

115

reorganização de um povo não é obra de um dia"120, vislumbrando esta obra como um longo e gradativo processo. Manifestava, então, João Pinheiro, posturas às quais manteve-se fiel ao longo de sua atuação política posterior, ou seja, a prioridade à agricultura entendida como uma indústria e ao transporte ferroviário, vinculadas a um processo de reorganização do Estado, bem como o caráter gradativo deste processo - o qual deveria passar por etapas segundo a lógica de um progresso evolutivo. A prioridade da agricultura é também verificada em algumas políticas posteriores do governo mineiro em prol da reorganização econômica do Estado que Pinheiro pretendera iniciar, tal como na política de imigração através da criação de núcleos coloniais. Visando estimular o povoamento do Estado assim como a diversificação das atividades econômicas - então concentradas na cafeicultura de exportação -, o governo mineiro promove, na década de 1890 uma política de incentivo ao estabelecimento de colonos imigrantes em pequenas propriedades agrícolas, em torno de núcleos coloniais121. Uma política imigratória é iniciada em 1892, com a preferência por trabalhadores destinados à agricultura, mas é a partir de 1894 que se imprime um direcionamento claro e efetivo neste sentido, através da implementação de núcleos coloniais pelo governo, com lotes urbanos e rurais, a serem adquiridos de forma facilitada por imigrantes europeus. O objetivo era incentivar a colonização através da formação de pequenas propriedades agrícolas, polarizadas por núcleos urbanos, onde se estabeleceriam os ofícios e o artesanato, localizados próximos a cidades existentes ou ao longo de estradas de ferro. A implementação de núcleos coloniais foi adotada pelo governo como a fórmula mais atraente à imigração, cumprindo os objetivos de povoamento através da fixação do colono como pequeno proprietário, de diversificação das atividades agrícolas e mesmo de incentivo à urbanização e às atividades 120 121

Idem, ibidem. Monteiro, Norma de Góes. Imigração e colonização em Minas: 1889-1930. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 1973 (Tese de doutorado).

116

artesanais e comerciais a ela correlatas, como também do fornecimento de mãode-obra às grandes lavouras122. As diversas medidas tomadas em 1894 pelo governo Bias Fortes, visando incentivar a imigração e a colonização agrícola, estavam relacionadas à preocupação, manifestada por este Presidente do Estado, com a exclusividade que a cafeicultura vinha assumindo na agricultura mineira - que não aproveitava do mercado interno oferecidos pelos estados vizinhos, que já recorriam largamente a importação de cereais123. Dentro desta política, em 1896, o governo determina a criação de seis núcleos coloniais, dentre os quais dois foram implantados na região da Nova Capital. Posteriormente, em 1899, mais três núcleos foram instalados na área rural da nova Capital124. Segundo Monteiro, "o povoamento da área suburbana pela fixação de pequenos agricultores e do operariado era de importância vital para a nova capital"125. A Nova Capital relacionava-se assim com uma política de povoamento que dava portanto prioridade à colonização agrícola como base para uma futura industrialização e

urbanização, a partir da diversificação e modernização da

agricultura e da formação de uma população socialmente diferenciada, que pudesse fornecer condições de produção e de mercado para a reorganização econômica do Estado. A inconveniência da economia do Estado depender exclusivamente da exportação do café, acentuada pelas crises a partir de 1895, e a crescente demanda do mercado do Rio e de São Paulo por gêneros agrícolas, devido à sua especialização na cultura do café e ao crescimento da urbanização, levaram o governo a buscar novas possibilidades para a economia mineira. Neste sentido, segundo Monteiro, o governo convocou o Congresso Agrícola, Industrial

122

Idem, p. 50-67. Idem, p. 110. 124 Idem, pp. 67-69. 125 Idem, p. 69 123

117

e Comercial de 1903.

Presidido por João Pinheiro - então na condição de

industrial - este Congresso foi assim descrito posteriormente pelo mesmo: Cento e setenta representantes da vida econômica mineira, pelos seus banqueiros, pelos diretores da sua grande indústria extrativa e manufatureira, pelo seu comércio, pelos seus agricultores e criadores, reuniram-se para manifestar a sua opinião coletiva sobre as questões que tinham sido postas, e formularam a aspiração mineira conservadora, que ecoou, fundamente, no País. Dela se originou a política protecionista, [...]126.

No Congresso de 1903, segundo Monteiro, "a mentalidade dominante é a agrícola. A indústria só tem expressão na medida que serve para transformar os produtos agrícolas". Notando a "preocupação em fomentar determinados produtos", no sentido de diversificar a economia do estado através da agricultura e da mineração, a autora conclui que "Minas parte para a valorização da chamada indústria natural" - como se denominava a indústria baseada em matérias-primas extraídas em sua região127. Quanto à imigração, posiciona-se este Congresso favorável à fundação de colônias para o povoamento do Estado128. Poucos anos depois, a partir de 1907, sob a Presidência do Estado de João Pinheiro, a colonização e a agricultura seriam então assumidas como uma das mais importantes prioridades do governo mineiro. Nessas políticas de colonização do governo mineiro do período inicial da República, pode-se notar, de modo geral, a opção pelo imigrante estabelecido como pequeno proprietário rural ou em núcleos urbanos vinculados à agricultura, onde se originariam o desenvolvimento do artesanato e a formação de mão-deobra operária futura129. Assim, a precedência da agricultura é vista como condição para o estabelecimento da indústria, que deveria ser iniciado por aquelas que tivessem maiores vínculos com as matérias-primas locais.

126

João Pinheiro, "Ao povo mineiro. Manifesto-programa do candidato do PRM à Presidência do Estado" (Minas Gerais, 12/12/1906), in Pinheiro, op. cit., p. 192. 127 Monteiro, op. cit., p. 111. 128 idem, p. 113. 129 idem, pp. 65-69 e p. 158.

118

A prioridade à agricultura, por seu caráter básico numa ordem natural da organização econômica, e a visão dos processos sociais segundo leis de evolução progressivas e gradativas - convicções marcadamente influenciadas pelo positivismo e particularmente pelo evolucionismo spenceriano - foram reafirmadas por Pinheiro em manifesto de sua candidatura ao governo do Estado, em 1906130, e em uma longa entrevista por ele concedida, já como Presidente131.

A respeito do "problema econômico brasileiro", Pinheiro

declarava-se então favorável à "decretação do protecionismo alfandegário", mas defendendo "outras medidas, visando promover e estimular, diretamente, a produção no interior do País". Elecando o conjunto dessas medidas, ressalta que se deve aplicá-las com toda a atenção, tendo em vista as riquezas naturais existentes para os trabalhos que possam surgir com mais facilidade, para os que são capazes de maior desenvolvimento, sem a pretensão de realizarmos tudo a um tempo, senão sucessivamente, [...]132

Esta última consideração coaduna-se com um dos princípios afirmados no seu Manifesto-programa, ou seja, a condenação do "estado revolucionário permanente" e a defesa do "progresso realizado por movimentos que não abalem, operando reformas e não ruínas"133. Sob estes "critérios", Pinheiro examina a situação dos setores econômicos do Estado, estabelecendo uma pauta de prioridades de sua atuação. Conforme ele irá explicitar, já como Presidente, a agricultura constituiria a principal prioridade de seu governo: "tratando-se da reorganização econômica do país, a proteção maior, o cuidado que mais exige nossa atenção deve ser para a agricultura". Entretanto, admite o protecionismo para as indústrias em formação e transitoriamente, na medida da gradativa nacionalização dos processos 130

"Ao povo mineiro. Manifesto-programa do candidato do PRM à Presidência do Estado", in Pinheiro, op. cit., p. 177-197. 131 "O novo governo de Minas" (O Paiz, RJ, 19/7/1906), in Pinheiro, op. cit., p. 199-224. 132 "Ao povo mineiro. Manifesto-programa do candidato do PRM à Presidência do Estado", in Pinheiro, op. cit., p. 180. 133 Idem, p. 179.

119

industriais, ressaltando ser um "protecionista ad tempora". Mesmo declarando-se "partidário da absoluta liberdade em suas diversas formas, inclusive a liberdade econômica", pondera que a "proteção é uma necessidade de defesa, ainda que temporária", até que as indústria se tornassem competitivas, e que no caso brasileiro tratava-se de uma proteção "à nossa independência econômica"134. Outro tema recorrente no Manifesto de Pinheiro é a comparação com os Estados Unidos e países como o México e o Japão. João Pinheiro apontava a preocupação dos governos desses países com as questões econômicas, como exemplos "do que pode a vontade coletiva de um povo, quando este povo se resolve a ter vontade e uma elevada política o guia"135. As posições de Pinheiro referem-se a um amplo debate sobre a organização política e econômica da nação brasileira, onde se colocam temas como o papel do estado e as bases da economia. Esse debate - que remonta ao último quartel do século XIX e que permeia as políticas públicas e o pensamento econômico e político brasileiro da Primeira República - enseja uma polêmica entre o ruralismo e o industrialismo, e mais amplamente, traz consigo uma visão do progresso evolutivo da sociedade e da organização nacional como obra do Estado. Antes de prosseguirmos a análise dos argumentos de Pinheiro, levantemos pois algumas considerações em torno desse debate. A questão da forma de governo brasileiro é discutida em 1870 por Tavares Bastos136 que defende a descentralização federalista e o liberalismo econômico, tendo como modelo os Estados Unidos - razão pela qual é considerado como pertencente à chamada corrente dos americanistas latinoamericanos, critica da herança ibérica existente no patronato rural e, no Brasil, do estado centralizador137. Contudo, além de Bastos não pretender a exata 134

"O novo governo de Minas", in Pinheiro, op. cit., p. 204-5. "Ao povo mineiro. Manifesto-programa do candidato do PRM à Presidência do Estado", in Pinheiro, op. cit., p. 193. 136 A Província. Estudo sobre a descentralização no Brazil. 2ª ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1937. 137 Vianna, Luiz Werneck. "Americanistas e iberistas: A polêmica de Oliveira Vianna com Tavares Bastos". Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 34, n.2, 1991, p. 145-189. 135

120

transposição do modelo norte-americano para o Brasil, pois visava a reforma da monarquia, seu realismo - como observa Luiz Werneck Vianna - "leva-o ao reconhecimento de que sobre a base da sociedade civil herdada da colônia não há obra de americanização possível"138, isto é, enquanto processo emanado desta sociedade. Assim, a implementação das instituições políticas e econômicas de matriz anglo-americana, para Tavares Bastos, somente se realizaria no Brasil pela ação iluminada do Estado. Nesta concepção, que justifica um autoritarismo instrumental, a reforma da sociedade civil no sentido da democracia e da civilização, deveria ser precedida pela reforma do Estado, o qual caberia impor sobre a sociedade civil139. Outro aspecto do americanismo de Bastos é sua preferência pela agricultura em relação à indústria - também compartilhada por outros americanistas latino-americanos - já que nos países atrasados a indústria necessitaria do protecionismo do Estado, o que não era admitido por sua postura liberalista. "A lavoura, diz Tavares Bastos, seria nossa verdadeira indústria"140, através da qual países como o Brasil se inseriam no mundo moderno. Essa conciliação entre autoritarismo e liberalismo, entre modernização e ruralismo anunciam temas que marcaram o pensamento político autoritário da Primeira República, ou seja, o papel do Estado na organização da nação, bem como a prioridade à agricultura, manifestada por alguns ideólogos e políticos na corrente ruralista que se forma nos debates econômicos sobre o protecionismo. Sem ter aqui o objetivo de traçar uma análise sistemática das discussões e das políticas públicas relativas à estes temas, é conveniente examinarmos alguns pontos recorrentes colocados pelo pensamento econômico e político da Primeira República. Tratando-se aqui de situar o papel da Nova Capital nos projetos de organização econômica do território que se formulavam na época de sua fundação, tal exame oferece referências para a identificação de uma visão dos 138

Idem, p. 159. Idem, p. 162. 140 Cartas do Solitário [1862], apud Vianna, op. cit., p. 162. 139

121

processos sociais brasileiros que permeia o período do final do Império e da Primeira República. Já por volta de 1875, em uma discussão sobre o protecionismo à indústria nacional através da taxação alfandegária, os seguimentos opositores recorriam ao argumento "que o Brasil devia-se restringir à agricultura e à indústria extrativa", evitando a "a acumulação de braços e capitais nas cidades, e, como conseqüência fatal, despovoação e empobrecimento dos distritos agrícolas"141. A questão se prolonga nas primeiras décadas da República, onde verifica-se algumas variações no plano da política pública: na década de 1890 define-se por uma posição industrialista e protecionista, que é abandonada gradativamente a partir de 1897, seguindo-se da retomada do protecionismo entre 1902 e 1907, porém amplamente estendido aos interesses agrícolas. No período das duas primeiras

décadas

republicanas

verifica-se

no

"pensamento

econômico

brasileiro", o debate entre diversas correntes142: a defensora do protecionismo industrial, através de créditos e incentivos fiscais à indústria, tarifas alfadegárias sobre os produtos importados e desenvolvimento dos transportes; outra corrente que reividicava uma proteção generalizada à produção nacional, tanto da indústria como da agricultura; e duas outras que, sob diferentes argumentos, posicionavam-se contra o protecionismo industrial, ou seja, a corrente do liberalismo e a que pleiteava uma proteção exclusivamente para as "indústrias naturais"143. Desta última emerge a "corrente ruralista", que se colocava "contra o artificialismo" da industrialização brasileira, defendendo a preferência para a produção agrícola, e que teve em Américo Werneck "um dos mais típicos representantes". A posições deste engenheiro, que foi secretário da Agricultura e

141

Parecer da Seção de Comércio da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional , publicado em 1876, sobre as reinvidicações da indústria de chapéus por proteção alfandegária do produto importado, apud Luz, Nícia Vilela. A luta pela industrialização do Brasil (1808-1930). São Paulo: Alfa-Omega, 1975, p. 54. 142 Luz, op. cit., pp. 67-101. 143 Idem, p. 84.

122

Obras Públicas do Estado de Minas, de 1898 a 1901, e prefeito interino da capital em 1898, são um notável exemplo da precedência dada à agricultura no período de construção da nova capital. Ainda que não condenasse a industrialização, Werneck entendia que, sendo o mercado consumidor composto "em sua maioria, da massa da população rural, segue-se que a prosperidade da indústria fabril em todos os seus ramos está intimamente vinculada à prosperidade dos campos"144. Propunha, a proteção alfandegária à produção agropecuária,

e,

em

relação

à

industrialização,

"transformações dos produtos do solo"145.

a

priorização

das

As posições manifestadas por

Werneck, segundo Luz, encontraram formulações mais extremadas no movimento ruralista da década de 1910, liderado por Alberto Torres, para o qual o Brasil tinha "por destino evidente ser uma país agrícola" e cujo repúdio à industrialização ligava-se à uma veemente crítica da urbanização como fator do "desequilíbrio das sociedades modernas"146. Contudo, para João Pinheiro, assim como para Werneck, a prioridade à agricultura não se devia a uma definitiva vocação do Brasil a esta atividade: tratando-se de reorganizar o trabalho como base da fortuna pública, o que se impõe, naturalmente, sobretudo, é a reorganização daquele que representa a parte maior dessa fortuna. Essa é, incontestavelmente, em nosso País, a agricultura; a indústria manufatureira beneficia um certo número de habitantes, mas a agricultura é que beneficia a grande massa, não só fornecendo o trabalho mais espontâneo e mais fácil ao número maior, como fornecendo ao País em geral os efeitos precisos às sua necessidades mais imediatas.147

O ruralismo que pode ser atribuído a estes políticos sustenta-se na concepção de uma ordem evolutiva a ser seguida pela organização econômica do estado, sendo que nesta ordem, a agricultura se colocava como a atividade

144

Congresso Nacional, Annaes da Camara dos Deputados, Sessões de 1 a 30 de novembro de 1906, apud Luz, op. cit., p. 89. 145 Idem, p. 91. 146 Alberto Torres, O Problema Nacional (`1914), apud Luz, op. cit., p. 100. 147 "O novo governo de Minas" [Entrevista ao O Paiz, RJ, 19/7/1906.], in Pinheiro, op. cit., p. 201.

123

adequada e necessária para iniciar a série de realizações que conduziriam o progresso do país. Segundo o critério de atender às atividades que se mostrassem de realização mais fácil, João Pinheiro apresentava a pauta de prioridades de seu governo, que tinha em primeiro lugar o café, vindo em seguida a cultura de cereais, a indústria pastoril, a indústria mineira (mineração) e os transportes ferroviários, acrescentando também a instrução primária. A cultura de cereais vinculava-se a um projeto de colonização, que tinham como fator as estradas de ferro, que para Pinheiro desempenhavam nos chamados países novos um papel diferente em relação aos países de população densa: "Nestas, encontram as estradas de ferro, com a densidade da população, um tráfego já ativo que recolhem. Nos países novos, em grande parte ainda desabitados, de extensão muito vasta, elas têm que criar, tanto o tráfego como a produção"148. Assim, seguir-se-ia a exploração dos minérios, particularmente o ferro, etapa esta de maior complexidade que só seria possível com a implementação da rede ferroviária. Ainda que a indústria manufatureira não integrasse sua pauta de prioridades, Pinheiro advogava uma política protecionista, desde que relativa inicialmente aos processos mais simples, ou seja, às últimas etapas de uma linha de montagem de componentes importados, que uma vez consolidadas ensejariam o domínio dos processos precedentes e mais complexos, "e assim sucessivamente até a completa nacionalização da indústria". Recusando teoricamente o conceito de indústrias "naturais", ou sejam, aquelas baseada em matérias-primas locais - ainda que se mostrasse favorável ao desenvolvimento das "riquezas naturais" -, Pinheiro fundamentava-se num princípio análogo ao aplicado na prioridade à agricultura, ou seja, o da organização econômica

148

"Ao povo mineiro. Manifesto-programa do candidato do PRM à Presidência do Estado" (Minas Gerais, 12/12/1906), in Pinheiro, op. cit., p. 189.

124

realizada através da consecução gradativa de etapas, princípio este que governaria tanto os fenômenos naturais como os sociais: Nesta questão de indústrias manufatureiras em um país industrialmente novo o que se dá é um fato curioso, é a marcha natural do simples para o composto, [...]. A seleção [dos processos industriais que vão sendo nacionalizados] vai se fazendo gradativamente, [...]. É a marcha natural de todo organismo que se desenvolve. É uma lei de adaptação orgânica e de adaptação social.149

Mais do que uma metáfora, o evolucionismo como lei dos processos naturais e sociais é uma sólida convicção, a partir do qual Pinheiro procurava justificar uma "contradição aparente" com seus princípios liberais, argumentando que "no caso da proteção aduaneira o que se faz é proteger um organismo em formação, até que ele ganhe forças para lutar por si só com os mais desenvolvidos"150. Tal visão da evolução alinha-se à proposta por Comte, em 1830. Para Comte, "la perfection croissante de l'organisme animal consiste surtout dans la spécialite de plus en plus prononcée des diverses fonctions accomplies para les organes de plus en plus distincts, et néanmoins toujours exactemment solidaires" - o mesmo se dando no "organismo social"151. Aproxima-se essa visão do conceito proposto posteriormente por Spencer da evolução da matéria como passagem de "uma homogeneidade indefinida e incoerente para uma heterogeneidade definida e coerente", que também era válido nos organismos sociais152. Contudo, Pinheiro, ao contrário de Spencer, considera o Estado como entidade formadora da organização nacional, mantendo-se assim parcialmente de acordo com a posição de Comte a propósito do papel do Estado, mas aproximando-se dos princípios liberais daquele, ao reputar a ação condutora do Estado como uma etapa transitória, ainda que necessária ao fortalecimento do

149

"O novo governo de Minas" [Entrevista ao O Paiz, RJ, 19/7/1906.], in Pinheiro, op. cit., p. 2023. 150 Idem, p. 210. 151 Comte, op. cit., t. IV, p. 417. 152 De acordo com os Primeiros Príncipios (1860), de Spencer, citado por Ribeiro Jr., p. 45-6.

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corpo nacional, na medida em que este fosse realizando seus destinos por seus próprios meios. Esta visão do progresso evolutivo por etapas gradativas - dentro do qual se insere a agricultura como prioridade na organização econômica -, é de ampla ocorrência no pensamento econômico e político do final do século XIX e das primeiras décadas do seguinte, tendo como problema a construção da nação e, principalmente, da federação republicana. A ênfase dada aqui a esta temática decorre de um esforço em qualificar, a partir deste pensamento, o papel da Nova Capital mineira na organização do estado de Minas Gerais, e particularmente a intenção industrializante nela enunciada. Em um estudo dos discursos da burguesia mineira nas primeiras décadas do século, Dutra destaca a união de interesses entre agricultura, indústria e comércio, notando também a importância da agricultura, que é considerada então por um articulista como "fonte de todos os bens e todas as riquezas"153. Dentre outros pontos verificados nesses discursos, cabe aqui mencionar a "idéia de construção da história", ou seja, "a idéia de história como progresso e evolução, desdobramento linear e lógico dos acontecimentos". Esta idéia de história enquanto um desdobramento, "não implica em um descompromisso com o passado e a tradição, invocados na reafirmação de compromissos políticos que garantam uma 'direção' para a evolução e o progresso"154. A idéia do progresso evolutivo pela realização de etapas sucessivas segundo uma crescente ordem de complexidade, verificadas no discurso da burguesia mineira e do governo do estado, assim como a visão da sociedade como organismo, constituíam-se em temas marcantes do pensamento sobre a modernização brasileira, já desde o final do Segundo Império. Nos relatórios oficiais brasileiros apresentados nas exposições industriais do final do século XIX, Hardman identifica uma "retórica da probidade e do 153

Dutra, Eliana R. F. "República e trabalho no registro da burguesia". Revista do Departamento de História (n. 10) /Cadernos DCP (n. 8). Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 1990, p. 28-39. 154 Idem, p. 30.

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trabalho perseverante", onde pode-se ver também a concepção do progresso enquanto realização gradativa e moderada, prenunciando uma representação que marcará a República155. Ainda segundo este autor, a metáfora organicista da sociedade em um movimento evolutivo - traço característico do discurso de João Pinheiro - é expressada por Euclides da Cunha, no começo do século, nos seguintes termos: Todas as grandes estradas [...] erigem-se nos primeiro tempos como verdadeiros caminhos de guerra contra o deserto, imperfeitos, selvagens. [...] Depois evolvem; e crescem, aperfeiçoando os elementos da sua estrutura complexa, como se fossem enormes organismos vivos transfigurando-se com a própria vida e progresso que despertam.156

Reconhecemos nessas representações de progresso a convicção de que este dar-se-ia a partir de um estado imperfeito e por um processo gradativo de conquistas movidas pela ação do Estado, as quais, seguindo uma evolução considerada natural, atingiriam a modernização pretendida. É justamente a propósito do papel do Estado que Aarão Reis manifesta suas "crenças científicas" no progresso evolutivo da sociedade157. Como engenheiro-chefe (1893-1895) dos trabalhos da escolha do local e da construção da Nova Capital do estado de Minas Gerais, e autor de sua Planta Geral, o engenheiro já manifestava a influência positivista158. Posteriormente, na década de 1910, como professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, sistematizaria

155

Hardman, Francisco Foot. Trem fantasma: A modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pp. 87-89. 156 Euclides da Cunha, Um paraíso perdido: reunião de ensaios amazônicos, Petrópolis/Brasília, 1976, p. 177 e 172, apud Hardman, op. cit., p. 101. 157 Reis, Aarão. "O regime político e o papel do Estado". In: Paim, Antônio (org), Plataforma política do positivismo ilustrado. Brasília: Editora da UnB, 1981, pp. 141-160. 158 Aarão Reis formou-se em engenharia na Escola Politécnica, no Rio de Janeiro, em 1874, ocupando ao longo de sua carreira cargos técnicos e diretivos em serviços públicos, em áreas diversas, desde a edificação à engenharia ferroviária. Após organizar a Companhia Geral de Melhoramentos do Maranhão, assume em 1893 os trabalhos da Nova Capital mineira, até 1895 [Lima, Fábio. Belo Horizonte, Um passo de modernidade. Salvador: FA/UFBA, 1994, p. 29]. Posteriormente, foi professor na Escola Politécnica na cadeira de Economia Política, publicando o compêndio Economia Política, Financas e Contabilidade [1915], um manual de matemática e de direito administrativo [Paim, op. cit., p. 9], além da tradução de A Idéia de Deus, de Émile Littré [1881], discípulo de Augusto Comte [Lins, op. cit., p. 255].

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suas convicções. Posicionando-se contra a "metafísica econômica" do liberalismo, que pretendia "restringir as funções do Estado aos seus primordiais deveres de garantir [...] a integridade nacional e a tranqüilidade pública interna", Aarão Reis sustentava que, além dessas funções, caberia ao Estado "interferir no movimento econômico para excitar iniciativas, [...], evitar regressões, suprir deficiências, canalizar correntes desviadas, abrir novos sulcos para correntes novas, etc., etc.". Responsável pela "organização nacional", o Estado deve ser "regulador das funções econômicas que, [...], carecem cuidados tão carinhosos quanto os que, para análogo fim, exigem as funções nutritivas do organismo individual"159. Contudo, condena Reis tanto a tendência liberal como a oposta, isto é, a que defende "ser a sociedade humana suscetível duma organização artificial obtida [...] sob o impulso de idéias preconcebidas"160 - que chama de "utopias"161. Recusando essas utopias, Reis situa-se dentre aqueles que subjugados pela crença científica de que tudo obedece no mundo à natural evolução do progresso, que tende sem cessar para indefinido aperfeiçoamento da humanidade, em plena conformidade com as imutáveis leis da natureza aguardam, com a paciência da confiança, a ação do tempo, limitando seus esforços ao preparo do terreno para a nova espontânea floração e conseqüente frutificação, sempre mais aproximadas do ideal desejado.162

Ainda que entendendo esta evolução enquanto um "fenômeno natural sujeito, como tal, a leis imutáveis", Reis pondera que "pode a inteligência compreendê-lo e, compreendendo-o, modificá-lo sem poder alterar sua tendência normal". Mais especificamente, "à inteligência dirigente dos mais competentes" cabe guiar "o desenvolvimento evolutivo da sociedade"163, alcançando "um bem estar que for sendo possível obter"164, assentada na 159 160 161 162 163 164

Reis, Aarão. "O regime político e o papel do Estado". In: Paim, op. cit., 1981, p.144. Idem, p. 145. Definidas como "sistemas artificiais em torno de dois centros principais: - o autoritário e o anarquistas", dentre as quais incluiu o socialismo marxista [Idem, p. 153]. Idem, p. 145-6. Idem, p. 149. Idem, p. 152.

128

"tradição histórica, que nos patenteia a sociedade humana obedecendo sempre, em sua normal evolução, as duas tendências, aparentemente antagônicas, mas de fato harmônicas, e por igual imperiosas: - a ordem e o progresso"165 - uma formulação literalmente derivada de Comte. Assim, Aarão Reis - como João Pinheiro - recusa as mudanças bruscas ou revolucionárias, professando o conceito claramente positivista do progresso por lentas acumulações e sob o primado da ordem, considerando que representando

incontestavelmente

a

atual

organização

econômica

um

aparelhamento já bastante aperfeiçoado em relação ao passado, não é lícito acreditar tenha ele de ser substituído, de futuro, por outro inteiramente novo; e, do mesmo modo, sendo a atual organização política o resultado cada vez mais aperfeiçoado de longa e contínua elaboração evolutiva [...] há de prosseguir evoluindo para melhor; mas, nada indica venha de futuro a sofrer substituição radical.166

O constante vínculo de Aarão Reis com o Estado, a diversidade de suas áreas de atuação e o "enciclopedismo peculiar à época", caracterizam um perfil comum aos engenheiros brasileiros no período da República Velha167. Além disso, compartilhava com muitos destes, convicções políticas e científicas fundamentadas no Positivismo - como já apontaram vários estudos sobre a construção da Nova Capital mineira168. Há que se distinguir que as convicções positivistas de Reis não se filiavam às defendidas pelo chamado positivismo ortodoxo do Apostolado Positivista Brasileiro, sendo que Aarão Reis é considerado dentre como adepto à vertente do "positivismo ilustrado", que 165

Idem, p. 147. Idem, p. 154. 167 Calmon, Pedro. História do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, [1954], p. 404. 168 Maria Ester Reis vê no "esquadrinhamento das localidades por técnicos" um procedimento típico da "era científico/positivista" [Reis, Ma. Ester, op. cit., p. 74]. Alves da Silva o considera "um positivista de posições firmes". Para a mesma, a influência positivista pode ser reconhecida nos seguintes aspectos do planejamento da cidade: "os estudos quantificados de como deveria ser a cidade; uma pretensa zonização, onde a organização do espaço urbano seria dada através da divisão territorial das funções; a visível exclusão da classe operária deste espaço; e, finalmente uma aparência de solidariedade social ao invés do conflito" [Alves da Silva, Regina Helena. A cidade de Minas. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 1991 (Dissertação de Mestrado em Ciência Política), p. 11-2]. Magalhães e Andrade apontam, no projeto de Reis "o desenho material do desejo positivista de organizar a sociedade e prever o seu desenvolvimento" [Magalhães e Andrade, op. cit., p. 145]. 166

129

admite os aspectos filosóficos do Positivismo enunciado no Cours de philosophie positive de Comte, mas recusa as soluções autoritárias e as drásticas reformas sociais e religiosas defendidas em suas obras posteriores. A influência positivista, que tanto marcou a Engenheira no Brasil169 e também o Direito e a Medicina, não pode ser restringida àquela exercida pelo chamado positivismo ortodoxo do Apostolado Positivista Brasileiro170. Segundo Ivan Lins, esta influência deve-se mais ao "positivismo cientifico e filosófico" relacionado ao Cours de philosophie positive (1830-42) da chamada primeira fase de Comte, às obras de Littré, às de Spencer e ao Evolucionismo em geral configurando o que o autor denomina um "positivismo difuso"171. Esta mesma perspectiva é sustentada Sérgio Buarque de Holanda172 e por Antônio Paim, para quem, além da influência no movimento republicano, "a ascensão do positivismo, ao longo da República, trouxe como consequência o predomínio, no seio da intelectualidade, de uma atitude mental difusa mas persistente", que denomina de "mentalidade positivista"173. São portanto, como noções vinculadas ao "positivismo ilustrado" ou "difuso", que as convicções de Reis174, bem como as de João Pinheiro, devem ser compreendidas. Em resumo, o progresso evolutivo segundo a visão do "positivismo difuso" era fundado numa noção de identidade entre os processos naturais e sociais, no papel do Estado como organizador da nação no sentido de conduzir uma modernização gradativa e assentada nas condições herdadas do passado, e 169 170

171 172 173 174

Schwartzman, Simon. "A força do novo". Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, Vértice, n. 5, v. 2, out. 1987, p. 51. Agremiação que seguia dogmaticamente a chamada segunda fase de Comte, definida pelo seuSistema de política positiva ou trata de sociologia instituindo a religião da humanidade (1851-54), onde propõe um amplo e detalhado sistema político-religioso de reforma social. Lins, Ivan. História do positivismo no Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1964. Holanda, Sérgio Buarque. "Do Império à República". In: Holanda, S. B. (org.). História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difel, 1985, t. II, v. 5, p. 19. Paim, Antônio. História das idéias filosóficas no Brasil. São Paulo: Grijalbo, 1967, p. 192. Aarão Reis é considerado por Paim uma das "figuras destacadas" do positivismo ilustrado brasileiro, em "Introdução" à coletânea Plataforma Política do Positivismo Ilustrado [Paim, op. cit., 1981], da qual fazem parte um texto de Aarão Reis. Reis é também apontado por Lins como um dos professores da Escola Politécnica do Rio que "deixavam transparecer, em seus cursos, a influência que haviam recebido das doutrinas científicas e filosóficas de Augusto Comte" [p. 255].

130

finalmente num programa de desenvolvimento das atividades econômicas, segundo uma evolução por etapas sucessivas, partindo daquelas mais primárias e simples - como a agricultura -, em direção a realização das mais complexas como a exploração mineral e, mais ainda, a industrialização. Nas primeiras décadas republicanas, esta visão de progresso permeava o pensamento dos atores da organização política e econômica do território mineiro. A Nova Capital era compreendida como um fator de promoção desta organização, sendo o desenvolvimento dela própria concebido segundo esta visão de evolução gradativa. Essa visão de progresso evolutivo, que orientava o programa de governo apresentado por João Pinheiro em 1906, revela-se numa comparação das condições necessárias à realização do último objetivo de sua pauta de governo a exploração do ferro - com o processo de construção da Nova Capital. Na entrevista

anteriormente

comentada175,



como

governador,

Pinheiro

considerava a exportação de minério de ferro como a última etapa do processo de evolução gradativa, que se seguiria à colonização agrícola e à implementação das ferrovias. Nós temos o ferro em uma abundância inumerável, temos verdadeiras montanhas de ferro; o problema para nós seria, em verdade, exportar a Serra da Piedade e a Serra do Curral. [...]. Por que não se exporta? Pela alta tarifa das estradas de ferro.176

Pinheiro afirmava suas convicções de que a realização de tal meta seria atingida como resultado de um esforço de organização do Estado daquelas metas, que gradativamente ia se impondo: Eis aí, meu caro - disse o enérgico lutador - porque não se faz a exportação de ferro. Tenho fé, entretanto, de que essas coisas passam, como tantas outras erradas ou rotineiras, que tiveram o seu tempo e estão passando... Olhe, vamos para o terraço que ficamos melhor. [...]. Quando chegamos ao terraço, o sol

175 176

"O novo governo de Minas" (O Paiz, RJ, 19/7/1906), in Pinheiro, op. cit. Idem, p. 222.

131

iluminava fortemente a cidade, que se desenrolava em sua policromia ridente pelas formosas colinas do antigo Curral d'El-Rei. - Veja - disse-nos ainda o Dr. João Pinheiro - alguém diria que Belo Horizonte seria isso que aí está? Pois tudo é assim... É preciso propagar, persistir, confiar. E nisto, [...], estou com o Dr. Afonso Pena, [...]: quando os homens, como ele encanecidos pela experiência e pelas lutas, confiam fortemente no futuro da nossa terra, não somos os moços que temos o direito de descrer ...177

"Pois tudo é assim... ", ou seja, "gradualmente e progressivamente" como para Reis era a evolução humana178 -, parece-nos ser a divisa que orientava o imaginário conceitual, técnico e político da construção da Nova Capital. A exportação do ferro e a Nova Capital apresentavam em comum, na comparação delineada por Pinheiro, a expectativa do progresso através da realização de etapas gradativas e com graus de crescente complexidade, sendo que, embora seguindo uma suposta lei de desenvolvimento dos organismos sociais, essa realização deveria ser conduzida e promovida pela ação do Estado. Esta comparação pode ser interpretada como algo mais que uma analogia entre os dois processos e expressar o intento de que Nova Capital viesse a ser, a longo prazo, um centro de apoio para a exploração do ferro da região - atividade na qual se depositava grandes esperanças de dinamização da economia mineira - tornando-se assim o centro industrial do Estado179. Contudo, a Nova Capital era considerada em seus primórdios sobretudo como um "centro de impulsão" -

177

Idem, p. 224. Reis, in Paim, op. cit., 1981, p. 159. 179 Uma alternativa para a dinamização da economia mineira, e particularmente para a região central, era a exploração de ferro e a siderurgia. Na década de 1890 são instalados os altosfornos de maior porte da Usina Esperança, em Esperança (1888-1891) e em Miguel Burnier (1892), na zona central do Estado - sendo esta a "única usina de fundição de ferro em operação no país" até o início da década de vinte, ainda que sua produção fosse pouco significativa frente ao consumo nacional [Suzigan, Wilson, Industria brasileira. Origem e desenvolvimento, São Paulo: Brasiliense,1986, p. 259]. A despeito do fracasso das "tentativas de produzir ferro em larga escala na Zona Metalúrgica" [Singer, op. cit., 1977, p. 206] ao longo do século XIX, a Usina Esperança, assim como os estudos de Monlevade (1853) e a fundação da Escola de Minas de Ouro (1880), apontavam, no final do século, para uma possível reversão do quadro anterior, bem como para a recuperação econômica da zona Central. 178

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como a chamou Pinheiro180 - de onde seriam lançadas as medidas racionalizadoras da organização do território, como as ferrovias colonizadoras promotoras da colonização agrícola. Uma vez estabelecida a cidade como Capital política-administrativa, e com o desenvolvimento do estado, esperava-se pois que, no futuro, viesse a mesma a assumir a função de centro industrial.

Em síntese, se a Nova Capital mineira pode ser considerada como um marco da instituição da republica e do federalismo, observamos que as questões envolvidas no processo de sua localização não se reduziam apenas a um acordo ou de uma reorganização das forças políticas regionais frente ao novo regime, nem ao propósito de estabelecer condições adequadas ao governo da população urbana segundo os critérios da salubridade, mas incluíam também o papel que a Nova Capital teria na reorganização do território do Estado, enquanto promotora de um processo civilizatório. Sob este último aspecto, vimos que a escolha dos locais pautou-se por uma análise das condições geo-políticas e econômicas do Estado, fundada nos conceitos positivistas de estática e de dinâmica das forças sociais, e que a Nova Capital, enquanto um centro resultante ou de gravidade destas forças, cumpriria o papel de um centro civilizador e promotor do progresso do Estado, enquanto um polo de reorganização econômica do Estado. Observamos também que, embora seu plano de implementação tivesse como prioridade o papel político-administrativo e cultural da capital e não levasse em conta a instalação de estabelecimentos industriais, previa-se que a Nova Capital viesse a se tornar, a longo prazo o centro econômico e industrial do Estado. A implementação desta função não foi uma prioridade inicial, na medida em que a industrialização, segundo a concepção de progresso como realização 180

Pinheiro da Silva, João, "Discurso de encerramento do Congresso Agrícola, [...], de 1903", apud Melo, Ciro Bandeira de. Pois tudo é assim..., Educação, política e trabalho em Minas Gerais (1889-1907). Belo Horizonte: FAE/UFMG, 1990, (tese), p. 102.

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de etapas gradativas e evolutivas, ou seja dos processos simples para os complexos, ocorreria como após o estabelecimento das funções políticas da capital e como resultado ulterior à reorganização do território do Estado, a partir da agricultura e dos transportes ferroviários. No capítulo seguinte, trataremos da concepção do plano urbanístico da Nova Capital, examinando os fundamentos de sua composição, as perspectivas do desenvolvimento futuro da cidade e os processos pelos quais foram concebidos e regulados sua ocupação e crescimento.

134

3. A construção da Nova Capital.

Resolvida a escolha da localidade de Belo Horizonte para a Nova Capital de Minas, Aarão Reis assumiu a direção da agora Comissão Construtora, em janeiro de 18941. Logo após, o Decreto 680 regulamentou a Comissão Construtora, as atribuições e o quadro de pessoal de suas "divisões de serviço", os procedimentos relativos a projetos e a obras, bem como definiu algumas diretrizes básicas a respeito da nova capital, ainda que a tônica do decreto seja de ordem administrativa2. Segundo esse decreto, devia ser o projeto geral da nova capital "delineado sobre a base de uma população de 200.000 habitantes", porém as obras a executar de imediato "projetadas e orçadas sobre a base de uma população de 30.000 habitantes"3. Novas instruções sobre as funções das "divisões de serviços" foram expedidas em junho e em outubro de 1894, a cada vez mais detalhadas4; e em dezembro de 1894 definidas especificações gerais e preços para empreitadas5; logo após, o Decreto 803, de janeiro de 85, dispôs sobre a "planta geral da Cidade de Minas" a ser elaborada, e definia as diretrizes relativas à cessão e venda dos lotes6. Em agosto de 1894 registrou-se uma descrição de aspectos do plano da capital, já em execução7, sendo em 23 de março de 1895 apresentada por Aarão Reis a Planta Geral da Nova Capital, com um sucinto ofício

1 2 3 4 5 6 7

Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 26 Decreto 680, de 14 de fevereiro de 1894, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 31-44. Idem, p. 32. "Instruções expedidas pelo engenheiro-chefe", Minas Gerais, Comissão Construtora da Nova Capital, Revista Geral dos Trabalhos, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 122-163. "Especificações gerais e tabelas de preços para empreitadas", de 20 dezembro 1894, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 203-228. Minas Gerais, Decreto n. 803, de 11 de janeiro de 1895, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. p. 232-241. Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 179.

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explicativo8. Um mês após, imediatamente à aprovação da Planta pelo Estado, Reis encaminhou seu pedido de exoneração, sendo substituído por Francisco Bicalho9. No Ofício, Reis descreve a disposição da futura cidade, dividida em três áreas ou zonas, as características do traçado viário de cada uma, a faixa de ocupação inicial para os 30.000 mil habitantes, bem como alguns detalhes relativos à demarcação dos lotes e a toponímia dos logradouros. Os critérios mencionados neste Ofício são bastantes sucintos e giram em torno da conveniência da circulação, da higiene, da beleza, e das possibilidades de crescimento, não oferecendo, contudo, justificativas tão pormenorizadas como as do Relatório da Escolha das Localidades - repleto de estudos minuciosos, amparados por atualizada bibliografia técnica, justificativas rigorosas das decisões e minuciosa descrição dos processos técnicos utilizados10. Contudo, assim como no estudo das localidades, verifica-se na elaboração desta Planta a preocupação de Aarão Reis em apoiar seu trabalho em bases científicas e técnicas, atualizadas com as realizações de seu tempo. Tal intenção aparece manifestada em uma carta que Reis dirige então a um embaixador brasileiro na Argentina solicitando a este que lhe enviasse "quaisquer dados relativos as grandes cidades dessa República", com a seguinte justificativa: "no intuito de dar a semelhante trabalho a máxima perfeição, desejo coligir tudo quanto, no estrangeiro, possa guiar-me e orientar-me"11. Ainda que na sumária exposição apresentada por Reis da Planta Geral da Nova Capital mineira não haja menção a modelos teóricos ou exemplos de planos urbanos que lhe serviram de referência, a carta acima mencionada, certamente referindose à cidade de La Plata, capital da província argentina de Buenos Aires, 8

Aarão Reis, Ofício n. 26, de 23 de março de 1895, apresentando ao governo as plantas da cidade, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 250-253. A Planta foi aprovada pelo Decreto n. 817, de 15 de abril de 1895, cf. Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 255. 9 Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 262. 10 Igualmente minuciosos são os regulamentos e relatórios relativos à Comissão Construtora, quanto aos quadros de pessoal e atribuições, registros de serviços e custos, especificações de detalhes técnicos. 11 Carta de Aarão Reis ao Dr. Fernando Luiz Osório, Ministro Plenipotenciário em Buenos Aires, datada de 4 de outubro de 1894, apud Lima, op. cit., p. 72. Ver também Julião, op. cit., p. 66.

136

projetada e construída na década de 1880, bem como as acentuadas semelhanças do plano da capital mineira com o daquela cidade, indicam ter Reis tomado a mesma como um exemplo. Além de La Plata, diversas outras influências ou, mais genericamente, modos de composição urbanística têm sido reconhecidos por estudos sobre a Capital mineira: o plano de L'Enfant para Washington (1791) e de outros planos similares para cidade norte-americanas no início século XIX, as remodelações parisienses do século XIX, os traços do urbanismo barroco (ou classicista) europeu do século XVII, e ainda toda uma tradição das cidades ideais, das prescrições da antigüidade grega clássica, passando pelas utopias e planos de cidades ideais renascentistas, até os modelos propostos no século XIX. Esta ampla gama de vinculações sugere mais influências ou parentescos difusos do que propriamente um alinhamento ou filiação direta do plano de Reis aos planos ou modelos mencionados. A intenção manifestada por Reis de pesquisar casos precedentes de construção de cidades e a freqüente referência, nos seus relatórios, a métodos e práticas recomendadas quanto à diversos problemas técnicos com que ele se defrontava, bem como o próprio plano da capital mineira, sugerem que diversos modelos ou modos de composição urbana influenciaram a elaboração do plano urbano da Nova Capital mineira. Entretanto, as sucintas explanações de Reis sobre esse plano não explicitam quais seriam estas influências e suscitam várias hipóteses, propostas por estudos a respeito. Estas hipóteses são elaboradas seja pela identificação dos elementos, disposições e efeitos espaciais presentes na Planta de Reis - comparada à realizações ou prescrições realizadas no campo da composição urbana ao longo da história anterior, desde a antigüidade grega e principalmente no chamado urbanismo barroco -, seja pelo confronto com operações sistematizadas de produção urbana em larga escala do século XIX.

137

Examinando estas interpretações, observamos que, se por um lado elas demonstram variados aspectos da Planta de Reis reconhecíveis em outras ordenações urbanas, por outro lado, a pluralidade desses aspectos e a justaposição de características parciais de modos de ordenações urbanas diferentes entre si, indicam a dificuldade de se estabelecer uma matriz específica ou predominante. Além do objetivo de especificar as aproximações bem como as diferenças entre o plano de Reis e estas influências acima mencionadas, este capítulo busca desenvolver a hipótese de que a multiplicidade das prováveis raízes daquele plano indica ter sido o mesmo elaborado a partir de elementos "coligidos" - como escreve Reis na carta acima mencionada - de um vasto acúmulo das realizações e do pensamento relativo às cidades, recolhidos e aplicados na medida de sua pertinência ao encargo em questão. Pode-se ver neste procedimento uma atitude característica do ecletismo historicista do século XIX e da visão positivista do saber como resultado de uma progressivo acumulação de conhecimentos, cuja evolução conserva a herança do passado, atualizada pela ampliação dos recursos de observação científica e da capacidade técnica do presente. Por uma análise do modo de composição do plano, vê-se nele ser coligidos elementos baseados no amplo acervo da prática e do conhecimento relativa à construção das cidades, adequados na medida da conveniência às circunstancias, tendo em vista atingir uma síntese acumulativa destes conhecimentos e práticas. Além disso, esta síntese não se apresenta como uma configuração absolutamente definida e instauradora de uma ordem urbana estática. Como veremos, a cidade foi projetada também segundo uma dimensão temporal, evolucionista, pois os diversos conjuntos de operações urbanas são concebidas por etapas, relacionadas a um população que iria crescer gradualmente, e que se tornam mais indefinidas a medida em que seu amplia seu período ou horizonte cronológico de vigência. Podem ser identificadas 138

basicamente três etapas do desenvolvimento da cidade, pelas previsões de seus planejadores: uma inicial relativa à construção inicial suficiente às necessidades então atuais da burocracia estatal e prevista para uma população de 30.000 hab., uma segunda, relativa a uma base de 200.000 mil habitantes sobre o qual deveria ser elaborado a Planta Geral da cidade, e uma terceira, apenas implícita, posto que não definida como tal nos planos, mas que pode ser reconhecida tanto pelas expectativas de crescimento para além daquele limite como pela abertura à expansão que o desenho da Planta Geral indica. A despeito da ampla dimensão reguladora imposta pelo traçado geometricamente estruturado da Área Urbana, a Planta Geral de 1895 funciona como uma estrutura - como Aarão Reis se refere a ela posteriormente, em 1926 -

onde são demarcadas etapas de implementação distintas, deixando-se

reservas para expansão futura na área urbana, assim como induzindo-se a ocupação periférica desta última. Além da Planta Geral, outras medidas tomadas pelo poder público compõem um conjunto de estratégias de condução da implantação e da urbanização da Nova Capital, onde pode-se ver uma busca da continuidade das orientações e designos que marcaram sua concepção inicial. A partir de questões levantadas por diversos estudos sobre o plano urbano

da

Nova

Capital

mineira,

buscaremos

uma

interpretação

dos

fundamentos compositivos desse plano, bem como das suas posturas quanto à regulamentação da ocupação e da distribuição do espaço. Analisaremos primeiramente a Planta Geral de Aarão Reis, sob os seus aspectos de composição, e em seguida, abordaremos as estratégias da distribuição, ocupação e edificação do espaço urbano, definidas por esta Planta, bem como por outras medidas.

