Pastoral Ambiental - uma resposta ao problema missionário dos leigos na cidade. (PDF 198 p.)

July 15, 2017 | Autor: Hugo Camargo Rocha | Categoria: Theology, Missiology, Ecclesiology, Pastoral
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PASTORAL AMBIENTAL uma resposta ao problema missionário dos leigos na cidade.

Ambiente considerado: habitação em edifícios.

PASTORAL DOS CONDOMÍNIOS

Hugo Camargo Rocha São Paulo 2006 (1ª versão) Bragança Paulista 2015 (2ª versão)

ÍNDICE INTRODUÇÃO ............................................................................................... 5 Parte I – A IGREJA NA CIDADE NECESSIDADES HUMANAS DOS CONDOMÍNIOS 1. Pastoral urbana: o que falta fazer? ......................................................................... 12 2. Condomínio: edifício ou comunidade? .................................................................. 13 3. Condomínio: que comunidade é esta? ................................................................... 15 4. Como vive esta nova comunidade de base? ........................................................... 16 5. Aspectos de um tormento ....................................................................................... 18 6. O mercado e a comunidade .................................................................................... 20 7. Como é que se formam estas comunidades? .......................................................... 26 8. A corrupção administrativa nos condomínios ........................................................ 30 9. Condomínio: uma empresa habitacional ou nossa casa comum? .......................... 35 JESUS RESPONDE ÀS NECESSIDADES HUMANAS 1. Ação pastoral da Igreja nos condomínios .............................................................. 2. O Planejamento Pastoral ........................................................................................ 3. Vamos imaginar uma ação pastoral nos condomínios ........................................... 4. Convocação, Formação e Ação "Missionárias" .....................................................

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Parte II – CONVOCAÇÃO MISSIONÁRIA 1. Convocação missionária dos leigos ....................................................................... 2. Levantamento dos fiéis leigos de cada condomínio .............................................. 3. Convidá-los para uma reunião na paróquia ........................................................... 4. Propor o plano missionário .................................................................................... 5. Criação de núcleos missionários católicos nos condomínios ................................

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Parte III – FORMAÇÃO MISSIONÁRIA A FORMAÇÃO DOS LEIGOS EM GERAL – Um problema sem solução? 1. Situação atual do laicato no mundo e na Igreja ................................................ 62 2. Renovação da consciência eclesial ...................................................................... 69 3. Renovação da ação eclesial .................................................................................. 70 1. Formação atual dos leigos nas paróquias: ......................................................... 70 1º Princípio geral de organização – Centralização ........................................... 71 2º Princípio geral de organização – Dependência ............................................ 73 4. Princípios pedagógicos gerais para a formação missionária do laicato .......... 74 1. Descentralização e Autonomia .......................................................................... 75 5. A criação de novas estruturas eclesiais e pastorais na cidade ......................... 77 1. Limitações pastorais e missionárias intrínsecas à estrutura paroquial .............. 79 2. Criação de comunidades leigas de base ambiental ............................................ 87 3. A dimensão secular da Igreja ............................................................................ 89 4. O que entendemos por "missão", "evangelização" e "religião"? ...................... 90 6. Adaptação da Igreja aos ambientes urbanos: Pastoral Ambiental ................. 92 2

A FORMAÇÃO DOS LEIGOS NOS CONDOMÍNIOS – Uma solução possível? 1. A finalidade da formação .................................................................................... 1. Finalidade última: o amor de Jesus ................................................................... 2. Estudo – a prática da leitura no condomínio: Leitura da Bíblia ............................................................................................... Leitura do Evangelho ....................................................................................... Leitura dos demais textos eclesiásticos ............................................................ A Tradição escrita da Igreja na Internet ........................................................... 3. Oração – a prática da oração no condomínio .................................................... 4. Ação e Participação – a prática do amor no condomínio ..................................

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2. Conteúdos da formação ....................................................................................... 119 1. A cultura condominial ....................................................................................... 119 2. Os três conteúdos fundamentais da formação ................................................... 123 3. Uma formação integral e unitária ...................................................................... 124 3. Método para a formação missionária do Laicato ............................................. 128 1. O que diz o Concílio? ........................................................................................ 128 2. Método ativo com base na autonomia dos sujeitos ........................................... 129 4. Meios de Formação .............................................................................................. 1. Meios a serem empregados ............................................................................... a) Primeiro meio de formação: encontros e reuniões do núcleo missionário ... b) Segundo meio de formação: assessoria de um agente coordenador ............ c) Terceiro meio de formação: orientação através de subsídios .......................

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5. Equipe Pastoral: composição e modo de trabalho ............................................ 134 6. Os agentes coordenadores da pastoral ............................................................... 137 1. Quem seriam os coordenadores? ....................................................................... 137 2. O que fariam os coordenadores? ....................................................................... 139 7. Os subsídios da formação .................................................................................... 141 1. Princípios estruturais dos subsídios da formação .............................................. 141 1. Máxima flexibilidade e adaptabilidade possível .......................................... 141 a) Lugar ........................................................................................................ 143 b) Tempos (Datas - Prazos - Ordenação) ..................................................... 143 2. Discernir os conteúdos necessários e a ordem necessária ............................ 144 3. O "fim" como princípio de organização ....................................................... 145 2. Finalidade da ação pastoral : evangelizar o condomínio ................................... 145 1. Exigências intrínsecas da evangelização ...................................................... 145 2. Ordem intrínseca da evangelização .............................................................. 146 3. As etapas sucessivas e necessárias da formação ............................................... 149 1ª Etapa – Comunhão entre os membros do núcleo missionário ............... 150 a) Dinâmicas de trabalho e de reunião ...................................................... 151 b) Espiritualidade de comunhão por meio da Palavra e da Oração .......... 153 c) Sobre o condomínio, a pastoral e a formação. Um itinerário ............... 154 2ª Etapa – Serviço ao condomínio ................................................................. 154 1. Como organizar os subsídios desta etapa da formação? ....................... 158 2. Os "módulos" ou "unidades temáticas" desta etapa da formação: ........ 163 1. A Comunidade Condominial – pessoas, funções, estruturas........ 163 2. Leis, normas e costumes ............................................................. 164

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3. Edifício ....................................................................................... 164 4. Documentos ................................................................................ 165 5. Finanças e Contabilidade ............................................................ 165 6. Ética ............................................................................................ 165 3. Ver, Julgar, Agir – Serviços essenciais no condomínio: ...................... 167 1. Combate à corrupção .................................................................. 168 2. Democratização do poder ........................................................... 169 3. Respeito à Lei e aos direitos de todos ........................................ 169 4. Ética nas relações comunitárias .................................................. 170 5. Respeito e consideração pelas pessoas, por suas diferenças, necessidades e situações particulares .......................................... 170 3ª Etapa – Anúncio do Evangelho ao condomínio ....................................... 172 8. Conclusão .............................................................................................................. 174 ANEXO - Formas de cooperação entre núcleos e condomínios: .............................. 175 1. Comunicação ..................................................................................................... 175 2. Integração eclesial e social ................................................................................ 179 3. Associação dos moradores de condomínio ....................................................... 179 4. Serviço de proteção aos moradores de condomínio .......................................... 180 5. Serviço de acolhida aos novos moradores do prédio ........................................ 184 Nota sobre o serviço de acolhida nos ambientes eclesiais ............................... 190 6. Ação solidária em situações de emergência doméstica, desemprego e transporte ........................................................................................................... 191 BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................... 194 SIGLAS UTILIZADAS ............................................................................................. 196 Informação sobre o autor ........................................................................................... 197

© Nenhum direito reservado. Todos os direitos cedidos ao leitor, que pode fazer o que quiser com este texto. Disponível em: https://independent.academia.edu/HugoCamargoRocha Autores católicos: "Vocês receberam de graça, dêem também de graça!" (Mt 10,8)

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"Cinco milhões de pessoas vivem hoje nos cerca de 30 mil condomínios verticais existentes somente na área metropolitana de São Paulo." (2001, Idec – SP)

INTRODUÇÃO Elaborei esta reflexão pastoral em razão das experiências que eu tive no condomínio, na paróquia, e na cidade. É expressão das necessidades que eu vivi e percebi nestes ambientes. É, portanto, a expressão de um ponto de vista "leigo", no duplo sentido da palavra. Pois além de eu ser cristão leigo, sou também um leigo no assunto. Tanto em assuntos pastorais e religiosos como em assuntos pedagógicos e sociais. Porém, as experiências que os leigos vivem na cidade grande e na paróquia (quaisquer que sejam elas) são fatos reais. E o conhecimento desses fatos pode ajudar na elaboração de diretrizes e de programas pastorais destinados aos leigos. Por isso resolvi comunicar as experiências e necessidades que percebo em grande parte do laicato católico que vive hoje nas metrópoles e nos condomínios, e o que poderia ser feito para responder a estas necessidades e urgências. E o resultado é este texto, que esboça uma "forma" de ação que julgo necessária para que uma Pastoral dos Condomínios se adapte à realidade e cumpra sua finalidade. Minha intenção com isso é apresentar aos interessados neste assunto (sobretudo aos responsáveis pelas decisões pastorais e missionárias da Igreja) uma possibilidade e um exemplo concreto do que poderia ser uma Pastoral Ambiental, na esperança de que um dia se arrisquem novos caminhos, se criem novas estruturas eclesiais na cidade e se experimentem novas práticas pastorais e de formação cristã do laicato, destinadas a promover a vocação e a missão dos cristãos leigos nos ambientes urbanos onde vivem, convivem e atuam quotidianamente (e que são, basicamente, as nossas comunidades familiares, habitacionais, educacionais, e de trabalho). Ambientes humanos onde a atuação missionária do leigo é possível, necessária, e insubstituível, pois nem o clero nem os religiosos participam destas comunidades urbanas de vida e ação, mas os leigos

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sim. E considerando que estas "comunidades sociológicas de base" constituem a maior parte do tecido vivo e humano de uma cidade, é claro que a evangelização "da cidade" só acontecerá mediante a evangelização destas comunidades urbanas - e isto, na imensa maioria dos casos, só é possível de se realizar mediante a ação missionária (eclesial e secular) dos próprios cristãos leigos que já vivem, convivem e atuam quotidianamente no seio destas comunidades. Este seria um caminho normal (e mais natural) para a pastoral urbana, a missão do leigo na cidade, e a inculturação do evangelho. E um complemento indispensável aos atuais projetos de renovação e descentralização da paróquia. Senão, de que outro modo poderá a Igreja "trabalhar por uma evangelização inculturada que penetre os ambientes de nossas cidades"? (Cf. Santo Domingo, n. 303. Oração). O caso dos condomínios residenciais (os prédios de apartamentos e as comunidades que lá vivem) é exemplar neste sentido, pois muito se queixa de que os condomínios são "lugares fechados" e que a Igreja precisa descobrir meios e estratégias para "chegar" a estes núcleos de convivência (Cf. Aparecida, n. 518; DGAE 2008-2010, n. 200). Ora, para quais membros da Igreja os condomínios são lugares "fechados", de acesso difícil, senão impossível? Talvez o condomínio seja um ambiente físico e humano "fechado" para muita gente da paróquia ou Igreja (clero, religiosos, agentes de pastoral, catequistas, etc.), mas não para os leigos paroquianos que lá moram e habitam. Para todos eles o condomínio é lugar sempre aberto e de livre acesso a qualquer hora do dia ou da noite. E não precisam de nenhuma "estratégia" para "chegar" até lá, pois já estão todos lá, morando, vivendo e convivendo. E a mesma coisa ocorre com todos os demais ambientes urbanos (família, escola, trabalho, etc.) dos quais a Igreja também se queixa de falta de acesso, de pouca presença, e de nenhuma ação evangelizadora. Parece que estamos todos nos esquecendo de que "os milhares de leigos" que frequentam as paróquias "também são Igreja", e que portanto a Igreja (na pessoa dos leigos) já está continuamente presente e plenamente inserida nestes ambientes todos da cidade. Apenas não está atuante nem missionária, precisamente por falta de uma Pastoral Ambiental que procure unir e orientar estes leigos para que eles possam juntos cumprir sua missão nos seus próprios ambientes e comunidades normais de vida e ação. E uma Pastoral Ambiental que considere a situação e o ponto de vista eclesial e social do leigo, que respeite e promova a vocação e missão própria e específica dos leigos e a sua "índole secular", tal ação pastoral terá (com a graça de Deus) muita chance de sucesso. E deste modo, a Igreja poderá dar uma resposta concreta e eficaz ao grave problema missionário dos leigos nas paróquias, e da Igreja nas cidades. E então caberá ao leigo decidir que resposta dar a este chamado de Cristo por meio de sua Igreja: "Vão vocês também para a minha vinha." (Mt 20,7). Porém, neste momento em que a Igreja toda discute e propõe a renovação da paróquia em "comunidade de comunidades", muitos de nós poderão pensar: "Mas criatura, esta renovação da paróquia que pretendemos fazer, já não seria resposta suficiente para o problema missionário dos leigos?" Creio que não. Pois o problema missionário dos leigos transcende os limites e finalidades naturais da sua paróquia, na medida em que a missão do leigo não se restringe à sua atuação no interior da paróquia, mas se prolonga e se projeta nos diversos ambientes urbanos em que vive e atua diariamente, ambientes cuja natureza, complexidade, localização e composição humana ultrapassam em grande parte os limites territoriais e humanos da paróquia, sobretudo os limites e finalidades da pastoral "paroquial" e as capacidades naturais da comunidade "paroquial". Por esta razão, penso que a renovação da paróquia através da "setorização" ou "subdivisão" da

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comunidade paroquial em comunidades menores não será suficiente para resolver este problema, e precisaria necessariamente se coordenar – ou se complementar – com formas específicas de Pastoral Ambiental direcionadas precisamente para tornar possível a missão dos leigos nos seus ambientes normais de vida e ação (isto é, nas suas comunidades familiares, habitacionais, educacionais, e de trabalho). Caso contrário, esta forma fundamental da missão dos leigos na cidade continuará sendo apenas objeto de louváveis exortações, sem que se criem as condições práticas necessárias à sua realização. Pois a paróquia, enquanto "comunidade eucarística de base territorial", tem uma natureza própria, teológica e sociologicamente definida, com possibilidades e limitações pastorais e missionárias intrínsecas à sua natureza. E nenhuma renovação ou revitalização da paróquia conseguirá alterar esta sua natureza ou realizar o que está além das suas potencialidades naturais. É sobre isto que nos alerta João Paulo II na Exortação Apostólica Christifideles Laici: "É deveras imenso o trabalho da Igreja nos nossos dias e, para realizá-lo, a paróquia sozinha não pode bastar. (...) De fato, muitos lugares e formas de presença e de ação são absolutamente necessários para levar a palavra e a graça do Evangelho às variadas condições de vida dos homens de hoje, e muitas outras funções de irradiação religiosa e de apostolado do ambiente, no campo cultural, social, educativo, profissional etc., não podem ter como centro ou ponto de partida a paróquia." (CfL 26). Sei muito bem que estou me intrometendo em assuntos e esferas eclesiais que não são de minha competência. Não sou pastor, nem fiz o curso de teologia para leigos. Mas em tempos de calamidade pública (e eclesial), quando tantas coisas parecem estar de pernas para o ar, a dura necessidade nos obriga a fazer coisas que normalmente jamais ousaríamos fazer (como dar palpites pastorais a quem não os pediu). E tudo indica que a Igreja Católica no Brasil vive hoje um tempo deveras calamitoso, pois a cada geração, a cada década, e a cada censo do IBGE, diminui drasticamente o número de pessoas que se consideram católicas e membros desta Igreja. Ainda não chegamos ao ponto de fechar paróquias e vender templos (como ocorre hoje com a Igreja na Europa), mas a nossa tendência neste sentido é clara e objetiva. Não há como negar os fatos. Nem a pastoral de "conservação" está sendo eficaz para conservar as tradicionais relações do povo brasileiro com a Igreja Católica. E não adianta tapar o sol com a peneira e se justificar dizendo "O mais importante não é a quantidade de fiéis, mas a sua qualidade!" Acontece porém que uma coisa depende da outra, e não dá para separar a quantidade da qualidade: as duas coisas melhoram ou pioram juntas. E para melhorar ambas as coisas, é necessário que se "experimentem" caminhos pastorais novos e melhor adaptados à missão fundamental dos leigos no mundo de hoje, que é a presença e o testemunho cristão na sociedade e na profissão. (cf. DGAE 2011-2015, n. 104). Mas como saber se estas "novidades pastorais" darão certo? Só teremos "certeza" dos seus resultados depois que fizermos estas experiências, e não antes. Este é o problema do "novo" - a incerteza dos seus resultados! Por isso a prudência recomenda que se façam tais experiências pastorais mediante "projetos-piloto", com dimensões reduzidas e localizadas, que nos permitam acompanhar e verificar objetivamente os seus frutos e fazer as correções necessárias. E a experiência mais urgente que se deve fazer na Igreja Católica é a criação de Pastorais Ambientais que auxiliem os leigos em sua missão no mundo (e não apenas na Igreja ou paróquia renovada), melhorando assim tanto a qualidade como a quantidade de discípulos-missionários católicos participando e atuando em todos os ambientes ou comunidades existentes em nossas cidades. Pois os leigos já estão todos lá, vivendo, convivendo, participando e atuando nestes ambientes e comunidades. Só não estão "em missão", por falta de orientação pastoral e de união eclesial.

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Parece que temos na Igreja uma certa dificuldade para perceber determinados aspectos da realidade urbana e da vida dos leigos nas cidades. Quando nós refletimos, por exemplo, sobre os três âmbitos da ação evangelizadora (pessoa, comunidade e sociedade) com seus desafios, critérios e pistas de ação, ao tratarmos do âmbito da "comunidade" só se pensa, só se fala, e só se considera a "comunidade eclesial", como se a ação evangelizadora da Igreja no âmbito da comunidade se limitasse a renovar a própria comunidade "eclesial", excluindo de seu campo de ação as demais comunidades humanas que não são eclesiais, e que são precisamente as comunidades normais de vida e ação dos cristãos leigos. E com isso, excluímos inadvertidamente de nossas considerações missionárias a missão própria e específica dos leigos nestas suas comunidades urbanas. E por isso a ação evangelizadora da Igreja nas cidades tende a se realizar apenas no âmbito da "pessoa" ou da "sociedade", mas não no âmbito da "comunidade". Porém, como o Evangelho poderá penetrar e transformar as pessoas e a sociedade sem penetrar e transformar também suas próprias e constitutivas relações comunitárias? E como isto poderia se realizar sem a atuação dos leigos, os únicos que participam destas comunidades? Temos aí um assunto que merece maior atenção. Para que os fiéis leigos possam realizar "a síntese vital entre o Evangelho e os deveres quotidianos da vida" (cf. CfL 34), precisamos primeiro reconhecer com clareza a natureza "comunitária" da vida e da ação quotidiana das "pessoas" em "sociedade", e depois procurar adaptar a ação pastoral e evangelizadora da Igreja também a esta dimensão "comunitária" intrínseca à vida de todo mundo (e não só à vida de fé dos cristãos na Igreja), pois além das comunidades "eclesiais" existem também neste mundo as demais comunidades "sociológicas" (ou "seculares") no seio das quais todos nós nascemos, vivemos, convivemos, aprendemos, agimos, cooperamos, envelhecemos, e morremos. Ignorar esta vida comunitária extra-eclesial (e natural) do ser humano pode estar sendo um grande obstáculo à missão da Igreja e dos leigos no mundo de hoje. Daí a necessidade de se pensar também formas específicas de ação pastoral e evangelizadora adaptadas a cada gênero e espécie de comunidade humana (familiar, educacional, habitacional, de trabalho, etc.), o que seria uma tarefa própria das Pastorais Ambientais, voltadas para evangelizar a "pessoa" e a "sociedade" a partir das suas próprias relações comunitárias. Pois nem a "pessoa" nem a "sociedade" podem existir fora destas relações humanas de natureza comunitária. Se por hipótese eliminarmos na realidade as relações comunitárias que existem, tanto a "pessoa humana" como a "sociedade humana" se desintegram, morrem e desaparecem. Portanto, não eliminemos estas relações de nossas mentes e planejamentos pastorais. Do contrário, não se conseguirá evangelizar em profundidade nem as pessoas nem a sociedade. Pois a nossa vida pessoal e social só pode existir e se realizar em comunidades de vida e ação. Esta é a nossa natureza humana, criada à imagem e semelhança da Santíssima Trindade. "Ser imagem e semelhança do Criador é também trazer no coração um enorme anseio de ser comunidade." (DGAE 2003-2006, n. 120). Por esta razão, a ação da Igreja no âmbito da "comunidade", precisa considerar não só a renovação da comunidade "eclesial", mas também a renovação evangélica daquela imensa rede de comunidades humanas, onde as pessoas vivem e atuam quotidianamente, formando uma grande e complexa sociedade. Deste modo não separamos as pessoas e a sociedade de suas próprias comunidades, pois: "Estas não são realidades a serem consideradas separadamente, mas três realidades interligadas e complementares." (DGAE 2008-2010, n. 102). E com isto em mente, convém lembrar que a nossa tradicional tendência para clericalizar a vida cristã dos leigos sem considerar a sua predominante dimensão secular

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e extra-eclesial, pode certamente explicar estas duas "tentações" de que fala João Paulo II na Exortação Apostólica Christifideles Laici: "Ao mesmo tempo, o Sínodo acentuou como o caminho pós-conciliar dos fiéis leigos não tem estado isento de dificuldades e de perigos. Em especial podem recordar-se duas tentações, de que nem sempre souberam desviar-se: a tentação de mostrar um exclusivo interesse pelos serviços e tarefas eclesiais, de forma a chegarem freqüentemente a uma prática abdicação das suas responsabilidades específicas no mundo profissional, social, econômico, cultural e político; e a tentação de legitimar a indevida separação entre a fé e a vida, entre a aceitação do Evangelho e a ação concreta nas mais variadas realidades temporais e terrenas." (CfL, Introdução, 2). E como bem sabemos, tais "tentações" afetam não só os leigos, mas também os próprios pastores do rebanho responsáveis pela organização pastoral e governo da Igreja. Infelizmente, a realidade é esta: sem receber uma orientação pastoral específica e adaptada a cada tipo de ambiente em que vive e atua, e sem união, cooperação e ajuda mútua, os leigos sozinhos, dispersos, isolados e por conta própria, jamais conseguirão superar essas duas tentações. Pois apenas exortações e sermões pastorais, embora sempre úteis e necessários, não são suficientes para se conseguir isso. É preciso providenciar os meios práticos adequados e necessários. E sobretudo, pedir a ajuda de Deus em oração: "Pai nosso, que estais no céu, ... não nos deixeis cair nestas duas tentações de que fala o Papa, mas livrai-nos deste mal. Amém." E para concluir esta introdução, quero fazer um esclarecimento terminológico que julgo necessário. Todas as vezes que falo em "missão" ou "ação evangelizadora" dos leigos, refiro-me sempre àquela forma singular de evangelização especificada por Paulo VI na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi: "Os leigos, a quem a sua vocação específica coloca no meio do mundo e à frente de tarefas as mais variadas na ordem temporal, devem também eles, através disso mesmo, atuar uma singular forma de evangelização. A sua primeira e imediata tarefa não é a instituição e o desenvolvimento da comunidade eclesial – esse é o papel específico dos Pastores – mas sim, o pôr em prática todas as possibilidades cristãs e evangélicas escondidas, mas já presentes e operantes, nas coisas do mundo. O campo próprio da sua atividade evangelizadora é o mesmo mundo vasto e complicado da política, da realidade social e da economia, como também o da cultura, das ciências e das artes, da vida internacional, dos 'mass media' e, ainda, outras realidades abertas para a evangelização, como sejam o amor, a família, a educação das crianças e dos adolescentes, o trabalho profissional e o sofrimento." (EN 70). É isto o que nos ensina também o Concílio Vaticano II na Constituição Dogmática Lumen Gentium: "A índole secular caracteriza especialmente os leigos. (...) É porém específico dos leigos, por sua própria vocação, procurar o Reino de Deus exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus. (...) A eles, portanto, cabe de maneira especial iluminar e ordenar de tal modo todas as coisas temporais, às quais estão intimamente unidos, que elas continuamente se façam e cresçam segundo Cristo, para louvor do Criador e Redentor." (LG 31). Neste sentido, a "missão" própria e específica, primeira e imediata, do cristão leigo neste mundo se confunde com a sua própria "conversão" e seguimento de Cristo no mundo, isto é, nos lugares, ambientes ou comunidades onde vive e atua todos os dias e o tempo todo (e que normalmente não é uma paróquia ou comunidade eclesial, como ocorre com a maioria do clero, boa parte dos religiosos, e uma minoria de leigos). Isto não significa negar ou desconhecer "a conexão e necessária complementaridade da missão de cristãos leigos no mundo – campo próprio de sua atividade evangelizadora –, com os serviços e ministérios que os fiéis leigos e leigas, em virtude do seu Batismo, podem e devem assumir na Igreja." (CNBB, Missão e ministérios dos cristãos leigos e leigas, Apresentação). Isto apenas significa que, para 9

um leigo, o primeiro meio de evangelização é o testemunho de uma vida (profissional, familiar, social, escolar, etc.) autenticamente cristã, e que antes de mais nada é pelo seu comportamento, pela sua vida, que os leigos hão de evangelizar este mundo. (cf. EN 41). Pois a "Boa Nova há de ser proclamada, antes de mais, pelo testemunho." (EN 21). Para que não aconteça conosco aquilo que Jesus disse dos doutores da Lei e dos fariseus: "Eles falam e não praticam." (Mt 23,3). E quando insisto sobre a necessidade de se criarem "novas estruturas eclesiais na cidade", ou "núcleos missionários nos diversos ambientes urbanos", refiro-me apenas à "reunião" (agrupamento, agregação) dos cristãos leigos que participam juntos de uma mesma comunidade urbana com a finalidade de se encontrarem, se conhecerem melhor, e se ajudarem na própria formação, conversão e missão neste ambiente, sem que isto signifique que eles "representam e empenham publicamente e oficialmente a Igreja" no seu modo de agir (isto é, os leigos, individual e coletivamente, continuariam agindo em nome próprio e sendo os únicos responsáveis por suas ações nestes ambientes, como já acontece hoje na vida de todo leigo). Eu chamo este agrupamento e este agir de "eclesial" apenas no sentido de que são membros da "ecclesia" agindo em grupo e cooperando no próprio seguimento de Cristo (como convém a cristãos), e não cada um em separado, dispersos e isolados uns dos outros, como acontece hoje com a maioria do laicato católico em quase todos os ambientes urbanos. E as "Pastorais Ambientais" a que me refiro aqui, nada mais fariam do que orientar e auxiliar os leigos neste difícil processo de conversão cristã. Trata-se, portanto, de algo bem simples e muito necessário, e que não deveria assustar ninguém! Pois trata-se apenas de formar discípulos-missionários de Cristo, tarefa pastoral normal e essencial da Igreja. A única novidade, neste caso, estaria no tipo de ação pastoral e educativa necessária para provocar, sustentar, e aprofundar sempre mais esta conversão missionária dos leigos. Portanto, o nó da questão e o cerne do problema missionário dos leigos estaria aqui: na atual formação cristã do laicato na Igreja. Mas como desatar este nó e resolver este problema? Além do muito que já se faz na Igreja para a formação cristã do laicato (e que é realmente admirável, mas ainda insuficiente neste caso) - além disso, que outros conteúdos, métodos e meios de formação e convivência eclesial seriam hoje também necessários para ajudar os leigos em sua específica vocação, conversão e missão na cidade? É sobre estas questões que trata o texto que vos envio. Procurei escrevê-lo (e corrigi-lo) da melhor forma que pude. Peço que perdoem os exageros e as tolices, mas que considerem os fatos e as verdades. Pois é apenas com base em fatos e verdades que podemos encontrar os caminhos mais acertados. E os leitores (se houver algum), certamente saberão distinguir uma coisa da outra, e chegar a um consenso teórico que permita alguma providência prática. Que Jesus, Maria e José guiem os pastores, religiosos e leigos em sua missão, e perdoem as nossas seculares e leigas omissões. Obrigado pela vossa atenção e infinita paciência.

Hugo Camargo Rocha, Bragança Paulista, 1º de maio de 2015.

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Parte I A IGREJA NA CIDADE a resposta do amor

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NECESSIDADES HUMANAS DOS CONDOMÍNIOS

1. PASTORAL URBANA: O QUE FALTA FAZER? Observando a atual ação pastoral da Igreja nas grandes cidades, noto uma omissão que julgo útil assinalar: a pastoral urbana parece ignorar o surgimento de um novo tipo de "comunidade sociológica de base" que é característico da cidade moderna: o condomínio. Para se ter uma idéia, 5 milhões de pessoas vivem hoje nos cerca de 30 mil condomínios verticais existentes somente na área metropolitana de São Paulo (Idec e Secovi – SP, 2001). Nas regiões urbanas em que predomina a paisagem dos arranhacéus, as tradicionais relações "de vizinhança" e as comunidades "de bairro" (que foram a base de funcionamento das estruturas paroquiais tradicionais) estão desaparecendo, cedendo lugar a um novo tipo de habitação e convivência urbana. No Brasil, esta transformação aconteceu de forma súbita em poucas décadas, de modo que a população em geral (e a Igreja em particular) encontra-se ainda bastante desorientada e desadaptada diante desta realidade, até então desconhecida. Como a Igreja vê esta questão? Lendo alguns dos seus principais documentos desde o Vaticano II até hoje, percebo duas coisas: (1) um firme e constante propósito de adaptar sua ação pastoral à realidade em geral, (2) ao lado de um progressivo (mas ainda insuficiente) reconhecimento desta realidade específica que é a habitação moderna em condomínio. Em Puebla, os bispos e o Espírito Santo declaram: "Depois do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín, a Igreja tem conquistado paulatinamente a consciência cada vez mais clara e profunda de que a evangelização é sua missão fundamental e de que não é possível o seu cumprimento sem que se faça o esforço permanente para reconhecer a realidade e adaptar a mensagem cristã ao homem de hoje..." (Puebla 85) "Esta conferência, reiterando aquele apelo [de Medellín], quer pôr a serviço dos nossos povos os recursos de uma ação pastoral adaptada às circunstâncias presentes." (Puebla 143). "No conjunto desta situação geral e de seus desafios globais, se inserem alguns problemas particulares de importância que a Igreja há de atender em seu novo impulso evangelizador. Estes são: [entre outros] a necessidade de traçar critérios e caminhos, baseados na experiência e na imaginação, para uma pastoral da cidade, onde se encontram em gestação os novos modos de cultura..." (Puebla 439). "A Igreja reconhece que a vida urbana e as transformações industriais levantam problemas até agora desconhecidos. Em seu interior se modificam os modos de vida e as estruturas habituais da vida: a família, a vizinhança, a organização do trabalho. Alteram-se igualmente as condições de vida do homem religioso, dos fiéis e da comunidade cristã." (Puebla 431). Nas Conclusões de Puebla (1979) a realidade do condomínio sequer é mencionada, embora os edifícios já tivessem modificado completamente a paisagem urbana. O que encontramos nos textos de Puebla parece ser mais uma expressão de perplexidade do que propriamente clareza de percepção dos novos e complexos problemas que a

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habitação moderna em condomínio acrescenta à questão da moradia e às estruturas de vida na cidade. Já nas Conclusões de Santo Domingo (1992) encontramos uma referência ao condomínio moderno. Embora seja só uma referência pontual e indireta, já se procura aqui nomear esta realidade e indicar a necessária adaptação pastoral: "Multiplicar as pequenas comunidades, os grupos e movimentos eclesiais, e as comunidades eclesiais de base. Iniciar a chamada "pastoral dos edifícios", mediante a ação de leigos comprometidos que vivam neles." (Sto. Domingo 259). Apesar de apenas justapor duas frases telegráficas ("multiplicar comunidades eclesiais" e "iniciar pastoral dos edifícios"), o texto dá a entender com isso que é preciso iniciar a formação de grupos ou pequenas comunidades eclesiais nos edifícios. Até aí, está bem. Porém, ao chamar esta ação de "pastoral dos edifícios", o texto apenas nomeia e ilumina um certo tipo de construção de alvenaria (o edifício), enquanto omite e ignora o tipo de comunidade humana que lá vive. Ora, isto revela que a Igreja ainda não percebeu com suficiente clareza a realidade sociológica (e humana) do condomínio. Como a Igreja poderá agir neste ambiente sem se adaptar a ele? E como poderá se adaptar sem percebê-lo? Talvez seja por isso que até hoje não se conseguiu dar início efetivo a esta ação pastoral, pois tudo o que até hoje se percebeu (e se nomeou) do "condomínio" é seu objeto material e sua novidade arquitetônica (o edifício), e não o seu sujeito humano e social (a comunidade que lá existe). É sobre isto que desejo chamar a vossa atenção.

2. CONDOMÍNIO: EDIFÍCIO OU COMUNIDADE? Para desfazer certos equívocos, muitas vezes é preciso esclarecer questões de ordem lingüística. Pois as palavras não só expressam e comunicam, como também orientam e determinam a percepção que temos do mundo (e por conseguinte a ação que desenvolvemos no mundo). E isto não é nenhuma novidade para a Igreja: a palavra revela e constrói, ou oculta e destrói. Em relação às palavras "condomínio, edifício, comunidade", a nossa história cultural vem consagrando usos e significados que em nada nos ajudam a perceber estas realidades. E neste caso específico, a Igreja pode estar sendo vítima da própria cultura que pretende evangelizar, na medida em que só percebemos aquilo que a cultura dominante permite e determina que se perceba. Isto fica claro quando observamos o uso que normalmente se faz da palavra "condomínio" e os significados que são atribuídos a esta palavra: de modo geral, a população tende a deslocar o significado original de "condomínio" para o objeto de condomínio (o edifício), e a ignorar o sujeito de condomínio (a comunidade dos condôminos). Basta abrir a primeira edição do Dicionário Aurélio e ver o que ele diz: Condomínio. [de con- + domínio] s.m. 1. Domínio exercido juntamente com outrem; co-propriedade. 2. O objeto de condomínio (1).

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Vemos aí que a palavra "condomínio" é originalmente o nome de uma ação ("dominar com"), e seu significado primeiro (1) é "domínio exercido juntamente com outrem". Embora este seja o significado próprio e juridicamente definido da palavra "condomínio", ela nunca é empregada neste sentido, exceto no discurso jurídico. No discurso comum e na boca do povo, a palavra "condomínio" é quase sempre usada num segundo sentido (2), como vemos aí no dicionário Aurélio. Neste caso, falase "condomínio" para significar "o objeto de condomínio" (isto é, o edifício). É assim que a população entende quando diz, por exemplo: "moro naquele condomínio" (isto é, naquele prédio), ou então "esta reforma vai valorizar o condomínio" (isto é, vai valorizar o edifício); "vamos instalar grades no condomínio" (isto é, no prédio); "o incêndio destruiu metade do condomínio" (isto é, metade do edifício). Estes dois sentidos são os únicos que vemos registrados no dicionário1. Repare que falta aí um terceiro sentido (3) que a sociedade parece não entender e que o dicionário portanto não registra: falta "o sujeito de condomínio", isto é, a comunidade dos condôminos. No entanto, este terceiro sentido também é significado pela palavra "condomínio", que em muitos contextos e circunstâncias só pode significar "a comunidade dos condôminos", como acontece em frases como estas: "o síndico representa e defende os interesses do condomínio legalmente" (isto é, os nossos interesses de condôminos); "o condomínio que não cumprir estas leis corre o risco de ser responsabilizado por tais ocorrências" (isto é, se nós condôminos não cumprirmos estas leis nós seremos responsabilizados); "a Assembléia Geral é o órgão deliberativo mais importante do condomínio" (isto é, a Assembléia Geral é o nosso órgão deliberativo mais importante); "o condomínio pode entrar com ação na justiça" (isto é, nós condôminos podemos entrar com ação na justiça). Em todas estas frases a palavra "condomínio" só pode significar um sujeito coletivo (nós, a comunidade dos condôminos), pois não cabe aí nenhum dos outros 2 sentidos registrados no Aurélio. Mas por que o dicionário não registra também este terceiro sentido? Como explicar este misterioso desaparecimento cultural da comunidade-sujeito de condomínio? Talvez a explicação seja esta: quando nós usamos a palavra "condomínio" neste terceiro sentido, parece que só o fazemos da boca para fora, isto é, apenas objetivamente e exteriormente, por força das circunstâncias e por mecanismos automáticos e inconscientes de estruturação lingüística, porque subjetivamente (em nossas mentes conscientes) não se forma nenhum conceito claro ou imagem concreta da "comunidade dos condôminos", mas apenas um conceito vago e uma imagem abstrata de alguma "entidade misteriosa" (o condomínio) que não se identifica jamais com as pessoas concretas, com um sujeito coletivo: nós. (É esta mesma mentalidade que produz este disparate de marketing político: "Ele mudou a vida do Brasil com o Real. Agora José Serra vai mudar a vida da gente". Isto quer dizer que o Brasil não é a gente brasileira, pois o Brasil mudou mas a gente ainda não mudou! Então, o que é esse "Brasil"? É outra "entidade misteriosa" que não se identifica jamais com o povo brasileiro.) No caso do condomínio, parece que tudo o que nós conseguimos conceber claramente, perceber nitidamente e imaginar concretamente, é o edifício: essa coisaobjeto que tende assim a ocupar todo o campo de nossa atenção e consciência, excluindo de nossas mentes a presença viva e humana da comunidade-sujeito. (Algo 1

Na segunda edição "revista, ampliada e atualizada" deste Dicionário, o autor acrescenta à palavra "condomínio" um terceiro significado: "3. Contribuição para as despesas comuns, em edifício de apartamentos". Este acréscimo do autor sinaliza mais claramente ainda o sentido da evolução cultural do nosso tempo: ignorar as pessoas e considerar apenas as coisas, e das coisas considerar sobretudo o seu aspecto financeiro, isto é, o seu valor em dinheiro no mercado.

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mais ou menos semelhante também acontece com as palavras "igreja, templo, comunidade".) Isto revela como funciona a nossa mente, sobretudo a dos 5 milhões de condôminos da cidade de São Paulo: a "comunidade-sujeito de condomínio" existe objetivamente, porém ela parece não ter existência subjetiva pois os seus próprios membros dela não têm consciência clara ou até mesmo nenhuma consciência. Ora, como a Igreja somos estas mesmas pessoas, não admira que também ela encontre dificuldade para perceber o sujeito de condomínio, e acabe propondo inadvertidamente uma "pastoral dos edifícios", cujo nome substitui as pessoas (os condôminos) ou a sua ação (con-domínio) pelo objeto de seu domínio, de sua propriedade e uso (o edifício). É como se a Igreja dissesse "pastoral dos automóveis" em vez de "pastoral dos motoristas"! Alguém poderá dizer: "E que importância tem isto, criatura?" Acontece que a substituição da pessoa viva ou de sua ação por uma coisa morta e inerte é a operação básica e fundante da chamada "cultura de morte"; ou seja, esta substituição é a operação que simboliza e realiza a "idolatria": "Consideram as obras, mas não reconhecem o seu Artífice" (Sab. 13,1). E a ação evangelizadora da Igreja está toda ela voltada para simbolizar e realizar a operação inversa, que consiste precisamente em reconhecer e valorizar a pessoa (divina e humana) que vive e age antes e acima de qualquer objeto e coisa morta, por mais valioso, útil e belo que seja. Portanto, numa perspectiva missionária pode-se até (embora não convenha) omitir e deixar de lado a coisa (o edifício), mas é indispensável olhar e entender o condomínio enquanto comunidade humana que vive e age. É isso o que tentarei fazer nas páginas que seguem.