139

FONTE: Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 252.

140

3.1. O modo de composição urbana da Planta Geral No polígono destinado à nova capital, foi disposta na parte central, onde se localizava o antigo arraial, a "área urbana de 8.815.382 m2 dividida em quarteirões de 120 x 120 m, pelas ruas, largas e bem orientadas, que se cruzam em ângulos retos, e por algumas avenidas que as cortam em ângulos de 45º". Esta área configura-se como um malha quadrada de ruas, em interseção com uma malha de avenidas diagonais, de maior intervalo, assumindo ainda algumas vias da primeira malha características de avenidas. Amplamente dimensionada, a largura das ruas é 20 m. e a das avenidas de 30 m., exceto a que seria "o centro obrigatório da cidade", de 50 m., ao longo da qual foi localizado o "grande Parque", previsto como "o maior atrativo da nova cidade". Em vários pontos de cruzamento das avenidas, coincidente com cruzamentos de ruas, foram dispostos praças e edifícios de caráter público, caracterizando funcionalmente os setores adjacentes. Apesar do geometrismo do traçado, Aarão Reis ressalta ter sido a Planta Geral "desenhada sobre a topografia local", sendo possível, de fato, reconhecer uma adequação à conformação do terreno na disposição dos setores, praças e edifícios, ou seja, uma relação da posição destes em pontos elevados ou em áreas planas, de acordo com seu caráter e finalidade. A malha geométrica da "área urbana" foi delimitada por "uma avenida de contorno" - que a recorta como um polígono irregular, segundo a adequação ao sítio - e circundada por uma segunda zona, denominada "suburbana", com 17.474.619m2. Nesta última, "os quarteirões são irregulares, os lotes de áreas diversas, e as ruas traçadas em conformidade com a topografia e tendo apenas 14 [metros] de largura", sendo que as ruas, as quais têm como ponto de partida a avenida do contorno, raras vezes dão continuidade direta ao traçado interno. A zona suburbana é, segundo Reis, "envolvida por terceira zona de 17.474.619 m2 reservada aos sítios destinados à pequena lavoura"12. Contudo, observando a 12

Aarão Reis, Ofício n. 26, de 23 de março de 1895, apresentando ao governo as plantas da cidade, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 251.

141

Planta Geral, vemos que esta zona - localizada na encosta da Serra do Curral envolve apenas o trecho do perímetro da suburbana correspondente a um quadrante (Sul). A região periférica que envolve a zona suburbana a Oeste, Norte e Leste não foi objeto de nenhum delineamento urbano, nem de diretrizes gerais quanto à sua configuração ou ocupação e sequer foi representada na Planta Geral, posto que estava além dos limites oficiais da cidade. Enquanto a delimitação da "área urbana" foi realizada no traçado viário através de um lugar construído determinado - a avenida do Contorno -, a zona suburbana não tem nenhuma solução de continuidade em relação à sua periferia. O limite da suburbana, ou seja, o limite oficial da cidade, é apenas uma demarcação abstrata, não consubstanciada num elemento urbano construído. Ainda que a partir deste limite nada é definido, as vias suburbanas que o atingem parecem direcionadas a um prolongamento além do mesmo - o que se pode infererir pela configuração geral expansiva do traçado e, particularmente, pelo fato de algumas vias originarem-se a pequena distancia deste limite, o que só se justifica pela possibilidade de sua extensão. Esta propensão à continuidade das vias suburbanas indica que, se o projeto circunscreve-se a este limite, o sistema viário e a cidade foram concebidas como potencialmente expansíveis. Se por um lado a composição da "área urbana" segundo um padrão geométrico e delimitado imprime um caráter estático à figura de sua estrutura, a implementação e a ocupação desta área foram pensadas e conduzidas segundo um desenvolvimento temporal e gradativo. Além disto, a abertura potencial do traçado da zona suburbana à expansão, o incentivo à sua ocupação concomitante à da "área urbana" e ainda a expectativa de um crescimento para além do horizonte de trabalho do plano indicam mais o propósito de impor ao crescimento uma ordem do que fixar uma ordem definitiva.

142

ASPECTOS BARROCOS E O MODO DE COMPOSIÇÃO DA ÁREA URBANA Os edifícios e praças públicas, localizados em cruzamentos das redes viárias da chamada "área urbana" da Nova Capital mineira, configuram um sistema de focos de irradiação viária. Neste traçado Adelman identifica o "barroque street layouts" - definido nas construções urbanas do século XVII, principalmente

da

monarquia

francesa,

com

suas

avenidas

longas,

uniformemente diretas, irradiando dos monumentos públicos - como um ambiente próprio das capitais políticas: "wherever men have desired to symbolize authority and the will of state, be it in monarchic Versailles, czarist St. Petersburg, or republicam Washington, they have adopted the language or barroque civic design"13. A identificação deste dispositivo, bem como de outros aspectos característicos de um "modo barroco de produção da cidade" é também reafirmada

por

Magalhães

&

Andrade14,

que

aprofundam

a

questão,

reconhecendo também um outro aspecto, relativo à delimitação da "área urbana". Para esses autores, em Belo Horizonte, "com a Proclamação da República, em função da conservação no poder de um grupo político, sob a mística da modernidade, implanta-se uma cidade que reapresenta velhas postulações espaciais autoritárias"15. Mais do que uma simples mudança de local, o espaço deveria ter "qualidades intrínsecas especiais" que possibilitassem o "funcionamento eficiente do Estado - fator de integração e de confirmação das forças dominantes". Para esses os autores, a concepção da cidade recorre, de modo geral, ao "argumento da razão para definir a interação entre ordem espacial e ordem social"16.

13

Adelman, Jeffrey. Urban planning in Republic Brazil: Belo Horizonte, 1890-1930. Michigan: Indiana University, 1974, (Ph.D. dissertation), p. 52. 14 Magalhães, Beatriz de Almeida & Andrade, Rodrigo Ferreira. Belo Horizonte: Um espaço para a república. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1989. 15 Idem, p. 31. 16 Idem, p. 51.

143

Trata-se, segundo esses autores - retomando uma análise de Mumford17 de uma longa tradição. O "conceito de interação entre ordem espacial e ordem social, mediada pela racionalidade" remonta a Platão, "ao imaginar a sua Pólis circular e finita, em As Leis, visando a um controle da sociedade pela geometria"18, reaparecendo nas cidades ideais renascentistas, caracterizadas pelo esquema da cidade fechada e pela ordenação da sociedade e do espaço pelo soberano, que ocupa posição de centro19. O urbanismo absolutista assimila a sugestão de Maquiavel, em O Príncipe, da "cidade sem fortaleza" e em expansão, bem como o esquema do asterisco das fortificações, suprimindo-lhe as muralhas, e introduz "uma noção nova: a infinitude urbana"20 - realizando a "vontade de ordenação" do modelo platônico e da utopias renascentistas, entretanto diferenciando-se destes dois últimos pela idéia de "movimento centrípeto" ilimitado21. O urbanismo barroco inaugurado em Versalhes configurase, ao longo de diversas experiências posteriores, mais do que como um estilo de planejamento, como um procedimento de regulação da luz, de clarificação urbana, que ultrapassa o seu período histórico e se repete quando é solicitada uma excelência e uma eficácia cenográfica para garantir o espetáculo - manifestação e manutenção do poder. Esse procedimento tem sua versão republicana em Washington, no final do século XVIII. Depois, na Paris de Napoleão III e do Barão de Haussmann. Na América Latina, faz-se ver em La Plata. No Brasil, com a Proclamação da República, surge singularmente, como veremos, em Belo Horizonte.22

Magalhães & Andrade apontam no plano urbanístico de Belo Horizonte os seguintes aspectos característicos do modo de composição barroca: a "combinação do sistema de convergências, resultante do traçado viário, com o sistema de irradiações, obtido pela locação dos monumentos arquitetônicas"23, a

17 18 19 20 21 22 23

Mumford, Lewis. A cidade na história. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965, v. II. Magalhães & Andrade, op. cit., p. 32. Idem, p. 53. Idem, p. 32. Idem, p. 53. Idem, p. 32-3. Grifos dos autores. Idem p. 71.

144

"sistematização integrada dos diversos componentes do projeto", "um forte sentido de hierarquia, com o parque em posição de privilégio" e a intenção cenográfica"24. Este "modo barroco de abrir o espaço", envolvendo o expectador numa rede de focos do poder, "a submissão do cidadão ao Estado"25. Além dos dispositivos barrocos, os autores vêm na circunscrição do traçado barroco à Área Urbana limitada Avenida do Contorno a presença dos esquemas fechados platônico-renascentistas, retomados pelos reformistas sociais do século XIX nas chamadas "utopias ativistas": A singularidade do espaço de Belo Horizonte é que ele se conforma, inicialmente, como uma composição barroca, para ser fechado, em seguida, paradoxalmente, por uma via em anel, nos moldes da composição circular da cidade utópica platônica.26

O diagrama resultante é um "conjunto trilógico" formado pelo Parque, pelo espaço sistematizado e limitado da zona urbana, e pela zona suburbana, de "geometria menos rígida", que os autores relacionam à trilogia positivista da Lei dos Três Estados - a "ordem afetiva, a ordem especulativa e a ordem ativa" - e entendem como o "desenho material do desejo positivista de organizar a sociedade e prever o seu desenvolvimento"27. A análise de Magalhães & Andrade aponta para uma combinação ou superposição de dois modos de composição distintos - ou mesmo paradoxais, como eles próprios afirmam -, o barroco e o utópico28. Trataremos neste tópico dos aspectos barrocos na composição da área urbana e no tópico seguinte da assimilação dos modelos utópicos. Além destes, observamos ainda na Planta Geral da Nova Capital outros procedimentos relativos à composição do plano e às estratégias de sua implementação, os quais incluem elementos dos anteriores, porém incorporados a um outro sistema compositivo pós-barroco,

24

Idem, p. 124-6. Idem, p. 147. 26 Idem, p. 121. 27 Idem, p. 144-6. 28 Idem, p. 135. 25

145

bem como a outras posturas relativas à questão da previsão do crescimento urbano. Consideramos que este fato pode ser compreendido dentro do ecletismo e da perspectiva positivista do conhecimento acumulativo e evolutivo, característicos do século XIX e, particularmente, compartilhados por Aarão Reis. A relação entre os padrões das construções urbanas do Absolutismo francês do séc. XVII, associados à expressão da força e soberania do Estado, e o traçado da Nova Capital é procedente, pois este último apresenta, como demonstram Magalhães & Andrade, aspectos característicos do urbanismo barroco, bem como a intenção do projeto da Nova Capital de afirmação do poder do Estado. Contudo, o reconhecimento de semelhanças de elementos compositivos e de afinidades políticas acaba por ocultar diferenças entre os dois casos, tanto sob o aspecto compositivo, como sob o aspecto da concepção de Estado e de sua representação no espaço urbano. Faremos inicialmente das um estudo do sistema compositivo das construções urbanas francesas do século XVI, ou seja do "urbanismo barroco" - também denominado

"arte urbana

clássica" ou "urbanismo clássico" por outros autores - no sentido de compará-lo em relação aos procedimentos compositivos que observamos na Planta Geral da Nova Capital. Poéte denomina art urbanain classique as construções urbanas realizadas em Paris a partir do século XVI, caracterizadas inicialmente por uma rua larga e reta, ao longo da qual se desenvolvem um conjunto de edificações regulares e simétricas, "d'une mesme hauter et forme" - conforme expresso no regulamento de 1507 relativo à rua de prolongamento da pont Notre-Dame (1499), considerada o marco deste tipo de composição, que coincide com o início do estabelecimento da realeza em Paris29. A partir do início do século XVII, conjuntos urbanos unificados perspectivamente segundos os princípios da arte urbana clássica são construídos em Paris, como a Place Dauphine (1607) e

29

Poete, Marcel. Formation et evolution de Paris. Paris: Sociéte d'Édition et de Publications/Félix Juven, 1910, pp. 72-3.

146

a Place Royale (1604-12), trazendo uma nova modalidade de praça: enquanto anteriormente as praças formavam-se ao longo do tempo a partir de alguma condição urbana, como um nó de circulação ou uma Igreja, estas novas praças um espaço livre enquadrado por uma seqüência de construções uniformes - são conjuntos concebidos como um todo e introduzidos no tecido urbano30. Nestas praças os elementos arquitetônicos estão subordinados a uma composição urbana - na primeira, a partir de um traçado triangular e na segunda, de um traçado retangular - sendo as edificações submetidas a um mesmo padrão, principalmente quanto a altura. Sobre a Place Royale, Benevolo considera que "tudo está concebido como se a arquitetura fosse um elemento envolvente, indispensável, porém não chamativo; o efeito que a praça produz procede da visualização direta das operações urbanas, o traçado e a planificação"31.

A

Place de France (1603), ainda que não realizada inteiramente, introduz no urbanismo clássico francês o dispositivo das vias radiais convergentes para o foco representativo do poder real. A praça visava simbolizar a unificação do território do Estado em torno do poder real, tanto pela disposição formal, como pelo fato das ruas radiais portarem o nome das províncias da França32. Nestas construções urbanas, a submissão dos edifícios a um traçado geométrico e apreensível como um todo é devida ao dispositivo do programa, ou seja, a imposição, pelos regulamentos urbanos franceses do século XVII-XVIII, de uma mesma altura a todas as edificações de uma rua, de um conjunto urbano ou mesmo de uma cidade inteira33. Realiza-se, na escala urbana, o princípio compositivo definido a partir do Renascimento, isto é, segundo uma hierarquia de elementos, definidos e proporcionados por subordinação a uma disposição superior - no caso o traçado e a uniformidade das alturas das edificações - com

30

Idem, p. 100-108. Benevolo, Leonardo. Historia de la arquitectura del Renacimiento. Barcelona: Gustavo Gili, 1984, p. 909. 32 Poète, op. cit., p. 104, 107. 33 Harouel, Jean-Louis. História do Urbanismo. Campinas: Papirus, 1990, p. 68. 31

147

o objetivo de produzir uma aparência unificada, apreensível perspectivamente e refletindo a soberania do governo real absolutista sobre a sociedade. Estas praças, concebidas enquanto conjuntos unitários e submetidos a uma unificação perspectiva dos elementos arquitetônicos ao traçado e a uniformidade das alturas, podem ser consideradas como realizações pioneiras da composição barroca aplicada à escala urbana. Além disto, elas deram origem a uma série de praças reais construídas em Paris e em outras cidades francesas, notadamente sob o reinado de Luís XIV34, onde vê-se a multiplicação em larga extensão deste elemento representativo do poder real, criando uma "vinculação política e simbólica com a capital"35. Nos empreendimentos urbanos da monarquia francesa do setecentos, podemos reconhecer, numa escala maior, os mesmos princípios verificados nestas praças, ou seja, a unificação perspectiva

dos

elementos

arquitetônicos

oferecidas

à

visualização

e,

principalmente, a articulação das partes para o todo desdobrando-se em conjuntos a cada vez mais amplos, como reprodução e extensão do princípio do poder absoluto. A cidade de Richelieu, na França, construída pelo ministro de Luís XIV (1624-43) a partir de 1631, é considerada um marco inicial do urbanismo barroco. Trata-se de um cidade construída por acréscimo a um castelo e a um parque já existentes, e não concebida em conjunto com estes. É delimitada por um retângulo dividido por uma malha ortogonal,

atravessado por uma rua

central e reta, que a liga ao castelo e ao parque36. Ao longo desta grande rue, todas as casas são iguais, e a repetição do esquema formal simples de suas fachadas produz um efeito de simetria, elogiado por escritores da época. A cidade, chamada por um contemporâneo de "cidade de naipes", é uma 34

Como a Place des Victores, originalmente Place Louis XIV (1682-7), a Place de Vendôme ou Place Louis Le Grand (1699-1708), e as Places Royales de Dijon, Lyon, Montpellier e Rennes, no início do setecentos. Cf. Harouel, op. cit., p. 70-2 e também Brandão, Carlos A. Leite. A formação do homem moderno vista através da arquitetura. Belo Horizonte: AP Cultural, 1991, p. 126. 35 Sica, Paolo. La imagen de la ciudad. Barcelona: Gustavo Gili, 1977, p. 92. 36 Goitia, Fernando Chueca. Breve história do urbanismo. Lisboa: Presença, 1992, p. 140.

148

preparação perspectiva do castelo, análoga a produzida pelas filas de árvores do parque, e daí ser a rua axial seu elemento predominante37. A experiência de Versalles apresenta-se semelhante à anterior quanto ao procedimento das partes para o todo, bem como quanto ao objetivo perspectivístico, porém a extensão tendencialmente ilimitada do conjunto ultrapassa a capacidade de apreensão perspectiva do conjunto enquanto uma forma comensurável, introduzindo um salto na escala até então tradicional do projeto38. A ordenação paisagística numa escala de grandes magnitudes, além da apreensão perspectiva de um conjunto limitado, fora realizado no parque do castelo de Vaux, a partir de 1656, pelo jardineiro Le Nôtre - onde também trabalharam o arquiteto Le Vau e o decorador Le Brun, que inauguram a então chamada maniera magnifica39, porém é em Versalles que atinge o grau máximo. Em 1664, os três iniciam a ordenação de um novo palácio, aproveitando e ampliando um castelo construído por Luis XIII desde 1623, e definido o arranjo urbanístico e paisagístico adjacente. Um sistema radial de três vias é disposto a partir da entrada do palácio, ligando-o com os centros da periferia próxima de Paris, e estruturando uma cidade destinada à burocracia real; do outro lado, ao longo do eixo principal do palácio, a um quilômetro deste, parte um dispositivo radial de avenidas que ordenam o parque. Posteriormente (1668 -1671), o parque é ampliado, instalando-se, após o conjunto radial e seguindo o eixo principal, o grande canal em forma de cruz, definindo um segundo sistema de eixos, e, mais adiante, um terceiro conjunto radial de dez avenidas, já a três quilômetros do castelo40. Tanto a cidade como o parque são estruturadas por perspectivas extensas cujo foco é o palácio. Cidade e natureza são

37

Benevolo, op. cit., 1984, p. 921-924. Idem, p. 960-5 39 Idem, p. 930. 40 Idem, p. 966. 38

149

subordinadas ao centro do poder real, e as diversas ordenações radiais são desdobramentos deste foco41. Cada intervenção é concebida parcialmente e a cada vez, como um agrupamento de elementos construtivos tendo em vista a composição de um espaço percebido perspectivamente por quem nele se situa. A partir da unidade do conjunto perspectivo enquanto um foco que se desdobra e se estende por adição de partes sucessivas, são formados conjuntos maiores e cada vez mais complexos. Pelo efeito destas várias operações consecutivas desdobra-se a estrutura espacial básica do foco, formando um sistema indefinidamente extenso.

As etapas de Versalles ilustram de forma plena, para Brandão, o esquema típico das operações urbanas do período barroco, caracterizada pelo "espírito de sistema": primeiro, a centralização, isto é, a construção de "centros focais hierárquicos representativos do poder absoluto"; segundo, a "continuidade", isto é, a propagação destes focos pela estrutura urbana adjacente, de modo a enfatizá-los; e finalmente, a "extensão", onde a ordenação se em uma larga amplitude e atinge a paisagem natural42. Esta sequência de etapas, atingida plenamente em Versalles e em seus sucedâneos, pode ser relacionada com a concepção de Descartes do universo como extensão (res extensa) contínua e mecânica de partes43. Observamos que esta sucessão de etapas se dá como desdobramento do princípio inicial da centralização, o qual rege cada uma das partes adicionadas, que incorporadas sucessivamente ao conjunto já existente, constituem, a cada vez, uma unidade mais complexas e extensamente indefinida.

41

O palácio como foco de uma extensa ordenação, envolvendo parque e por vezes uma cidade, ocorre também em empreendimentos posteriores de outras monarquias européias, como nos palácios de Viena (Schonbrunn e Belvedere) e em Karlsruhe. 42 Brandão, op. cit., p. 118. 43 Idem, p. 126 e pp. 159-62.

150

Para Benevolo, o empreendimento de Versalles ultrapassa a escala tradicional do projeto, definida pelos limites da apreensão perspectiva de um conjunto

limitado,

e

"representa

fisicamente

a

dimensão

infinita

da

perspectiva"44. Apresenta-se ali pela primeira vez, o projeto urbanístico como "uma metodologia para intervenções a grande escala, especificamente distinta da metodologia da escala arquitetônica [...], sob a forma de projeto paisagístico"45. Contudo, como vimos, o conjunto de Versalles foi resultado de uma adição sucessiva de partes e não da implantação de um plano concebido por inteiro e anteriormente à execução, sendo a unidade do conjunto garantida pela reprodução e expansão sistemática de um mesmo princípio compositivo. Além disto, parece não haver nas experiências barrocas a prática de um plano urbanístico geral, a ser implantado por etapas previamente calculadas, fato que o próprio Benevolo aponta como sendo um limite da planificação urbanística das novas cidades italianas, francesas, inglesas e escandinavas nos séculos XVIIXVIII: são hipóteses esquemáticas "que não tem em conta nem as etapas nem as modalidade de realização", sendo muitos traçados não realizados ou realizados fragmentadamente46. Além da orientação à visualização perspectiva, conforme descrito anteriormente, dois outros aspectos caracterizam o procedimento de projeto urbano barroco. Primeiro, do ponto de vista da estrutura da operação arquitetônica, cada parte do conjunto é concebida e implantada como uma unidade autônoma, que se insere na anteriores de modo a compor um novo conjunto, que todavia, não esta definido a priori, mas constituiu-se através da multiplicação dos sistemas focais. Não há, pois, uma concepção geral e inicial do conjunto que resultou ao cabo das sucessivas operações, ainda que este pareça ter sido assim composto, devido a unidade do princípio que as orientou. A ordenação urbana procede da parte para o todo, como observa Rosenau: 44

Benevolo, 1984, op. cit., p. 960. Idem, p. 958. 46 Idem, p. 1042. 45

151

During this period the desire for architectural and illusionistic expansion was paradoxically coupled with emphasis on the partial plan, rather than development of the whole. 'Pars pro toto' might serve as the motto: a variety of parts regarded as units of possible expansion. The two planned cities of Versailles and Karlsruhe, with their fan-like designs, represent the main aspects of Baroque planning: the significance of the sector and the potential of unlimited expansion, combined with a rare emphasis on the unity of the entire town.47

Segundo, do ponto de vista da representação simbólica do poder, o que ocorre é a multiplicação de um mesmo conteúdo, ou seja, os desdobramentos do espaço focal reflete, a própria extensão do poder real. Ainda conforme Rosenau, It is easy to see that the two elements, the focal points and the expanding sectors of a fan-like design, were well fitted to express the ideology of the Baroque and the desire for political centralization48.

Se a Planta Geral da Nova Capital mineira apresenta elementos característicos do urbanismo barroco, é necessário verificarmos se sua composição obedece aos mesmo procedimentos que identificamos acima. Em seu trabalho sobre a arquitetura do século XVIII, isto é, da transição do Barroco ao Neoclássico, Kaufmann defronta-se, neste período, por um lado com a persistência das formas clássicas e por outro lado, com um novo procedimento de composição arquitetônica. Considerando que a persistência ou a recorrência das formas do passado é fato comum em diversas épocas, o autor propõe que a especificidade de cada uma destas épocas não está tanto nos traços formais mas no modo de interrelação das partes, que ele denomina de sistema compositivo49. Portanto, a presença num dado objeto de traços formais de um determinado estilo ou modo de composição arquitetônicos ou urbanos do passado, ainda que revelador das fontes e intenções que concorreram na

47

Rosenau, Helen. The ideal city. London: Studio Vista, 1974, p. 82. Idem, p. 72. 49 Kaufmann, Emil. La arquitectura de la Ilustracion. Barcelona: Gustavo Gili, 1974, p. 96. 48

152

produção daquele objeto, não é suficiente para identificá-lo inteiramente a este modo de composição. Além disto, a forma de uma construção não é apenas determinada pela lógica específica de seu campo técnico ou artístico de sua produção, mas também pelos interesses das classes sociais e dos grupos políticos que patrocinam ou dirigem sua produção. Destes interesses, interessa-nos aqui, tratando-se da produção de uma capital surgida como marco do novo regime republicano e de seus projetos de reorganização do Estado e da sociedade, reconhecer as representações simbólicas vinculadas aos modos de composição urbana no caso em questão. Vimos que no modo de composição urbana do período barroco, em suas realizações iniciais (as Praças reais) cada conjunto é concebido como uma construção urbana completa, sendo as vias ou praças e as edificações e demais elementos envolventes definidos e construídos conjunta e completamente, subordinados ao efeito de visualização perspectivística de uma composição unitária. Nos conjuntos mais complexos e amplos como o de Versalles, ainda que seja ultrapassada a capacidade de apreensão perspectiva do conjunto inteiro, a concepção e construção se dão por extensões e pela adição de novos lugares focais, enquanto multiplicações do lugar focal inicial, sendo o sistema resultante converge e subordinado ao foco inicial. A composição procede da parte para o todo, sendo o todo a multiplicação e extensão indefinida da parte inicial. Portanto, não há a concepção de um plano geral, a ser implementado por etapas graduais ao longo do tempo. Sob o aspecto da representação política, as Praças Reais parisienses e seus múltiplos nas províncias francesas, os encadeamentos sistemáticos dos focos espaciais de Versalhes e de outras construções do Estados monárquicos europeus dos séculos XVI-XVII são a representação da centralidade e da extensão do poder real absolutista, ou seja, é um mesmo princípio que se repete por extensões sucessivas, reproduzindo a figura do todo, a figura do soberano. 153

Apesar de identificarmos na Planta Geral da nova capital mineira a presença de praças e edifícios públicos como lugares focais de irradiação das vias, a composição da planta não tem como ponto de partida estes lugares, e nenhum deles configura-se como o foco central e dominante, do qual se originassem ou ao qual se subordinassem, por prolongamentos e multiplicações, os demais focos e as vias do conjunto - tal como verificado nas composições barrocas. No sucinto Ofício de apresentação ao governo da Planta Geral da Cidade de Minas, Aarão Reis descreve como "foi organizada" a mesma: inicia pela disposição das áreas ou zonas da cidade, passando para caracterização do sistema viários e dos lotes de cada uma. Apesar de tratar de detalhes como a numeração de suas "seções" e dos lotes e a denominação das vias, nenhuma menção é feita à localização e a disposição dos edifícios públicos e das praças em que se situam, o que sugere não ter sido estes os pontos de partida da composição, mas que foram eles inseridos na estrutura geral já lançada. Esta descrição de como "foi organizada" a planta, num sentido do geral para o particular, isto é, da delimitação das zonas para suas subseqüentes divisões, indica que o procedimento de sua composição teve como ponto de partida a disposição das grandes zonas - urbana, suburbana e de sítios - e a estruturação geral de cada uma, das quais recebeu maior elaboração a zona urbana. A descrição da área urbana reflete também este mesmo procedimento: a operação primordial de sua composição é o lançamento da rede das ruas e quarteirões, à qual são superpostas as avenidas. Pode-se depreender, pela descrição e pelo própria configuração da Planta, que "área urbana" foi concebida a partir da conjunção dos dois sistemas de coordenadas ou eixos básicos do traçado viário, implantados sobre o terreno, levando-se em conta sua topografia na definição e caracterização dos elementos específicos, ou seja, das vias e dos lugares públicos focais, pois como diz Reis, a planta foi "desenhada sobre a topografia local". Portanto, a Planta Geral 154

parece resultar de um esforço de acomodação de uma estrutura geral abstrata à constituição física do terreno, buscando-se localizar os estabelecimentos e edifícios públicos ou de relevância coletiva em pontos e regiões convenientes, segundo a ordem da estrutura e a configuração do terreno. Nesta operação, a estrutura básica é diferenciada em alguns pontos segundo a posição no terreno e segundo sua destinação, de modo a configurar os elementos focais e de referência às atividades públicas e coletivas da cidade. Sobre essa estrutura geral, o Parque foi disposto, segundo Reis, de modo a aproveitar a área de topografia "muito acidentada" da confluência do "Córrego Acaba-Mundo com o Ribeirão Arrudas, onde existiam "várias fontes naturais", e em torno de seus lados foram dispostos algumas praças e edifícios de caráter público50. Em um desses lados, a Praça da Estação - a primeira a ser definida e implantada - e a Avenida do Comércio - partindo dessa Praça em direção à Praça do Teatro -, ocupam uma esplanada próxima ao Ribeirão do Arrudas, configurando um setor comercial e relativo à esfera pública burguesa. A avenida a qual foi dada maior largura que às demais (av. Afonso Pena), que corta toda a área urbana como um eixo central, aproveita um grande trecho plano daquela esplanada e prolonga-se em linha reta, atingindo um trecho mais íngreme, em direção a um ponto mais elevado, onde foi localizada a Igreja Matriz. Ao longo desta avenida, em frente a outro lado do Parque, foram localizados o Palácio do Congresso e o da Justiça, na Praça da República, e em outro lado, na Praça do Progresso, com as Secretarias de Estado. Mais além, na região oposta ao parque, em relação à avenida central, foi localizado, no local mais elevado, o Palácio Presidencial, na Praça da Liberdade, e na área mais baixa e mais próxima do setor comercial, a Municipalidade, caracterizando assim a hierarquia destas instituições. As ligações entre estes pontos, realizadas por avenidas monumentais, configuram uma rede de figuras triangulares encadeadas no

50

Aarão Reis, Ofício n. 26, de 23 de março de 1895, apresentando ao governo as plantas da cidade, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 251.

155

sentido de uma esfera de atividades estritamente urbanas à esfera do governo do Estado: Estação - Teatro - Municipalidade; Estação - Municipalidade - Pç. da República; Pç. da República - Municipalidade - Praça Liberdade e Pç. da República - Praça Liberdade - Pç. do Progresso. Observamos que a disposição das praças sedes dos grandes edifícios públicos no traçado viário, ainda que proporcione o efeito de convergência do setor imediato a cada um deles, não produz uma convergência de todo o conjunto da "área urbana" em direção a um deles, ao qual os demais ficassem a este subordinados. Cada praça, associada a um edifício sede de uma instituição pública ou de uso coletivo, gera uma área de influência própria, determinando ou induzindo um tipo de ocupação específica nesta área, mas estes focos e suas áreas adjacentes estão justapostos e interconectados formando um conjunto coordenado de elementos diversos e distintamente caracterizados. Nota-se assim uma divisão dos setores da vida da capital, distribuídos em locais distintos e especializados e polarizados por edifícios e praças monumentais, mantendo um calculado distanciamento entre si, de modo a propiciar, por um lado uma especialização e caracterização de cada espaço, e por outro, uma distribuição homogênea das instituições e das funções por todo a "área urbana". Os diversos focos e setores, diferenciados segundo sua função e caráter, formam um conjunto onde as partes apresentam uma certa paridade e equilíbrio, não se verificando uma subordinação hierárquica a um deles. O ponto de partida não é portanto um determinado edifício ou um lugar focal, enquanto centro de uma unidade compositiva e perspectiva, tal como nas composições barrocas, mas o sistema de eixos e vias, em cujos pontos de interseção foram localizados os locais e edifícios públicos principais, formando um conjunto baseado em um sistema de coordenadas. O traçado e edifícios públicos estão vinculados, porém a disposição, além de ultrapassar o campo da visão perspectiva, remete a uma ordem cuja apreensão é sobretudo mental e não sensível, como no urbanismo barroco. 156

Outro aspecto a observar é que a configuração dos lugares focais da Nova Capital não é programada de modo a resultar-se num controle absoluto e integrado de todas as edificações envolventes. Ainda que alguns elementos destes lugares focais foram definidos rigorosamente pelo plano - tais como os edifícios público principal e a arborização das praças e avenidas - os edifícios envolventes que definiriam a conformação arquitetônica do conjunto são deixados à iniciativa privada, e apenas mais tarde regulamentados por disposições válidas para todas as construções da cidade. Um terceiro ponto, vinculados aos anteriores, é o fato do plano da Capital ser formulado como uma Planta Geral, aberta a definições posteriores, bem como reservando áreas para etapas de implementação e ocupação futura - aspectos inexistentes nos planos barrocos, onde vinculado ao empenho de se definir cada parte de modo completo e acabado, não se define linhas gerais de expansão futura. Portanto, embora elementos formais do urbanismo barroco ocorram no plano de Belo Horizonte, a inter-relação entre os elementos e o modo de composição deste último diferem daquele, sob os aspectos mencionados. Além disto, considerando que em ambos verifica-se uma tentativa de representação espacial do poder político do Estado, as diferenças do sistema compositivo podem ser relacionadas a diferenças na representação do imaginário político na forma urbana. Na Nova Capital mineira, ao contrário do princípio do poder unificado na figura do soberano real, é o regime republicano que se procura representar. A republica, com sua divisão de poderes e seus aparatos burocráticos e instituições civis, não se adequaria a uma representação caracterizada pela convergência para um único foco, mas a uma distribuição regular e sistemática de seus estabelecimentos públicos por todo o espaço urbano. Assim pode-se compreender que a sede do governo não seja colocada como o centro de convergência de toda a cidade. Outro aspecto onde isso fica claro é na localização do poder executivo distinta do poder legislativo e judiciário, e ainda 157

na divisão espacial do próprio poder executivo na sede do governo propriamente dito, localizada na Praça da Liberdade, e nas secretarias de Estado, localizada na Praça do Progresso, segundo a disposição prevista pelo plano, porém não assim implementada. A Planta Geral, por um lado busca expressar uma certa divisão de poderes e uma certa autonomia das esferas públicas e privadas, e por outro, impõem, pela distribuição das instituições públicas no espaço e pela coordenação de todos os setores à ordem abstrata da estrutura geral, um domínio difuso porém sempre presente do Estado. Como afirmam Magalhães & Andrade, o espaço da área urbana delimitado pela avenida do Contorno configura-se como "um motor ativo, capaz de disciplinar a sociedade" e submeter o desenvolvimento da sociedade civil ao Estado51. Observamos que, se por um lado a área urbana pretendia oferecer um espaço privilegiado e exclusivo das atividades e categorias sociais direta ou indiretamente vinculadas ao Estado, posto que a cidade é concebida como a capital política, por outro lado ela também era destinada ao estabelecimento da elites econômicas e intelectuais mineiras. Assim como a estas instituições e a estas elites caberia a função de reorganizar e promover a sociedade sob o novo regime republicano federativo, caberia ao espaço da "área urbana" a missão de ordenar o território do Estado, bem como ser sua síntese e reflexo. Cabe lembrar que Aarão Reis, enquanto partidário do positivismo, criticava o liberalismo e destinava ao Estado o papel de condutor e regulador das funções econômicas, afirmando que "à inteligência dirigente dos mais competentes cabe a tarefa de ir descobrindo os caminhos mais diretos e os processos mais eficazes para o desenvolvimento evolutivo da sociedade"52.

51 52

Magalhães & Andrade, op. cit., p. 147. Reis, Aarão. "O regime político e o papel do Estado" [1915]. In Paim, Antônio (org). Plataforma política do positivismo ilustrado. Brasília: Editora da UnB, 1981, pp. 141-160, principalmente pp. 142-144, e 149.

158

A representação da capital como diretora das atividades públicas e privadas do território do Estado é, por exemplo, veiculada num editorial publicado na imprensa por ocasião da inauguração daquela: A capital de um Estado compreende-se que deva ser, como o coração animal, um verdadeiro centro de vida, atividade e força, cuja irradiação se comunique a todo o organismo, evitando a paralisia das extremidades. [...]. Acrescentaremos que a capital não é somente o coração do Estado - é também sua cabeça diretora. [...]. Queremos dizer ainda que não basta que a capital seja um centro de atividade industrial e comercial somente, não obstante a simples idéia dessa atividade nos trazer a correlata de um certo desenvolvimento intelectual; preciso é seja ela também um foco de movimento intelectual em todas as suas manifestações - científica, literária e artística. Uma capital de posse de todos esses elementos forçosamente há de ser um centro motor do progresso, irradiando para todos os pontos, à semelhança do sol, cujas funções não se limitam a servir a si só; mas é ainda um centro atrator das grandes fortunas que emigram do Estado para as grandes cidades à procura dos confortos que proporciona a vida moderna e das vantagens que nelas encontram as largas aspirações especulativas53.

Assim, ainda que primordialmente enquanto sede do Governo, a capital deveria ser também o centro de todas as atividades do estado, reunindo nela a elite econômica e intelectual, que da capital irradiaria seu poder para todo o estado. A distribuição desconcentrada e equilibrada dos diversos locais das instituições públicas e das atividades econômicas e culturais na área circunscrita pela avenida do Contorno revela, portanto, uma concepção relativa tanto à divisão dos poderes republicanos e das funções burocráticas, bem como a uma integração, corporificada na área urbana da Nova Capital, das esferas públicas e privadas. Portanto, podemos admitir, como propõe Magalhães & Andrade, que a Planta de Belo Horizonte apresenta elementos de composição característicos do urbanismo barroco, vinculados à representação espacial do poder do Estado.

53

"O Triunfo", A Capital, Belo Horizonte, 21 dez. 1897, p. 1, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 779-780.

159

Contudo, observamos diferenças entre o modo de composição entre ambos, às quais associamos à diferenças entre as formas de representação das concepções de Estado nos dois casos. Prosseguindo nossa análise do modo de composição da Planta Geral da Nova Capital, buscaremos demonstrar que esta, assimilando os elementos do urbanismo barroco, apresenta ainda um outro procedimento compositivo. Vimos que, no urbanismo barroco, os conjuntos urbanos se formavam por extensões de um foco central através de sucessivas e indefinidas multiplicações do mesmo em focos subsidiários, concebidos a cada vez sob o princípio da unidade perspectiva do traçado e das edificações, ou seja, da parte para o todo. Na Planta Geral, a composição se deu a partir de uma estrutura geral prévia isto é, do sistema de coordenadas formado pelas ruas e avenidas -, sobre a qual foram inseridos os vários edifícios e praças públicos, resultando num arranjo onde as partes são bem distintas e coordenadas entre si, não subordinadas ao um único ponto de convergência, mas dispostas de modo relativamente homogêneo por todo o conjunto da "área urbana" delimitado pela Av. do Contorno, definindo um conjunto de focos associados às funções públicas e privadas. Observamos que as origens de tal procedimento podem ser reconhecidas no sistema de composição arquitetônica que surgem na segunda metade do século XVIII e que se impõe ao longo do XIX. Segundo Kaufmann, o sistema compositivo subjacente tanto sob o Renascimento como sob o barroco - que o autor denomina abreviadamente "sistema barroco" - caracteriza-se pela subordinação dos elementos segundo uma hierarquia de componentes superiores e inferiores, dispostos sob uma proporção considerada perfeita e imposta a todo o conjunto. Na transição do barroco ao neoclássico, a arquitetura oitocentista apresenta um novo sistema compositivo, denominado por Kaufmann de "individualista", regido pelo princípio da independência das partes, posto que baseado na coordenação de partes consideradas como elementos independentes e individualizados, sujeitos a uma 160

justaposição mecânica54. Ainda que o estudo de Kaufmann refira-se apenas ao campo do projeto de edifícios, este novo princípio, que emerge no final do século XVIII e se estende pelo XIX, pode ser também reconhecido na escala das composições urbana do período, como veremos nos exemplos seguintes. O tratado de Pierre Patte, Monumens érigés à la glorie de Louis XV (1765), considerado por Rosenau como um marco de uma mudança nas concepções urbanas, propõe um plano para Paris, compondo diversos projetos anteriores, concebidos isoladamente para um concurso de monumentos reais55. Este plano apresenta-se como uma coordenação de diversos elementos independentes e definidos enquanto partes unitárias, porém relacionadas segundo uma ordem abstrata - de maneira semelhante ao "novo ideal configurativo" identificado por Kaufmann na arquitetura da segunda metade do século XVIII56. Na mesma época, Boullée e Ledoux, vinculados ao "grupo iluminista da Enciclopédia", abandonam a perspectiva cenográfica e concebem a cidade como "uma forma resultante da coordenação de diversos tipos de edificações"57. Segundo Argan, Ledoux, em seu projeto da cidade de Chaux (1773), "não imaginava a cidade como um conjunto de bastidores e de cenas de fundo formando uma imagem espacial unitária e cenográfica, mas como um agregado de tipos de edifícios singularmente qualificados"58. Tem-se aqui não mais o princípio barroco de composição por subordinação a um elemento ou regra geral dominante, nem o conceito cartesiano de espaço como resultante da extensão da matéria, mas uma coordenação de elementos discretos, racionalmente estabelecidos, e situados num espaço concebido como uma

54

Kaufmann, op. cit., p. 174. Rosenau, op. cit., p. 87. 56 Kaufmann, op. cit., p. 174 e p. 222. 57 Argan, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 37. 58 Idem, p. 202. 55

161

entidade apriori, no qual se situam os objetos - tal como na concepção newtoniana do espaço59. O conceito de tipo é adotado posteriormente, de maneira mais simplificada e instrumental, nos tratados de J. L. N. Durand, - publicados no início do século XIX e dedicados ao seu curso de Arquitetura na École Polytechnique de Paris60 - onde é apresentada uma "casuística de tipos de distribuição" baseada em exemplos históricos e arqueológicos. Kaufmann considera a obra de Durand como a sistematização do sistema compositivo oitocentista baseada na coordenação de partes independentes, rompendo com o conceito barroco de subordinação hierárquica das partes à uma dominante ou ao todo. Trata-se portanto, não mais da composição barroca segundo um elemento dominante e central, mas de uma combinatória de elementos independentes e definidos isoladamente e coordenados num sistema de eixos reguladores estabelecido como ponto de partida da composição. Para Durand, como proposto do seu no "Marche a suivre dans la composition d'un projet quelcouque", a composição constitui-se numa articulação de elementos definidos, a qual ele definia como um mecanismo, dispostos sobre um sistema de coordenadas ou eixos principais e secundários: Aprés avoir tracé des axes parallèles, équidistants, et coupé perpendiculairmente ces axes par d'autres axes éloignés les uns des autres autant que les premiers, on place, à la distance d'autant d'entre-axes qu'on le juge convenable, les murs sur les axes, et les colonnes, les pilastres, etc., sur les intersections de ces mêmes axes; [...].61

Ainda que relativo apenas à arquitetura de edifícios, as considerações feitas por Kaufmann podem ser estendidas à composição urbana, pois Durand

59

A propósito das diferenças entre a concepção cartesiana e newtoniana do espaço, ver Koyrè, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1979. 60 Recueil et parallèle des edificies de tout genre, anciens et modernes (1801), Précis des leçons d'architecture (1802-5) e Partie graphique de cours d'architecture faits à l'École Royale Polytechnique (1821), conforme Benevolo, Leonardo. História da arquitetura moderna. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 792. 61 Durand, Précis des leçons d'architecture, apud Kaufmann, op. cit., p. 247.

162

considerava a composição de uma cidade análoga à de um edifício: "De même que le murs, les colonnes, etc, sont les éléments dont se composent les édifices, de même les édifices sont les éléments dont se composent les villes"62. Assim sendo, na concepção de uma cidade também deveria ser aplicado o mecanismo da disposição de elementos sobre um sistema de coordenadas, preconizado por Durand como um "Marche a suivre dans la composition d'un projet quelcouque". Segundo Benevolo, os preceitos de Durand prenunciam toda a produção dos engenheiros do século XIX, caracterizada pelo modo de composição por justaposição

mecânica,

pela

independência

do

aparelho

estrutural

do

acabamento e pela predileção pelas formas elementares. "Conveniência e economia" são as qualidades principais da composição arquitetônica, para Durand, que deviam prevalecer sobre as preocupações com o efeito visual63. Segundo Banham, estes preceitos constituíram a base do ensino acadêmico francês de todo o século XIX e mesmo do seguinte, e foram largamente utilizado pelos arquitetos e engenheiros franceses deste período64. Os princípios de composição sobre um sistema de eixos, considerados por Kaufmann como característicos da arquitetura do século XVIII e sistematizados por Durand no início do século XIX, podem ser reconhecidos nos planos urbanos de Washington e de outras cidades norte-americanas e principalmente no plano de La Plata, considerados como os modêlos do plano de Belo Horizonte65. Nos planos destas capitais, podemos reconhecer o primado de uma estrutura viária, sobre a qual são situados os edifícios públicos nos

62

Durand, Précis des lecons d'archiecture données à l'École Royale Polytechnique, Paris, 18021805, apud Rossi, op. cit., p. 77. 63 Benevolo, op. cit., 1994, p. 68 e p. 792. 64 Banham, Reyner. Teoria e projeto na primeira era da máquina. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 36-7. 65 Ao procurar onde Aarão Reis retira o modelo para a execução do seu traçado, Ozório traça uma comparação com alguns planos urbanos norte-americanos realizados no século XIX particularmente quanto a relação entre plano viário, modo de loteamento e de edificação na composição do conjunto urbano. Interessa-nos aqui observar que nestes planos norteamericanos a preocupação com a definição de estruturas gerais também ocorre.