3. CONDOMÍNIO: QUE COMUNIDADE É ESTA? O condomínio é uma comunidade humana que repousa sobre o "ter em comum". E o que é que os membros desta comunidade têm em comum? A fé católica? Não. Os mesmos interesses, valores e princípios éticos? Não. A mesma cultura? Não. A mesma raça ou etnia? Não. Os mesmos ancestrais, laços de sangue ou parentesco? Também não. Nada disso eles têm em comum. O que os membros destas comunidades têm em comum é o seguinte: 1. Em primeiro lugar, os condôminos são autênticos sujeitos de propriedade e uso comunitário do solo e de todas as áreas e coisas comuns do edifício (terreno, fundações, estruturas de concreto, paredes externas e divisórias, halls, escadas, corredores, elevadores, caixas d’água, encanamentos, instalações elétricas, apartamento do zelador, calçada, cobertura etc.). 2. Em segundo lugar, os condôminos são autênticos sujeitos de vínculos legais comunitários, que definem direitos e deveres iguais para todos (cada condomínio possui sua própria Convenção e seu próprio Regulamento Interno, contrata empresas e funcionários, abre conta em banco, faz compras etc. Juridicamente o condomínio é uma "pessoa" (coletiva), pois age como tal).

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3. Em terceiro lugar, os condôminos são autênticos sujeitos de uma administração comunitária (reúnem-se em Assembléias Gerais, tomam decisões comunitárias, elegem periodicamente seus representantes e administradores, examinam e fiscalizam as contas e os documentos etc.). 4. Em quarto lugar, os condôminos são autênticos sujeitos de uma contribuição comunitária para todas as despesas comuns (pagam mensalmente as Taxas de Condomínio, dividem entre si as despesas extraordinárias etc.). Ou seja, o condomínio é uma comunidade de pessoas que possuem, usam e administram seus "negócios" (ou melhor, sua habitação) de modo comunitário. Portanto, nos edifícios já existe uma comunidade de base plenamente constituída e que, em alguns aspectos, se assemelha às comunidades primitivas ou rurais tradicionais. O fato de não percebermos ainda esta nova realidade comunitária que prolifera nos grandes centros urbanos, será que não estaria impedindo a Igreja de "traçar critérios e caminhos, baseados na experiência e na imaginação, para uma pastoral da cidade"? (Puebla 441). Talvez seja por isso também que as CEB’s não se desenvolveram nas áreas centrais da cidade (áreas cheias de edifícios), pois "esta expressão eclesial nota-se mais na periferia das grandes cidades e no campo" (Puebla 624). Por estas razões, penso que seria pastoralmente mais adequado e frutífero pensar em iniciar uma pastoral "dos condomínios", e não "dos edifícios". Deste modo, o próprio nome da pastoral já indicaria vários critérios e caminhos para uma pastoral na cidade, na medida em que nos obriga a olhar e ver esta vida comunitária que prolifera com os edifícios. E em vez de se procurar evangelizar indivíduos e famílias isoladas que moram no mesmo prédio, se procuraria evangelizar as pessoas enquanto membros de uma comunidade de base já existente no prédio. Ou seja, a Igreja procuraria evangelizar as pessoas considerando a situação "de condomínio" em que elas vivem, do mesmo modo que a Igreja considera a situação "de tribo" em que vivem os indígenas que procura evangelizar. Talvez seja este um caminho necessário de "inculturação" do Evangelho.

4. COMO VIVE ESTA NOVA COMUNIDADE DE BASE? O que é novo para as pessoas que hoje moram em edifícios, é muito mais do que a estranha disposição espacial e empilhada de suas casas umas sobre as outras. O que é radicalmente novo para elas é sobretudo aquilo que as une em comunidade: a posse comunitária, o uso comunitário, a lei e o direito comunitário, a administração comunitária e a manutenção comunitária de uma parte de suas casas, parte comum que se encontra indissoluvelmente unida às partes privativas (os apartamentos particulares, que são de propriedade, uso, administração e manutenção exclusiva de seus respectivos proprietários e inquilinos). O condomínio é um tipo de propriedade e de moradia ao mesmo tempo individual e coletiva. Ou seja, a habitação moderna nas grandes cidades adquiriu uma dimensão comunitária que não existia nas habitações e bairros tradicionais. É importante notar que as partes comuns, ou a dimensão coletiva e comunitária da habitação em edifícios predomina largamente sobre as suas partes privativas e autônomas, isto é, sobre a dimensão individual e particular destas habitações. Pois nem mesmo o teto e o piso dos apartamentos, nem as paredes divisórias entre eles, constituem objeto de propriedade

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exclusiva e autônoma, mas são também partes comuns do edifício que não podem ser alteradas por nenhum indivíduo em particular. A rigor, as partes privativas, individuais, exclusivas e autônomas da moradia em apartamentos se reduz a bem pouca coisa: o "espaço interno" do apartamento com suas portas e paredes internas, o "revestimento interno" do teto, do piso e das paredes divisórias entre eles, os ramais elétricos e hidráulicos que servem exclusivamente ao apartamento, e as portas e janelas externas do apartamento (e mesmo estas não podem ser modificadas fora dos padrões estabelecidos pelo condomínio, tendo elas próprias uma dupla dimensão individual e coletiva!). E conforme o edifício, também é objeto de propriedade particular o "espaço" privativo delimitado na garagem do prédio. Tudo o mais que existe num edifício é coisa comum, propriedade coletiva e comunitária. É condomínio de todos. Esta novidade (e ambigüidade) tem evidentemente aspectos positivos e negativos que devemos considerar. O seu lado positivo é que a dimensão comunitária da habitação moderna contém "possibilidades cristãs e evangélicas escondidas, mas já presentes e operantes" que apenas aguardam quem as faça desabrochar (Evangelii Nuntiandi 70). Pois o atual processo civilizatório que vivemos não está somente dissolvendo antigos laços comunitários e destruindo comunidades por toda a terra, mas está também (com igual fúria e cegueira) gerando novos tipos de relações comunitárias que é preciso discernir e aperfeiçoar. E um exemplo disto são os condomínios, cuja vida comunitária ainda permanece oculta e asfixiada. No entanto, estas novas comunidades urbanas existem objetivamente e se multiplicam por toda parte, e em alguns aspectos mostramse até mais sólidas e resistentes do que as antigas: os condomínios só vão deixar de existir no dia em que não mais existirem prédios na cidade, pois a arquitetura do edifício une de modo indissolúvel dezenas de propriedades particulares e de moradias individuais, criando assim a situação de condomínio, isto é: a propriedade coletiva e a habitação comunitária. Ora, esta situação de condomínio é eminentemente pedagógica na medida em que ela atua constantemente em sentido contrário ao egocentrismo e individualismo dominantes, e é exatamente aí que podemos discernir muitas "possibilidades cristãs e evangélicas escondidas, mas já presentes e operantes", dentre as quais eu destacaria as seguintes: 1. A vida em condomínio exige que as pessoas aprendam a viver em comunidade e que cultivem todas as virtudes que isto implica. (Desnecessário dizer que todas as virtudes comunitárias são virtudes de Cristo e frutos do seu Santo Espírito, "escondido, mas já presente e operante nas coisas do mundo". É neste aspecto do condomínio que podemos discernir a principal porta de entrada do Evangelho nos milhares de edifícios residenciais que existem nas grandes cidades, pois trata-se aí de uma situação bastante objetiva que pede e suplica a vinda do Senhor, ainda que as pessoas individual e subjetivamente não tenham consciência disso.). 2. Além disso, pela sua grande complexidade social, a situação de condomínio também exige que as pessoas aprendam os princípios e os fundamentos da atividade política, da democracia e da cidadania, pois os proprietários e inquilinos de um mesmo edifício são os únicos responsáveis pela organização de sua vida comum e pela realização do seu bem comum, e por esta razão todos eles são chamados (por direito, por dever, e por necessidade) a desempenhar simultaneamente os papéis de contribuinte, eleitor, eleito, legislador, administrador, conselheiro, juiz, fiscal, comunicador e até de historiador. E tudo

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isto ocorre em dimensões micro-sociais, no interior do edifício, sob os olhos e ao alcance de todos, até mesmo de crianças, idosos e enfermos. Sob este aspecto, a vida em condomínio parece ser uma situação intermediária entre a pequena comunidade familiar e a ampla comunidade política da cidade, pois as relações no condomínio nem são tão simples, próximas e diretas como os relacionamentos familiares, nem são tão complexas, distantes e indiretas como os relacionamentos políticos da grande cidade. Por estas características, a vida em condomínio pode vir a constituir-se em importante elo de ligação e comunicação entre a vida particular e a pública, entre a vida doméstica e a municipal, entre o espaço íntimo da habitação individual (o apartamento) e o espaço público da habitação coletiva (a cidade). E é isto o que já vemos acontecer, ainda muito timidamente, com a participação de alguns condomínios no nascente programa "Ação Local" da cidade de São Paulo, que "desde 1996 vem estimulando a participação dos cidadãos no cotidiano administrativo da área central de São Paulo dentro dos limites de sua base territorial imediata." (cf. o Informativo "InterAção" para divulgação do Programa "Ação Local" da Associação Viva o Centro – São Paulo). Isto (e muito mais) nos permite olhar o futuro dos condomínios com esperança (aquela esperança cristã que sempre nos ensinou o Arcebispo Emérito desta cidade de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns): estas comunidades de base poderão tornar-se, um dia, pela graça de Cristo, uma força de união, transformação e humanização para toda a sociedade. Mas por enquanto elas são apenas "sinais" de esperança, mas de uma esperança tão rica em possibilidades de vida nova para todo o povo, que temos aí muitos motivos para nos alegrar e agradecer a Deus. Este é um sinal muito positivo do nosso tempo. Louvado seja Deus, que sempre providencia caminhos concretos de vida e salvação para o seu povo. A nós cabe percorrê-los, guiados pelo Santo Espírito: "Através dele, do Espírito Santo, o Evangelho penetra no coração do mundo, porque é ele que faz discernir os sinais dos tempos – os sinais de Deus – que a evangelização descobre e valoriza no interior da história." (Evangelii Nuntiandi 75). Porém o sinal negativo também existe, pois o que se vive atualmente nos edifícios residenciais é uma tragédia (ou comédia) humana digna de um Balzac. Visto por este ângulo sombrio, o condomínio urbano pode ser considerado um verdadeiro "conto do vigário", que dá muito lucro aos empreendedores imobiliários, enquanto que para a população é o início de um tormento novo e constante.

5. ASPECTOS DE UM TORMENTO E este tormento começa quando alguém decide comprar ou alugar um apartamento, pois no contrato de compra ou aluguel vem embutido e oculto um imenso "abacaxi" que o comprador ou inquilino será obrigado a descascar pelo resto da vida: além de tornar-se proprietário ou inquilino de um apartamento, ele torna-se também sócio involuntário de um "negócio comunitário" que só lhe trará despesas, trabalhos e aporrinhações. É esta a trágica natureza do condomínio: ninguém pode possuir ou alugar um apartamento, sem que se torne obrigatoriamente um sócio dessa "empresa", ou melhor, dessa "sociedade" chamada condomínio.

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Entenda-se aí "sociedade" no sentido amplo e jurídico desta palavra: "Contrato consensual pelo qual duas ou mais pessoas se obrigam a reunir esforços ou recursos para a consecução dum fim comum" (cf. Dicionário Aurélio). Esta definição é muito bonita. Resta entender por que razão tal sociedade seria um "tormento" para o povo. Antes de tudo, é preciso que se entenda muito claramente o seguinte: no condomínio, as relações não são "de vizinhança", mas "de sociedade". E é isto o que faz toda a diferença entre a habitação tradicional em casas e a habitação moderna em edifícios. Se não entendermos isto, jamais conseguiremos enxergar o condomínio e a comunidade dos condôminos, e continuaremos a enxergar sempre e apenas o edifício e moradores vizinhos. Bem, de acordo com a definição acima, numa "sociedade" condominial todos os sócios se obrigam, por contrato consensual, a reunir esforços e recursos para a consecução dum fim comum, que é usar, administrar e cuidar de uma habitação comum: o edifício. Portanto, tudo o que diz respeito a esta habitação comum deve sempre ser examinado, discutido, interpretado, julgado, decidido, planejado, votado, realizado, financiado e fiscalizado "em sociedade", isto é, de comum acordo e mediante o consenso, o concurso, ou o consentimento dos demais "sócios". A legislação em vigor (Lei nº 4.591, de 1964) e a Convenção de cada condomínio determinam os casos em que se exige um consenso de todos os sócios, ou um consenso de 2/3 deles, ou da maioria absoluta dos sócios, ou de ¼ deles, ou da maioria dos interessados no assunto presentes na Assembléia Geral, e assim por diante. Na teoria isto é muito lindo, pois é uma bela proposta de cooperação, diálogo e entendimento humano. Mas na prática isto significa para cada morador em particular uma absoluta dependência, sujeição, subordinação e escravidão: todos os aspectos da vida de uma pessoa relacionados à sua habitação comum, dependem (para o bem e para o mal) dos pensamentos, emoções, decisões, palavras, atos e omissões de todos os demais membros da comunidade condominial (sejam eles proprietários ou inquilinos, moradores ou não). Para se ter uma pálida idéia do que pode significar semelhante dependência e sujeição na vida de uma pessoa, cito 2 casos a título de exemplo. Conheço um condomínio onde uma senhora tornou-se alvo da perseguição de uma síndica corrupta e perversa só porque fez uma denúncia pública em Assembléia Geral. A denúncia não deu em nada, pois ninguém sequer procurou entender a gravidade do fato denunciado, mas passado algum tempo e chegada a ocasião, a tal síndica conseguiu facilmente criar uma situação de conflito com esta senhora, e enganando os demais moradores com mentiras e manipulações, fez com que se votasse e aprovasse em Assembléia Geral a cobrança judicial e indevida de uma verdadeira fortuna dessa senhora. E com auxílio de mais mentiras e até falsos testemunhos em tribunal, o caso foi se agravando e se complicando a tal ponto que a pobre senhora teve que se mudar do prédio a conselho de seu advogado. Até hoje corre este processo injustamente movido contra esta moradora, que não encontrou apoio e compreensão de ninguém. Neste mesmo condomínio, uma outra senhora bastante idosa, viúva, sozinha e enferma, que sobrevive da caridade alheia, reclamou que as Taxas de Condomínio estavam exageradamente altas para ela e que não se fazia nada para reduzi-las. Ao saber disso, aquela mesma síndica corrupta respondeulhe com desprezo e sarcasmo: "Quem não pode pagar o condomínio de uma kitchenette, que vá morar na favela!" Esta, e outras milhares de situações semelhantes e bem piores, acontecem o tempo todo nos condomínios como resultado inexorável dos pensamentos e palavras, atos e omissões de todos os sócios da "sociedade" condominial. E quem mora em edifícios é obrigado a viver e a sofrer quotidianamente todos os benefícios e malefícios desta absoluta dependência e sujeição estabelecida pelo contrato "de

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sociedade" condominial, este abacaxi que vem embutido e implícito em todos os contratos de compra ou aluguel de apartamentos. Mas não é apenas "o contrato de sociedade" que é assim imposto ao comprador ou locatário, também "os sócios" são todos impostos pela força da lei e pela total liberdade do mercado imobiliário. Pois quem compra ou aluga um apartamento é obrigado a aceitar por "sócios" todas e quaisquer pessoas que por acaso já sejam (ou venham a ser) proprietários ou inquilinos naquele condomínio. Na vida prática, isto significa nada menos do que o seguinte: se uma legião de demônios resolver comprar ou alugar apartamentos no prédio onde uma pessoa mora, essa pessoa torna-se obrigatoriamente "sócia de uma legião de demônios" (e não apenas vizinha dos demônios), e pelos termos do contrato de sociedade que lhe foi imposto, essa pessoa fica obrigada pelo resto da vida a reunir esforços e recursos com esses demônios para a consecução dum fim comum. E não adianta mudar de prédio, porque o problema continua igual: na empresa ou sociedade condominial, ninguém nunca pode escolher nenhum dos seus "sócios", porque quem escolhe e determina e impõe os sócios todos para todos o tempo todo, é aquela mão invisível, impessoal, implacável e soberana do livre mercado imobiliário.

6. O MERCADO E A COMUNIDADE Veja só que situação estranha e contraditória: a total liberdade do mercado imobiliário resulta em uma escravidão para a população. E trata-se aí de uma escravidão muito bem aceita e aplaudida pelo povo, pois ela vem disfarçada e revestida com os trajes sedutores de uma total liberdade (de venda, compra e aluguel) que a Lei de Condomínio (nº 4.591 de 1964) garante a cada indivíduo de modo isolado, separado e independente dos demais condôminos. Para se compreender essa estranha contradição de uma "liberdade que escraviza" e o efeito ilusório que tal liberdade produz em nós, é preciso considerar o condomínio tal como ele aparece na Lei e tal como ele se realiza na prática social, e fazer isto do ponto de vista de quem usa a moradia para morar, isto é, do ponto de vista da população que habita nos edifícios (seja proprietário ou inquilino). Quando consideramos assim a natureza do condomínio moderno, a primeira coisa que nos chama a atenção é a absurda distinção e separação que a Lei estabelece entre negociante e condômino (entendido aí como o usuário). Segundo a Lei de Condomínio, quando alguém "negocia" o apartamento (seja vendendo, comprando ou alugando), enquanto é "negociante" ele é indivíduo totalmente livre e independente da vontade dos demais condôminos para "negociar" a moradia. É o que diz a Lei: "A alienação de cada unidade, a transferência de direitos pertinentes à sua aquisição e a constituição de direitos reais sobre ela independerão do consentimento dos condôminos." (Cap.I, Art.4º). Por outro lado, segundo a mesma Lei, quando alguém "usa" o apartamento (seja como proprietário ou inquilino), enquanto é "condômino e usuário" ele é sócio totalmente escravo e dependente da vontade dos demais condôminos para "usar, administrar, cuidar e manter" a moradia. É o que diz a Lei: "As decisões da Assembléia, tomadas, em cada caso, pelo quórum que a Convenção fixar, obrigam todos os condôminos." (Cap.VII, Art.24º), e o restante da Lei trata de definir em detalhes os meios e os modos dessa escravidão e dependência mútua.

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Isto significa que o "negociante" é pessoa livre e independente para "negociar" a moradia, enquanto que o "condômino" é pessoa escrava e dependente para "usar" a moradia, ainda que "negociante e condômino" sejam uma só e mesma pessoa em momentos e atividades diferentes: João é negociante quando vende, compra ou aluga a moradia, e o mesmo João é condômino quando usa, administra e cuida da sua moradia. Esta é a Lei, e ela parece justa, pois é igual para todos.2 Acontece, porém, que os empreendedores imobiliários são sempre e apenas "negociantes" (portanto eles são sempre livres e independentes da comunidade) e jamais se tornam "condôminos" (isto é, jamais se tornam escravos e dependentes da comunidade), pois o empreendedor capitalista constrói a moradia (o prédio de apartamentos) para negociar, e não para usar. Enquanto que a população é "negociante", livre e independente da comunidade, apenas por um dia (no dia em que vende, compra ou aluga o apartamento), e depois se torna "condômino", escravo e dependente da comunidade pelo resto da vida! Embora a Lei seja exatamente igual para todos, na prática social ela resulta em desigualdade e injustiça, porque garante total liberdade e independência aos empreendedores capitalistas enquanto que torna a população totalmente dependente dos demais condôminos e escrava da liberdade do mercado (ou melhor, da liberdade do negociante). Este é apenas um dos aspectos do referido "conto do vigário". Esta absurda (e para nós tão natural) distinção entre "negociante" e "condômino" só é possível graças a um passe de mágica que deslumbra e engana a todos nós: no mercado imobiliário prevalece a dimensão individual e desaparece a dimensão coletiva da propriedade imobiliária (do edifício e seu terreno). Este truque mágico que faz desaparecer a dimensão comunitária da propriedade que se negocia, significa pura e simplesmente uma "quebra do contrato de sociedade" (ou de solidariedade) por parte do negociante: quebra de contrato prevista na Lei, permitida apenas ao negociante, e que determina aquela natureza contraditória e ambígua do condomínio moderno, cuja dimensão comunitária ora existe e prevalece (quando a propriedade é um bem de uso), ora dissolve-se e desaparece (quando a propriedade é mercadoria e objeto de negócio no mercado imobiliário). Como entender tal magia? A varinha de condão que opera esta maravilha é o conceito de "fração ideal" do terreno e das coisas comuns do edifício, conceito que aparece logo no 1º artigo da Lei de Condomínio e que tem o poder mágico de fazer desaparecer a dimensão coletiva da propriedade. Já na primeira frase do seu Artigo 1º, a Lei de Condomínio faz questão de deixar bem claro que ela trata sempre e apenas de edificações construídas "sob a forma de unidades isoladas entre si" e que cada unidade constitui "propriedade autônoma". Partindo deste falso pressuposto geral do individualismo e liberalismo moderno (expresso na fórmula "unidades autônomas e isoladas entre si", que contradiz e oculta a realidade do "bem comum" e da "relação de interdependência das pessoas entre si" inerentes ao condomínio), a Lei introduz o conceito mágico de "fração ideal" que permite ao mercado fragmentar, dissolver e fazer desaparecer a dimensão coletiva da 2

Com a presente análise da natureza do condomínio moderno, não estou evidentemente sugerindo que se modifique esta sua natureza, nem estou supondo que isto fosse possível, ou que seria mais justo abolir por Lei esta distinção entre o "negociante" e o "condômino" (seja tor nando o "negociante" dependente da vontade dos demais condôminos para "negociar" sua moradia, seja tor nando o "condômino" livre e independente da vontade dos demais condôminos para "usar, administrar, cuidar e manter" sua moradia). Esta minha análise e crítica tem apenas a finalidade de compreender a natureza do condomínio moderno e o seu modo de funcionamento, compreensão absolutamente necessária para que a Igreja possa promover pastoralmente a atuação missionária dos leigos neste tipo de ambiente ou de comunidade.

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propriedade: "A cada unidade caberá, como parte inseparável, uma fração ideal do terreno e coisas comuns, expressa sob forma decimal ou ordinária." (Art.1º, §2º). Aí está a ficção jurídica (tão real e tão natural para nós) que se encontrou para resolver uma contradição insolúvel da "propriedade" nas sociedades mercantis e capitalistas: contradição que tais sociedades vivem entre a dimensão individual e a dimensão coletiva inerentes a toda e qualquer forma de "propriedade", e contradição que se vive ao se tentar negar uma destas dimensões – no caso das sociedades mercantis e capitalistas, tenta-se negar a dimensão coletiva ou "social" da propriedade e absolutizar a sua dimensão individual ou "pessoal".3 E esta contradição torna-se mais aguda ainda, para tais sociedades, quando se trata de uma propriedade imobiliária predominantemente coletiva e de uso habitacional (como são os edifícios residenciais), cuja estrutura arquitetônica não é concebida nem é construída sob a forma de unidades autônomas e isoladas entre si (como pretende a Lei), mas é construída sob a forma de unidades habitacionais interdependentes e relacionadas entre si (como são na realidade os apartamentos de um edifício, em que predominam as partes comuns, de propriedade e uso coletivo). Neste caso, em que a dimensão coletiva da propriedade é "inegável", a sociedade mercantil precisa encontrar uma solução jurídica "híbrida" que reconheça a dimensão coletiva de cada unidade habitacional e que regulamente as relações humanas desta coletividade, e que ao mesmo tempo permita a livre comercialização destas unidades habitacionais, o que só é possível se elas forem tratadas como unidades autônomas e isoladas entre si, isto é, se a dimensão individual da propriedade for absolutizada para efeito de "negócio". Pois a construção e a comercialização de edifícios de apartamentos representa apenas um excelente "negócio" para o investimento capitalista na produção de mercadorias (isto é, de moradias), satisfazendo plenamente os interesses centrais desta forma de produção. E a construção e a comercialização de edifícios satisfaz estes interesses exatamente naquilo que os contradiz, isto é, na sua predominante dimensão coletiva. Pois a construção de edifícios não só permite a exploração da mão-de-obra em escala industrial, como também permite uma economia sem precedentes de terreno e de todas as coisas que, graças à arquitetura do edifício, podem ser comuns a dezenas de moradias individuais: num terreno onde se poderia construir no máximo 5 casinhas, constroem-se hoje mais de 100 apartamentos, e esta mesma economia ocorre com todas as instalações, dependências, áreas e coisas comuns do edifício. Isto reduz os custos de produção4 de cada moradia individual, sobretudo se considerarmos o valor dos terrenos

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O contrário ocorre nas sociedades de cunho coletivista e comunista, em que tenta-se negar a dimensão individual ou "pessoal" da propriedade e absolutizar a sua dimensão coletiva ou "social". Ambas as tentativas (tanto a individualista como a coletivista) contradizem e prejudicam a natureza humana, que é simultaneamente uma natureza pessoal e social, individual e coletiva. 4

Se a arquitetura dos edifícios permite uma redução dos custos de produção de cada moradia individual, por outro lado a arquitetura dos edifícios provoca um aumento extraordinário dos custos de manutenção e uso da moradia. Pois quem mora em edifício é obrigado a pagar mensalmente sua quota parte de todas as despesas comuns do condomínio, além daquelas que já se tem normalmente com a própria casa, tais como: salários, encargos trabalhistas e sociais dos funcionários do condomínio (zelador, porteiros, faxineiros, etc.), obras, reformas, consertos e manutenção de todas as dependências, equipamentos e coisas necessárias a um edifício (elevadores, interfone, sistema de segurança, alarme e extintores de incêndio, antenas coletivas, bombas d’água, portões automáticos, redes elétrica e hidráulica, pintura e impermeabilização, material de limpeza, lixeiras, móveis, etc.), contas de água, luz e telefone do condomínio, todas as despesas de administração (taxas bancárias, pró-labore do síndico, taxa da administradora, despesas de cartório, material de escritório, xerox, processos judiciais, imprevistos, etc.),

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urbanizados e bem localizados, que se tornam cada vez mais caros e escassos nas áreas centrais das cidades. Deste ponto de vista, a habitação em edifícios é uma ótima solução técnica e econômica para os investimentos de capital na produção de moradias, na medida em que torna possível uma produção desenfreada e bastante lucrativa de moradias muito bem localizadas e de boa qualidade, o que explica a atual corrida pelo ouro imobiliário: constroem-se edifícios (e edifícios cada vez mais altos) por toda parte e até mesmo onde não há a menor necessidade ou conveniência para isto. Porém, se do ponto de vista econômico-financeiro a habitação em edifícios satisfaz plenamente os interesses de lucro e expansão da produção capitalista, por outro lado esta nova forma de habitação cria uma situação social e de direito contrária à sua forma de produção: por ser quase tudo em comum, na habitação em edifícios predomina a dimensão coletiva da propriedade, o que é contrário ao próprio sistema de sua produção, uma vez que toda a produção capitalista está baseada no predomínio absoluto da dimensão privada e individual da propriedade e tem por objetivo imediato o livre comércio das mercadorias produzidas. Ora, à dimensão coletiva da propriedade (o terreno e tudo o que é comum no edifício) correspondem direitos comunitários naturais que limitam e impedem este livre comércio das moradias produzidas. Como resolver esta contradição? Como fazer com que os apartamentos possam ser tratados como propriedades (ou mercadorias) totalmente individuais, privadas, autônomas, separadas e isoladas entre si, e portanto livremente negociáveis no mercado, apesar de sua predominante dimensão comunitária? Como "liberar" tais mercadorias de uma inconveniente dimensão comunitária inerente à própria estrutura física da mercadoria produzida, isto é, inerente à própria arquitetura do edifício? Só haveria duas maneiras de se alcançar tal "liberdade": (1) seja separando e isolando o bem particular do bem comum (isto é, separando e isolando o apartamento particular do terreno e das demais coisas comuns do edifício); (2) seja dissolvendo e dividindo o bem comum (isto é, o terreno e todas as coisas comuns do edifício) em partes ou fragmentos absolutamente individuais, privados, particulares, autônomos, separados e isolados entre si. A primeira solução negaria ao proprietário de um apartamento o seu direito natural individual de propriedade e uso sobre as coisas comuns, o que é inaceitável do ponto de vista dos indivíduos. Já a segunda solução negaria à comunidade dos condôminos o seu direito natural coletivo de propriedade e uso sobre as coisas comuns, o que é inaceitável do ponto de vista da comunidade.

sem falar da roubalheira que costuma acontecer em todas estas transações financeiras. Repare que nada disso existe nas habitações tradicionais em casas. Este é o aspecto econômico-financeiro do referido "conto do vigário", pois, como vemos, a redução nos custos de produção da moradia beneficiam exclusivamente os empreendedores capitalistas, que têm assim aumentados os seus lucros na venda dos apartamentos. Enquanto isso, o aumento nos custos de manutenção da moradia onera exclusivamente os habitantes dos edifícios, que serão obrigados a pagar altas Taxas de Condomínio pelo resto de suas vidas. Só para se ter uma idéia do tamanho deste "conto do vigário", o valor que a população paga em Taxas de Condomínio durante 20 ou 30 anos geralmente equivale ao valor do próprio apartamento onde mora! Eis o "conto do vigário": os benefícios econômicos da habitação em edifício vão todos para os empreendedores capitalistas que produzem e negociam as moradias, enquanto que o ônus econômico da habitação em edifício vai todo para a população que mora nos apartamentos. Trata-se aí de uma nova forma bem disfarçada de apropriação individual dos benefícios e de distribuição coletiva dos prejuízos, isto é, mais um mecanismo de concentração de renda e riqueza.

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(É claro que esta é uma alternativa falsa e que ambas as soluções são impossíveis na realidade, pois o apartamento individual não existe separado das coisas comuns do edifício e do seu terreno, as coisas comuns do edifício com o terreno não existem na forma de fragmentos separados entre si, assim como o direito individual e o comunitário não existem em separado, mas em união. Apesar disso, o negociante quer ser indivíduo autônomo, independente, isolado e separado da comunidade para negociar livremente o "seu" apartamento.) Diante desse impasse, a Lei de Condomínio inventa (ou adota no mercado) o ponto de vista do "indivíduo absoluto", isto é: (1) Preserva integralmente o direito individual de propriedade e uso sobre as coisas comuns afirmando claramente a união indissolúvel entre o bem particular e o coletivo: "A cada unidade caberá, como parte inseparável, uma fração ideal do terreno e coisas comuns, expressa sob forma decimal ou ordinária". (2) E para garantir o predomínio absoluto da dimensão particular e individual da propriedade e a conseqüente liberdade de comércio, a Lei de Condomínio ignora o ponto de vista da comunidade, isto é, nega o direito coletivo de propriedade e uso sobre as coisas comuns afirmando claramente (e contraditoriamente) a dissolução e a divisão do bem comum em partes isoladas e separadas entre si, transformando assim a propriedade coletiva, naturalmente una e indivisível, num aglomerado de "pequenas propriedades particulares" que são as tais "frações ideais" do terreno e coisas comuns: "A cada unidade caberá, como parte inseparável, uma fração ideal do terreno e coisas comuns, expressa sob forma decimal ou ordinária". Deste modo, a Lei de Condomínio (e de Mercado) transforma em "fragmentos privados" o que na realidade é uma "unidade comum" (e com isso transforma em "indivíduos isolados" o que na realidade é uma "comunidade de pessoas"). Esta é a função mágica da "fração ideal". E como o seu próprio nome já diz, trata-se apenas de uma fração "ideal", isto é, fração que existe somente na idéia e na imaginação do negociante-legislador, porque na realidade concreta do edifício e do uso que dele se faz não há nenhum "fracionamento" possível do terreno e das coisas comuns: elas constituem uma unidade indivisível tanto no uso como em sua materialidade, e é exatamente por isso que são bens comuns e objeto de condomínio de todos (isto é, objeto de propriedade coletiva, comunitária). Parece que a Lei de Condomínio (e de Mercado) cria uma realidade puramente mental, imaginária e paralela, que não corresponde à realidade objetiva e perceptível das coisas materiais e das relações sociais. Porque se nós olhamos para a habitação em edifícios diretamente, e não através da Lei de Condomínio (e de Mercado), o que é que nós vemos lá? Vemos que cada apartamento, cada habitação individual ou cada propriedade particular, está indissoluvelmente unida ao edifício todo com seu terreno todo, à habitação comum inteira, à propriedade comum una e indivisível. Se não formos cegos, veremos que um apartamento não existe sem o terreno e as partes comuns do edifício, e que portanto ninguém pode possuir e usar o "seu" apartamento particular sem ao mesmo tempo possuir e usar (junto com todos) o terreno e as partes comuns do edifício em sua totalidade e unidade indivisível, pois é impossível alguém possuir e usar apenas uma "fração ideal" do terreno e do hall de entrada, apenas uma "fração ideal" do alicerce e das estruturas de concreto, ou apenas uma "fração ideal" do elevador e da caixa d’água, das escadas e corredores, e assim por diante. Em suma: ou o morador possui e usa "em comum com todos" o elevador "inteiro", ou então ele não pode nem possuir nem usar este elevador. Não há outra alternativa. A união indissolúvel entre o bem particular e o bem coletivo (ou comum), e a unidade indivisível do bem coletivo, é o que constitui a realidade física da habitação em edifícios e o que determina as relações sociais de mútua dependência e obrigação

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entre todos os moradores, proprietários e inquilinos de cada apartamento. Portanto, esta união e esta unidade (habitacional) é o próprio fundamento natural da comunidade (condominial). E qualquer coisa que dissolva esta união ou divida esta unidade, dissolve e divide a própria comunidade.5 O negociante, porém, ao negociar a moradia, é livre dessa dependência e obrigação comunitária, e age como se "propriedade" fosse algo separável de "uso", age como se o apartamento que negocia fosse algo separável do resto do edifício, age como se a propriedade particular que negocia fosse algo separável da propriedade comum, e age como se a propriedade comum fosse algo divisível em frações "reais" negociáveis no mercado. Enfim, a Lei e a nossa mentalidade mercantil moderna permite ao negociante (e somente a ele) dissolver a unidade real da habitação em dimensões separadas (a propriedade e o uso), em partes autônomas (os apartamentos), em frações imaginárias e isoladas entre si (as frações ideais do terreno e coisas comuns do edifício), para poder negociá-las livremente no mercado imobiliário. Ou seja, ao Mercado a Lei concede o privilégio de poder separar o que é inseparável, de dissolver o que é união indissolúvel, e de dividir o que é unidade indivisível, fazendo assim "desaparecer" o bem comum que é propriedade de todos, que é interesse de todos e objeto de regulamentação, controle e cuidado por parte de todos. É esta quebra do contrato de sociedade (ou de solidariedade) o que confere total liberdade e independência ao negociante, ao negócio e ao mercado imobiliário. O curioso é que só a eles isto é permitido por Lei, porque uma vez realizado o "negócio", o contrato de sociedade se restabelece, a unidade indivisível do terreno e das coisas comuns do edifício se recompõe, o particular e o coletivo (assim como propriedade e uso) voltam a unir-se "inseparavelmente", até o momento em que a moradia seja de novo "objeto de negócio e mercadoria", quando então tudo volta a dissolver-se, a separar-se, a desunir-se e a dividir-se em partes autônomas e isoladas entre si. Esta é a "magia" do mercado e do dinheiro: o conceito jurídico de "fração ideal" só vale para o negociante fazer negócio no mercado imobiliário. Fora do mercado e longe do dinheiro, o conceito de "fração ideal" deixa de valer e de existir. E o que passa a valer e a existir é a realidade concreta e natural do "bem comum". Infelizmente é esta a natureza, a realidade e a essência do "condomínio moderno", forma de contrato social bastante satisfatória e adequada aos interesses, necessidades e conveniências dos negociantes, dos negócios e do mercado imobiliário, que não toleram qualquer tipo de interferência, regulamentação e controle social, ou seja, não toleram qualquer tipo de "limite" proveniente do outro! Mas alguém poderá dizer: "E o que isto interessa aos propósitos de Evangelização da Igreja Católica? " Bem, isto tudo interessa à fé cristã na medida em que condiciona e forma a mentalidade das pessoas e as relações reais entre elas: quando a Lei de Condomínio (e de Mercado) transforma em "fragmentos privados" o que na realidade é uma "unidade comum", o que se atinge não é o edifício (este permanece intacto), mas sim a mente das pessoas, porque ao fazer isto a Lei de Condomínio (e de Mercado) transforma em "indivíduos isolados" o que na realidade é uma "comunidade de pessoas". E esta ilusão mercantil e mentira liberal interessa muito à fé cristã, porque corrompe em nós a imagem do nosso Deus, que não são três indivíduos isolados e separados entre si 5

Este também é o cerne da atual questão ecológica, pois o planeta Terra também é Nossa Casa Comum, a despeito de todos os "fracionamentos ideais" e imaginários que fazemos no planeta com as nossas fronteiras nacionais, cercas divisórias e muros de separação.

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negociando livremente num mercado universal, mas sim uma comum-unidade de amor entre as pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo: "Para que eles sejam um, assim como nós somos um". (Jo 17,11). Quando a Lei permite que o Mercado dissolva a dimensão comunitária da propriedade habitacional, está na verdade permitindo que dissolva a base e o fundamento natural da própria comunidade condominial, e a conseqüência disso não é obviamente o desmoronamento do edifício, mas sim o desmoronamento da comunidade: o mercado imobiliário dissolve constantemente a comunidade condominial! No mercado, o objeto de condomínio (o edifício) permanece sólido e intacto, enquanto que o sujeito de condomínio (a comunidade) dissolve-se e desaparece! E desaparece até mesmo do Dicionário Aurélio e, perdoem-me dizê-lo, desaparece também das preocupações pastorais e missionárias da Igreja Católica. Enfim, desaparece da mente de todos nós, e parece que só tomamos consciência disso quando não suportamos mais ver tanta tragédia e sofrimento inútil gerados pelo egoísmo e individualismo absoluto reinantes nos condomínios. Talvez este "desaparecimento cultural" do sujeito de condomínio fique mais fácil de se entender se nós considerarmos como é que se formam as comunidades condominiais na vida quotidiana, mais simples e concreta.

7. COMO É QUE SE FORMAM ESTAS COMUNIDADES? Todas as comunidades condominiais são geradas e formadas no seio de um "negócio", que consiste na produção, venda, compra e aluguel de uma mercadoria chamada "apartamento". E o negócio acontece assim: sob a proteção dos poderes públicos, uma grande empresa imobiliária compra um terreno, derruba tudo o que há ali (inclusive patrimônios culturais e naturais), constrói no lugar um prédio e põe os apartamentos à venda. Ao fazer este negócio e vender as moradias, os empreendedores não consideram em nenhum momento a comunidade que ali vai se formar: sua única preocupação e seu único interesse é vender a mercadoria e receber o dinheiro do pagamento. Para os empreendedores e para o poder público, desde que a mercadoria seja paga, qualquer pessoa está plenamente habilitada para tornar-se membro desta comunidade. Portanto, o "pagamento da mercadoria" é o único critério que preside à formação e à renovação das comunidades condominiais, é a porta de entrada e o rito de admissão à comunidade (uma espécie de "batismo" que se realiza com o dinheiro no mercado imobiliário). Por outro lado, todas as pessoas que desejam comprar ou alugar os apartamentos em oferta no mercado, estão evidentemente apenas à procura de uma "moradia" e não estão em busca de nenhum "negócio comunitário" e muito menos de uma "comunidade": nada disso lhes interessa. Portanto, em função da sua necessidade e interesse por uma "moradia", todas estas pessoas consideram minuciosamente o preço, a localização, o tamanho, a arquitetura, o acabamento e o estado da mercadoria, além de alguns aspectos de segurança, sossego e status que possam estar agregados à mercadoria por causa da sua vizinhança. De modo que ao comprar ou alugar sua moradia, ninguém se lembra (nem é lembrado) de considerar a comunidade condominial, apesar de ser com ela que irá contrair laços jurídicos "de sociedade" que implicam em co-propriedade, uso comum, leis e direitos comuns, administração comum e manutenção comum de uma

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parte da sua moradia. Este parece ser o único negócio ou sociedade do mundo onde as pessoas entram sem se dar conta e onde ninguém se preocupa em conhecer os termos do contrato de sociedade nem os seus futuros sócios: comportamento típico de quem costuma cair no "conto do vigário". Resumindo: aos empreendedores imobiliários interessa o dinheiro que recebem pela venda ou aluguel da mercadoria, e à população interessa a mercadoria pela qual pagam. E a ninguém interessa a comunidade. É assim que se formam (objetivamente) e ao mesmo tempo "desaparecem" (subjetivamente) as comunidades condominiais.6 Ao fazerem este "negócio", todos se preocupam com o objeto de condomínio (a mercadoria produzida e negociada), mas ninguém se preocupa com o sujeito de condomínio, de modo que a comunidade que se cria é sempre um mero resultado aleatório de ofertas e procuras individuais no mercado imobiliário, e por esta razão a comunidade é sempre uma convergência artificial e forçada de indivíduos que nada têm em comum além de uma propriedade (o objeto de condomínio) e daqueles direitos e obrigações legais decorrentes dessa propriedade (o uso e o cuidado desse objeto). Portanto, a origem da comunidade condominial é uma coisa (na forma de mercadoria livremente negociada no mercado imobiliário), e a finalidade da comunidade é também essa mesma coisa (na forma de moradia a ser usada e conservada). Daí que, para cada morador, proprietário ou inquilino de apartamento, as demais pessoas da comunidade e a própria comunidade como um todo não passam de contingências necessárias, obrigatórias e desagradáveis, um estorvo apenas para que se possua uma coisa, se use uma coisa, se administre a coisa, e se conserve essa coisa. Por sua origem e fim, a comunidade condominial só existe em função de uma coisa, e caso essa coisa (o edifício) desapareça, a comunidade simplesmente deixa de existir, o que não é o caso, por exemplo, de outras formações comunitárias: uma comunidade eclesial continuará existindo mesmo que o seu templo desapareça, e uma comunidade familiar também continuará existindo mesmo que a sua casa desapareça, pois a origem e o fim destas comunidades tradicionais (em extinção) não é um templo nem uma casa, mas sim a união amorosa entre pessoas: união dos homens com Deus e entre si (no caso da Igreja) e união de um homem com uma mulher e os filhos (no caso da família). É nisto que parece consistir a principal diferença entre as comunidades tradicionais que desaparecem e as comunidades modernas que tomam o seu lugar: nas tradicionais o vínculo é entre pessoas, e as coisas são apenas instrumentos ou sinais deste vínculo; nas modernas o vínculo é das pessoas com uma coisa (geralmente na forma de uma mercadoria e de seu equivalente monetário), que adquire assim as características de um ídolo (ou fetiche) do qual dependem e ao qual se subordinam as relações entre as pessoas. Sem o fetiche, a relação entre as pessoas não existe, não tem razão de ser. 6

Esta natureza ambígua e contraditória do condomínio moderno se reflete claramente na vida e nas atitudes das pessoas que moram nos edifícios, onde podemos observar uma constante tensão e conflito entre a necessidade objetiva de se viver em comunidade e o desejo e a vontade subjetiva de se viver isolado, cada um cuidando de sua vida particular fechado no seu apartamento. É no seio desta tensão e conflito que o evangelizador irá atuar. E o seu maior desafio é ajudar a criar as condições objetivas e subjetivas para que os moradores tenham vontade de viver em comunidade e que possam fazê-lo de fato. Porque não basta existir o remédio e a necessidade objetiva de tomá-lo: é preciso também que o doente queira tomá-lo e que possa tomá-lo. A começar pelos próprios evangelizadores. E somente o amor de Cristo será capaz de transformar uma interdependência obrigatória numa cooperação voluntária, isto é, uma necessidade repugnante em um desejo e vontade ardentes: "Devo ser batizado com um batismo, e como estou ansioso até que isto se cumpra!" (Lc 12,50). Este será o milagre de amor nos prédios da cidade: a alegria dos seus moradores viverem em comunidade. Pois quem ama quer o bem da pessoa amada e se alegra em fazê-la feliz.

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Quando a própria existência de uma comunidade humana depende exclusivamente de uma coisa, por definição tudo nela é função dessa coisa: nos condomínios, o valor das pessoas e o relacionamento com elas, em vez de ser um fim procurado e desejado por si mesmo, reduz-se a um meio obrigatório e não desejado para que alguém possua uma moradia moderna ou para que more nela. Assim, nos condomínios, as próprias pessoas tornam-se "funções" de uma coisa, e os relacionamentos humanos tendem a ser "funcionais" no pior sentido desta palavra. E isto acontece porque a comunidade condominial é sempre gerada e formada no seio de um "negócio". E no mercado ou "no mundo dos negócios", tudo tem preço e nada é de graça; e como o amor não tem preço e é de graça, Deus e o próximo ficam esquecidos nesta desgraça. (Ct 8,7). Veja que triste comunidade é esta: concebida pelo matrimônio da empresa imobiliária com o poder público, nascida segundo as leis do mercado, batizada num Cartório de Registro de Imóveis, amamentada com o dinheiro das Taxas de Condomínio, e (o que é mais triste) educada pela Lei de Condomínio, nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964 (Lei decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, cujo propósito de governo, a longo prazo, era estabelecer um liberalismo econômico e político "moderno": economia baseada na empresa privada, e democracia "expurgada do populismo subversivo". Educada por estes princípios, a mentalidade dominante nos condomínios só podia ser o individualismo e o autoritarismo, tão contrários à mente de Cristo). Esta origem exclusivamente mercantil e empresarial (e por isso mesmo também ditatorial) dos condomínios urbanos, e a conseqüente convivência forçada em seu interior, explica em grande parte aquela natureza desumana, fria, distante, desconfiada, conflituosa e problemática das relações "comunitárias" entre seus membros. Não me refiro aqui às relações "particulares" ou "de vizinhança" (isto é, aquelas relações espontâneas de uma pessoa com outra e que são livremente escolhidas e determinadas por cada um no interior do prédio), mas sim às relações "comunitárias" ou "de condomínio" (isto é, aquelas relações contratuais de sociedade que se dão entre todos os sócios e que são obrigatórias a todos eles). Pois trata-se aqui de uma verdadeira violência comunitária imposta cegamente à população pelas empresas imobiliárias e pelo poder público (que só se interessam pelo bom andamento dos negócios imobiliários, e jamais pelo que acontece na vida destas comunidades depois que elas se formam), violência esta que provoca nos habitantes de edifícios uma reação natural de auto-defesa por meio da fuga, do ataque ou da indiferença total e generalizada. E não nos enganemos com aquela "gentileza e cortesia" que se vê entre os moradores quando se encontram rapidamente no elevador ou na portaria do prédio: esta "cordialidade" quase sempre é uma fina camada de verniz social bem polido que se descasca e desaparece tão logo se trate de questões e relacionamentos condominiais (isto é, relativos à propriedade, ao uso, ao direito, à administração e à despesa comunitárias). Nesta hora, o ataque, a fuga e a indiferença costumam manifestar-se com toda clareza e força de uma paixão: as pessoas agridem, desrespeitam, xingam, gritam e esbofeteiam; outras tremem, humilham-se e se submetem; ou então ignoram, calam-se, omitem-se e retiram-se indiferentes. Nestas horas raramente vê-se sincera cordialidade e consideração, real atenção e interesse pelo outro. Também, pudera! Os condomínios são como aqueles casamentos forçados e arranjados por necessidades e interesses de família, onde os noivos são estranhos um para o outro, e no entanto são obrigados a constituir uma comunidade familiar estável até que a morte (ou a venda do apartamento) os separe. Não admira que tais casamentos (ou comunidades) raramente dêem certo. É esta a tragédia humana que se vive nos 28

edifícios: pessoas completamente estranhas umas às outras, pessoas que não partilham das mesmas origens, costumes e tradições, pessoas com interesses, valores e princípios éticos diferentes ou até contrários, pessoas vindas de todas as regiões do país e do mundo, pessoas pertencentes a classes e grupos sócio-econômicos e culturais os mais diversos, subitamente são obrigadas a viverem fortes e permanentes vínculos comunitários artificialmente criados, e exteriormente determinados, por necessidades e interesses econômicos do mercado imobiliário (mercado do qual os próprios moradores também participaram, no dia em que compraram ou alugaram um apartamento). O resultado disso é que cada morador, com suas atitudes e comportamentos, parece falar uma língua completamente estranha e incompreensível para os demais, fazendo dos condomínios uma verdadeira Torre de Babel onde ninguém se entende. Numa situação imposta e não desejada como esta, a atitude mais comum é a pessoa recusar-se a aceitar e viver tais vínculos comunitários. Porém, o coitado do condômino não pode recusar-se a possuir e usar as partes comuns de sua própria casa, nem pode recusar-se a contribuir mensalmente para as despesas comuns: tudo isso é obrigatório por força da Lei e da própria arquitetura do edifício. Mas o condômino pode muito bem recusar-se ao relacionamento com os demais moradores (que são todos estranhos) e pode também recusar-se a participar e a colaborar na organização e administração do condomínio (essa coisa complicada, conflituosa, chata e trabalhosa). E é isto o que a maioria dos condôminos fazem: isolam-se e não participam. Pois isto é permitido pela Lei de Condomínio, que apenas obriga os sócios a "reunir recursos", mas não obriga ninguém a "reunir esforços" para a consecução dum fim comum. Também aí a Lei de Condomínio confirma e reforça a natureza exclusivamente mercantil dos condomínios: pagar e reunir recursos é obrigatório (e a Lei é clara e muito eficaz neste sentido), mas cooperar e reunir esforços não é obrigatório (pois ninguém é obrigado a participar das Assembleias e reuniões, nem é obrigado a tomar parte das discussões e colaborar nas decisões e ações relativas ao bem comum). Daí que ninguém reúne esforços, apenas recursos, embora todos sejam igualmente responsáveis não só pelas despesas mas também pela administração e realização do bem comum. Este é o problema central destas novas comunidades urbanas: o isolamento das pessoas e a não participação na vida comunitária. Isto tem uma conseqüência gravíssima para a vida dessas pessoas: a administração e a organização da vida comunitária dos condomínios fica completamente abandonada e entregue nas mãos de qualquer um, geralmente de raposas e lobos que vêem aí uma excelente ocasião de rapina, pois é enorme o volume de dinheiro que todos são obrigados por Lei a depositar mensalmente nos cofres comunitários. Só para se ter uma idéia, em 20 ou 30 anos o valor que cada um é obrigado a pagar em Taxas de Condomínio equivale ao valor do próprio apartamento onde mora.7 Qual é a raposa que não deseja ardentemente "administrar e cuidar" dessa bolsa comum abandonada por todos? Aí está um problema que convém examinar mais de perto para conhecermos a natureza e o tamanho do mal que é gerado pela corrupção administrativa dos condomínios.

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Fiz este cálculo nas décadas de 80 e 90, em função das Taxas de Condomínio que eu pagava e do valor de mercado do apartamento (kitchenete) em que eu morava no centro de São Paulo. É óbvio que esta relação varia muito conforme a época e o condomínio considerado, devido às grandes flutuações no valor dos imóveis no mercado imobiliário brasileiro.

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8. A CORRUPÇÃO ADMINISTRATIVA NOS CONDOMÍNIOS Em primeiro lugar, é preciso considerar as prováveis proporções dessa corrupção administrativa: uma pessoa que já morou em 9 condomínios diferentes, disse-me que em todos eles havia graves problemas de corrupção. E esta tem sido (ou em breve será) a experiência de todas as pessoas com quem eu tenho conversado sobre o assunto. Mas, para não sermos tão pessimistas, vamos supor que a corrupção nos condomínios seja proporcional à corrupção nas administrações públicas do país. Ou talvez seja bem maior, porque as administrações públicas são disputadas a unhas e dentes pelos diferentes partidos políticos que se fiscalizam e se denunciam uns aos outros, enquanto que nos condomínios ninguém (exceto as raposas) quer perder o seu tempo administrando ou fiscalizando as coisas comunitárias, o que deixa o campo livre e completamente desimpedido para a corrupção dominar e agir em total liberdade. Isto basta para se ter uma idéia do problema. Em segundo lugar, é preciso considerar que uma administração corrupta, para se manter no poder, precisa construir ao redor de si uma verdadeira rede de corrupção e mentira que lhe dê apoio e sustentação. Nos condomínios, esse tipo de administração geralmente procura (e acaba por) corromper a todos por todos os meios. Corrompe os proprietários dos apartamentos (que também não são muito honestos nem santos inocentes, diga-se de passagem), porque são eles que votam nas Assembléias Gerais e elegem os administradores, aprovam suas contas, seus projetos e orçamentos. É a famosa e tradicional "compra e venda de votos e de apoio" por meio de favores especiais ou "privilégios" concedidos pelo síndico, que usa seu poder, sua autoridade, e o dinheiro dos outros proprietários e inquilinos para efetuar esta compra. O preço varia conforme as circunstâncias e as pessoas. Às vezes, para o síndico "comprar" alguém, basta uma simples permissão para o "amigo e aliado" fazer algo que é proibido aos demais condôminos. Pode ser também uma "isenção" das Taxas de Condomínio (isenção oculta pela contabilidade), ou ainda um "generoso perdão" de dívidas ou multas. Outras vezes, o síndico cobra dos inquilinos despesas extraordinárias devidas exclusivamente pelo proprietário do apartamento alugado, que tem assim o seu imóvel valorizado com as reformas suntuosas e caras feitas no edifício e pagas pelo inquilino. Ou então, o síndico realiza reformas, consertos e pinturas em apartamentos particulares com os recursos do condomínio. Algumas vezes o síndico seduz e conquista aliados com um falso gesto de amizade e cortesia, oferecendo um simples cafezinho na sua casa, ou tomando o partido de alguém numa disputa qualquer entre moradores, proprietários e inquilinos. Como todos os poderes se concentram nas mãos do síndico, os meios e as possibilidades desta sedução e corrupção variam ao infinito! Uma vez assim seduzido, o condômino corrupto torna-se não só um fervoroso aliado e defensor do síndico mas também um refém da sua própria corrupção e cumplicidade, e a partir de então fará tudo o que o síndico pedir e quiser que ele faça. Quando o síndico não consegue corromper com tais agrados, corrompe com o chicote do medo: ameaça, persegue, calunia, atormenta, multa, processa, até que o morador se deixa dominar pelo medo, acomoda-se e cala-se. A ousadia dos corruptos é tanta que certa vez, conversando com uma síndica corrupta e cínica, ela teve a coragem de apontar para todos os prédios da vizinhança e dizer: "Eu conheço todos os síndicos destes prédios, e você nem imagina o que eles fazem! Perto deles, o que eu faço não é nada!" (E disse-me isto para desculpar-se de ter falsificado procurações, manipulado a eleição para o cargo, alterado o livro de presença da Assembléia Geral, mentido na ata desta assembléia, e depois destruído todos os vestígios documentados deste crime para impedir sua investigação.) 30

Além de corromper proprietários, tais administrações corrompem de cima abaixo os funcionários do condomínio, desde zeladores, porteiros até os faxineiros, sem os quais muitos tipos de manipulação e corrupção não poderiam acontecer. Para corrompê-los, o síndico usa a mentira, o dinheiro do condomínio e sobretudo o seu poder soberano de contratar e demitir funcionários, dar ou retirar benefícios salariais e outros quaisquer, conceder ou negar as vantagens de uma promoção ou certas conveniências de horário, tipo de serviço, disciplina etc. Deste modo o síndico transforma os funcionários do condomínio em dóceis empregados particulares dispostos a realizar todo tipo de serviço escuso a mando do seu "patrão", e em vez de servirem ao condomínio, os funcionários servem ao síndico: andam pelo prédio e pela cidade em busca de procurações dos proprietários para o síndico se reeleger; investigam e informam o síndico sobre a vida particular e pública de todos os moradores para que ele (ou ela) saiba como melhor manipulá-los, enganá-los, dividi-los, seduzi-los, controlá-los, corrompê-los, chantageálos, ou, se for o caso, persegui-los. Além desses serviços mais leves, os funcionários também são coagidos a prestar falsos testemunhos em tribunais nos casos de conflito judicial, a se tornarem passiva e ativamente cúmplices de manipulações, falsificações, roubos e mentiras, e por fim os funcionários corruptos começam a competir com os administradores para ver quem mente e rouba mais, e chegam até mesmo a ameaçar de morte algum funcionário mais honesto ou linguarudo, obrigando-o a calar-se e a demitir-se. Corrompem as administradoras, ou melhor, aliam-se à corrupção cada vez mais generalizada das empresas administradoras de condomínio. Em troca de um valioso contrato feito pelo síndico em nome do condomínio, estas empresas normalmente aceitam fazer "qualquer negócio" que o síndico deseje. Caso contrário, perderão o contrato para outras empresas concorrentes menos escrupulosas e mais espertas: é a cruel lei do mercado. De modo que o síndico corrupto sempre encontra a mercadoria que quer: administradoras corruptas que aceitam, promovem, sugerem e ocultam tecnicamente e descaradamente todas as irregularidades e desonestidades administrativas que se possa imaginar. Juntos e em estreita colaboração, os síndicos e as administradoras tapeiam os condôminos com todo tipo de mentiras, informações truncadas e balancetes confusos. Juntos, atuam sempre contra os interesses e os direitos dos proprietários e dos inquilinos, sonegando-lhes informações essenciais e impondo todo tipo de obstáculo que se possa conceber para impedir a fiscalização e a participação dos moradores. Juntos, fazem desaparecer do arquivo do condomínio certos documentos comprometedores, alteram livros de presença e mentem por escrito nas Atas das Assembléias. Falsificam procurações, orçamentos, notas fiscais, licitações, desviam verbas e fazem depósitos secretos em contas bancárias fantasma ou laranja. Enfim, tais administradoras colocam a serviço do síndico corrupto todos os seus recursos profissionais, jurídicos, contábeis, técnicos e humanos (todos pagos e mantidos pelo condomínio) para enganar e roubar o condomínio, satisfazendo assim sua ambição e a do síndico "seu patrão". Diante disso, o morador indignado desiste de participar, fiscalizar e combater a corrupção, pois é impossível alguém competir com uma equipe de profissionais corruptos, bem pagos e competentes, que detêm todas as informações, toda a autoridade e poder, além de terem o dia todo disponível para inventar mentiras e providenciar armadilhas, golpes e contra-golpes para neutralizar a ação dos revoltosos e continuar controlando o condomínio inteiro. Corrompem as demais empresas e profissionais prestadores de serviço ou fornecedores com os quais "trabalha". É sempre o mesmo esquema de "trabalho": os negócios e contratos serão feitos desde que a empresa ou o profissional forneça ao

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síndico notas fiscais falsas ou superfaturadas, e justifique contabilmente e tecnicamente gastos absurdos, reformas desnecessárias e serviços mal feitos. Geralmente estas empresas e estes profissionais corruptos, orientados e recomendados pelo síndico, zelador ou pela administradora, seduzem alguns condôminos mais ativos e influentes no condomínio, prestando-lhes serviços particulares e fornecendo-lhes mercadorias de boa qualidade e baixo custo, ou até mesmo sem nenhum custo, pois o síndico e a administradora "darão um jeito de jogar essa despesa nas contas do condomínio". O condômino assim seduzido (enganado ou corrompido), sempre defenderá com unhas e dentes a contratação de tais empresas e de tais profissionais, "tão competentes, honestos e baratos", poupando ao síndico e à administradora a desagradável tarefa de impor, nas reuniões do Conselho e nas Assembléias Gerais, a contratação de seus cúmplices, o que sempre poderia levantar algum tipo de suspeita. Corrompem pessoas estranhas ao condomínio, que comparecem às Assembléias Gerais munidas de procurações falsas para votar, outras vezes apresentam-se como advogadas e engenheiros que colaboram para enganar a Assembléia toda a respeito de Leis e Obras, tumultuar e fazer calar as pessoas indesejáveis e perigosas para o síndico, ou então são simples capangas mal pagos para ameaçar, espancar ou assassinar quem possa denunciar, testemunhar e provar sua corrupção. Enfim, as administrações corruptas "conjugam por todos os modos o verbo rapio. E estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas. Furtam juntamente por todos os tempos, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse." (Sermão do Bom Ladrão, Pe. Antonio Vieira). E tudo isto se faz muito bem oculto e disfarçado sob a capa espessa e impenetrável da hipocrisia, da fingida honestidade, eficiência, amabilidade e até espiritualidade cristã! Se pudessem, enganariam e roubariam até os anjos do Senhor. E quando, após anos de mentira e roubalheira, vem à tona um evidente escândalo que obriga o síndico a deixar o cargo, é comum ele (ou ela) mudar-se impune para algum apartamento de luxo comprado com dinheiro roubado de inquilinos de baixa renda, viúvas em dificuldade, famílias de desempregados ou de trabalhadores honestos. Por aí podemos ver quanto mal é semeado e esparramado na cidade por uma única administração corrupta. E este mal não significa apenas prejuízo financeiro para os moradores, mas acima de tudo significa a destruição dos próprios fundamentos do convívio humano dentro e fora dos condomínios. Pois destruiu-se a verdade e a confiança mútua. Destruiu-se a justiça, o respeito às pessoas e aos seus direitos. Destruiu-se a paz, a amizade, a concórdia e a união entre as pessoas. E freqüentemente tal destruição é irreparável, pois apenas uma pequeníssima parte da rede de corrupção e mentira costuma ser esclarecida e trazida à luz: o muito que ainda permanece oculto e ignorado alimentará indefinidamente no coração das pessoas o verme odioso da suspeita e da desconfiança generalizadas, este verme bastante realista e prudente que corrói por dentro a inocência e a pureza dos relacionamentos humanos. E quando consideramos que só na grande São Paulo existem mais de 30 mil condomínios residenciais,8 podemos imaginar as proporções dos males gerados por semelhante corrupção numa sociedade dominada pelo anonimato, pela economia de mercado e pela livre concorrência, onde sobrevive melhor a empresa que corrompe ou se deixa corromper, se mantém no emprego o funcionário que se deixa corromper, e só tem um pouco de paz e sossego o morador que aceita calado tudo isso no seu prédio. 8

Dados de 2001, ano em que escrevi este texto. Agora em 2015, já são mais de 40 mil.

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E deste modo, a corrupção nos condomínios promove pela cidade toda uma constante "seleção social" dos mais corruptos e perversos: estes prosperam e se fortalecem, enquanto que os honestos e simples regridem e desaparecem. Esta "seleção social" às avessas opera do seguinte modo: um encanador foi procurado por uma síndica corrupta para trabalhar no seu prédio, só que ele teria que fornecer notas fiscais superfaturadas. Como este encanador era cristão evangélico, ele não aceitou a proposta e preferiu ficar sem o trabalho, pois para ele "mentir é pecado". Então a síndica contratou um outro encanador (desonesto) para fazer a troca de todas as colunas de água do prédio: este encanador fornecia notas fiscais superfaturadas em 100%, e dividia com a síndica o valor cobrado pelo serviço. Hoje, este encanador é proprietário de uma loja de materiais de construção no centro da cidade, e nunca lhe falta serviço. Enquanto isso, o encanador honesto continua até hoje sendo "punido" por causa de sua honestidade e fidelidade ao Senhor Jesus. É deste modo que se opera na cidade uma implacável "seleção social" às avessas, que recompensa o mal e pune o bem, semeando no coração de todos a idéia de que o mal compensa e o bem só nos prejudica. "E os males se multiplicaram no mundo." (1Mc 1,9). Toda esta corrupção nos condomínios faz parte de um "círculo vicioso" difícil de se romper: a origem exclusivamente mercantil e empresarial dos condomínios gera desde o início o isolamento dos moradores e a não participação nas questões comunitárias. Isto permite que a corrupção logo se instale nas administrações, que por sua vez passam a promover ativamente e por todos os meios e modos possíveis a desunião e a nãoparticipação dos moradores, o que permite que a corrupção instalada se fortaleça ainda mais e se perpetue no poder, segundo o preceito "mentir e dividir para reinar e roubar". E quando nestes condomínios aparece um grupinho de moradores que mal consegue se reunir e que tenta de algum modo participar para mudar esta situação, eles encontram em si mesmos um obstáculo quase intransponível: a própria ignorância de tudo o que diz respeito ao condomínio (e falo por experiência da minha própria e total ignorância nestes assuntos): legislação e jurisprudência, finanças e contabilidade, engenharia e arquitetura, obras, reformas e consertos, orçamentos, pesquisas de mercado, Assembléias Gerais, eleições, votações, solução de conflitos, comunicação, reuniões, contratos comerciais e trabalhistas, funcionários, administradoras, documentos, cartório, segurança etc...etc... É todo um universo cultural imenso, novo, complexo e específico dos condomínios, geralmente muito bem conhecido pelos lobos e raposas, e completamente ignorado pelas ovelhas e cordeirinhos. Para se ter uma idéia da gravidade desta ignorância, em meu condomínio uma parte das "eleições" e das "decisões tomadas em Assembléia Geral" não são votadas pela Assembléia porque ninguém as coloca em votação e ninguém exige que se faça uma votação: nem o presidente da Assembléia, nem o seu secretário, nem a síndica, nem os conselheiros fiscais, nem o funcionário da empresa administradora do condomínio, nenhum dos "advogados" presentes, e o que é mais grave, nenhum dos condôminos presentes. As opiniões divergentes são apenas expressas (cochichadas para a pessoa ao lado ou então gritadas num tumulto), mas depois a Assembléia não vota por nenhuma delas: enrola-se o povo facilmente, muda-se de assunto, passa-se adiante ou encerra-se a Assembléia. E no dia seguinte, o triunvirato composto (1) pela síndica, (2) pelo funcionário da empresa administradora (que geralmente assume a função de secretário para poder redigir a Ata), (3) e pelo presidente da Assembléia (que geralmente é um condômino corrupto ou ingênuo demais), reúne-se em solenidade secreta e do alto de um trono eles decretam e decidem o que querem, redigem a Ata que querem, registram

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a Ata em cartório e ponto final: de agora em diante estão protegidos pela Lei e pela ignorância dos moradores. A nossa ignorância é tanta, que certa vez os 3 membros efetivos do Conselho Fiscal de meu condomínio foram todos "nomeados" em fim de Assembléia pela própria síndica que acabava de ser "eleita" graças a mentiras, procurações falsas, gente estranha, manipulações e gritaria que tumultuaram toda a Assembléia. Em vão eu protestei e pedi que se fizesse uma "eleição" para o Conselho, pois havia outros candidatos (e eu era um deles). Falei sozinho e inutilmente. E ainda por cima, uma das pessoas presentes (uma professora bastante inteligente e certamente consciente daquela situação toda) me disse bastante irritada: "Chega Hugo! Já é mais de meia-noite e ninguém agüenta mais! Precisamos ir dormir!" Metade da Assembléia já tinha se retirado para dormir, e a outra metade estava dormindo acordada ali mesmo. E tudo isso aconteceu após meses de trabalho de um grupinho de pessoas que a providência divina juntou para tentar mudar esta situação. Fizemos tudo o que nos era possível fazer: conversas, reuniões, denúncias, propostas, discussões, cartas circulares, formação de uma chapa com candidatos para concorrer na eleição, coleta de procurações dos proprietários insatisfeitos que não podiam ou não queriam participar da Assembléia Geral, reunião com moradores de outros condomínios para nos ajudarem com idéias e informações, etc. etc. Mesmo assim, todas as pessoas presentes na Assembléia concordaram caladas com a nomeação dos conselheiros fiscais do condomínio, inclusive os outros candidatos ao Conselho que, junto comigo e na mesma chapa, lutavam para desalojar do poder a corrupção e a mentira. E esta foi a primeira vez que houve uma disputa eleitoral na história do condomínio, pois desde a sua criação (1964) a administração tem sido abandonada nas mãos de qualquer raposa que se oferece para o cargo de síndico. A última síndica já estava no cargo por mais de 14 anos porque ninguém jamais se apresentou como candidato ao cargo. E como nunca havia outro candidato, ela sempre era "eleita" síndica por "aclamação geral e aprovação unânime da Assembléia" (como depois ela mesma escrevia nas atas). Num ambiente assim, e numa situação desta, o que se pode fazer? Não se pode fazer nada. Porque nós, os condôminos, não sabemos sequer participar e votar numa simples Assembléia Geral. Imagine então quando se trata de assuntos mais complexos: é de se arrancar os próprios cabelos da cabeça e suplicar a ajuda de Cristo e de sua Igreja. Por ser tudo novo e desconhecido, a maioria da população se encontra totalmente despreparada para essa vida em condomínio, que exige não só um forte espírito comunitário e cooperativo de tipo familiar, como também exige competências técnicas e específicas, próprias de uma verdadeira e complexa administração pública e empresarial. De modo que a corrupção nos condomínios conta com 3 poderosos aliados: 1. O isolamento e a desunião entre os seus moradores. 2. O desinteresse e a não-participação dos moradores nas questões comunitárias. 3. A ignorância técnica (e ética) dos moradores em todos os assuntos de condomínio. E o terno olhar de um Pastor já pode discernir aí alguns "critérios e caminhos para uma pastoral da cidade", ou mais especificamente, para uma "pastoral dos condomínios".

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9. CONDOMÍNIO: UMA EMPRESA HABITACIONAL OU NOSSA CASA COMUM? Infelizmente não é apenas a corrupção administrativa que oprime as ovelhas do rebanho. Há outra coisa que acontece nos condomínios e que, sem ser tão alarmante quanto a corrupção, é também opressora, desumana e digna de atenção pastoral. O que acontece é o seguinte: quando as administrações não se encontram em mãos corruptas e perversas que se interessam apenas pelo dinheiro e pelo poder, elas se encontram em mãos honestas e meticulosas que só consideram tijolos, canos e fios, como se o condomínio não fosse principalmente, e acima de tudo, uma comunidade de pessoas que vivem numa mesma casa comum. Mais uma vez é preciso lembrar a origem mercantil e empresarial dos condomínios, estas comunidades geradas no seio de um "negócio". Pois tal origem deixa nestas comunidades uma triste marca e uma deplorável herança espiritual: a dimensão humana e cristã que poderia haver em suas relações comunitárias, é constantemente reprimida e negada pelo espírito exclusivamente mercantil e empresarial que lhe deu origem, pois a organização e a administração desta vida comunitária já é concebida desde o seu início segundo este mesmo espírito, ou seja, é concebida para interessar-se e ocupar-se exclusivamente com o prédio, com a contabilidade e com algumas normas legais e burocráticas, mas não com as pessoas que aí vivem e que estão todas obrigadas a viverem tais vínculos comunitários.9 De modo que, na melhor das hipóteses, a administração e auto-organização dos condomínios é regida por um espírito estreito de eficiência técnica e material e de alguma honestidade contábil e legal, espírito esse que ignora completamente as potencialidades de desenvolvimento humano e comunitário existentes no condomínio, ou seja, ignora as necessidades propriamente humanas do condomínio. Esta concepção meramente empresarial das administrações honestas (que pela graça de Deus também existem) transforma os condomínios numa competente e fria empresa habitacional, uma espécie de "grande hotel" bem administrado, que não chega nunca a ser uma verdadeira comunidade humana, onde as pessoas participam, se encontram, se conhecem, convivem, cooperam, se ajudam e se enriquecem mutuamente. É claro que muitos moradores, por iniciativa individual, criam entre si laços particulares de amizade e convivência, mas nada semelhante acontece por iniciativa da administração e de seus moradores em termos de "comunidade", no sentido de se criarem laços comunitários de convivência e de cooperação.

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Para se conhecer este "espírito" que reina e rege a vida dos condomínios, basta ler (ou tentar ler) a Lei de Condomínio inteira, do começo ao fim. Ela trata apenas dos aspectos mercantis e empresariais de edificações e incorporações imobiliárias sob regime condominial. Do condomínio propriamente dito, isto é, das relações entre as pessoas que vivem no edifício, a Lei dá um tratamento mínimo, vago e desprezível. Dos seus 70 artigos, apenas 20 deles trata da vida das pessoas: 8 artigos para definir o condomínio, 3 sobre a convenção, 1 para as despesas, 3 sobre a utilização do edifício, 2 sobre a administração e 3 sobre a assembléia geral. Os demais 50 artigos, todos longos, minuciosos e de várias páginas, tratam das incorporações imobiliárias. Só o capítulo que trata das obrigações e direitos do incorporador tem o mesmo tamanho que todos os capítulos e artigos que tratam de todos os aspectos da vida em condomínio! A Lei é um verdadeiro tratado de todos os aspectos mercantis e burocráticos que interessam apenas às empresas construtoras e incorporações imobiliárias. É este o "espírito" que reina nos prédios de nossas cidades. O "espírito" da Lei de Condomínio: mercantil, burocrático e empresarial. Cujos frutos podemos ver pela cidade toda.

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O sinal mais claro e evidente desse "espírito" (mercantil e empresarial) que regula as relações no condomínio, é a ausência de reuniões regulares entre os seus moradores. Como é possível haver "comunidade" se as pessoas não se reúnem regularmente, não se encontram, não se conhecem, não discutem seus problemas comuns e não cooperam numa ação comum para realizar o bem comum? Pois é exatamente isto o que se observa nos condomínios da cidade: as únicas reuniões regulares que fazem são Assembléias Gerais Ordinárias uma vez ao ano, e ainda assim porque tais Assembléias são obrigatórias por Lei. Fora disso, convoca-se uma Assembléia Geral "Extraordinária" (e o nome já diz tudo!) apenas quando o síndico deseja fazer alguma coisa "extraordinária" que exige a aprovação legal de uma Assembléia Geral. E mesmo dessas reuniões "ordinárias" que só acontecem uma vez ao ano, e das "extraordinárias" que quase nunca acontecem, só participa uma escassa minoria dos moradores. Na prática, isto é o mesmo que não haver reunião nenhuma nos condomínios! De modo que a "comunidade" fica eternamente atrofiada e soterrada sob a laje fria de uma tumba muito bem cuidada, limpa, reformada, caiada e até enfeitada com flores: é comum nos condomínios descobrir que algum morador morreu definitivamente, apenas quando o mau cheiro do cadáver atrai a atenção de alguém. Esta situação desumana e doentia tem gravíssimas conseqüências espirituais, emocionais, familiares, econômicas, políticas, sociais e culturais para toda aquela numerosa população que vive nos prédios das grandes cidades. Quando consideramos o fato de já existir nos condomínios uma estrutura administrativa e organizacional mantida por todos os moradores, e que dispõe não só de abundantes recursos humanos, financeiros e materiais, mas também de autoridade e de informações, ficamos imaginando o que não seria possível fazer em termos de desenvolvimento, humanização e cristianização destas comunidades caso os moradores (e os administradores eleitos) agissem inspirados pelo Espírito de Cristo. Quantos sepulcros não se abririam, e quantos Lázaros não voltariam à vida e a um convívio humano mais saudável! E aqui, o terno olhar de um Pastor brilha de alegria ao contemplar tantas possibilidades de vida nova para o rebanho. Talvez a evangelização dos condomínios precise ser entendida acima de tudo como um lento processo de mudança (ou "conversão") do próprio espírito com que se concebe e se realiza a auto-organização e a administração de sua vida comunitária, de modo que a pessoa humana, os valores cristãos da verdade, da justiça, da liberdade e da caridade, Cristo enfim, possa gradualmente encontrar o seu devido lugar e importância na vida dos condomínios, ao lado daquelas necessidades práticas e (nem sempre) honestas de dinheiro, regulamentos e reformas no prédio. Se assim é, devemos então nos perguntar: por que tal mudança não acontece, se não há prédio em nossas cidades que não tenha um bom número de católicos entre seus moradores? Por que será que a fé dos moradores católicos "não tem a força necessária para penetrar os critérios e as decisões" administrativas responsáveis pela organização da convivência comunitária de seus condomínios? (cf. Puebla 437). Creio que a razão disso é o seguinte: de acordo com "o princípio de encarnação formulado por Santo Irineu, o que não é assumido não é redimido". (Puebla 400). O Espírito de Cristo não reina nos condomínios porque o Corpo de Cristo (a Igreja) não "assume" essa nova realidade comunitária. Basta olhar os condomínios e ver como agem os católicos em particular. E o que se vê é o seguinte:

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1. O isolamento e a desunião entre os seus moradores católicos; 2. O desinteresse e a não-participação dos católicos nas questões comunitárias; 3. A ignorância técnica (e ética) dos católicos em todos os assuntos de condomínio. Encontramos aqui, em chave "católica", os mesmos problemas que encontramos atrás ao analisar a corrupção administrativa. É verdade que em muitos prédios os católicos se reúnem para fazer novenas e orações (e em alguns condomínios eles também se reúnem para celebrar a eucaristia por iniciativa do pároco). Contudo, os católicos não assumem a vida comunitária de seus condomínios. E quando alguns o fazem, fazem-no individualmente, separados e desunidos (muitas vezes até divididos entre si), desvinculados da fé da Igreja, e sem criarem uma verdadeira ação de grupo onde todos os católicos cooperem. Quantos problemas gravíssimos de convivência humana encontrariam melhor solução se a Igreja procurasse formar e orientar seus fiéis para atuarem nos condomínios da cidade! Esta seria a missão de uma pastoral dos condomínios: promover a comunhão e a participação dos católicos na vida comunitária de seus condomínios. Convém aplicar ao caso particular do condomínio esta orientação geral do episcopado latino-americano reunido em Medellín: "A vivência de comunhão a que foi chamado deve ser encontrada pelo cristão em sua "comunidade de base", isto é, em uma comunidade local ou ambiental, que corresponda à realidade de um grupo homogêneo, e que tenha uma dimensão tal que permita o trato pessoal fraterno entre seus membros. Por conseguinte, o esforço pastoral da Igreja deve estar orientado para a transformação dessas comunidades em "família de Deus", começando por tornar-se presente nelas como fermento, por meio de um núcleo, mesmo pequeno, que constitua uma comunidade de fé, esperança e caridade.” (Medellín 15,10). Vejo aí, de forma bastante resumida, todo o programa da ação pastoral da Igreja nos condomínios da cidade e nos demais ambientes urbanos onde os leigos normalmente vivem e atuam (escola, trabalho, família, etc.). Este programa pastoral corresponde, de forma admirável, não só às necessidades e aos desafios que se vê (e se vive) nos condomínios, como também às necessidades e desafios que vivemos na própria Igreja, na medida em que tal programa permitirá, no futuro, tornar cada batizado (leigo) sujeito ativo da missão da Igreja. E para que isto aconteça, é preciso que pastores e leigos cooperem, cada um na sua função. Porque: "É tarefa de toda a Igreja colimar este objetivo, a saber, capacitar os homens para instruírem com retidão a ordem universal das coisas temporais e para orientá-la por Cristo a Deus. Aos pastores compete enunciar claramente os princípios acerca do fim da criação e do uso do mundo, prestar assistência moral e espiritual, para renovar-se em Cristo a ordem das coisas temporais. Faz-se porém mister que os leigos assumam a renovação da ordem temporal como sua função própria e nela operem de maneira direta e definida, guiados pela luz do Evangelho e pela mente da Igreja, e levados pela caridade cristã." (Vaticano II, Decreto Apostolicam Actuositatem, n. 7). Mas o que seria preciso então fazer para que os leigos assumam a renovação da ordem temporal nos seus condomínios? Que resposta pastoral "concreta" podemos dar a esta questão?