163

pontos focais, e o lançamento do loteamento prévia e independentemente a definição da arquitetura dos edifícios. O plano para Washington, projetado em 1791 por Pierre Charles L'Enfant, combina e sobrepões três niveis de referência: a localização no terreno dos pontos principais, uma malha ortogonal e uma rede de avenidas, como o mesmo esclarece: Depois de haver determinado alguns pontos principais aos quais os demais se devem subordinar, estabeleci uma divisão regular, com as vias que se cortam em ângulo reto, orientadas de norte a sul e do leste para o oeste; a seguir, abri algumas em outras direções, como avenues na direção e a partir de cada praça principal, desejando com isso não apenas romper a unidade geral ... mas sobretudo ligar todas as partes da cidade, se posso exprimir-me assim, diminuindo a distância real entre as praças através do fato de torná-las reciprocamente visíveis, tornando-as aparentemente reunidas. 66

L'Enfant utiliza como ponto de partida elementos focais característicos do barroco, porém algumas diferenças podem ser notadas: o conjunto é formado por vários focos, não havendo uma subordinação a um central, e principalmente, a cidade é concebida como uma estrutura geral, onde o efeito pretendido por L'Enfant de união se dá mais por uma operação mental do que pela percepção visual, posto que por esta última não é possível apreender a multiplicidade de focos que seu plano apresenta. Os planos de duas novas cidades fundadas no Middle West americano, Detroit

(1807) e Indianápolis (1821), realizados por

colaboradores de L'Enfant67 - Woodward e Ralston, respectivamente apresentam a mesma preocupação com uma estrutura geral através de sistemas de eixos formando grandes malhas geométricas. Sem a complexidade do traçado destes últimos, o plano de remodelação e expansão de New York (1811) prevê uma malha uniforme de vias ortogonais, formada pelas chamadas avenues. As dimensões desse plano são enormes, prevendo um crescimento da população, então de 100 mil habitantes para 200 66 67

Benevolo, op. cit, 1994, p. 214. Benevolo, op. cit., 1994, p. 218 e 226

164

mil habitantes em cinquenta anos, e ainda reservando espaço para dois e meio milhões de habitantes. O plano é exclusivamente um traçado viário, aberto à livre ocupação futura: a construção das edificações não é considerada contemporânea ao traçados das vias, bem como não está subordinada a um princípio ou regulamentação geral, como a limitação de altura, como nos planos barrocos, mas a ser determinada de acordo com as exigências futuras e o plano busca apenas, com o padrão ortogonal, realizar um loteamento coordenado, de modo a permitir o menor custo e maior regularidade das edificações, opondo o lote assim definido o mínimo de condicionantes à disposição da edificação nele situada68.

O plano é feito de modo a permitir um loteamento regular do sítio, sem qualquer vinculação ou regulamentação das edificações que nele serão construídas, nem tampouco uma subordinação da forma urbana a uma edificação ou monumento principal, nem mesmo a um ou mais pontos centrais, como nos planos barrocos . Não há portanto subordinação a uma ordem ou elemento de composição superior, mas apenas uma coordenação de partes submetidas todas a um critério de limitação mínimo ainda que rígido e uniforme, o tabuleiro indefinidamente estensível. O plano de La Plata, fundada para ser a capital da Província de Buenos Aires, data de 1882 e a inauguração, de cinco anos depois. Apresenta a cidade a forma de um "quadrado perfeito", contornado por uma largo bulevar, com um desenho de vias e praças marcadamente simétrico, composto basicamente por um reticulado quadrado de ruas, atravessado por avenidas diagonais, sendo definido em um dos eixos dois bulevares centrais, ao longo dos quais foram dispostos os edifícios públicos. Além da praça central, diversas outras estão simetricamente dispostas em torno da mesma, na região intermediária entre o centro e o perímetro. O sítio da capital, uma extensa planície na bacia do Rio de la Plata, reforça o geometrismo, bem como a infinitude sugerida pelas vias, resultando numa regularidade e numa homogeneidade espacial, que tem seu 68

Idem, p. 220-2.

165

corresponde na distribuicão igualmente homogenea dos edifícios e praças. Se no urbanismo barroco, a convergência das vias do para pontos focais, associados com a realeza, revelavam o polos de concentração do poder, o que se vê aqui é claramente o primado do classicismo, ou melhor, de um neoclassicismo onde, sob a égide de ideias republicanos, o espaço e a luz, homogeneamente distribuídos pretendem expressar um poder igualmente distribuído, porém que se impõe em todos os pontos. Assim como as acima mencionadas, a Planta Geral da Nova Capital mineira, ao tomar como base um sistema de coordenadas sobre o qual são dispostos os edifícios e praças, apresenta um procedimento compositivo semelhante ao método sistematizado por Durand, como vimos acima. Não se trata de reconhecermos no plano de Aarão Reis uma influência do método de Durand, mas de apontarmos um compartilhamento de um procedimento compositivo surgido no século XVIII e sistematizado por Durand no início do século XIX e largamente difundido ao longo deste século - procedimento este que podemos reconhecer nos planos urbanos acima mencionados. Portanto, pelas análises acima expostas, podemos concluir que embora ocorram na Planta da Nova Capital elementos das construções urbanas barrocas, não se verifica o mesmo sistema compositivo utilizados nestas, mas os formulados no final do século XVIII e largamente difundidos no XIX. Aarão Reis aproveita das qualidades de visualização monumental dos dispositivos focais barrocos, porém sistematizando-os segundo novos procedimentos de concepção do espaço, onde a composição e a apreensão da ordem do conjunto apoia-se na abstração de uma combinação mecânica. Encontramos neste procedimento na atitude eclética de fundir diversos modelos e elementos do passado, característica da arte e da ciência do século XIX, compreendidos dentro da visão positivista do progresso como um acúmulo evolutivo das formulações do passado.

166

No tópico seguinte, abordaremos o outro esquema compositivo apontado por Magalhães e Andrade como componente da Planta Geral da Nova Capital, isto é, a circunscrição da área urbana pela avenida do Contorno, definindo uma forma finita desta zona, que os autores relacionam com os modelos utópicos da forma urbana. Como observam Magalhães e Andrade, se por um lado, o artifício da forma urbana fechada é utilizado por Aarão Reis como delimitador de uma esfera formal e social da cidade, ele não o é de forma absoluta, porém combinado com a perspectiva de expansão da cidade. Segundo nossa hipótese, a presença deste esquema pode também ser compreendida dentro da mesma postura de assimilação eclética de modelos do passado, que reconhecemos quanto aos aspectos barrocos.

OS ARQUÉTIPOS DA CIDADE IDEAL E OS PARADIGMAS UTÓPICOS DE ORDENAÇÃO Para Magalhães e Andrade, ao limitar a área urbana da suburbana com a Avenida de contorno, Aarão Reis, "envolvendo os focos barrocos de poder por um foco mais amplo, realiza a concepção utópica de Platão, que estabeleceu, com uma configuração circular, a finitude do espaço urbano [...] a polis de uma cidadania privilegiada"69, aludindo à cidade delineada pelo filósofo grego nas Leis. Além disto, para os autores a "produção da Capital de Minas vai também representar a oportunidade de experimentação concreta da utopia ativista no Brasil", referindo-se ao modelos de ordenação espacial da sociedade propostos no século XIX como solução aos problemas acarretados pela crescente urbanização advinda da Revolução Industrial. Observaremos inicialmente algumas características destes modelos, a partir da matriz platônica, buscando avaliar em que medida o Plano de Reis se identifica e se diferencia deles. Nas Leis, Platão pretende estabelecer um modelo para a Constituição de uma colônia a ser fundada, abrangendo todos os âmbitos da vida dos cidadão e 69

Magalhães & Andrade, op. cit., p. 145.

167

da cidade, e de modo definitivo, posto que perfeito70. A configuração circular parece mais ser mais uma expressão do ideal da unidade da cidade do que uma forma concreta. A cidade e o território, ainda que distintos espacialmente, estão intrinsecamente vinculados e formam um todo, pois ambos são divididos pelos cidadãos sob o mesmo princípio de equivalência71. Cidade e campo são, na polis platônica, indissolúveis e o que se pretende é delimitar este conjunto como um todo, e de maneira estática, posto que além de fixar o número inicial de cidadãos e de seus lares, Platão recomendava que estes números deveriam ser mantido fixos, através de diversos mecanismos, dentre os quais a fundação de novas colônias72. O caráter ideal e as limitações da aplicação de seu modêlo são reconhecidos por Platão, ainda que a partir desse modêlo o filósofo pretendesse estabelecer os fundamentos prévios para uma definitiva constituição da colônia73, de modo a evitar a menor modificação futura das leis estabelecidas na fundação74, já que para Platão, "não há nada pior do que a mudança"75. De forma menos rigorosa, Aristóteles também preconiza a necessidade de um limite ao tamanho e à população da cidade, com o objetivo de estabelecer a justa medida entre a auto-suficiência e a capacidade de governo76. A cidade grega, tal como se vê de forma idealizada em Platão, é portanto um entidade indissoluvelmente política e territorial, e seus limites dizem respeito mais à comunidade dos cidadãos do que à divisão entre o urbano e o rural. Além disto, ela é constituída sob o princípio da estabilidade do genos, de sua autosuficiência e de sua coesão, ao qual corresponderá uma forma física limitada forma esta que inclui tanto a parte urbana como a rural, no caso platônico. A 70 71

72 73 74 75 76

Platão. Leis e Epínomis. Belém; Universidade Federal do Pará, 1980. Idem, p. 158-9 [745b-d]. Cada cidadão, isto é, cada família, disporia de dois lotes urbanos e dois rurais, situados de forma que a média das distancias dos dois lotes urbanos ao centro seja sempre igual para todos, dando-se o mesmo com dos dois rurais. Assim, não haveria uma distinção entre a população urbana e a rural, pois cada cidadão teria tanto duas propriedades urbanas como duas rurais, sob condições idealmente idênticas. Idem, p. 149 [737c-e] e p. 152-3 [740a-c]. Idem, p. 159 [746a]. Idem, p. 215 [798a]. Idem, p. 214 [797d]. Aristóteles. Política. Brasília: Editora da Unversidade de Brasília, 1985 , p. 230-231[1326b].

168

forma idealizada por Platão, bem como as recomendações de Aristóteles, expressam uma característica efetiva das cidades gregas antigas: sua limitação ao crescimento. Em geral, uma vez esgotadas a capacidade de ocupação do seu território, o recurso utilizado era ou a fundação de uma colônia distanciada ou a adição de uma nova e distinta parte, igualmente delimitada77. O modelo de cidade enquanto uma entidade fechada e total, marcada pela objetivo de unidade, tal como idealizada por Platão, aparece também no tratado romano de Vitruvius, De Archtectura Libri Decem, como uma configuração geométrica mais detalhada: uma arranjo radial de vias, circundada por um contorno circular. No Renascimento, a forma radial-concêntrica, bem como a delimitação por polígonos estelares de base circular, aparece no tratado de Filarete (1457-64). Trata-se ainda de um dispositivo esquemático e simbólico, que no século seguinte seria adotado, já com traçados mais definidos, em diversos tratados, como os de Francesco di Giorgio, Cattaneo,

Scamozzi e

Vasari il Giovane, os quais serviram de modelo para a construção de cidadesfortalezas no final do século XVI, como Palmanova. No começo do mesmo século, Tomas Morus concebe a Utopia, em uma narrativa ficcional de uma comunidade humana perfeita, desvinculada da dimensão espacial e temporal real, onde a sociedade-modelo tem como parte integrante e necessária um espaço-modelo. Na primeira metade do século XIX, outras formulações de cidades ou comunidades serão propostas, em geral adotando a vinculação da ordem social com a ordem espacial, cuja disposição é considerada de grande importância para o equilíbrio social. A despeito das grandes diferenças entre esses diversos tipos de modelos urbanísticos e construções ficcionais, eles caracterizam-se como entidades fechadas e totais, marcadas pela insularidade ou pelo menos por uma clara cisão e delimitação em relação ao ambiente vizinho. Contudo, como observam Magalhães & Andrade, ao contrário das utopias e cidades ideais 77

Sica, op. cit., p. 35-41.

169

clássicas e renascentisas, de objetos heurísticos ou críticos, as propostas do século XIX apresentam objetivos mais claros de reforma social baseada numa organização racional do espaço, sendo denominadas, devido ao seu caráter instrumental, de "utopias ativistas", por Rowe & Koetter78. As propostas de organização espacial e social dos chamados utopistas ativistas do século XIX partem, de modo geral, da crítica da expansão das cidades decorrente da industrialização e apresentam novas configurações espaciais, consideradas mais racionais, como solução à desordem urbana. Por exemplo, Considerant, em meados do século XIX, considera as grandes cidades como "espetáculos tristes de ser vistos para quem quer que pense na anarquia social que é traduzida em relevo, com uma medonha fidelidade, por esse aglomerado informe"79 e defende como solução ao "caos arquitetônico" e social, o sistema de comunidades fechadas e interconectadas formulado por Fourrier. Como observa Sica, a "perda da forma" é a imagem dominante entre os teóricos da cidade européia no século XIX. Sob vários pontos de vista sobre as cidade, o evolucionismo biológico é evocado - seja para explicar sua degradação, seja para afirmar a confiança no progresso devido ao processo seletivo - e vê-se na metrópole "la presencia de un principio dinamico nuevo que se sustituye al horizonte estático y cerrado" da cidade antiga80. Neste mesmo período, diversos intelectuais recorrem à imagem organicista da cidade como um monstro - devida ao seu crescimento rápido, à desfiguração de seu limite e às suas multidões - colocando em questão a visão mecanicista e liberal da sociedade, e preconizando a pesquisa e o controle do meio ambiente urbano e de sua população81.

78

Rowe, C. & Koetter, F. Ciudad Collage. Barcelona: Gustavo Gili, 1981, p. 19. Description du Phalanstère (1840), apud Choay, Françoise. O urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 6 e p. 78. 80 Sica, op. cit., p. 110-111. 81 Bresciani, Maria Stella Martins. "Metrópoles: As faces do Monstro Urbano (as cidades do século XIX)". Revista Brasileira de História, v. 5, n. 8/9, set 84/abri85, São Paulo, Marco Zero, 1985, pp. 55-65. 79

170

Face à cidade percebida como disforme e monstruosa, insalubre e sujeita à desordem social, são propostos então dispositivos de controle da forma urbana baseados em assentamentos fechados, localizados distantes uns dos outros, formando uma ampla rede de ocupação do território, tal como se vê nas propostas de Owen, Fourrier e Considerant, na primeira metade do século XIX e mesmo na de Howard, já no final do século82. Se cada estabelecimento é concebido como uma unidade fechada, o conjunto por elas formado é aberto a uma expansão indefinida, através de sua multiplicação e interconecção ao longo do território, de modo a atender as demandas de crescimento. Procura-se desta forma submeter o dinamismo das cidades e sua tendência à expansão - vista como monstruosa e ameaçadora à ordem social - a um dispositivo que recuperasse a unidade da forma urbana antiga. Nestes propostas é marcante a preocupação em caracterizar a forma urbana enquanto uma unidade fechada, através da rigorosa limitação de suas dimensões e principalmente de sua população, segundo padrões considerados cientificamente ótimos. Contudo, o que se verifica ao longo do século XIX é o aumento crescente da população e extensão das cidade, e as medidas de ordenamento urbano efetivamente implementadas são as intervenções e remodelações das grandes cidades, como Paris e Viena, onde se abrem, pela demolição de alguns trechos da cidade, novas e alargadas vias de modo a favorecer a circulação e propiciar novas edificações, conjuntamente com a instalação ou remodelação das infraestruturas urbanas. Para Magalhães e Andrade, a delimitação da área urbana, bem como a ordenação racional do seu espaço como fator de ordenação social constitui numa aplicação das propostas das denominadas utopias ativistas da primeira metade do século XIX. Sem se referir explicitamente a estes modelos, Julião também considera a Planta de Reis como portadora do mesmo objetivo de

82

Sica, op. cit., p. 119.

171

ordenação da sociedade através de dispositivos espaciais caracterizados como disciplinares: O seu alto grau de abstração, seu rigor geométrico professavam a utopia de se traçar com a régua e o compasso uma ordem social harmônica, unitária, onde não haveria lugar para a chamada desordem urbana. O planejamento de um só golpe procurava aprisionar a cidade a uma idéia base, eliminando os processos reais de construção do espaço.83

De modo semelhante, também Alves da Silva analisa o plano da Nova Capital: Na idealização da nova cidade os ecos de uma utopia urbana ainda podem ser escutados quando voltamos aos documentos da Comissão Construtora. A cidade que se queria ideal era descrita em seus mínimos detalhes. Um plano estava sendo proposto a partir de uma realidade exterior ao espaço onde seria implantado, com uma concepção de que a sociedade se moldaria ao espaço já estruturado, [...]84.

Se a delimitação da "área urbana" da Nova Capital e o seu ordenamento espacial geométrico e relacionado com a disposição de funções e categorias sociais evidenciam a presença de dispositivos característicos dos modelos ideais ou utópicos acima mencionados, algumas diferenças podem ser observadas. Enquanto estas propostas apresentam organizações espaciais fechadas e totalmente previstas, em Belo Horizonte a área urbana, onde pode-se reconhecer o empenho de delimitação e ordenamento mais rígido, insere-se num conjunto mais amplo e menos sistematizado, que é zona suburbana, aberta ao desenvolvimento futuro, como observam Magalhães & Andrade. O dispositivo do

conjunto

reflete,

para

os

mesmos,

o

propósito

de

submeter

o

desenvolvimento futuro da cidade, ao qual a zona suburbana estaria destinada, ao território fechado onde situam-se as instituições do Estado, análogo ao "desejo de supremacia do Estado sobre todos os segmentos da sociedade"85.

83

Julião, op. cit., p. 72. Alves da Silva, op. cit., p. 12. 85 Magalhães & Andrade, op. cit., p. 147. 84

172

De fato, como observa também Ozório, no plano da Nova Capital mineira é marcante o propósito de que o Estado não só definisse a forma inicial da cidade, bem como regulasse sua ocupação e seu crescimento - ao contrário do que ocorrera no plano de Nova York, orientado por uma concepção liberalista de apenas dispor o traçado viário e o parcelamento dos quarteirões e lotes, sem estabelecer regras para a ocupação e a edificação86. Se por um lado o plano de Reis pretendia um controle sobre a ocupação social do espaço, recorrendo a esquemas de delimitação característicos dos sistemas utópicos, por outro lado, o plano não pretendia uma situação ideal e estática, mas estava aberto a um crescimento indefinido da cidade. Reconhecendo esta abertura ao crescimento, o estudo de Maria Ester Reis87, pondera que o conceito de cidade disciplinar, tal como proposto por Foucault para caracterizar as organizações espaciais em dispositivos fechados e conformados segundo o princípio da hierarquização, não seria adequado para caracterizar o Plano de Reis. Para a mesma, o espaço da nova capital "não foi concebido, como no caso das cidades disciplinares, para atingir um grau máximo de perfeição, não se trata de um espaço projetado para ser inteiramente controlado". A concepção da nova capital aproximaria mais do dispositivo pautado pela "segurança", como denomina Foucault o controle do espaço através de procedimentos estimativos e probabilísticos, que visam manter em um nível de segurança as situações e os movimentos característicos de uma cidade em crescimento, e portanto não passíveis de uma previsão total. Para a Maria Ester Reis, a capital teria que ser o exemplo de cidade moderna sempre aberta às possibilidades de expansão, mas ao mesmo tempo um exemplo de controle dos eventos passíveis de ocorrer nas grandes cidades e para tanto, a forma a ser imposta a esse espaço era essencial.88

86

Cf. Ozório Coelho, op. cit., p. 184. Reis, Maria Ester S., op. cit.. 88 Idem, p. 158. 87

173

Neste sentido, a autora considera que "integrar o crescimento ao plano era um aspecto previsto por Aarão Reis"89, reconhecendo que em seu plano "a capital é um espaço que se abre à expansão"90. Sendo assim, o plano de Reis admitia e trabalhava com a possibilidade de crescimento e não pretendia definir uma configuração completa e definitiva da cidade. Encontramos em um texto de Aarão Reis sobre os "regimes políticos", e particularmente sobre a questão das utopias, elementos que nos parecem esclarecedores de suas convicções ideológicas sobre a condução política do processos sociais e que nos possibilitam uma compreensão de como os aspectos utópicos apontados em seu plano combinaram-se com a abertura ao crescimento da cidade91. Recusando, por um lado o liberalismo, Reis manifesta, por outro lado, uma veemente reprovação àqueles quem defendem "ser a sociedade humana suscetível duma organização artificial obtida por meio de prescrições e regulamentações legais convenientemente preparadas sob o impulso de idéias preconcebidas", às quais define como "utopias"92. Para Aarão Reis aqueles que defendem estas "utopias", escravizados, ainda, às ilusões duma metafísica decadente, se deixam arrastar pelo sonho de novas organizações artificiais e atravessam a vida sob a influência anestésica da esperança negativa da possível adaptação forçada [...] dum desses sistemas à sociedade atual.93

A julgarmos por estas afirmações, Aarão Reis não tinha a intenção de construir uma utopia, no sentido de uma ordenação urbana fechada, estática e totalmente regulada. Por outro lado, no Plano de Reis podem ser reconhecidos

89

Idem, p. 161. Idem, p. 166. 91 Reis, Aarão. "O regime político e o papel do Estado". In Paim, Antônio (org). Plataforma política do positivismo ilustrado. Brasília: Editora da UnB, 1981, pp. 141-160. Transcrito de Reis, Aarào. Economia Política, Finanças e Contabilidade, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1918, Vol. 1, pp. 285-338. Este compêndio, adotado na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, apesar de publicado vinte anos após o trabalho de Reis na Nova Capital mineira, desenvolve idéias que foram elaboradas "em fins do século passado, na Revista da Escola Politécnica", segundo Paim, na "Introdução" à coletânea acima citada (p. 9). 92 Idem, p. 153. 93 Idem, p. 146. 90

174

aspectos característicos dos modelos utópicos, tais como o ordenamento geométrico e delimitado do espaço central da cidade, vinculado à ordenação social de sua ocupação. Consideramos que estes dispositivos são assimilados dentro de uma perspectiva que estava ausente naqueles modelos, ou seja, seu plano não constitui numa configuração definitiva e estabelecida de modo completo, mas ao contrário aberta à transformação e à expansão, porém de modo que estas se dessem segundo uma ordem, tanto no espaço como ao longo do tempo. Podemos

concluir

que

os

dispositivos

de

ordenação

espacial

característicos dos modelos ditos utópicos são utilizados no plano de Reis como recursos instrumentais e não como uma completa aplicação destes modelos. Em seu plano o desejo da ordem, inscrito na soberania da geometria no desenho, nos limites da Área Urbana, na previsão da ocupação do espaço segundo funções e categorias sociais e nas medidas de direção da ocupação inicial, foi combinado com o reconhecimento e a previsão da mudança e do crescimento, entendidos como inevitáveis e portadores de progresso. Face às perspectivas de ameaça que este crescimento continha, posto a amplitude que assumia as transformações do ambiente urbano no século XIX, impunha-se a necessidade de uma conduta dirigida pelo Estado, no sentido de evitar os desvios do curso considerado natural dos processos sociais e preparar o terreno para sua espontânea floração no sentido da melhor ordem "que for sendo possível obter".94

Pelas análises precedentes, podemos considerar a Planta Geral de Aarão Reis como um amálgama de elementos ou fragmentos de

modelos e

construções urbanas do passado - como os elementos barrocos, a composição baseada nos sistemas de coordenadas, os aspectos característicos dos modelos 94

Idem, p. 152.

175

utópicos, discutidos anteriormente, e ainda outros planos e empreendimentos urbanos, como das cidades norte-americanas e da remodelação de Paris, apontados por Ozório95 -, recolhidos em função de sua adequação ao problema em questão. Reis procede assim, coligindo estas múltiplas sugestões, como se buscasse sintetizar a herança do conhecimento e da prática no campo da construção das cidades. Contudo, não se verifica uma reprodução destes modelos, mas uma aplicação de alguns de seus elementos. As referências são tomadas como traços resultantes de uma operação científica, ou seja, isolando de cada experiência aquilo que seria relevante ao seu plano, e combinando-os numa nova forma. Marcada pelo Positivismo, sua visão do conhecimento e das organizações sociais, como resultado de um evolução gradativa e acumulativa pode estar na base dos procedimentos que reconhecemos no modo de concepção de sua Planta Geral da Nova Capital. É bastante significativo desta visão, o seguinte trecho citado por Reis ao concluir sua crítica à propostas de mudança radical da ordem social e defender sua evolução progressiva de modo a preservar as estruturas herdadas do passado: Um dos traços característicos da evolução social - diz Merlino - [é] que o novo cresce sob o velho. A humanidade - que se serve de vocábulos velhos para exprimir novas idéias e indicar coisas novas e que adapta edifícios velhos a novos usos, como fez com os templos do paganismo adaptados ao culto católico - continua também, obedecendo sempre à lei econômica do menor esforço, a servir-se, durante largo prazo, das velhas instituições para novas funções, fazendo brotar, quando necessário, novos ramos do velho tronco.96

Tal nos parece ser justamente o procedimento de Reis ao compor a Planta Geral da Nova Capital: servir-se de "vocábulos velhos" e adaptá-los a "novos usos". A Nova Capital é concebida assim sob o empenho em se atingir uma configuração urbana que apresentasse a melhor forma possível assimilando contribuições da longa cadeia evolutiva do conhecimento relativo à 95 96

Ozório Coelho, op. cit., p. 182-202. Reis, in Paim, op. cit., p. 155. O texto citado é de Sevéro Merlino, Pró e contra o Socialismo, segundo nota do autor.

176

ordenação das cidades, adaptadas e somadas às recentes - e adequada às imposições do Estado no momento de afirmação do novo regime republicano. Pretendia também ser aberta às transformações futuras que, segundo a visão positivista do progresso evolutivo, sendo adequadamente conduzidas pelo Estado, somariam-se àquela forma inicial e a modificaria gradativamente, mantendo contudo sua essência original. Além do modo de composição da Planta Geral da Nova Capital, outro aspecto que nos parece importante aprofundar é como a cidade foi concebida frente à perspectiva do crescimento futuro. Neste sentido, abordaremos a seguir as questões da definição de sua população, o modo de implantação da Planta Geral, as diretrizes iniciais da ocupação e edificação da cidade, bem como alguns aspectos da construção da Capital em suas primeiras décadas.

3.2. A regulamentação da ocupação e edificação da Nova Capital OS LIMITES DA CIDADE: POPULAÇÃO, DENSIDADE E EXTENSÃO. O Congresso Constitucional de 1891, ao decidir a mudança da capital, determinou que esta deveria ser num local adequado à "construção de uma grande cidade"97, definida como "uma cidade de 150 a 200 mil habitantes" pelas "Instruções" para o estudo das localidades, de 9 de dezembro de 189398. Para a determinação da área necessária para tal população, a Comissão d'estudo adotou a densidade de 100 m2 por habitante. Seguindo estas disposições - e os critérios analisados no capítulo anterior - a Comissão d'estudo buscou avaliar as condições de cada localidade para o estabelecimento da Nova Capital. 97

Minas Gerais, Constituição Política do Estado de Minas Gerais, Disposições Transitórias, Art. 13, apud Gravatá, op. cit., p. 26. 98 Lei n. 3, adicional à Constituição, de 17 de dezembro de 1893, apud Barreto, op. cit., 1995, p. 338.

177

Contudo, por diversas considerações dos engenheiros da Comissão, vêse que o número de 200.000 habitantes não constituía para eles um limite considerado restritivo nem mesmo conveniente ao crescimento da cidade, mas uma condição mínima a ser atendida, em obediência às "Instruções" oficiais. Os relatórios de estudos das localidades revelam expectativas e considerações relativas ao crescimento futuro da cidade - seja de sua população seja de sua extensão territorial - que ultrapassavam os limites definidos pelo decreto. Era uma preocupação freqüente avaliar, e mesmo ressaltar, a capacidade das localidades estudadas de suportar uma população superior a 200.000 habitantes, o que demonstra que os engenheiros da Comissão contavam com a probabilidade - ou com a inevitabilidade - do crescimento além deste número. O engenheiro José de Carvalho Almeida, no relatório sobre Várzea do Marçal, observa que este local teria capacidade de atender, quanto ao abastecimento de água, às "necessidades de população superior a 1.000.000 de habitantes"99. Já o engenheiro Samuel Gomes Pereira, em seu relatório sobre Belo Horizonte, afirma que "a localidade estudada, sob o ponto de vista topográfico, presta-se, com vantagem, para nela ser construída uma cidade de 200 a 500 mil almas, segundo todas as regras da higiene e da estética", e que "se, mais tarde, a futura capital do Estado se desenvolver a ponto de sua população atingir a cifra de 1.000.000 de habitantes, ou mesmo mais, há recursos de que lançar mão para abastecê-la de água com abundância"100. O

engenheiro-chefe

Aarão

Reis

reprova

Barbacena

"para

o

estabelecimento de uma vasta e importante capital, que tenda a desenvolver-se rapidamente e vise atingir 200.000 almas, ou mesmo mais"101, repetindo a mesma expressão - "200.000, ou mais habitantes" - ao rejeitar também

99

"Relatório dos estudos feitos na Várzea do Marçal, pelo engenheiro civil José de Carvalho Almeida, 1893", in Reis, op. cit., 1893, Anexo A, p. 16. 100 "Relatório dos estudos feitos em BH, pelo engenheiro civil Samuel Gomes Pereira, 1893", in Reis, op. cit., 1893, Anexo B, p. 8- 9. 101 "Relatório do Engenheiro-chefe", in Reis, op. cit., 1893, p. 23.

178

Paraúna102. Sobre Belo Horizonte, avalia o "belo anfiteatro", situado na base da Serra do Curral, como "suficiente para o estabelecimento de uma população de 190.000 habitantes", acrescentando que "fora dele, há ainda a grande várzea do Capão da Posse que permite o desenvolvimento futuro da população em larga proporção"103. Quanto a Várzea do Marçal, considera o local "mais que suficiente para

estabelecimento

confortável

de

população

excedente

a

260.000

habitantes"104. Prevê também que um "vasto e importante centro de população" lá localizado, "de futuro, poderá desenvolver-se extraordinariamente abrangendo as atuais cidades de S. João d'El Rei e de Tiradentes e, ainda, as esplanadas que oferecem, por detrás daquela"105, vislumbrando, portanto, uma extensa região urbanizada em torno da Capital. Pode-se inferir destas previsões que o engenheiro, que mais tarde elaborou a Planta Geral da Nova Capital, não julgava que o número de 200.000 habitantes um limite intransponível e definitivo, nem que um número ideal para a população da Capital. A capital era pensada por estes engenheiros como passível de crescimento futuro, e não como uma cidade de crescimento limitado. Trata-se portanto de um parâmetro operacional relativa ao plano da cidade a ser construída, e não um número ideal, nem um limite máximo. Difere portanto dos modelos utópicos clássicos, fundados nas recomendações de Platão, nas Leis, onde preconiza que a boa cidade deveria ter 5040 "donos da terra" ou cidadãos106, número próximo adotado por Morus, no século XVI, para as cidades de sua Utopia107. Difere também dos rígidos limites estabelecidos por Fourier, no início do século XIX, para seus falanstérios108, que deveriam abrigar, cada um, uma população fixada em 1600 pessoas. 102 103 104 105 106 107 108

Idem, p. 396. Idem, p. 20-21. Idem, p. 19. Idem, p. 20. Platão, op. cit., p. 149. No caso, o número de cidadãos equivale ao número de familias ou lares (oikos). Choay, Françoise. A regra e o modelo. São Paulo: Perspectiva, 1985, p. 156. Edifícios de habitação coletiva esparsamente distribuídos e associados a áreas agricolas ou estabelecimentos industriais.

179

Os termos do Decreto 680 de 14 de fevereiro de 1894 ao estabelecer que "o projeto geral da nova capital será delineado sobre a base de uma população de 200.000 habitantes"109 confirmam esta interpretação, pois não se fala que a capital deveria ter tal população, mas apenas que o projeto deveria tomá-la como parâmetro. Além disto, vemos que tal determinação não foi tomada de forma rígida na definição da Plana Geral da Nova Capital por Reis. Se tomarmos a soma das áreas da chamada "zona urbana" (8.815.382 m2) e da "suburbana" (24.930.803 m2)110 - que consistia de arruamento e lotes de características urbanas - e multiplicarmos pela proporção média de 100m2/hab., adotada nos estudos dos locais, veremos que a área urbanizada da Planta da Nova Capital (33.746.185 m2) admitiria uma população de 337.462 habitantes - isto sem contar a área de 17.474.619 m2, destinada a "sítios", bem como a região periférica, em direção a qual o traçado das vias suburbanas sugerem uma extensão. Trata-se portanto de uma população superior à base adotada, segundo os critérios utilizados pela própria Comissão d'estudos. Outra determinação do decreto acima citado indica que os parâmetros populacionais demarcavam etapas de realização dos empreendimentos: as obras a executar de imediato deveriam ser "projetadas e orçadas sobre base de uma população de 30.000 habitantes"111. Havia, pois, uma preocupação de definir metas a serem atingidas em etapas, de modo a estabelecer um ritmo progressivo de desenvolvimento dos projetos e das obras, bem como da capital. Os limites populacionais definidos parecem terem a função referencial ao desenvolvimento das etapas, sendo as etapas mais próximas são objeto de um detalhamento mais preciso, seja em relação ao programa dos empreendimentos, seja quanto ao prazo.

109

Minas Gerais, Decreto 680, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 32. Aarão Reis, Ofício n. 26, de 23 de março de 1895, apresentando ao governo as plantas da cidade, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 251. 111 Minas Gerais, Decreto 680, apud Barreto, op. cit., 1995, p. 32. 110

180

Pode-se concluir que o plano da cidade tinha, quanto à previsão populacional, três horizontes temporais relativos a três etapas de implantação e crescimento: uma imediata, para uma população de 30.000, definida pelas obras que deveriam ser executadas para a instalação da Nova Capital, com o prazo de execução de quatro anos; uma segunda, relativa à uma população de 200.000 ou mais habitantes, definida pela Planta Geral, sem demarcação de prazo; e um terceira, indefinida quanto à configuração urbana, aberta a um crescimento maior da população, para o qual buscou-se assegurar da existência de condições para este crescimento na região próxima, principalmente relativa à topografia e ao abastecimento de água. A interpretação do número adotado como um parâmetro de projeto parece pois mais adequada do que considerar este número como um limite ou como uma condição ideal ao crescimento da cidade. Como vimos, a perspectiva científica compartilhada por aqueles engenheiros, principalmente por Aarão Reis, era fundada no Positivismo e portanto orientada pela consideração dos "dados positivos", avessa por princípio às definições ideais, bem como convicta da inevitabilidade de um progresso evolutivo - o qual deveria ser guiado considerando-se a capacidade do alcance das previsões segundo os meios científicos e as condições concretas. É, portanto, pouco provável que eles admitissem fixar um número ideal para a população da cidade, principalmente tendo em vista o crescimento das cidades na segunda metade do século XIX. Cabe aqui algumas considerações a respeito do explosivo crescimento das cidades na segunda metade do século XIX, para que possamos ter algumas referências comparativas do que poderia significar uma "grande cidade", bem como ter uma escala de grandeza para avaliar o número de 200.000 habitantes, tomado como base do projeto para a Nova Capital mineira. Este período é marcado por um acelerado crescimento da população das cidades européias: Viena, de 400 mil em 1846 para 700 mil em 1880; Berlim de 378 mil (1849) para quase um milhão (1875); Paris de 1 para 1,9 milhão; e Londres de 2,5 para 3,9 181

milhões (1851-81)112. O fenômeno não se restringe às capitais. Na França, o período é considerado como um "segundo século XIX" pela

diferenças em

relação à primeira metade quanto ao crescimento populacional, que se generaliza por diversas cidades: no início do século, apenas Paris tem população superior a 100 mil habitantes, em 1851 são quatro e em 1911 são quinze cidades com população acima deste número, sendo cinco com mais de 200 mil113. Nos Estados Unidos, Nova York passa de 60 mil em 1810, para 1860 mil em 1895 e atinge 4,5 milhões em 1910114, sendo tão grande o crescimento de cidades como Chicago e Melbourne. Além do crescimento das grandes cidades, verifica-se também um drástico aumento da população em algumas cidades pequenas do interior do Novo Mundo, como em Winnipeg, no centro do Canadá, que com 100 habitantes em 1870, após ser integrada à rede ferroviária em expansão, passa a ter 8 mil em 1880, 25 mil em 1890 e 136 mil habitantes em 1910115. No Brasil a situação era bastante diversa, ainda que se verificasse, em outra escala, o crescimento das grandes capitais. No Rio de Janeiro, a população nos anos 1870 era estimada em 266 mil e vinte anos depois em 688 mil habitantes116; em São Paulo, era de 19.347 habitantes em 1872, 64.934 em 1890 e 270 mil em 1908117. Contudo, nas condições da urbanização brasileira e mineira do século XIX, tais cidades são exceções. A população da cidade Ouro Preto ao longo do século XIX não ultrapassa 20 mil habitantes118, enquanto Juiz de Fora, então a maior cidade do Estado, tinha em 1900, em todo o município a

112 113

114 115 116 117 118

Hobsbawn, op. cit., p. 223. Lyon (558 mil), Marselha (490 mil), Bordeaux (334 mil), Lille (317 mil) e Roubaix-Tourcoing (266 mil), além de duas (Nantes e Rouen) com aproximadamente 190 mil habitantes [Ortiz, Renato. Cultura e Modernidade. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 21-22]. Rigotti, Giorgio. Urbanismo: La Composición. Barcelona: Labor, 1962, p. 485. Raymond, Jean. Guide pratique de l'urbanisme. Paris: Dunod, 1933, p. 10. Carvalho, José Murilo de. Os Bestializados. São Paulo: Companhia das letras, 1987, p. 16-17. Sevcenko, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, Sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 108 Vasconcellos, Sylvio. Vila Rica. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1956, p. 50.

182

população de 91.119 habitantes119. Uma população de 200 mil apresentava-se nas condições brasileiras como característica de uma grande cidade, porém considerando que nos vinte anos anteriores ao plano da capital mineira a população do Rio crescido 2,6 vezes e a de São Paulo mais de três vezes, a expectativa para a Capital do Estado mais populoso do País não era ambiciosa120 - ainda que frente à condições mineiras talvez possa ser assim considerada. Comparada às cidades européias e americanas, a população base do plano da capital mineira, bastante inferior à população daquelas, não indica uma aspiração de reproduzir nesta as características daquelas capitais. Previa-se, ao contrário, um crescimento progressivo, ou seja, que ocorresse gradativamente, como se verá mais claramente ao serem analisadas as diretrizes de ocupação definidas pelas medidas iniciais de sua construção. O que importa assinalar aqui é que a capital mineira, bem como seu desenvolvimento, parece não ter sido pensada como um fenômeno de ruptura, ou seja, como uma cidade que passaria por um intenso crescimento e atingiria rapidamente as características das grandes capitais, seja as brasileiras, européias ou americanas. Ainda que as capitais européias, e as grandes cidades em geral, ainda mantivessem grande fascínio e fossem considerados como fator de progresso, já desde a metade do século XIX uma corrente de intelectuais demonstrava-se gravemente preocupados com as suas condições e com as consequências sociais de seu crescimento. Os inconvenientes destas cidades propaladas pelos analistas europeus dos males da hipertrofia urbana, que tanto enfatizaram a imagem da cidade como causas de vícios e doenças, certamente eram

119

Pelo Recenseamento de 1900, citado por Jacob, Rodolpho. Minas Gerais no XX século. Rio de Janeiro: Gomes, Irmão e Cia, 1911, p. 26. 120 Como avalia Lima [op. cit., p. 30]: "considerando a população de alguns centros urbanos, como o Rio de Janeiro e São Paulo, neste mesmo período, esta previsão mostra a debilidade desta concepção idealizada". Contudo, como vimos, a previsão de 200.000 habitantes era relativa ao plano, e não um limite populacional absoluto da cidade, sendo que a capital só atingiu tal população quarenta anos depois de sua fundação, prazo razoável para uma previsão que não pretendia ser definitiva.

183

conhecidos e considerados pelos engenheiros envolvidos. Além disto, como veremos, a doutrina positivista ainda que entusiástica do progresso, demonstra, já desde o início do século, mais preocupada em conciliar e submeter este progresso à ordem social, ameaçada seja pelas revoluções ou pelas intensas alterações da vida social e econômica. Neste ambiente social e intelectual um crescimento extraordinário provavelmente seria considerado como portador mais de riscos e perigos do que de vantagens. Além do número de habitantes, a densidade populacional adotada no plano da Nova Capital, assim como outros aspectos de sua configuração urbana e

arquitetônica,

oferecem

indicações

reveladores

da

imagem

e

das

característica da urbanização visada por este plano. Tendo por definido, segundo as Instruções, a população de 200.000 habitantes como base do plano da Nova Capital, Reis toma, para determinar a superfície necessária, a proporção de "100 m2 a cada habitante" - equivalente a uma densidade de 100 hab./ha -, considerando-a uma "média mais folgada que as das principais cidades européias e americanas edificadas em vantajosas condições sanitárias e higiênicas"121. De fato, a proporção é bem "mais folgada" do que a resultante da densidade populacional média verificada na capital modelo da Europa no século XIX. Em 1861, Paris apresentava uma densidade média de 214 hab./ha, ou seja, 47,7 m2 por habitante, e uma população de 1.667.841 habitantes densidade e população crescente ao longo do século, pois em 1926, já com uma população de 2.871.429 hab., a densidade atingiria 333 hab./ha, ou seja, 30 m2 por habitante122 .Se fosse tomada a razão de 47,7 m2/hab., verificada na capital francesa em 1861, a área definida para a Nova Capital de Minas em 1894 comportaria uma população de 707.467 habitantes. Vê-se, pois, que não foram os padrões urbanos de Paris os que foram tomados para a Nova Capital, e muito menos os das grandes cidades americanas, como Chicago e NY, cuja população 121 122

Reis, Aarão, op. cit., 1893, p. 19. Danger, René. Cours d'urbanisme. 3me. ed. Paris: Librairie de l'Enseignement Technique, 1947, p. 145.

184

e densidade elevavam-se ainda mais do que as das cidades européias, particularmente nas áreas centrais, onde surgem, no final do século XIX, os arranha-céus. A proporção adotada de 100 m2/habitante permite inferir algumas características a propósito do modo de ocupação dos lotes definidos neste plano, isto é, do tipo de edificação que tal índice implicaria. A respeito deste tema não há nenhuma determinação clara no conjunto dos projetos da Nova Capital, sendo apenas definido o tipo de edificação dos edifícios públicos e das casas dos funcionários, ficando indeterminado como seriam as demais edificações, as quais seriam objeto de um posterior Regulamento das Construções, promulgado em 1901. Contudo, tomando como referências os padrões de relação entre densidade e edificação, pode-se inferir que a tal densidade corresponderia a uma ocupação por residências unifamiliares por cada lote123. A justificativa da densidade adotada nos Estudos das Localidades apresenta-se portanto vaga - já que não menciona quais eram as "cidades européias e americanas edificadas em vantajosas condições sanitárias e higiênicas", nem tampouco quaisquer outros critérios indicadores da densidade de 100 m2/habitante - e talvez equivocada, já a densidade das capitais européias eram muito maiores que este número. Provavelmente não seja à densidade da extensão total das grandes capitais que os Estudos das Localidades se referem, mas àquelas verificadas em setores destas capitais ou em algumas experiências urbanísticas suburbanas, ou ainda as propostas e prescrições que se fazem no século XIX, com vistas a se produzir boas condições sanitárias e higiênicas - as quais constituem os primórdios do urbanismo moderno enquanto especialidade científica ou técnica.

123

Cf. Danger, op. cit., p. 147. Cf. Oliveira, Francisco Baptista de. Noções elementares de urbanismo, Juiz de Fora: União Industrial: 1937, p. 53.

185

Neste campo, Reis poderia ter tido como referências um vasto conjunto de proposições urbanísticas,

desde à vasta organização territorial e social

idealizada por Fourrier nas primeiras décadas do século XIX à cidades jardins inglesas propostas por Howard, já no final do século. As propostas de ordenação espacial formulada pelos reformistas sociais da primeira metade do século XIX, a partir da Théorie de l'Unité universelle ou Traité de l'Association domestique agricole (1822) de Fourier124, e denominadas socialistas utópicos ou "utopias ativistas"125 - são considerados por Magalhães & Andrade como modelos da produção da capital mineira, por suas pretensões de ordenação racional da sociedade através da ordenação espacial126. Sob o aspecto da configuração urbana, a proposta de Fourier apresentase distinta da implementada na Nova Capital, sendo também muito abrangente sua proposta de reforma social. Apesar de denominado cidade, o dispositivo imaginado por Fourier é basicamente formado por grandes edifícios chamados falanstérios, abrigando cada um deles uma população de 1600 pessoas, dispersos indefinidamente pelo território as grandes distancias uns dos outros, entre áreas agrícolas e estabelecimentos industriais. Trata-se mais de aldeias, agrícolas ou mesmo industriais, cuja população habitaria um grande e confortável edifício, com uma configuração completamente diversa do formato cidade-campo, como observa Choay, a propósito da "ruptura absoluta que representa a aglomeração falangista em relação às do passado e o modo como o campo é integrado nela"127. Uma outra proposta, tanto pela concepção geral de cidade como pelos padrões de população prescritos, parece-nos apresentar maiores semelhanças com o plano da Nova Capital mineira. Trata-se da Hygeia, a City of Health (1876), do médico inglês Benjamin Ward Richardson, um modelo de cidade com

124

Posteriormente publicada com o título de L'Harmonie universelle et le Phalanstère (1849). Cf. Colin & Rowe, op. cit., p. 19. 126 Magalhães & Andrade, op. cit., p. 134. 127 Choay, op. cit., 1981, p. 68. 125

186

o qual se pretendia evitar os problemas de saúde das populações das grandes cidades128. A proposta de Richardson, incluída por Choay no mesmo modêlo, por ela denominado de "pré-urbanismo progressista"129, ou seja, dos reformadores sociais seguidores de Fourrier, mostra, entretanto, certas diferenças em relação a estas últimas. A Hygeia de Richardson conservava a configuração típica da cidade, enquanto uma aglomeração conformada por ruas, residências unifamiliares isoladas e edifícios públicos, não muito diversa das então usuais, porém sob condições que reputava mais saudáveis do que às das grandes cidades modernas. Além disto sua proposta não implica em nenhuma grande alteração quanto as relações sociais e econômicas existentes nas cidades, nem supõe a coletivização da propriedade, tal como a de Fourier e similares, mas apenas prescreve uma disposição urbana e arquitetônica que resultaria numa "cidade que tenha o coeficiente mais baixo possível de mortalidade"130. Sem a intenção de dispor sobre a totalidade da vida social, Richardson procura, através de seu modelo, oferecer preceitos que, aplicadas à configuração urbana básica então usual, a livrassem de seus males. Neste sentido, sua proposta apresenta-se menos ambiciosa que a dos reformadores sociais, porém mais adequada àqueles que buscavam aplicar em seus empreendimentos urbanas preceitos definidos com pretensões científicas, porém sem intenções reformadoras ou utópicas, como nos parece ser o caso de Aarão Reis. Dentre estes preceitos, Richardson recomenda, quanto a população da cidade, o número de 100.000 habitantes, e uma densidade de 25 habitantes/acre, ou seja, 160 m2/hab.131, padrões mais próximos dos adotados na Nova Capital mineira do que os verificados, de modo geral, nas capitais européias e americanas.

128

Objeto de pesquisa deste atuante cientista que publicou, dentre outras obras, Doenças da vida moderna (1876), cf. Choay, op. cit., 1981, p. 99.. 129 Choay, op. cit., 1981, p. 7-8. 130 Richardson, B. W., Hygeia (1876), apud Choay, op. cit., 1981, p. 8. 131 Choay, op. cit., 1981, p. 100.