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JESUS RESPONDE ÀS NECESSIDADES HUMANAS

1. AÇÃO PASTORAL DA IGREJA NOS CONDOMÍNIOS Qualquer ação da Igreja nos condomínios, para ser adaptada, há de ser antes de tudo uma "resposta" aos apelos da própria realidade. Era assim que Jesus fazia. Sua ação era sempre uma resposta às necessidades alheias, um "serviço ao próximo", como ensina o Evangelho: "Então Jesus lhe perguntou: "O que você quer que eu faça por você?" (Mc 10,51). Assim sendo, que resposta pastoral dará a Igreja de Cristo aos problemas e necessidades que vê nos condomínios? 1. Diante do "isolamento e desunião entre os seus moradores (católicos)", a resposta pastoral da Igreja haverá de ser "comunicação e união entre os seus moradores (católicos)". 2. Diante do "desinteresse e não-participação dos moradores (católicos) nas questões comunitárias", a resposta pastoral da Igreja haverá de ser "interesse e participação dos moradores (católicos) nas questões comunitárias do condomínio". 3. Diante da "ignorância e incompetência técnica (e ética) dos moradores (católicos) em todos os assuntos de condomínio", a resposta pastoral da Igreja haverá de ser "conhecimento e competência técnica (e ética) dos moradores (católicos) em todos os assuntos de condomínio". Na minha opinião, estas três respostas (ou "serviços") deveriam constituir as três linhas, ou melhor, as três dimensões de uma única ação pastoral da Igreja nos condomínios: promover (1) união, (2) participação e (3) conhecimento. Primeiro dos moradores católicos, e depois, por meio deles, da comunidade toda. Uma ação pastoral dimensionada desta maneira não só responderia adequadamente aos 3 problemas centrais que se vive nos condomínios, como também responderia fielmente ao chamado de Cristo à sua Igreja: "Vem, e segue-me". Nosso Senhor sempre escolheu entrar pela humilde porta de serviço: "O que você quer que eu faça por você?" Se quisermos segui-lo, é por aí também que precisamos entrar nos condomínios. Além disso, esta é uma porta que se encontra sempre aberta e escancarada, porque ninguém a fecha: quem é que não quer "ser servido"? Parece que todo mundo quer ser servido. Portanto, a entrada do Evangelho nos condomínios se fará adequadamente, fielmente, e facilmente, pela humilde porta de serviço, "sinal privilegiado do seguimento daquele que veio para servir e não para ser servido" (DGAE 1999-2002, 195). É maravilhoso ver esta perfeita correspondência entre a fome dos homens (ser amado e servido) e o pão vindo do céu (amar e servir). Graças a Deus a Igreja tem este pão. Resta agora saber como distribuí-lo aos condôminos. É aqui que surge a necessidade de um planejamento pastoral adequado, senão este pão (o amor e o serviço ao próximo) nem chegará nos condomínios, caso sua distribuição não seja organizada direito (Mt

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14,19). Só uma ação pastoral bem organizada conseguirá distribuir este pão para todos (Mc 6,39-42).

2. O PLANEJAMENTO PASTORAL Nunca será demais enfatizar a importância do planejamento pastoral. Pois um planejamento insuficiente e mal adaptado à realidade, é semelhante a uma dona-de-casa que decide fazer um bolo: ela mal planeja o que vai fazer e já começa a agir como louca. Liga o forno, mistura manteiga com açúcar, quebra os ovos, põe o leite, depois a farinha, mas na hora de pôr o fermento descobre que não tem mais fermento, ele acabou. E assim, ela perde os ingredientes e o trabalho feito só porque se esqueceu de considerar um pequeno "detalhe" fundamental no seu planejamento doméstico. E quantas vezes acontece de uma ação pastoral trabalhosa e valiosa não alcançar o resultado esperado só porque faltou nela algum ingrediente fundamental! Investir tempo no planejamento é, com a graça de Deus, garantir o sucesso do trabalho. Basta olhar como o engenheiro faz a planta de um prédio: se o projeto é bem feito, o prédio fica de pé; se o projeto é mal feito, o prédio cai. Falo sobre isto porque nas homilias e no final das missas costuma-se dizer aos cristãos: "Vão, evangelizem seus locais de trabalho, suas famílias, seus prédios... " Pois bem. Imagine agora se um engenheiro apenas dissesse ao mestre de obras e aos operários: "Vão, construam um lindo prédio..." e depois os despedisse assim, de mãos abanando, sem lhes fornecer nenhuma orientação, nenhum projeto detalhado, com as medidas e os materiais necessários, as etapas sucessivas de trabalho etc. O que fariam os operários e o mestre de obras nestas condições? Eles não fariam nada. Ficariam talvez esperando cair do céu algum projeto de trabalho, ou então procurariam serviço em outro lugar (é o que muitos católicos fazem, quando deixam de freqüentar a sua paróquia). Ora, se é assim para se construir um simples prédio, como não deverá ser para se edificar o Corpo de Cristo na cidade? É como nos ensina o Papa: "Para que os leigos possam realizar ativamente este nobre propósito na política (isto é, o propósito de fazer reconhecer e estimar os valores humanos e cristãos), não são suficientes as exortações, é preciso dar-lhes a devida formação da consciência social, sobretudo acerca da doutrina social da Igreja, a qual contém os princípios de reflexão, os critérios de julgar e as diretivas práticas." (CfL, 60). Para que uma pastoral dos condomínios não proponha aos católicos uma "Missão Impossível", é preciso que se elabore um bom plano ou projeto de ação. Nas Conclusões de Medellín, lemos: "Uma ação pastoral planificada exige: a) Estudo da realidade ambiente com a colaboração técnica de organismos e pessoas especializadas. b) Reflexão teológica sobre a realidade. c) Levantamento e ordenação dos elementos humanos disponíveis e dos materiais de trabalho; o pessoal especializado se preparará nos diversos institutos nacionais ou latino-americanos. d) Determinação das prioridades de ação.

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e) Elaboração do plano pastoral. Para este fim, devem-se seguir os princípios técnicos e sérios de uma autêntica planificação, dentro de uma integração em planos de nível superior. f) Avaliação periódica das realizações." (Medellín 15,36). Daí se conclui que semelhante planificação não pode jamais ser entregue às paróquias, que sozinhas e isoladas não teriam condições de planejar nada deste tipo. Se as paróquias têm hoje dificuldade até para implantar uma pastoral já pronta e tão bem sucedida como é a Pastoral da Criança, imagine o que não acontecerá se o Bispo disser aos párocos: "Organizem uma pastoral dos condomínios na sua paróquia!" Acredito que só um organismo nacional como a CNBB teria condições de coordenar o planejamento adequado desta nova ação pastoral, o que obviamente não exclui, mas antes supõe a participação e colaboração de todas as pessoas interessadas (clérigos, religiosos e leigos), não só das paróquias e condomínios como também das várias pastorais, movimentos e congregações. Embora tal iniciativa de planejamento ainda nem exista, resolvi por isso mesmo "colaborar" e comunicar aos interessados tudo aquilo que vejo acontecer com os leigos na Igreja e no mundo (e particularmente nos condomínios), e o que poderia se fazer para ajudá-los em sua vocação e missão. Tenho consciência de que a complexidade deste desafio envolve aspectos técnicos, eclesiais e pastorais alheios à minha competência. Assim, apelo instantemente a todos os especialistas e interessados na matéria para que se disponham a dar ao tema sua contribuição específica. Por outro lado, sabemos que o povo (embora leigo no assunto) pode ter também alguma consciência ao menos das grandes linhas da solução de um problema pastoral e social que o aflige diretamente. É por esta razão, e com esta esperança, que eu escrevo este texto e comunico aqui a minha opinião de leigo nesta matéria.

3. VAMOS IMAGINAR UMA AÇÃO PASTORAL NOS CONDOMÍNIOS Planejar é "agir em imaginação", é imaginar uma ação antes de fazê-la. Isto permite adaptar a ação à realidade antes de começar a agir. Esta é a principal razão e vantagem do planejamento: pode-se cometer todos os erros, omissões e equívocos possíveis, sem que isto tenha qualquer conseqüência prática. Erra-se em imaginação, corrige-se em imaginação, num contínuo diálogo mental com a realidade (e diálogo também experimental, no caso de se ensaiarem "projetos ou planos pilotos", o que costuma ser indispensável na maioria dos casos). Contudo, para planejar qualquer ação, além de imaginação e experiência, é também imprescindível saber o que queremos alcançar: qual é a nossa meta. Ou seja, é preciso fazer uma imagem clara e bem concreta daquilo que queremos alcançar com nossa ação. Por isso, devemos começar pelo fim: 1. E a imagem que faço de uma pastoral dos condomínios funcionando a pleno vapor, é a seguinte: em cada edifício da cidade vejo um grupo de moradores católicos bem unidos e preparados, participando da vida comunitária do seu condomínio (comunhão e participação: evangelização dos condomínios). Esta seria a meta da pastoral dos condomínios, conforme as Diretrizes Gerais de 1999-2002: "Tornar cada batizado sujeito ativo da missão constitui realmente a meta da ação 40

pastoral e tarefa indispensável para fazer frente aos novos contextos da missão evangelizadora." (DGAE 1999-2002, 111). 2. Mas como alcançar esta meta? Só há um meio: reunir os católicos em cada condomínio e dar-lhes uma boa formação e preparação para participarem na comunidade onde já vivem (gerar comunhão e preparar para a missão: formação dos católicos nos condomínios). Esta é a única ação que conduziria à meta, conforme ensina o Papa: "A formação dos fiéis leigos tem como objetivo fundamental a descoberta cada vez mais clara da própria vocação e a disponibilidade cada vez maior para vivê-la no cumprimento da própria missão." (CfL 58). 3. E como chegar até aí? Poderia ser da seguinte maneira: fazer um levantamento dos moradores católicos de cada condomínio, convidá-los em grupos pequenos para uma reunião na paróquia, e propor-lhes o seguinte plano missionário: (1) criar um grupo ou núcleo católico no condomínio onde moram, (2) organizar encontros de formação e preparação lá no próprio prédio onde moram, (3) participar na vida comunitária do condomínio (convidar e propor: convocar para a missão). Sem fazer isto, não vejo como se possa iniciar uma ação pastoral nos condomínios. É preciso convocar, isto é, convidar e propor algo definido: "O projeto da nova evangelização convoca os fiéis leigos para assumirem o papel de protagonistas." (DGAE 1999-2002, 112). 4. E novamente, como chegar até aí? Formando e preparando os agentes iniciadores e coordenadores desta pastoral, que seriam enviados pelo Bispo às paróquias para coordenar a implantação e acompanhar o desenvolvimento dessa ação pastoral nos condomínios (formação dos formadores). Alguém tem que dar início e depois acompanhar esta ação pastoral nos condomínios, e sem preparação adequada e tempo disponível, ninguém conseguirá nada: "Em vista de uma pastoral verdadeiramente incisiva e eficaz, deverá fomentar-se, mesmo com a organização de cursos oportunos ou escolas específicas, a formação dos formadores. Formar aqueles que, por sua vez, deverão ocupar-se da formação dos fiéis leigos, constitui uma exigência primária para assegurar a formação geral e capilar de todos os fiéis leigos." (CfL 63). 5. Mas como chegar até aí? Bem, os Bispos pediriam a Deus e à Igreja que designassem uma equipe especializada para planejar e organizar esta pastoral: (1) buscar a melhor maneira de se elaborar um plano de ação, (2) preparar os seus agentes coordenadores, (3) e produzir os subsídios necessários à formação dos fiéis leigos que moram em edifícios. Ou seja, os Bispos com toda a Igreja poderiam criar esta nova Pastoral, conforme o desejo do Espírito Santo expresso em Puebla: "Como pastores, queremos resolutamente promover, orientar e acompanhar as comunidades eclesiais de base (...). Em especial, é preciso procurar como possam as pequenas comunidades, que se multiplicam sobretudo na periferia e nas zonas rurais, adaptar-se também à pastoral das grandes cidades do nosso continente." (Puebla 648). Creio que uma pastoral dos condomínios responderia a este desejo do Espírito e a esta necessidade dos homens. Em resumo, eu imagino 5 ações básicas, necessárias, e na seguinte ordem: 1. 2. 3. 4. 5.

Planejamento Pastoral. Formação de agentes coordenadores. Convocação dos leigos para assumirem esta missão. Formação dos leigos através de encontros no próprio prédio onde moram. Participação dos leigos na vida comunitária do seu condomínio.

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Sobre as 2 primeiras ações (o planejamento pastoral e a formação de coordenadores da pastoral), vou falar mais adiante (pág. 134, e 137). Não tenho muito a dizer sobre elas, pois estas ações normalmente se elaboram e se realizam na Igreja em níveis hierárquicos superiores ao paroquial, e dos quais eu nada conheço por experiência própria. E elaborar uma "forma" de ação que seja adaptada à realidade exige que se tenha o necessário conhecimento e experiência desta realidade, do contrário imaginamos "formas" de ação inadequadas, mal adaptadas e pouco eficazes. Porém, em função da experiência que tive da paróquia e do condomínio, eu gostaria de dizer algo sobre as 3 últimas ações (Convocação, Formação e Ação Missionárias) e como imagino alguns de seus detalhes concretos. Para organizar esta reflexão, vou fazer o seguinte esquema:

Convocação Missionária

Levantamento dos católicos de cada condomínio Convidá-los para reunião na paróquia Propor-lhes o plano missionário

Formação Missionária

Criação dos grupos ou núcleos católicos Formação básica Participação no condomínio (e formação contínua)

Ação Missionária

Meta: Evangelização do Condomínio.

Este esquema de ação (convocar – unir – enviar) corresponde, em suas linhas gerais, ao que nos ensina o Papa: "É sempre o único e mesmo Espírito que convoca e une a Igreja e que a manda pregar o Evangelho 'até os confins da terra' (At 1,8)." (CfL 32).

4. CONVOCAÇÃO, FORMAÇÃO E AÇÃO "MISSIONÁRIAS" Por que falar (e pensar) estas ações todas com o adjetivo "missionário"? Porque quando se esquece disto, as ações pastorais em vez de conduzirem à missão, resultam em omissão. Por isso o Espírito diz em Santo Domingo: "A Nova Evangelização intensificará uma pastoral missionária em todas as nossas Igrejas." (SD, Mensagem 30). Isto é, intensificará o caráter missionário de toda e qualquer ação pastoral da Igreja, de modo que esta ação alcance a sua meta e a Igreja cumpra a sua missão. Do contrário, concebemos e realizamos ações pastorais não-missionárias, fechadas em si mesmas, em vez de abertas e orientadas para o vasto mundo a evangelizar. É o caso, por exemplo, da maneira com que se concebe a formação dos grupos de novena e oração nos prédios: claro que isso é uma valiosa ação pastoral, concebida porém sem a necessária perspectiva missionária, de modo que estes grupos de leigos permanecem eternamente fechados ou indiferentes à vida comunitária do condomínio e voltados exclusivamente para os católicos da sua própria paróquia. Por isso é importante

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conceber e realizar todas as ações pastorais com a necessária perspectiva missionária: "A dimensão missionária iluminará, de certo modo, toda a pastoral da Igreja particular." (CNBB, Igreja: Comunhão e Missão, 124). Isto, certamente, provoca mudanças na maneira habitual de se conceber e realizar as ações pastorais. E o adjetivo "missionário" serve para lembrar qual é a meta de toda e qualquer ação que fazemos: a vinda do Reino de Cristo a todo mundo. A nós, e aos outros também. Vejamos então de que "forma" seria preciso fazer a Convocação Missionária dos leigos para que esta ação pastoral da Igreja se adapte à realidade e possa assim alcançar o seu fim. Pois sem convocar os leigos (isto é, sem convidá-los, reuni-los e propor-lhes algo definido), não vejo como se possa iniciar uma ação pastoral nos seus condomínios.

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Parte II CONVOCAÇÃO MISSIONÁRIA o chamado do amor

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1. CONVOCAÇÃO MISSIONÁRIA DOS LEIGOS "Moisés convocou toda a comunidade dos filhos de Israel, e lhes disse: "Eis o que Javé manda vocês fazerem." (Ex 35,1)

"Para que Cristo esteja presente na vida dos nossos povos, convocamos todos os fiéis a uma Nova Evangelização, e chamamos especialmente os leigos, e dentre eles os jovens." (Sto Domingo, Mensagem da IV Conferência aos povos da América Latina e do Caribe, 30). Portanto, a convocação já foi feita. Mas para que esta convocação geral produza seus frutos e tenha resultados práticos, será sempre preciso concretizá-la em convocações particulares e bem definidas. E uma "convocação", neste sentido concreto, é "um convite feito a muitas pessoas para se reunirem num lugar designado com um objetivo definido" (Aurélio, Caldas Aulete, etc.). É assim que o Papa convoca o Concílio, o rei as cortes, o general os soldados para a guerra, e é assim também que o síndico convoca a Assembléia Geral dos condôminos. No caso de uma pastoral dos condomínios, também seria necessário que se fizesse uma convocação desse tipo, adaptada ao seu objetivo e às condições da realidade. Neste caso, a convocação missionária poderia ser feita pelo próprio Bispo através de um convite, na forma de uma carta circular, endereçada a cada católico que mora no mesmo condomínio, para se reunirem na paróquia, em dia e horário a ser marcado com o agente coordenador da pastoral, a fim de tratarem de um assunto bem definido: a cooperação dos fiéis leigos na missão de evangelizar seu condomínio.10 Haveria outra forma melhor para se convocar todos os fiéis e dar início à pastoral dos condomínios? Esta "forma" de convocação se justifica por várias razões. Primeiro, ela garante que a convocação seja feita a todos os fiéis que moram num mesmo prédio. Isso, além de ser exigência da própria missão da Igreja, é também uma exigência da vida em condomínio: a pastoral terá maior chance de sucesso quanto maior for o número de moradores católicos unidos e comprometidos na missão comum de evangelizar o seu condomínio. Pois neste ambiente complexo e problemático, só se consegue iniciar e sustentar uma ação que seja coletiva, em que coopere o maior número possível de pessoas. E uma convocação aleatória e deficiente que não alcançasse a todos, já prejudicaria a ação missionária antes mesmo do seu início. Nenhum síndico cometeria a imprudência de convocar a Assembléia Geral dos condôminos que não fosse por meio de uma carta circular endereçada a cada um e a todos os condôminos, e mesmo assim só comparece à Assembléia uma pequena parte dos convocados! 10

Nesta segunda Parte do texto, uso a expressão "fiel leigo" porque é assim que o magistério fala para referir-se aos "cristãos católicos leigos que participam da vida eclesial numa paróquia ou comunidade". Há na Igreja gente que critica esta forma de expressão. Não sei por quê. Pois a expressão é útil e simplifica a comunicação. Faz parte do jargão eclesiástico. Contanto que se entenda, que diferença faz dizer "seis" ou "meia dúzia"? A crítica exagerada e fora de propósito, vira implicância e até preconceito.

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Além disso, uma convocação por meio de carta endereçada a cada católico, não só atingiria a todos, mas também cada pessoa em particular. Este aspecto pessoal da convocação introduz algo de novo na ação pastoral da Igreja junto aos fiéis, e esta "novidade" certamente contribuiria para chamar-lhes a atenção e fazê-los refletir melhor sobre o assunto, aumentando assim as chances de aceitarem o convite e de iniciarem um processo crescente de compromisso missionário. Pois é muito fácil para o leigo ignorar um convite geral feito no final da missa, no boletim paroquial, no mural, ou de boca em boca, mas não dá para ignorar uma carta pessoal que lhe foi enviada pelo Pastor da Igreja. Em terceiro lugar, uma carta (especialmente uma carta escrita e enviada pelo Bispo) permite comunicação mais autêntica e segura tanto em relação ao conteúdo da mensagem como em relação às condições de sua recepção pelos fiéis. Uma comunicação direta entre o Bispo e os fiéis é sempre melhor do que aquela feita com vários intermediários que geralmente alteram a mensagem que transmitem. E com uma carta na mão (que pode ser lida e relida a qualquer hora na tranqüilidade do lar, tanto sozinho como em grupo), o fiel leigo estará em bem melhores condições de entendê-la integralmente do que se recebesse a mensagem por outros meios. Claro que ajudaria muito se o assunto também fosse tratado por outros meios e modos, mas a convocação propriamente dita precisa ser feita numa forma que seja usual na cultura urbana atual. Antigamente, usava-se a trombeta, o sino ou a voz para convocar as pessoas de uma comunidade, e todos ouviam e entendiam. Hoje, o mais comum é servir-se de uma carta impressa para convocar ou convidar as pessoas para uma assembléia ou reunião. Mas o importante não é a "forma" de convocar, e sim que todos os fiéis que moram num mesmo prédio sejam pessoalmente convocados, porque é grande a possibilidade de uma pastoral dos condomínios conseguir responder adequadamente ao "desafio de despertar cada batizado para a responsabilidade missionária" (DGAE 1999-2002, 108). E isto por uma razão bem simples: qual é o católico morador em edifício que não pode, ou não tem condições de tornar-se membro do núcleo missionário em seu condomínio? Para colaborar nesta tarefa não se exige nada além de ser católico e morar em edifício. Pois não se trata aqui de partir em missão para a China ou África. Trata-se apenas de uma pequena missão caseira no próprio edifício onde moram, a exemplo de Sta. Teresinha, que partiu em missão "sem sair de casa". Basta sair um pouco da frente da televisão, e se encontrar com alguns vizinhos e irmãos na fé para cooperar e servir o Senhor no próprio condomínio. Isto todos podem fazer, qualquer que seja a sua idade, sexo, estado de saúde, escolaridade, profissão, personalidade, capacidade, dons, situação econômica, estado civil, se é inquilino ou proprietário, nada disso importa: sempre haverá uma maneira possível de cada um colaborar neste apostolado de grupo. Porém, é preciso que se crie tal grupo. Daí a necessidade de se fazer uma convocação missionária adequada para iniciar a pastoral. É claro que a união dos católicos e a criação dos núcleos dependerá de uma livre decisão e iniciativa das próprias pessoas, mas isto não significa que se deva deixar tudo ao acaso e esperar por uma espécie de "geração espontânea" de núcleos, que jamais ocorreria nos condomínios. Pelo contrário, a função da "convocação", da ação pastoral de "convocar", seria exatamente provocar esta livre decisão e orientar esta iniciativa por meio de um convite e uma proposta. Quem irá unir os fiéis leigos e formar os núcleos, serão eles próprios (com a graça de Cristo), mas eles somente o farão como resposta a um convite e a uma proposta que precisa ser feita pelo Bispo, de modo claro e inequívoco, a todos os fiéis leigos de um mesmo condomínio, e progressivamente a todos os condomínios da cidade.

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Esta seria talvez a ação mais delicada de toda a pastoral, pois tal convocação é bastante semelhante a um "pedido de casamento", com tudo o que isto implica: amor, liberdade, compromisso, fidelidade, doação de si e serviço. Coisa bastante familiar a sacerdotes, religiosas e leigos engajados, mas que será "novidade" para a maioria dos leigos. Porém, uma "nova" evangelização supõe prudente ousadia para experimentar "novidades": se tal "pedido de casamento" não der certo, tenta-se de novo, de outro modo, ou faz-se outra coisa. O que não convém é a Igreja (e a paróquia) ficar apenas repetindo o que já conhece e faz, num mundo em alucinada transformação. E o que seria preciso fazer para que essa convocação missionária se realize? Vamos começar pelo fim, olhando para a meta final: 1. Como os leigos poderão tornar-se protagonistas da missão de evangelizar seu condomínio se não lhes for proposto um plano de ação missionária para que o conheçam, entendam, aceitem e se comprometam a colocá-lo em prática? 2. E como um plano de ação lhes será proposto se os leigos que vivem dispersos num mesmo edifício não estiverem reunidos em algum lugar? 3. E como eles se reunirão se não forem convidados para isto? 4. E como serão convidados se ninguém os conhece, nem sabe quem são e onde moram? Portanto, para que uma convocação missionária se realize, é preciso 3 coisas: 1. Fazer um levantamento dos fiéis leigos que moram em edifício. 2. Convidar os fiéis de um mesmo condomínio para se reunirem na paróquia. 3. Propor-lhes o plano de ação missionária. Vamos refletir sobre cada uma destas ações pastorais.

2. LEVANTAMENTO DOS FIÉIS LEIGOS DE CADA CONDOMÍNIO "Javé falou a Moisés na tenda da reunião, no deserto Sinai: “Façam um recenseamento completo da comunidade dos filhos de Israel." (Nm 1,1) "Eu sou o bom pastor: conheço minhas ovelhas, e elas me conhecem." (Jo 10-14)

O objetivo deste levantamento é óbvio: conhecer o nome e endereço das ovelhas que moram no mesmo prédio. Pois nas grandes paróquias urbanas nem o pastor conhece as ovelhas, nem as ovelhas se conhecem umas às outras, ainda que morem no mesmo prédio e freqüentem a mesma paróquia. Pelo menos em grande parte as ovelhas são anônimas, o que cria nestas paróquias um ambiente parecido com cinema ou teatro: um público anônimo entra, assiste alguma coisa, e depois vai embora. Como é possível realizar uma ação pastoral planificada com uma massa de indivíduos anônimos dos quais nada se sabe? Nestas condições, é preciso fazer um levantamento prévio se o Pastor quiser realmente convocar todos os fiéis leigos que moram no mesmo edifício: "O Reino do Céu é como um rei que preparou a festa de casamento do seu filho. E mandou seus empregados chamar os convidados para a festa..." (Mt 22,2-3). Ora, o que fazem os

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noivos quando querem convidar parentes e amigos para suas bodas? Geralmente eles se reúnem com as pessoas de sua casa e juntos fazem uma "lista dos convidados", tomando cuidado para não esquecer ninguém. E este é um dos momentos mais interessantes e felizes da preparação das bodas, quando são lembrados um a um os parentes e amigos dos noivos. Assim também a paróquia poderia fazer uma lista dos fiéis leigos que moram em cada prédio da redondeza, a fim de convidá-los para um encontro de proposta missionária. Basta que durante as missas alguém aborde este assunto, e explique ao povo que o Bispo deseja mandar correspondência aos fiéis que moram em condomínio, e que para isso ele precisa conhecer o nome e endereço das pessoas: "Quem quiser receber esta correspondência da sua Igreja, por favor preencha estes papeizinhos com o seu nome e endereço 11 e entregue para Fulano ou ponha neste lugar." Após algum tempo, o agente coordenador da pastoral teria em mãos os dados para elaborar uma lista dos moradores católicos de cada edifício. Tal lista, com certeza, estará incompleta porque nem todos estavam presentes nas missas: um estava de férias viajando, outro foi visitar a família que mora longe, um ficou doente e não veio nas missas, outro costuma freqüentar a paróquia vizinha, um não é lá muito católico e não tem ido às missas, enfim, seria preciso completar a lista dos convidados. Para isso, o coordenador da pastoral pediria a ajuda das próprias pessoas que já estão na lista: elas receberiam uma cópia dessa lista e pesquisariam no prédio onde moram para ver se entre os seus vizinhos há mais algum fiel que também gostaria de receber correspondência da sua Igreja mas cujo nome e endereço não consta ainda da lista. E com isso, as ovelhas que moram no mesmo edifício já começariam de algum modo a se comunicar, a se identificar umas às outras, a conhecer as ovelhas desconhecidas, e talvez a contatar alguns fiéis que se afastaram, desanimaram, ou que nós chamamos de "não-praticantes" (ainda que "pratiquem" o amor ao próximo). Para facilitar o processo de comunicação entre o coordenador da pastoral e os grupos de fiéis, um ou dois moradores de cada edifício poderiam se encarregar de fazer este serviço de comunicação eclesial, assumindo a função de "mensageiro" responsável por levar correspondência ou transmitir recados da paróquia para os seus vizinhos de prédio e vice-versa, permitindo assim uma ampla e mais fácil comunicação entre o coordenador da pastoral e cada grupo de fiéis, sem nenhuma despesa com correios, e sem os embaraços e complicações que haveria caso o coordenador tivesse que se comunicar com cada pessoa individualmente. Além de simplificar a comunicação, isto também ajudaria a formar nos fiéis uma "consciência de grupo", indispensável ao tipo de apostolado que irão realizar. Mas aqui surge uma dúvida: será que toda esta parafernália de convocação, levantamento, lista de convidados, carta, mensageiro eclesial... etc..., será que tudo isso 11

Estas informações (nome e endereço) já seriam suficientes para se iniciar uma pastoral missionária nos condomínios residenciais. Mas se quisermos também iniciar semelhante ação pastoral nos demais "ambientes" da cidade (escolas e universidades, empresas e organizações de trabalho), seria preciso fazer um recenseamento mais completo e detalhado para obter informações relativas a estudo e trabalho dos fiéis. Com estas informações seria possível reunir os fiéis para que também iniciem uma ação missionária nos seus próprios ambientes de trabalho e educação. Neste caso a convocação teria que seguir um caminho diferente, pois os leigos que freqüentam uma mesma escola ou que participam de uma mesma organização de trabalho geralmente moram em regiões distantes da cidade e por isso não freqüentam a mesma paróquia. Como adaptar a convocação a esta situação? Cruzando os dados obtidos no recenseamento paroquial, seria possível fazer uma lista dos católicos que estão na mesma escola e na mesma organização de trabalho. Sem tal recenseamento é impossível reunir os fiéis em seus ambientes funcionais de trabalho e educação. E sem reuni-los, a Igreja não poderá evangelizar estes ambientes.

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não passa de complicação desnecessária e delirante? Sim, é verdade. E tudo o que posso dizer é que a nossa sociedade e cultura se complicou desmesuradamente: isto é um fato que precisamos reconhecer. E se a Igreja, por meio da paróquia, quiser atuar nesta sociedade e cultura, terá que se servir dos meios e modos "próprios" desta mesma sociedade e cultura. Veja bem: todos nós recebemos regularmente enxurradas de correspondência (impressa ou eletrônica) com todo tipo de informações, propagandas, propostas e convites, pois todos os presidentes ou diretores de bancos, associações, supermercados, escolas, clubes, partidos políticos, empresas, sindicatos, jornais, centros de cultura e lazer etc. comunicam-se por carta com a população fazendo amplo uso de listas com o nome e endereço das pessoas (o que chamam de "mala direta"). Só a Igreja ainda não tem "mala direta", e só o católico não recebe carta nem convite da sua Igreja, de modo que muitas vezes a ovelha desinformada acaba indo às festas de Mamon em vez de ir às bodas de Caná. Que mal haveria em se utilizar destes meios práticos para promover uma ação pastoral nos condomínios? Não consigo ver outro modo de se conseguir iniciar efetivamente esta ação pastoral que não seja organizando e formalizando a convocação dos fiéis. Como conseguir reuni-los para propor-lhes um plano e um compromisso missionário, sem que de algum modo se formalize a sua atual e real vontade de "pertença" à Igreja de Cristo? Se fazemos um registro obrigatório de batismo e casamento, que mal haveria em se fazer também um registro livre e voluntário dos que participam da Missa, dos que querem "ser" Igreja e que estão dispostos a colaborar na Missão de Cristo? Sem esta consciência e vontade, como poderá haver "protagonismo dos leigos" e "apostolado de grupo"? Desde que ninguém seja pressionado ou coagido a nada, não há perigo algum de se voltar ao tempo das fogueiras ou das polícias: convidar e propor respeitosamente não fere a liberdade de ninguém. Pelo contrário, é um reconhecimento e uma homenagem à liberdade alheia! E mesmo assim, com todo esse trabalho, cuidado e respeito, é possível que aconteça o mesmo que na parábola de Jesus: "E o rei mandou seus empregados chamar os convidados para a festa, mas estes não quiseram ir. Os convidados não deram a menor atenção." Um foi para a sala ver televisão, outro foi fazer os seus negócios, e outros foram passear. Mas, segundo Jesus, os convidados foram todos chamados. (Mt 22,110). Portanto, se os condomínios continuarem nas mãos de negociantes que "vendem o justo por dinheiro e o necessitado por um par de sandálias, e pisoteiam o fraco no chão" (Amós 2,6-7), que isto não aconteça por falta de convite, mas por falta dos próprios convidados: "A festa de casamento está pronta, mas os convidados não a mereceram." (Mt 22,8). Por isso a lista dos convidados deve ser muito bem feita e estar completa, para que se realize a vontade de Cristo e de sua Igreja: "Convocamos todos os fiéis a uma Nova Evangelização." Neste caso, todos os fiéis leigos que moram em edifícios.

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3. CONVIDAR OS FIÉIS PARA REUNIÃO NA PARÓQUIA “O pastor chama cada uma de suas ovelhas pelo nome”. (Jo 10,4)

Depois de pronta a lista dos convidados, os noivos mandam os convites. E para fazer isto, ninguém melhor do que o próprio Pastor das ovelhas: o Bispo poderia redigir uma carta-convocatória e entregá-la aos agentes coordenadores da pastoral para que eles levem adiante o processo nas paróquias da cidade. Deste modo o Pastor chamaria cada uma de suas ovelhas pelo nome e se colocaria à frente delas, sem ter que estar corporalmente presente em cada paróquia e em cada condomínio. E com um único texto escrito, essa carta-convocatória do Bispo poderia ser multiplicada e usada a qualquer tempo em todas as paróquias, economizando trabalho para muita gente e ao mesmo tempo conferindo autoridade apostólica à convocação dos fiéis. Para isto, basta que a carta do Bispo tenha alguns espaços em branco para serem preenchidos conforme as circunstâncias locais: nome da paróquia, do padre, do agente coordenador da pastoral, local do encontro etc. (É assim que os diretores de banco e demais empresas fazem correspondência "personalizada": jogam tudo num computador, e a máquina "personaliza" o texto com os dados da filial e dos clientes.) Para enviar os convites aos fiéis, o coordenador da pastoral pediria a um ou dois moradores de cada edifício que entregassem os convites para os fiéis do seu prédio. Estes "mensageiros" fariam assim trabalho semelhante ao dos anjos, levando a cada discípulo a mensagem do próprio Jesus que os chama e convoca para edificar seu Corpo na cidade. Como as paróquias urbanas são hoje gigantescas, não seria muito prático o coordenador da pastoral querer se reunir com todo mundo de uma só vez e ao mesmo tempo. Seria melhor organizar encontros com grupos pequenos de fiéis, como fez Jesus ao distribuir o pão e os peixes para a multidão: "Então Jesus mandou que todos se sentassem na grama verde, formando grupos. E todos se sentaram, formando grupos de cem e de cinqüenta pessoas. Depois Jesus partiu os pães e ia dando aos discípulos para que os distribuíssem. Todos comeram e ficaram satisfeitos. O número dos que comeram os pães era de cinco mil homens." (Mc 6,39-44). Organizando os encontros deste modo (em grupos pequenos que reunissem os fiéis de alguns prédios de cada vez), o coordenador da pastoral teria condições de propor adequadamente o plano missionário, poderia conversar com as pessoas, esclarecer dúvidas, ouvir opiniões e sugestões, promover dinâmicas e discussões, enfim, haveria um encontro de pessoas e não um confuso aglomerado de massa humana. Mas como agendar esses encontros com os diversos grupos de fiéis? Normalmente, todas as convocações já informam a data e horário em que se realizará a assembléia, e deste modo já fica agendada a reunião. Este procedimento, porém, apresenta um inconveniente: só quem pode comparecer neste dia e horário, vai à reunião; quem não pode, simplesmente não vai. Então, se o objetivo da ação pastoral de "convocar" é exatamente fazer com que o maior número possível de fiéis leigos compareça ao encontro, claro está que este procedimento não é muito adequado a este propósito, pois não considera um aspecto importante da vida dos leigos nas grandes cidades: cada pessoa, hoje, tem seus compromissos em dias e horários bem diferentes uns dos outros, e de nada adiantaria o coordenador da pastoral marcar arbitrariamente a data e o horário

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de uma reunião, se a maioria dos convidados não puder comparecer pelos motivos os mais diversos. Infelizmente, este é um dos aspectos da vida moderna que mais complica e dificulta a reunião das pessoas. E este será também um constante desafio ao desenvolvimento de uma pastoral dos condomínios, pois além da natural preguiça e desinteresse, existem impedimentos objetivos à reunião das pessoas: um trabalha todos os finais de semana, outro trabalha de madrugada e dorme de dia, um estuda à noite, outro viaja nos finais de semana, um folga na segunda-feira, outro folga de 4 em 4 dias, um tem compromissos familiares e domésticos que não pode abandonar, outro acumula funções e atividades que não consegue nem dar conta, e por aí vai. Por isso, não convém que na carta de convocação já vá definida e marcada uma data para o encontro. Isto poderia ser feito depois, de comum acordo entre o coordenador da pastoral e cada grupo de fiéis. Se quisermos marcar uma reunião onde o maior número possível de interessados possa comparecer, seria mais prudente deixar que o grupo de fiéis de cada prédio encontre o melhor dia e horário para esta reunião. Com algum esforço e boa vontade de todos, sempre é possível agendar uma reunião para a maioria, se não para todos. E aqueles que não puderem ir no dia e horário mais conveniente para a maioria do seu grupo, poderão ir em outro dia qualquer: o importante é que todos participem de um encontro com o coordenador da pastoral para conhecerem o plano missionário proposto. O ideal seria que todos os fiéis de um mesmo condomínio participassem juntos de um mesmo encontro, mas nem sempre isto será possível. Para se ter uma idéia dos obstáculos que a vida moderna coloca à reunião das pessoas, certa vez eu passei quatro semanas me comunicando com 3 pessoas de meu condomínio (as únicas interessadas!) só para conseguir agendar uma consulta do grupo com um advogado do Secovi, a fim de esclarecer aspectos legais da Convenção do condomínio e obter alguma orientação. Quando um dia e horário era possível para uns, não era para outros, e assim fiquei eu jogando ping-pong durante um mês com 4 pessoas (o advogado e as 3 pessoas do meu prédio), tamanha era a dificuldade de se encontrar um tempo livre comum a todos nós e ainda por cima dentro dos pouquíssimos horários disponíveis do advogado. E se não houver em cada condomínio um ou dois "mensageiros" que se disponham a fazer este serviço interminável de comunicação entre as pessoas, dificilmente haverá reunião do grupo, encontro com o coordenador, e pastoral dos condomínios. Esta é uma triste realidade que devemos reconhecer e à qual é preciso se adaptar com paciência e persistência. Pelo menos foi esta a realidade que encontrei no meu condomínio. Queira Deus que não seja assim por toda parte! Daí a necessidade de uma ação pastoral direta do Bispo junto aos fiéis por meio da "convocação": a sua palavra e autoridade apostólica conseguirão exorcizar os demônios do tempo e da preguiça, e alcançará de Cristo a graça de um verdadeiro milagre: a reunião dos convocados. Se não de todos, ao menos de uma boa parte. Pois o diabo moderno inventou mais essa novidade para desunir as pessoas e afastá-las de Cristo: além de horários cheios, eles são desencontrados. Infelizmente, o atual processo de mercantilização do tempo ("time is money") faz com que toda a vida social vá se organizando de modo a que o tempo das pessoas seja todo ele, dia e noite, ocupado em atividades de produção, comércio e consumo, criando assim situações de vida (objetivas e subjetivas) em que se torna cada vez mais difícil, e às vezes impossível para as pessoas encontrarem um "tempo livre", e tempo livre "comum", que não esteja completamente dominado e ocupado com produção, comércio e consumo. E é por estas e outras razões bem práticas que a Igreja ensina (desde o tempo de Moisés e dos Profetas) o sagrado mandamento do "dia do Senhor": consagrar 51

um tempo, e tempo comum, para o encontro com Deus e com os irmãos, sem o que a nossa salvação torna-se difícil e quase impossível. Mas com fé e perseverança é possível vencer o demônio da "preguiça" e aquele outro ainda pior da "falta de tempo livre comum". E pela graça de Cristo os fiéis leigos vão consagrar um tempo para se encontrar com o agente coordenador da pastoral e conhecer o plano missionário que o Pastor deseja lhes propor.