187

Empenho semelhante encontra-se nas "cidades-jardins" propostas por Howard em 1898, na Inglaterra - tomando como precedentes algumas experiências de urbanização realizadas desde a década de 1870 - as quais vieram a orientar diversos empreendimentos de urbanização posteriomente. A proposta de Howard conserva algumas semelhanças com as propostas vinculadas ao socialismo utópico do início do século XIX, porém busca uma maior adequação às condições existentes, tendo em vista a viabilidade do empreendimento, voltando-se mais para aspectos estritamente urbanísticos, ou seja, sem pretensões de reforma da organização social132. Apesar de posteriores ao plano da Nova Capital, as cidades-jardins de Howard inserem-se numa tendência anterior, no sentido de definir o urbanismo enquanto uma técnica de fundamentos científicos, baseado na observação das condições existentes e na proposição de preceitos e modelos que pudessem sanar suas deficiências. Dentre

estes

preceitos,

ele

recomenda

a densidade urbana de 100

m2/habitantes, exatamente a mesma adotada pela Comissão de Estudos das Localidades da Nova Capital de Minas. Ainda que não possamos concluir por um vínculo direto dos preceitos urbanísticos de Richardson ou de Howard aos adotados por Reis, cabe notar que, além da proximidade que eles apresentam quanto aos aspectos populacionais, aquelas duas propostas, afastando-se das pretensões de dispor a totalidade da estrutura social, propõem preceitos especificamente urbanísticos, enquanto índices científicos. Levando-se em conta a recusa por Reis dos "sistemas artificiais" ou das "utopias", e seu anseio por fundamentar-se em dados e indicações científicas, pode-se inferir uma afinidade maior de suas convicções a estas propostas do que naquelas dos reformistas sociais, denominados utópicos.

132

Benevolo, op. cit., 1994, p. 356.

188

DIRETRIZES DA OCUPAÇÃO INICIAL No Ofício de apresentação da Planta Geral, ao referir-se à avenida "que corta a zona urbana de norte a sul, e que é destinada à ligação dos bairros opostos" - ou seja, a futura Avenida Afonso Pena - Aarão Reis justifica a maior largura dada a esta avenida pelo objetivo de "constituí-la em centro obrigatório da cidade e, assim, forçar a população, quanto possível, a ir-se desenvolvendo do centro para a periferia"133. Para PLAMBEL, esta determinação contém "a vontade de dirigir o processo de ocupação, principalmente através da futura Av. Afonso Pena que teria como função dirigir o crescimento urbano do centro para a periferia". Assim, o constatar que o crescimento da capital se deu mais da periferia para o centro, este estudo concluiu por um fracasso desta diretriz134. Examinando as disposições sobre a ocupação inicial da cidade que se seguem no mesmo Ofício observamos que de fato há a intenção de dirigir o processo de ocupação, porém a expressão "do centro para a periferia" não deve ser entendida no sentido de que a ocupação da periferia se daria apenas numa etapa posterior à completa ocupação da "área urbana" central, como faz supor uma leitura isolada da expressão. Procuremos pois entendê-la no contexto do Ofício. Para a ocupação inicial da Nova Capital pela população estimada em 30.000 habitantes, o Ofício de Reis determinava que esta deveria se dar tanto em uma parte da "Área Urbana" como em uma parte da zona suburbana, ficando as partes restantes de ambas zonas destinadas a uma ocupação futura. Pelas

133

Aarão Reis, Ofício n. 26, de 23 de março de 1895, apresentando ao governo as plantas da cidade, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 251. 134 PLAMBEL. O processo de desenvolvimento de Belo Horizonte: 1897-1970. Belo Horizonte: Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropolitana - Plambel, 1979, p. 21. Esta intepretação é também secundada por Alves da Silva, ao apontar a "primeira grande disfunção entre o plano e a sociedade": "Aqueles que não estavam previstos para ficar na cidade ocupam espaços periféricos à área central do anel da Avenida do Contorno e quebram a lógica pensada para o crescimento da cidade: a ocupação inicial do centro, principalmente por pessoas ligadas à administração pública, e depois a expansão para a periferia" [Alves da Silva, op. cit., p. 21].

189

delimitações das áreas estabelecidas por este Ofício, pode-se compor o seguinte quadro: Planta Geral (m2) área urbana

Ocupação inicial (m2)

Rel. inicial/geral

8.815.382

4.395.212

(53%)

50 %

24.930.803

3.855.994

(47%)

15 %

área subtotal 33.745.185

8.250.205

(100%)

suburbana rural (sítios)

17.474.619

_

24 % _

Foi reservada para a ocupação inicial uma faixa de aproximadamente 25% do total das áreas urbanas e suburbanas, abrangendo o trecho central da Área Urbana ao longo do eixo da avenida principal e os dois trechos da suburbana, contíguos aos extremos do trecho da área urbana. Assim, a ocupação da área suburbana deveria se dar já desde o início da implementação da cidade, e não numa fase posterior. Quanto à área urbana, observa-se que esta não deveria ser ocupada totalmente de imediato, mas deveria ser nela mantido uma área de reserva correspondente à metade da disposta pela Planta Geral. Aspecto importante desta delimitação inicial é que a faixa foi composta por duas porções aproximadamente iguais da Área urbana e da suburbana, o que indica que a ocupação de ambas deveria dar-se senão na mesma medida já que pode-se supor que a ocupação da suburbana seria mais lenta e com uma menor densidade - pelo menos distribuída em significativa proporção em ambas. Vê-se assim que a zona Suburbana foi pensada como uma área de urbanização e ocupação concomitante à da Urbana, e não como de expansão posterior, ainda que esta última deveria orientar o crescimento da cidade - já que era o ponto de partida da ocupação e, evidentemente, o objeto prioritário do empreendimento da Capital, pois nela se situava o aparelho administrativo e as principais funções urbanas. Como a faixa de ocupação inicial atingia a metade da Área Urbana e 15% da suburbana em relação à definida na Planta Geral, em ambas ficavam reservadas áreas para o crescimento a longo prazo da cidade. 190

Das áreas reservadas para ocupação posterior, a região a Leste (bairros Sta. Efigênia, Floresta e Santa Tereza) teve uma ocupação foi mais imediata, já nos primeiros anos da capital, mas na região Sudoeste (na zona urbana, os bairros Lourdes e Sto. Agostinho, e na suburbana, do Santo Antônio à Nova Suiça) a ocupação só veio ocorrer a partir da década de 30 - seguindo-se, nesta última, as disposições destas diretrizes. Quanto à zona de sítios, não há nenhuma menção neste Ofício a propósito de sua ocupação, nem tampouco quanto às áreas periféricas aos limites da Nova Capital. A única medida oficial relativa às áreas periféricas foi a implantação pelo Estado de alguns núcleos coloniais agrícolas, que logo assumiram a forma de assentamentos urbanos. Além disto, as áreas periféricas não foram objeto de qualquer planejamento ou exigências quanto à sua ocupação, ficando fora do âmbito dos trabalhos da Comissão Construtora. Considerando, por um lado que a região em torno da faixa de ocupação inicial ficava reservada para a ocupação futura - implicando numa valorização dos lotes da faixa inicial -, e por outro, que os estudos das localidades trabalhavam com uma expectativa de crescimento futuro da cidade além da população de 200.000 e portanto, além da área a esta população destinada, é pouco provável que se pensasse que a ocupação não atingiria estas áreas periféricas. Nesta omissão quanto às áreas periféricas pode estar implícita a intenção de deixar para o futuro sua regulamentação mais rigorosa, permitindo assim que nela se localizasse

imediatamente,

além

dos

pequenos

produtores

rurais,

os

assentamentos das populações mais pobres - livres das exigências impostas aos lotes da Nova Capital e dela convenientemente afastadas. Estando livres de qualquer regulamentação ou controle urbanísticos, e em razão dos preços dos lotes da Nova Capital inacessíveis à população pobre e da demarcação de uma ampla área de reserva - tanto na "área urbana", como na "suburbana" - as áreas periféricas foram imediatamente ocupadas por assentamentos das populações

191

pobres, seja em torno dos núcleos coloniais seja em torno de povoações mais antigas. Portanto,

ao

definir

que

a

ocupação

destas

zonas

se

daria

concomitantemente, as disposições sobre a ocupação inicial da cidade indicam que a demarcação concêntrica da área urbana, da zona suburbana e da zona de sítios não objetiva determinar uma progressão temporal neste sentido - ou seja, que a ocupação da zona suburbana e da seguinte apenas deveria ocorrer apenas após a plena ocupação da área urbana. Nesta disposições vemos também que cada uma das partes da cidade estava sujeita a um certo tipo de medidas, as quais visavam muito mais conduzir sua ocupação sob a perspectiva de um crescimento futuro, do que definir uma forma urbana plena e acabada. Ainda que sobre a área urbana recaísse uma definição mais rigorosa e detalhada - tanto do seu traçado como de sua ocupação -, as obras e a ocupação desta área foram previstas segundo etapas que se realizariam na medida do crescimento da cidade, e não de forma imediatamente completa e definitiva. A concepção e a implantação da Nova Capital, se por um lado apresentam o empenho em estabelecer uma ordem hierarquizada e mesmo segregacionista na demarcação dos espaços e de sua ocupação, por outro lado não fixa esta ordem de maneira completa e estática, mas deixa vários aspectos abertos a serem definidos no futuro. Aqui podemos reconhecer o propósito da doutrina positivista de conciliar ordem e movimento. Esta doutrina, admitindo a inevitabilidade deste último, recusa as pretensões de impor uma ordem social estática e absolutamente regulada e busca, a partir de supostas leis naturais dos processos sociais, conduzir e regular seus desenvolvimentos135.

135

Cf. Comte, Auguste, op. cit., t. IV. "La partie docmatique de la philosophie sociale", p. 11-21 e p. 292. Considerar a propósito a recusa de Reis da utopias e dos sistemas artificiais e a necessidade da intervenção do Estado no sentido de conduzir os processos econômicos e sociais.

192

Enfim, ao pretender o crescimento do centro para a periferia, Aarão Reis procurava fazer com que a ocupação não se concentrasse exclusivamente no centro, mas que esta ocupação, ainda que tendo como ponto de partida a "área urbana", atingisse também a "suburbana" e também a zona de sítios. As razões destas medidas podem ser atribuídas ainda a duas ordens de motivos diversas: por um lado, evitava-se as temidas concentrações populacionais, verificadas com crescimento urbano das cidades européias do século XIX, vistas como ameaçadoras tanto do ponto de vista higiênico como social; por outro lado, conservava-se um certa reserva de lotes dentro da própria "área urbana", a serem lançados no mercado futuramente, bem como garantia-se - com a diminuição da oferta - preços altos nos lotes da faixa central, cujos valores impediriam a aquisição dos mesmos pelas classes econômicas inferiores, impondo assim uma ocupação diferenciada socialmente segundo cada zona.

DISTRIBUIÇÃO

DO ESPAÇO

Ao analisarmos o modo de composição da "área urbana", notamos que os edifícios públicos ou de uso coletivo foram dispostos separadamente uns dos outros, localizados em grandes praças nos pontos de cruzamento das malhas viárias, levando-se em conta a conveniência da proximidade ou do afastamento de suas funções. Esta disposição resultou um conjunto caracterizado por vários setores distintos - conforme o caráter e o uso de seus edifícios principais - e relacionados em uma rede de afinidades: o setor destinado ao comércio e a funções de âmbito urbano, em torno da Estação - Praça do Teatro Municipalidade; o setor interdiário, das instituições públicas estaduais de interesse mais abrangente, em torno da Praça da República, onde deveria se localizar o Palácio do Congresso e da Justiça; e o setor político-administrativo, de acessibilidade mais restrita, definido pelo eixo formado pelo Palácio

193

Presidencial - sede do Executivo - e pela Praça do Progresso, onde seria localizado as Secretarias de Estado, este último oposto ao primeiro. Em torno do primeiro setor, que logo ganhou a denominação de "Bairro do Comércio", localizaram-se as atividades das esfera privada e da cidade propriamente dita, enquanto o setor oposto, as atividades do governo executivo, bem como as residências dos funcionários - setor este que logo ganhou a denominação de "bairro dos funcionários". O setor intermediário, em torno da Praça da República - que não chegou a ser implementada - funcionaria como o local de mediação dos assuntos públicos e privados, que teria lugar no Palácio do Congresso ou no Palácio da Justiça. Estes dois edifícios, localizados defronte entre si e ao Parque Municipal, conformando uma ampla - e apenas projetada - Praça da República, apresentariam, segundo se vê nos seus projetos, maior monumentalidade que os demais. Pelos orçamentos destas obras - que chegaram a ser contratadas e mesmo iniciadas -, seriam os edifícios de maior custo dentre todos: o do primeiro seria o dobro do Palácio Presidencial e quatro vezes o de cada secretaria, enquanto o segundo atingiria um valor aproximado de 70%136. Estes edifícios foram suprimidos do programa de obras - já sob a direção da Comissão Construtora pelo sucessor de Aarão Reis, o engenheiro Francisco Bicalho (maio 1895 - dezembro 1897) - visando tornar viável a inauguração da Capital no prazo previsto. Pode-se supor que motivou esta decisão não apenas uma redução de custos, mas também a prioridade aos edifícios ligados ao poder executivo e o menosprezo - em nada casual - dos demais poderes republicanos137.

136

Pelo que se pode calcular pelos dados apresentados por Aarão Reis, na sua "Exposição apresentada ao Exmo. Sr. Dr. Crispim Jacques Bias Fortes" (1895), apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 304. 137 Além da supressão dos dois Palácios referidos, a localização das três secretarias de Estado que pelo plano de Reis, formaria um conjunto de edifícios localizado na Praça do Progresso, situada na seção vizinha à face SO do Parque - foi transferida para a Praça da Liberdade, provavelmente porque assim se reduzia os custos de implantação da Praça do Progresso, já que esta acabou sendo eliminada. A localização do Palácio Presidencial foi mantida na esplanada denominada Praça da Liberdade - onde deveria ser o único grande edifício, pelo plano de Reis [1895]. Outros edifícios foram também suprimidos.

194

Notamos que os edifícios públicos da área urbana foram elementos de composição de cenários monumentais, organizados de modo a evitar fortes adensamentos - promovendo uma certa dispersão da ocupação - e a induzir uma especialização funcional das áreas próximas a eles. As modificações introduzidas por Bicalho, ao concentrar a administração estadual na Praça da Liberdade e suprimir os Palácios do Congresso e da Justiça138, certamente atenuaram o efeito pretendido pela disposição inicial. Contudo, de modo geral, conservou-se o efeito pretendido de dispersão dos focos e da ocupação, sendo que estes focos acabaram por se reduzir inicialmente a dois, resultando o setor intermediário inicialmente esvaziado de suas funções inicialmente previstas, mas logo após tornando-se - em torno da rua da Bahia - o centro da cidade, enquanto polo de ligação entre os dois setores opostos, como vermos adiante. Assim, o conjunto de edifícios empreendidos pela Comissão Construtora tiveram grande papel na ocupação da cidade. Em primeiro lugar vê-se que a disposição mais distanciada destes edifícios e praças promoveram uma ocupação não concentrada em único local da área urbana, fazendo com que toda a faixa da "área urbana" implementada inicialmente tivesse uma ocupação homogênea e distribuída, evitando tanto aglomerações localizadas, como extensos vazios. Os dois pólos iniciais assumiram as características de zonas especializadas e distintas, demarcando nitidamente a esfera pública e a esfera privada - e um setor intermediário. Além disto, a disposição destes edifícios públicos na malha urbana fizeram com que atuassem como elementos estruturantes ou indutores da ocupação das chamadas zona urbana e mesmo da zona suburbana. Os edifícios públicos também assumiram um papel exemplar para

a

configuração

dos

edifícios

privados,

proporcionando

os

tipos

arquitetônicos na qual se miravam seus construtores. Veremos também que a

138

Além destes, não foram construídas a Municipalidade e a Igreja Matriz, enquanto na área inicialmente prevista para o Teatro Municipal foi construído um Mercado.

195

legislação urbanística imediatamente posterior a eles (1901) assumiu como norma geral o patamar máximo de três pavimentos que os caracterizam. Os setores adjacentes a estes grandes edifícios públicos tiveram assim sua ocupação induzida ou mesmo determinada, como foi o caso do Bairro dos Funcionários. Este se localizava nas seções em torno da Praça da Liberdade (Palácio Presidencial) e da Praça do Progresso, prevista para sediar as Secretarias de Estado. Nestas seções foram localizados os lotes cedidos aos funcionários, mas nem todos os lotes destas seções tiveram esta destinação, sendo a maior parte colocada à venda. Nas demais áreas não se impôs uma determinação legal restrita do seu uso, o qual foi induzido pela disposição e vizinhança dos edifícios públicos, bem como pela maior valorização que estes lotes atingiam no mercado, definindo assim o perfil socio-econômico de seus estabelecimentos e habitantes. A especialização, induzida pelas zonas e seções definidas na Planta Geral, de determinadas áreas segundo suas funções e categorias sociais, impôs uma estratificação e homogeneidade da ocupação dos espaços da área urbana, bem como das adjacentes suburbanas. Contudo, o artifício utilizado não foi propriamente uma legislação restritiva dos usos, mas a implantação pelo Estado de áreas e pontos bem caracterizados, que assentaram os traços básicos da ocupação e induziram, pelos mecanismos de mercado, a ocupação das áreas adjacentes. Não houve propriamente um zoneamento, no sentido atual do termo, de definição das áreas segundo o uso residencial, institucional, comercial, etc, mas uma definição da natureza e do perfil socio-econômico das suas atividades e habitantes. Em cada setor ocorreu uma combinação de uso residencial e comercial ou institucional, segundo as atividades e categorias funcionais ou classes socio-econômicas que nele se estabeleceram. A determinação, ou melhor, a condução - para usarmos um termo mais afim às pretensões positivistas -, da ocupação da cidade não se fez apenas pelo efeito da disposição dos edifícios públicos. Além das determinações relativas à 196

ocupação inicial, vistas acima, outras disposições dos regulamentos das cessões e vendas dos lotes apresentam também o objetivo de induzir uma ocupação mais dispersa desta faixa de ocupação inicial. Pode-se reconhecer nas diretrizes do loteamento desta área a intenção de dispor as edificações iniciais de modo descontínuo, a fim de resultar numa densidade uniformemente distribuída, ou seja, evitando-se aglomerações bem como vazios. O decreto 803, de janeiro de 1895, que dispunha sobre a "planta geral da Cidade de MInas", definia também as primeiras diretrizes relativas à cessão e venda dos lotes da Nova Capital. Aos funcionários estaduais a serem transferidos e aos proprietários de casas em Ouro Preto foram cedidos gratuitamente um lote de terreno, sendo que estes lotes não poderiam ser contíguos, ou seja, que deveriam serem distribuídos de modo a deixar entre cada um deles pelo menos um lote para venda. Além disto, cada um dos lotes cedidos aos funcionários teria um de seus lotes contíguos reservado para venda preferencial aos mesmos, o que concorreria para manter este lote contíguo vazio, pelo menos inicialmente139. Sendo estes os primeiros lotes a serem ocupados, e devendo ser eles intercalados por outros que seriam ocupados posteriormente, a medida parece ter como objetivo promover uma distribuição homogênea e desconcentrada das primeiras edificações da área urbana, de modo a garantir uma ocupação abrangente e gradativamente intensificada da área estabelecida para ocupação imediata. Segundo o relatório do engenheiro Bicalho de abril de 1896, eram de propriedade dos funcionários 353 lotes140, e haviam sido vendidos muitos lotes contíguos aos cedidos, por "preço vantajoso ao comprador"141. Como foram cedidos 207 lotes, o restante deste total (146) refere-se aos contíguos adquiridos pelos funcionários. Em uma relação das 200 casas construídas para os funcionários públicos até setembro de 1897, verifica-se em aproximadamente 60 139

Decreto 803, Cap. IV, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 238-40. Franciso Bicalho, "Relatório de abril de 1896", apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 409. 141 Idem, p. 517. 140

197

% destas casas um lote contíguo, o que demonstra ter a medida cumprido seu objetivo de incentivar a aquisição destes lotes. Por esta mesma relação, verificase também que as 200 casas dos funcionários se distribuíam mais ou menos eqüitativamente pelas seções vizinhas V, VI e VII, que foram destinadas pela Planta

Geral

a

serem

ocupadas

pelos

funcionários,

ainda

que

não

exclusivamente por eles, já que continham lotes a venda142. Como uma seção da "área urbana" dispunha em média de 500 lotes, a ocupação destas três seções não foi exclusivamente por funcionários, já que apenas uma seção seria mais que suficiente para os mesmos. Por estes dados, vê-se estes grupos de funcionários e proprietários de Ouro Preto - os ocupantes iniciais da cidade ainda que localizados em espaços específicos, o foram de forma não concentrada e de modo a manter-se lotes de reserva para ocupação futura. Em relação aos lotes a serem postos a venda, em maior número que o grupo anterior, nota-se o incentivo a aquisição dos lotes contíguos, até o número de três, por um mesmo proprietário, já que neste caso a obrigação que tinha este de edificar num prazo de quatro anos recaia apenas sobre um dos lotes. O incentivo à aquisição de lotes contínuos favoreceriam a formação de uma reserva de mercado mais dispersa de lotes, enquanto os prazos para a edificação e a limitação do número de lotes vendidos a um mesmo proprietário, garantindo uma ocupação imediata e dispersa da área urbana, parecem buscar evitar a retenção especulativa de grandes áreas vazias contínuas143. Vê-se, portanto, nestas medidas relativas à cessão e venda dos lotes, o incentivo à manutenção de lotes vazios entre os lotes edificados, como reserva para uma ocupação posterior, de modo a evitar a formação de grandes vazios, confirmando a intenção acima identificada de promover uma ocupação inicial homogênea e pouco densa na parte da área urbana demarcada para o estabelecimento imediato da capital. 142

"Relação das casas dos funcionários públicos...", A Capital, 16 set. 1897, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 527-532. 143 Decreto 803, Cap. III, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 235-237.

198

Quanto aos antigos proprietários do arraial, estes tiveram seus lotes desapropriados já em 1894, antes mesmo de detalhada a planta da cidade, seja por permuta de lotes da futura Nova Capital, seja por indenização em dinheiro. Apesar da Comissão oferecer preferencialmente a permuta e dos baixos valores pagos nas desapropriações, negociadas a partir de valores anteriores à transferência da Capital para o Arraial, e portanto já defasados, de um total de as "mais de 400 propriedades" desapropriadas144, apenas 114 lotes forem entregues aos antigos proprietários a título de indenização, ou seja, a grande maioria

(75%)

das

transações

se

fez

por

indenização

pecuniária145.

Provavelmente a indenização por dinheiro fosse a melhor alternativa para os proprietários do arraial, principalmente para os mais pobres, pois assim poderia ser providenciada imediatamente uma nova moradia, enquanto que do outro modo, havia que esperar até dois anos para a posse de um lote na nova área em reurbanização. A propósito do destino dos habitantes do arraial, Barreto informa, baseando-se em um folheto publicado pelo Pde. Francisco Dias, de 1897, que "a maior parte transferiu-se para os arrabaldes da freguesia: Calafate, Piteiras, Cachoeira, João Carlos, Bento Pires, Cardoso e Venda Nova"146. Por estas indicações pode-se inferir que a maior parte dos antigos proprietários não permaneceu na área urbana da Nova Capital, e que muitos estabeleceram-se nas áreas vizinhas à demarcada pela Comissão Construtora, iniciando a ocupação da periferia da capital, juntamente com os núcleos de colonização e com os assentamentos precários que se formaram nas imediações da capital, já desde a construção, onde se estabelecia a população pobre.

144

Aarão Reis, "Exposição apresentada ao Exmo. Sr. Dr. Crispim Jacques Bias Fortes" (1895), apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 276. 145 Franciso Bicalho, "Relatório abril de 1896", apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 409. A relação das 428 propriedades desapropriadas confirma que a maioria das indenizações foi feita por aquizição e não por permuta, conforme o "Quadro completo das desapropriações feitas no distrito de Belo Horizonte, segundo o relatório apresentado pelo Dr. Aarão Reis ao governo do Estado, [...], a 20 de maio de 1895", composto por Barreto [op. cit. 1995, p. 81-94]. 146 Barreto, op. cit. 1995, p. 78-9.

199

Na inauguração da cidade, em dezembro de 1897, além das 200 casas dos

funcionários,

era

estimado

em

300

o

número

das

construções

particulares147, sendo que no ano de 1897 foram expedidos 262 alvarás para construção de "prédios na zona urbana" e 112 para a construção de "casas na zona suburbana"148. Pela relação do número das construções na zona urbana e na suburbana, vê-se que a última contava com número expressivo do total das construções aprovadas de acordo com as exigências legais da Nova Capital, o que indica que a zona suburbana já apresentava, em função das diretrizes estabelecidas pela Comissão Construtora, uma ocupação concomitante à zona urbana. Somavam-se a estas casas "de funcionários" e "de particulares", as "vilas de casinhas", em número superior a cem habitações, destinadas aos "operários e pessoas pobres", construídas pela iniciativa privada para aluguel, em diversos pontos da periferia da zona urbana; além destas, "grande número de cafuas e barracões nos grandes e bulhentos bairros provisórios - Leitão e Favela ou Alto da Estação"149. Estes dados indicam que, já desde o início da cidade e ainda sob a tutela da Comissão Construtora, ocorreu uma ocupação dispersa da cidade, atingido as "áreas urbanas", as "suburbanas" e mesmo áreas fora dos limites oficiais da Nova Capital, em significativa proporção. Enquanto isto, grande parte das zonas urbanas e suburbanas ficavam reservadas para um crescimento posterior, cumprindo-se assim os designos manifestados por Reis de que a cidade crescesse do "centro para a periferia", no sentido que aqui interpretamos esta expressão, ou seja, de evitar a aglomeração das áreas centrais, reservando-as para uma ocupação funcional e socialmente diferenciada, bem como passível de crescimento, de modo a manter a estrutura geral delineada.

147

Idem, p. 638. "Informações sobre os serviços executados pela extinta Comissão Construtora, de 1º. de Janeiro a 31 de dezembro de 1897", apud Barreto, op. cit. 1995, p. 685. 149 Barreto, op. cit. 1995, p. 638. 148

200

Vê-se, portanto, no conjunto das medidas acima analisadas, um esforço no sentido de responder a dois problemas: 1) o de localizar a ocupação em uma determinada faixa do plano definido na Planta Geral, deixando tanto na zona urbana como na suburbana, áreas reservadas para a ocupação posterior, bem como estabelecer critérios social diferenciados desta ocupação; 2) evitar-se uma ocupação urbana e populacional concentrada em alguns pontos, fazendo que esta se distribuísse por toda a extensão da faixa inicial, principalmente na "área urbana". Tratava-se, enfim, de buscar imprimir uma ordem ao crescimento, impondo certos controles ao processo de apropriação e ocupação do espaço urbano e regulando as etapas de seu crescimento. Se a Planta Geral apresenta um configuração marcada pela estratificação espacial e social, segundo zonas delimitadas, portadoras de distintos traçados e funções, ela não delineia uma ordem espacial plena e acabada, construída e regulada em todos os seus aspectos, mas aberta à implementações e definições futuras. Concorre na concepção da Nova Capital, a intenção de conduzir o crescimento e os fatores dinâmicos da sociedade, como o mercado e as demandas das diversas classes sociais, de modo manter o equilíbrio social. REGULAMENTO DE CONSTRUÇÕES Ainda que posterior à Planta da Nova Capital (1895), o Regulamento de Construções de 1901150 constituiu-se em uma medida determinante da conformação urbana que se procurava imprimir nos primeiros anos da cidade. Vimos anteriormente que o plano de Reis não se preocupou em definir as edificações segundo um programa formal, tal como característico do urbanismo barroco, ou seja, impondo a mesma altura para as edificações visando produzir um conjunto perspectivo unitário. Ainda que o Regulamento das Construções de 1901 apresente rigorosas limitações a propósito da altura das edificações, vemos que se trata de limites máximos e não de uma altura fixada 150

Minas Gerais. Dec. 1.453, 27 março de 1901, Regulamento de Construções, reconstruções e demolições de obras da Cidade de Minas. Leis e Decretos do Estado de Minas Gerais, do anno de 1901.

201

obrigatoriamente; alem disso, este limite, ainda que possa ter razões de ordem formal, decorre também de outros fatores. O Regulamento de 1901 estabelece rigorosas normas quanto "às condições dos prédios e suas dependências", definindo patamares mínimos os afastamentos, áreas externas de iluminação, dimensões dos cômodos (área e altura) e de seus elementos construtivos (portas e janelas) em vista de suas condições de "iluminação e arejamento", patamares estes, sob vários aspectos, mais restritivos que os estabelecidos pelos Regulamentos posteriores. Estas exigências refletem a preocupação higienista com a volume e a circulação de ar nos cômodos, procurando satisfazer ambas as condições. Além destas exigências, o Regulamento contém minuciosas prescrições quanto aos materiais, técnicas e detalhes de execução dos edifícios, constituindo-se num verdadeiro manual de construção. Contudo, o que mais chama atenção é a limitação do número de pavimentos, ou seja, da limitação da altura do edifício, em níveis que, comparados com os padrões habituais das construções das grandes cidades época, se mostram bastante restritivos: Na zona urbana não é permitido a construção de prédios de mais de três pavimentos, salvo em casos especiais, justificados por necessidade de arte, comércio e indústria, a juízo do Prefeito, e ainda assim o número de pavimentos não deve exceder a cinco, e estes devem se comunicar por meio de elevadores mecânicos, além das escadas.151

A limitação do número de pavimentos deriva de uma tradição urbanística tipicamente européia, decorrente de motivos formais, higiênicos e de segurança das construções. Em Londres, os regulamentos estabelecidos em 1667 para a construção de habitações limita o número dos pavimentos em função da largura das ruas: para as ruas principais os edifícios ficavam limitados a cinco pavimentos, ou seja, uma altura total aproximada de 15 metros152. No mesmo ano (1667), em Paris, o recém-instituído Conselho de Polícia, encarregado tanto 151 152

Idem, Art. 33. Benevolo, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Perspectiva, 1983, p. 544.

202

da ordem pública como da ordenação física da cidade, fixa um limite de altura para os edifícios. Mais tarde a restrição da altura dos edifícios é detalhadamente regulada no chamado "plano de 1769", que serviu de base para os trabalhos de ordenamento e de regulamento das construções, que se desenvolveram nesta cidade até no século XIX153. Regulava este "plano" a largura das vias e, em função desta, a altura máxima dos edifícios. Tais regulamentos sofreram algumas modificações em 1784, porém mantendo-se os mesmos princípios gerais, isto é, definindo a altura máxima do edifícios em função da largura da via. Segundo o prescrito pelo último regulamento, em ruas a partir de trinta pés (9,15m) de largura, ficava o edifício limitado em cinqüenta e quatro pés (16,5m) de altura junto ao alinhamento, permitindo-se um acréscimo de até 15 pés (4,6m), no caso de volume recuado, o que totalizava 21,1 m., sendo este então o limite máximo da altura dos edifícios parisienses. Hausmann, em 1859, fixou novas relações entre a altura das construções e a largura das ruas, aumentando um pouco os limites: em ruas de vinte metros ou mais, a altura deve ser igual à largura, e nas mais estreitas, a altura pode ser uma vez e meia a largura154. Estes limites correspondem ao edifício burguês de habitação coletiva comum em Paris, entre o séc. XVII e XVIII, derivado do Pallazo italiano do séc. XV, com três pavimentos, acrescido na França de um ou dois pavimentos em ático, sendo o último geralmente em mansarda. No século XIX, passa este tipo de edifício a ter seis ou até mesmo sete pavimentos, com a diminuição das exigências relativas às alturas dos pavimentos155. De uma maneira geral, a delimitação da altura dos edifícios em torno de vinte metros pode ser considerado como característica da arquitetura dos centros das grandes cidades européias dos séculos XVII ao XIX, mantendo-se ainda no século XX, onde era

153

Bardet, Gaston. Naissance et méconnaissance de l'urbanisme. Paris: SABRI, 1951, p. 325. Benevolo, op. cit., 1994, p. 98. 155 Guerrand, Roger-Henri. "Espaços privados". In: História da vida privada - 4, Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 325. 154

203

adotada nos regulamentos urbanísticos, pelo menos nas cidades francesas, até os anos 30156. Na então Cidade de Minas, pelo Regulamento de 1901, estavam os edifícios limitados a três pavimentos, resultando em uma altura máxima do edifício em torno de 13,0m - considerando os limites da altura dos pavimentos definidos pelo Regulamento e sem contar o porão e telhado ou a platibanda. O Regulamento das Construções da Nova Capital adota, portanto, a tradição européia de preceitos urbanístico, porém com um patamar mais restritivo do que o limite de 20 metros característico desta tradição. Derivado também desta tradição é o Código de Polícia Municipal de Belém, capital do Pará, vigente a partir do mesmo ano de 1901, que determina limites semelhantes ao da Nova Capital quanto ao limite das alturas de cada pavimento, mas adota o padrão francês de 20 metros como limite de altura total dos edifícios particulares157. Fica evidente, pois, objetivo do Regulamento das Construções da Cidade de Minas, de 1901, em zelar pela baixa densidade de construção da Nova Capital, seja por razões higiênicas ou razões estéticas - segundo os conceitos característicos do urbanismo europeu da época - ou ainda com o objetivo de evitar grandes densidades demográficas. Pode-se supor também que a restrição da altura dos edifícios particulares decorresse do interesse em mantê-los em níveis pelo menos equivalente aos dos edifícios oficiais - com três pavimentos, como era o caso das secretarias de estado, sendo os demais com dois pavimentos158. Se o limite de altura dos edifícios estabelecidos pelo Regulamento de 1901 já se mostra abaixo do padrão dos edifícios franceses - que podem ser considerado como pouco verticalizados se comparados com os norte-

156

Kharachnick, W. Quelques problèmes d'urbanisme. Paris: Dunod, 1930, p. 17 e 27. Derenji, Jussara da Silveira. "Arquitetura eclética no Pará". In: Fabris, Annateresa (org.). Ecletismo na arquitetura brasileira. SP: Nobel/Edusp, 1987, p. 154. 158 Certamente não seria necessário nem conveniente uma maior verticalização, pois não havia escassez de terrenos e um número maior de pavimentos implicaria em desconforto e maiores custos; além disto, a adoção do modelo oriundo do palácio renascentista italiano não surpreende, pois foi este uma referência básica para toda arquitetura civil européia até o século XIX. 157

204

americanos do final do século XIX, - confrontado com as alturas das construções praticadas em Chicago ou em Nova Yorque, desde as duas últimas décadas do século XIX, a diferença é enorme. Os arranha-céus, possibilitados pelo elevador, o telefone e o correio pneumático, pelo desenvolvimento da estrutura metálica, bem

como

pelo

liberalismo

da

legislação

urbanística

norte-americana,

multiplicam os andares de edifícios situados em valorizadas áreas urbanas. São construídos em grande número a partir da década de 1880, inicialmente em Chicago e logo depois disseminam-se por Nova Yorque e outras cidades, em rápida escalada dos números dos seus pavimentos. O Manhattan Building em 1890 atinge, pela primeira vez no mundo, dezesseis andares e nas duas décadas seguintes diversos outros são construídos também em Chicago: o Tacoma Building (1889) com 12 andares, o Monadnock Building (1891) com 16 andares, e o Capitol, em 1892, atinge 22 andares, dentre outros159. O Fuller Building de Nova York, com seus vinte pavimentos é considerado em 1902 o mais alto desta cidade, mas no ano seguinte já há seis edifícios acima deste nível, sendo o mais alto com 29 pavimentos, e 26 edifícios com mais de 15 pavimentos em Nova York160. Além dos fatores técnicos, o desenvolvimento econômico das grandes cidades e a urbanização concentrada no seus centros, vinculados à concentração de capital e de atividades, bem como o aumento demográfico geral criam, no último quartel do século XIX, as condições do surgimento e da disseminação dos arranha-céus. Outra condição não menos importante faz com que este fenômeno seja específico dos Estados Unidos, e, em menor medida, dos países americanos, até na primeira metade do século XX161: enquanto nas

159

Benevolo, op. cit., 1994, p. 234-248. Manieri-Elia, Mario. "Por una cidade imperial". In: Ciucci, Giorgio et alt. La ciudad americana de la guerra civil al New Deal. Barcelona: Gustavo Gili, 1975, p. 80-83. 161 Ainda que neste período ocorram arranha-céus nas cidades européias, tal prática não se apresenta com a intensidade com que ocorre nos Estados Unidos, sendo os edifícios isolados, não formando conjuntos extensos, e predominando a construção de edifícios dentro do limite de vinte metros de altura, em torno de sete pavimentos, inseridos na configuração estabelecida das cidades. 160

205

cidades européias a tendência à verticalização dos edifícios é contida por uma estrutura urbana já consolidada sob um tradição de controle urbanístico, nos EUA a formação da cidade assume radicalmente a fórmula do laissez faire e se dá segundo os interesses dos grandes construtores162. Embora o limite estabelecido pelo Regulamento das Construções de 1901 possa ser considerado restritivo se comparados com os padrões europeus - e, mais ainda, com os americanos - da época, nas condições da construção de edifícios em Belo Horizonte, ele não se constituía num obstáculo às demandas de aproveitamento dos lotes, já que as edificações das primeiras décadas do século não apresentavam mais que dois pavimentos. Pelo recenseamento municipal concluído em 1912, dos 4.731 "prédios" construídos (excluídos os 1.807 barracões), apenas 309 eram "assobradas ou de sobrado", ou seja, de dois pavimentos163. Em 1911 foi aprovado o primeiro projeto de construção particular em três pavimentos164, sendo que ainda na década de vinte muitos poucos atingiam esta altura. Provavelmente devido ao grande número de lotes disponíveis, além da reserva de boa parte da área urbana, não era economicamente viável a construção de edifícios mais verticalizados, devido à maior complexidade técnica e ao capital exigido. Frente a estas comparações, pode-se notar o empenho inicial do Poder Público mineiro em garantir que a ocupação das áreas urbanas, inclusive as centrais, se desse com baixa densidade edificada, e conseqüentemente, de maneira mais dispersa, evitando-se a formação de aglomerações, seja para evitar ameaças às condições higiênicas, de circulação ou mesmo as ameaças à ordem pública que se temiam advir das multidões. Vemos também que estes limites apresentavam-se plenamente ajustados às condições e aos interesses da construção civil da época. Observamos que este Regulamento não deve ser

162

Manieri-Elia, op. cit, p. 3. Pena, Octavio. Notas Cronológicas de Belo Horizonte. BH, [s.n.], 1950, p. 148. 164 Pena, op. cit., p. 129. 163

206

compreendido como uma medida definitiva, através da qual se pensava regular a configuração das edificações por todo o futuro, como veremos adiante.

3.3. A ocupação inicial do espaço A partir das polaridades definidas pela Planta Geral e da localização das atividades e das categorias sociais a elas vinculadas, já desde a construção das vias e das primeiras edificações, dois bairros se definiram na faixa inicial da "área urbana", o do comércio e o dos funcionários165, núcleos inicialmente bem caracterizados de concentração de edifícios e de atividades, separados por um trecho de ocupação mais rarefeita, que poucos anos após a inauguração da Nova Capital ganhariam grande intensidade. O ponto de partida da ocupação e das primeiras edificações da Nova Capital foi a Praça da Estação e a avenida que dela partia, a avenida do Comércio (atual Santos Dumont)166. A pioneira ocupação desta área era registrada por periódico local, em julho de 1897, meses antes da inauguração da Nova Capital167. A I seção Urbana, atravessada pela avenida do Comércio, e a vizinha II seção, atravessada pela Av. Paraná, compunha um setor diferenciado na Planta Geral por seus quarteirões menores em torno destas avenidas, situado em áreas planas. Seguindo-se estas duas seções, ao longo do eixo da avenida central (Afonso Pena), têm-se as seções III e IV, e em seguida as seções V, VI e VII, que constituíam, as três últimas, o bairro dos Funcionários. Foram as seções I e II que sofreram inicialmente a maior ocupação por parte das construções particulares. Das 180 construções desta categorias, incluindo as residenciais e comerciais, autorizadas até junho de 1897, 63% concentravam-se nas seções I e 165

Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 739. A avenida do Comércio desenvolvia-se em direção à praça onde deveria localizar-se o Teatro Municipal, mas que acabou tornando-se a Praça do Mercado, inaugurado em 1900. 167 "Iniciativa individual", A Capital, 8 jul 1897, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 638. 166

207

II, enquanto 21% das mesmas localizavam-se nas seções III e IV, intermediárias entre aquele setor e o bairro dos Funcionários (seções V-VII) - onde se localizavam então, além das casas dos funcionários, 8% das construções ditas particulares, sendo as restantes nas zonas suburbanas168. A despeito da maior concentração inicial nas seções I e II, segundo Barreto, "para considerável número dos principais habitantes [...] o futuro centro de maior atividade seria o trecho compreendido no retângulo formado pelas ruas Guajajaras e Bahia e Avenidas Afonso Pena e Liberdade", na IV Seção, pois, como relata, ali edificaram prósperos comerciantes e empresários da cidade169. Ao longo do eixo da avenida central, do lado oposto ao bairro comercial e uma região mais elevada, constituía-se o bairro dos Funcionários (seções V, VI e VII), delimitado a partir da avenida Brasil - que deveria ligar o Palácio Presidencial (Praça da Liberdade) ao conjunto das Secretarias (Praça do Progresso), mas que perdeu esta função em decorrência da localização das Secretarias na Praça da Liberdade. A concentração dos principais edifícios públicos na Praça da Liberdade, a uniformidade arquitetônica das casas do bairro dos Funcionários e a sua especialização ocupacional - ainda que não exclusiva - definiam portanto um conjunto homogeneamente caracterizado, tanto sob o aspecto arquitetônico como social. Nos primeiros anos da "área urbana" formou-se, portanto, dois setores mais concentrados e um pouco distanciados: o bairro comercial (seções I e II), polarizado pela Praça da Estação e do Mercado e o bairro dos funcionários (seções V-VII), polarizado pela Praça da Liberdade. A área entre estes setores iniciais (seções III e IV), em torno da Avenida Liberdade e da rua da Bahia, que inicialmente apresentava uma baixa ocupação menos, logo teve sua ocupação intensificada. Nela foram instalados: o Senado Mineiro, em 1905, num Palacete da Av. Liberdade, inicialmente destinado à residência do secretário de

168 169

Calculado a partir da relação coligida por Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 547-551. Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 460.

208

Agricultura170; o edifício dos Correios, em 1906 171, numa esquina do cruzamento da rua da Bahia com Afonso Pena, no qual também se localizou, na mesma década; a Agência de Bondes, centralizando as linhas deste transporte na prosaica região do Bar do Ponto; e o Conselho Deliberativo municipal, em 1914, em edifício na rua da Bahia172. Além destes, diversos outros estabelecimentos privados, voltados para uma clientela de maior poder aquisitivo, se instalaram nesta região. Como área intermediária entre o bairro do Comércio e o bairro dos Funcionários, entre a Estação e o Palácio Presidencial, esta região, e principalmente a rua da Bahia, tornou-se então, ao longo das três décadas seguintes, o centro de convergência e de sociabilidade da vida burguesa e burocrática da Capital, a ligação e o encontro entre a esfera privada burguesa e a esfera pública da Capital - em torno da qual uma extensa e dispersa ocupação periférica se desenvolvia173. Em uma descrição do movimento dos transeuntes no centro da cidade, de 1916, um articulista observava a formação de pontos de atração do tráfego e de pequenas aglomerações, em torno de alguns locais, considerando-a como uma "espécie nova de tropismo174 a ser estudada por biológos": "Talvez por um efeito da gravidade, não se formam grupos parados nos passeios cuja declividade seja superior a 2 e 1/2 %". Esta atração das aglomerações pelos lugares planos - a que ele atribui à influência da gravidade no comportamento biológico e sociológico - teria sido, para o articulista, considerada no plano da Nova Capital: As massas tem horror às elevações atingidas esforçadamente; seu meio é a planície sedimentária onde a borra repousa. Aarão Reis e Francisco Bicalho, físicos e psicólogos, não se esqueceram deste fenômeno para o isolamento do governo de Minas na nova capital.175 170 171 172 173 174 175

Pena, op. cit., p. 86. Neste prédio funciona atualmente o Museu Mineiro. Pena, op. cit., p. 94. Pena, op. cit., p. 173. Ver sobre o assunto Julião, op. cit. e Chachan, op. cit. Tropismo: Biologia Geral. Reação de aproximação ou de afastamento do organismo em relação à fonte de um estímulo. [Aurelio Eletrônico, op. cit.] Porphyrio Camelo, "Períodos de um capítulo", As alterosas, ano I, n 2, 04 nov 1916.

209

A localização por Aarão Reis das atividades comerciais - e outras de cunho mais mundano, como o Teatro Municipal - nas áreas mais planas e baixas, e a localização do Palácio do governo e da Igreja Matriz, nos pontos mais elevados, e ainda a localização - não efetida - dos Palácios do Congresso e a da Justiça num plano intermediário entre aqueles dois níveis, parecem dar razão à observação do articulista a propósito da consideração do relevo na disposição dos edifícios segundo seu caráter e função. Além da evocação do determinismo biológico dos comportamentos sociais, característico do evolucionismo social do século XIX, a disposição adotada por Reis evoca-nos o argumento da separação das atividades públicas e comerciais, que remete ao repúdio, por Platão, do comércio como nefasto à vida da Polis, bem como à recomendação de separar a ágora para deliberações da ágora para negócios, feita por Aristóteles - que também recomenda a localização dos governos monárquicos ou aristocráticos em áreas elevadas e a dos governos democráticos em áreas planas. Ainda que seja temerário, a partir destas indicações, concluirmos daí a procedência das razões de Aarão Reis, reencontramos aqui possíveis ecos do saber clássico sobre a ordenação das cidades, revistos à luz do cientificismo positivista do século XIX, como fundamentos do planejamento da Nova Capital mineira. Outras duas crônicas do mesmo período demarcavam também territórios diferenciados na área urbana, referindo-se a um polo burocrático ou aristocrático e a um polo mais popular, e, em uma delas, à rua da Bahia como uma área intermediária176. Pode-se ver nesta cartografia espacial e social da cidade nas primeiras décadas, o resultado da ocupação induzida pela localização dos edifícios e equipamentos públicos e da especialização funcional dos setores (as seções). Se por um lado a faixa inicial apresentava uma ocupação pouco adensada e dispersa - estando ainda reservada, pelas disposições anexas à 176

Cf. Julião, op. cit., p. 119 -120.

210

Planta Geral, uma grande parte da "área urbana" e da suburbana - por outro lado, em algumas regiões suburbanas e na periferia externa aos limites oficiais da Nova Capital ocorria uma ocupação significativa, já desde o período da construção da Nova Capital. Os primitivos arrabaldes do Arraial do Curral del Rey, Calafate, Piteiras, Cachoeira, João Carlos, Bento Pires, Cardoso e Venda Nova, já apresentavam, como mencionamos anteriormente, grande ocupação, principalmente pelos antigos moradores do arraial do Curral del Rey. Outros focos de povoamento eram as Colônias, formadas por um núcleo urbano e sítios destinados à pequena agricultura, situadas na periferia da área oficial da Nova Capital. Enquanto crescia a ocupação suburbana e periférica, na década de 1900 algumas

áreas

inicialmente

definidas

como

urbanas

passaram

a

ser

consideradas como suburbanas para efeito de exigências urbanísticas, como uma parte do bairro Floresta (XIV seção) e o Barro Preto (VII seção) - este último destinado a estabelecimentos industriais e a habitações operárias, concedidas a título provisório pelo Estado -, sendo também incorporados à zona suburbana da Capital, o povoado do Calafate e os núcleos colônias, que situavam-se inicialmente fora dos limites da Nova Capital177. Entretanto, foi mantida uma extensa área de reserva, a Sudoeste, correspondentes aos futuros bairros de Lourdes e Santo Agostinho (seções IX e X), na área urbana - cuja urbanização só será iniciada na década de 20178 -, e à faixa entre os bairros Sion à Barroca, na zona suburbana, cuja urbanização se dará a partir do final da década de 30. A expansão da periferia e a grande ocupação suburbana, a despeito da precária

infra-estrutura

urbana

destas

áreas,

demandando

maiores

investimentos públicos, não era vista pelo prefeito Olynto dos Reis Meirelles em relatório de 1912, como um problema mas como uma vantagem: 177 178

Pena, op. cit, p. 69, 93, 111 e 141. Em 8 out 1920, "é o prefeito autorisado pela Lei 189 a fazer as necessárias operações de crédito para atender os serviços de abertura das ruas e praças e sua terraplanagem, no perímetro compreendido pelas ruas da Bahia, Emboabas, Espírito Santo, Timbiras, RJ, Tupis e av. Cristovam Colombo." Pena, op. cit., p. 213.

211

Será sempre preferível uma população menos numerosa na área urbana, porém saudável e cercada de todas as garantias de higiene, habitando áreas e prédios que tenham o conjunto harmonioso e perfeito pela Comissão Construtora, a vermos mesmo no coração da cidade verdadeiros bairros chineses, habitat predileto de todas as moléstias infecto-contagiosas179.

A ocupação da periferia era, no mesmo ano de 1912, também reconhecida e aplaudida num artigo do jornal oficial do Estado, que considerava que "nestes 15 anos efetivamente a cidade vem surgindo da periferia para o centro, em construções valiosas, de iniciativa particular, francamente amparada pelos poderes públicos"180. A implantação das linhas de bonde ao longo da década de 1900, atingindo os bairros suburbanos e periféricos, pode ser tomado como um indicador da infra-estrutura instalada de modo a atender ou sustentar a expansão urbana pela periferia da Nova Capital. Em 1902 começa a circular quatro linhas no perímetro da "área urbana" (Estação, Ceará, Pernambuco e Quartel); em 1905, inaugura-se a linha de bondes da rua Pouso Alegre (bairro da Floresta) e da rua Chumbo (atual Estevão Pinto, no Bairro Serra), atingindo portanto a zona suburbana. No ano seguinte entra em funcionamento a linha do Calafate e a linha do Matadouro, atendendo a regiões que ainda não pertenciam aos limites oficiais da Nova Capital. Em 1909, é inaugurada a linha de bondes para o Cemitério do Bonfim e a linha para o Prado181. Apesar da precariedade do abastecimento de água e energia elétrica e da estrutura viária verificadas na época nas regiões suburbanas e periféricas, pelo menos quanto à instalação de bondes pode-se ver que, seja para atender demandas já existentes ou para permitir uma ocupação mais efetiva, a ocupação destas áreas contou com grande estímulo.

179

Relatório apresentado ao Conselho Deliberativo da Capital pelo prefeito Olynto dos Reis Meirelles em setembro de 1912, apud PLAMBEL, op. cit., 1979, p. 69. 180 Minas Gerais, 12 dez 1912, apud PLAMBEL, op. cit., 1979, p. 94. 181 Pena, op. cit, p. 72, 85, 87, 93, 111, 114.

212

Pelo recenseamento municipal concluído no ano de 1912, do total de 38.822 habitantes da Capital, a "zona urbana" continha 12.033 (31%), a "suburbana", 14.842 (38%) e as "colônias, sítios e povoados" - que não se incluíam nos limites oficiais inicias da Nova Capital - continha 11.947 (31%) habitantes182. Esta distribuição da população pode ser compreendida como resultado dos seguinte fatores: a grande ocupação inicial das áreas suburbana e das áreas externas aos primeiros limites oficiais da Nova Capital; a expansão da suburbana, assimilado uma parte da "área urbana" inicialmente definida; e a ocupação pouco concentrada da área urbana, além de ter sido nela mantida, até a década de 30, uma reserva de aproximadamente 30 % de sua área. Duas descrições das memórias de Pedro Nava dão significativos informações da ocupação da "área urbana" e da "suburbana" ao final dos anos 1910. Numa direção (Oeste), a ocupação da "área urbana" ia apenas até a esquina da rua Timbiras com avenida Alvares Cabral, a poucos quarteirões da avenida Afonso Pena, seguindo-se além, grandes extensões vazias: Era aí que acaba Timbiras, que acaba a cidade e começavam os abismos de terra vermelha e de mato pobre que ficavam entre os altos da Rua Espírito Santo e - lá embaixo, junto ao horizonte - os longes do córrego Leitão e do inacessível Calafate.183

Na outra direção (Norte-Sul), a ocupação era bem mais extensa, atingindo, na continuidade da Avenida Afonso Pena, o bairro da Serra, onde morou a partir de 1921 - e no outro sentido, Lagoinha, Carlos Prates, Calafate: Grande parte da população do pedaço de bairro [...] era composta de dois gêneros de habitantes. As aves de arribação, proletários em constante substituição, demorando pouco, indo para a Floresta, o Calafate, o Carlos Prates, a Lagoinha - tangidos pela insegurança que faz o nomadismo de sua classe e leva-a de bairro a bairro, cidade a cidade, Estado a Estado na procura de salário melhor. [...] Mas havia também a gente fixada ao seu bairro pela posse terreal [...]. Eram geralmente antigos operários da fundação ou seus

182 183

Idem, p. 147. Nava, Pedro. Chão de ferro: Memórias/3. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976, p. 349.

213

filhos, que o Governo quisera tungar pagando seu trabalho com terras sem valor e que de repente subiam de estado com a valorização geométrica do que tinham recebido como tuta-e-meia. Tinham assim começado sua escalada nas encostas da classe média. 184

Configurava a paisagem do bairro da Serra chácaras e chalés em grandes lotes, canteiros, barracões, lotes vazios, veredas, becos e ruas como a de Chumbo - "simples vereda cheia de pó, no seco e de lama, no tempo das águas. Nem se via o traçado da rua, tomada de capim, pasto de cabras, bezerros e inçada da cachorrada"185. Em seu percurso para a Faculdade, Nava descia este bairro, atingia a área onde "as matas e chácaras já iam virando cidade", nas proximidades da av. do Contorno, penetrando a chamada zona urbana, onde passava por "dois quarteirões de [rua] Ceará, meio desertos e sem história". O trajeto desenvolvia-se por diversos desvios, pois a "zona era cheia de erosões, buracos, desbarracamentos, ruas pela metade, matagais, córregos, águas represadas". Conforme observa, "só muito aos poucos", os bairros por onde passava, "Serra, Cruzeiro, Funcionários enfim se conurbaram"186. A descrição de Nava mostra que, vinte anos após a inauguração da capital, a área suburbana, mesmo a mais próxima à urbana (I seção surburbana) e do bairro dos Funcionários, apresentava uma ocupação dispersa e um traçado urbano pouco definido. Vê-se nesta época ser mantido os objetivos de que a capital mantivesse um crescimento regulado e disperso, sem grandes concentrações, impondo a ocupação da periferia pelas classes baixas e mesmo médias, ao mesmo tempo que se reservava para o futuro a ocupação mais intensa da área urbana, de acordo com diretrizes oficiais de ocupação inicial da cidade.

184

Idem, p. 286. Idem, p. 285. 186 Idem, p. 315. 185

214

Trinta e um anos após a apresentação oficial da Planta Geral da Nova Capital - em 1926 - Aarão Reis visita Belo Horizonte e concede uma entrevista, publicada com o título: "Belo Horizonte visto por quem lhe delineou o plano inicial. Palestra com o Dr. Aarão Reis". Após um período considerado como de crise econômica, ao longo da década de 10, notadamente marcado pela baixa atividade da construção de edificações, a cidade passava então por uma intensificação das atividades econômicas, principalmente após ter sido concluídas, no final da década de dez, a ligação ferroviária da Estrada de Ferro Central do Brasil. Nesta entrevista, o engenheiro, afirmando que vinha acompanhando, "com

o

mais

vivo

desvanecimento,

o

progressivo

desenvolvimento,

admiravelmente rápido, desta cidade", apresenta uma avaliação de seu trabalho como autor do Plano da capital. Inicialmente Reis manifesta sua aprovação com os rumos que a administração da cidade haviam dado ao seu plano, lembrando que sempre que vinha até aqui, volvia confortado pela verificação de que prosseguia respeitado o conselho do célebre mestre Bouvard, que em uma visita a Belo Horizonte, quando em 1911, teve o ensejo de visitar esta cidade: "Nem uma linha deverá ser alterada, porque tudo foi habilmente previsto, aproveitados inteligentemente os recursos da própria localidade187.

Ainda que a avaliação citada do urbanista francês refira-se à perfeição e a completitude de seu plano, Reis esclarece que sua Planta Geral não pretendia definir uma forma plena e definitiva da cidade, mas uma estrutura a ser completada ao longo do tempo, como um organismo vivo: Com o precioso auxílio de prestimosos colaboradores, [...], "preparei e armei apenas um 'esqueleto', ao qual nos esforçamos por dar as convenientes

187

"Bello Horizonte visto por quem lhe delineou o plano inicial. Palestra com o dr. Aarão Reis", Diário de Minas, 21 jul 1926, p. 1.

215

'proporções'. Aos mineiros tem cabido a árdua tarefa de 'encarnar' esse corpo jovem, o que têm logrado de modo realmente admirável.188

Em seguida, elogia um prefeito anterior (Bernado Monteiro) e o então atual, seu "velho amigo" Flávio dos Santos pelos "serviços extraordinários". Este último havia feito, em 1922, uma drástica modificação do Regulamento das Construções de 1901. Pode-se supor que Reis, ainda que não se refira especificamente ao novo Regulamento, tinha dele conhecimento - pois afirmava estar acompanhando os rumos imprimidos pela administração municipal à capital - e, pelos elogios que dedica ao prefeito e sua administração, o aprovava. Trazia estes regulamentos novos limites que possibilitavam novos padrões de edificação, bastante diversos do estabelecido pelo Regulamento anterior, possibilitando uma ocupação e uma configuração das edificações da "área urbana" acentuadamente verticalizadas. Apresentava o novo Regulamento disposições que visavam aumentar a densidade da ocupação na área central189. Em suas principais ruas e avenidas foi proibida a construção de prédios de um só pavimento190, mas a medida de maior relevância foi uma elevação enorme dos limites de altura máxima das edificações - que pelo Regulamento de 1901 era de três pavimentos. Passavam a ter as construções, urbanas ou suburbanas, a altura máxima de "2,5 a largura da rua, quando esta for menos de 12 metros" e "três vezes a largura da rua, quando esta for mais de 12 metros"191. Isto implicava que para as ruas da zona urbana, de 25 metros de largura, a altura máxima seria de 75 metros, ou seja, 25 pavimentos192; nas avenidas de 35 metros de largura, poder-se-ia ter edifícios com até 35 pavimentos, e na avenida principal, com 50 metros de largura, edifícios com até 50 pavimentos. Tratam-se de limites extraordinariamente 188

Idem, ibidem. Prefeitura de Belo Horizonte. Lei 226, de 2 out 1922, Modifica disposições do Regulamento de Construções. Minas Gerais, 2-3 out 1922, p. 2-3. 190 Idem, art. 7º. 191 Idem, art. 2º. 192 Considerando cada pavimento com 3 metros de altura, já que o novo regulamento também reduzia o limite de pé-direito de 3,5, estabelecido pelo regulamento anterior, para 3 metros. 189

216

elevados,

seja

comparados

ao

regulamento

anterior,

às

construções

empreendidas no Rio e em São Paulo na época ou mesmo às efetivamente realizadas em Belo Horizonte após a modificação. O patamar de três pavimentos já havia sido ultrapassado no Rio e em São Paulo a partir da primeira década do século, mas até a década de 20 não ultrapassava os sete pavimentos. É na década de vinte que surge em São Paulo, o Sampaio Correia com 14 andares193, e o Martinelli, que inicialmente (1925) deveria ter 14 andares, mas é ampliado até atingir 24 andares quando inaugurado em 1929. No Rio de Janeiro, o edifício A Noite, na Praça Mauá, (1928-31) também atinge os 24 pavimentos, a maior altura atingida por um edifício em concreto armado no mundo194 - ainda que alturas muito superiores já fossem atingidas com estruturas de aço, nos EUA. Contudo, uma verticalização mais generalizada, nas duas cidades, só ocorreria a partir de 1945. Se nas condições da engenharia e da indústria das construções das maiores cidades brasileiras na década de 20, os limites estabelecidos por este novo regulamento já podem ser considerados exagerados, tendo em vista que em Belo Horizonte o primeiro edifício particular com três pavimentos fora construído na década de dez e até então muito poucos atingiam este patamar, as novas disposições apresentam uma expectativa exorbitante quanto ao porte das edificações. Mesmos os edifícios construídos em Belo Horizonte, na década de 20 e na seguinte, elevavam-se a alturas muito inferiores à estes limites - que não foram atingidos ainda atualmente. Entretanto, pelo Regulamento de 1922 pode-se ver que a forma imaginada da cidade no futuro seria à das metrópoles, com seus centros apinhados de arranha-céus. É bastante significativo o fato de Aarão Reis não manifestar nenhuma reprovação à este novo regulamento, que abria possibilidades de um preenchimento do "esqueleto" por ele montado profundamente diverso do 193 194

Souza, Maria Adélia A. A identidade da metrópole. São Paulo: Hucitec/EdUSP, 1994, p. 89. Vargas, Milton. "A tecnologia na engenharia civil". In: Vargas, M. (org.) História da técnica e da tecnologia no Brasil. São Paulo: UNESP/CEETEPS, 1994, p. 227.

217

estabelecido pelo regulamento anterior. Como se vê pelo seus comentários, ao mesmo tempo que realça o rigor da ordenação por ele imprimida à cidade, a considera passível de remodelações decorrentes do progresso que tanto prezava. Suas observações - que ocorrem justamente no momento em que, algumas décadas após, será considerado um novo ciclo evolutivo do progresso da Capital - sugerem que o plano por ele concebido não visava apenas uma ordenada e bela capital, mas um grande metrópole. Afinal, como ele diz neste mesmo artigo, Não bastava ataviar carinhosamente a bela cidade, mister se impunha dotá-la de estabelecimentos dignos de seu progressivo desenvolvimento como capital do mais importante Estado brasileiro, e forçar, por meio de vias de circulação, que ela ocupasse, afinal, o papel de "centro geográfico" qualificativo com que acentuei sua proeminência no Relatório de Estudo das 5 localidades, e que serviu de pretexto para o seu triunfo de última hora na célebre disputa de 1893.195

195

"Bello Horizonte visto por quem lhe delineou o plano inicial", Diário de Minas, 21 jul 1926, p. 1.

218

4. Da capital à metrópole

Nos capítulos anteriores vimos que a Nova Capital mineira foi fundada sob dois atributos: o primeiro, relativo à sua localização, como sendo o centro futuro do Estado, conforme uma previsão do desenvolvimento das tendências e potencialidades de ocupação do território, as quais caberia a Nova Capital realizar; o segundo, relativo à sua configuração urbana, como cidade planejada segundo um esquema geométrico e hierarquizado, porém caracterizado como uma estrutura aberta ao crescimento. Quanto ao primeiro atributo, observamos que a decisão da localização da Nova Capital mineira, além de marcar a reorganização das forças políticas regionais frente ao novo regime e pautar-se pelos critérios da salubridade, levou também em conta o papel que a Nova Capital teria na reorganização do território do Estado. Sob este último aspecto, vimos que a escolha dos locais orientou-se por uma análise das condições geo-políticas e econômicas do Estado, fundada nos conceitos positivistas de estática e de dinâmica das forças sociais, e que a Nova Capital, enquanto um centro resultante das tendências futuras destas forças, cumpriria o papel de centro civilizador e promotor do progresso do Estado,

como

um

polo

de

reorganização

econômica.

Embora

sua

implementação tivesse como prioridade o papel político-administrativo e cultural da capital e não levasse em conta a instalação de estabelecimentos industriais, previa-se que a Nova Capital viesse a se tornar, a longo prazo, o centro econômico e industrial do Estado. Entendemos que a implementação das atividades industriais não foi uma prioridade inicial, pois segundo a concepção de progresso como realização de etapas gradativas e evolutivas - ou seja, dos processos simples para os complexos - a industrialização ocorreria como resultado ulterior à reorganização

219

do território do Estado a partir da agricultura e dos transportes ferroviários. A realização dos designos da capital, na visão daqueles que a conceberam, além de potencializada pela racionalidade da escolha da localidade de Belo Horizonte e pelo estabelecimento de uma cidade planejada, deveria se realizar no futuro, através da implementação gradativa de novos empreendimentos futuros, principalmente relativos ao transporte - como considera Aarão Reis nas suas observações acima mencionadas. Quanto ao plano urbanístico da capital, embora ele abrangesse uma extensa área, demarcada em zonas e setores diferenciados, definidas pelo traçado viário e pela localização das principais funções públicas e urbanas, o plano não determinava uma forma acabada de cidade, a ser implementada num determinado período. Observamos que o plano se apresentava como uma Planta Geral, ou seja, como uma estrutura cuja ocupação e construção se dariam ao longo do tempo - além de ser passível de expansão. A metáfora utilizada por Aarão Reis do plano como um "esqueleto" de "convenientes proporções", o qual deveria ser "encarnado" ao longo do tempo, explicita o caráter de seu plano como uma base racional de uma cidade a ser definida progressivamente por ações ulteriores. Portanto, a Nova Capital, embora definida em suas finalidades gerais quanto ao seu papel no território, e em sua estrutura básica quanto à sua configuração urbana, foi planejada como um dispositivo inicial e ordenador de um processo a se definir e a se realizar ao longo do tempo, em função do desenvolvimento e da complexidade das funções que a cidade deveria adquirir. Foram assim instituídas como atributos da capital, duas imagens: primeira, a cidade como portadora de uma destinação a ser atingida para além de seu estabelecimento como capital política; segunda, a construção da cidade como um processo evolutivo e em transformação, definido a partir da Planta Geral mas a ser conduzido por novas diretrizes e empreendimentos. Estas imagens são recorrentes nos discursos e nas medidas relativas à construção da cidade, 220

notadamente a partir dos anos trinta, quando se colocava a necessidade da remodelação e da ordenação do crescimento da cidade, bem como da ampliação de sua base industrial. Os anos 20 são frequentemente caracterizados como um período de consolidação da cidade enquanto capital política-administrativa do Estado e ainda enquanto um centro econômico em incipiente desenvolvimento, já nas análises sobre a cidade nos anos 30 e 40, bem como nos estudos historiográficos sobre o período1. Esta avaliação pode ser compreendida tanto sob o aspecto do papel da capital na economia do Estado, como pelo aspecto da implementação da estrutura e da ocupação urbana prevista pela Planta Geral para a fase inicial da Nova Capital. Sob o aspecto do papel da Nova Capital no Estado, embora no final da segunda década do século Belo Horizonte já fosse um centro econômico com atividade industrial expressiva, não caracterizava-se ainda como o centro da economia mineira, nem como seu maior polo industrial, que continuava sendo Juiz de Fora, sendo também marcante a dispersão da atividade industrial por vários municípios mineiros2. A partir dos anos 20, com a conclusão das ligações ferroviárias da Central do Brasil ao Rio de Janeiro e da Oeste de Minas, e com a instalação de diversas usinas siderúrgicas nos municípios próximos à capital, na região do Quadrilátero Ferrífero, a indústria de bens de consumo, bem como as atividades comerciais e bancárias de Belo horizonte se expandem3. O incentivo à industrialização já era uma preocupação do governo estadual e municipal nos anos vinte, mas foi nos anos trinta que a questão ganhou maior notoriedade, seja nos programas e medidas do governo, seja em diversas opiniões publicadas

1

2 3

Salgueiro, op. cit., 1987. Soares, Ruth Villamarin (coord.). Belo Horizonte Re-vista, 1897/1987, Belo Horizonte: IEPHA/MG, 1987. Lemos, Celina Borges. Determinações do espaço urbano: a evolução econômica, urbanística e simbólica do centro de Belo Horizonte. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 1988 (Dissertação de Mestrado em Sociologia). Singer, op. cit., p. 234-6. Idem, 235-249.

221

na imprensa sobre o papel da Capital com centro de convergência da economia estadual e sobre a necessidade de sua industrialização. Sob o aspecto da formação urbana, tem-se até final dos anos vinte a consolidação da cidade construída segundo as diretrizes e os padrões de edificação definidos a partir da implementação inicial da Nova Capital. A faixa de ocupação inicial definida pela Planta Geral já apresentava-se edificada, podendo-se neste sentido considerar-se que estava consolidado o cenário urbano da Nova Capital4. Restava ainda uma parte da "área urbana" a ser ocupada, enquanto continuava a ocupação das zonas suburbanas e periféria, acompanhada da expansão da estrutura viária e de transportes. Nestas condições, ao longo dos anos trinta, a conclusão da "área urbana", a remodelação de algumas de seus partes e a expansão viária passaram a ser objeto dos programas de obras públicas do município. Além disto, neste período a ocupação periférica se intensificava, novos modos de edificação ocorriam na área urbana e os regulamentos de construções foram modificados por várias vezes. Em síntese, nos anos trinta, tendo se cumprido a etapa inicial de implementação da capital, colocavam-se - como indicam as reportagens e discussões sobre a cidade veiculadas pela imprensa da época - as questões relativas a sua transformação em uma "grande cidade", seja quanto ao seu papel econômico seja quanto à condução de seus processos de crescimento, isto é, o controle da ocupação e da edificação do espaço urbano e a implantação de novas estruturas viárias .

4

Vale lembrar que apenas no sentido de implementação do sistema viário e dos edifícios definidos pela Planta Geral - e ainda assim de modo parcial e com modificações - bem como de sua ocupação pelas edificações privadas, pode-se falar em uma consolidação do plano. Além disto, como vimos, este plano não definia um forma acabada a ser consolida, mas uma estrutura a ser preenchida e expandida segundo o desenvolvimento futuro da cidade.

222

4.1. A "jovem metrópole" dos anos 30: Para uma grande cidade

No começo dos anos 30 o jornal Correio Mineiro promoveu uma série de entrevistas com engenheiros e arquitetos da cidade, em torno da seguinte questão: "Que falta a Belo Horizonte para ser uma grande cidade?". A pergunta revela, por um lado que, sob o ponto de vista do jornal, a cidade não era ainda considerada como tal e por outro, uma grande expectativa em relação a que a mesma atingisse esta condição. As respostas à questão giraram em torno de dois temas: primeiro, a necessidade da industrialização e do crescimento populacional para que a capital tornasse uma "grande cidade" e cumprisse seu papel civilizador; segundo, os problemas da ocupação do espaço da cidade e controle do seu crescimento - sendo afirmando sempre o desejo e a certeza de que Belo Horizonte seria, em breve, uma grande cidade. Estes temas se repetem em muitas outras publicações da imprensa, seja em comentários sobre a cidade editados pelos próprios jornais ou em entrevistas dadas por profissionais ligados às questões urbanísticas, tanto da Capital como de visitantes. Nota-se a busca de um tratamento técnico, ou seja, sob o ponto de vista do urbanismo, recorrendo-se a engenheiros e arquitetos no sentido de oferecer diretrizes ao crescimento da cidade e soluções aos seus problemas urbanos. A preocupação com o papel da capital e com o controle de seu crescimento urbano ocorrem num momento em que se considerava necessário ultrapassar-se a função estritamente política da capital, no sentido de torná-la a metrópole do estado, o que impunha uma reorientação de suas funções econômicas, bem como o controle da ocupação urbana. Associadas a estas questões, a implementação de novas estruturas viárias na cidade e a modificação dos tipos de edifícios na área central, através da construção de edifícios maiores substituindo as primeiras residências ou ocupando lotes ainda vazios, ocorrentes entre os meados da década de trinta e os meados da década 223

de quarenta, caracterizavam o que se considerava na época uma remodelação da capital. Este período é considerado como um período de transformação da fisionomia e do papel da capital, como vimos nas publicações por ocasião do Cinquentenário, e mesmo pela historiografia da cidade. Trataremos neste capítulo das transformações da capital neste período, relativas a estes quatro temas - a industrialização da capital, a expansão do espaço urbano, a remodelação das estruturas viárias e os novos modos de edificação

-,

buscando

compreender

como

estas

transformações

se

relacionavam com os desígnos e os planos estabelecidos na construção inicial da Nova Capital mineira. O objetivo que orienta esta abordagem é discutir, a partir das análises anteriores, se a dita remodelação da cidade neste período pode ser considerada uma ruptura em relação ao Plano da Nova Capital, ou se ela, embora alterando drasticamente a forma e os papéis da cidade, pode ser considerado como intrínseca à lógica deste plano.

A INDUSTRIALIZAÇÃO E O PAPEL CIVILIZADOR DA CAPITAL A necessidade da capital se industrializar era um tema freqüente nas avaliações sobre Belo Horizonte nos anos 30, tanto na imprensa como no discurso oficial. Embora fosse recorrente a afirmativa que as funções da capital deveriam ir além das político-administrativas, que se considerava então predominantes, não se verifica, nas avaliações acima mencionadas, que a industrialização implicaria em ruptura ou conflito com o papel original da capital. Pelo contrário, admitia-se, em geral, que a industrialização seria uma condição necessária para que a cidade cumprisse seu papel de centro civilizador do Estado, enquanto um polo de concentração de suas atividades econômicas. A industrialização era considerada assim como um fator imprescindível para que a capital se tornasse "uma grande cidade". Antes de tratarmos desta questão nos

224

anos 30, faremos uma breve análise das características da economia de Belo Horizonte nos anos 20, e de sua situação no estado de Minas Gerais. Durante anos da Primeira Guerra, Belo Horizonte passou por um período considerado como de crise, principalmente tomando-se como índice a drástica diminuição do número de edificações - dependente, como outros setores, de produtos importados5. Com o final da guerra e após a conclusão das ligações ferroviárias da Oeste de Minas e da Central do Brasil, em 1920 - cujas obras haviam sido paralisadas durante a Guerra - a indústria belo-horizontina se expandiu. Mantendo uma tendência já verificada ao longo da década de 1910, o setor mais relevante era o de bens de consumo, principalmente a indústria têxtil e de calçados, bem como os ramos das madereiras e cerâmicas, mas é indubitavelmente a construção civil, composta de modo geral por pequenos estabelecimentos, que ocupava a maior parte da mão de obra empregada no setor secundário, em número superior à soma de todos os outros ramos industriais. Os ramos da indústria de base, como a siderurgia e a metalurgia, eram praticamente inexistentes na capital, pois estas indústrias foram instaladas dispersas em vários municípios da região central do Estado, mas não propriamente em Belo Horizonte. Já desde o final da década de 1900 crescia o interesse na exploração de ferro e na implantação de siderurgias em Minas Gerais, mas foi apenas após a Primeira Guerra que algumas iniciativas foram bem sucedidas, com a instalação de diversas usinas de ferro e aço na região central do estado, ao longo da década de 19206. Embora o balanço da produção de ferro nos anos vinte não

5 6

PLAMBEL, op. cit., 1979, p. 121-125 Em 1921 a Companhia Siderúrgica Mineira foi incorporada por um grupo luxemburguês, dando origem à Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, cuja usina em Sabará foi ampliada ao longa da década de 1920, liderando a produção nacional de aço; em 1925 a Companhia Brasileira de Usinas Metalúrgicas (CBUM) passou a operar o alto forno Morro Grande (no município de Santa Barbara); na década de 1920 destaca-se também a Usina Queiroz Júnior, que operava os alto-fornos de Esperança (Itabira) e de Miguel Burnier (no município homônimo) desde o final do século passado, sendo ainda construídas, por outras empresas, outras usinas de menor porte para produção de ferro-gusa, em Rio Acima (1921), em Belo Horizonte, em Caeté e em Gagé. Suzigan, Wilson. Indústria Brasileira. São Paulo: Brasilense,

225

indica de imediato uma significativa expansão da indústria siderúrgica mineira, a instalação destas usinas promoveu o início do desenvolvimento da siderurgia na zona

central

de

Minas,

representando,

para

Singer,

"um

verdadeiro

renascimento econômico desta área"7. Ainda que o crescimento industrial dos anos vinte a meados dos 30 possa ser tributado à instalação da siderurgia nos municípios vizinhos, não foi esta que constituiu a base da industrialização na capital. É significativo deste fato que, nas referências feitas nas décadas de 30 e 40 ao "novo e vigoroso surto evolutivo" ou ao "surto de progresso" da capital após os anos 20, os parâmetros são o melhor desempenho comercial da capital advindo das ligações ferroviárias, bem como o crescimento do número de edificações e a valorização das propriedades imobiliárias8. Embora não se constituindo num centro industrial baseado na siderurgia, com a retomada do crescimento nos anos 20, seja por influência da implantação das siderurgias nos municípios vizinhos, seja pela implantação da rede ferroviária e rodoviária, Belo Horizonte torna-se um centro comercial, de serviços e de indústrias de bens de consumo, bem como um polo de atração da tendência de interiorização da indústria mineira, que gradativamente desloca-se das regiões próximas ao Rio e São Paulo para os municípios da região central. Vale observar que apesar desta tendência à concentração industrial em torno de Belo Horizonte, ao longo das décadas de 20 a 40, a capital não se torna um centro de atração industrial de modo a absorver maciçamente a industrialização mineira: ainda em 1946, apesar de ser o município mais industrializado do estado, detinha apenas 14% do valor da produção industrial mineira, seguindose o município de Rio Piracicaba (Monlevade), com 10% e Juiz de Fora, com 8%, e outros sete municípios com 2% a 1% cada.9

7 8 9

1986, p. 256-278. Cf. Diniz, Clécio Campolina. Estado e capital estrangeiro na industrialização mineira. Belo Horizonte: UFMG/PROED, 1981, p. 27-31. Singer, op. cit., 1977. Barreto, 1946. Barreto, 1950, p. 274. Barreto, Anuário, 1953, p.184 Singer, op. cit., p. 248-254.

226

Se a partir dos anos 20, Belo Horizonte consolidava-se como centro comercial e de serviços, seu crescimento industrial apresentou-se ao longo das décadas de 20 a 40 como um processo contínuo e relativamente constante, sem demarcações acentuadas. Como veremos, a afirmação que Belo Horizonte estava "destinada a ser um centro de indústria extrativa mineral e manufatureira", feita em 1918 pelo então prefeito10, era ainda um lugar comum ao longo dos anos 30 e nos 40. Respondendo a questão proposta pelo Correio Mineiro sobre o que faltava a Belo Horizonte para ser uma grande cidade, o engenheiro civil Alvimar Carneiro Rezende, o primeiro a ser entrevistado, ressaltou a necessidade de "tornar Belo Horizonte um centro de população realmente ativa, progressista"11. O engenheiro, que mais tarde seria presidente da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais, propunha então diversas medidas tornar Belo Horizonte um centro comercial e industrial, que concentrasse as atividades econômicas do estado: "meios de transporte rápido, seguro e econômico entre Belo Horizonte e os principais centros do país"; "construções ferroviárias e rodoviárias em direção aos Estados vizinhos com convergência na Capital do Estado"; "adoção na rede de viação férrea de menores preços para artigos de consumo público"; "barateamento da energia elétrica para fins industriais; "colonização racional das terras próximas à nossa cidade"; "auxílios indiretos para o estabelecimento de indústrias que se utilizarem preferencialmente da matéria prima regional"; a "cessão do imposto territorial que o Estado arrecada em Belo Horizonte à respectiva prefeitura".

Para o engenheiro Benedicio Quintino dos Santos, "Belo Horizonte está fadada a um grande futuro e todos os problemas que determinarão o seu engrandecimento estão equacionados"12. Nas considerações sobre aspectos da cidade que Santos julgava merecer importância, pode-se reconhecer os papéis 10

Afonso Vaz de Melo, Relatório apresentado ao Conselho Deliberativo da Capital pelo Prefeito [...], em setembro de 1918, apud PLAMBEL, op. cit., 1979, p. 122. 11 Correio Mineiro, 18 jun 1933, 1a. seção, p. 1. 12 Correio Mineiro, 20 jun 1933, 1a. seção, p. 1.

227

que o mesmo atribuía à capital. Santos ressaltou a importância do "desenvolvimento da arte arquitetônica" para a "fisionomia da nossa jovem cidade", louvando a função civilizadora da recém inaugurada Escola de Arquitetura. Tendo em vista que "dadas as condições climáticas da cidade, tornou-se ela um grande centro de estudos da cura da tuberculose", propõe a construção de hospitais, elogiando os esforços já realizados com este fim. Santos considerava finalmente que "a nossa capital está fadada a ser um grande cérebro que, cientificamente, orientará a solução dos grandes problemas do Estado". Mais especificamente, "dada a sua grande função que é orientar a indústria extrativa de Minas", preconiza a criação de instituições como o Serviço Geológico, voltado para a pesquisa no setor mineral, a "principal riqueza do Estado". Ainda que declarasse concordar com a opinião antes exposta por seu colega sobre "os graves problemas gerais" da cidade, Santos acentua a missão civilizadora da capital - papel que já colocado desde a criação da mesma - como centro diretivo e provedor de serviços, principalmente aqueles ligados à condução "científica" da atividade mineradora. Pode-se concluir de suas opiniões que para Santos, ao contrário de Rezende, caberia à capital mais a função de "cérebro" do estado, do que propriamente de sediar as atividades industriais. O arquiteto Luiz Signorelli afirmava que Belo Horizonte já era uma grande cidade, porém com uma ressalva: "falta-lhe é população que esteja em conformidade com o seu tamanho"13. Esta avaliação, bastante freqüente na época, traz implícita a imagem da cidade vazia, sem movimento e intensidade de fluxos e atividades que caracterizariam uma condição metropolitana que, na visão dos que ansiavam pelo progresso da capital, faltava a Belo Horizonte. Esta perspectiva é claramente enunciada pelo arquiteto Ângelo Murgel: 13

Correio Mineiro, 23 de jun 1933, p. 1 e 7. Além disto aponta outros pontos que deveriam receber maiores investimentos: a construção de novas estradas de acesso à capital, a limpeza pública, os problemas de tráfego, devido não à estrutura viária propriamente dita, mas devido à falta da "noção de ordem" por parte dos "chauffeurs" e finalmente "as obra de arte". A propósito destas últimas, o arquiteto deprecia os "bustinhos" e "bibelots" das praças e reclama a construção do "Palácio da Prefeitura", "um edifício digno para receber os hóspedes que nos visitam" - do qual, alguns anos após fará este arquiteto o projeto.

228

o que falta a Belo Horizonte para ser uma grande cidade é população. Havendo gente, uma grande densidade de população reunida em cidade aparecem fatalmente, pela força da necessidade, todos os outros elementos próprios às grandes aglomerações humanas14.

Na opinião de Murgel , para que a cidade possa "acolher novos forasteiros, será necessário poder dar-lhes trabalho e vida confortável". Quanto ao fomento ao trabalho, ele julgava necessário "que se desenvolva antes a iniciativa particular e que a principal atividade de nossos homens passe da burocracia para os empreendimentos privados [...] do comércio e da indústria". Neste sentido, "a posição de Belo Horizonte, como ponto de entroncamento ferroviário e como centro distribuidor eqüidistante das diversas regiões do Estado é altamente favorável". Observamos que este último comentário evoca a qualidade de centralidade de Belo Horizonte, tema presente nas considerações sobre a mesma, desde a escolha do local da nova capital em 1891, e ainda o papel de centro econômico que, desde os seus primeiros anos, se esperava a capital que assumiria, progressivamente... Para o arquiteto, quanto a "vida confortável", as suas condições ainda estavam em "grande atraso para o tamanho atual de Belo Horizonte", principalmente em relação à "viação urbana", ao "conforto" e ao "acabamento" das edificações e à "vida social" - a qual o arquiteto tecia depreciativos comentários, caracterizando-a como "mínima" e provinciana. Contudo, na sua opinião um novo horizonte se descortinava: Breve veremos tudo mudado: Estas ruas largas e retas cheias de veículos rápidos, de povo, dessa massa anônima das metrópoles, de grandes magazins abrindo suas vitrines vistosas, de luz intensa e faiscante. Os prédios altos afogarão com suas linhas retas e suas massas impressionantes a paisagem bucólica e "vergel" de hoje. E os nossos hábitos também mudarão, seremos mais alegres, iremos mais ao cinema, ao teatro, às casas de chá, aos "footings", aos clubes, faremos "sport" e seremos "standardisados" como todos os habitantes das grandes cidades. Tempo virá...

14

Correio Mineiro, 22 jun 1933, p. 1 e 8.

229

É evidente em suas expectativas o fascínio pelas imagens da vida das metrópoles, bem como fica implícito o desprezo pela paisagem e hábitos da cidade então. O futuro da cidade vislumbrado pelo arquiteto, bem como as medidas que julgava necessária para que a capital atraísse população, colocava uma questão bastante recorrente então: a necessidade da superação da condição

de

capital voltada predominantemente para funções político-

administrativas no sentido da industrialização, bem como de seu aspecto provinciano, para a condição de metrópole. Quanto a este último aspecto, além da intensidade dos movimentos e a repetição dos elementos e comportamentos urbanos, observamos o papel das massas "impressionantes" dos arranha-céus na configuração da imagem metropolitana - assunto que trataremos mais adiante. Sob a mesma perspectiva dos técnicos acima mencionados, o engenheiro A. A. Jaqueira opinava na Revista Mineira de Engenharia. Mencionando a baixa densidade de sua população, não condizente com a condição de "capital do mais populoso estado brasileiro" e os "problemas urbanos" acarretados por este fato, o engenheiro considerava que não bastava os "belos horizontes aqui descortinados" e o "suave clima destes altiplanos": como um lírio num deserto ela apareceu neste agreste amplo sem condições de prosperidade a não ser a condição política [...] o progresso belohorizontino tem sido bem duvidoso, principalmente quando se constata a carência de capitais e iniciativas produtoras.

As medidas defendidas por Jaqueira para reverter tal quadro eram semelhantes às propostas pelo engenheiro Rezende: o aumento e concentração da fortuna privada, o fomento das iniciativas industriais com as devidas franquias fiscais e bancárias; atração de capitais estrangeiros ou coestaduanos para a organização de grandes indústrias aqui e em torno, e como recurso mais indispensável ainda, prover as mais importantes

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ligações ferroviárias, rodoviárias, fluviais e aéreas de que Belo Horizonte necessita15.

A necessidade da industrialização como condição para que Belo Horizonte tornasse uma "grande cidade" e cumprisse o papel civilizador - que, como vimos lhe havia sido destinado na sua fundação - era tema freqüente em diversos artigos da impressa. A questão ganhava grande destaque na medida em que tornou-se um dos objetivos do governo federal, após a Revolução de 1930. No ano de 1935, quando assumiu a prefeitura Otacílio Negrão de Lima que manifestava a intenção de apoio à industrialização - as expectativas quanto ao assunto cresceram. Além disto, neste ano foi realizado em Belo Horizonte o 4º Congresso Comercial, Industrial e Agrícola do Estado de Minas, que manifestou o propósito de transformar a capital em "centro polarizador da economia mineira"16. No jornal Folha de Minas eram publicados vários artigos que compõem uma verdadeira campanha pela industrialização, como o seguinte: precisamos de um sistema de coordenação, de um centro irradiador da civilização mineira, de onde partam as reservas necessárias para o desenvolvimento da vida estadual, que não se pode perder na inconstância decorrente da falta de um orgão coletor e ao mesmo tempo propulsor das energias derramadas pelos rincões mineiras. A capital deve desempenhar esta função, transformando-se em uma grande cidade17.

É notável a persistência do tema da capital como "centro irradiador da civilização mineira", que já aparecera num editorial por ocasião da inauguração da Nova Capital, em 1897. No dia do aniversário da cidade, em 1935, enquanto um artigo louvava a "admirável metrópole" construída "à boca do sertão", "marco mais avançado da civilização mineira", lembrando o "mineiro de que a sua Capital é de todas a mais bela"18, outro artigo afirmava que 15

A. A. Jaqueira, "Bello Horizonte e as vias de comunicação", Revista Mineira de Engenharia, n. 2-3, fev-mar 1935, p. 97. 16 PLAMBEL, op. cit., 1979, p. 193. 17 "Uma grande cidade", Folha de Minas, 17 mai 1935, p. 3. 18 "Belo Horizonte", Folha de Minas, 12 dez 1935, p. 3.

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Belo Horizonte é já um centro de irradiação cultural. Mas é necessário que esse serviço civilizador se complete pelo seu ângulo econômico, pois o comércio e a indústria exercem também e preponderantemente uma função civilizadora19.

Indicando diversas medidas de apoio do Estado à industrialização - tais como "energia barata, favores oficiais, a localização dos estabelecimentos industriais, bem como dos bairros operários", construção de estrada, "aproveitamento racional das terras das zonas pouco densamente povoadas que constituem o hinterland" de Belo Horizonte - o artigo concluía com "uma esperança e mesmo uma certeza de que se vai iniciar uma nova fase na orientação governamental". De fato algumas medidas são tomadas pelo governo neste sentido no ano seguinte. A Prefeitura concedeu "às indústrias que se estabelecessem no Município da Capital e que não tenha similares, isenção de impostos, subvenções pecuniárias [...] arrendamento ou aforamento de lotes e outros favores que os estimulem direta ou indiretamente"20, enquanto Governo do Estado criou "a zona industrial de Belo Horizonte, que ficou situada ao longo das linhas da estrada de ferro Central do Brasil e Oeste de Minas e do Ribeirão Arrudas"21. Ainda que algumas indústrias tenham sido instaladas nesta região, esta "zona industrial" não contou com suficiente fornecimento de energia elétrica pela companhia concessionária destes serviços em Belo Horizonte e alguns anos depois, em 1940, uma outra zona, a "Cidade Industrial" começaria a ser implantada em outro local, no município de Contagem, próximo a Belo Horizonte22. As medidas tomadas por Negrão de Lima foram louvadas pela Folha de Minas, sendo ressaltado que, para a realização de sua função civilizadora, a cidade deveria "caracterizar-se industrialmente"23. Neste sentido, era comum a 19

"Belo Horizonte, cidade industrial", Folha de Minas, 12 dez 1935, p. 3. Decreto n. 104, de 25 de julho de 1936, apud PLAMBEL, op. cit., 1979, p. 192. 21 Lei n. 98, de 10 de outubro de 1936, apud PLAMBEL, op. cit., 1979, p. 191. 22 Diniz, Clécio Campolina. Estado e capital estrangeiro na industrialização mineira. Belo Horizonte: UFMG/PROED, 1981, p. 38 e 53. 23 "A industrialização de Belo Horizonte", Folha de Minas, 26 nov 1936, p. 3. 20

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associação do desenvolvimento industrial da Capital ao progresso do Estado, posto que daquela deveria emanar o impulso a este último. Justificava-se e reivindicava-se assim um maior investimento governamental na capital, sob o argumento dos benefícios que este traria a todo o estado. A defesa da industrialização da capital ia além dos argumentos de ordem estritamente econômica e atingia o domínio das representações simbólicas. A cidade era, neste discurso apologético, considerada como uma obra de toda a população do estado, como representação do caráter de um povo: "Síntese e espelho da civilização mineira, Belo Horizonte, no ritmo acelerado de seu progresso insuperável, bem representa ainda o dinamismo empreendedor da gente montanhesa"24. Anunciando em destaque que "Belo Horizonte será uma cidade industrial", num caderno especial alusivo ao aniversário da cidade em 1936, a Folha de Minas considerava que o "início da construção do parque industrial de Belo Horizonte" completa o "ciclo" de realizações do prefeito Negrão de Lima: Este ciclo fechará o elo da cidade ideal de progresso, tanto no terreno da cultura como no da produção. Estudantes e operários. Um misto de Manchester com Sorbonne. Ao lado da Universidade e dos educandários de ensino secundário e profissional, quer-se o desenvolvimento das indústrias. Nessas duas realizações, está a síntese da cidade moderna, da cidade ideal como Belo Horizonte25.

Além do cunho claramente propagandístico da ação do prefeito assumido pelo jornal, cabe notar a recorrência à uma imagem da cidade que remontava à própria fundação da cidade, como foi expresso num artigo publicado em 1897 que preconizava a necessidade da capital tornar-se tanto o "cérebro" como o "coração" do estado, irradiando os recursos intelectuais e materiais para a construção da civilização mineira26. A "cidade culta e operosa" de 1936, que seria, ainda segundo o mesmo artigo, "em breve, uma imensa metrópole", era

24

"A quinzena da cidade", Estado de Minas, 17 out 1937. "Bello Horizonte será uma cidade industrial", Folha de Minas, 25 dez 1936, 4ª seção, p. 1-12. 26 "O Triunfo", A Capital, 21 dez 1897, apud Barreto, op. cit., 1995, v. 2, p. 778-780. 25

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representada como um "elo" de uma cadeia de progresso que remontava às suas próprias origens. A industrialização de Belo Horizonte - bem como a expansão da cidade, a "remodelação" que buscava implementar então o prefeito e o aparecimento dos arranha-céus - aparecia como um desdobramento do papel civilizador da capital, agora em um novo ciclo, representação esta que compartilhava também a mesma visão de um progresso evolutivo que orientara a fundação da Nova Capital mineira. Trataremos a seguir dos principais aspectos relativos às transformações da configuração da cidade nos anos trinta, ou seja, o crescimento do espaço urbano, a remodelação das estruturas viárias, os novos tipos de edificação e a modificação dos regulamentos das construções.