4. PROPOR O PLANO MISSIONÁRIO “Jesus disse para eles: ‘Sigam-me, e eu farei de vocês pescadores de homens’”. (Mt 4,19)

Vamos imaginar que este primeiro milagre já aconteceu: o coordenador da pastoral está reunido com os fiéis de alguns condomínios da redondeza para propor-lhes o plano missionário, que se resumiria no seguinte: 1. Criar um grupo ou núcleo missionário no condomínio onde moram (união). 2. Organizar encontros de formação e preparação lá no próprio prédio onde vivem (formação). 3. Participar da vida comunitária do condomínio (participação). Supondo que eu não esteja completamente louco e biruta, ouso dizer o seguinte: as linhas básicas deste plano missionário (união, formação e participação) podem ser encontradas por qualquer pessoa que busque dar uma resposta adequada aos problemas e necessidades do condomínio visto sob a luz do Evangelho. Isto é, qualquer cristão que aplique o método "ver, julgar, agir" aos condomínios residenciais urbanos, chegará à conclusão de que é preciso se unir, se preparar e participar. E creio que isto tem fundamentos objetivos, pois conversando com vários moradores de condomínios, tudo o que eles dizem aponta nesta mesma direção. Se isto for verdade, então a proposta deste plano de ação aos fiéis também poderia ser feita segundo o mesmo método "ver, julgar, agir": em vez do coordenador da pastoral dar uma palestra e fazer uma linda e prolongada exposição teórica de um plano missionário já pronto e acabado (o que logo faria adormecer metade da assembléia ali reunida), em vez desse método expositivo, não seria talvez mais adequado do ponto de vista pedagógico orientar as pessoas para que elas mesmas apliquem ativamente o método "ver, julgar, agir" ao seu próprio condomínio? Deste modo os fiéis poderiam caminhar por si próprios em direção ao plano que se deseja propor, colocando-se assim em condições de recebê-lo, entendê-lo, e aceitá-lo com mais interesse, clareza e naturalidade. Se este processo for bem conduzido, provavelmente a assembléia chegará por si mesma a: 1. Discernir as raízes daqueles problemas que percebe no seu condomínio (isto é, a assembléia irá VER que os problemas de seu condomínio são frutos do isolamento e desunião das pessoas, do desinteresse e não-participação nas questões comunitárias, e da ignorância e incompetência técnica e ética dos moradores nos assuntos de condomínio).

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2. Interpretar e JULGAR estas coisas conforme o coração e a mente de Cristo (Deus não quer desunião, desinteresse e ignorância; Deus quer o contrário disso). 3. Encontrar um modo de AGIR mais adequado e conforme a vontade de Deus (e a ação que Deus quer realizar nos condomínios é a união, a formação e a participação dos moradores para resolver seus problemas comunitários com amor, justiça, verdade e liberdade, isto é, na santa paz de Cristo). Como o objetivo central do encontro é propor explicitamente aos fiéis um plano missionário já elaborado, refletido e aprovado pela Igreja, é claro que seria preciso orientar esta atividade da assembléia para que ela caminhe na direção do plano missionário, e não para outra direção qualquer, pois muita gente pode achar que o problema do seu prédio é "muito nordestino, preto, prostituta e gay", e que a solução adequada seria expulsá-los de lá, como tantas vezes se ouve dizer e até mesmo se vê fazer por aí (falo do que acontece em São Paulo, não sei como é em outras cidades). Para orientar a assembléia rumo ao plano missionário, o coordenador da pastoral poderia utilizar aqueles recursos pedagógicos simples e tão bem conhecidos na Igreja, como por exemplo: 1. Estimular os fiéis para que eles se preparem para o encontro. Isto pode facilmente ser feito, anexando à carta-convocatória do Bispo um pequeno questionário que estimule os fiéis a refletirem um pouco sobre a realidade do seu condomínio. Com esta reflexão prévia, as pessoas não viriam para o encontro completamente "cruas". E se o coordenador pudesse ler as respostas e reflexões dos fiéis antes do encontro, também ele poderia se preparar melhor para orientar as pessoas. 2. Com a assembléia já reunida, colocar em comum o que cada pessoa ou grupo refletiu antes do encontro. E em função disso, fazer (ou refazer) algumas perguntas que provoquem e orientem a percepção, o julgamento e a imaginação das pessoas. Por exemplo: Como é para você morar num condomínio e não numa casa? Que diferenças existem entre morar numa casa e num condomínio? Como você se sente morando no seu prédio? Como é a vida por lá? O que você vê acontecer no seu prédio? Do que você gosta e do que não gosta? Por quê? Quais os problemas mais freqüentes no seu condomínio? Por que eles se repetem tanto? Qual é o problema que você considera mais grave? Como os moradores costumam resolvê-los? E isto dá certo e resolve? Quais seriam as causas de todos estes problemas? Que palavras poderiam sintetizar isto tudo? O que acontece de bom no condomínio e que normalmente ajuda prevenir ou resolver tais problemas? Que outras coisas os moradores poderiam e deveriam fazer para ajudar a resolvê-los? E por que isto não acontece? O que você gostaria de dizer ou pedir aos moradores do seu prédio? O que você faz para ajudar a melhorar a vida de todos? Os moradores do seu prédio costumam se reunir? Quando? Como são as reuniões e assembléias do condomínio? Dê alguns exemplos, etc. etc. etc. 3. Fazer anotações num quadro para ir registrando, organizando e sintetizando diante de todos o que a assembléia vê, como interpreta e julga, o que acha que deveria acontecer, e o que se poderia fazer para que aconteça. 4. Promover atividades onde as pessoas exercitem, sozinhas e junto com outras, a sua capacidade de perceber, julgar e imaginar (cochichos em grupos, silêncios para reflexão pessoal, fazer anotações numa folha de papel, ler notícia ou artigo, e principalmente assistir a um vídeo: esta seria talvez a atividade que mais agradaria a todos e que mais ajudaria na sua caminhada rumo ao plano missionário, pois o vídeo

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permite que um conjunto bem selecionado de imagens, informações e pessoas se faça ali presente e participe também daquele encontro, contribuindo para que a assembléia veja e conheça o que ainda não vê nem conhece, interprete e julgue as coisas de outro modo, e formule propostas de ação que nem imaginaria possíveis. Após ver um bom vídeo, provavelmente a assembléia caminharia mais rápido na direção desejada.). 5. As próprias reflexões e opiniões do coordenador da pastoral, que também participa do encontro. Afinal de contas, as pessoas vieram se encontrar com ele também, e esperam muito da sua pessoa. Após esta caminhada inicial, provavelmente a assembléia terá se aproximado bastante das linhas básicas do plano missionário. Aí então o coordenador da pastoral poderia expor a proposta missionária da Igreja, explicando seus objetivos e os esquemas básicos de ação para que os fiéis saibam o que o plano lhes propõe como metas e o que fazer para alcançá-las. Isto é, o coordenador explicaria, por assim dizer, "as regras do jogo" ou os "limites" dentro dos quais os fiéis teriam total autonomia e liberdade de ação, mas fora dos quais não se estaria mais atuando numa pastoral dos condomínios e sim em outra coisa qualquer (que pode ser excelente e mais ao gosto de cada um, mas que não seria mais o plano de ação pastoral da Igreja para os condomínios da cidade). Creio que esta questão de "regras" ou "limites" existe para todos os movimentos, associações e pastorais da Igreja, pois é o que lhes confere a sua identidade: quem colabora na Pastoral da Criança tem um objetivo e segue um plano de ação bem diferente daquele da Pastoral Carcerária, ou dos Vicentinos, por exemplo. E isto não poderia ser diferente para uma pastoral dos condomínios, sobretudo se nós considerarmos que os seus limites e a sua identidade serão constantemente bombardeados e ameaçados pelo excesso de diversidade humana presente nos núcleos, nos condomínios e na Igreja. Considere o seguinte: 1. Os núcleos missionários irão necessariamente agregar toda a diversidade humana e variedade de interesses e opiniões pessoais existentes na Igreja Católica e que se encontram aleatoriamente representados em cada edifício da cidade (o que não acontece com as demais pastorais, movimentos e associações, que geralmente integram pessoas movidas por um interesse comum ou característica comum, o que já confere de antemão aos seus membros uma certa identidade de base que facilita sua união e cooperação; no caso da pastoral dos condomínios, a única identidade de base entre os membros de cada núcleo seria o fato de todos serem católicos e morarem num mesmo prédio, o que não significa muita coisa em comum). 2. A participação dos núcleos nas questões comunitárias próprias da vida em condomínio, colocará necessariamente cada um desses núcleos em contínua relação com toda a diversidade humana existente no seu condomínio. E tal diversidade é estonteante, e desnorteia qualquer um. 3. Além desta atuação central e específica da pastoral dos condomínios (que é a participação dos fiéis leigos nas questões comunitárias da vida em condomínio), é óbvio que os núcleos missionários servirão também como intermediários entre a população dos prédios e todos os diversos movimentos e pastorais da Igreja que queiram ter algum tipo de relação com esta população, pois estes núcleos serão a principal (se não a única) porta de entrada ou via de acesso para os demais movimentos e pastorais da Igreja poderem atuar nos condomínios.

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Esta grande diversidade interna dos núcleos missionários e dos condomínios, ao lado da extraordinária riqueza de possibilidades que uma pastoral dos condomínios ofereceria para toda a Igreja poder atuar "dentro" dos edifícios, será ao mesmo tempo a força e a fraqueza desta pastoral. A sua força estará exatamente na união de tanta diversidade. E a sua fraqueza estará na dificuldade de se alcançar e depois manter esta mesma união. Portanto, a dispersão dos grupos, o "parasitismo pastoral", e a perda de identidade pastoral, serão riscos permanentes que convém prevenir: 1. Seja para evitar que o núcleo missionário se divida em várias frentes individuais e isoladas de trabalho em razão de divergências pessoais de opinião, cada um fazendo apenas o que quer e acha melhor, sem que se consiga criar uma ação comum e coordenada em que todos cooperem (isto significaria a "dispersão" ou até mesmo a "divisão" do grupo). 2. Seja para evitar que o núcleo, por vontade da maioria, se transforme numa espécie de "organismo hospedeiro" ou "agente particular e exclusivo" deste ou daquele movimento de Igreja com o qual o grupo se identifique ou ao qual aceite se submeter, com exclusão dos demais movimentos e pastorais, e conseqüente redução e empobrecimento da diversidade católica atuando no condomínio (chamo a isto de "parasitismo pastoral", aquela espécie de doença eclesial que acontece toda vez que algum grupo, movimento, associação ou pastoral em vez de procurar contribuir para o maior enriquecimento da Igreja, procura apenas uniformizá-la e reduzi-la à sua pobre e própria imagem e semelhança, como se os outros movimentos e pastorais não tivessem nenhum valor e interesse). 3. Seja ainda para evitar que os núcleos simplesmente deixem de lado as questões "comunitárias" próprias da vida em condomínio para se interessarem e se ocuparem com outras coisas que não constituem o foco central de atuação da pastoral dos condomínios (o que significaria a perda de identidade da pastoral). Daí a necessidade de se fazer uma proposta missionária claramente delimitada e centrada naquilo que seria próprio e específico desta ação pastoral: a união, a formação e a participação na vida comunitária do condomínio (e não apenas na vida particular de famílias ou indivíduos isolados e separados entre si). Havendo isto, todo o resto viria depois, por acréscimo, e como conseqüência natural desta participação, pois é participando da vida comunitária dos condomínios que a Igreja se implantará e se enraizará no coração destas comunidades sociológicas de base. Sem esta participação, a religião cristã se apresentará ao condomínio como um assunto meramente subjetivo e que só diz respeito à vida particular de cada indivíduo, sem ter nenhuma incidência cultural e social. Neste caso, a fé cristã será para o condomínio apenas uma crença irrelevante e sem muita conseqüência, mais uma "religião" que não penetra nunca no tecido vivo dessas comunidades (isto é, não penetra na vida e na cultura dos condomínios). Se assim não fosse, que necessidade haveria de se criar uma pastoral dos condomínios? Bastaria que a "paróquia" e as pastorais e movimentos já existentes atuassem nos prédios das cidades: Pastoral da Criança, da Juventude, da Terceira Idade, Familiar, Encontro de Casais, Pastoral da Sobriedade, dos Migrantes, da Saúde, Vicentinos, Renovação Carismática, Apostolado da Oração, Legião de Maria, Focolares etc. Acontece, porém, que nenhuma destas estruturas pastorais e movimentos eclesiais tem como objetivo próprio e específico evangelizar o condomínio, isto é, transformar as suas relações comunitárias pela força do Espírito, o que só é possível mediante a

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participação de um grupo de moradores cristãos bem unidos entre si, técnica e eticamente bem formados, e movidos pelo Espírito de Cristo. Quando os habitantes dos condomínios puderem "ver" no seu próprio meio um grupo de pessoas unidas no amor de Cristo, participando dos problemas e atividades da comunidade, colaborando com competência e conhecimento, procurando sempre o caminho da verdade e da justiça, promovendo a paz e a concórdia, e auxiliando a todos em suas necessidades (ou pelo menos tentando sinceramente fazer tudo isso, apesar das suas limitações e imperfeições), então é claro que estes moradores começarão de alguma forma a se perguntar seriamente sobre esta "fé em Cristo" que tantos benefícios traz para todo mundo: "Que a luz de vocês brilhe diante dos homens, para que eles vejam as boas obras que vocês fazem, e louvem o Pai de vocês que está no céu." (Mt 5,16). Esta é a força do testemunho cristão: luz de Cristo brilhando discreta e continuamente nos condomínios da cidade, iluminando e transformando sua vida comunitária com a força do Evangelho. A respeito deste testemunho, o Papa Paulo VI ensina o seguinte: "A ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época, como o foi também de outras épocas. Assim, importa envidar todos os esforços no sentido de uma generosa evangelização da cultura, ou mais exatamente das culturas. Estas devem ser regeneradas mediante o impacto da Boa Nova. Mas um tal encontro não virá a dar-se se a Boa Nova não for proclamada." "E esta Boa Nova há de ser proclamada, antes de mais, pelo testemunho. Suponhamos um cristão ou punhado de cristãos que, no seio da comunidade humana em que vivem, manifestam a sua capacidade de compreensão e de acolhimento, a sua comunhão de vida e de destino com os demais, a sua solidariedade nos esforços de todos para tudo aquilo que é nobre e bom. Assim, eles irradiam, dum modo absolutamente simples e espontâneo, a sua fé em valores que estão para além dos valores correntes, e a sua esperança em qualquer coisa que não se vê e que não se seria capaz sequer de imaginar. Por força deste testemunho sem palavras, estes cristãos fazem aflorar no coração daqueles que os vêem viver, perguntas indeclináveis: Por que é que eles são assim? Por que é que eles vivem daquela maneira? O que é – ou quem é – que os inspira? Por que é que eles estão conosco? " "Pois bem: um semelhante testemunho constitui já proclamação silenciosa, mas muito valorosa e eficaz da Boa Nova." (Evangelii Nuntiandi 20-21). Agora, suponhamos o contrário disso tudo. Suponhamos um punhado de cristãos que, no seio da comunidade condominial em que vivem, manifestam o seu isolamento e desunião, manifestam o seu desinteresse e indiferença (ou incompreensão e até mesmo oposição) pelos esforços de outros para o que é nobre e bom, e manifestam também a sua ignorância e incompetência técnica e ética nas questões comunitárias. O que estes cristãos irradiam para toda a comunidade? Por força deste contra-testemunho sem palavras, o que estes cristãos fazem aflorar no coração daqueles que os vêem viver assim? Neste contexto, que efeito produziria uma proclamação verbal e barulhenta da Boa Nova? Com certeza, um efeito bastante desagradável, pois muita gente nos responderia: "Você tem a fé, e eu tenho as obras. Pois bem! Mostre-me a sua fé sem as obras, e eu, com as minhas obras, lhe mostrarei a minha fé." (Tg 2,18). E o apóstolo 56

conclui: "De fato, do mesmo modo que o corpo sem o espírito é cadáver, assim também a fé: sem as obras ela é cadáver." Então, de que modo a Igreja poderá evangelizar os condomínios? A nossa fé (ou falatório) sem as obras não tem nenhuma força de transformação: sem as obras ela é cadáver. Mas com as obras, a nossa fé se torna viva e eficaz, mesmo que seja uma fé discreta e silenciosa. E quais seriam estas "obras missionárias" que a pastoral dos condomínios deveria propor aos fiéis? A primeira destas obras deve ser a união dos fiéis (união obviamente ordenada e intrinsecamente orientada para a formação e participação destes fiéis na vida comunitária do seu condomínio).

5. CRIAÇÃO DE NÚCLEOS MISSIONÁRIOS CATÓLICOS NOS CONDOMÍNIOS "Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou no meio deles." (Mt 18,20)

A ação fundamental da pastoral dos condomínios é precisamente a criação de núcleos católicos nos condomínios da cidade. Esta união dos moradores católicos é a base e o alicerce indispensável sobre o qual tudo mais poderá ser construído e realizado. Este é o desafio central à evangelização dos condomínios: o que fazer para unir os fiéis que moram dispersos no mesmo prédio, de modo a formarem um grupo mais ou menos estável de pessoas que se reúnem regularmente "em Cristo" para construir comunhão e capacitar-se para a missão de evangelizar o seu condomínio? Para que a Igreja consiga plantar em cada condomínio da cidade o germe, a semente de uma futura CEB, será preciso fazer aquilo mesmo que o Espírito Santo e os Pastores da Igreja pedem que se faça: (1) unir os fiéis leigos em "um núcleo, mesmo pequeno, que constitua uma comunidade de fé, esperança e caridade" (Medellín 15,10). Porém, não basta unir. Será preciso também (2) orientar cada núcleo para que comece a atuar "como centro de formação cristã e de irradiação missionária" (RMi 51). Ou seja, não adiantará criar grupos "de qualquer natureza". É preciso também saber que "tipo de grupo" é necessário criar, pois "os grupos não constituem fim em si próprios, mas hão de servir ao cumprimento da missão da Igreja no tocante ao mundo" (Vaticano II, AA 19). Esta finalidade "missionária" ou "apostólica" dos núcleos precisa ser claramente entendida e significada já desde o começo, desde sua concepção e criação, pois só assim os fiéis leigos poderão "evangelizar", isto é, realizar o serviço de comunicação (ou mediação) entre a comunidade eclesial (Igreja) e a comunidade condominial (mundo): "Os leigos encontram-se num lugar central no diálogo entre Deus e o mundo" (DGAE 1999-2002, 318). E para que este diálogo salvífico aconteça, é evidente que o grupo de leigos (partícipe e mediador deste diálogo) não pode fechar-se em si mesmo nem se abrir unilateralmente, mas precisa abrir-se simultaneamente para a Igreja e para o condomínio, para Deus e os moradores do prédio, para a oração e a participação na vida do condomínio, e precisa fazê-lo enquanto "núcleo" ou grupo de pessoas unidas entre si, e não como grupo dividido ou como indivíduos isolados e dispersos. A missão da Igreja no tocante ao mundo deve ser o critério para as decisões pastorais que irão determinar as características e o tipo de grupo que convém criar. No tocante aos condomínios, a missão da Igreja exige que se criem grupos com

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características semelhantes àquela forma de apostolado que o Concílio Vaticano II chama de "Ação Católica" (cf. AA, 20), e que outros preferem chamar de "ação dos católicos", e que em muitos lugares assume hoje a forma e o nome de CEB:     

protagonismo dos leigos, ação comunitária (ou coletiva), finalidade apostólica, em união com toda a Igreja, presença e participação na sociedade humana.

É de se notar que estas características (ou notas) trazem todas elas a marca e o selo comum da unidade cristã: 1. União entre os membros do grupo (ação comunitária, coletiva). 2. União com Cristo e sua Igreja (finalidade apostólica, em união com toda a Igreja). 3. União com o condomínio, a cidade e o mundo (protagonismo dos leigos, presença e participação na sociedade humana). Portanto, a primeira tarefa da pastoral dos condomínios seria promover a união dos moradores católicos de cada prédio, milagre que só Cristo conseguirá fazer por meio da sua Igreja: "A primeira tarefa da Igreja, anterior a qualquer outra, é a formação do Povo de Deus e a construção da própria unidade." (CNBB, Igreja: Comunhão e Missão, 84). "Sim, a sorte da evangelização anda sem dúvida ligada ao testemunho da unidade dado pela Igreja." (Evangelii Nuntiandi 77). A necessidade de se criar, antes de tudo, um grupo unido, decorre tanto da natureza comunitária da vida em Cristo como da natureza comunitária da vida em condomínio: é somente através de um apostolado de grupo que a Igreja conseguirá evangelizar o condomínio, pois só assim é que se responde simultaneamente a exigências eclesiológicas e sociológicas fundamentais. Conforme ensina o Concílio Vaticano II: "O apostolado de grupo corresponde assim satisfatoriamente à exigência dos fiéis tanto do ponto de vista humano quanto cristão, exprimindo ao mesmo tempo o sinal da comunhão e da unidade da Igreja em Cristo, que disse: 'Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou no meio deles.' (Mt 18,20)." (AA 18). Do ponto de vista cristão, não há dúvida que o apostolado de grupo deve ser preferido sempre que isto for possível, pois "evangelizar não é para quem quer que seja um ato individual e isolado, mas profundamente eclesial". (Evangelii Nuntiandi 60). E do ponto de vista humano e social, o apostolado de grupo é o único que teria condições de sucesso, em razão da extrema complexidade da vida em condomínio e do grande volume de tarefas e forças exigidas para se realizar e sustentar uma única ação ou intervenção neste ambiente, o que só é possível através de uma ação coletiva: "O apostolado de grupo é de grande importância também porque, nas comunidades da Igreja ou em diversos ambientes, muitas vezes exige que seja realizado por uma ação comum. Os grupos constituídos para a ação apostólica comunitária sustentam seus membros e os formam para o apostolado, organizam e dirigem seu trabalho apostólico, de forma a se poder esperar daí frutos bem mais abundantes do que no caso de agirem 58

todos em separado. Nas atuais circunstâncias, pois, é de extrema necessidade que no ambiente da atividade dos leigos se fortaleça a forma de apostolado em grupo organizado. É só a união estreita de forças que pode atingir plenamente os fins todos do apostolado moderno e ainda defender vigorosamente seus benefícios." (AA 18). Portanto, há 3 caminhos que deveriam ser evitados por uma pastoral dos condomínios, pois não conduzem à meta que se deseja alcançar. São eles: 1. Enviar os fiéis leigos para evangelizar seus condomínios através de um apostolado individual, todos agindo em separado (é o que normalmente se faz nas homilias, nas exortações finais da missa, nos vários meios de comunicação, quando se diz "vão evangelizar seus locais de trabalho, seus prédios" etc.). 2. Gerar grupos de fiéis leigos bem unidos entre si e com a Igreja, porém fechados e indiferentes à vida comunitária do seu condomínio (é o que costuma acontecer com os grupos de novena e oração, celebração ou devoção, que se formam nos prédios por iniciativa das paróquias, associações e movimentos eclesiais). É claro que as ações e testemunhos individuais, assim como os grupos de oração ou celebração que se formam nos prédios, produzem abundantes e excelentes frutos de fé, esperança e caridade. Deus me livre de pensar que estes 2 caminhos sejam inúteis ou estéreis. O que eu quero dizer aqui é somente que estes 2 caminhos, ou opções pastorais, dificilmente resultarão na evangelização "do condomínio": seja porque os grupos de oração e celebração que se formam nos prédios não se preparam nem se orientam para isto, seja porque ações individuais e testemunhos isolados raramente conseguem ter a força e eficácia necessárias para uma transformação do ambiente em questão. 3. Gerar grupos de moradores bem unidos entre si e participando ativamente na vida do condomínio, porém fechados e indiferentes a Cristo, ao Evangelho e à Igreja. Que eu saiba, isto jamais aconteceu por iniciativa da Igreja, mas é o que costuma acontecer por iniciativa dos próprios moradores (inclusive católicos) quando alguns deles resolvem se unir e participar, fazendo-o porém sem Cristo e sem qualquer relação com a Igreja, o que resulta inevitavelmente em toda sorte de desvios éticos e inversão de valores, em corrupção e formação de quadrilhas, ou simplesmente em falta de rumo e desagregação precoce dos grupos. Este desastre sempre acontece quando se trata de uma união e participação sem Cristo: "Sem mim vocês não podem fazer nada." (Jo 15,5). Por esta razão o Papa ensina que é preciso vigiar para "nunca ceder à tentação de reduzir as comunidades cristãs a agências sociais". (Novo Millennio Ineunte, 52). Ou seja, deve-se evitar o caminho de qualquer tipo de individualismo, isolamento e fechamento, tão contrários à vontade de Cristo e à edificação do seu Corpo nos prédios da cidade. A respeito disso, o Papa ensina: "A agregação dos fiéis leigos por motivos espirituais e apostólicos brota de várias fontes e vai ao encontro de diversas exigências: exprime, de fato, a natureza social da pessoa e obedece ao imperativo de uma mais vasta e incisiva eficácia operativa. Na verdade, a incidência "cultural" fonte e estímulo e, simultaneamente, fruto e sinal de todas as demais transformações do ambiente e da sociedade, só se pode alcançar com a ação, não tanto dos indivíduos, mas de um "sujeito social", isto é, com a ação de um grupo, de uma comunidade, de uma associação, de um movimento. E isso é particularmente verdade no contexto de uma sociedade pluralista e fragmentada – como é, em tantas partes do mundo, a atual – e perante os problemas tornados enormemente complexos e difíceis. Por outro lado, sobretudo num mundo 59

secularizado, as várias formas agregativas podem representar para muitos uma ajuda preciosa em favor de uma vida cristã coerente com as exigências do Evangelho e de um empenho missionário e apostólico. Além destes motivos, a razão profunda que justifica e exige o agregar-se dos fiéis leigos é de ordem teológica: uma razão eclesiológica, como abertamente reconhece o Concílio Vaticano II, ao apontar o apostolado associado como um "sinal de comunhão e da unidade da Igreja em Cristo". (CfL 29). Os Bispos do Brasil insistem nisso: "Ainda hoje, é necessário repetir aquilo que afirmávamos em nossa 23º Assembléia Geral: "Todos precisamos aprender a trilhar o caminho da UNIDADE, que não é o mesmo que uniformidade." (CNBB, Igreja: Comunhão e Missão, 19). Portanto, orientar os fiéis leigos para que aprendam a trilhar este caminho da unidade deveria ser o objetivo geral dos encontros de formação missionária da pastoral dos condomínios, cuja meta seria então promover: 1. a união entre os membros do grupo, 2. a união do grupo com Cristo e sua Igreja, 3. e a união do grupo com o condomínio, a cidade e o mundo. Como ensina o apóstolo Paulo: "A meta é que todos juntos nos encontremos unidos na mesma fé e no conhecimento do Filho de Deus, para chegarmos a ser o homem perfeito que, na maturidade do seu desenvolvimento, é a plenitude de Cristo. (...) Vivendo amor autêntico, cresceremos sob todos os aspectos em direção a Cristo, que é a Cabeça." (Ef 4,13-16). Com os olhos fixos nesta meta, convém agora refletir sobre a formação missionária capaz de conduzir para esta meta e objetivo geral (a união). Pois não é qualquer tipo de formação missionária que convém à pastoral dos condomínios e à vocação e missão própria dos leigos neste tipo de ambiente social.

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Parte III FORMAÇÃO MISSIONÁRIA a unidade no amor

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A FORMAÇÃO DOS LEIGOS EM GERAL ( Um problema sem solução? )

1. SITUAÇÃO ATUAL DO LAICATO NO MUNDO E NA IGREJA Vamos focalizar a nossa atenção naquela porção do Povo de Deus que representa a maioria dos fiéis leigos que freqüentam as missas de domingo nas grandes paróquias das áreas centrais da cidade de São Paulo (povo leigo do qual faço parte, e que é o ponto de vista adotado por mim neste texto). Olhando para esta multidão, o que vemos? Quando saem da missa de domingo, para onde vão e o que fazem no mundo? Quais são os ambientes e os campos de atividade mais comuns a estes fiéis? Se nós acompanharmos cada um deles no seu dia a dia, naquele espaço de tempo que vai de um domingo a outro, de uma missa à outra, nós veremos que todos eles passam a maior parte do seu tempo e desenvolvem a maior parte de suas atividades em quatro ambientes: a habitação, a família, a escola e o trabalho. É basicamente nestes 4 ambientes que os fiéis leigos nascem, crescem, vivem, convivem, se desenvolvem, atuam, envelhecem, e por fim morrem. É claro que eles freqüentam também outros lugares, fazem outras coisas e convivem com outras pessoas, como por exemplo: nos transportes, nas compras, no hospital, no banco, nas diversões, nas passeatas, no bar, na paróquia, no cemitério, na casa dos amigos, na rua, nas viagens etc. etc. etc. Porém, ninguém passa aí a maior parte do seu tempo, nem é aí que os leigos desenvolvem a maior parte de suas atividades, nem é aí tampouco que eles encontram aquelas pessoas com as quais convivem regular e intensamente: isto só acontece no local de sua habitação, no seio da família, na escola e no trabalho. Portanto a Igreja, na pessoa dos fiéis leigos, está continuamente presente, inserida e atuante nestes 4 ambientes. Que maravilha! Então, há uma contínua atividade evangelizadora da Igreja ao menos nestes 4 ambientes da metrópole? Que coisa providencial! As famílias sendo evangelizadas! Os locais de habitação, os prédios, cortiços, favelas, bairros, é a pólis inteira sendo evangelizada! As escolas e as universidades, o mundo da educação, da ciência e cultura sendo evangelizado! Os locais de trabalho, as empresas, associações e organizações de trabalho, as diversas profissões e os vários ramos da economia sendo evangelizados! Que maravilha! Vamos contemplar e celebrar! Porém, quando olhamos para a cidade ... que decepção! Não é esta maravilha o que se vê. Não digo isto a respeito das famílias, pois não sei o que acontece nas famílias da cidade grande. Porém, eu sei muito bem o que acontece nos prédios, nas escolas e nos locais de trabalho, seja por experiência própria, seja por meio de outros, seja ainda por simples dedução: nos prédios, nas escolas e nos locais de trabalho da cidade não se vê nem se percebe a ação evangelizadora da Igreja. Ao menos não se vê nenhuma ação evangelizadora atual e explícita. Quando muito, percebe-se uma espécie de "resíduo"

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cristão implícito de uma evangelização passada, o que dela resiste e persiste apesar de tudo. Ou então ouve-se uma espécie de "eco" fraco e distante da evangelização que se realiza no interior das paróquias. E demos graças a Deus que ainda existem este resíduo e este eco. Porém, até quando? O resíduo está se desfazendo com o passar do tempo, e o eco está se diluindo no barulho crescente da cidade. Meu Deus! Mas por que isto acontece se nos prédios, nas escolas e universidades, nos locais de trabalho, no seio das famílias, há tantos cristãos leigos que buscam sinceramente seguir a Cristo, participam da missa aos domingos, rezam e têm um coração bom e honesto? Bem, eu creio que isto acontece porque os cristãos leigos vivem e agem nestes ambientes enquanto cristãos católicos anônimos e isolados entre si. É isto, acredito, o que impede a ação evangelizadora da Igreja nestes ambientes. Pois uma poeira de indivíduos anônimos, dispersos e isolados entre si, por mais densa que seja, é poeira, não é ekklēsia (gr. ἐκκλησία = assembléia, reunião): "E lhes digo ainda mais: se dois de vocês na terra estiverem de acordo sobre qualquer coisa que queiram pedir, isso lhes será concedido por meu Pai que está no céu. Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí no meio deles." (Mt 18,19-20). Jesus nunca enviava seus discípulos isolados, mas sempre em ekklēsia, ainda que fosse a menor ekklēsia de todas: dois ou três reunidos em seu nome. "Chamou os doze discípulos, começou a enviá-los dois a dois e dava-lhes poder sobre os espíritos maus." (Mc 6,7). "O Senhor escolheu outros setenta e dois discípulos, e os enviou dois a dois, na sua frente, para toda cidade e lugar aonde ele próprio devia ir." (Lc 10,1) "Nesse mesmo dia, dois discípulos iam para um povoado, chamado Emaús. (...) Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou, e começou a caminhar com eles." (Lc 24, 13-15). Era sempre assim, em ekklēsia, que Jesus enviava seus discípulos para a missão e caminhava com eles no mundo. Agora, veja o que acontece hoje com os fiéis leigos, e por que razão a "ruptura entre o Evangelho e a cultura" é, no fundo, o resultado de uma grande ruptura entre Igreja e Missão: sempre que os fiéis leigos estão reunidos em nome de Cristo formando uma ekklēsia, eles não estão em missão na cidade, mas estão na paróquia assistindo a missa. E sempre que os fiéis leigos estão em missão na cidade, eles não estão reunidos em nome de Cristo, mas estão isolados e cada um agindo por conta própria sem formar uma ekklēsia. No final da missa nós cantamos: "Agora que a missa termina, começa então nossa missão". Mas como Cristo poderá estar "no meio" dos fiéis leigos se eles, quando estão em missão nos ambientes onde vivem e agem, nunca estão reunidos em nome de Cristo? Veja que contradição e ruptura vive o laicato: quando reunidos, não estão em missão; quando em missão, não estão reunidos. Podem até estar reunidos, como normalmente acontece nos edifícios, nas escolas e universidades, nos diversos locais de trabalho. Porém estão unicamente reunidos em nome do edifício, em nome da ciência e tecnologia, do conhecimento e da cultura, em nome do lucro, do salário e da mercadoria que produzem, mas jamais estão reunidos em nome de Cristo. (Em todo este texto, eu falo sempre de um modo geral e esquemático por motivo da análise. Pois os leigos engajados que atuam em conjunto são uma minoria admirável!). E como é que os fiéis leigos poderiam se reunir em Cristo, se nestes ambientes eles normalmente se ignoram e se desconhecem enquanto cristãos e membros da Igreja Católica? Este anonimato e isolamento é tão grande entre os católicos, que só depois, muito tempo depois que eu saí da universidade, é que fui descobrir por acaso que aquele 63

meu professor (admirado e respeitado por todos os alunos) era cristão muito ativo e participante na Igreja, que aquela professora era católica porque certa vez a encontrei numa fila de comunhão, que aquele colega também era católico, e que eu mesmo também era cristão e católico, pois havia me esquecido disto na faculdade. Parece que a maioria dos fiéis leigos, quando deixam a paróquia depois da missa ou o salão paroquial depois de algum encontro, deixam lá também sua identidade cristã e católica, isto é, deixam de ser Igreja (ekklēsia) e se separam e se isolam uns dos outros. Então, só somos Igreja (ekklēsia) quando estamos na igreja (templo)? E quando estamos no mundo, não mais somos Igreja? Este misterioso "desaparecimento" da comunidade cristã católica no mundo atual é muito curioso e digno de reflexão. A minha experiência de leigo na cidade grande foi sempre esta "ausência": o tempo todo em que freqüentei a universidade, nunca encontrei nenhum cristão católico, embora certamente houvesse uma porção deles na minha própria classe e curso. O único católico que encontrei por lá era um seminarista que ia vestido que nem padre, com um broche na forma de cruz, colarinho branco e terno preto. Mas foi só. E coisa semelhante aconteceu em todos os locais onde morei e onde trabalhei: nunca vi nenhum sinal, manifestação ou ação de Cristo-Igreja, embora houvesse com certeza ao menos "dois ou três" fiéis leigos disfarçados de pagãos, se é que não havia uma porção deles! Enquanto "cristãos desconhecidos e isolados uns dos outros", como é que os fiéis leigos poderão evangelizar estes ambientes? Com que força, com que poder, e com que autoridade poderão agir e falar "em Cristo" se Cristo não se fizer presente "no meio" deles? Sempre isolados uns dos outros, como é que os leigos no mundo poderão viver e expressar a unidade no amor em vista da instauração do Reino e do advento do Senhor? O mais provável é que eles naufraguem, se afundem, se engasguem e se afoguem nas águas agitadas deste mundo-mar: "O fenômeno da urbanização apresenta grandes desafios para a ação pastoral da Igreja, a qual deve enfrentar o desenraizamento cultural, a perda dos costumes familiares, o abandono das próprias tradições religiosas, com o resultado bastante freqüente do naufrágio da fé, privada das manifestações que contribuíam para sustentá-la." (Ecclesia in America, 21). Como historicamente é impossível (ou anacrônico) ressuscitar estas manifestações do passado, e como as manifestações do presente mostram-se insuficientes ou mesmo ineficazes, é necessário inventar e criar outras novas manifestações "ekklesiais" que contribuam não só para sustentar a fé dos leigos, mas sobretudo para torná-la explícita e mais operante, hoje, no meio urbano. A solução pastoral para toda esta calamidade seria reunir os fiéis leigos "em nome de Cristo" nestes mesmos ambientes onde eles já estão reunidos, vivendo e atuando: nos edifícios, cortiços e favelas onde habitam, nas escolas e universidades onde ensinam e estudam, nos diversos locais onde trabalham (e a família também poderia ser incluída neste "modo de organizar as próprias estruturas pastorais", pois hoje em dia a família se dispersou tanto que muitas vezes os seus membros nem mais se conhecem direito). E o que é que os fiéis leigos fariam assim "reunidos em nome de Cristo" nos edifícios, nas escolas e universidades, nos locais onde trabalham, e na família também? Evidentemente eles não iriam celebrar missas, nem fazer pregações, nem tampouco ficar só rezando e lendo a Bíblia (o que já seria maravilhoso, mas insuficiente): isto seria apenas "clericalizar" ou "monacalizar" os fiéis leigos, reproduzindo nestes ambientes uma porção de mosteiros silenciosos ou de mini-paróquias barulhentas, enclausuradas e fechadas em si mesmas. O que os leigos fariam assim reunidos nestes 64

ambientes deve ser algo mais condizente com a sua vocação e estado laical: ordenar as realidades temporais conforme a vontade de Deus, levando assim o Evangelho para "dentro" das estruturas do mundo, realizando "a seu modo" (e não ao modo dos fiéis ordenados, nem ao modo dos fiéis consagrados) a presença e a missão da Igreja neste mundo. Com isto se respeitaria a sua secularidade, que é a nota característica e própria do leigo e de sua espiritualidade: "De qualquer forma, mesmo devendo-se estimular o apostolado intra-eclesial, é preciso que ele coexista com a atividade própria dos leigos, em que eles não podem ser substituídos pelos sacerdotes, isto é, o campo das realidades temporais." (EA 44). Este modo de organizar a própria estrutura pastoral (e eclesial) permitiria que os fiéis leigos agissem nestes ambientes não mais enquanto cristãos católicos anônimos, dispersos e isolados entre si (como acontece hoje), mas sim enquanto "Igreja", isto é, enquanto cristãos católicos "reunidos em Cristo" para agir nos vários âmbitos da vida familiar, social, profissional, cultural, econômica e política, em vista de sua evangelização. É somente assim que se poderá, um dia, diminuir a ruptura entre o Evangelho e a cultura: permitindo que o laicato seja Igreja (ekklēsia) também quando está em missão na cidade, e não apenas quando está na paróquia assistindo a missa ou no salão paroquial participando de algum encontro. Isto me parece ser uma necessidade (dos homens) e uma vontade (do Espírito Santo) claramente expressas pelos pastores da Igreja reunidos no Concílio Vaticano II, e depois pelos papas e bispos reunidos nos sínodos e nas conferências episcopais: "A primeira evangelização do continente latino-americano teve generosos protagonistas membros de Ordens religiosas ou do clero. Hoje, a renovação da consciência eclesial e da responsabilidade missionária do Povo de Deus, que se expressa exemplarmente nas orientações do Concílio Vaticano II, amplia os sujeitos eclesiais da missão, passando da missão de alguns para a missão de todos. O desafio para a Igreja hoje está justamente em despertar cada batizado e cada comunidade eclesial para essa responsabilidade primeira e intransferível." (DGAE 1999-2002, 108) "Tornar cada batizado sujeito ativo da missão constitui realmente a meta da ação pastoral e tarefa indispensável para fazer frente aos novos contextos da missão evangelizadora." (Idem, 111). "A primeira evangelização deu-se num momento cultural diverso do de hoje. Então, a religiosidade e a religião estavam no centro da sociedade e das culturas. Havia uma certa conaturalidade entre Evangelho e as culturas, impregnadas pela busca religiosa dos povos. O drama da nossa época, na Palavra de Paulo VI, revela uma "ruptura entre o Evangelho e a cultura". Para fazer frente a tal situação, o projeto da nova evangelização convoca os fiéis leigos para assumirem o papel de protagonistas, impregnando com o fermento novo do Evangelho as realidades terrestres em que estão inseridos no trato quotidiano com a economia, a política e a cultura." (Idem, 112). "Situar o mundo como horizonte concreto da missão, e os cristãos leigos como atores da missão evangelizadora, exige levar adiante o projeto de renovação da Igreja, fazendo com que suas estruturas respondam às exigências do mundo de hoje. A Igreja não pode, pois, ficar voltada sobre si mesma ou sobre alguns de seus membros, mas deve, com olhar firme na meta, o Reino, voltar-se para o mundo, em atitude de serviço, envolvendo todos os seus membros, conforme seus dons e capacidades." (DGAE 1999-2002, 113). A partir destas diretrizes e tantas outras orientações pastorais, pode-se dizer que o projeto da Nova Evangelização exige, entre muitas outras coisas, o seguinte: 1. Renovação da consciência eclesial (novos pontos de vista e novas perspectivas). 2. Renovação da ação eclesial (novas estruturas pastorais e de formação cristã).

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3. Protagonismo dos fiéis leigos (novos atores da ação evangelizadora). 4. Situar o mundo como horizonte concreto da missão (novos destinatários da evangelização). Vamos ver uma coisa de cada vez. Mas antes disso, quero fazer um esclarecimento preliminar a fim de evitar possíveis mal-entendidos. Pois muito do que vou falar diz respeito às limitações pastorais e missionárias da paróquia em relação à vida e ação dos leigos no mundo atual. Assunto difícil de abordar na Igreja sem gerar mal-entendidos e reações extremadas (uns proclamando que a paróquia está falida e ultrapassada, outros esperando tudo da paróquia renovada). Por isso, quero esclarecer o seguinte: Penso que é indispensável no mundo de hoje desenvolvermos uma visão crítica e mais realista da paróquia, uma vez que a organização paroquial das dioceses continua sendo até hoje um princípio geral de organização hierárquica da Igreja universal, e por isso a paróquia se apresenta para a maioria da população como o principal meio de inserção e participação na vida da Igreja, e para a maioria dos leigos paroquianos a sua paróquia é a única forma de vida eclesial que conhecem ou da qual podem participar. Isto é um fato. Porém, se a paróquia sozinha, por natureza, não é capaz de promover pastoralmente a missão fundamental do leigo nos "lugares ou ambientes" em que ele vive e atua quotidianamente (família, escola, habitação e trabalho), temos aí um grande problema pastoral e missionário que ainda aguarda uma solução. E se não desenvolvemos uma compreensão crítica (e ao mesmo tempo propositiva) em relação à paróquia, este problema não poderá se resolver. Contudo, a crítica da paróquia (ou do "princípio paroquial") não pode se tornar uma crítica unilateral ou absoluta, a ponto de nos tornar cegos para outro fato igualmente importante, pois a paróquia em si mesma (com todos os seus limites e problemas) é hoje uma estrutura eclesial absolutamente necessária à missão da Igreja no mundo atual, na medida em que a paróquia é a única estrutura eclesial que realiza e manifesta com perfeição a natureza essencialmente "pública", eucarística e episcopal, da Igreja (una, santa, católica e apostólica) no meio do povo e para o povo. Que outra estrutura eclesial realiza isto para o povo? Não há. Portanto, é inquestionável o seu valor e a sua necessidade à vida e missão da Igreja no mundo de hoje. Mas isto não significa de modo algum que a paróquia sozinha possa bastar (cf. CfL 26). É sobre isto que procuro chamar a nossa atenção.12 12

Para uma crítica do "princípio paroquial", ver o excelente artigo de KARL RAHNER, "Friedliche Erwägungen über das Pfarrprinzip". Zeitschrift für kathlische Theologie 70 (1948) 169-198. Na versão espanhola: "Reflexiones pacíficas sobre el principio parroquial" (Escritos de Teología, Tomo II. Iglesia Hombre, Taurus, Madrid, 1961, pp. 295-336). E na versão em Inglês: "Peaceful Reflections on the Parochial Principle" (Theological Investigations, vol. II. Man in the Church, Baltimore, MD, Helicon Press, 1963, pp. 283-318). A tradução para o Espanhol está na Internet e pode ser acessada no link: http://pt.scribd.com/doc/104176856/Rahner-Karl-Escritos-de-Teologia-02. Neste artigo, Rahner faz uma reflexão bastante detalhada sobre os limites atuais do "princípio paroquial". Descobri este artigo somente agora (2015), ao fazer a revisão deste texto. Relendo o Documento 62 da CNBB (Missão e ministérios dos cristãos leigos e leigas), encontrei no §105 uma referência ao teólogo Yves Congar. Fiquei curioso, procurei na Internet e achei o seu livro "Sacerdocio y Laicado". No capítulo "Misión de la parroquia", Congar refere-se ao artigo de Rahner nestes termos: "Después de 1948, han aparecido numerosos estudios sobre la parroquia, orientados con frecuencia desde un punto de vista pastoral-práctico, que nosotros no podíamos tocar aquí. (...) Citemos, en particular, una crítica muy pertinente, a cargo del P. Karl Rahner, del «Pfarrprinzip», principio según el cual el cristiano debería buscar y podría encontrar exclusivamente en su parroquia todo aquello de lo que tiene necesidad espiritualmente. Sobre este «Pfarrprinzip», cfr. Reflexiones pacíficas sobre el principio parroquial, en Escritos de Teología, Taurus, Madrid, 1961, pp. 295-336." Procurei na Internet e achei o texto. Fiquei surpreso ao constatar que já em 1948 se discutia na

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Pois bem, esclarecido este ponto essencial, continuo minhas observações críticas da paróquia e da pastoral paroquial, tendo sempre em vista (como critério de análise) as exigências de formação e atuação missionárias do laicato no mundo urbano de hoje. Portanto, trata-se aqui apenas de explicitar um determinado "ponto de vista" bem particular e delimitado, na medida em que considero a paróquia e a pastoral paroquial sempre "em função" das exigências de formação e atuação missionárias do laicato nos seus ambientes normais de vida e ação. E por que faço isto? Porque certas limitações ou impossibilidades pastorais e missionárias intrínsecas à própria natureza da comunidade "paroquial" e da pastoral "paroquial", só se tornam aparentes e perceptíveis para nós na medida em que assumimos este ponto de vista ou perspectiva, isto é, quando adotamos o ponto de vista do "leigo paroquiano" cuja vida cristã e apostólica precisa realizar-se também nos diversos ambientes onde vive e atua diariamente, ambientes que na maioria dos casos transcendem os limites normais e naturais da sua paróquia ou da pastoral paroquial. Infelizmente, tal "ponto de vista" pressupõe a vivência pessoal e a experiência concreta destes ambientes urbanos (todos eles seculares e extra-eclesiais), e isto é comum ou próprio dos leigos apenas, mas não dos pastores da Igreja. Pois alguém já viu um bispo ou padre trabalhando 8 horas por dia numa agência bancária, numa companhia de dança, num supermercado, numa UTI hospitalar, ou numa empresa comercial e industrial qualquer? Alguém já viu um bispo ou padre ocupado continuamente com tarefas domésticas necessárias ao cuidado da família e criação dos filhos? Quantos pastores moram, vivem e atuam em condomínios, cortiços ou favelas, participando de suas lutas e conflitos diários, de suas reuniões e Assembleias Gerais, ou de suas associações de moradores? Quantos bispos e padres (ou seminaristas) são professores, funcionários ou alunos em escolas e universidades públicas ou privadas não católicas? Então, o que significa para um leigo e para um clérigo "evangelizar" estes ambientes? Será que é ou significa a mesma coisa para os dois? Evidente que não. O modo leigo de evangelizar estes ambientes é (ou deveria ser) diferente do modo clerical de evangelizar estes mesmos ambientes, e vice-versa. Pois um não é o outro, um não está no lugar do outro, e um não pode substituir ou se sobrepor ao outro, nem pode excluir o modo de agir próprio do outro, como tantas vezes ocorre na obra da evangelização, que geralmente tende a clericalizar o leigo, e algumas vezes a laicizar o clérigo. Dou um exemplo desta situação. Há dois anos e meio, uma paróquia no centro de São Paulo tem realizado um trabalho pastoral em prédios do bairro: "Mensalmente, temos missas nos condomínios. Nestes lugares, já temos praticamente pequenas comunidades", explicou o pároco ao Semanário da Arquidiocese (3 de setembro, 2014). Pois bem, este é o modo clerical (ou paroquial) de evangelizar o condomínio: celebrar missas e criar uma pequena comunidade católica no condomínio. Um leigo não poderia fazer isto, pois este é papel exclusivo do clero. Agora eu pergunto: e o modo leigo de evangelizar o condomínio, também está sendo igualmente considerado, promovido e realizado? Eis a questão (e o problema missionário dos leigos paroquianos). Pois "penetrar do espírito evangélico as realidades temporais e aperfeiçoá-las" (AA 5), é missão fundamental e exclusiva dos leigos que participam destas realidades temporais: somente os leigos que moram no condomínio podem fazer isto. Portanto, isto é uma coisa que o clero não pode fazer (e talvez nem mesmo compreender plenamente), a não ser que também more no condomínio, seja membro ativo da comunidade condominial, e Igreja este mesmo problema. E fiquei alegre por encontrar alguém que explica com mais clareza o que eu apenas tento esboçar aqui de modo confuso e impróprio. Por isso, resolvi informar o link de acesso a este artigo de Rahner na Internet, para quem quiser ler e aprofundar esta questão.

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tenha a vivência e o conhecimento concreto desta realidade temporal em particular, o que raramente é o caso entre os clérigos – e não apenas no que diz respeito ao condomínio, mas também no que diz respeito aos demais ambientes seculares onde o leigo vive e atua normalmente. Em caso de dúvida, pergunto novamente aos senhores: como um clérigo (ou qualquer outro cristão, seja leigo ou religioso), poderá "penetrar do espírito evangélico e aperfeiçoar" a realidade temporal de uma comunidade concreta de trabalho (uma agência bancária, por exemplo), se a pessoa em questão não trabalha nesta agência bancária nem faz parte desta comunidade concreta de trabalho? Neste caso, como essa pessoa poderia fazer isto? Simplesmente ela não poderia. E isto vale também para qualquer outro tipo de comunidade humana onde os leigos normalmente vivem, atuam e participam, sejam elas comunidades habitacionais, familiares, educacionais ou de trabalho: sem participar destas comunidades, é impossível "penetrar do espírito evangélico e aperfeiçoar" estas mesmas realidades temporais. E esta forma de participação é uma realidade própria e específica dos leigos apenas, mas não dos pastores da Igreja. Por estas e outras razões, não deve ser nada fácil para um clérigo compreender o ponto de vista e a situação existencial do "leigo paroquiano" na Igreja e no mundo, e vice-versa também, pois os leigos por sua vez não fazem a menor idéia do que significa na vida de uma pessoa o exercício diário e ininterrupto do magistério, do sacerdócio, do governo e cuidado pastoral da Igreja, diocese ou paróquia. Apesar disso, precisamos todos procurar, na medida do possível, compreender e adotar reciprocamente o ponto de vista uns dos outros na Igreja, condição indispensável para a colaboração e coordenação de nossas atividades. E o único meio para isto é a comunicação e o diálogo franco e sem rodeios. É isto o que eu estou tentando fazer aqui: não só ouvir e procurar compreender o que nos ensina o Magistério da Igreja, como também comunicar e explicar aos demais membros da Igreja um certo ponto de vista que é próprio e específico dos "leigos paroquianos", isto é, o ponto de vista daquela multidão de pessoas que normalmente vemos aglomeradas, sentadas e quietas, nos bancos das igrejas durante as missas e demais celebrações religiosas. Ponto de vista raramente percebido, esclarecido, comunicado e compreendido na Igreja. E por isso, normalmente ausente de nossa consciência eclesial, pastoral e missionária. E ausente inclusive da própria consciência dos leigos paroquianos (falo por experiência própria, pois só agora, ao escrever este texto, é que comecei a tomar consciência disso tudo). Portanto, para levarmos adiante o projeto da Nova Evangelização e renovação da Igreja com tudo o que isto implica (sobretudo "situar o mundo como horizonte concreto da missão, e os cristãos leigos como atores da missão evangelizadora"), precisamos começar pela renovação da nossa consciência eclesial, incluindo nela o ponto de vista do leigo paroquiano e tendo a coragem de reconhecer que a missão destes leigos no mundo ultrapassa em grande parte os limites naturais (territoriais, humanos, eclesiais, pastorais e missionários) de sua paróquia, bem como os limites naturais do governo hierárquico da Igreja, uma vez que os pastores não têm nenhuma forma de controle ou "poder coercitivo" (institucional ou jurídico) sobre a ação dos leigos no mundo, mas somente um poder de influência e orientação espiritual, possível de se exercer na prática por meio de uma pastoral urbana diferenciada e bem adaptada a cada tipo de ambiente em que o leigo atua. E isto (verdade seja dita) requer muito mais do que a pastoral "paroquial" (ou um pároco) é capaz de realizar. Reconheçamos com humildade os nossos limites naturais, e sobretudo os "paroquiais".

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2. RENOVAÇÃO DA CONSCIÊNCIA ECLESIAL A renovação da nossa própria consciência eclesial deve ser considerada parte integrante do projeto da Nova Evangelização, porque sem ela não é possível realizar nada do que exige este projeto. Isto é particularmente verdadeiro quando nós consideramos a consciência eclesial que ainda predomina nas paróquias urbanas (tanto no clero como no laicato) e que condiciona e determina não só as atitudes pessoais mas também as estruturas e métodos pastorais e de formação cristã existentes nestas paróquias. Esta consciência eclesial baseia-se (implícita ou explicitamente) no binômio clássico "hierarquia e laicato" e na repartição "a Igreja aos clérigos" e "o mundo aos leigos" (Cf. CNBB, Missão e ministérios dos cristãos leigos e leigas, n.104 e 98), o que produz inevitavelmente uma grande ruptura entre Igreja e Missão, agravando sempre mais aquela tão denunciada ruptura entre o Evangelho e a cultura. Pois este tipo de consciência eclesial acaba, na prática, por mutilar e reduzir a Missão da Igreja no Mundo à "missão do clero na igreja", dispensando assim tanto o clero como o laicato (e por conseguinte a paróquia inteira) de qualquer responsabilidade missionária no tocante ao mundo lá fora: para o clero, a missão no mundo é coisa de leigo; e para o leigo, a missão da Igreja é coisa do clero. De modo que não resta praticamente ninguém na paróquia para juntar as duas coisas e assumir (cada um a seu modo) a missão da Igreja no mundo, uma vez que na consciência da maioria ainda vigora a repartição "a Igreja aos clérigos" e "o mundo aos leigos". De fato, se percorrermos as paróquias urbanas, não será muito difícil constatar o seguinte: a missão da Igreja no mundo urbano, em vez de ser prioridade na paróquia e obra comum de todos, na melhor das hipóteses consegue ser uma coisa secundária e uma obra particular de alguns padres "mundanos" e de um punhado de leigos "igrejeiros". De modo geral, a prioridade e obra comum de todos na paróquia continua sendo mesmo a "missão do clero na igreja" com a colaboração ativa de uma minoria e com a participação passiva da maioria do laicato, que apenas ouve a pregação da Palavra, recebe os sacramentos, e a muito custo coopera na manutenção do templo e de algumas obras de caridade. E demos graças a Deus por tudo isto, porque tudo isto é uma maravilha para se agradecer a todo o momento! Porém, reconheçamos a verdade: isto não está sendo suficiente nem muito eficaz para a evangelização do mundo urbano! Por outro lado, a renovação da Igreja, impulsionada pelo Concílio Vaticano II, é uma realidade tão evidente que salta aos olhos de quem quiser ver: há uma renovada consciência eclesial, há novas estruturas eclesiais, pastorais e de formação cristã (CEBs, pastorais específicas, movimentos apostólicos etc.), há novos atores da ação evangelizadora e há novos destinatários da evangelização. Enfim, há uma Nova Evangelização sendo realizada pela Igreja no Brasil e no mundo inteiro há mais de meio século! Porém, toda esta novidade dificilmente consegue penetrar na consciência dos paroquianos, que opõem uma ativa e teimosa resistência que ultrapassa às vezes os limites do absurdo: certa vez participei de uma Via Sacra conduzida por um jovem sacerdote que se recusou a usar o subsídio da Campanha da Fraternidade (Deus sabe por quê!), preferindo usar um Breviário de 1930. Fiquei me perguntando por que tamanha resistência a um projeto de Evangelização aprovado e proposto pela CNBB e já antigo no Brasil: será que este sacerdote nunca aceitou a Campanha da Fraternidade no "seu"

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redil paroquiano? Será que em outras paróquias acontece o mesmo? Será que a CNBB é digna de crédito e atenção? Será que o Concílio Vaticano II é suspeito de heresia? Ou será que a consciência eclesial dos paroquianos (clero e laicato) necessita urgente renovação e atualização? Felizmente, não é este o caso de todas as paróquias, nem de todo o clero, nem de todo o laicato. No entanto, mesmo quando a consciência eclesial dos paroquianos acolhe com alegria e boa vontade a proposta conciliar de renovação da Igreja, estes mesmos paroquianos não conseguem concretizar o projeto da Nova Evangelização por falta absoluta dos meios práticos: as estruturas e métodos de ação pastoral e de formação cristã existentes na paróquia não "situam o mundo como horizonte concreto da missão" nem "os cristãos leigos como atores da missão evangelizadora". E sem isto não há Nova Evangelização, somente a mesma e repetida exortação de sempre: "Vão evangelizar o mundo, a cidade, os ambientes!" dizem os pastores. "Mas como? De que modo podemos fazer isto?" perguntam os leigos. Jesus não enviou seus discípulos em missão no mundo sem antes organizá-los e orientá-los para isto. Para atravessar o oceano, é preciso ter os "meios práticos" para fazê-lo: uma embarcação (reunir-se em ekklēsia). Para pescar em águas profundas, é preciso ter os "meios práticos" para fazê-lo: uma rede (capacitar-se para a missão). Não basta só querer e não ter os meios de fazer. Esbarramos aqui no aspecto prático da questão: que novas estruturas eclesiais e métodos de ação pastoral e de formação cristã poderiam contribuir para a realização do projeto da Nova Evangelização nos ambientes urbanos? A resposta já foi dada pelos Bispos do Brasil nas Diretrizes Gerais de 1999-2002: a Nova Evangelização exige estruturas eclesiais e métodos de ação pastoral e de formação cristã que "situem o mundo como horizonte concreto da missão e os cristãos leigos como atores da missão evangelizadora". Este é o plano geral indicado pelos Bispos para a construção de novas embarcações e redes que permitam à Igreja pescar em águas mais profundas e em mares tenebrosos.

3. RENOVAÇÃO DA AÇÃO ECLESIAL Se o principal problema das atuais estruturas e métodos de ação pastoral da Igreja nas paróquias urbanas é que elas deixam a maioria do laicato em situação de abandono, anonimato e isolamento nos seus principais ambientes de vida e atuação (e portanto de sua missão), então a primeira "novidade" que se poderia introduzir e experimentar na ação pastoral é retirá-los deste abandono, anonimato e isolamento (sem contudo retirá-los do seu ambiente), inventando um meio de reuni-los em Cristo lá mesmo nos lugares onde vivem e atuam quotidianamente. Ora, isto significa nada mais e nada menos do que criar novas estruturas e métodos de formação cristã, além daqueles que atualmente já existem nas paróquias (e diocese). Pois os principais problemas da ação eclesial ou são produzidos, ou são resolvidos, pela formação cristã que se dispensa ao Povo de Deus. 3.1. FORMAÇÃO ATUAL DOS LEIGOS NAS PARÓQUIAS

Então, vamos ver como "se formam" os cristãos nas paróquias, e por que esta formação é insuficiente para resolver o problema missionário dos leigos paroquianos. 70

Se percorrermos as paróquias urbanas, que estruturas e métodos de formação cristã se oferecem aos fiéis leigos? Todas as diversas estruturas e métodos de formação que eu pude perceber, baseiam-se em 2 princípios gerais de organização: a centralização e a dependência. 1º Princípio geral de organização – Centralização. Em primeiro lugar, todas as atividades de formação propostas na paróquia retiram o leigo de seu ambiente normal de vida e ação, exigindo que eles "deixem tudo" e vão para algum lugar específico (o templo, o salão paroquial etc.), num dia e horário prédeterminados, para se encontrarem com pessoas que não são as mesmas do seu ambiente e campo de atividade normais, para tratar de assuntos que não correspondem diretamente aos problemas e às situações concretas que vivem no seu ambiente e campo de atividade. Com efeito, se nós fizermos um levantamento sumário das atividades de formação cristã das paróquias, veremos que o seu padrão e regra comum é retirar o leigo do seu ambiente, isto é, afastá-lo e separá-lo física e mentalmente do seu "mundo secular" (lugares, pessoas e atividades). E não adianta se consolar com as exceções, pois elas apenas confirmam a regra geral. E esta acarreta uma série de conseqüências que é preciso considerar com objetividade e firmeza, se quisermos de fato encontrar caminhos alternativos que "levem adiante o projeto de renovação da Igreja, fazendo com que suas estruturas respondam às exigências do mundo de hoje". (DGAE 1999-2002, 113). Mas antes de prosseguir, convém esclarecer o seguinte: não há aqui, nesta minha análise, nenhuma intenção de julgamento depreciativo do valor e utilidade destas estruturas e métodos de formação cristã, e muito menos a idéia insana de que poderiam ser simplesmente abolidos ou eliminados. Eu apenas desejo chamar a vossa atenção para duas de suas conseqüências, que apontam para a necessidade urgente de se criarem estruturas e métodos alternativos e complementares de formação cristã para leigos, além daqueles que já existem nas paróquias e dioceses. Vamos ver estas duas conseqüências. A primeira delas é de ordem quantitativa: a maioria dos leigos não está hoje em condições (objetivas e subjetivas) de freqüentar estas reuniões, palestras, cursos ou encontros de formação que acontecem na paróquia, como aliás constata a própria CNBB: "Na sociedade atual, principalmente nas grandes cidades, é cada vez mais difícil para as pessoas encontrarem-se com outras fora de casa, nos horários noturnos, para reuniões e celebrações. Diminui o número dos que freqüentam atividades comunitárias ou assembléias litúrgicas." (DGAE 2003-2006, 111). Isto é uma grande verdade. Por outro lado, no entanto, todas as pessoas que vivem nas grandes cidades (inclusive os cristãos leigos) encontram-se quotidianamente umas com as outras nos locais onde trabalham e nos locais onde se educam, vivem juntas e amontoadas nos prédios, cortiços e favelas, e se encontram diariamente com seus familiares na sua vida doméstica. Enquanto isso "diminui o número dos que freqüentam atividades comunitárias, reuniões e celebrações" que acontecem nas paróquias. Portanto, onde é que está o problema? O problema estaria na realidade da vida quotidiana da população em geral e dos leigos em particular (que se encontram diariamente uns com os outros nos locais de trabalho, de ensino, de habitação e de vida doméstica), ou será que o problema estaria nas estruturas da Igreja, que não responderiam às exigências do mundo de hoje?

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Qualquer que seja o caso, a conseqüência disso é que apenas uma pequena parte dos leigos recebe algum tipo de formação além daquela que se realiza aos domingos durante as missas. A grande maioria do laicato fica, portanto, sem receber nenhum tipo de formação cristã fora das missas (e trata-se aí dos católicos ditos "praticantes", que freqüentam regularmente as assembléias litúrgicas, pois os demais nem isto fazem). Por suas gigantescas proporções, só o aspecto quantitativo da questão já deveria bastar para colocar este problema no centro das nossas atenções, e despertar em todos a vontade de colaborar na invenção ou descoberta de novos caminhos para a formação cristã do laicato. A segunda conseqüência é de ordem qualitativa, e diz respeito aos conteúdos, métodos e objetivos de uma formação cristã cujo princípio pedagógico fundamental é retirar e afastar o leigo do seu ambiente normal de vida. De fato, a maior parte da formação cristã que se oferece aos leigos nas paróquias tem "conteúdos, métodos e objetivos" relacionados exclusivamente com a vida e atuação do leigo dentro da própria estrutura eclesial de sua paróquia, isto é, forma-se o leigo para receber os sacramentos e para atuar na liturgia, na catequese, na administração, nas suas obras de caridade, e nas demais atividades comunitárias (tais como festas, procissões etc.). E quando não é assim, forma-se o leigo para atuar em ambientes, situações ou campos de atividade seculares e específicos que raramente (ou nunca) são aqueles onde o leigo vive e atua quotidianamente. É o caso das pastorais específicas, que se implantam aleatoriamente em algumas paróquias e que desenvolvem no seu território atividades absolutamente admiráveis e necessárias, promovendo a formação e participação de alguns leigos paroquianos no serviço cristão a diversos setores da população local (pastoral da criança, do menor, da juventude, de casais, de idosos, dependentes químicos, povo da rua, doentes, sem-teto, encarcerados, migrantes, mulher marginalizada, afrobrasileiros, etc.). Por mais valiosas e necessárias que sejam todas estas pastorais específicas, é preciso reconhecer no entanto que elas não promovem e nem têm por finalidade promover a formação e atuação missionária dos leigos paroquianos nos seus próprios ambientes normais de vida e ação, isto é, nas suas próprias comunidades familiares, habitacionais, educacionais, e de trabalho. Basta fazer um levantamento objetivo nas paróquias (e dioceses) para se constatar isto. Parece que as atuais estruturas e métodos de formação cristã da paróquia (e diocese) não só retiram o leigo de seus ambientes, como também afastam e distanciam a própria formação cristã das questões e dos problemas específicos destes seus ambientes. O resultado disso tudo é que a grande maioria do laicato não recebe suficiente (ou nenhuma) formação cristã adaptada ao seu estado, à sua vocação, e aos seus ambientes normais de missão. De modo que a maioria dos ambientes e campos de atuação próprios dos leigos não recebe suficiente (ou nenhuma) influência da ação evangelizadora da Igreja. É isto o que vejo acontecer nos condomínios, cortiços e favelas, nas escolas e universidades, nos locais ou organizações de trabalho, e nas famílias também. Em resumo: retirar o leigo de seu ambiente para oferecer-lhe formação, é hoje um grande empecilho para a maioria do laicato poder receber a formação de que necessita para o cumprimento de sua missão. Além disso, este "afastamento" do seu ambiente quase sempre significa para o leigo uma formação também "afastada e distante" das questões e desafios próprios destes seus ambientes. Conclusão: talvez seja o caso de se retirar também "a formação" do salão paroquial e encontrar um meio de oferecê-la ao leigo lá nos seus ambientes normais de vida e 72

atuação, permitindo assim que a maioria dos leigos recebam a formação de que necessitam sem terem que "deixar o seu mundo (lugares, pessoas e atividades) e afastarse dos seus problemas concretos" para ir até a paróquia ou a outro lugar qualquer. 2º Princípio geral de organização – Dependência. Em segundo lugar, as estruturas e métodos de formação cristã que se oferecem nas paróquias (ou dioceses) colocam todos os fiéis leigos na dependência contínua e obrigatória de um agente de formação: padre, catequista, professor, palestrante, orientador, líder, animador, agente de pastoral, ou qualquer outro nome que se lhe dê. E o resultado disso é o seguinte: por exemplo, se na paróquia existe alguém disponível, capacitado, interessado e autorizado para conduzir círculos de estudo bíblico, encontro de jovens, de casais etc., então isto é oferecido aos fiéis leigos. Quando não há na paróquia essa "pessoa especial", estas oportunidades de formação não são oferecidas aos leigos. É assim que acontece com todas as estruturas e métodos de formação cristã de todas as paróquias que conheço (conheço bem pouco, é verdade, mas é o que vejo acontecer o tempo todo por toda parte). Acontece que uma atividade de formação cristã que depende obrigatoriamente da presença física de um agente formador junto aos discípulos, limita e reduz ao extremo a capacidade da Igreja oferecer formação cristã de qualidade e adaptada às multidões de fiéis leigos que necessitam dessa formação: onde encontrar tantos agentes disponíveis e capacitados, interessados e autorizados para isso? É por esta razão que as oportunidades de formação cristã do laicato são reduzidíssimas ou mesmo inexistentes em muitas paróquias. E então, muitas vezes improvisa-se um agente qualquer de formação, que por sua vez improvisa uma formação duvidosa ou de baixa qualidade, que não responde às necessidades concretas da vida do leigo e que não resulta em muita coisa além de cansar o povo e espantar da Igreja muitos jovens e adultos. Conclusão: talvez seja o caso de providenciar também estruturas e métodos de formação cristã que não dependam da presença física de um agente disponível e capacitado para ensinar, orientar, liderar e animar as multidões de leigos que freqüentam as paróquias urbanas. Essa "pessoa especial" (que nunca vai existir em número suficiente para formar tantos leigos, e que muitas vezes nem está capacitada para isto), poderia perfeitamente ser substituída por um conjunto de subsídios elaborados pelos melhores apóstolos, profetas e mestres da Igreja, exatamente como se faz hoje na Campanha da Fraternidade, nas novenas de Natal, no PRNM, no SINM etc., onde grupos de fiéis se reúnem e atuam na sua própria formação, auxiliados por Cadernos de Roteiros e demais subsídios para encontros e reuniões de trabalho. Esta estrutura de "formação à distância", que dispensa a presença corporal do mestre junto aos discípulos, é uma solução pastoral tão antiga na Igreja quanto a própria Bíblia. Por que razão os profetas, apóstolos e evangelistas escreveram os textos do Antigo e Novo Testamento? Exatamente para permitir que uma parte importante da formação dos discípulos se fizesse também "à distância" (no espaço e no tempo), superando assim as limitações próprias de uma formação baseada na presença corporal do mestre junto aos discípulos. E é graças a esta solução pastoral que as pessoas do mundo inteiro e de todas as épocas podem, em qualquer lugar e momento, receber o ensinamento direto e pessoal dos profetas, apóstolos e evangelistas (isto é, do próprio Cristo!), sem a necessidade de se encontrar corpo a corpo com eles, o que obviamente seria impossível fazer. Imagine o que teria acontecido com o cristianismo ao longo de sua história se a Igreja não tivesse adotado também este método de "formação à distância" com auxílio de subsídios 73

escritos: a Bíblia e os demais textos eclesiásticos. Como ensina o apóstolo Paulo: "Ora, tudo isso que foi escrito antes de nós foi escrito para a nossa instrução, para que, em virtude da perseverança e consolação que as Escrituras nos dão, conservemos a esperança." (Rm 15,4; cf. 2Tm 3,15-17). Além disso, devemos também lembrar que no mundo de hoje uma parte importante e fundamental da própria formação secular dos leigos (a escolar, profissional, técnica, científica, política, etc.) se realiza também "à distância" por meio de "textos escritos" (livros, revistas, jornais etc., impressos ou publicados na Internet), pois hoje em dia quase todo mundo vai à escola, é alfabetizado, e portanto é capaz de ler e de entender o que lê, ao contrário do que acontecia no passado com a maioria povo "leigo, analfabeto e ignorante". Por isso, não convém continuar tratando o povo leigo como gente ignorante ou totalmente incapaz de atuar com autonomia e responsabilidade na própria formação cristã, pois esse mesmo "povo leigo" já se mostrou muito capaz de estudar e de entender (por conta própria) as leis da natureza e os segredos do universo, e de manipular tecnicamente as estruturas da matéria e dos próprios seres vivos, o que é muito perigoso e geralmente desastroso quando não se tem uma equivalente formação ética, espiritual e cristã. Creio que isto é suficiente para nos convencer de que a formação cristã do laicato não pode (nem precisa) depender sempre, totalmente e exclusivamente da presença corporal de um "mestre autorizado" junto aos discípulos, pois isto seria o mesmo que decretar a falência ou até mesmo a corrupção progressiva da própria formação cristã ao longo do tempo e do espaço. Não se trata, evidentemente, de adotar o princípio protestante de formar pessoas e comunidades cristãs apoiando-se exclusivamente na palavra escrita. Trata-se apenas de buscar soluções pastorais que explorem melhor todas as possibilidades de formação cristã, a fim de se poder oferecer ao povo a formação de que tanto necessita. Pois a crescente formação de comunidades urbanas não cristãs, anticristãs, ou cristãs sectárias, é o resultado da ausência de formação de grupos ou comunidades cristãs católicas inseridas no meio urbano. E estas não poderão se formar se os cristãos leigos não se reunirem nos seus próprios ambientes de vida e atuação, e se não forem orientados pelos Pastores por meio de uma formação missionária que se faça "à distância" com auxílio de subsídios escritos (e apenas com a "supervisão" de um agente coordenador da pastoral), uma vez que não existem nem jamais existirão agentes formadores disponíveis e capacitados em número suficiente para realizar pessoalmente e "de corpo presente" esta gigantesca e difícil tarefa.

4. PRINCÍPIOS PEDAGÓGICOS GERAIS PARA A FORMAÇÃO MISSIONÁRIA DO LAICATO Note que os empecilhos e obstáculos que limitam e até mesmo impedem uma mais ampla oportunidade de formação cristã adaptada para todos os leigos (e que por esta razão limitam e impedem a sua ação evangelizadora no mundo urbano), decorrem destes 2 princípios gerais de organização nos quais se baseiam as atuais estruturas e métodos de formação existentes nas paróquias (ou dioceses): a centralização e a dependência, que limitam tanto a oferta quanto a procura de formação cristã na Igreja, ao mesmo tempo em que "afastam" a formação cristã dos problemas quotidianos do mundo urbano.