A CIDADE SOB O PONTO DE VISTA DO URBANISMO A ocupação do espaço urbano e a necessidade do controle da expansão das áreas periféricas e do incentivo a uma ocupação mais densa na área central era um tema freqüente nas análises sobre a cidade veiculadas pela imprensa nos anos 30. Na série de entrevistas promovidas pelo jornal Correio Mineiro no começo da década, mencionadas acima, este tema foi tratado por alguns entrevistados. Para o engenheiro Resende, um dos problemas da cidade era o modo de ocupação do espaço da cidade, marcado por uma baixa densidade de edificações, bem como por uma grande extensão das áreas periféricas. Propunha o engenheiro uma "legislação especial para impedir o crescimento da cidade com os erros cometidos, tornando realidade a exigência de edificação de inúmeros terrenos vazios no centro da Capital, com conseqüente redução de despesas de certa ordem de serviços públicos". Segundo o arquiteto Signorelli, "a criação de dezenas de 'vilas' foi um inconveniente para a nossa capital", o que resultava "na zona urbana centenas e centenas de terrenos vagos, devido à concorrência que os lotes das vilas lhe movem quanto ao preço". A baixa 234

densidade de ocupação de uma área extensa acarretava assim um demanda desproporcional de serviços urbanos em relação à arrecadação. Como solução o arquiteto preconizava a "necessidade de concentração e não de expansão": "precisamos cercear-lhe o crescimento [da extensão da cidade] para não atrofiala". Estas avaliações - que reafirmavam o problema da "enorme desproporção entre a extensão, a densidade da população e a capacidade tributária" da cidade apontado por um relatório da Prefeitura em 193127 - colocavam em questão um processo em parte resultante das diretrizes da Planta Geral, que buscavam evitar uma ocupação densa da área urbana, e mantido até então. A crítica à manutenção deste processo tinha como argumento o ônus que o mesmo causava à prefeitura, mas pode-se ver na defesa de uma ocupação mais densa da área central o interesse em promover uma maior valorização dos lotes. A ocupação suburbana continuou ao longo dos anos 30, enquanto ocorria também a implementação das áreas urbanas reservadas e uma ocupação mais densa da área central, através da construção de novos edifícios mais verticalizados. Estes processos ocorriam conjuntamente, resultando numa contínua transformação da forma urbana. Consideramos que estes processos, embora modificassem a configuração definida desde a construção inicial da cidade, não podem ser compreendidos como uma ruptura das diretrizes estabelecidas com a Planta Geral da Nova Capital, que previam uma ocupação e transformação gradativa do espaço urbano. Vimos que pelas determinações anexas à Planta Geral, apenas uma parte - aproximadamente a metade - da "área urbana" deveria ter uma ocupação imediata, ficando a restante destinada a uma ocupação futura, cujo prazo não ficara determinado. Já na década de 1900, uma das seções desta área de reserva - a 8a. seção (Barro Preto) - foi considerada "suburbana" - para efeitos das exigências legais quanto às edificações - e destinada a estabelecimentos 27

PLAMBEL, op. cit., 1979, p. 186.

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industriais e à habitação de operários28. Na década de 1920 teve início providências para a urbanização de outra parte da "área urbana" reservada, ou seja, a X seção, vizinha da Praça da Liberdade, que deu origem ao bairro de Lourdes29. Contudo foi apenas no final desta década que se deu a remoção dos chamados cafuas - habitações irregulares ou mesmo construídas sob concessões provisórias - assentados nesta área30 e na década de trinta que começou a formação do bairro propriamente dito, ou seja, de acordo com o traçado definido pela Planta Geral. A partir de meados da década de 1930 o bairro de Lourdes configurou-se como um bairro de requintadas residências da alta burguesia local, principalmente pela sua proximidade à Praça da Liberdade31. A urbanização do bairro de Lourdes nos anos 30 - empreendida na medida em que a ocupação do centro atingia maior densidade - é um bom exemplo do processo de implementação gradativa da "área urbana" definida pela Planta Geral e da condução da ocupação urbana e do mercado imobiliário pelo poder público. Como vimos, foi definida pelas diretrizes desta Planta a execução inicial de apenas uma parte da chamada "área urbana", ficando as demais reservadas para ocupação futura - como a área onde veio a ser o bairro de Lourdes. Enquanto esta área ficou reservada para uma definitiva ocupação posterior, garantia-se a ocupação e a valorização da área central; quando os lotes desta última já estavam na maioria construídos, a urbanização do Lourdes, nos anos 30, oferecia uma área residencial destinada às classes altas, para qual pudessem se transferir de suas residências no centro - muitas delas demolidas 28

Pena, op. cit., p. 69 e p. 111. Cf. PLAMBEL, op. cit., 1979, p. 65 Pena, op. cit., p. 213. 30 Nesta área, o local denominado Barroca, nas proximidades do Córrego do Leitão, foi ocupado por habitações provisórias e precárias, denominadas cafuas. Esta ocupação era feita, na década de dez, com a autorização da prefeitura, que a partir de 1913 passou a proibi-la, embora a ocupação desta área prosseguisse. Em 1929 foi processado a remoção dos habitantes que ocupavam esta área [Pena, op. cit., p. 105, 165-6 e 292]. Foram então oferecidos a estes habitantes a aquisição por aforamento a longo prazo na Vila Concórdia, do outro lado da cidade, na região Norte, próximo ao bairro da Lagoinha, então já consolidado como um bairro operário [PLAMBEL, op. cit., 1979, p. 294]. 31 "Belo Horizonte de 1933- Belo Horizonte de 1943", Folha de Minas, 12 dez 1943, p. 1. 29

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para dar lugar à edificação de edifícios verticalizados, seja de escritórios ou de apartamentos. Na década de vinte, prosseguia também a ocupação das áreas suburbanas, que atingiam e se prolongavam pelas áreas periféricas da capital, seguindo um movimento de ocupação que se iniciara desde o início da construção. De 1924 a 1930 foram aprovados 53 bairros e vilas, resultando, em algumas situações, em vazios intermediários entre a região central e estes bairros e vilas periféricos32. Os anos durante a Primeira Guerra apresentaram uma acentuada diminuição do número de construções, tanto do setor público como do privado: em 1916, 207 construções foram registradas na Prefeitura, em 1917, 102 e em 1918, 25, sendo que já em 1919 notava-se uma certa recuperação33. Daí em diante o número de construções eleva-se bastante: entre meados de 1923 e 1924 o número é de 321 prédios e no período seguinte (de setembro de 1924 a agosto de 1925) inicia-se a construção de 535 prédios34. Em 1931 são registrados na Prefeitura 1157 novas construções, sendo 10% na "Zona Urbana", 44% na "Zona Suburbana" e 46% nos "bairros, vilas e ex-colônias" estabelecidos além desta35. Praticamente todas construções eram de edifícios de um a dois pavimentos sendo edifícios com três pavimentos - como o prédio da Casa Bleriot, inaugurada em 191036 - notáveis exceções. Esta tendência permanece ao longo da década de 20 e até meados da década de 30, quando surgem os edifícios com mais de três pavimentos, iniciando-se, de modo gradativo, o chamado "ciclo do arranha-céus".

32

PLAMBEL, op. cit., 1979, p. 164. PLAMBEL, op. cit., 1979, p. 123-4 e p. 162. 34 Cf. Minas Gerais em 1925, BH, Imprensa Oficial, 1925, p. 1112. 35 Segundo dados da Diretoria Geral de Obras. Relatório apresentado ao prefeito em 1931, apud PLAMBEL, op. cit., 1979, p. 241. Conforme este último estudo, o número das construções nas áreas periféricas provavelmente seja maior, levando-se em conta que nestas muitas não era registradas. 36 Situado na rua Rio de Janeiro, entre Tupinambás e Caetés. Cf. Lemos, op. cit., p. 125. 33

237

Já desde o início dos anos 30, a baixa densidade de ocupação da cidade, e principalmente da região suburbana, preocupava a administração municipal devido à desproporção entre a demanda de serviços acarretada pela extensão da superfície urbana e a capacidade tributária da mesma37. Contudo, há que se observar que esta situação devia-se não só a uma orientação já presente nas diretrizes de ocupação estabelecidas pela Planta Geral de 1895, mas também à tolerância da prefeitura em relação a loteamentos suburbanos afastados e desarticulados da rede viária e com precárias condições de urbanização. Devese notar que, se por um lado, já desde 1922 a legislação urbanística criava condições para a ocupação verticalizada no centro, a prefeitura conservava áreas de reserva dentro da "área urbana", que lentamente foram sendo urbanizadas entre os anos 30 e 40, quando se iniciou a ocupação do centro pelos chamados "arranha-céus". As análises da capital sob o ponto de vista urbanístico foram tema corrente na imprensa mineira nos anos 30, sendo freqüente artigos e entrevistas de técnicos sobre o assunto, que recomendavam a necessidade de um planejamento segundo preceitos científicos do Urbanismo. As principais questões que se colocavam eram o controle da expansão urbana e a remodelação da estrutura viária de Belo Horizonte, em função dos problemas de transporte e tráfego. Este interesse por um planejamento racional da cidade, segundo uma perspectiva científica fornecida pelo Urbanismo, não era específica de Belo Horizonte, já que as iniciativas de remodelação das grandes cidades brasileiras foram freqüentes nos anos 30. O período marca também, num campo mais amplo, a adoção do planejamento social e econômico pelo governo federal que assume após Revolução de 1930, com a instituição de vários órgãos e planos setoriais38.

37

Relatório da Diretoria Geral de Obras apresentado ao Prefeito Luiz Pena, relativo ao exercício de 1931, Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1931, p. 2, apud PLAMBEL, op. cit., 1979, p. 186. 38 Ianni, Octavio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil (1930-1970). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971, p. 13-57.

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Aproveitando a discussão de uma hipótese sobre "a mudança da capital da República para Belo Horizonte", o engenheiro Lincoln Continentino, especializado em saneamento e urbanismo, apresentava em 1934 uma análise das "condições urbanísticas da metrópole mineira", sugerindo algumas medidas a serem implementadas. A principal delas era a criação de uma Comissão do Plano da Cidade, "seguindo o exemplo do Rio, S. Paulo e Recife", como argumentava o engenheiro39. Dentre os "inconvenientes resultantes da falta de um plano de urbanismo" em Belo Horizonte, o engenheiro destacava "a criação de inúmeras vilas nas zonas suburbanas e rural", sem "plantas adequadas", bem como providas precariamente dos serviços urbanos básicos (água, esgoto, etc), os quais a prefeitura não tinha condição de atender, "a não ser em detrimento da zona urbana". Para o mesmo, a situação passou a constituir uma "calamidade pública", a ponto do presidente do Estado ter solicitado há pouco tempo ao prefeito anterior - relata Continentino - a suspensão da aprovação de novos projetos de vilas40. Como vimos, este tema era um das grandes preocupações dos arquitetos e engenheiros que opinavam nos jornais sobre os problemas urbanos de Belo Horizonte. Sugere também o urbanista a "construção de cidades jardins nas circunvizinhanças da cidade", bem como a "organização eficiente dos serviços de tráfego", e ainda outras medidas relativas a equipamentos e serviços urbanos. A hipótese da mudança não teve maiores repercussões, mas as questões e proposições suscitadas por Continentino, bem como por outros arquitetos e engenheiros de Belo Horizonte, foram parcialmente acolhidas pela Prefeitura. Em agosto de 1934, o prefeito José Soares de Mattos criou a Comissão Technica Consultiva da Cidade, providência defendida por Continentino e outros 39

"A mudança da capital da República para Bello Horizonte. Interessantes considerações de ordem technica, expostas pelo dr. Lincoln Continentino, em torno das condições urbanísticas da metrópole mineira", Estado de Minas, 20 fev 1934, p. 5. 40 Logo após, o prefeito Negrão de Lima baixa o decreto no. 54, de 4 de novembro de 1935, "criando onus técnicos e financeiros para as novas subdivisões", o que, segundo PLAMBEL [op. cit., 1979, p. 245] apenas acarretou em lançamentos de loteamentos no mercado sem aprovação pela Prefeitura.

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engenheiros e arquitetos, alguns dos quais vieram compor esta Comissão, convocada pelo prefeito para apreciação de diversos problemas e decisões de política urbana41. A comissão não tinha a atribuição de elaborar um plano mas apenas funcionar como orgão consultivo do Prefeito. A iniciativa foi enfaticamente apoiada pelo jornal Estado de Minas, que levantou uma discussão sobre o modo e os problemas do crescimento urbano de Belo Horizonte, procurando dois "técnicos sobre a matéria" - os quais foram logo após indicados para a referida Comissão. Ambos os arquitetos consideravam como objetivo principal da Comissão a elaboração de um "plano de desenvolvimento da cidade". Na apresentação da entrevista com os dois arquitetos, o jornal destacava a expansão suburbana o como principal problema de Belo Horizonte: O desenvolvimento de Belo Horizonte, no sentido dos subúrbios, criou, entre outros problemas de difícil solução, o da comunicação dos prolongamentos urbanos com o centro da cidade e o do calçamento e abastecimento d'água dos bairros mais afastados. [...] a Capital não se tornou densa, de início, como acontece às grandes cidades. Houve um certo espírito de latifúndio, da parte dos primeiros proprietários, que conservam fechados extensos lotes. O preço elevado destes determinou a expansão urbana pelas extremidades e criou essa situação peculiar a Belo Horizonte: sua extensão comporta um número de habitantes muito superior ao atual. Enquanto as ruas do centro da cidade, em sua maior parte, apresentam casas de vastos quintais, há nos bairros um formigamento de construções tendentes a, cada vez mais, ampliar a área da cidade. [...] a prefeitura, com poucas rendas, ficou impossibilitada de atender às

41

"Commissão Technica Consultiva da Cidade de Bello Horizonte, Portaria n. 51: criação da comissão, 1º agosto de 1934", Revista Mineira de Engenharia, n. 1, jan 1935, p. 36-7. Ver PLAMBEL, p. 225-7. A variedade dos assuntos da comissão pode ser exemplificada pela reunião de 30/06/1935, onde foram discutidos assuntos como a poluição das águas, a revisão do contrato com a Cia. Força e Luz (empresa privada responsavel pelos serviços de eletricidade e bondes), a necessidade de "proteção às palmeiras" da avenida Amazonas e "os prejuízos que os pardaes ocasionam aos pomares" e a necessidade de seu extermínio. ["Poluição fecal nas aguas de Bello Horizonte. [...]. Outros assuntos tratados na reunião de hontem", Estado de Minas, 02 jul 1935, p. 3]

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necessidades múltiplas com que surgiam e surgem esses acréscimos à Capital.42

Para Murgel, o crescimento da parte suburbana estava se "processando no descaso completo das modernas conquistas da arquitetura e do urbanismo", razão pela qual considerava urgente "a criação do plano e da Comissão da Cidade". Para o arquiteto Signorelli, a "idéia mestra" da Comissão deveria ser "a elaboração de um plano geral, prevendo o futuro"43. Como vimos, o processo de ocupação suburbana já ocorria desde os primeiros anos da Capital, estimulado pelas próprias diretrizes da Comissão Construtora, ao exercer um controle mais rígido da ocupação da "área urbana", definindo áreas de reserva na mesma, e impondo menores exigências para a ocupação da zona suburbana. Posteriormente, este processo é acentuado, como o próprio artigo aponta, por um lado, pelo interesse especulativo dos proprietários de imóveis da área central, e por outro, pela implementação de loteamentos e com precárias condições de urbanização, comercializados a baixo preço. Na opinião dos arquitetos e engenheiros acima mencionados, cumpria-se orientar a ocupação da cidade não só no sentido de disciplinar ou mesmo restringir o crescimento da zona suburbana, mas também no sentido de adensar a área central, através de um aproveitamento mais intensivo de seus lotes. A questão ganhava na época certa notoriedade pois se o alto custo dos serviços urbanos traziam ônus para a Prefeitura, o problema se tornava mais critico pois cresciam as reivindicações das vilas e bairros populares - que dispunham de precários serviços urbanos, muitas vezes enfrentando carência de água, como a populosa Vila Concórdia44. Considerando ainda que após a

42

"A expansão suburbana de Belo Horizonte e os problemas que dela decorrem. [...]. O "Estado de Minas" ouve o professor Angelo Murgel sobre o assunto", Estado de Minas, 22 ago 1934, p. 3. 43 "O prefeito vai criar uma comissão técnica consultiva da cidade. Um convite endereçado ao sr. Luiz Signorelli [...]", Estado de Minas, 24 ago 1934, p. 10. 44 "As necessidades dos bairros. A Villa Concórdia flagelada pela falta de agua e o excesso de poeira", Estado de Minas, 31 jul 1934: 5. "Sem água, luz e calçamento. O triste estado das ruas Guaranesia e Jacuhy", Estado de Minas, 08 dez 1935, p. 8.

241

revolução de 1930 interessa às forças políticas emergentes criar bases de sustentação nos centros urbanos - particularmente no período de 1934-6, com o fim do regime provisório e a eleição para Assembléia Constituinte (1934) e posteriormente com as eleições municipais de 1936 - a questão do atendimento às reivindicações por melhoramentos urbanas impõe-se como um forte demanda ao poder municipal45. Além disto, o interesse e a expectativa levantadas na época quanto ao urbanismo e à um "plano de expansão racional" da capital enquandra-se no projeto de instalação de bases urbanas para a implementação da industrialização, bem como na valorização incipiente do planejamento e das técnicas de organização racional da economia. A Comissão foi oficialmente instalada em outubro de 1934, formada por quatro subcomissões: engenharia, arquitetura e urbanismo, higiene e indústria e comércio. Compunham a subcomissão de arquitetura e urbanismo Luiz Signorelli, Ângelo Murgel, Fabio Vieira Marques e Linconl Continentino arquitetos e engenheiros que freqüentemente opinavam na impressa sobre as questões urbanísticas da capital, como visto anteriormente46. Notamos também a presença, na sub-comissão de indústria e comércio, a presença do engenheiro Alvimar Carneiro Rezende, que opinou na "enquente" acima mencionada, defendendo a necessidade da capital torna-se um centro comercial e industrial, sob incentivo estatal. O "plano de urbanismo" da capital preconizado pelo urbanistas locais, foi enfaticamente defendido por Continentino47, que em junho de 1935 apresentou à Comissão uma proposta neste sentido48. Neste trabalho preliminar o engenheiro aponta alguns problemas, cuja "solução não pode prescindir de um

45

PLAMBEL, op. cit., 1979, p. 230-3. Cf. Resende, op. cit., 1987, p. 43. "Comissão Técnica e Consultiva da cidade de Belo Horizonte", Estado de Minas, 02 out 1934, p. 3. 47 "Secção de administração municipal e urbanismo. Sob a direção do eng. Lincoln Continentino". Revista Mineira de Engenharia, n. 4-5, abr-mai 1935, p. 133. 48 "Plano de urbanismo de Bello Horizonte. Interessante trabalho do sr. Lincoln Continentino, apresentado na última reunião da Comissão Técnica Consultiva da cidade", Folha de Minas, 15 jun 1935, p. 8-11. 46

242

plano sistematizado e racional de expansão". Dentre esses problemas, o dos loteamentos da região suburbana, que para o mesmo deveriam sofrer maiores exigências técnicas quanto ao "conforto e higiene" e um melhor aproveitamento das áreas loteadas, cujo traçado apresentava para o urbanista o "antieconômico" sistema de "quarteirões quadrados e ruas retilíneas", desajustados às condições topográficas dos sítios. Alertava também para o fato de que a grande quantidade de loteamentos realizados nas áreas suburbanas - não submetidos a um plano geral - poderia dificultar obras futuras de implementação de "grandes avenidas" ou de equipamentos como parques, aeroporto ou museu. Além disto, para o engenheiro, era necessário estabelecer-se o "zoneamento" da cidade e realizar-se "um inquérito perfeito sobre o tráfego" no sentido de estabelecer um plano viário, aconselhando também a execução de viadutos nos cruzamentos das vias urbanas com as férreas. Sugere também que seja convidados como consultores "técnicos experimentados", lembrando que "no Brasil já podemos contar com urbanistas tais como Anhaia Melo, Armando de Godoy, Washington Azevedo e Prestes Maia". Por estas indicações, vemos que as propostas de uma solução técnica dos problemas da cidade, a partir do Urbanismo, tinham

como referência os pioneiros estudos feitos no Rio de

Janeiro por Agache (1930), em São Paulo por Prestes Maia (1930) e no Recife, por Nestor de Figueiredo, com a colaboração de Prestes Maia. Além disso era freqüentemente mencionado - como na portaria que cria a Comissão Consultiva o exemplo das "cidades americanas". De fato, já partir dos últimos anos da década de vinte iniciaram-se nestas cidades a elaboração de planos de remodelação, originando comissões, planos e obras que, ao longo da década de 30, iniciaram o estabelecimento de uma nova estrutura de tráfego através do alargamento de vias para implantação de grandes avenidas - implicando operações de demolições - bem como da expansão viária, grandes obras de terraplanagem, túneis e viadutos. Em 1930, Prestes Mais apresentou o "Estudo de um Plano de Avenidas para a Cidade de 243

São Paulo" (1930). Fundado na questão do tráfego dos automóveis e ônibus e pretendendo o estímulo ao crescimento da metrópole, o plano apresenta um "esquema teórico" geral da cidade, configurado por um sistema de avenidas radial-perimetrais. Neste Plano prevê-se também diversos conjuntos urbanos monumentais, onde é marcante a presença do classicismo modernizado, corrente nos anos 30, nos Estados Unidos e na Europa. Em 1932, o urbanista foi convidado para colaborar no "Plano de Remodelação e Extensão da Cidade de Recife", onde, segundo Leme, "referindo-se aos ensinamentos do urbanismo norte-americano", adota também o "modelo extensivo de cidade estruturada pelo ônibus e automóvel", manifestando também a preocupação em indicar os meios políticos e financeiros de realização dos projetos propostos49. No Rio de Janeiro, o urbanista francês Alfred Agache, que havia obtido um terceiro lugar no plano de Cambera, Austrália em 1911 e atuava em Chicago, elaborou, entre 1928 e 1930, um Plano de Remodelação para a cidade, que embora não tenha sido oficialmente

adotado,

serviu

de

base

para

os

trabalhos

dos

órgãos

posteriormente criados para a definição do Plano da Cidade.50 O engenheiro Lincoln Continentino, que fez um curso de especialização na área de urbanismo nos Estados Unidos, além de apontar os exemplos brasileiros, reportava-se freqüentemente os procedimentos metodológicos norteamericanos. A influência do urbanismo norte-americano - que ao contrário do urbanismo proposto pelas vanguardas do Movimento Moderno assume uma orientação mais pragmáticas - era bastante marcante nos urbanistas recomendados por Continentino para serem consultores do Plano de Urbanismo de Belo Horizonte. Dentre eles, destacamos o urbanista Armando Godoy Filho membro da Comissão do Plano da Cidade do Rio de Janeiro e responsável pelo

49

Posteriormente, Prestes Maia assume a Prefeitura de São Paulo (1938-45), quando implementa uma profunda transformação da cidade, baseada no seu Plano de Avenidas. Leme, Maria Cristina da Silva. "Francisco Prestes Maia". Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, n. 64, fev/mar 94, p. 59-65. 50 Bruand, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 335340.

244

desenvolvimento do plano de Goiania51 - que teve artigos publicados em jornais mineiros sobre o Urbanismo e sobre Belo Horizonte52. A demanda por um plano de urbanismo em Belo Horizonte pode ser associada a estas iniciativas de remodelação das grandes cidades, bem como à emergência de uma política federal voltada para o aparelhamento social e econômico através "da exigências de 'racionalização' dos meios e técnicas de coleta de dados, sistematização, análise e decisão sobre os problemas de política econômica e administração"53. Por outro lado, Belo Horizonte atingia os limites da previsão do plano de Reis, o que ensejava um plano voltado para a ocupação da periferia da avenida do Contorno, bem como para a remodelação da região central. A Comissão Técnico Consultiva da Cidade funcionou intensamente nos dois anos seguintes à sua criação, mas não dedicou-se a elaboração de um plano sistemático, tratando isoladamente de diversas questões, principalmente relativas a obras de remodelação. Teve sua atuação reduzida a partir de 1936, sob a gestão Negrão de Lima, não sendo mencionada na imprensa posteriormente. Na administração deste prefeito, em 1935, foram tomadas medidas restritivas aos novos loteamentos, embora com pouco efeito, pois a partir de então muitas vilas passaram a ser lançadas sem aprovação da Prefeitura54. O plano de urbanismo não foi elaborado, mas a partir de meados dos anos 30, a imprensa anunciava uma remodelação da cidade, divulgando os empreendimentos do Prefeito e promovendo debates sobre as obras em estudos e execução - como veremos no tópico seguinte.

51

A admiração de Armando Godoy pelo planejamento urbano norte-americano é notória no seu artigo "O urbanismo nos Estados Unidos" [Revista da Diretoria de Engenharia, Rio de Janeiro, jan 1935 (14), p. 205-213]. Sobre o Plano de Goiania, cf. Bruand, op. cit., p. 351. 52 "Apreciações sobre urbanismo", Estado de Minas, 31 dez 1933, p. 5-7. "O problema urbanístico em Bello Horizonte", Estado de Minas, 16 dez 1937, p. 3. 53 Ianni, op. cit., p. 54. 54 PLAMBEL, op. cit., 1979, p. 245.

245

EMBELEZAMENTO E REMODELAÇÃO Ao longo da década de vinte foram empreendidas, pelo governo municipal ou estadual, algumas das grandes praças definidas pela Planta Geral de Aarão Reis. Embora esta tenha sido sujeita a várias modificações, já desde sua implementação inicial, as obras realizadas seguiam os mesmos princípios da Planta Geral, no sentido de "embelezar" algumas das praças delineadas por esta Planta. O termo embelezamento - corrente nos tratados urbanísticos de origem francesa (embellissement) e utilizado pela imprensa mineira na década de 30 para se referir a estas obras - é bastante apropriado para definir este programa de obras, as quais complementavam e constituíam uma decoração urbana do traçado definido pela Planta Geral. Estas operações de embelezamento começaram pela remodelação da Praça da Liberdade (e do seu palácio) por ocasião da visita dos reis belgas (1920)55. Foram então substituídos os cenários de imitação de paisagens naturais, de inspiração inglesa, que compunham a praça em sua construção inicial, por um arranjo paisagístico de inspiração francesa, marcado pelo geometrismo do traçado e do arranjo da vegetação. Em 1924, na Praça Sete de Setembro, foi inaugurado o "Obelisco Monumental

de

Belo

Horizonte",

comemorativo

do

Centenário

da

Independência56. Este tipo de monumento, aparece nas decorações barrocas das praças italianas do século XVII, provavelmente inspirado nos obeliscos egípcios, como pontos focais de grandes composições urbanas, sendo ainda utilizado no século XIX, tal como na Place de la Concorde, em Paris. Em 1926 são inaugurados os jardins da Praça Rui Barbosa (Praça da Estação), e também o largo da entrada do Parque Municipal57. Os jardins da Praça Rui Barbosa, de traçado clássico, foram decorados por esculturas de dois tigres, um arranjo cuja simbologia provavelmente derive da cultura chinesa, onde estão vinculados à 55

Sobre a remodelação do palácio e da praça da Liberdade (1920), ver Salgueiro, Heliana Angotti. "O ecletismo em Minas Gerais: Belo Horizonte 1894-1930". In: Fabris, Annateresa (org.). Ecletismo na arquitetura brasileira. São Paulo: Nobel/Edusp, 1987, p. 119. 56 Pena, op. cit., p. 241. 57 Idem, p 261.

246

função de guardiões58, sendo portanto adequados à esta praça, que era então a "Praça

de

entrada

de

Belo

Horizonte",

como

escreveu

Drummond59.

Posteriormente nesta mesma praça foi localizado, defronte ao edifício da Estação Ferroviária, o Monumento à Civilização Mineira (1930), do escultor Giulio Starace60. Compõe-se este monumento de um pedestal em pedra com cenas em relevo, sobre o qual eleva-se uma figura masculina, em bronze, empunhando uma flâmula - uma alegoria do bandeirante como fundador da civilização mineira. Não se trata de um bandeirante específico - ou seja, um personagem histórico e com os trajes da época - mas de um homem abstraído de sua condição cultural, jovem, idealizado à maneira classicista. Ao contrário do monumento anterior, que parece recorrer a simbologias arcaicas e exóticas, este monumento parece ter como referência o renascentista David, de Michelangelo, na Praça Signoria, considerado como um "símbolo cívico-patriótico da república florentina"61. Tem-se, portanto, ao longo da década de vinte, a conclusão da cidade planejada por Aarão Reis, dentro dos moldes da arte urbana de tradição classicista, ou seja, o embelezamento da cidade através de praças e monumentos. Contudo, além destes monumentos, outros tipos de obras foram empreendidas. Na segunda metade da década de 1920 diversas obras de infraestrutura urbana foram implementadas, principalmente relativas ao sistema viário e ao transporte, iniciando-se a remodelação urbana que se realizará nas décadas seguintes. Ampliou-se o sistema de bondes, que como vimos, fora implantado desde a década de 1900, já atingindo então vários bairros suburbanos (Serra, Calafate, Matadouro, Bonfim e Prado). Em 1926 foi inaugurado o abrigo de bondes da av. Afonso Pena, próximo à esquina com a Rua da Bahia. Nesta esquina já funcionava, desde 1910, uma agência de

58

Cf. Chevalier, Jean. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p. 883-4. Estado de Minas, 3 jan 1982. 60 Pena, p. 299. 61 Janson, H. W. História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 452. 59

247

bondes, para onde confluíam a maioria das linhas, e o novo abrigo da Afonso Pena consolidou o local como o centro da cidade62. Neste mesmo ano, foi inaugurada a linha de bondes para o Bairro Santo Antônio, e nos dois anos seguintes prolongadas as linhas da Serra e a do Calafate até a Gameleira, além de realizadas diversas obras de substituição de equipamentos do sistema de bondes63. Em 1927 foi construído o primeiro viaduto da cidade, sobre a av. Tocantins, ligando o centro ao bairro da Floresta64. Em 1928 inaugurou-se o serviço de auto-ônibus65, e neste mesmo ano foram iniciadas as obras da avenida Sanitária na Lagoinha, possibilitando a expansão suburbana a Norte, em direção à região da Pampulha, onde nas décadas seguintes se realizará obras urbanísticas e arquitetônicas de vulto66. Portanto, ao longo da década de 1920, as obras de urbanização empreendidas pelo poder público foram no sentido de consolidar a estrutura lançada a partir da Planta Geral de 1895, sendo também realizadas obras viárias que possibilitavam a expansão urbana. A partir de meados da década de 1930, principalmente com a obras empreendidas pelo prefeito Otacílio Negrão de Lima, o discurso e as medidas relativas à urbanização de Belo Horizonte passaram a ter como objeto a remodelação da capital. Um marco desta remodelação foi a centralização das linhas de bondes na Praça Sete, onde foi implantada uma nova "estação central", o que veio a resultar no deslocamento, para esta praça, do centro da cidade - então considerado como sendo a região em torno do "ponto" da Avenida Afonso Pena, nas proximidades da esquina com Rua da Bahia. A primeira iniciativa neste sentido, proposta em 1934 pelo prefeito Soares de Matos, foi de remodelar a região da estação central de bondes da Av. Afonso

62

Pena, op. cit., p. 119, 122 e 259. Idem, p. 259, p. 261, p. 262, p. 276 64 Idem, p. 259, 260, 270, 287, 288. O viaduto, então denominado Artur Bernardes, é conhecido atualmente por Viaduto de Santa Tereza; a avenida Tocantins é a atual Assis Chateaubriand. 65 PLAMBEL, op. cit., 1979, p. 166. 66 Pena, op. cit., p. 278-9. Atualmente avenida Antônio Carlos. 63

248

Pena, buscando fazer com que as linhas de bonde que passavam pelo Viaduto de Santa Tereza tivessem acesso à referida estação. O prefeito, "atendendo ao desenvolvimento da cidade, que reclama diversas medidas no sentido de remodelá-la" - conforme justificou o mesmo - apresentou uma ampla proposta para o local, baseada numa sugestão do arquiteto Signorelli: o edifício dos Correios, situado no quarteirão contíguo à estação (entre a av. Afonso Pena, a rua da Bahia e a rua Tamoios) seria vendido e demolido e o adquirente do quarteirão "viria a fazer dois grandes prédios, com andar térreo destinado a estabelecimentos comerciais", reservando uma faixa central, por onde passariam as linhas de bondes vindas do viaduto, que assim atingiriam o abrigo da avenida; para isto, seria necessário a construção de um novo viaduto, ou melhor, uma extensão do existente, até a passagem entre os dois prédios; finalmente, a sede do correio seria construída em outro local, na Avenida Afonso Pena, ao lado do "futuro Palácio da Prefeitura"67. A proposta de demolição do edifício dos Correios - construído na década de 1910 em estilo classicista eclético e bastante destacado na paisagem urbana por sua situação - não levava em conta o valor monumental deste edifício e era justificada pela necessidade de atender às novas necessidades de tráfego. A forma urbana definida pelo traçado e pelas primeiras construções da Nova Capital era portanto considerada como sujeita a um constante processo de transformação em função do desenvolvimento da cidade e não como um monumento arquitetônico a ser perpetuado. Além disto, pode reconhecer neste projeto a intenção de produzir, no local então considerado o centro da cidade, uma nova forma urbana de caráter espetacular e futurista, através da incorporação do viaduto aos edifícios - os quais seriam os primeiros arranhacéus da cidade - como um marco inicial de uma remodelação que se julgava então necessária.

67

"A Prefeitura tem em vista a solução de um grande problema da cidade", Estado de Minas, 05 jun 1934, p. 1 e 10.

249

A venda e demolição do prédio dos Correios e a construção dos "dois grandes prédios" no local, pela Companhia Sulacap/Sulamerica, acabou se realizando posteriormente, nos anos 40, mas o prolongamento do viaduto até o centro do quarteirão não se fez. Esta última obra implicaria em grandes dificuldades técnicas e, na opinião de muitos técnicos, o abrigo da Afonso Pena não teria condições de atender à centralização do sistema de bondes. Outras propostas foram lançadas e, de modo geral, os problemas do tráfego em Belo Horizonte eram assunto presente na imprensa, como nas "interessantes considerações sobre essa momentosa questão" apresentadas pelo engenheiro Alberto Pires, em 193468. Após uma preleção geral sobre o tráfego urbano, ressaltando a importância da realização de um "inquérito sobre o tráfego", a exemplo do "survey dos americanos", Pires tratava dos problemas de tráfego em Belo Horizonte. O principal problema era o "cruzamento da avenida Afonso Pena com a rua da Bahia" e a "localização da terminal de bondes", assunto que, segundo o engenheiro, era freqüentemente discutido pelos jornais e pelos "nossos preclaros urbanistas", sem contudo chegar-se a uma "solução exata" - o que, para ele, só seria possível através de uma "análise local do tráfego, relacionadas, em conjunto, como o transito oriundo dos outros pontos da cidade", de acordo com o "survey" que preconizava. A despeito disto, o engenheiro tecia algumas considerações sobre o problema: o local, além de ser um centro de "concentração dos habitantes da cidade, vindos de diversos bairros", era um "ponto forçado da passagem" dos automóveis vindos da Estação Ferroviária para os hotéis, bem como dos bairros da Floresta e Santa Tereza para a Praça da Liberdade. O engenheiro considerava "o lugar impróprio por não ter área suficiente para comportar todo esse movimento" e sugeria que "talvez a Praça Sete de Setembro, por mais ampla, e oferecer uma área bem maior, fosse um ponto mais adequado para a localização desse terminal". 68

"O problema do tráfego em Belo Horizonte", Estado de Minas, 30 out 1934, p. 5.

250

Em 1935, o engenheiro Oto Jacob apresentou um "Esboço de anteprojeto" para a viação elétrica de Belo Horizonte69. Para o engenheiro, o sistema de viação elétrica tinha então o seu "centro de irradiação completamente deslocado", por isso considerava equivocada a proposta do prefeito Soares de Matos acima mencionada. Tal como para Pires, a solução seria localizar a Estação central dos bonde no "centro verdadeiro da cidade, que é e será sempre a Praça Sete de Setembro", além da "retirada das linhas da avenida Afonso Pena, nossa artéria principal, não só por questões de tráfego [...], mas também por questões de estética". A praça Sete era considerada o "centro verdadeiro da cidade" tanto por ser "um plano horizontal" onde cruzavam-se a Av. Afonso Pena - "a principal artéria da cidade" - e a avenida Amazonas - "que liga as estações das estradas de ferro ao centro geométrico da zona urbana, que é a Praça Raul Soares"70 - como por ser "o centro geométrico da zona do alto comércio da capital, estando nela colocados e em sua proximidades os principais edifícios de Belo Horizonte e quase todas as sedes dos Bancos que aqui funcionam". O projeto que apresentava constava basicamente de duas estações situadas na avenida Amazonas, ligadas por uma passagem subterrânea para pedestres, sob o cruzamento com a Avenida Afonso Pena. Além da conveniência técnica, o engenheiro considerava que estas estações, em "estilo arquitetônico moderno", seriam "muito ao contrário do que é o atual abrigo da avenida Afonso Pena, dois monumentos que enfeitarão a cidade". No mesmo ano de 1935, já sob a gestão do prefeito Negrão de Lima, os técnicos da Municipalidade e da Cia. Força e Luz concluíram pela centralização do tráfego de bondes na Praça Sete de Setembro, através da implantação de um "moderníssimo" terminal-circular em torno do obelisco da praça. Segundo informava uma reportagem da época, para "evitar o congestionamento nos

69

Oto Jacob, "Viação eléctrica de Bello Horizonte. Esboço de ante-projeto", Revista Mineira de Engenharia, n. 4-5, abr-mai 1935, p. 107-112. 70 Esta praça na época ainda não havia sido ajardinada e não contava com uma significativa ocupação edificada nas suas proximidades.

251

centros de movimento mais acentuado e os retardamentos nocivos ao despacho dos carros, os técnicos, nas cidades mais importantes do mundo têm recorrido aos terminal em forma de círculo"71. O projeto foi criticado pelo engenheiro Jacob, para o qual a circular, ao contrário da solução que defendia, ficaria constantemente tomada pelo tráfego dos bondes, obstruindo o fluxo dos automóveis da avenida72. Apesar de suas críticas, fundadas em detalhadas cálculos de fluxos, sua proposta não teve maiores repercussões e o anunciado projeto foi implantado. A transferência da estação central de bondes do "Ponto" para a Praça Sete veio a marcar o deslocamento do centro da cidade do Bar do Ponto para aquela. Em dezembro de 1936, já se afirmava: "A Praça Sete é hoje o centro da cidade, por onde pulsa a sua trepidação operosa". Daí em diante, são inúmeras as alusões em crônicas reportagens ao papel da Praça como o centro da metrópole73. Na década de 50 era marcante a concentração dos serviços bancários na Praça e suas imediações, que se tornou local de encontro de negociantes e políticos74. Além da centralização do sistema de bondes na Praça Sete, outras obras do prefeito Negrão de Lima eram noticiadas em termos grandiloqüentes pela imprensa, que não poupava elogios ao "seu governo dinâmico e progressista". A atuação deste prefeito era caracterizado como uma remodelação da cidade, principalmente através de obras viárias, como a construção do "viaduto da Avenida do Contorno", noticiado como uma "obra monumental com que a Prefeitura vai embelezar a cidade". Tratava-se do segundo construído na cidade, que, assim como o primeiro, tinha como objetivo facilitar a ligação dos populosos bairros da Floresta e Santa Tereza ao Centro75. 71

"A centralização do tráfego de bondes na praça Sete", Estado de Minas, 20 out 1936. "Para descongestionar o tráfego no centro comercial. Um projeto sobre a centralização dos bondes na praça Sete, apresentado à Camara pelo eng. Otto Jacob", Folha de Minas, 15 out 1936, p. 6. 73 Chacham, op. cit., p. 86-9. 74 Lemos, op. cit., p. 213-4. 75 "O viaducto da Avenida do Contorno". Estado de Minas, 13-14 dez 1935, p. 4-3. 72

252

Outra obra bastante divulgada e discutida pela imprensa era o asfaltamento de ruas e avenidas empreendido pelo prefeito. O assunto foi objeto de "um largo debate em torno da importante questão", em 1936, na Folha de Minas, pois "no parecer de alguns técnicos" o asfaltamento ameaçava a arborização da cidade, "um dos mais deslumbrantes motivos ornamentais da capital"76. Frente a estas manifestações, o prefeito cuidou de demonstrar, no mesmo jornal, suas medidas em favor da arborização da cidade, "de modo a atender os reclamos da Cidade-Jardim"77. Contudo, no ano seguinte, um artigo alertava para as consequências das obras viárias à arborização: "Belo Horizonte não apresenta ainda problemas de tráfego tão angustiantes que justifiquem o arrancamento dos seus ficus ou de outros exemplares de sua riqueza arborística"78 - o que acabou se verificando posteriormente, principalmente na década de 50. Após pouco mais de um ano da administração Negrão de Lima, a capital já era considerada como estando em "plena fase de remodelação". O RedatorChefe da Folha, Luiz de Bessa, destacava então a atuação do prefeito para que "a Capital possa simbolizar a vida do povo mineiro, em sua expressão de cultura e em seu élan de progresso". É significativo que, apesar do ufanismo do jornalista, ele expresse uma avaliação freqüente na época: Não vamos dizer que Belo Horizonte já é uma dessas metrópoles estuantes e trepidantes de movimento e vibração. Mas está no ponto de o ser. [...] E chegará a ser metrópole verdadeira de um povo que progride e se engrandece.79

O tema repetia-se no caderno comemorativo do aniversário da cidade no mesmo ano de 1936, publicado pela Folha de Minas, onde afirmava-se que a

76

"Deve-se, ou não, asfaltar a Avenida Afonso Pena?", Folha de Minas, 01 mar 1936, p. 1 e 4. O assunto também aparece na imprensa já desde a posse do prefeito, cf. "O novo prefeito e a arborização", Folha de Minas, 14 abr 1935, p. 3. 77 "O prefeito Otacílio Negrão de Lima fala a Belo Horizonte", Folha de Minas, 2 jun 1936, p. 1 e 4. 78 "Não sacrifiquemos as árvores", Folha de Minas, 07 jan 1937, p 3. 79 Folha de Minas, 24 mai 1936, p. 1.

253

cidade seria "em breve, uma imensa metrópole"80. O caderno apresentava em todas suas páginas o bordão "Trinta e nove anos de realizações e de progresso da capital montanheza. Uma nova fase construtiva marcada pela atual administração do município", relatando ainda mais detalhadamente que o artigo anterior, as diversas obras do prefeito. Incluíam-se nesta relação: a conclusão da Praça Raul Soares; o Parque Santo Antônio, um conjunto esportivo construído pela Prefeitura, que deu origem ao Minas Tenis Club; o Matadouro Municipal; o Palácio da Municipalidade; a execução de um longo trecho da avenida do Contorno, prevista na Planta Geral de Aarão e até então ainda não concluída, e que com o seu asfaltamento se tornaria então uma "optima pista para corridas automobilísticas", bem como a pavimentação de várias ruas, "em pleno triunfo do asfalto". Segundo informa o referido caderno, "onde a obra do sr. Otacílio Negrão de Lima se assinala com mais intenso índice de sua orientação pragmática, sem dúvida, é no vasto plano de saneamento que traçou e vem executando". Eram obras de canalização de vários córregos, associadas a aberturas de avenidas sobre o leitos canalizados81. Algumas destas obras já estavam projetadas ou iniciadas anteriormente e era uma preocupação do prefeito ressaltar que estas obras davam continuidade à das administrações anteriores. Além das obras acima relacionadas, outra destacada pela imprensa era "uma grande barragem na Pampulha", formando uma "considerável reserva d'água destinada a usos domésticos, industriais e públicos", com a qual o "problema de água para Belo Horizonte ficará resolvido por muitos anos"82. Não se limitando a esta função, a obra foi projetada como ponto de partida da

80

Folha de Minas, 25 dez 1936, 4ª seção, p. 1-12. Noticiava-se as seguintes canalizações de córregos e abertura das respectivas avenidas: Ribeirão Arrudas e Córrego da Mata / Av. Silviano Brandão; Córrego dos Pintos / Av. Almirante Jaceguay (atual Francisco Sá); Córrego do Pastinho / av. Pedro II; Córrego Lagoinha / Av. Pedro I (atual Antônio Carlos), e ainda a canalização do Córrego do Leitão, em trechos das ruas São Paulo e Alvarenga Peixoto, vinculada à urbanização do Bairro de Lourdes. 82 Folha de Minas, 24 mai 1936, p. 4. 81

254

urbanização do local, já vislumbrada com as características que mais tarde os empreendimentos do prefeito Juscelino Kubitschek buscará realizar com os edifícios do conjunto arquitetônico projetado por Niemeyer: Em torno do grande lago, circundado por uma avenida em construção, é fácil prever a edificação de um novo e pitoresco bairro de recreio, destinado a atrair a afluência daqueles que, em dias de folga, queiram entregar-se a exercícios e repousos da vida urbana e dos trabalhos da semana. A larga superfície prestase aos esportes de natação e remo, assim como ao pouso de hidroviões.83

Apesar do tom grandiloqüente e propagandístico do referido caderno comemorativo, pode-se admitir que as obras nele divulgadas, empreendidas pela administração Negrão de Lima, configuravam, em meados dos anos 30, uma "nova fase construtiva" na capital mineira. Contudo, as obras do prefeito, anunciadas então como uma remodelação da cidade, não devem ser compreendidas como uma ruptura do plano estabelecido pela Planta Geral de Aarão Reis. Muitas delas, como a conclusão da avenida do Contorno, consistiam na própria consolidação deste plano, enquanto outras, embora denominadas como

obras

de

remodelação,

parecem

ser

consideradas

como

um

desenvolvimento da estrutura básica lançada por aquela Planta, então atualizada conforme as novas exigências da cidade. Ao declarar que a implementação da avenida do Contorno era uma iniciativa do governador do estado, o prefeito afirmava a importância desta obra na definição de uma forma da cidade dotada de pregnância: "Causava-lhe espécie que não fosse ainda possível ao belorizontino ter uma idéia perfeita da sua Cidade, em conjunto. Ordenou-me, portanto, que concluísse a abertura da Avenida do Contorno". De fato, a conclusão desta avenida - que só foi inaugurada em 1940 - , efetivaria o plano da "área urbana" definido pela Planta Geral de Aarão Reis. Além disto, as várias obras empreendidas e transformações da cidade no período eram, de modo geral, consideradas, tanto

83

Idem, ibidem.