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Esta situação em que se encontram os fiéis leigos, talvez fique mais clara ao clero se nós considerarmos o seguinte: 1. Imagine se os bispos nas várias regiões e conferências episcopais do mundo todo, a cada vez que quisessem se reunir para trabalhar, tivessem que "deixar tudo" e se deslocar para Roma! Isto não seria um tremendo obstáculo para os bispos se reunirem e trabalharem juntos? E afinal de contas, para quê esta centralização das reuniões e assembléias em Roma, se os bispos vivem e atuam em outros lugares do mundo? Daí a descentralização na Igreja: os bispos de cada região ou conferência episcopal se reúnem no próprio local e ambiente onde eles vivem e atuam. 2. Imagine também se os bispos e as conferências episcopais só pudessem se reunir e trabalhar sob a orientação, animação, liderança e presidência direta e pessoal do Papa! Isto não seria outro grande obstáculo às reuniões e ao trabalho dos bispos? E afinal de contas, para quê esta contínua dependência do Papa, se os bispos podem perfeitamente realizar suas assembléias e reuniões de trabalho sem a presença física do Papa? E além do mais, a Igreja teria que providenciar uma porção de Papas só para dar conta de tanto serviço! Daí a autonomia na Igreja: os bispos e as conferências episcopais têm autonomia para se reunir e tratar "a seu modo" das questões que lhes interessam e dos problemas específicos do local e ambiente onde os bispos vivem e atuam. É claro não fazem isto "de qualquer modo" nem fazem qualquer coisa que lhes venha à cabeça, mas procuram sempre agir de acordo com o Evangelho e as orientações e diretrizes gerais da Igreja, isto é, do Papa e do conjunto do episcopado mundial. (É para isto que servem a Bíblia e os textos conciliares e pontifícios, assim como os textos dos sínodos, conferências, assembléias e reuniões episcopais, e demais textos eclesiásticos, sobretudo os escritos dos Santos, Padres e Doutores da Igreja. Portanto, a formação cristã dos próprios bispos se faz também "à distância" com auxílio destes textos escritos, sem os quais a formação do clero seria praticamente impossível ou muito deficiente.) Pois bem, se esta descentralização e autonomia é condição indispensável para que os bispos do mundo todo possam cumprir sua missão no ambiente onde vivem e atuam, o mesmo acontece com o laicato: a descentralização e a autonomia me parecem ser condição indispensável para que as multidões de leigos que freqüentam hoje as grandes paróquias urbanas possam também cumprir sua missão nos ambientes onde vivem e atuam. 4.1. DESCENTRALIZAÇÃO E AUTONOMIA

Estes 2 princípios de organização são propostos pelas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil: "Seguindo as Diretrizes anteriores, reafirmamos como úteis para a articulação os seguintes princípios: a) o da variedadecomplementaridade; b) o da autonomia; c) o da subsidiariedade (a aplicação desse princípio exige a descentralização da organização); d) o da participação responsável." (cf. DGAE 1999-2002, 303). Então, além de necessário, seria perfeitamente possível e canônico organizar novas estruturas e métodos de formação cristã e de vivência eclesial para leigos apoiando-se na utilização destes mesmos princípios: 1. A Descentralização: a Igreja procuraria encontrar os meios adequados para "reunir em nome de Cristo" os fiéis leigos nos seus próprios ambientes de vida e atuação (a habitação, a escola, o trabalho, a família...), descentralizando assim a sua ação 75

pastoral – hoje centralizada nas paróquias – em uma multiplicidade e variedade de pequenos núcleos eclesiais que já estariam naturalmente inseridos nos principais ambientes do mundo urbano. Com isto, obviamente, a ação pastoral da Igreja junto aos leigos transbordaria os limites territoriais e humanos da sua paróquia, bem como as finalidades e prioridades próprias da pastoral paroquial. E por esta razão, semelhante descentralização exigiria a criação de pastorais "ambientais" de natureza trans-paroquial ou supra-paroquial, isto é, fora ou além do âmbito restrito, próprio e específico, da pastoral "paroquial". Isto, porém, não significaria nenhuma competição, exclusão, separação ou isolamento entre uma e outra forma de cuidado pastoral, mas apenas uma ampliação deste cuidado mediante a aplicação prática do princípio da "variedade-complementaridade". Pois estas pastorais ambientais, embora sendo de âmbito supra-paroquial (diocesano ou nacional), destinam-se aos leigos paroquianos, e só poderão realizar-se com a participação das paróquias ou comunidades eclesiais já existentes, e só poderão se desenvolver com a colaboração de seus membros, aos quais a Igreja proporcionaria então um cuidado pastoral suplementar e diferenciado que nem as paróquias nem outras comunidades eclesiais podem lhes proporcionar. 2. A Autonomia: a Igreja ofereceria a estes núcleos eclesiais ou grupos de leigos os subsídios necessários para a sua auto-formação e protagonismo na evangelização destes ambientes, dando-lhes assim a autonomia necessária (e ao mesmo tempo a orientação indispensável) para que eles mesmos possam trabalhar na sua formação cristã e desenvolver uma atuação missionária própria e adaptada à variedade de situações e circunstâncias ambientais. O trabalho dos leigos em equipe com auxílio de subsídios, dispensaria a presença contínua e obrigatória de um agente formador (líder, chefe, mestre, ou qualquer outra coisa do gênero). Nestas condições, bastaria um agente coordenador que supervisionasse, assessorasse e auxiliasse o trabalho dos leigos quando e onde fosse necessário. Esta solução pastoral permitiria de fato "situar o mundo como horizonte concreto da missão, e os cristãos leigos como atores da missão evangelizadora, levando adiante o projeto de renovação da Igreja e fazendo com que suas estruturas respondam às exigências do mundo de hoje." (DGAE 2002, 113). Pois a pastoral paroquial tende, por sua própria natureza, a situar o ambiente secular do leigo como horizonte teórico da missão, e os próprios leigos como destinatários passivos (ou atores meramente potenciais) da missão evangelizadora. E esperar que a planejada renovação da paróquia em "comunidade de comunidades" por si só resolva tais problemas no futuro, irá apenas adiar por mais tempo ainda (e por mais uma geração) a solução do problema missionário dos leigos no mundo urbano, o qual não pode se resolver integralmente no âmbito restrito da sua paróquia ou da pastoral paroquial, mesmo que renovada. Pois tudo neste mundo tem limites, inclusive a paróquia e a pastoral "paroquial". E não reconhecer os limites e as tendências (ou inclinações) naturais das coisas, é caminho certo para o fracasso das nossas ações.

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5. A CRIAÇÃO DE NOVAS ESTRUTURAS ECLESIAIS E PASTORAIS NA CIDADE A necessidade de se criar (ao lado e além da estrutura paroquial) outras estruturas eclesiais e pastorais que respondam efetivamente às exigências de formação e atuação missionárias do laicato no mundo de hoje, decorre principalmente da incapacidade (ou mesmo impossibilidade estrutural e natural) da paróquia em responder a tais exigências. E talvez esta incapacidade se explique por razões históricas bastante óbvias: a estrutura paroquial simplesmente não foi concebida nem foi construída para responder a tais exigências. E nem poderia ter sido, pois tais exigências não existiam no passado e só emergiram na consciência da Igreja por ocasião do Concílio Vaticano II. É claro que "exigências de formação do laicato" sempre existiu na Igreja, e não é nenhuma novidade exclusiva dos tempos atuais. Pois os leigos de todos os tempos sempre precisaram receber uma formação cristã adaptada ao seu estado e situação para poderem se converter e atuar no mundo de modo cristão. O que mudou neste caso, e que é uma novidade exclusiva dos tempos atuais, é o próprio "mundo" onde vivem e devem atuar os cristãos leigos de hoje. E a principal transformação que ocorreu neste mundo em que vivemos (e que ainda está em pleno curso), é a rápida, caótica, e desenfreada "urbanização" das nossas sociedades, com tudo o que promove, acompanha e resulta deste acelerado processo de urbanização, o qual exige dos leigos de hoje um certo tipo de formação e de organização que as estruturas eclesiais e pastorais existentes não conseguem proporcionar. Daí decorre a necessidade de se providenciarem novas estruturas pastorais e eclesiais nas cidades, a fim de promover o apostolado dos leigos nos diversos ambientes urbanos em que eles normalmente vivem e atuam. Por meio dos pastores, o Espírito Santo tem falado à Igreja que a Nova Evangelização exige a criação de novas estruturas pastorais e eclesiais. Eis o que o Espírito nos disse em Puebla: "A evangelização no futuro dará importância à pastoral urbana com a criação de novas estruturas eclesiais, que, sem desconhecer a validade da paróquia renovada, permitam que se enfrente a problemática apresentada pelas enormes concentrações humanas de hoje." (Puebla, 152). A mesma coisa é afirmada pelo episcopado brasileiro nas Diretrizes Gerais da Ação Pastoral 1991-1994, e depois reafirmada nas sucessivas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora: "Especial importância merece a pastoral urbana, com a criação de novas estruturas eclesiais que, sem desconhecer a validade da paróquia renovada, permitam que se enfrente a problemática apresentada pelas enormes concentrações humanas de hoje." (DGAP 1991-94, 200). A problemática central apresentada à Igreja pelas enormes concentrações humanas de hoje, e a resposta pastoral mais adequada, foram claramente diagnosticadas e expressas pelo episcopado latino-americano reunido em Medellín: "A modernização que transparece dos setores mais dinâmicos da sociedade latinoamericana, acompanhada pela crescente tecnização e aglomeração urbana, tem-se manifestado por fenômenos de mobilidade, socialização e divisão de trabalho, que têm por efeito a importância crescente dos grupos e ambientes funcionais – fundados no trabalho, na profissão ou na função – em relação às comunidades tradicionais de caráter de vizinhança ou territorial." "Os mencionados meios funcionais constituem, em nossos dias, os centros mais importantes de decisão no processo de transformação social, e os focos onde se

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condensa ao máximo a consciência da comunidade. Essas novas condições de vida obrigam os movimentos leigos da América Latina a aceitar o desafio de um compromisso de presença, de adaptação permanente e de criatividade." "A insuficiente resposta a esses desafios e, muito especialmente, a inadequação às novas formas de vida que caracterizam os setores dinâmicos de nossa sociedade, explicam em grande parte as diferentes formas de crise que afetam os movimentos de apostolado dos leigos. (...) Por outro lado, muitos deles não revelam um meio sociológico denso, nem adotaram talvez a organização e a pedagogia mais apropriadas a um apostolado de presença e compromisso nos ambientes funcionais em que fermenta, em grande parte, o processo de transformação social." (Medellín 10,3-4). E a solução pastoral capaz de enfrentar toda esta problemática, foi proposta em Medellín nos seguintes termos: "Promova-se com especial ênfase e urgência a criação de equipes apostólicas ou de movimentos de leigos nos ambientes ou estruturas funcionais, sobretudo onde se elabora e decide o processo de liberação e humanização da sociedade a que pertencem, dotando-os de uma coordenação adequada e de uma pedagogia baseada no discernimento dos sinais dos tempos na trama dos acontecimentos." (Medellín 10,13). Por outro lado, a insuficiência e inadequação da estrutura paroquial para se enfrentar a problemática apresentada pelas enormes concentrações humanas de hoje, foi também claramente diagnosticada e expressa por João Paulo II na Exortação Apostólica Christifideles Laici: "É deveras imenso o trabalho da Igreja nos nossos dias e, para realizá-lo, a paróquia sozinha não pode bastar. (...) De fato, muitos lugares e formas de presença e de ação são absolutamente necessários para levar a palavra e a graça do Evangelho às variadas condições de vida dos homens de hoje, e muitas outras funções de irradiação religiosa e de apostolado do ambiente, no campo cultural, social, educativo, profissional etc., não podem ter como centro ou ponto de partida a paróquia." (CfL 26). Ora, este "apostolado do ambiente" de que fala o Papa, é função própria e insubstituível dos leigos, pois somente eles é que estão inseridos nestes ambientes e que podem, portanto, atuar diretamente neles, como ensina o Concílio Vaticano II ao tratar da reforma cristã da ordem temporal: “É tarefa de toda a Igreja colimar este objetivo, a saber, capacitar os homens para instruírem com retidão a ordem universal das coisas temporais e para orientá-la por Cristo a Deus. Aos pastores compete enunciar claramente os princípios acerca do fim da criação e do uso do mundo, prestar assistência moral e espiritual, para renovar-se em Cristo a ordem das coisas temporais. Faz-se porém mister que os leigos assumam a renovação da ordem temporal como sua função própria e nela operem de maneira direta e definida, guiados pela luz do Evangelho e pela mente da Igreja, e levados pela caridade cristã." (AA, n. 7; §1358-9). E por que razão os leigos não assumem como sua função própria este apostolado do ambiente no campo cultural, social, educativo, profissional etc., sem o qual é impossível a reforma cristã da ordem temporal? Pois bem. Por experiência própria e também alheia, creio que a principal razão disso é que a maioria dos leigos são exclusivamente "paroquianos", isto é, sua vida eclesial se desenvolve exclusivamente numa "paróquia". E a paróquia, como diz João Paulo II, não pode ser o centro ou ponto de partida deste tipo de apostolado. Mas por que razão este tipo apostolado não pode ter a paróquia como centro ou ponto de partida? Estariam então os leigos nas paróquias impedidos ou impossibilitados de 78

assumirem como sua função própria este apostolado do ambiente, sem o qual fica difícil, ou mesmo impossível, colaborar na renovação da ordem temporal? Eis aí uma questão fundamental que convém esclarecer. E esclarecê-la sob múltiplos aspectos, pois são vários os fatores que limitam e impedem a paróquia de promover pastoralmente o apostolado dos leigos nos seus ambientes normais de vida e ação.

5.1. Limitações pastorais e missionárias intrínsecas à estrutura paroquial Para refletir sobre esta questão, convém ter em mente o seguinte ensinamento do Concílio Vaticano II: "A obra redentora de Cristo, que consiste essencialmente na salvação dos homens, inclui também a instauração da ordem temporal. Portanto, a missão da Igreja não consiste só em levar aos homens a mensagem de Cristo e sua graça, senão também em penetrar do espírito evangélico as realidades temporais e aperfeiçoá-las. Assim os leigos, ao realizarem essa missão da Igreja, exercem o apostolado tanto na Igreja quanto no mundo, tanto na ordem espiritual quanto na temporal: (...)" (Decreto Apostolicam Actuositatem, n. 5, §1350). Embora estas duas ordens (a espiritual e a temporal) façam parte da obra redentora de Cristo e da missão da Igreja, apesar disso há uma clara ordenação ou hierarquia entre ambas, como também ensina o mesmo Concílio: "É missão da Igreja salvar os homens pela fé em Cristo e por Sua graça. Por isso o apostolado da Igreja, e de todos os seus membros, se orienta antes de mais nada para a manifestação da mensagem de Cristo ao mundo por palavras e por atos, como também para a comunicação de Sua graça. Isto se realiza principalmente pelo ministério da palavra e dos sacramentos, confiado especialmente ao clero, mas no qual também os leigos têm a realizar um papel de grande importância, para se fazerem 'cooperadores da verdade' (3 Jo 8)." (AA, n. 6; §1351). Portanto, o apostolado da Igreja se orienta primariamente (isto é, em primeiro lugar e antes de mais nada) para a "evangelização e santificação" dos homens, para convertê-los e fazê-los discípulos (Mt 28,19). E apenas secundariamente (isto é, só depois e em segundo lugar) para a "reforma cristã da ordem temporal", para orientar o mundo a Deus, e ordená-lo, na medida do possível, segundo Deus. Assim ensina Yves Congar em Sacerdocio y Laicado13: "Volvamos a nuestro tema y precisemos en pocas palabras el contenido de esta misión que la Iglesia tiene dentro del mundo y para él. Consiste en dos puntos: 1.° Convertir a los hombres, hacerlos discípulos (Mt. 28,19): evangelización; 2.° Orientar el mundo hacia Dios, y ordenarlo, en la medida de lo posible, según Dios: acción en lo temporal o en la civilización. Esto es secundario respecto de aquéllo. De hecho la teología clásica habla de misión secundaria de la Iglesia cuando se trata de esta influencia que ella debe tener sobre la obra humana de civilización." Neste caso, é preciso entender por "secundário" não algo sem importância ou de pouco valor, que pode ser postergado ou até deixado de lado, e sim algo que vem em "segundo lugar", isto é, algo que não é possível de se realizar "antes" ou "sem" a prévia evangelização, santificação e conversão dos homens, pois a ação cristã na ordem temporal é sempre fruto ou conseqüência da fé em Cristo e obra da sua graça, que ordinariamente se recebe na Igreja pelo ministério da palavra e dos sacramentos. Pois bem. Esta ordenação ou subordinação hierárquica dos vários conteúdos da missão da Igreja determina claramente não só as "prioridades" missionárias da Igreja em 13

Yves Congar, Sacerdocio y Laicado, Barcelona, Ed. Estela S.A., 1964, p. 302.

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relação ao mundo, como também as "prioridades" pastorais da paróquia junto aos fiéis leigos (e à população local), pois não se pode inverter a ordem ou seqüência natural das coisas, e pretender obter os efeitos antes de operar as causas, ou colher os frutos antes de plantar e cuidar da plantação. Mas isto não significa de modo algum que os frutos e efeitos da obra de evangelização e de santificação, por serem "secundários", sejam também desprovidos de valor ou importância. Pois o principal fruto que se espera colher das obras pastorais de evangelização e santificação dos leigos nas paróquias, é a nossa conversão. Porém, como ensina João Paulo II: "É indispensável superar a separação entre fé e vida, para que realmente se possa falar de conversão. Com efeito, a presença dessa divisão faz do cristianismo um fato puramente nominal." (Ecclesia in America, n. 26). "Por isso, a conversão ao Evangelho, para o Povo cristão que vive na América, significa rever todos os ambientes e dimensões da vida, especialmente tudo o que diz respeito à ordem social e consecução do bem comum." (EA, n. 27). Chegamos aqui ao ponto que nos interessa tratar: a ação dos cristãos na ordem temporal, cuja renovação deve ser assumida pelos leigos como sua função própria. Com efeito, sobre esta vocação e forma de participação dos leigos na missão da Igreja, João Paulo II ensina o seguinte: "Duplo é o âmbito em que se realiza a vocação dos fiéis leigos. O primeiro, e mais condizente com seu estado laical, é o das realidades temporais, que são chamados a ordenar conforme a vontade de Deus. De fato, com seu peculiar modo de agir, o Evangelho é levado para dentro das estruturas do mundo e, agindo em toda parte santamente, consagram a Deus o próprio mundo. (...) A secularidade é a nota característica e própria do leigo e de sua espiritualidade, que o leva a agir nos vários âmbitos da vida familiar, social, profissional, cultural e política, em vista de sua evangelização. (...) Um segundo âmbito no qual muitos fiéis leigos são chamados a trabalhar é aquele que se poderia definir "intra-eclesial". São muitos os leigos na América que nutrem a legítima aspiração de contribuir com seus talentos e carismas na construção da comunidade eclesial, como delegados da Palavra, catequistas, visitadores de enfermos ou de detentos, animadores de grupos etc. (...) De qualquer forma, mesmo devendo-se estimular o apostolado intra-eclesial, é preciso que ele coexista com a atividade própria dos leigos, em que eles não podem ser substituídos pelos sacerdotes, isto é, o campo das realidades temporais."(EA, n. 44). Ora, o apostolado intra-eclesial dos leigos está sendo (graças a Deus) bastante estimulado nas paróquias há várias décadas. E sob este aspecto, quando se compara a vida das paróquias como ela é hoje e como era antes do Concílio, ficamos espantados com a mudança ocorrida em tão pouco tempo. Mas por outro lado, infelizmente, até hoje eu ainda não consegui constatar nenhuma mudança na pastoral "paroquial" quando se trata do apostolado dos leigos nas realidades temporais. Neste âmbito, a vocação dos fiéis leigos continua como antes: sem receber na paróquia o necessário cuidado pastoral, de modo que a maioria dos leigos não consegue assumir adequadamente a sua função própria na renovação da ordem temporal, isto é, não sabemos como realizar o apostolado do ambiente no campo familiar, social, profissional, cultural e político, em vista de sua evangelização. Pois a paróquia sozinha, por sua natureza, não consegue formar e organizar os leigos para este tipo de apostolado. E aqui chegamos, enfim, àquela questão que convém esclarecer: por que razão isto é assim? Será mesmo verdade que este tipo de "apostolado do ambiente" não pode ter como centro ou ponto de partida a paróquia? Por que não? Tendo sempre em mente os ensinamentos do Magistério acima referidos, podemos agora tentar discernir alguns dos principais fatores que limitam e impedem a paróquia de promover o apostolado dos leigos nos seus ambientes normais de vida e ação. E de

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um modo geral, são fatores intrínsecos à própria natureza da paróquia enquanto "última localização da Igreja" (cf. CfL 26), isto é, enquanto "comunidade eucarística de base territorial" destinada a realizar e manifestar plenamente a natureza eucarística e episcopal da Igreja (una, santa, católica e apostólica) num determinado espaço ou território bem delimitado. Como diz o Concílio: "As paróquias representam, de algum modo, a Igreja visível espalhada por todo o mundo." (SC, 42). E para poder realizar esta sua vocação e missão, a prioridade pastoral da paróquia deve ser (como de fato é) a mesma da própria Igreja, cujo apostolado se orienta "antes de mais nada" para a evangelização e santificação dos homens (que se realiza principalmente pelo ministério da palavra e dos sacramentos, confiado especialmente ao clero, com ajuda de leigos). Portanto, a reforma cristã da ordem temporal (que deveria ser assumida pelos leigos como sua função própria), não é prioridade natural da pastoral paroquial. Isto é um fato que decorre da própria natureza e missão da Igreja, da qual a paróquia é a "última localização". Por outro lado, no entanto, a vocação dos fiéis leigos deve realizar-se primeiro (ou "antes de mais nada") no âmbito das realidades temporais em que normalmente vivem, porque isto é mais condizente com seu estado laical, é imprescindível para que a Igreja possa cumprir esta parte de sua missão, e acima de tudo, porque é algo "necessário" para que os leigos possam superar a separação entre fé e vida, sem o que não se pode realmente falar de "conversão". (cf. EA, n. 26-27). Porém, dada a situação atual do mundo, os leigos sozinhos, isolados e por conta própria, não conseguem realizar isto. Necessitam de ajuda e de um cuidado pastoral que tenha por finalidade específica proporcionar-lhes o tipo de formação e de organização que é preciso para isto. Tal coisa, no entanto, não é uma prioridade da pastoral paroquial. Este relativo desencontro entre as "prioridades" pastorais da paróquia e as "necessidades" pastorais dos leigos acaba por ter, obviamente, conseqüências práticas na vida de todos os paroquianos. Sobretudo dos leigos, cuja vocação e missão na ordem temporal nunca chega a ser objeto de cuidado pastoral na sua paróquia. E isto ocorre simplesmente porque a comunidade paroquial, para conseguir realizar adequadamente as prioridades apostólicas da Igreja, tem que orientar e dedicar todos os seus limitados recursos humanos e materiais "primeiro" para a realização destas tarefas. Pois uma paróquia não pode jamais omitir ou postergar as tarefas essenciais da "evangelização e santificação" das pessoas sem trair sua própria natureza. Porém, mesmo quando a liturgia, catequese e obras de caridade mobilizam e ocupam quase toda a energia e tempo das pessoas, mesmo assim a paróquia não consegue realizar plenamente suas prioridades pastorais: sempre há o que fazer e aperfeiçoar neste sentido. Quem colabora nas atividades comunitárias de uma paróquia sabe perfeitamente disso: as tarefas exigidas para uma adequada evangelização e santificação do povo são tantas e tão difíceis, que nunca há tempo e energia que baste: "A colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos! Por isso, peçam ao dono da colheita que mande trabalhadores para a colheita." (Mt 9,37-38). E deste modo, o apostolado dos leigos no âmbito "intraeclesial e paroquial" torna-se uma necessidade e uma prioridade absoluta na vida das paróquias. E como o apostolado dos leigos na ordem temporal já é por natureza algo secundário, ou melhor dizendo "segundo" (pois esta ação é fruto de sua conversão e vida de fé, e esta por sua vez é fruto da pregação do Evangelho e da graça recebida nos Sacramentos), é mais do que natural a tendência das paróquias em omitir pastoralmente, e deixar de lado, este tipo de apostolado. Esta seria a primeira e principal razão pela qual as paróquias não conseguem, por sua própria natureza, responder efetivamente às atuais exigências de formação e atuação missionárias dos leigos na ordem temporal, pois isto significaria uma certa confusão e inversão da ordem causal e hierárquica das coisas, na medida em que a paróquia teria então que cuidar menos e pior do que é 81

prioritário (a evangelização e santificação do povo) a fim de cuidar também do que é secundário (a renovação da ordem temporal). Em suma: por ser humanamente bastante limitada, a paróquia sozinha não dá conta de cuidar direito das duas coisas ao mesmo tempo. E nestas circunstâncias, é mais racional que se procure antes realizar ao menos as prioridades apostólicas da Igreja, como de fato o fazem todas as paróquias. E ainda assim, só conseguem fazê-lo de modo bastante imperfeito e incompleto! Além disso, por ter uma natureza essencialmente "pública" (isto é: destinada e aberta a todos), a vocação natural da paróquia é proporcionar a toda a diversidade humana presente no seu território aquele cuidado pastoral ordinário que é comum e necessário a todos: "Acreditamos simplesmente que esta antiga e venerada estrutura da paróquia tem uma missão indispensável de grande atualidade: pertence-lhe criar a primeira comunidade do povo cristão, iniciar e reunir o povo na expressão normal da vida litúrgica, conservar e reanimar a fé nas pessoas de hoje, dar-lhes a escola da doutrina salvadora de Cristo, praticar no sentir e na ação a humilde caridade das obras boas e fraternas." (Paulo VI, Discurso ao clero romano, 24 de junho de 1963). E para responder a esta difícil vocação, a prioridade pastoral da paróquia deve ser proporcionar a todos (da melhor forma possível, e antes de mais nada) aquela formação e vivência eclesial básica e comum a todos os cristãos. Sabemos, no entanto, que esta prioridade e vocação talvez nunca se realize de modo pleno e adequado, apesar de todos os esforços que as paróquias fazem ou vierem a fazer neste sentido. Portanto, não cabe (nem é possível) à comunidade "paroquial" oferecer também, a cada um dos seus membros, uma formação específica, diferenciada e adaptada aos diversos ambientes seculares em que os leigos estão inseridos. Este é um "segundo" fator que também limita e impede a paróquia de promover pastoralmente o apostolado dos leigos nos seus ambientes normais de vida e ação. Mas há ainda um terceiro e importante fator que convém considerar, e que é a natureza "territorial" da comunidade paroquial. Pois além de ser uma comunidade "eucarística", a paróquia é também uma comunidade "territorial", isto é, que agrega pessoas vizinhas que habitam um mesmo território bem delimitado. Este critério paroquial de agregação comunitária das pessoas (o territorial ou de vizinhança), está cada vez mais em desacordo com os atuais processos e critérios sociais de agregação das pessoas em comunidades de vida e ação. Isto foi claramente percebido e expresso pelo episcopado latino-americano reunido em Medellín, conforme já referimos acima e que repetimos aqui: "A modernização que transparece dos setores mais dinâmicos da sociedade latino-americana, acompanhada pela crescente tecnização e aglomeração urbana, tem-se manifestado por fenômenos de mobilidade, socialização e divisão de trabalho, que têm por efeito a importância crescente dos grupos e ambientes funcionais – fundados no trabalho, na profissão ou na função – em relação às comunidades tradicionais de caráter de vizinhança ou territorial." (Medellín 10,3). O resultado disto é que a comunidade de fé dos leigos nas paróquias se dissocia cada vez mais de suas comunidades normais de vida e ação nas cidades. Pois as paróquias são essencialmente comunidades tradicionais de caráter de vizinhança ou territorial (isto é, agregam pessoas vizinhas de um mesmo e limitado território urbano), enquanto que a vida cultural, social, educativa e profissional da maioria da população se realiza hoje integralmente em comunidades urbanas de caráter funcional (isto é, em comunidades de vida e ação que estão dispersas por todo o território urbano, e que agregam pessoas oriundas de todo o território urbano). É neste sentido que a vida quotidiana da população em geral (e dos paroquianos em particular) não mais se realiza dentro dos estreitos limites territoriais e humanos de uma paróquia. E se a vida atual das pessoas

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nas cidades ultrapassa, na maior parte das vezes, os limites territoriais e humanos naturais de uma "paróquia", é claro que a comunidade paroquial e a pastoral paroquial, na medida em que forem "paroquiais" (de vizinhança ou territorial), não podem por natureza promover uma pastoral e um apostolado que seja "ambiental", na medida em que os atuais ambientes ou comunidades urbanas de vida e ação não são de caráter territorial ou de vizinhança, mas sim de natureza funcional (fundados no trabalho, na profissão ou na função, isto é, em "formas específicas de ação coletiva e comunitária" que se coordenam entre si desempenhando determinadas "funções" no conjunto da vida social), e por isso são comunidades relativamente independentes de quaisquer condições e limitações de natureza territorial ou de vizinhança. Os modernos meios de transporte e comunicação possibilitam (e promovem) esta dispersão territorial e humana da nossa vida e atividade quotidiana, que se fragmenta em setores ou dimensões separadas, que se realizam em qualquer lugar da cidade no seio de comunidades constituídas por pessoas oriundas também de qualquer lugar da cidade. Basta observar a vida e as atividades normais dos leigos nas cidades para se constatar isto. Antigamente, a vida social das pessoas se realizava quase que integralmente dentro de estreitos limites territoriais e humanos, e por isso às comunidades paroquiais correspondiam comunidades integrais de vida e ação da população. Vivi isto na minha infância, numa pequena cidade do interior: as pessoas vizinhas de um mesmo território urbano não só freqüentavam as mesmas paróquias ao longo da vida, como também se educavam nas mesmas escolas, trabalhavam juntas e na mesma região da cidade, freqüentavam o mesmo comércio, compartilhavam as mesmas atividades culturais, esportivas e de lazer, namoravam e se casavam entre si. Tudo (ou quase tudo) se fazia e se vivia dentro de certos limites territoriais e humanos (o bairro, vila, aldeia), onde todos se conheciam desde a infância, e onde se intercambiavam os serviços necessários à vida. Nestas circunstâncias, a comunidade de fé dos leigos (a paróquia) estava naturalmente integrada e em contato com suas diversas comunidades de vida e ação, na medida em que os seus limites territoriais e humanos coincidiam e as pessoas eram todas católicas, membros da mesma paróquia e das mesmas comunidades de vida. Mas tudo isto é passado, e já não existe mais. O mundo urbano de hoje, mesmo nas cidades menores do interior, não funciona mais assim. Quem, hoje em dia, realiza todas as suas atividades e relações famíliares, sociais, culturais e profissionais no próprio território de sua paróquia, junto com católicos de sua própria paróquia? Eu não conheço ninguém assim. O normal, hoje em dia, é o cidadão ter que se deslocar para lugares diferentes e distantes da cidade, e aí se relacionar e cooperar com todo tipo de pessoa, a fim de poder realizar a maior parte das suas atividades. E a paróquia, neste contexto, limita-se a ser apenas "uma" dentre as diversas comunidades urbanas de que participam os leigos. Isto explica, em grande parte, o desencontro que o leigo vive entre sua comunidade "de fé" (a paróquia) e suas outras comunidades "de vida e ação" (no campo familiar, social, profissional, cultural, educativo e político). Por terem critérios de agregação divergentes (o territorial de um lado, e o funcional de outro), estas comunidades não conseguem mais se encontrar em nenhum lugar da cidade. Pois não há coincidência territorial e humana entre elas. Mas além dos aspectos estritamente "territoriais" e de "composição" humana destas comunidades, devemos lembrar também os aspectos propriamente "culturais" da questão, uma vez que as comunidades de vida e ação dos leigos nas cidades são hoje ambientes humanos cada vez mais complexos, diversificados e especializados do ponto de vista cultural e social, o que exige dos leigos um tipo de formação e de organização 83

(e por conseguinte, um cuidado pastoral) também diferenciado e adaptado a estas especificidades culturais, o que não é a prioridade pastoral da paróquia nem é algo que esteja dentro de suas normais capacidades humanas. Pois até mesmo as comunidades habitacionais (condomínios e cortiços, por exemplo), que por natureza se encaixam perfeitamente dentro dos limites teritoriais e humanos de uma paróquia, mesmo estas comunidades não se estruturam a partir de relações humanas de mera "vizinhança" ou proximidade territorial, mas sim (e sobretudo) a partir de relações humanas de "sociedade", instituídas por contrato, regidas por um conjunto próprio e específico de leis, normas e costumes, com problemas, formas de ação e modos de convivência também próprios e específicos, configurando assim uma espécie de "cultura comunitária" que se desenvolve e que se vive exclusivamente num condomínio, por exemplo, ou num cortiço. E isto se aplica também, com maior intensidade ainda, aos demais ambientes ou comunidades de vida e ação dos leigos (no campo famíliar, social, cultural, profissional, político etc.), que além de ultrapassarem os limites territoriais e humanos de uma paróquia, também desenvolvem uma forma própria e específica de "cultura comunitária", com suas normas e costumes, conteúdos e problemas, modos de convivência e tipos de atividade, que se vive e que existe exclusivamentes nestes ambientes. Pois cada espécie de ambiente desenvolve uma espécie própria de "cultura comunitária". Compare-se, por exemplo, tudo aquilo que normalmente se vive e se faz no ambiente de familia, com aquilo que se faz e se vive no ambiente de trabalho, ou no ambiente escolar e universitário, ou ainda num condomínio, cortiço ou favela: temos aí verdadeiras "culturas comunitárias", todas bastante complexas e bem diferentes entre si. Nestas condições, como uma simples paróquia poderia dar conta "pastoralmente" de toda esta complexidade e diversidade "socio-cultural" que os leigos vivem hoje em nossas cidades? Isto me parece ser "missão impossível" para a paróquia. E a realidade comprova claramente isto: em razão de todos estes fatores acima enumerados, a paróquia sozinha não pode ser o centro ou ponto de partida das pastorais ambientais. Estas precisam ser de âmbito supra-paroquial (diocesano e nacional), como são por exemplo as diversas pastorais sociais e específicas que já existem na Igreja. E quanto à renovação da paróquia em "comunidade de comunidades", convém lembrar que tal renovação não altera (nem pode alterar) a natureza territorial e eucarística da comunidade paroquial, e por conseguinte não altera (nem pode alterar) os seus limites territoriais e humanos, nem tampouco a natureza e finalidade da pastoral paroquial, cujas prioridades continuam sendo as mesmas que eram antes da sua "renovação", com a única diferença de que, numa paróquia "renovada", o mesmo tipo de ação pastoral que antes se realizava apenas no templo e nos seus espaços anexos, agora se desloca para outros lugares e se descentraliza assim por todo o território paroquial, o que exige obviamente uma maior participação e colaboração dos leigos paroquianos. Porém, a setorialização ou subdivisão da paróquia em nada altera a "natureza" da paróquia nem da sua pastoral, cuja finalidade primeira continua sendo a mesma de sempre: as obras de evangelização, de santificação e de caridade (isto é, a catequese, a liturgia, e as obras de caridade, que agora se procura realizar também no seio, ou por meio, de pequenas comunidades "paroquiais", todas localizadas no território da "paróquia" e compostas por membros da "paróquia"). Em suma: a mera descentralização espacial e humana da pastoral "paroquial", e a mera subdivisão da comunidade "paroquial" em pequenas comunidades, não faz com que elas deixem de ser "paroquiais" e se tornem também "ambientais", no sentido de promoverem a necessária união, formação e atuação dos leigos paroquianos na ordem temporal, isto é: nos seus próprios ambientes "normais" de vida e ação (pois a maior parte destes ambientes não se localizam no território da sua "paróquia", mas no território de outras paróquias; nem 84

integram católicos membros apenas da sua "paróquia", mas integram também católicos membros de outras e distantes paróquias; e em todos estes ambientes vive-se um tipo de "cultura" comunitária e secular cujos conteúdos específicos não são os conteúdos normais ou prioritários da formação ou catequese paroquial, que são de ordem religiosa, e não de ordem social, política, econômica ou cultural). É claro que a renovação da paróquia em "comunidade de comunidades" poderá promover de muitas e variadas formas a vocação e missão dos leigos no âmbito intraeclesial e paroquial, e com isto a paróquia poderá realizar melhor a sua natural vocação e missão, que é "antes de mais nada" a evangelização e santificação da população local. Mas a paróquia (renovada ou não) só poderá um dia promover a missão dos leigos na ordem temporal (isto é, nos seus ambientes normais de vida e ação), se ela reconhecer os seus próprios limites pastorais e missionários, e se colaborar humildemente com a criação e o desenvolvimento de formas específicas de Pastoral Ambiental, que transcendem necessariamente as finalidades ou prioridades da pastoral paroquial, bem como os limites territoriais e humanos da comunidade paroquial, e que por isso precisam ser de natureza supra-paroquial, de âmbito diocesano ou nacional. E além do mais, pretender ou esperar que uma paróquia sozinha, com seus próprios recursos, seja capaz de criar e fazer funcionar adequadamente as diversas pastorais ambientais que se fazem hoje necessárias para que o laicato possa "penetrar do espírito evangélico as realidades temporais e aperfeiçoá-las", seria o mesmo que esperar que cada paróquia sozinha, com seus próprios e limitados recursos, planejasse e criasse uma Campanha da Fraternidade com todos os subsídios necessários para isto. Se grande parte das paróquias não consegue realizar "nada" do que propõe uma Campanha da Fraternidade já pronta e acabada com todos os subsídios que se oferecem, nem consegue implantar e desenvolver no seu território uma pastoral já pronta e tão bem elaborada e organizada como é a Pastoral da Criança, por exemplo, imagine então se cada paróquia tivesse que "inventar e criar" por si mesma e por conta própria uma CF ou uma pastoral da criança! O desastre seria completo. É por esta e outras razões que a CF e as pastorais específicas não são de âmbito "paroquial", mas sim de âmbito diocesano ou nacional. É claro que tais campanhas e pastorais específicas destinam-se aos paroquianos e se realizam nas paróquias pela ação dos paroquianos, mas elas mesmas não são "paroquiais", pois não foram concebidas, planejadas, organizadas e preparadas por estes paroquianos. Isto vale também (e sobretudo) para as pastorais "ambientais", sem as quais os leigos paroquianos dificilmente conseguirão realizar aquilo que lhes pede o Concílio Vaticano II: "Faz-se porém mister que os leigos assumam a renovação da ordem temporal como sua função própria e nela operem de maneira direta e definida, guiados pela luz do Evangelho e pela mente da Igreja, e levados pela caridade cristã." (AA, n. 7; §1359). Convém, portanto, reconhecer não só as "possibilidades", mas também as "impossibilidades" pastorais e missionárias da paróquia (renovada ou não), uma vez que ambas as coisas são intrínsecas à sua própria natureza, que é a de ser uma "comunidade eucarística de base territorial" com tudo o que isto implica. Pois não adianta querer que um martelo serre a madeira, nem esperar que o fogo possa um dia congelar os alimentos. Há que se reconhecer e respeitar a natureza própria (e a finalidade intrínseca) das coisas. E a paróquia (refiro-me à sua estrutura atual) também tem uma natureza própria, que se conserva ao longo de todas as suas possíveis transformações. O que importa, portanto, é discernir e promover aquelas transformações que melhor realizam a sua natureza e finalidade. E ao mesmo tempo, procurar discernir e promover outros meios pastorais e eclesiais que possam talvez realizar aquilo que a paróquia sozinha e por natureza não consegue fazer. É bem isto o que eu estou tentando encontrar aqui: os