255

prefeito como pelo jornal, como parte de um processo evolutivo e em continuidade com o passado. Esta visão é claramente expressa no bordão do caderno comemorativo do jornal Folha de Minas, a que nos referimos acima, ao inserir "a nova fase construtiva" empreendida pelo prefeito nos "Trinta e nove anos de realizações e de progresso da capital montanhesa". Ainda segundo o mesmo caderno, a nova fase construtiva não se limitava às obras do prefeito, mas também incluía a construção de edifícios privados, crescente desde a década anterior e que apresentavam, em 1936 um número "record". Ao ser noticiado o aumento do número das edificações, um artigo apresentava uma sugestiva imagem deste fato: "a eloqüência dos números no ditirambo de Belo Horizonte"84. O ditirambo é um gênero dos primórdios do teatro grego, do qual se originou a tragédia, caracterizando-se como um canto coral de caráter apaixonado, constituído de uma parte narrativa, recitada pelo cantor principal, ou corifeu, e de outra propriamente coral, executada por personagens vestidos de faunos e sátiros, considerados companheiros do deus Dioniso, em honra do qual se prestava essa homenagem ritualística85.

Numa acepção geral, pode significar uma composição lírica que exprime entusiasmo ou delírio. A comparação do ditirambo com o progresso da capital parece referir-se ao ritmo intenso do processo de transformação/construção da nova fisionomia da cidade. Revela também - não sabemos até que ponto intencionalmente - um aspecto insistentemente destacado pela imprensa local: o papel do prefeito, e mais amplamente do Estado, como corifeu ou condutor daquele processo, no qual a construção dos edifícios poderia ser equiparada ao coro. Assim, ao lado da remodelação e expansão da estrutura viária, o crescimento do número de edifícios compunham um quadro de intensa transformação da paisagem urbana, marcada também pelo surgimento de novas modalidades das edificações - como veremos a seguir.

84 85

Folha de Minas, 12 dez 1936, p. 8. Aurelio Eletrônico, 1994.

256

A segunda metade dos anos 30 foi marcada não apenas pelo crescimento do número das construções, mas também pelo aparecimento de um novo modo de edificação. Em 1935 foram construídos em Belo Horizonte dois edifícios que atingiram pela primeira vez o patamar dos dez pavimentos: edifício da Feira Permanente de Amostras e o edifício de escritórios Ibaté. Uma fotografia da av. Afonso Pena e imediações, "tomada do alto da Feira Permanente de Amostras" em 1936, distingue-se no conjunto de fotografias apresentados da primeira página do caderno comemorativo a que temos nos referido. Ao contrário das demais, onde os monumentos da capital são vistos sob o ponto de vista do pedestre ao nível da rua, a tal fotografia mostra uma perspectiva até então inédita: a visão da cidade vista do alto. Nela se vê o traçado regular da cidade emoldurando um conjunto regular de sobrados e palacetes, do qual destaca-se o edifício Ibaté, considerado o primeiro arranha-céus da cidade. Apesar de poucos edifícios verticais terem sido construídos na década de trinta, eles eram vistos, com grande empolgação, como uma das evidências do progresso da capital. Além disto, eles iniciavam, sob o aval da legislação urbanística, uma ocupação mais densa do centro. Vimos que já desde 1922 a legislação urbanística da capital havia sido mudada de modo a possibilitar a renovação das edificações no sentido da verticalização e grande aproveitamento do lotes da área central. Veremos inicialmente como se consolidou a legislação urbanística ao longo da década de trinta, quando se inicia a verticalização da área central, na medida em que se lançava as bases para uma ocupação mais intensa da zona suburbana. Trataremos depois de algumas das características das edificações dos anos 30, principalmente às portadoras de novos modos de configuração volumétrica ou figurativa. REGULAMENTOS DAS CONSTRUÇÕES

257

Em 1930, foi sancionado um novo Regulamento de Construções86, substituindo o anterior, de 1922. A diferença mais significativa em relação a este último, do ponto de vista do modo de edificação da cidade, são os dispositivos relativos a altura dos edifícios. É também definido neste regulamento uma "divisão da cidade em zonas", diferenciando-se, dentro da Zona Urbana, um Zona Central - embora sem estabelecer distinções quanto ao uso e à configuração das edificações nas mesmas - sendo também redefinidas a Zona Suburbana e a Zona Rural87. Como vimos, a modificação do Regulamento de 1901 feita em 1922 alterou drasticamente o limite de altura dos edifícios, passando o limite de três pavimentos, estabelecidos pelo primeiro, para limites equivalentes a 25, 35 e até 50 pavimentos, de acordo com a largura da via - uma exigência válida indistintamente para todos os lotes, urbanos e suburbanos. Esta medida manifesta um grande expectativa quanto à verticalização das edificações. Contudo, até 1930, nenhum edifício ultrapassava sequer a altura de seis pavimentos, tendo portanto a medida nenhum efeito. O Regulamento de 1930, mais restritivo sob este aspecto que o anterior (1922), adota dispositivos semelhantes ao propostos por Agache, em seu Plano de Remodelação do Rio de Janeiro, no final dos anos 2088. Trata-se do sistema de regulamento do "perfil" da construção segundo um gabarito ou "planos-limites", relativos tanto ao

86

Prefeitura de Bello Horizonte. Lei n. 363, de 4 set 1930. Aprova o Regulamento Geral de Construção em Belo Horizonte. Minas Gerais, 8 set 1930, p. 7-25. 87 Idem, Art. 511. Além disto, mais detalhado e com maiores especificações que os anteriores (de 1901 e de 1922), este regulamento aborda disposições específicas relativas a construções "para fins especiais" - tais como "fábricas e oficinas", açougues, hospitais, necrotérios, cocheiras e estábulos, escolas, teatros e cinematografos - dedicando também um capítulo às "habitações coletivas" ("hotéis e casas de pensão", "casas de apartamentos" e "casas de comôdos"). Tal como os anteriores, o novo regulamento dispõe detalhadamente sobre os "materiais de construções", agora incluindo um capítulo dedicado ao "concreto armado". A regulamentação minuciosa a respeito destes aspectos revela a expectativa da ocorrência, no futuro, de uma maior complexidade dos tipos de edifícios e das técnicas de construção. 88 Agache, Alfredo. "Plano de Remodelação da cidade do Rio de Janeiro - Conclusão". Revista da Diretoria de Engenharia, Rio de Janeiro, n. 17, julho 1935, p. 498-586 [Transcrito de Agache, A., Cidade do Rio de Janeiro, Extensão, remodelação, embelezamento. Paris, Foyer Brésilien, 1930].

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alinhamento junto à via como às divisas e áreas internas, definidos por retas inclinadas, a partir de determinada altura, configurando como limite um prisma do tipo tronco-piramidal. A proposição de Agache para a Zona Central do Rio define o perfil limite da edificação pelo cruzamento de uma vertical no alinhamento com um reta "elevada a 50º em relação ao nível do passeio e a cinco metros acima deste último relativamente ao alinhamento oposto", sendo a altura máxima da edificação junto ao alinhamento de 25 metros; as áreas internas de iluminação são definidas segundo o mesmo esquema e os afastamentos laterais só são obrigatórios a partir da altura do edifício junto ao alinhamento. Na região mais central, são permitidos "torres" com maior altura, acima do volume básico definido anteriormente, desde que a superfície destas torres não exceda a 10% da superfície do lote, bem como sejam limitadas por um plano formando 75º com um plano-limite horizontal situado a 25 metros de altura da rua89. Pelo regulamento de Belo Horizonte (1930) a altura máxima das construções era fixada, tanto na zona urbana como na suburbana, pelos seguintes planos-limites: a) do lado da rua, por um plano com a inclinação de 50º sobre a horizontal, passando a 5m de altura na sua interseção com o plano de alinhamento na face oposta da rua; b) ao lados, por outro plano com a inclinação de 50º sobre a horizontal, passando a 5m de altura, na sua interseção com o plano passando pelos alinhamentos divisórios; c) nas áreas internas, o mesmo plano de 50º sobre a horizontal partirá da altura de 5m da parede oposta, contados do piso90.

Pelos dispositivos acima, em relação à rua (alínea a), a altura da edificações ficava limitada a 29 m (10 pavimentos) nas ruas de 20 metros de 89

Idem, p. 504-5. Este dispositivo remonta à Zoning Law (1916) de Nova York, responsável pelos conhecidos edifícios em formato piramidal, ainda que nesta o escalonamento era definido por limites bem menos restritivos, em geral começando a partir de 40 metros de altura ou mais, de acordo com o local. Bruner, 1940, p. 30. 90 Prefeitura de Bello Horizonte. Lei n. 363, de 4 set 1930. Aprova o Regulamento Geral de Construção em Belo Horizonte, Art. 65.

259

largura, a 47 m (16 pavimentos) nas avenidas de 35 e a 60 m (20 pavimentos) na Avenida Afonso Pena, de 50 metros de largura - o que constituía numa redução dos limites a aproximadamente a metade do estabelecido pelo Regulamento de 1922. Ainda que adotando a mesma regra do plano-limite a 50º preconizada por Agache, e mesmo não limitando a altura da edificação junto ao alinhamento, os limites estabelecidos pelo Regulamento de Belo Horizonte resultavam mais restritivos do que os propostos por Agache, devido às exigências relativas aos afastamentos laterais. Aplicados os dispositivos da alínea "b" (ou "c"), para um edifício atingir a altura permitida em relação ao alinhamento da rua, na altura do 10º pavimento o edifício deveria guardar um afastamento lateral (ou uma dimensão de área interna vazia) de 20 metros. Considerando que a largura média dos lotes da chamada "área urbana" era de 10 metros, um edifício deste porte exigiria pelo menos cinco lotes, ocupando o mesmo o lote central e ficando os dois lotes laterais livres ou ocupados por uma construção escalonada de modo a atender os afastamentos exigidos - o que certamente desencorajava empreendimentos deste porte. Embora as exigências deste Regulamento quanto aos afastamentos e limites de altura propiciassem uma boa condição de iluminação e aeração entre os edifícios, segundo os padrões então recomendados, elas provavelmente não atendiam os interesses dos proprietários imobiliários e dos construtores, posto que limitavam bastante o aproveitamento dos lotes, bem como acabavam indo contra as intenções da Prefeitura de estimular o adensamento da Área Urbana, particularmente

na

Área

Central,

na

medida

em

que

desencorajam

empreendimentos de grande porte. De fato, durante a curta vigência deste Regulamento (1930-1933) não se verificou em Belo Horizonte edifícios com mais

260

três pavimentos91. Certamente por estas razões, este Regulamento foi logo substituído por um outro em 193392. De modo geral idêntico ao anterior, a única diferença deste último era justamente relativa à questão da altura das edificações, cujos limites são neste diferenciados segundo a "Zona Residencial" e a "Zona Comercial" ou "Zona Central", definidas neste regulamento de forma semelhante ao regulamento anterior93. Para a Zona Residencial ficaram mantidas as disposições do Regulamento de 1930; para a Zona Comercial, foram mantidas os limites relativos a altura junto à via, porém modificados as restrições relativas à altura junto às divisas, podendo o edifício ser levantado junto a estas últimas, até a altura definida pela altura máxima junto à via. Desta forma, abolia-se a necessidade do afastamento lateral (desde que não houvesse iluminação na fachada); além disto, foram também atenuadas as exigências relativas às áreas internas de iluminação. Observamos que apesar de denominada "Zona Comercial", não há neste regulamento nenhuma disposição que restrinja o uso desta zona a edifícios comerciais ou de escritórios, o que veio a possibilitar, na década de 1940 e seguintes, grande número de prédios de apartamentos na Zona Central. É justamente sob a vigência deste novo Regulamento que surgem, na segunda metade da década de 30 os primeiros arranha-céus da cidade, ou seja, os edifícios com dez ou mais pavimentos. Este regulamento será novamente modificado em 1938 quanto ao limite de altura dos edifícios, aumentando-se "55º 91

Uma possível exceção é o edifício do Cine-Brasil. A datação do projeto deste prédio em 1931, bem como sua autoria, segundo por Xavier et alt. [Belo Horizonte. Itinerário da Arquitetura Moderna, 1985] é hipotética, pois não foi encontrado fontes oficiais a respeito. Ver a respeito, Lemos p. 172. Além disto, o projeto pode ter sido aprovado antes da vigência deste Regulamento, pois não atende às suas exigências. 92 Prefeitura de Belo Horizonte, Decreto n. 165, de 1º de setembro de 1933, Regulamento de Construções, Minas Gerais, 5 set 1933, p. 4-18. 93 Segundo o Art. 449: "Zona Central ou Comercial: É limitada a partir da Avenida do Contorno pelas Avenidas Bias Fortes, Paraopeba [atual Augusto de Lima], Praça da República [Pça. Afonso Arinos], Afonso Pena, rua da Bahia, Avenida Tocantins (Viaduto) [atual Assis Chateaubriand], rua Aarão Reis até a Avenida do Contorno e por esta até a Avenida Bias Fortes. Zona Urbana ou Residencial: É limitada pela Avenida 17 de Dezembro (Av. do Contorno)".

261

a inclinação de que trata o artigo 64", o que implicava num aumento de aproximadamente 20% do número de pavimentos definido pelo regulamento anterior94. Um novo regulamento é aprovado em 1940, porém em linhas gerais pouco modifica o anterior, definindo com mais precisão as exigências quanto às áreas internas de iluminação95. Este regulamento faz referência, no tocante aos afastamentos, a um futuro "decreto relativo ao Zoneamento da Cidade"96, definindo, como "disposições transitórias" a vigência dos artigos acima mencionados relativos a alturas e afastamentos, "enquanto não for regulado o zoneamento da Cidade"97 - o que não se realizou senão muito mais tarde, em 1976. A legislação definida a partir do Regulamento de 1933 possibilita um aproveitamento dos lotes com edifícios de maior porte na área central, criando uma expectativa quanto ao seu uso, valorizando estes lotes no mercado. A partir da metade dos anos trinta ocorrem diversas substituições de antigas construções na área central por novas construções de maior porte, embora nem sempre atingindo os limites máximos permitidos pela legislação. Algumas destas novas construções, atingindo estes limites, caracterizam-se como os primeiros arranha-céus da cidade, isto é, no caso, edifícios com mais de dez pavimentos iniciando um processo de verticalização que vai ganhar grande intensidade nos anos 40. Apesar dos índices crescentes do número de construções até 1939, neste período são raros os chamados arranha-céus, e talvez por isto mesmo ganhassem tanta notoriedade nas crônicas e reportagens sobre a cidade.

94

Prefeitura de Belo Horizonte. Decreto n. 30, de 1º de agosto de 1938. Modifica os artigos 64 e 303, do Regulamento de Construções (Dec. 165/33). Por esta modificação, poderia os edifícios situados em ruas de 20 m atingir, junto ao alinhamento, a altura de 12 pavimentos; os situados nas avenidas de 35 m, 18 pavimentos e os situados na av. Afonso Pena (50m), 25 pavimentos - número que poderia ser maior nos pavimentos recuados em relação ao alinhamento. 95 Decreto-Lei n. 84, de 21 de dezembro de 1940. Aprova o Regulamento de Construções da Prefeitura de Belo Horizonte. 96 Idem, Art. 42. 97 Idem, Art. 390.

262

UM NOVO CICLO NA ARQUITETURA DA CAPITAL A partir do início da década de vinte, dando continuidade ao programa de obras interrompido na década de 1910, são empreendidas diversas edifícios públicos, seguindo, em linhas gerais, as tendências verificadas até então, isto é, a matriz acadêmica do século XIX, porém mais próxima da orientação neoclássica, como já presente no Palácio da Justiça (1909-1911), do que do decorativismo eclético de edifícios como o Palácio dos Correios e Telégrafos (1906). Os edifícios públicos dos anos 20 apresentam uma opção definida pelo neoclassicismo, monumental e despojado das ornamentações ecléticas, como o Conservatório Mineiro de Música (1905-26)98, o Hospital Borges da Costa (1922), o Banco do Brasil(1926)99, e principalmente nos edifícios projetados pelo arquiteto Luis Signorelli: o Automóvel Club (1929)100, a Alfândega (19251929)101. Também projetado por Signorelli, o edifício da Secretaria do Interior (1925-1930)102

constituiu

o

exemplar

mais

destacado

da

arquitetura

belohorizontina deste período: com seus seis pavimentos (dois em ático) ultrapassa o patamar das três primeiras secretarias vizinhas, sendo então um dos mais altos da cidade. Não só pela altura, mas também pela sua imponência, este edifício é marcante da orientação classicista deste arquiteto, bem como da arquitetura do edifícios públicos de Belo Horizonte nos anos 20, avessa portanto a qualquer influencia da nova arquitetura que surgia na Europa - posição esta que será abandonada na década seguinte, tanto por este arquiteto como, de modo geral, na arquitetura corrente desta década. A opção pelo neoclássico foi também compartilhada pelo projeto do novo edifício da Escola Normal Modelo (1930), do arquiteto Carlos Santos, cujo "estilo das fachadas" era definido na época como sendo "Luiz XVI"103. Portanto, apesar das particularidades acima 98 99 100 101 102 103

Situado na avenida Afonso Pena. Situado à av. Afonso Pena, onde atualmente funciona uma agência do Unibanco. Situado na av. Afonso Pena esquina com av. Alvares Cabral. Situada na Praça Rio Branco, atual Secretaria da Agricultura. Situado na Pça. Liberdade, atual Segurança de Segurança e Justiça. "Inaugura-se, hoje, o novo edifício da Escola Normal Modelo", Minas Gerais, 5 set 1930, p. 10. Trata-se de uma reforma e ampliação de um edifício existente - projetado em 1897 pela

263

assinaladas, os edifícios públicos construídos na década de 20 seguem as tendências estilísticas definidas pela Comissão Construtora e podem ser considerados, assim como as praças, como uma conclusão do programa de obras da Nova Capital. No setor das edificações privadas destaca-se os palacetes comerciais, principalmente os situados nas esquinas, como o conhecido por Castelinho (1921), sede da Chapelaria Londres104 e o Palacete Guanabara, - no chamado estilo 1900 ou Belle Époque, marcados por elementos decorativos ecléticos aplicados a um arcabouço derivado, em menor escala, dos modelos parisienses do século XIX105 - e outros como o Cine Avenida, e o Parc Royal, um magazine de departamentos construídos em 1921 - todos eles com três pavimentos. Este patamar foi apenas ultrapassado em 1928, com o edifício do Banco Comercio e Indústria106, situado na esquina de rua Carijós com São Paulo, com cinco pavimentos ao longo dos alinhamentos mais um pavimento em ático, apresentando as mesmos orientações estilísticas dos demais palacetes. Em 1934, os dois maiores palacetes da década anterior, o eclético Banco do Comércio (1925) e a neo-clássica Secretaria do Interior (1926-30), ambos com seis pavimentos, ainda se impunham como edifícios notáveis, destacados por um artigo como "expressões do progresso de Belo Horizonte". Considerava este artigo que "o progresso arquitetônico de Belo Horizonte veio se processando gradualmente, mas um tanto lentamente", mas que aqueles edifícios marcaram "uma nova orientação arquitetônica", pois depois deles "outros vêm sendo construídos, do mesmo modo dignos da moldura citadina"107. Certamente, o articulista refere-se mais ao porte daqueles edifícios do que às

104 105 106 107

Comissão Construtora - do qual se aproveitou muito pouco. Posteriormente foi denominado Instituto de Educação. Situado à avenida Afonso Pena esquina com rua Espírito Santo. Cf. Salgueiro, op. cit., 1987, p. 130-2. Segundo Barreto, op. cit., 1950, p. 198. "Duas expressões do progresso de Bello Horizonte", Estado de Minas, 07 mar 1934, p. 1.

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suas características estilísticas, ainda enquadradas dentro do repertório ecletista ou neoclassicista como os demais edifícios da cidade. Se na época estes dois edifícios eram consideradas como marco de uma nova fase arquitetônica, quando confrontadas com os edifícios de maior parte que surgem alguns anos depois atingindo dez pavimentos, eles podem ser consideradas como exemplos de um modelo tipológico - intermediário entre os sobrados e os arranha-céus - que caracteriza os maiores edifícios da cidade construídos entre a metade dos anos 20 e a metade dos anos 30. Trata-se do tipo de edifício característico das capitais européias: edifícios limitados à altura dos 20 metros, ou seja, com um máximo de sete pavimentos, e em geral, ocupando quase a totalidade do lote. Apesar do Regulamento das Construções de Belo Horizonte permitir, desde 1922, alturas bem maiores que esta, durante até pelo menos os meados dos anos trinta este será o padrão característico dos maiores edifícios deste período, que a despeito de variações estilísticas, apresentam o mesmo porte e características tipológicas semelhantes. Neste período, destaca-se o edifício do Cine Brasil (1932) - que também incluía oito pavimentos de escritórios -, situado na Praça Sete e era, até 1935, o mais alto da cidade. O edifícios, cujo projeto é atribuído ao arquiteto Ângelo Murgel, consiste de um volume de superfície lisa e predominantemente maciça, no chamado estilo paquebot, tendo na esquina elementos decorativos e vitrais coloridos art-deco, que desempenhava um papel análogo às torres de esquinas dos edifícios mais tradicionais, como o chamado Castelinho (1921) - um edifício de três pavimentos, em estilo eclético, marcado por uma torre coroada com cúpula metálica na esquina em que se situava108. O edifício Guimarães (1935) construído ao lado do Castelinho109 - com seis pavimentos, apresenta os esquemas compositivos classicistas da simetria e da repetição de elementos, com discretos traços art-deco. Ainda que com maior número de pavimentos que 108

Situado à av. Afonso Pena esq. com rua Espírito Santo. Outro semelhante, porém já demolido, é o da Casa Guanabara, em outra esquina do cruzamento das mesmas ruas. 109 Situado à av. Afonso Pena, entre ruas Espiríto Santo e Tupis.

265

o vizinho, o alto pé-direito dos três andares deste último resultou em uma altura aproximada entre ambos, em torno do patamar dos vinte metros característico do urbanismo europeu. A despeito da diversidade de estilos do tratamento das fachadas, ambos se enquandram numa mesma tipologia edilícia, característica do urbanismo europeu. A adoção deste modelo pelos construtores pode ter-se dado não apenas pela assimilação do modelo europeu, mas também pela falta de concentração de capital para maiores empreendimentos, já que a legislação urbanística - já com forte influência do urbanismo norte-americano - possibilitava edifícios de maior porte. Este modelo predominou até o início da década de 40, em edifícios como no Lutetia (1939), o Teodoro (1939), e o San Marco (1939), algumas da primeiras "casas de apartamentos" da cidade, e em outros edifícios comerciais. Outro edifício destacado pela imprensa em 1934 como exemplo do "grande surto" das construções e das "grandes iniciativas particulares" no "embelezamento da capital" era o Hass. O edifício, com quatro pavimentos e em estilo semelhante ao Cine-Brasil, ou seja uma volume de aspecto monolítico, com

superfícies

lisas

pontuadas

com

elementos

art-deco,

havia

sido

recentemente concluído e, segundo um artigo, "dentre as novas obras de Belo Horizonte, é um dos melhores", "feito segundo as mais modernas normas de construção e estética"110. O proprietário, Arthur Hass, explicava ter decidido demolir sua antiga residência para dar lugar a um novo edifício por "várias razões": "a primeira de ordem econômica, pois não era justo que sendo o local do meu prédio o mais central de Belo Horizonte, não estivesse o seu rendimento proporcional"; e ainda "por ordem estética, visto ser aquele ponto cruzamento da rua da Bahia com a Avenida, o x [sic] da capital, o mais freqüentado e visitado". Este edifício é um exemplo do processo de substituição das residências da área

110

"As grandes iniciativas particulares e o que ellas representam no embellezamento da capital", Estado de Minas, 12 out 1934, p. 5.

266

central a partir da década de 30, e mesma da dinâmica das transformações posteriores, posto que já foi demolido e substituídos por outro. Os anos 30 são considerados como um período de difusão do estilo art deco na arquitetura de Belo Horizonte. Além da grande variedade das tendências incluídas sob esta denominação, em Belo Horizonte a influência das composições e ornamentações geométricas do art deco, misturam-se as influências do expressionismo, do racionalismo purista, resultando num abrangente estilo "cubo-futurista", como era por vezes denominado na época. A tendência persiste ainda nos anos 40, ainda que neste período a exuberância e dinamismo característicos do art deco foi sendo abandonada por um geometrismo mais elementar e despojado de ornamentação. O chamado estilo art deco originou-se e difundiu-se nas exposições internacionais da década de 1920 e 1930, a começar pela Exposition des Arts Décoratifs et Industriels (Paris, 1925), sendo que as diversas manifestacões e tendências a ele associadas atingiram maior desenvolvimento e popularidade nos Estados Unidos. Contemporâneo aos movimentos racionalistas da identificados com a arquitetura moderna do período entre-guerras, - ou seja, aqueles ligados à Courbusier, à Bauhaus, ao Neoplasticismo holandês, ao Construtivismo soviético, dentre outros111 - o art deco compartilha com estes o objetivo de expressão da era da máquina e a preferência pelo geometrismo, porém repudiando o rigoroso abstracionismo e purismo dos mesmos, assimilando ecleticamente desde formas classicista à oriundas de fontes ditas primitivas. As manifestações artísticas associadas ao art deco caracterizam-se, de modo geral, por movimentadas composições de formas geométricas e por uma exuberante ornamentação baseada na abstração e estilização de formas incorporadas de múltiplas influências, dando origem a uma pluralidade de

111

Argan, Giulio Carlo. Arte Moderna, São Paulo, Cia. das Letras, 1992. Ver também Benevolo, Leonardo, História da arquitetura moderna, São Paulo, Perspectiva, 1994.

267

tendências112. Pela variedade destas tendências, o art deco caracteriza-se como artifício geral de estilização geométrica de um amplo e eclético repertório de temas, em busca de novidades e efeitos espetaculares, porém assimilando ou mantendo certos valores compositivos tradicionais. A variedade dos efeitos cenográficos apresenta-se como uma expressão do poder tecnológico e das grandes instituições, estatais ou privadas, sendo também é utilizada, em amplitude e com meios mais modestos, sempre que se deseja conotar, de maneira facilmente reconhecível, um estilo moderno. O Palácio da Municipalidade marcou a adoção destas novas linguagens arquitetônicas nas construções oficiais - até então caracterizadas pelo classicismo, mais ou menos ecletista. Ainda que desde 1900 houvessem sido tomadas providências para a construção da sede da Municipalidade113, apenas em 1935, sob a gestão de Negrão de Lima, foi instituído um concurso para o então denominado "Palácio da Municipalidade", cujo projeto vencedor, do arquiteto Luis Signorelli foi realizado, e o edifício inaugurado em 1937114. O

112

Eva Weber relaciona sob o rótulo art deco diversas tendências: o estilo denominado classical modern ou stripped classicism, uma adaptação da tradição Beaux-Art, marcado pela simetria e monumentalidade do classicismo, porém com seus elementos figurativos característicos suprimidos ou estilizados simplificadamente, corrente na Europa nas primeiras décadas do século XX e que atinge grande popularidade nos anos 30, seja sob os governos autoritários europeus seja nos EUA na época do New Deal; derivado deste último, o zigzag style dos arranha-céus norte-americanos dos anos 20 e 30, elevando-se dramaticamente em volumes escalonados que culminam em torres ponteagudas; na Califórnia, nos anos 20, o "Mayan revival style" e outras exóticas variações do zigzag deco, baseados em estilizações fantasiosas de motivos pré-colombianos e mesmos egípcios e assírios; na década de 1930, nos EUA e principalmente na Califórnia, populariza-se o chamado streamline style, denominado na França de le style paquebot, inspirado nas formas curvas e aerodinâmicas dos transatlânticos - sob influência das vanguardas racionalistas - e caracterizados por volumes de superfície maciça e lisa ou por composições baseadas em jogos abstratos de volumes e planos, com ornamentação mais despojada e por vezes inspirada em motivos náuticos; finalmente, uma variante deste último, o "tropical deco", corrente na Florida nos 30, onde as linhas aerodinâmicas são combinadas volumes escalonados do zigzag style e ornamentos geométricos ou estilizados, pintados em policromáticos tons pastéis. Weber, Eva, Art Deco, Wigston, Magna Books, 1994, pp. 22-55. 113 Em 1932 foi destinado o local do antigo Mercado Municipal para este fim, local que acabou sendo cedido para a Secretaria de Agricultura, que lá construiu a "Feira Permanente de Amostras". Em 1933 foi definida a localização na Av. Afonso Pena e tentada a realização de um concurso de projetos arquitetônicos para o "Palácio da Prefeitura", que só se efetivou dois anos depois. 114 A propósito, ver "Concurso de projetos para o edifício da Prefeitura Municipal de Bello Horizonte", Revista Mineira de Engenharia, n. 2-3, fev-mar 1935, p. 101; "A construção do Palácio da Prefeitura", Estado de Minas, 06 dez 1935, p. 3.

268

edifício, com cinco pavimentos, foi descrito na época como sendo "em sóbrio estilo moderno" e "com todos os requisitos de conforto e disposição racional" e ainda como "a vitoria da arquitetura racional em Minas Gerais"115. De fato, o projeto representa uma reorientação deste arquiteto, cujos projetos anteriores se alinhavam pelo classicismo, passando então a se enquadrar na chamada arquitetura racional. No Palácio da Municipalidade foram abandonadas a composição simétrica e os elementos figurativos de matriz classicismo presentes nas edificações públicas anteriormente projetadas por Signorelli. A torre assimétrica, bem como o jogo livre de volumes cúbicos são os traços modernos deste projeto. Contudo, a antiga predileção do arquiteto pelo classicismo não é de todo abandonada. Seu projeto está longe daqueles elaborados pelas vanguardas, como os Le Courbusier, e se aproxima do que muitos autores consideram uma versão moderna dos valores do classicismo e da tradição medieval. Neste sentido, o tema da torre do relógio municipal, a presença de elementos monumentais - como o pórtico e a escadaria de entrada - a predominância das massas sobre os vazados revelam o empenho de combinar o modernismo das vanguardas com elementos tradicionais. Este empenho, além de semelhanças formais marcantes, aproximam o projeto do Palácio da Municipalidade aos projetos do arquiteto holandês Dudok, o qual é situado dentro de uma tendência geral - na qual se pode ser enquadrada o art deco - de conciliação e de assimilação da Nova Arquitetura das vanguardas com a tradição classicista. Trata-se aí do que muitos autores definem como um "clássico moderno" ou como um moderno conservador, termo este utilizado por Abílio Barreto para definir o sóbrio modernismo da arquitetura de Belo Horizonte dos anos 30. Outro edifício monumental construído em meados dos anos 30, dentro das novas orientações arquitetônicas, foi a "Feira Industrial Permanente"116, uma 115 116

Folha de Minas, 25 dez 1936, 4ª seção, p. 3. Situado no quarteirão definido pelas ruas Paulo Frontini, Saturnino de Brito, Tiradentes, Acre, e av. 17 de Dezembro (Contorno), em frente à pração Rio Branco.

269

iniciativa do governo do Estado que pretendia ser uma espécie de vitrine da economia do estado, expondo seus principais produtos; além disto, abrigava alguns setores da Secretaria de Agricultura e outros órgãos do Estado, dispondo também de serviços de apoio como restaurante, salão de conferências e até um posto do Touring Club, para abastecimento e reparo de veículos. Projeto de Luis Signorelli (1935), o "suntuoso edifício", segundo um artigo de 1936, "ergue-se magestosamente no eixo da Avenida Afonso Pena, de cujos altos se domina o panorama completo da Capital". Compunha-se de um bloco central com 5 pavimentos, a partir do qual eleva-se uma torre que atingia, no total, 10 pavimentos, flanqueado por duas alas de dois pavimentos, que circundavam todo o quarteirão em que se situava117. O conjunto assim escalonado produzia um efeito de acentuação da verticalidade e da monumentalidade, reforçado por sua simetria e pela marcação enfática dos elementos compositivos, com características art deco. Este edifício constituía-se então num ponto proeminente da cidade, uma torre cívica, símbolo e índice das riquezas do Estado e ponto de contemplação de sua capital. Também abrigava a rádio oficial do governo (Rádio Inconfidência), o que reforçava seu papel de difusor da modernização promovida pelo Estado. Teve, contudo, uma existência relativamente breve, pois foi demolido na década de 60 para dar lugar à Estação Rodoviária. A opção por um modernismo sóbrio e comprometido com um decorativismo de estilização geométrica, influenciado pelo art deco, não foi apenas uma opção deste arquiteto, caracterizando também, ainda de modo mais expressivo, o trabalho do arquiteto Raffaelo Berti. Além destes, esta orientação estilística apresentou-se amplamente adotada, a partir de meados da década de 30, tanto pelos arquitetos como pelos engenheiros e construtores da cidade, seja na arquitetura de edifícios públicos e institucionais, seja na arquitetura de edifícios privados, comerciais ou residenciais. O Chagas Dória (Alfredo Carneiro

117

"Feira Industrial Permanente", Revista Mineira de Engenharia, n.1, jan 1935, p. 31-2.

270

Maretrof, 1934)118 é um dos edifícios mais caracteristicamente art deco em Belo Horizonte, onde aberturas horizontais continuas são contrapostas a feixes de ressaltos

verticais,

produzindo

um

efeito

de

grande

dinamismo

e

monumentalidade. Dentre outros edifícios com características art deco, tem-se: a Casa di Italia (1935)119, a sede do Minas Tenis Club (1933-5), o Cine México, projetados por Raffaelo Berti; a Sede da Sociedade Mineira dos Engenheiros (1935), projeto de L. Signoreli120; o Hospital Imaculada Conceição, projeto do arquiteto Ângelo Murgel (1934)121 e ainda a Casa de Saúde Sta. Clara (1937) e a Escola de Eletricidade e de Radiotelegrafia (1935)122. Além destes, podem ser ainda citados o edifício Piraquara (Romeu de Paoli, 1938-9)123, o edifício Santa Cecília124, o Centro dos Cahuffeurs125, e ainda outros edifícios fora da área central, como os situados à rua Rio de Janeiro com Emboabas (atualmente rua prof. Antônio Aleixo), no bairro de Lourdes, e à rua Itapecerica com Jequeri, na Lagoinha126. Mesmo simples edifícios comerciais de pequeno porte, como o do Armazém Dragão, uma loja de esquina com um pavimento, inaugurado em 1934 e situado no bairro Carlos Prates127, apresentavam em suas fachadas frisos geométricos de inspiração art deco. O edifício Ibaté (Ângelo Murgel, 1935), um edifício com dez pavimentos e localizado num terreno de frente estreita, destaca-se como o primeiro arranhacéus - aproximadamente contemporâneo à Feira Industrial Permanente. Além 118 119

120 121 122 123 124 125 126 127

Sede Cooperativa da Rede Mineira de Viação, situado na rua Sapucaí esq. av. Assis Chateaubriand. Situada na rua Tamoios, destinada a ser um centro de cultura italiana, que funcionou até a década de 40, passando a sediar a Assembleia Legislativa do Estado de Minas e posteriormente a Câmara Municipal de Belo Horizonte, cf. Lemos, op. cit., p. 171. Revista Mineira de Engenharia, n. 1, jan 1935, capa; "SME. Inauguração da nova sede", Revista Mineira de Engenharia, n. 4-5, abr-mai 1935, p. 141. Situado na rua Ceará, esquina com Domingos Viera. Cf. "Os tuberculosos indigentes vão ter o seu hospital", Estado de Minas, 31 jul 1934, p. 5. Projeto a ser construído "à rua Joaquim Murtinho, fim da rua Rio de Janeiro". Revista Mineira de Engenharia, n. 1, jan 1935, p. 34. Situado à rua Tupinambás esquina com Curitiba. Ver Revista Mineira de Engenharia, n. 15-16, ago-set 1939, p. 77. Situado à rua Carijos esquina com São Paulo, atualmente Hotel Estoril. Situado na rua Acre, 107. Revista Mineira de Engenharia, n. 15-16, ago-set 1939, p. 74. "A inauguração ontem do Armazem Dragão", Estado de Minas, 30 out 1934, p. 5.

271

disso, diferencia-se por um tratamento plástico caracterizado pela composição de planos elementares e pela ausência de elementos decorativos sobrepostos, bem como na leveza através de largas aberturas - alinhado ao racionalismo purista das vanguardas da Arquitetura Moderna. Sua fachada manifesta a natureza do edifício como um empilhamento dos andares semelhantes, marcados por um ressalto colorido, não apresentando elementos de ênfase vertical ou coroamento, característico da monumentalidade clássica, presente também no art deco. Uma outra obra do mesmo arquiteto, a Casa de Saúde São Lucas (Ângelo Murgel, 1939) apresenta a mesma opção pela composição com volumes elementares e desprovidos de ornamentos, rasgados por largas aberturas contínuas, característico do racionalismo purista. No contexto da arquitetura de Belo Horizonte, estas obras de Ângelo Murgel podem ser consideradas as mais próximas das propostas das vanguardas arquitetônicas da Arquitetura Moderna. Contudo, predomina no conjunto do edifícios da década de 30 e mesmo na década de 40 a opção por composições de inspiração art deco, em suas diversas tendências, ou composições onde, a despeito de um certo dinamismo nos jogos de volumes, persiste um certo caráter do monumentalismo classicista, através da simetria, da predominância dos elementos de massa sobre as aberturas e da utilização de coroamentos. Os primeiros edifícios que ultrapassavam o patamar predominante dos sobrados e palacetes, mesmo que ainda não atingissem grandes alturas e fossem, pelo menos até o final dos anos 30, em pequeno número, eram freqüentemente evocados como sinal de progresso da cidade. Amplamente louvados e até considerados como exemplo máximo "de beleza e de conforto da civilização"128, os arranha-céus despertavam, contudo, preocupação em observadores mais perspicazes, que previam as consequências de sua 128

"Inauguração da nova sede da Sociedade Mineira de Engenheiros. O discurso do dr. Américo Giannetti [presidente do Estado de Minas Gerais]", Revista Mineira de Engenharia, n. 4-5, abrmai 1935, p. 141-8.

272

disseminação sob as condições permitidas pelo regulamento das construções após 1933. Em 1938, quando despontavam os primeiros arranha-céus em Belo Horizonte, o articulista da coluna "A Cidade" alertava: são construções que, logo se vê, se surgirem outras igualmente altas ao lado, ficarão completamente às escuras. Porque não se afasta, com exigências perfeitamente cabíveis numa cidade modelo e que se preze de modelar, para mais tempo e melhor oportunidade, essa vaidade de possuirmos também os nossos arranha ceuzinhos?129

O "professor Morales de los Rios", em visita a Belo Horizonte em 1937, elogiou a transformação da cidade desde os anos 20, mas manifestou suas reservas quanto aos arranha-céus. Se por um lado a recomendava a industrialização da "Belo Horizonte Maior", em um setor separado do núcleo urbano, Morales de los Rios defendia a manutenção da feição original da capital. Considerando que esta era uma "cidade ampla e com largas possibilidades de aumento, seus edifícios não necessitarão, nunca, de se elevar muito acima do solo em deselegantes arranha-céus", sugeria "que se proibisse a construção de arranha-céus e obrigasse a conservação do estilo barroquino predominante nas edificações urbanas.130 A

despeito

destas

manifestações,

a

verticalização

dos

edifícios

construídos a partir do final da década de trinta se impôs e os mesmos eram freqüentemente tomados como sinal do progresso da cidade - como vimos nos textos publicados no Cinquentenário (1947). A seguinte descrição da "fisionomia dinâmica de uma metrópole moderna que progride e cresce em todos os sentidos", publicada em 1939, resume diversos lugares-comuns sobre os

129 130

Folha de Minas, 04 ago 1938, p. 3. Morales de los Rios,"Críticas e observações sobre Bello Horizonte", Estado de Minas, 29 jan 1937, p. 4 [entrevista]. Não é apresentado dados biográficos sobre o entrevistado, nem seu nome completo, apenas mencionando seu "vasto cabedal técnico-profissional e cultural" e seu empenho na conservação do patrimônio histórico arquitetônico. Pode-se supor que o entrevistado seja o arquiteto Adolpho Morales de los Rios - autor do projeto da Escola de Belas Artes (1908) e de outras edificações oficiais no Rio de Janeiro do início de século e ainda de trabalhos acadêmicos sobre teoria da arquitetura - mas pode-se tratar de um homônimo.

273

arranha-céus e sobre a transformação da capital numa "grande metrópole", nos finais dos anos 30 e nos anos quarenta. Aqui e ali, são arranha-céus colossais que se erguem ameaçadores e convictos para os céus; acolá, bairros, vilas, luxuosos e confortáveis, estendendo nos horizontes a figura hercúlea mas graciosa da cidade-menina; e através dessa realidade de tijolo ou cimento armado, a paisagem humana se agitando, se agigantando na vida das multidões apressadas em busca do trabalho ou no barulho infernal dos motores fazendo ressoar nos granitos da serra o ruído autêntico de uma metrópole grandiosa dos nossos dias.131

4.2. A "grande metrópole" no anos 1940 Durante os 2 anos de administração do Prefeito José Osvaldo de Araújo [1938-40], o engenheiro Lincoln Continentino, professor de Saneamento e Urbanismo da Escola de Engenharia da Universidade de Minas Gerais e consultor técnico da Prefeitura, foi encarregado da elaboração de um "plano de urbanismo da cidade"132. Ainda que apresentado sob a forma de "ante-projeto" , devido ao fato de não estar então concluída a planta cadastral da cidade, o plano foi "baseado em estudos meticulosos do terreno e levantamentos parciais de áreas reservadas às obras mais importantes", e continha um conjunto sistemático de diretrizes. A gestão seguinte, embora não tendo assumido formalmente este plano, orientou-se esta por algumas de suas diretrizes, ainda que muitas outras proposições foram abandonadas, principalmente as relativas a uma extensa remodelação do sistema viário. Este plano tinha um caráter de uma minuciosa reforma da cidade, porém sem grandes alterações de sua estrutura geral. 131

"O que em um decenio de vida fez a Cia. Força e Luz de Minas Gerais", Revista Mineira de Engenharia, n. 15-16, ago-set 1939, p. 13-27. 132 "Plano de urbanização de Belo Horizonte. Conferência realizada no 1º Congresso Brasileiro de Urbanismo [Rio de Janeiro]", Revista Mineira de Engenharia, n. 25-26, mar-abr 1941, p. 4159.

274

Uma postura que norteava o plano era "a centralização da cidade dentro do perímetro atual", recomendando que "não fossem mais aprovados novos projetos de subdivisão de terrenos, fora deste perímetro", pois a baixa densidade populacional da cidade não justificava a expansão, que acarretaria dispendiosas obras de urbanização. Dentro deste perímetro o plano de Continentino propunha uma ampla reforma do sistema viário, incluindo as vias férreas. Um "Plano das grandes avenidas", ligando a zona urbana com a suburbana e cidades vizinhas configurava "um sistema de artérias radio-concêntricas, distantes entre si cerca de 1 Km, prolongando-se algumas das radiais da cidade e projetando-se uma segunda periférica, envolvendo a avenida do Contorno"133. O sistema ferroviário foi objeto de uma proposta de grande envergadura, objetivando, ao longo de duas etapas, a transferência das linhas férreas superficiais do centro urbanos para a periferia, onde seria localizando terminais, conectados a um sistema de trens eletrificados, "de preferência, por linhas subterrâneas", ou "passando por cortes em caixão", sendo previstos, na primeira etapa, dois túneis sob a Praça da Lagoinha e sob as ruas Contagem e Conquista. A estação de passageiros continuaria no mesmo local, porém substituída por um outro prédio maior, "em estilo norte-americano", com fachada 133

Foram propostos pelo plano de Continentino: 1) Prolongamento da Avenida Amazonas; 2) Prolongamento da Avenida Afonso Pena, atravessada a Serra do Curral por um túnel de 2 quilômetros para ligação com a cidade de Nova Lima; 3) Prolongamento da Avenida Brasil, além da Praça Floriano Peixoto, incluindo um viaduto de 100 metros de comprimento sobre a Avenida dos Andradas e o leito da estrada de ferro Central; 4) prolongamento da Avenida Tocantins, na qual já havia sido recentes reformas visando diminuir a inclinação de um trecho; 5) Prolongamento da Avenida dos Andradas, marginal ao Ribeirão dos Arrudas, "uma avenida-parque (parkway), pondo em ligação vários parques"; 6) alargamento e prolongamento da Avenida Pedro II e remodelação da Praça da Lagoinha: a via férrea, ao cruzar a esta avenida, passaria por um túnel na Praça da Lagoinha; 7) alargamento e prolongamento da Avenida Pedro I (atual Antonio Carlos) e "capeamento do Ribeirão dos Arrudas, por trás da Feira de Amostras"; as duas últimas Avenidas ficariam "ligadas entre si e com a Avenida Afonso Pena, pelas ruas Acre e Tiradentes, alargadas, e pelo prolongamento da faixa central da Avenida Afonso Pena, através da Feira de Amostras, cujo prédio central ficará vazado em um arco central de 17 metros de vão, ao nível do arruamento"; 8) Circuito do Turismo, ou 2ª avenida periférica, "passando por vários pontos dominantes [altos] da cidade, que apresentam perspectivas surpreendentes"; 9) Avenida Renascença, uma nova "auto-estrada radial" passando pelas vilas Concórdia, Renascença, em direção à cidade de Santa Luzia e o norte do Estado; 10) Avenida Silviano Brandão, então já em execução; 11) Avenida Santa Tereza [atual Francisco Sales] ligando as Avenidas Tocantins e Brasil, com um "viaduto sobre a Avenida dos Andradas e sobre as linhas férreas da Central".

275

para a Praça da Estação e para a rua posterior, num nível superior, interligando duas regiões isoladas pelas linhas férreas - como ainda hoje - já que as linhas subterrâneas passariam sob a imensa estação. Quanto ao transporte intraurbano, a preferência é pelos ônibus, situando a sua estação nas vizinhanças da Feira de Amostras, "junto à grande radial [Av. Afonso Pena] e à avenida periférica [Contorno]". O plano previa também uma "reforma dos arruamentos existentes", principalmente dos arruamentos não edificados, buscando imprimir nos bairros o "caráter de cidade celular", provendo-os de serviços urbanos de modo a tornálos independentes do centro. Delimitava-se também o estabelecimento de um "zoneamento", marcado pela especialização de áreas em usos restritos (zona comercial, industrial, hospitalar, residencial e parques), prevendo também "zonas de transição" ou "mistas". Um novo bairro, dentro dos princípios do urbanismo moderno, principalmente em sua vertente norte-americana, reunia as condições ideais das células imaginadas pelo urbanista, a "Cidade Jardim Fazenda Velha": Em terrenos adquiridos do Ministério da Agricultura, situados no limite da zona urbana, com uma frete de cerca de 500 metros para a avenida do Contorno, [...] provida de um parque local, atravessado pelo córrego do Leitão, [...] e envolvendo a sede da Fazenda Velha, único prédio remanescente do antigo arraial. Os lotes subdivididos tem 1000 m2 de área [...]. Os prédios serão recuados de 10 m [...]. não será ali permitida a vedação dos terrenos por muros divisórios. [...]. Quando os fortes acidentes naturais não permitiam o traçado de quarteirões retangulares longos e de profundidade reduzida [considerados ideais], as áreas em excesso, dos fundos dos lotes foram reservadas para pequenos partes interiores.134

A proposta, que consistia numa série de "melhoramentos a serem executados dentro de um período de largos anos", apresentava-se circunscrita a um perímetro bem delimitado e estruturada como uma unidade, formada por partes distintas e caracterizadas funcional e formalmente, porém contíguas e articuladas às grandes avenidas. Visava reformar a cidade, no sentido da 134

Idem, p. 51.

276

unificação de suas partes, projetando uma estrutura global e integrada pelas vias radiais e periféricas, buscando corrigir as falhas da zona suburbana, que "cresceu tumulturiamente, sem plano de conjunto", com loteamentos que "não levavam em consideração a sua ligação satisfatória com o centro urbano". A figura da cidade projetada é a de uma totalidade coesa, à qual se subordinava os diversos melhoramentos propostos. Pode-se concluir que o plano de Continentino visava uma nova Planta Geral da Cidade, no momento em que a delineada por Aarão Reis atingia os seus limites. Diferindo desta última quanto ao desenho urbano - ou seja, adotando um traçado mais preocupado com a adequação às condições topográficas e com os problemas de circulação dos meios de transporte - o Plano Urbanístico de Continentino mantém a estrutura da cidade nuclear e delimitada por uma forma total, buscando imprimir a esta figura um alto grau de coesão e articulação entre as partes. A gestão seguinte, ainda que adotando algumas das proposições do Plano de Continentino - e introduzindo outras - não levou adiante o caráter sistemático do plano, concentrando-se sobretudo em obras isoladas e que resultassem em maior visibilidade. Quanto ao sistema viário, implementou a abertura das avenidas, já previstas e mesmo iniciadas anteriormente, porém excluindo aquelas que implicavam em alterações do traçado existente e em desapropriações, bem como excluindo os viadutos e túneis. Adotou, contudo, como fundamento de suas ações, a necessidade preconizada por Continentino de expandir as avenidas arteriais.

Resumindo sua gestão na prefeitura, em

discurso de 1952, já como governador do Estado, JK atribuiu-se a realização de uma profunda modificação da capital: o meu programa foi, sobretudo, procurar realizar aquela antevisão do futuro que já enchia os meus olhos no primeiro contacto com a Capital. Para isso, foram rasgadas avenidas até então limitadas ao seu perímetro urbano, prolongando-as para muito além das áreas habitadas, como raios gigantescos que se projetassem para demarcar um círculo várias vezes maior do que aquele em que se continha a cidade, num convite permanente, num aceno, num desafio para 277

que Belo Horizonte os acompanhasse até lá; procedeu-se à urbanização da Pampulha, com edifícios e instalações que se constituíram num motivo de atração turística e cultural, não só para dar ao nosso povo um centro de recreio e repouso, como para prender a atenção dos visitantes; foram pavimentadas as nossas amplas e extensas vias públicas, forrando-se de asfalto, pedra e cimento as ruas poeirentas de outrora, conferindo-se à cidade as louçanias da limpeza e da boa aparência que completam o quadro encantador de sua paisagem urbana e de seu clima135.

Para JK - rememorando em suas memórias o período em que assumiu a Prefeitura da cidade - "em 1940, apesar do seu extraordinário desenvolvimento, ela ainda era uma cidade do interior" e foi sua meta prepará-la para "o novo ciclo do progresso que se anunciava": A era rodoviária iria requerer uma rede de estradas de rodagem e estas deveriam ter por base a nova capital. Impunha-se, pois, a preparação, com antecedência, dos indispensáveis terminais - ou bocas, como então eu as chamava - a fim de que, no devido tempo, se processassem, com facilidades, as necessárias conexões.136

Suas realizações não atingiram o caráter sistemático que caracterizava o Plano de Continentino, tomando mais a forma de intervenções fragmentadas do que de uma reforma estrutural. Inaugurando a avenida do Contorno, praticamente pronta ao assumir a Prefeitura, JK executou logo no início de seu governo o asfaltamento da avenida Afonso Pena, a renovação do calçamento da zona urbana, com grande utilização do pavimento asfáltico e o prolongamento da avenida Amazonas até a Gameleira. Com o aumento dos recursos tributários advindos da regularização de grande número de imóveis após a conclusão do censo imobiliário da cidade - iniciado na gestão Negrão de Lima - o prefeito levou adiante a "abertura das radiais", ou seja, as avenidas "Amazonas, da Pampulha, Silviano Brandão, Pedro II, Francisco Sá e Teresa Cristina - que seriam as saídas, ou as bocas, que iriam fazer a ligação de Belo Horizonte com 135

"Ao visitar a Câmara Municipal de Belo Horizonte, a 8 de agosto de 1952". In: Kubitschek, Juscelino. Realidades, Perspectivas: Quatro anos no Governo de Minas. Belo Horizonte: Secretaria da Educação de Minas Gerais, 1955, p. 138-9. 136 Kubitschek, Juscelino. A escala política. Rio de Janeiro, Bloch, 1976, p. 20.

278

as diferentes regiões do Estado". JK pleiteou como sendo sua a iniciativa destas obras, bem como diretriz de abertura da cidade às ligações rodoviárias, porém, como vimos, elas já eram antes objeto de planos e iniciativas anteriores, ainda que foi sob a gestão do então chamado "prefeito-furacão" que elas tomaram um impulso maior. Por outro lado, notamos que a imprensa da época atribuía ao governador do Estado, Benedito Valadares, um grande papel na remodelação verificada entre os anos 30 e 40. A "remodelação do centro urbano, com o asfaltamento de suas principais vias públicas e a modernização dos serviços correlatos de água, luz, esgoto e telefone" foram para JK outras "metas prioritárias"137. O prosseguimento do asfaltamento das vias urbanas tomou grande impulso no governo de JK, e segundo a imprensa da época, Belo Horizonte "passou então a ser apontada como a "Cidade do Asfalto"138. Além das obras no centro urbano, a zona suburbana necessitava de ter seu crescimento ordenado. Segundo JK, "A cidade precisa respirar. Adquirir seus próprios pulmões. Lembrei-me então da Pampulha". Rejeitando a proposta do urbanista francês Agache, consultado pelo prefeito, de fazer na região uma cidade-satélite voltada para o abastecimento do capital, JK pretendia, segundo relatou em suas memórias, Qualquer coisa diferente de Belo Horizonte, capitalizando em benefício do plano a ser executado a beleza do cenário, com a formação de um grande lago artificial, rodeado de residências de luxo, com casas de diversões que se debruçassem sobre a água. Agache inclinava-se para o utilitarismo. Mas meu pensamento era lírico: a natureza transformada em fator de plenitude espiritual, a serviço da comunidade139.

Para a barragem da Pampulha iniciada por Negrão de Lima, JK imaginou "criar um centro de turismo e, ao fazê-lo, emprestar uma ressonância de poesia à iniciativa municipal". Se a idéia de fazer do local um "bairro de recreio" já

137

idem, p. 31. "Belo Horizonte de 1933 - Belo Horizonte de 1943. Calçamento por toda a cidade", Folha de Minas, 12 dez 1943, p. 1. 139 Kubitschek, op. cit., 1976, p. 31. 138

279

existia desde a origem da obra, em meados dos anos 30, JK a revestiu de um propósito maior: caracterizá-la com as "novas formas de estética" advindas com a "revolução iniciada por Le Courbusier". Os resultados de um concurso inicial não agradaram ao prefeito: "eram quase todos no estilo convencional, segundo os padrões dos edifícios públicos", ou seja, de fundamentos neoclássicos, e alguns em "estilo normando". O encontro com Niemeyer é narrado pelo prefeito como se acontecesse quase por acaso, ainda que este já tivesse de empreendimentos públicos, como

o Hotel de Ouro Preto, realizado pelo

governador Valadares, e o pavilhão brasileiro da Exposição de Nova Yorque, além de uma participação no projeto do Ministério da Educação. Em uma visita ao local, o prefeito expôs "a idéia que tinha em mente": construir, "ao longo das margens do futuro lago", edifícios de caráter turístico, além de uma igreja - obras a ser realizadas pela prefeitura. "Depois, surgiriam as ruas. Plantar-se-iam árvores. Construir-se-ia uma auto-estrada, ligando a Pampulha a Belo Horizonte"140. Estes edifícios - o Iate Club, o Casino, a Casa de Baile, a Igreja, e ainda um hotel - seriam pontos de referência e atração para a urbanização do local, para a qual, o prefeito contando com terrenos já desapropriados no local, fez um acordo com uma Construtora. A "paisagem espiritual" do lago seria um cenário adequado ao "conjunto arquitetônico concebido de acordo com a estética moderna", que constituíra a "paisagem social", cumprindo o objetivo de "solucionar o problema do fim-de-semana dos belo-horizontinos"141. Vale observar que não houve propriamente um plano de urbanização definido pela prefeitura, e a regulamentação da "subdivisão de terrenos e construções na Pampulha" foi feita apenas em 1947142. A obra teve rápido andamento, e em 1943 o Casino, o Iate Club e a Casa do Baile foram inauguradas oficialmente. A Pampulha era saudada como o 140

Idem, p. 34-7. Idem, p.46 142 Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Decreto-Lei n. 2030-A, de 18 de janeiro de 1947, Dispõe sobre subdivisão de terrenos e construções na Pampulha. Coletânea da legislação sobre construções, s/d, p. 116. 141

280

"Marco de um novo ciclo urbanístico de Belo Horizonte" e já considerada "um formidável núcleo em expansão"143. Não se poupavam elogios ao "centro continental de turismo", "o mais completo e belo do Brasil"144, com o qual JK "colocou a capital no mapa como centro do maior conjunto de arte moderna do país, ou melhor do mundo". Considerava um artigo da época que se o "desenvolvimento material sempre se verificou na capital", abria-se então o campo da "cultura artística e intelectual"145. Além da Pampulha, iniciava-se a "construção do imenso e moderníssimo teatro, no recinto do Parque Municipal", também projetado (inicialmente) por Oscar Niemeyer, que prometia ser outro "verdadeiro monumento da moderna arte arquitetônica"146. O apoio de JK à arte moderna brasileira rendeu-lhe, além da imagem do prefeito "em dia com a vida"147, o vínculo a uma obra que despertou grande atenção internacional para a arquitetura moderna brasileira, principalmente por seu uso inovador da forma livre. As intervenções da prefeitura na urbanização de novas áreas não se limitaram à Pampulha. Como justificava JK, "a atenção que demos à criação do bairro residencial da Pampulha tinha de ser contrabalançada, em respeito à própria função social da Administração, com o estudo e a solução do problema dos bairros populares, [...]"148. Segundo uma reportagem na época, o prefeito "compreendendo as necessidades de uma grande metrópole, como a capital, quis que nossa favela desaparecesse". Ainda segundo a mesma, "o sr. Juscelino Kubischeck, como médico e como administrador que não despreza a ordem, porque ela é companheira do progresso, verificou a necessidade de acabar com a Pedreira", decretando a "extinção daquele foco de doenças e malandragem" como era descrito o local conhecido por Pedreira Prado Lopes. Procedendo a

143 144 145 146 147 148

"Pampulha ", Revista Mineira de Engenharia, n. 39, set 1943, p. 20-1. "O aniversário de Belo Horizonte", Belo Horizonte [revista], n. 148, jan 1943. "Belo Horizonte é um convite ao turismo", Belo Horizonte [revista], n. 166, jul-ago 1944. "Belo Horizonte de 1933- Belo Horizonte de 1943", Folha de Minas, 12 dez 1943, p. 2. Crítica, 17 jun 1945. "Belo Horizonte de 1933- Belo Horizonte de 1943", Folha de Minas, 12 dez 1943, p. 2.

281

extinção da referida favela, a prefeitura promoveu no local, em convênio com o IAPI, a construção de um "Bairro Popular" - o primeiro empreendimento deste gênero em Belo Horizonte a utilizar dos blocos verticais de apartamentos, pois as iniciativas anteriores de construção de "Vilas Operárias" se limitavam à venda facilitada por aforamento de terrenos. Onde existiam 483 "cafuas", com uma população de cerca de 3.000 pessoas, serão construídos onze edifícios de cinco pavimentos cada um, destinados a apartamentos para os industriários, servidores da Prefeitura e outras classes. Ligados entre si por passagens semelhantes a pontes, os edifícios formarão um bloco, subdividido em lojas e apartamentos a serem alugados [...]. Ao todo serão 834 apartamentos, com capacidade prevista para 5.000 pessoas.

Além deste "Bairro Popular", foi projetada uma "Vila Operária, com capacidade para 4000 pessoas", com 683 lotes destinados a residências individuais, sendo que "todos aqueles que tinha 'cafuas' na pedreira receberam da municipalidade um lote" nesta Vila Operária - então denominada "Mato da Lenha" (atual bairro Salgado Filho). Assim, para substituir a Pedreira, cuja extinção era uma imposição da moral e das leis de Saúde Pública, organizam-se o Bairro Popular e a Vila Operária. O Bairro Popular está próximo do centro, enquanto que a Vila tornará fácil aos seus habitantes trabalharem na grandiosa realização do governador Benedito Valadares - o Parque Industrial do Ferrugem [Contagem], pedra angular do progresso econômico de Minas149.

Outras obras de urbanização foram promovidas por JK: na Área Urbana delimitada pela avenida do Contorno,

urbanizou o último trecho que ainda

restava da área de reserva definida pela Planta Geral de Aarão Reis, próximo ao bairro de Lourdes, dando origem ao bairro Santo Agostinho; na zona suburbana, na região Sul, urbanizou a Cidade Jardim e ainda o bairro Sion, nas imediações da avenida do Contorno. Eram novos bairros destinados às classes média e alta, com padrões urbanísticos semelhantes aos adotados nos Estados Unidos nos

149

"Desaparece a pedreira para dar lugar a um moderno bairro", Folha de Minas, 12 dez 1942, p. 7.

282

subúrbios, caracterizados por residências individuais em lotes de frente larga e menor profundidades, com amplos jardins frontais - ao contrário do padrão dos lotes urbanos brasileiros, inclusive os da Zona Urbana de Belo Horizonte, de frente estreita e de grande profundidade, ocupados pela residência próxima da rua e com quintais ao fundo. Tratava-se de uma proposta que já constava do plano de Continentino, mas JK atribui a idéia a si próprio, assim como suas demais realizações: decidi dotar a cidade de um bairro modelo - uma experiência de conúbio das vantagens da vida rural com as facilidades urbanas. Seria a Cidade-Jardim uma área privilegiada, com as residências sombreadas por árvores e situados no centro dos respectivos terrenos, sem divisas asfixiantes. [...]. Escolhi um grande terreno, [...] e dada a extensão da área, fixei em mil metros quadrados a metragem de cada lote. Essa idéia, eu a guardava comigo, para só ser executada mais tarde, quando a Cidade-Jardim já estivesse urbanizada. Em fins de 1943, dei início a todas essas obras.150

Ainda que urbanizado dentre destes princípios, o bairro Cidade Jardim só teve sua regulamentação relativa às construções em 1948, cujas exigências também atingiam o bairro Sion - marcadas sobretudo por grandes afastamentos em relação a via e as divisas e pela limitação da ocupação do lote pela construção151. Assim como as demais empreendimentos de JK, a Cidade Jardim não era uma idéia nova, já constando no Plano Continentino. A despeito destes empreendimentos já terem suas bases lançadas anteriormente, suas realizações ficaram associadas, até mesmo na historiografia recente, à gestão do Prefeito JK. Uma das razões para isto deve-se ao fato de eles terem sido efetivamente empreendidos na sua gestão - ainda que nem sempre de forma plena. Outro razão a considerar deve-se ao fato de terem se concentrado sobre obras

150 151

Kubitschek, op. cit., 1976, p. 52-3. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Lei n. 39, de 30 de julho de 1948, Estabelece normas para a construções em bairros residenciais. Coletânea da legislação sobre construções, s/d, p. 126. Em 1951, o bairro Sion ficou excluído destas exigências, pela Lei n. 220, de 24 de julho de 1951. [idem, p. 130]

283

localizadas e de grande visibilidade, que ganharam grande destaque pela introdução de novos modos de construção urbana e arquitetônica, associados à arquitetura moderna. Observando as realizações urbanísticas da gestão de JK na prefeitura, verificamos algumas que cumpriam certas diretrizes já estabelecidas e mesmo em execução anteriormente, tais como o asfaltamento da área urbana e a abertura das avenidas radiais. Contudo, estas avenidas foram realizadas sem grandes obras de engenharia viária, como os viadutos que eram previstos em grande número no Plano Continentino - alguns dos quais foram empreendidos nas administrações posteriores. Foi dada a preferência à abertura de avenidas em áreas de ocupação pouco densa, evitando-se intervenções de alto custo em regiões mais consolidados, como foi o caso da avenida Pampulha [atual Antônio Carlos], que embora projetada com grande largura no trecho em que passava por uma região desocupada, manteve uma menor largura onde cruzava uma região de ocupação mais definida, evitando-se assim os custos com desapropriações.

Uma

grande

fonte

para

estes

empreendimentos

foi

regularização de muitas construções clandestinas, aumentado assim a massa de contribuintes. Já as obras como a Pampulha, o IAPI e a Cidade Jardim foram realizadas

em

acordo

com

empreendedores

privados

ou

associações

corporativas (no caso, o IAPI), entrando a Prefeitura com o projeto e com o terreno ou com os instrumentos institucionais para obte-lo, e os parceiros com os recursos financeiros, ou pelo menos boa parte deles152. Outra importante realização urbana nos anos 40 foi a implementação da Cidade Industrial, uma iniciativa do governo do Estado. Concebida como uma cidade-satélite próxima a Belo Horizonte, com capacidade para instalação de grandes indústrias, seu traçado expressa a intenção de estabelecimento de um novo centro funcional, desvinculado do traçado nuclear da capital.

152

Pelo que se pode concluir das declarações de JK, bem como de notícias veiculas pela imprensa da época, que contudo não entram em maiores detalhes sobre o assunto.

284

Analisando o processo de planejamento da urbanização de Belo Horizonte desde os anos 30 até a gestão de JK, uma característica desta última parece-nos bem marcante. Até esta, a questão era dotar a expansão suburbana, que se fazia de uma forma considerada desordenada, de uma racionalidade análoga e complementar à estrutura definida pela Planta Geral. Vimos que o Plano de Continentino procurava ordenar a ocupação suburbana segundo a figura da cidade como uma estrutura global e coesa, buscando intensificar sua ocupação e dotá-la de dispositivos que aumentasse a velocidade e a capacidade do tráfego. A ocupação além do núcleo central seria ordenada por um sistema radial fortemente articulado ao primeiro, o qual, juntamente com a reforma geral dos arruamentos, possibilitaria uma ocupação mais densa em todos as direções. Neste sentido, o zoneamento mantinha e acentuava as características da ocupação existente, enquanto às grandes avenidas caberia o papel de articular as diversas células ao núcleo central. Ainda que composta de partes distintas quanto às funções, ao traçado e modos de edificação e à classe social de seus habitantes, a cidade era concebida como um conjunto marcado pela contigüidade de suas partes, procurando-se evitar a expansão e estimulando-se uma ocupação mais densa e circunscrita a um perímetro delimitado. Estas orientações parecem pois convergirem para incorporação das diversas partes da cidade -

a "zona urbana" e principalmente as diversas regiões da "zona

suburbana", então caracterizada por uma ocupação descontínua - em uma figura urbana marcada pela unidade e pela síntese. O propósito de reforçar a estrutura da cidade permaneceu ao longo da gestão de JK, porém sem a intenção de estabelecer coesão e contigüidade entre as partes, como pretendia o plano de Continentino. Além disto, ganhou prioridade o aumento do perímetro da cidade, abandonando-se o propósito de delimitá-lo e de estimular uma ocupação mais densa em seu interior. O interesse 285

deixou de ser a reordenação da área já ocupada e passou aos novos pólos de ocupação externos à cidade propriamente dita, ou seja, a Cidade Industrial e a Pampulha. A ênfase na função das avenidas passou a ser mais a de ligação destes pólos com a cidade do que de uma ordenação da ocupação da região periférica mais próxima, que não sofreu intervenções no seu traçado viário. Além de abrir, com a Pampulha, um setor de ocupação externo ao conjunto nuclear e hierárquico da "área urbana" e "zona suburbana", a ação do prefeito abandona o propósito de uma reordenação total da cidade, concentrando-se em algumas intervenções localizadas e caracterizadas por uma grande diferenciação em relação ao entorno, bem como por padrões urbanísticos ou arquitetônicos claramente reconhecidos como modernos. Abrem pois uma ruptura na figura da cidade enquanto uma totalidade coesa e produto de um desenvolvimento contínuo e passam a constituir uma metrópole formada pela colagem de espaços funcionalmente especializados. A nova imagem urbana que emerge das intervenções urbanísticas de JK define a capital como uma constelação de fragmentos diferenciados, como um conjunto de várias "cidades" distintas e claramente especializadas. Conforme se anunciava em 1943, Belo Horizonte Dentro em breve será ainda maior. A Cidade Turismo, que é esse maravilhoso bairro da Pampulha, aí já está como a realização urbanística mais harmoniosa e encantadora, atingindo milhares de visitantes. Já se concluem as obras da Cidade Industrial, que lhe dará punjante substância econômica e humana. Já se iniciaram os trabalhos de construção da Cidade Universitária, que será o maior centro educacional, cultural e científico do país. E já se ultimam os planos finais para a grande área residencial que será a Cidade Jardim, para a nova área que será a Cidade Saúde, e para a área residencial operária. Cidade Turismo, Cidade Universitária, Cidade Industrial, Cidade Operária, Cidade Saúde, Cidade Jardim, tudo isso serão satélites, em torno do movimentado centro urbano, a compor o conjunto de uma metrópole erguida no coração de Minas153.

153

"Belo Horizonte de 1933 - Belo Horizonte de 1943", Folha de Minas, 12 dez 1943, p 1.

286

Se o processo de "remodelação" da capital pode ser datado do começo dos anos 30, coube a JK consolidá-lo e principalmente dar-lhe visibilidade, com a conclusão da urbanização da área urbana, a implementação das avenidas radiais e a promoção da expansão urbana. Além disto, a gestão de JK coincidiu com a definitiva modificação dos padrões de edificação da área central, com a proliferação dos edifícios de vários pavimentos ocorrente a partir da década de quarenta. Este processo não coube diretamente à sua gestão, mas somado as obras do prefeito constituiu-se em elemento importante na caracterização da imagem da cidade como uma grande metrópole. Além da expansão urbana impulsionada pelas novas avenidas e bairros, os arranha-céus eram outro aspecto freqüentemente evocado como demonstração do progresso da cidade nos anos 40 . Alguns edifícios com mais de dez pavimentos já haviam sido construídos desde a metade dos anos trinta, mas foi a partir dos anos quarenta que se dissemiram na área central, tanto os prédios de escritórios como de apartamentos. Contudo, a ocorrência dos arranha-céus não foi acompanhada de uma aumento geral das atividades de construção de edifícios no período, sendo portanto questionável falar-se de um surto de construções, como propalavam muitos artigos da época - e mesmo alguns estudos sobre o período, baseado nestes artigos. Como observava um artigo de 1945, baseado em dados do Departamento Estadual de Estatística sobre o movimento de construções na capital durante os anos de 1939 a 1944, ocorreu neste período uma drástica diminuição do número total das construções bem como da área construída total. Segundo estes dados, o número de construções (prédios novos mais acréscimos e modificações) em 1939 havia sido 1823 e em 1943, 706, ou seja, 39% do verificado no primeiro ano; além disto, o número de prédios novos havia caído, ao longo do mesmo período, de 835 para 310 e a área construída de 188.410 m2 para 47.683 m2, ou seja, a área construída durante o ano de 1943 havia sido apenas 25 % da verificada em 1939. 287

A razão apontada era as consequências da Segunda Guerra, tornando caros e escassos os insumos importados: Se construíamos antes da guerra cerca de dois mil prédios por ano, atendendo ao reclamos de nosso vertiginoso crescimento, é fácil calcular-se o que significou para nós o colapso, quase instantâneo que o movimento das construções sofreu, em virtude das dificuldades de material e do alto preço por este, quando existe, é cobrado154.

Observava o artigo que, a despeito disto, observava-se a "preferência da cidade pelos grandes edifícios", pois o "crescente desenvolvimento econômico da cidade" aumentava a demanda por habitações e estabelecimentos de serviços, que era melhor atendida, segundo o articulista, por prédios de apartamentos e de escritórios. Pode-se supor também que a ocorrência de um surto de grandes prédios, num momento em que declinava o volume total das construções, tenha sido consequência de uma maior concentração de capital em grande empresas e que também estas teriam maior facilidade de compra dos materiais de construção. De fato, alguns dos mais expressivos e monumentais arranha-céus, destinado a escritórios foram construídos na primeira metade dos anos 40, como o Sulacap (Roberto Campello, 1941)155, o Acaiaca (Luís Pinto Coelho, 1943 46)156, o Mariana (1940-42)157, e ainda o edifício do Banco do Brasil (Rafaello Berti, 1942)158. Além destes, inicia-se neste período a construção de grandes edifícios de apartamentos, como o Randrade (Luís Pinto Coelho, 1941)159, o Tambau (Boltshauser, 1945)160 e o Indaía (Rafaello Berti, 1945)161. Este edifícios apresentam, de modo geral, a persistência da influência art deco, somada a

154 155 156 157 158 159 160 161

"Belo Horizonte era uma das capitais onde mais se construía antes da guerra", Folha de Minas, 11 fev 1945, p. 5. Situado à av. Afonso Pena, 981, entre rua da Bahia e Tamoios. Situado à av. Afonso Pena, esq. rua Espírito Santo e Tamoios. Situado à av. Afonso Pena esq. rua São Paulo. Situado à rua Espírito Santo, esq. rua Carijós. Situado à Pç. Raul Soares, esq. av. Augusto de Lima. Situado à av. Paraná, esq. rua Carijós. Situado à av. Bias Fortes, entre rua Santa Catarina e Pç. Raul Soares.

288

traços diluídos do Expressionismo (Acaiaca), do Purismo (Sulacap) e ainda, de modo geral, a presença de princípios compositivos clássicos, como a simetria, o esquema base-corpo-coroamento, bem como a ênfase da verticalidade. Vale aqui destacar os edifícios Sulacap e Acaiaca, por diversos motivos. Foram construídos em lotes onde existiam antes construções do período inicial da capital, o primeiro, onde se situava o prédio dos Correios, e o segundo, a Igreja Metodista. Sob o ponto de vista arquitetônico, estes dois edifícios resumem as duas principais tendências que caracterizam os demais. O Sulacap apresenta uma composição de grandes volumes cúbicos bem definidos, de superfícies lisas e pontuadas por janelas dispostas de forma uniforme e com total ausência de ornamentos. Pode-se reconhecer nele os de um classicismo moderno, com fortes influências da arquitetura italiana dos anos 30-40. É um edifício

bastante

elogiado,

ainda

atualmente

pela

crítica

arquitetônica,

principalmente pela relação estabelecida entre seus volumes e o pavimento térreo com o arruamento entorno. O edifício Acaiaca, em sua época o mais alto edifício da cidade, atingindo trinta pavimentos, apresenta em sua fachada, além da ênfase de suas marcações verticais, contrapostas aos planos horizontais das varandas, a figura de dois índios, de tamanho equivalente a dois pavimentos, numa alusão à uma episódio relativo a uma população indígena que habitava a região diamantinense (Minas Gerais). Segundo o autor do projeto, Acaiaca era, para estes índios, o nome de uma imensa árvore totêmica em que se concentrava os poderes da tribo162. Pode-se supor por esta alusão que pretendia-se com este edifício, tal como a árvore Acaiaca, um símbolo expressivo do poder do povo mineiro. O recurso decorativo inspirado em temas nativistas insere-se nas tentativas da década anterior de conferir identidade nacional à arquitetura brasileira, como no chamado estilo marajoara. O edifício mistura assim elementos de inspiração nativista como elementos de caráter futurista - tal como um grupo de pequenas 162

Entrevista com Luís Pinto Coelho, em 21 julho 1995.

289

torres cilíndricas totalmente em vidro, que dão continuidade, no alto do prédio, aos elementos verticais onde se moldaram os índios - refletindo, por um lado o sincretismo estilístico característico da época, e por outro lado, a total ausência da influência da arquitetura moderna construída na Pampulha por Niemeyer, derivada do racionalismo courbusiano e racicalmente abstracionista. Portanto, durante este período (1939-45), a exaltação das grande transformações e do propalado crescimento urbano da capital freqüente na imprensa deva-se, além do ufanismo e da celebração das obras realizadas pelos prefeitos, muito mais ao impacto causado pelos grandes edifícios, que alteravam a imagem da cidade do que a um efetivo crescimento da construções. Como o artigo acima mencionado observava: "nos último anos, mudou muito a fisionomia da cidade" em decorrência dos "prédios cujos tetos se elevam aos céus, numa expressiva demonstração da grandeza econômica e da força de realização da gente mineira"163.

Embora na década de quarenta a expansão da ocupação urbana, a ampliação da estrutura viária e a proliferação dos arranha-céus configurassem uma notável mudança na fisionomia urbana, examinando o processo de construção da cidade desde os anos 20, verificamos desde então uma contínua e gradativa transformação, de tal modo que ao longo destas três décadas não se pode falar de um momento de ruptura ou de drástica transformação da cidade. Em primeiro lugar, porque não houve um momento específico no qual se pode dizer que tenha se realizado a conclusão da execução do plano da Nova Capital, que além de ser implantado em etapas, não definia uma configuração definitiva e acabada da cidade. Em segundo lugar, o processo de construção da cidade, particularmente a partir da década de vinte, ocorre por contínua e sucessivas

163

"Belo Horizonte era uma das capitais onde mais se construía antes da guerra", Folha de Minas, 11 fev 1945, p. 5.

290

modificações, sob vários aspectos. A expansão periférica é um fato que já se observava desde a própria construção inicial da capital. A ampliação e a remodelação das estruturas viárias ocorre desde os anos 20, acompanhando ou sustentando a expansão suburbana e a modificação dos padrões de assentamentos da área urbana. Finalmente, os modos de edificação também sofrem de paulatinas modificações, desde as primeiras casas térreas e sobrados das primeiras décadas, passando pelos edifícios de até seis pavimentos nos anos vinte e trinta, até a ocorrência dos arranha-céus na segunda metade dos anos 30 e principalmente na década de quarenta. Portanto, a transformação e a remodelação da capital parecem se constituir, tanto nas práticas urbanísticas e de edificação, como nas imagens da cidade ao longo do período dos anos 20 aos anos 40, um processo contínuo e progressivo, sem contudo ser considerado uma ruptura ou deformação do plano inicial, mas como um desenvolvimento do mesmo - embora se considerasse que este desenvolvimento deveria se fazer conduzido por um novo plano de urbanismo da capital, que desse prosseguimento à obra inicialmente planejada.

291

Considerações finais

Recorrendo às imagens de Belo Horizonte em seu Cinquentenário, adotamos este momento como ponto de vista inicial de uma interpretação da construção da capital, celebrada então por sua condição de metrópole. Verificamos então, a par da percepção das transformações de seus papéis e de sua forma urbana, a afirmação da permanência de certos atributos definidos pelos desígnios e planos de sua fundação. Sob esta perspectiva, compreendiase aquelas transformações como um ciclo evolutivo inerente à concepção da capital enquanto destinada a uma evolução iniciada sob a marca de um planejamento racional. Buscamos então compreender como esta imagem da cidade em evolução, bastante viva por ocasião do Cinquentenário (1947) apoiava-se num referencial de permanência, ou seja no plano de construção da Nova Capital mineira. Ao fazê-lo, colocamos em questão a hipótese de que a ocupação e as transformações da cidade, principalmente após os anos 30, constituíram-se numa ruptura do seu plano inicial. Não pretendemos afirmar que o desenvolvimento futuro da capital estava previsto, nem que tenha se dado de acordo com este plano. Argumentamos que concepção deste plano, embora definisse uma ordem espacial hierarquizada e buscasse um rígido controle do crescimento inicial, continha em seus pressupostos a expectativa de uma evolução da capital e não o objetivo de estabelecer uma forma espacial absolutamente definida. Entendemos que foi justamente esta concepção que permitiu ou institui a imagem da cidade enquanto uma forma em metamorfose, que verificamos no Cinquentenário - e mesmo anteriormente. Buscamos pois apontar em que medida a concepção da Nova Capital, já desde a escolha de

292

seu local, pautou-se por uma perspectiva evolutiva da cidade, e não pretendeu definir a cidade de modo absoluto. Projetando uma cidade para o futuro, os planos da Nova Capital instituíram a imagem da cidade enquanto uma forma em transformação, embora mantida sob um princípio estrutural imanente, de caráter abstrato, que subsistiria às transformações da forma espacial de suas construções. Não sustentamos que foram estas diretrizes iniciais que determinaram o desenvolvimento futuro da cidade, mas que elas tornaram possível a instituição da imagem da cidade como uma obra estabelecida sob princípios ordenadores que conduziriam seu desenvolvimento futuro e lhe dariam uma legibilidade estável - e ao mesmo tempo como uma obra em transformação e em contínuo progresso, mesmo que a custa da sua própria "volubilidade fisionômica".

As avaliações sobre a mudança do papel da cidade, decorrente do empenho em sua industrialização, a partir dos anos 30, levaram-nos à investigação do papel que se atribuía à capital, seja no processo de decisão do local, seja no significado que a capital apresentava nos projetos de reorganização do território do Estado nos primeiros governos republicanos. Como notamos no Cinquentenário, eram freqüente as alusões à centralidade da capital no território do estado, ao seu papel de instauração e difusão de padrões civilizadores modernos, inicialmente como centro de poder político e cultural, e posteriormente, como polo de concentração comercial e industrial do Estado. Esta visão pode ser reconhecida na importância que o argumento da centralidade teve na escolha do local da Nova Capital. Embora seja temerário dizer que a posição geográfica de Belo Horizonte foi decisiva para sua escolha, este argumento tornou-se uma forte justificativa das vantagens deste local.

293

A centralidade do local - assim como sua salubridade - enquanto resultado de uma escolha racional, obtida por estudos técnicos e deliberações políticas, foi pois um dos elementos que caracterizaram a Capital como uma cidade planejada, com vistas a realização de um projeto a longo prazo, ou seja, a ordenação política do Estado e a implementação da civilização industrial, enquanto um processo evolutivo. Dentro da visão evolucionista de um progresso gradual, pautado na convicção de que transformações contínuas e graduais, de um estado simples para estados cada vez mais complexos, o estabelecimento de um centro político seria o primeiro passo para a execução de um longo projeto de reordenação econômica do Estado, que iniciando-se pela colonização agrícola, atingiria a extração de ferro e a industrialização, que teria como polo a capital. Num primeiro momento, a capital funcionaria como o "cérebro" do Estado, ou seja, como centro de administração política, e como "coração", ou seja, como centro de trocas das energias econômicas do Estado - segundo a metáfora utilizada pelo editorial do jornal A Capital, no dia da inauguração da Nova Capital mineira. Esta convicção evolutiva, fundada no positivismo, trazia implícita a idéia que a cidade que se construía então não seria a forma definitiva da capital, mas o primeiro passo - ou seja, o da instituição da ordem racional do poder estatal de um futuro que certamente traria à capital outros atributos, dentre eles o de centro econômico e industrial do Estado. Esta visão evolucionista, presente nos fundamentos da concepção da Nova Capital, imprime a esta a imagem de uma cidade voltada para o futuro e passível de uma continua transformação que realizaria, gradativamente, seus desígnios. Sendo assim, embora implantada inicialmente com a finalidade imediata de centro político, a transformação da capital em metrópole econômica do Estado e sua industrialização estava presente nos papéis que se atribuíam a mesma, já na sua fundação. Pode-se pois compreender como o entusiasmo com a industrialização da capital, a partir dos anos 30, apropria-se pois desta expectativa e considera este processo como 294

a realização dos desígnios civilizadores da Capital, que atingiria então um novo ciclo. Quanto ao aspecto da composição do plano urbano da Nova Capital, vimos que, embora recorrendo a elementos do urbanismo barroco e mesmo de certos traços dos modelos utópicos de ordenação das cidades, o plano da capital apresentou marcantes diferenças em relação a estes modelos. Não houve, como nos planos barrocos, a pretensão de se configurar uma forma espacial plenamente definida pelo traçado e pelas edificações envolventes, como um quadro perspectivístico, mas o objetivo de se lançar uma estrutura e pontos nodais que induziriam a ocupação futura. A forma da cidade ficava pois a ser definida pelas edificações que, em sua maioria, ficou a cargo dos empreendedores privados. Embora a legislação inicial definisse limites rígidos às mesmas, principalmente quanto a altura dos pavimentos, vimos que, já em 1922, a legislação modifica no sentido de permitir uma drástica verticalização das construções. Outro aspecto onde reconhecemos a perspectiva evolucionista e principalmente a convicção positivista de conciliação entre a ordem e o progresso é a questão da previsão da população e do controle da ocupação urbana. Embora o plano fosse delineado para uma população de 200.000 habitantes, encontramos evidências, nas observações dos engenheiros que participaram dos estudos da Nova Capital, que este número não constituía um limite à população da cidade, mas uma parâmetro do plano que então se realizava, plano este que não assumia, em seu conjunto a forma de uma cidade fechada, mas apresentava uma clara perspectiva de expansão da zona suburbana. Reconhecemos também, nas diretrizes de implantação do plano e da ocupação do espaço urbano, o empenho em promover uma ocupação distribuída deste espaço, de modo a evitar tanto concentrações ou vazios, bem como mantendo-se uma área de reserva para ocupação futura, enquanto se 295

promovia também a ocupação da periferia da área urbana. Estas disposições, em geral implementadas, conduziriam a ocupação da área urbana delimitada pela avenida do Contorno de modo gradativo, embora implicassem numa intensa ocupação da periferia. Contudo, não nos parece haver aí uma imprevidência do plano, mas justamente o cumprimento de suas intenções. A ocupação periférica tornou possível tanto o controle pelo estado da ocupação da área urbana, bem como a valorização posterior de seus lotes, no mercado imobiliário, e assim garantiram a ocupação desta área urbana pelas classes mais elevadas. Além disto, um aspecto relevante no plano da Nova Capital foi sua capacidade em equacionar duas demandas que então se colocavam: por uma lado, impor uma ordem urbana reconhecível e duradoura e por outro possibilitar a transformação interna e expansão da área urbanizada inicial. Frente à ameaça da perda da forma urbana e a expansão intensa que caracterizou as cidades modernas do século XIX, o plano da capital adotou a concepção da cidade enquanto organismo ou sistema em evolução, recusando o modelo da composição urbana barroca definida em todos os seus elementos, por subordinação a uma ordem visual total. O Plano de Belo Horizonte buscou, a nosso ver, conciliar a demanda do crescimento da cidade com a ordenação de uma forma legível e controlada. Esta ordem se apresenta mais como uma ordem estrutural e do que uma ordem compositiva ou visual, como na cidade barroca. Impõe-se não um espaço controlado perspectivamente, mas um diagrama apto a assumir outras configurações futuras. Este artifício, fundado na aspiração positivista pela conciliação entre a ordem e o progresso, conferiu à cidade uma imagem ou uma identidade que lhe permitiu, pelo menos até o cinquentenário, conviver com a alteração drástica da forma urbana e a manutenção de uma ordem e de uma legibilidade global da cidade. Na década de vinte, quando se considera ter ocorrido a consolidação da Capital, observamos que a face da cidade já apresenta modificações em relação à ocupação inicial e seus tipos de edificação. Se por um lado, implementava-se 296

as obras de embelezamento urbano, segundo o traçado da Planta Geral da Nova Capital - embora com algumas alterações - outras obras e medidas já iniciavam ou promoviam uma remodelação que se torna mais acentuada nas décadas seguintes. Como vimos, nas décadas de 30 e 40, os temas da remodelação e a necessidade de um novo plano urbanístico da capital são temas recorrentes. Contudo, embora se alterasse os modos de edificação e as estruturas viárias, as transformações ao longo deste período não constituem numa ruptura da forma urbana definida pelo plano inicial da Nova Capital, e apresentam mais a forma de uma evolução e adaptação às novas demandas. Entretanto, ao final da década de quarenta, embora reafirmando-se a o caráter da cidade como determinado pelo seu plano, vemos a constatação de que já não se podia mais compreender ou submeter a expansão urbana e suburbana à racionalidade identificada a um diagrama legível e portador de atributos espaciais do plano do núcleo urbano. Se por um lado, a cidade parecia ultrapassar ou mesmo ameaçar a forma urbana delineada por seu plano inicial, reivindicava-se a implementação de medidas que dessem continuidade ao plano inicial e que mantivessem o caráter da cidade enquanto uma forma estruturalmente ordenada e portadora dos atributos da área urbana da avenida do Contorno. Uma avaliação publicada no final da década de 40 demonstra a tensão entre a continuidade do diagrama definido pelo plano e a dinâmica da construção da cidade. Pouco mais de um ano após o Cinquentenário, Renato Santos Pereira publicava um artigo, denominado "Deforma-se a mais bela cidade do Brasil"164, onde lamenta a perda das qualidades do plano da capital no processo de expansão urbana. O artigo certamente refere-se ao título dado a Belo Horizonte por Monteiro Lobato, em artigo publicado em 1937. Para este último, apenas Washington e Belo Horizonte, "cidades feitas sob medida,

164

Estado de Minas, 7 jan 1949, p. 5.

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estudadas, calculadas, desenhadas no papel antes de serem fixadas em cimento e tijolo", poderiam receber sem restrições o qualificativo de belas, de beleza integral que a harmonia de conjunto de dá. Todas as mais, nascidas e desenvolvidas ao acaso e fora de qualquer plano de conjunto, terão apenas o bonito do pitoresco, ou belezas parciais, porque todas encerram dentro de si, pelo menos, uma parte insanavelmente aleijada: o centro165.

Avaliando o crescimento de Belo Horizonte, Pereira via como ameaça à "mais bela cidade do Brasil", os "verdadeiros aleijões urbanísticos na periferia da capital", que obscureciam a qualidade que Lobato lhe atribuíra como fundamento de sua beleza integral: a racionalidade do conjunto. Pereira reputava Belo Horizonte uma "cidade predominantemente moderna" pelo fato do traçado delimitado pelo Avenida do Contorno atender os elementos recomendados pelo urbanismo moderno - "sol, espaço e vegetação", segundo a formulação de Le Courbusier, citada pelo artigo - além de apresentar, no "panorama geral da configuração urbanística nacional algo de raro como [a] simetria do traçado". Contudo, o articulista aponta o que considerava "um grave desvirtuamento dos planos artificiais urbanísticos", clamando pela adoção de medidas que imprimissem à expansão da cidade o mesmo caráter de seu núcleo urbano. Utilizando-se de uma metáfora da cidade como uma árvore, afirma o articulista: Um tronco são com galhos aleijados, tal se nos aparece a capital mineira: punjante de seiva, mas desfigurada numa área que avança em todas as direções, escala montes e colinas, se perde no horizonte nem sempre belo.

A metáfora da cidade como uma árvore nos parece inclusive conforme com os princípios do plano urbano de Aarão Reis de implantação gradativa e de transformação e crescimento contínuo a partir de uma estrutura, que garantiria ordem ao conjunto. Contudo, como observava o articulista em 1949, o crescimento se fazia "à revelia de qualquer plano, de todo e elementar traçado

165

Monteiro Lobato, "Belo Horizonte, a Bela. Uma cidade certa", Folha de Minas, 10 out 1937, Suplemento, p. 2.

298

orientador", resultando numa "triste eclosão de aglomerados de casas absurdamente desiguais, desarmoniosos e anti-higiênicos, verdadeiros aleijões, em tronco harmonioso e belo, sadio e bem concebido". A oposição atingia tal intensidade que, para o articulista, já não se podia considerar a extensa ocupação suburbana como portadora do mesmo caráter da capital: Na realidade toda a extensão além da av. do Contorno (um anel separando o belo do feio, o lógico do ilógico, um mundo claro e habitável de outro mundo abandonado na sua feiura e na sua triste paisagem de pobreza) não constitui, na verdade, um prolongamento da capital; antes são outras cidades crescendo ao redor de Belo Horizonte, são galhos desgarrados mas nutrindo-se da seiva forte de tronco materno. Nada há neles que possa despertar a lembrança do centro, admirável na sua paisagística especial dotado de ruas e avenidas largas e retas, bem arborizadas.

É interessante notar que, para o articulista, era a urbanização das áreas periféricas, por sua irracionalidade e feiura decorrentes da ausência das características do traçado viário da área da Contorno, que desfiguravam o plano da capital e não a substituições das primeiras edificações da Nova Capital pelos arranha-céus, já em pleno curso. Para o articulista, tal situação ainda era passível de solução. A administração municipal deveria adotar uma "ação corretiva" na urbanização da região periférica para "impedir tamanha quebra na harmonia do traçado da cidade e obstar a sua expansão desigual e sem traçado algum". Enfim, conclui o articulista: Que se enxertem novos braços são ao tronco robusto. E se amputem os membros doentes ou se procure dotá-los de outros recursos, ainda possíveis, que possibilitarão a sua inclusão dentro de um traçado racional ou de novos traçados-miniaturas no arquitetado pelos planejadores da cinqüentenária capital. Os mineiros confiam em que o atual e os administradores futuros de Belo Horizonte não permitirão que se multile uma obra tão admirável como expressão de força e civilização.

299

A oposição entre o diagrama lógico do plano da Nova Capital e a expansão periférica considerada como uma deformação será, a partir de então, um tema recorrente, até se considerar que a capital teria ultrapassado as previsões de seu plano inicial. A avaliação do plano inicial e de seu sucesso, seja ele afirmado ou negado, permanece como uma tensão, inclusive atualmente - quando se afirma, em diversos trabalhos historiográficos e nas apreciações jornalísticas recentes sobre a cidade, o fracasso ou a superação de suas intenções de controle absoluto frente à dinâmica urbana da cidade166. Entretanto, mesmo se considerando ultrapassado pela dinâmica da formação urbana atual, ainda pode ser reconhecida na forma urbana atual os vestígios da estrutura lançada por Aarão Reis. Por outro lado, o plano da Nova Capital constituiu-se ainda uma freqüente evocação da possibilidade, mesmo que denegada, de uma ordem urbana que nos redimisse da fragmentação da babélica metrópole fragmentada.

166

Esta interpretação pode ser encontrada no estudo do PLAMBEL [op. cit, 1979] e na afirmação de Iglesias & Paula de que "a dinâmica constitutiva da Capital mostra uma cidade incontida nos limites de qualquer plano que pretendia controle absoluto" [Memória da economia da cidade de Belo Horizonte. Belo Horizonte: BMG, 1987, p. 31], sendo secundada por Alves da Silva [op. cit., p. 21], como já mencionado anteriormente. É também comum na imprensa avaliações como a seguinte: "A ocupação do espaço urbano, inicialmente ordenada e planejada, tornou-se desordenada e resultou na favelização" [Minas Gerais, 28 jan 1995].

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