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meios pastorais de se promover a vocação dos leigos no âmbito das realidades temporais, e especificamente nos seus ambientes normais de atividade. Esta deve ser "a prioridade" natural das pastorais ambientais, já que a prioridade natural da pastoral paroquial (e da própria Igreja) é outra, não é esta. Não se trata aqui, evidentemente, de separar as duas coisas nem tampouco de opô-las entre si, mas tão somente de buscar realizar por outros meios aquilo que não se consegue realizar por meio e por iniciativa da paróquia. Trata-se apenas de providenciar um "complemento" necessário à pastoral paroquial, à qual se coordenariam as diversas pastorais ambientais. Desta maneira se alcançaria um melhor equilíbrio na pastoral da Igreja, e a vocação "secular" dos leigos poderia, finalmente, receber a orientação pastoral que precisa para se realizar de acordo com a fé e a doutrina social da Igreja. Pois este é um problema constante na vida dos leigos: "É indispensável superar a separação entre fé e vida, para que realmente se possa falar de conversão. Com efeito, a presença dessa divisão faz do cristianismo um fato puramente nominal." (EA, n. 26). As pastorais ambientais apenas ajudariam os leigos paroquianos nesta difícil conversão, proporcionando-lhes as condições necessárias para isto: aquele tipo de formação e de organização que é preciso neste caso. Em toda esta análise e reflexão tenho sempre em mente, como referência única, o apostolado de grupo dos leigos nos seus ambientes normais de vida e ação. É claro que há outras infinitas formas de missão e apostolado leigo (tanto individual como em grupo, tanto no âmbito intra-eclesial como no das realidades temporais), todas elas possíveis, necessárias e excelentes, que é preciso sempre promover e realizar. Mas a única forma de se conseguir um dia que "cada batizado" (isto é, cada leigo paroquiano) desempenhe a sua primeira e normal forma de missão (que é penetrar do espírito evangélico os seus próprios ambientes de vida e ação), é precisamente promovendo-se o apostolado de grupo dos leigos nestes seus ambientes. Esta é uma forma de missão normal, natural, e possível para todo leigo. Qualquer outra forma de apostolado, por mais necessária e excelente que seja, já exclui de cara a maior parte dos leigos, que não conseguirão fazer nada individualmente, isto é, "sozinhos, isolados, e por iniciativa própria", nem tampouco vão poder (ou querer) atuar em "ambientes desconhecidos ou distantes, dos quais não participam normalmente". Em função de tudo o que foi dito acima, podemos concluir o seguinte: do ponto de vista da maioria do laicato que freqüenta a missa aos domingos nas grandes paróquias urbanas (e que é o ponto de vista adotado por mim neste texto), para conseguir realizar melhor e mais plenamente a sua "vocação cristã e missionária" no mundo de hoje, este laicato precisa ter a oportunidade de uma outra vivência eclesial e de uma outra formação cristã além daquelas que normalmente encontra no interior da sua paróquia ou diocese. E isto, obviamente, implica uma certa mudança (correlativa e correspondente) na posição e no papel tradicionalmente assumido pelos demais membros da Igreja, pois sem o real interesse e a efetiva cooperação dos ministros ordenados, dos religiosos e dos leigos já atuantes na missão evangelizadora, a maioria do laicato não conseguirá sozinha sair da sua tradicional posição de "passividade pastoral" para assumir o papel que lhe cabe como "protagonista" da missão evangelizadora, sobretudo naquilo que diz respeito à renovação da ordem temporal. Precisamos na Igreja compreender este fato crucial: a deplorável posição de extrema "passividade" pastoral e "paralisia" missionária em que vive a maioria do laicato católico é ativamente (e inadvertidamente) promovida e mantida pelas próprias estruturas (e atitudes) pastorais paroquiais e diocesanas existentes. Esta é a experiência normal e a vivência quotidiana que a maioria do povo leigo tem na sua paróquia, diocese e Igreja. Falo isto por experiência própria e também alheia, pois é isto o que eu tenho observado e vivenciado na Igreja desde a minha

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infância, ao longo dos meus 60 anos. E se alguém tiver alguma dúvida quanto a isto, disfarce-se de leigo, ou melhor, viva e trabalhe "no século" como todo leigo, se misture no meio do povo leigo em uma paróquia qualquer, e fique neste "lugar" eclesial e social por alguns anos, e então poderá verificar por si mesmo se isto tudo que eu estou dizendo é ou não é um "fato". Daí a necessidade de uma certa renovação das nossas estruturas (e atitudes) pastorais, ou como dizemos hoje: de uma certa "conversão" pastoral. Ou melhor dizendo ainda: de uma certa "invenção" pastoral, pois é bem isto de que se trata aqui. Pois o problema missionário dos leigos, obviamente que não está em tudo aquilo que já existe e já se faz na Igreja (obra e dom de Cristo que devemos agradecer a todo momento), mas sim no que ainda falta e que é preciso criar e fazer existir. E uma indicação bastante clara do que é preciso fazer para que aconteça uma melhor adaptação pastoral da Igreja à vocação secular dos leigos no mundo urbano de hoje, encontra-se nas Diretrizes Gerais de 1995-1998: "É preciso que, nas Igrejas particulares e especialmente no meio urbano, se reconheça a possibilidade de diversas formas de vida comunitária, integração e associação dos fiéis, sem querer impor um único modelo de comunidade eclesial. [Como acontece hoje com o modelo paroquial, pois para a maioria dos leigos paroquianos a sua paróquia é a única forma de vida eclesial que conhecem ou da qual podem participar.] No contexto urbano, o fiel é exposto a um número muito grande de solicitações e tem relações com diversos meios profissionais, culturais e residenciais. Nesse contexto, a pastoral não pode ser uniforme ou ligada exclusivamente a um único centro de agregação. Ela se torna, necessariamente, uma rede de relações com diversos aspectos da experiência cristã e diversos níveis da organização eclesial. Por isso a organização pastoral, especialmente na grande cidade, deverá prever a articulação e a complementação entre os diversos tipos de comunidades, movimentos e formas ocasionais ou provisórias de participação dos fiéis na vida da Igreja. É urgente promover a formação de comunidades eclesiais inseridas nos ambientes culturais e profissionais." (DGAE 1995-1998, 278). Eis aí o que o Espírito diz à Igreja! Não convém adiar por mais tempo esta iniciativa, porque "é urgente promover a formação de comunidades, grupos ou núcleos eclesiais inseridos nos ambientes funcionais de nossas cidades". A julgar pela insistência com que o Espírito Santo tem dito e repetido esta mesma frase em todas as orientações pastorais católicas desde o Concílio Vaticano II até hoje, provavelmente esta deve ser a melhor resposta que os cristãos católicos podem dar à problemática urbana e missionária dos leigos, e aos males crescentes gerados pelo egoísmo humano, pelo secularismo, pelo individualismo, e pelo sectarismo religioso.

5.2. Criação de comunidades leigas de base ambiental Por estas razões todas, a pastoral urbana não pode hoje apoiar-se exclusivamente na paróquia ("comunidade eucarística de base territorial"), mas precisa apoiar-se também em outras novas e diversas manifestações e estruturas eclesiais ("comunidades leigas de base ambiental") que se articulem entre si e com as demais estruturas eclesiais existentes, tanto as da Vida Religiosa como as dos Movimentos Eclesiais e pastorais específicas, mas sobretudo que se articulem com as paróquias de modo a complementar o que falta à estrutura paroquial (e o que lhe falta é a descentralização e inserção ambiental das ações eclesiais, e a autonomia dos sujeitos eclesiais), dando assim ao laicato uma efetiva oportunidade de "participação responsável" na vida e missão da Igreja no mundo, e permitindo que o conjunto da Igreja se adapte melhor às atuais formas de organização da vida nas cidades. 87

A criação de núcleos, grupos, ou pequenas comunidades leigas de base ambiental não seria nenhuma anomalia ou irregularidade canônica na história da Igreja, pois além e ao lado das estruturas paroquiais e diocesanas (estruturas eclesiais muito bem adaptadas ao exercício do ministério ordenado e hierárquico) existem também na Igreja muitas outras formas e estruturas de vida eclesial que não são "comunidades eucarísticas de base territorial", mas são, por exemplo, "comunidades religiosas de base carismática" que a Vida Consagrada realiza "em suas diversas formas, tanto apostólica como contemplativa e monástica", ou então são "comunidades leigas de base carismática" que os Movimentos Eclesiais realizam em "novas formas de vida comunitária, que são expressão de uma multiforme variedade de carismas, métodos educativos, modalidades e finalidades apostólicas" e que se caracterizam como "uma realidade eclesial de participação prevalentemente laical, um itinerário de fé e de testemunho cristão que funda seu próprio método pedagógico sobre um carisma preciso, dado à pessoa do fundador em circunstâncias e modos determinados". (DGAE 19992002, 319 e 315). Então, ao lado de todas estas formas e expressões de vida eclesial, não haveria mal algum em se criar também no meio urbano "comunidades leigas de base ambiental", que também se caracterizariam como uma "realidade eclesial de participação prevalentemente laical", porém com "um itinerário de fé e de testemunho cristão que fundaria seu próprio método pedagógico" não sobre um carisma preciso dado à pessoa do fundador, mas que fundaria seu próprio método pedagógico sobre as necessidades específicas e extremamente variadas daqueles "ambientes" normais de vida e atuação da grande maioria do laicato (e mais precisamente, daquela maioria que hoje apenas participa das celebrações dominicais nas grandes paróquias urbanas, sem terem com isto condições objetivas e subjetivas de cumprirem a sua missão nestes ambientes). Semelhante ação pastoral teria como eixo central e preocupação principal a adaptação da própria Igreja às "realidades temporais" de hoje, isto é, aos ambientes onde os leigos estão naturalmente inseridos, em vista de sua evangelização. Este modo de organizar a ação pastoral emerge espontaneamente na nossa consciência quando consideramos a porção leiga do Povo de Deus: a sua situação no mundo, o seu estado e vocação na Igreja, o seu ponto de vista humano e eclesial, as suas necessidades e sobretudo as suas possibilidades reais de atuação na obra da evangelização. E todos aqueles princípios de articulação propostos nas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora, são particularmente úteis e necessários para se promover a união, a formação e atuação missionárias daquela multidão de leigos que se reúnem todos os domingos nas grandes paróquias urbanas, e que depois (infelizmente) se dispersam pela cidade numa poeira de indivíduos anônimos e isolados, voltando para seus ambientes normais de vida sem contudo encontrarem lá nenhum sinal ou forma de vida eclesial que os auxilie na sua formação cristã e atuação missionária. Sem este auxílio, o fiel leigo sozinho e isolado dificilmente conseguirá responder à sua vocação específica e atuar aquela singular forma de evangelização que somente o laicato poderá realizar nos prédios e cortiços da cidade, nas escolas e universidades, nas empresas e organizações de trabalho, nas famílias, e em todos os demais ambientes urbanos onde os leigos vivem e atuam quotidianamente.

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5.3. A dimensão secular da Igreja. Se nós entendermos que o "carisma" comum e definidor do "leigo" é a sua "índole secular", isto é, a sua plena inserção e participação nas realidades ditas "temporais", então nada seria mais natural, justo, necessário e urgente na Igreja do que criar novas estruturas eclesiais e pastorais que reconheçam de fato o caráter teológico e eclesial deste "carisma secular" dado por Deus a todos os leigos (pais, professores, médicos, agricultores, operários, pedreiros, donas de casa, policiais, artistas, empresários, servidores públicos, comerciários, jornalistas, políticos, juízes, cozinheiros, motoristas, advogados, etc...) para a utilidade de todos, inclusive para a utilidade dos fiéis ordenados e consagrados. Ou será que algum membro de Cristo aqui na terra consegue viver e louvar a Deus sem comer, beber, morar e vestir, sem educar-se nem tratar-se nas doenças, sem usar meios de comunicação e transporte, e sem beneficiar-se com os demais bens e serviços públicos e particulares, fruto do amor e do trabalho das pessoas que vivem "no século" tratando das "realidades temporais"? Depois que o Verbo se fez carne e o Evangelho conhecido, ninguém pode alegar esta ignorância: "Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou sem roupa, doente ou preso, e não te servimos?" (Mt 25,44). Depois de Jesus Cristo, não se pode mais separar Deus e os homens, as realidades terrenas e as celestes, o sagrado e o profano, o trabalho e a oração, a vida presente e a vida eterna: Cristo uniu tudo o que é, foi e será. "Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve separar." (Mt 19,6). É o que ensina João Paulo II na Exortação Apostólica Christifideles Laici: Como dizia Paulo VI, a Igreja "tem uma autêntica dimensão secular, inerente à sua íntima natureza e missão, cuja raiz mergulha no mistério do Verbo encarnado e que se concretiza de formas diversas para os seus membros". (...) É verdade que todos os membros da Igreja participam da sua dimensão secular, mas de maneiras diferentes. Nomeadamente a participação dos fiéis leigos tem uma sua modalidade de atuação e de função que, segundo o Concílio, lhes é "própria e peculiar": tal modalidade é indicada na expressão "índole secular". Efetivamente, o Concílio descreve a condição secular dos fiéis leigos indicandoa, antes de mais, como o lugar onde lhes é dirigida a chamada de Deus: "Aí são chamados por Deus". Trata-se de um "lugar" descrito em termos dinâmicos: os fiéis leigos "vivem no século, isto é, empenhados em toda e qualquer ocupação e atividade terrena e nas condições ordinárias da vida familiar e social, com as quais é como que tecida a sua existência". Os fiéis leigos são pessoas que vivem a vida normal no mundo, estudam, trabalham, estabelecem relações amigáveis, sociais, profissionais, culturais etc. O Concílio considera essa sua condição não simplesmente como um dado exterior e ambiental, mas como uma realidade destinada a encontrar em Jesus Cristo a plenitude do seu significado. (...) O "mundo" torna-se assim o ambiente e o meio da vocação cristã dos fiéis leigos, pois também ele está destinado a dar glória a Deus Pai em Cristo. O Concílio pode, então, indicar qual o sentido próprio e peculiar da vocação divina dirigida aos fiéis leigos. Estes não são chamados a deixar o lugar que ocupam no mundo. O Batismo não os tira de modo algum do mundo, como sublinha o apóstolo Paulo: "Irmãos, fique cada um de vós diante de Deus na condição em que estava quando foi chamado" (1Cor 7,24); mas confia-lhes uma vocação que diz respeito a

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essa mesma condição intramundana: pois os fiéis leigos "são chamados por Deus para que aí, exercendo o seu próprio ofício, inspirados pelo espírito evangélico, concorram para a santificação do mundo a partir de dentro como o fermento, e deste modo manifestem Cristo aos outros, antes de mais pelo testemunho da própria vida, pela irradiação de sua fé, esperança e caridade". Dessa forma, o estar e o agir no mundo são para os fiéis leigos uma realidade, não só antropológica e sociológica, mas também e especificamente teológica e eclesial, pois é na sua situação intramundana que Deus manifesta o seu plano e comunica a especial vocação de "procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus". E foi precisamente nesta linha que os padres sinodais afirmaram: "A índole secular do fiel leigo não deve, pois, definir-se apenas em sentido sociológico, mas sobretudo em sentido teológico". (Exortação Apostólica Christifideles Laici, 15). No entanto, quem hoje na Igreja Católica reconhece de fato o caráter teológico e eclesial (isto é, religioso) das vocações e atividades seculares dos fiéis leigos? Tal reconhecimento se tornará efetivo na medida em que se criarem estruturas eclesiais que manifestem e que comuniquem o sentido teológico das vocações seculares dos cristãos leigos, isto é, na medida em que se formarem pequenas comunidades eclesiais leigas no "mundo", nos "lugares" que constituem o ambiente e o meio da vocação cristã dos fiéis leigos. Deste modo, o exercício das vocações seculares poderá adquirir (e comunicar) o seu sentido teológico e eclesial, isto é, o seu sentido cristão. E o fiel leigo conseguirá então superar aquela tão denunciada ruptura entre a sua vida de fé e a sua vida familiar, social, cultural, profissional, empresarial, econômica e política. E com este testemunho cristão, o laicato poderá colaborar na missão da Igreja, que é "evangelizar este mundo" levando o amor de Cristo para toda a humanidade. Infelizmente, tal coisa é impossível de acontecer com o laicato reunido e fechado dentro de um templo ao redor de um padre. Tal coisa só poderá acontecer com os leigos reunidos e atuantes nos lugares que ocupam no mundo, lugares que não podem ocupar nem os fiéis ordenados nem os consagrados. Esta é a riqueza da Igreja, e o que torna todos os membros do Corpo de Cristo necessários uns aos outros. Por isso, nem o laicato pode dizer ao clero: "Não preciso de vocês". Nem o clero pode dizer ao laicato: "Não preciso de vocês". E ninguém pode dizer aos religiosos: "Não preciso de vocês". Nem os religiosos podem dizer aos leigos ou aos padres: "Não preciso de vocês". Todos os membros de Cristo precisam uns dos outros para que a Igreja possa cumprir a sua missão neste mundo! Que esta igualdade no Corpo de Cristo nos faça humildes colaboradores da graça divina que opera nos outros e também por meio dos outros.

5.4. O que entendemos por "missão", "evangelização" e "religião"? Pergunto a cada cristão leigo: Quem de nós se considera "em missão" quando participa de uma Assembléia Geral no seu condomínio? Ou quando sai de casa para trabalhar oito horas seguidas numa empresa ou organização qualquer? Ou quando vai à escola e universidade ensinar e aprender? Ou quando passa o dia todo socorrendo às necessidades de alimentação, cuidado, saúde e higiene dos membros da sua família? Por acaso algum de nós considera estas atividades como sendo (ou podendo vir a ser) "evangelizadoras"? Ou como sendo atividades "missionárias" ou "religiosas"? Não creio. Pois sempre que se fala em missão, evangelização e religião, a maioria de nós exclui de suas mentes todas as atividades "profanas, seculares e temporais" próprias do 90

leigo, como se elas fossem algo separado da vida e da missão evangelizadora da Igreja. Quando se fala em religião, missão e evangelização, a maioria de nós pensa apenas em pregação, liturgia, oração, catequese, devoção, e talvez alguma assistência aos pobres. Para muitos de nós, "evangelizar a cidade" parece significar antes de tudo encher as igrejas de gente aos domingos, avolumar as procissões e rezas de terço, encher os lares e os espaços públicos com imagens e símbolos cristãos, multiplicar os grupos de oração e catequese, enfim, levar a cidade inteira para dentro dos templos e dos salões paroquiais a fim de participarem das atividades que chamamos "religiosas e eclesiais". Não é isto o que se passa na mente da maioria das pessoas quando se fala em "evangelizar a cidade"? Logo pensamos em organizar atividades "religiosas". E em parte (apenas em parte), está muito certo pensarmos assim. Porém, quantos de nós pensamos também em organizar as atividades "seculares" próprias dos leigos? O tempo todo em que freqüentei paróquias em São Paulo ou no interior, nunca me aconteceu de presenciar uma iniciativa que visasse "converter" as próprias atividades normais e quotidianas do laicato no mundo, como se tais atividades comunitárias e sociais (e todas elas são comunitárias e sociais) pudessem se converter sozinhas ou por iniciativa individual e isolada de cada um. Por outro lado, presenciei e participei de dezenas de atividades coletivas de cunho "religioso", isto é, litúrgico, catequético, assistencial e devocional na paróquia, no templo ou no salão paroquial. Se para nós, cristãos leigos, "evangelizar a cidade" não for antes de tudo participar (com o Espírito de Cristo) da vida comunitária dos nossos condomínios e locais de habitação, das nossas escolas e universidades, das nossas empresas ou organizações de trabalho e das nossas famílias, então que paremos de reclamar da tal "ruptura entre fé e cultura", pois somos nós os primeiros a promovê-la e a reproduzi-la nos próprios lugares e ambientes onde vivemos e atuamos todos os dias. O que fazemos nós, cristãos leigos, quando em nosso próprio condomínio, organização de trabalho, educação ou família, se promove a mentira, a corrupção e a injustiça? A inversão de valores e prioridades de ação? A busca diária do inútil e do desnecessário? A ostentação do supérfluo, a indiferença ao pobre e a exploração do fraco? A destruição e a contaminação da natureza? Enfim, o que fazemos nós em nossas comunidades de vida, educação e trabalho, quando nelas ou por meio delas se promovem ou se admitem estas formas de agressão ou indiferença à vida? À dignidade e aos direitos das pessoas? À segurança e sobrevivência das futuras gerações humanas? Quando vemos isto acontecer (e todos sabemos como isto acontece), acaso nós procuramos fazer alguma coisa juntos, nesses "lugares" em que já estamos? Nós procuramos agir enquanto membros fiéis e unidos do Corpo de Cristo? Ou cruzamos os braços, nos isolamos e nos conformamos a tudo, só para salvar nosso sossego, renda ou posição? Até quando nós continuaremos cúmplices desses males por omissão e participação? Que Deus nos perdoe tanta falta, e que o resto da Igreja (clero e religiosos) nos ajudem a transformar esta trágica e "secular" situação. E em vez de procurarmos apenas trazer a cidade toda para dentro de nossas paróquias, procuremos também, e antes de mais nada, levar Cristo-Igreja-conosco para a cidade toda. Pois isto depende apenas de nós, que já estamos vivendo e atuando em todo lugar da cidade. É preciso antes que o Espírito de Cristo cresça "em nós" (leigos) para que o seu Corpo (a Igreja) cresça por toda a cidade, porque além de estarmos omissos em nossa missão "secular" de leigos, a cidade já mudou e cresceu tanto que não cabe mais em nossas paróquias.

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6. ADAPTAÇÃO DA IGREJA AOS AMBIENTES URBANOS: PASTORAL AMBIENTAL A ampliação, ou expansão, ou "descentralização" da vida eclesial dos paroquianos em pequenos núcleos eclesiais constituídos a partir de critérios ambientais de agregação dos fiéis leigos, e a autonomia dos leigos assim agregados para cooperarem na sua própria formação e na evangelização destes ambientes, define de modo geral um tipo (ou estrutura) de ação pastoral que se poderia chamar de "pastoral ambiental". Este nome, "pastoral ambiental", parece ser aqui bastante adequado por 3 razões: 1. O critério para a agregação dos fiéis leigos é a sua comum relação com um mesmo ambiente. Por exemplo: a pastoral ambiental procuraria agregar os leigos que moram num mesmo condomínio, cortiço, vila ou favela; que trabalham juntos numa mesma empresa ou organização de trabalho; que estudam, ensinam e trabalham numa mesma escola, universidade, ou curso; que são membros de uma mesma família; etc. 2. O espaço (ou "lugar") desta agregação é também este mesmo ambiente. Neste caso, os leigos se reuniriam no próprio condomínio onde moram; na própria empresa ou organização onde trabalham; na própria escola, faculdade ou curso onde ensinam e estudam; no próprio lar onde vivem; etc. E quando isto não for conveniente, ou não for possível (no caso de uma escola ou organização de trabalho não permitir semelhante reunião, por exemplo), os leigos poderiam perfeitamente se reunir em algum outro local que julgarem mais conveniente. 3. E a finalidade desta agregação é a formação dos fiéis para agirem neste mesmo ambiente "guiados pela luz do Evangelho e pela mente da Igreja, e levados pela caridade cristã", em vista de sua renovação e evangelização. Deste modo, os leigos unidos e melhor preparados poderiam cooperar na renovação e evangelização do próprio condomínio onde moram; da própria empresa ou organização onde trabalham; da própria escola, faculdade ou curso onde ensinam e estudam; da própria família da qual fazem parte; etc. Por meio dessa "pastoral ambiental" a Igreja poderia promover a renovação cristã e a evangelização de todos aqueles ambientes da cidade onde já existem pelo menos "dois ou três" cristãos leigos vivendo e atuando. Mas afinal de contas, o que se entende aí por "ambiente"? Numa perspectiva pastoral e missionária, a definição ou a delimitação de um "ambiente" supõe sempre um espaço ou local mais ou menos identificável onde um grupo maior ou menor de pessoas desenvolve uma certa comunidade de vida e ação. Um ambiente assim identificado ou delimitado, não será algo puramente territorial (um lugar), nem será apenas interpessoal (um grupo de pessoas reunidas), nem meramente funcional (um agir em comum), mas será sempre estas 3 coisas juntas, ao mesmo tempo. E é exatamente isto o que torna possível (e necessário) o tipo de ação pastoral acima esboçado: a existência de uma comunidade interpessoal de vida e ação num determinado lugar da cidade. Por exemplo, a comunidade condominial num prédio; ou a comunidade educacional numa escola; a comunidade de trabalho numa empresa ou organização; a comunidade familiar num lar; etc. Deste modo, é possível olhar a cidade e identificar os seus vários ambientes de missão.

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Na oração da Conferência de Santo Domingo, nós pedimos ao Senhor: "Ajuda-nos a trabalhar por uma evangelização inculturada que penetre os ambientes de nossas cidades." (SD 303). Pois bem: como é que a evangelização pode "penetrar" um ambiente da cidade? Normalmente, isto só pode acontecer de 2 modos distintos: 1. Nos ambientes onde já vivem e atuam pelo menos "dois ou três" fiéis leigos, a evangelização pode se apoiar numa ação pastoral da Igreja junto a estes leigos para que eles mesmos comecem a evangelizar os seus ambientes. 2. Nos ambientes onde não há nem mesmo "dois ou três" fiéis leigos vivendo e atuando, a evangelização exige que alguém "de fora" venha para "dentro" destes ambientes, ou seja, a evangelização exige que pelo menos "dois ou três" discípulos de Jesus se disponham a inserir-se nestes ambientes, e comecem a viver e atuar neles em vista de sua evangelização. Neste segundo caso, a disponibilidade que se exige dos evangelizadores é um grande impedimento para que a maioria do laicato atue neste modo, pois são bem poucos os leigos que podem ou querem deixar seus próprios ambientes e abandonar suas próprias obrigações e atividades normais para inserir-se em outros ambientes e dedicar-se a outras atividades. Porém, no primeiro caso não há nada que dificulte ou impeça o leigo de atuar na evangelização, exceto a sua vontade e sobretudo o fato de estar isolado e de não receber nenhuma formação e orientação pastoral para fazê-lo. Portanto, se a meta da ação pastoral da Igreja é "tornar cada batizado sujeito ativo da missão" (conforme as DGAE 1999-2002, 111), então a ação pastoral da Igreja na cidade deveria desenvolver-se sobretudo no sentido de criar uma "pastoral ambiental" dirigida especificamente para o laicato poder evangelizar os seus próprios ambientes normais de vida e atuação. Considere o seguinte: nestes ambientes os operários (leigos) da messe são muitos e bastante numerosos, porém pouco qualificados e geralmente "desocupados". Só falta alguém contratá-los e fornecer-lhes sementes e ferramentas de trabalho para que a lavoura do Senhor comece a se fazer (cf. Mt 20,1-16; CfL 1-7, Introdução). Esta deveria ser uma forma de ação pastoral prioritária da Igreja nas grandes cidades. Pois esperar que o laicato inteiro (isto é, "cada batizado") deixe seus ambientes normais de vida e abandone suas obrigações e atividades normais para se dedicar a obras e serviços na paróquia ou em ambientes estranhos ou distantes, isto é alimentar uma esperança que não tem hoje nenhum fundamento na realidade. Porém, esperar que o laicato inteiro (isto é, "cada batizado") modifique o seu modo habitual de viver e atuar nos vários ambientes da cidade, deixando de agir de modo individual, isolado e alheio aos valores evangélicos e procurando agir de modo coletivo, eclesial e conforme os valores evangélicos, isto sim já é alimentar uma esperança que tem hoje algum fundamento na realidade. Esta é uma esperança possível de se realizar, desde que a ação pastoral da Igreja se oriente neste sentido e supere um grande obstáculo interno: a tendência dos católicos quererem antes que o mundo inteiro "venha" para dentro dos templos e se adapte à Igreja, em vez de tudo fazerem para que a própria Igreja "vá" para fora dos templos e se adapte antes ao mundo inteiro, como fazia o apóstolo dos gentios: "Tornei-me tudo para todos, a fim de salvar alguns a qualquer custo." (1Cor 9,22). A adaptação pastoral da Igreja ao mundo de hoje exige uma certa renúncia (ou conversão) de todos os fiéis: deixar de conceber a evangelização como uma obra própria, exclusiva ou dependente apenas do ministério ordenado e por isto mesmo uma obra necessariamente centralizada nos "lugares" da Igreja (como templos paroquiais, centros de formação, de decisão, de obras caritativas, etc.), e passar a conceber a 93

evangelização como uma obra descentralizada por todos os "lugares" deste mundo e por isto mesmo uma obra necessariamente coordenada e dependente de todos os membros da Igreja (fiéis ordenados, fiéis consagrados e fiéis leigos). É somente assim que os fiéis leigos poderão ser incluídos entre os protagonistas da evangelização, e o ambiente "secular" dos leigos poderá tornar-se horizonte concreto de missão. Se todos os discípulos de Cristo são responsáveis pela missão, não é justo jogar o fardo da "missão" ou a culpa da "omissão" sobre as costas de uma ou outra classe de fiéis. O mais justo é que cada um reconheça a sua parcela de responsabilidade na missão da Igreja toda, e também a sua parcela de culpa nas omissões da Igreja toda, porque quem sabe faz a hora e não espera acontecer. E para saber, basta pedir a Deus, que dá a sabedoria e ensina a todos por meio de todos: "Se alguém de vocês tem falta de sabedoria, que peça a Deus, e ele a dará, porque é generoso e dá sem impor condições." (Tg 1,5). Então vamos pedir a Deus: "Ajuda-nos a trabalhar por uma evangelização inculturada que penetre os ambientes de nossas cidades, e que se encarne na cultura urbana de hoje, por meio de uma eficaz ação educativa e de uma moderna comunicação. Amém." (adaptação da oração de Santo Domingo, 303). E qual seria a ação pastoral e educativa mais eficaz para que os leigos possam trabalhar por uma evangelização inculturada que penetre os ambientes de nossas cidades e se encarne na cultura urbana moderna? Creio que a resposta de Jesus a esta questão já foi dada à Igreja por meio dos seus pastores: seguindo as orientações e diretrizes gerais dos Bispos, e ao mesmo tempo considerando as particularidades de cada ambiente urbano onde atuam os leigos, é possível imaginar e organizar uma ação pastoral-educativa que seja adaptada a cada tipo de ambiente, e portanto capaz de gerar ou desencadear no laicato uma ação evangelizadora inculturada que penetre cada ambiente de nossas cidades. Uma pastoral ambiental, por definição, deve ser encarnada e diversificada, ou seja, deve responder, a partir da fé, aos problemas concretos de cada ambiente (Puebla 863). O que não funciona de modo algum é tentar aplicar um mesmo esquema geral de ação a ambientes concretos completamente diversos entre si, sem um esforço sério e consistente de adaptação pastoral. Pois a ação pastoral e evangelizadora que é possível e necessário desenvolver nos condomínios urbanos, por exemplo, é bastante diferente daquela ação pastoral e evangelizadora que é possível e necessário realizar nos cortiços e nas favelas, nas escolas ou nas universidades, nas diversas organizações de trabalho, ou ainda nas famílias e nos demais ambientes da cidade. Embora a missão da Igreja não mude e seja sempre a mesma em todo tempo e lugar (pois "Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje, e será sempre o mesmo", Hb 13,8), a sua realização é sempre histórica, diversa e variada, porque nós criaturas humanas sempre mudamos e não somos os mesmos aqui e ali, ontem, hoje e sempre. Se a missão da Igreja é "formar Cristo em nós", então toda e qualquer ação pastoral, educativa e evangelizadora integra e une uma dimensão comum e imutável (relativa a Cristo) e uma dimensão particular e sempre variada (relativa a nós). Então, para refletir sobre o tipo de formação que seria mais adequado a uma pastoral dos condomínios, precisamos sempre particularizar a pergunta certa: "Como formar Cristo em nós, condôminos e moradores (católicos) deste prédio?" Porque antes de evangelizar os outros, somos nós, católicos leigos moradores deste prédio, que precisamos nos converter ao Evangelho e aprender a superar em nós a separação entre a

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nossa fé e a nossa vida condominial. Esta é a finalidade primeira (e principal) da formação missionária dos leigos a ser promovida por uma pastoral dos condomínios: a nossa própria conversão. Sem a qual não há missão nem evangelização nos prédios da cidade. Pois de que adianta os moradores de um prédio tornarem-se todos como nós: "católicos leigos praticantes", porém sem nenhuma conversão ou mudança de vida? Porque este é o nosso problema: fazer do cristianismo um fato puramente nominal. Como ensina João Paulo II: "É indispensável superar a separação entre fé e vida, para que realmente se possa falar de conversão. Com efeito, a presença dessa divisão faz do cristianismo um fato puramente nominal." (Ecclesia in America, n. 26). "Por isso, a conversão ao Evangelho, para o Povo cristão que vive na América, significa rever todos os ambientes e dimensões da vida, especialmente tudo o que diz respeito à ordem social e consecução do bem comum." (EA, n. 27). Vejamos, então, que tipo de formação poderia nos ajudar a superar esta nossa separação entre fé e vida nos condomínios da cidade.

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A FORMAÇÃO DOS LEIGOS NOS CONDOMÍNIOS

1. A FINALIDADE DA FORMAÇÃO 1.1. Finalidade última: o amor de Jesus. Em primeiro lugar, é preciso saber qual é a finalidade última dessa formação, pois a resposta (consciente ou inconsciente) que se der a esta questão vai definir todos os aspectos da formação, que não passa de um meio para se alcançar este fim. De acordo com o Catecismo da Igreja Católica: "Toda a finalidade da doutrina e do ensinamento deve ser posta no amor que não acaba. Com efeito, pode-se facilmente expor o que é preciso crer, esperar ou fazer, mas sobretudo é preciso fazer sempre com que apareça o Amor de Nosso Senhor, para que cada um compreenda que cada ato de virtude perfeitamente cristão não tem outra origem senão o Amor, e outro fim senão o Amor." (CIC 25). "Compreendi que só o amor fazia os membros da Igreja agirem, que se o amor viesse a se apagar, os Apóstolos não anunciariam mais o Evangelho, os Mártires se recusariam a derramar seu sangue...Compreendi que o amor encerrava todas as vocações, que o amor era tudo, que ele abraçava todos os tempos e todos os lugares...Em uma palavra, que ele é eterno!" (Sta. Teresinha do Menino Jesus, CIC 826). "A finalidade de todas as nossas obras é o amor. Este é o fim; é para alcançá-lo que corremos, é para ele que corremos; uma vez chegados, é nele que repousaremos." (Sto. Agostinho, CIC 1829). "Deus, que criou o homem por amor, também o chamou para o amor, vocação fundamental e inata de todo ser humano. Pois o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus que é Amor." (CIC 1604). Se o Amor de Nosso Senhor é o Caminho que devemos seguir, a Verdade que devemos crer e a Vida que havemos de viver, se este Amor é a origem e o fim de tudo, e se este Amor não acaba "porque Deus é Amor", então não resta a menor dúvida: todos os aspectos da formação devem ser pensados, imaginados, pesquisados, discutidos, propostos, criticados, elaborados, organizados e coordenados em função de uma finalidade: o Amor de Nosso Senhor (que precisamos conhecer, crer, adorar, praticar e transmitir). Nesta altura, alguém poderá pensar: "Esse aí quer agora ensinar o Padre-Nosso ao vigário! Para quê tanta insistência numa coisa tão óbvia como esta?" É verdade, reconheço que estou aqui ensinando o Padre-Nosso ao vigário. Porém, a história do cristianismo nos ensina que nunca será demais insistir nisto e vigiar a si próprio neste ponto, porque nós, cristãos, muitas vezes deixamos de enxergar o óbvio e nos afastamos do essencial: "A finalidade da pregação é o amor que procede de um coração puro, de uma consciência boa e de uma fé sincera. Desta finalidade alguns se desviaram e se perderam num palavreado inútil." (1Tm 1,5-6).

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Para que os leigos não se percam num palavreado inútil ou num ativismo sem amor, a sua formação deve buscar por todos os meios aquilo que é de fato essencial, como ensina o apóstolo Paulo: "Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e dos anjos, ainda que eu tivesse o dom da profecia, ainda que eu tivesse o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, ainda que eu tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos famintos, ainda que eu entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse o amor, nada disso me adiantaria. Eu não seria nada. Seria como sino ruidoso ou como címbalo estridente." (1Cor 13). Diante disso, podemos dizer com toda segurança que a formação missionária dos leigos nos condomínios é uma "formação para o Amor de Jesus": "Eu dou a vocês um mandamento novo: amem-se uns aos outros. Assim como eu amei vocês, vocês devem se amar uns aos outros. Se vocês tiverem amor uns para com os outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos." (Jo 13,34-35). Pois quem evangeliza (e salva) é o amor de Jesus "derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado" (Rm 5,5), e que se manifesta e se comunica por meio de nossas palavras e ações: "Neste sentido, evangelizar para a Igreja nada mais é do que fazer o que Jesus fez: por palavras e ações expressar o amor misericordioso e compassivo para com todos, em especial os pequenos, os pobres, os mais necessitados e esquecidos de nossa sociedade injusta e excludente." (DGAE 1999-2002, 73). Em síntese, para ser cristão e missionário é preciso aprender a amar como Jesus amou (e para formar cristãos e missionários, é preciso ensinar a amar como Jesus amou). Aí está o cerne da formação: "Carreguem a minha carga e aprendam de mim, porque sou manso e humilde de coração." (Mt 11,29). E como é que alguém aprende a amar como Jesus? Conhecendo Jesus, acreditando nele, ficando com ele, e seguindo o seu exemplo. É assim que se aprende a amar como Jesus nos amou: conhecendo, acreditando, orando e agindo. Se faltar uma destas coisas, não se aprende, não há formação cristã e missionária: Cristo não se forma em nós. Portanto, os subsídios da formação, isto é, os cadernos de roteiros para os encontros de formação missionária destinados aos leigos nos condomínios, precisam ser elaborados de tal modo que em cada encontro os leigos recebam orientação e estímulo pastoral para realizar estas quatro coisas fundamentais: 1. Conhecer Jesus por meio da Sagrada Escritura. ("Porquanto ignorar as Escrituras é ignorar Cristo." S. Jerônimo, DV 25). 2. Firmar-se na fé em Jesus com auxílio do testemunho de todos os Santos da Igreja. ("A fé pode ser posta à prova. É então que devemos voltar-nos para as testemunhas da fé." CIC 164 e 165). 3. Ficar com Jesus na oração. ("Fiquem unidos a mim, e eu ficarei unido a vocês. Quem fica unido a mim, e eu a ele, dará muito fruto, porque sem mim vocês não podem fazer nada." Jo 15,4-5). 4. Seguir o exemplo de Jesus na ação. ("Eu lhes dei um exemplo: vocês devem fazer a mesma coisa que eu fiz." Jo 13,15). Alguém poderá dizer: "Mas isto a Igreja tem feito e ensinado desde o seu início, em todo tempo e lugar. Então, criatura, que novidade há nisto?" Pois bem. A grande novidade da pastoral dos condomínios seria orientar os leigos para que realizem estas quatro coisas em função de um objetivo específico, concreto e

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bem definido: aprender a amar o seu condomínio. Toda a novidade desta pastoral estaria exatamente aí: em propor a estes leigos um destinatário concreto da evangelização, isto é: uma comunidade concreta de pessoas a quem aprender a amar. Porque "amar" não é verbo intransitivo. "Amar" exige sempre um complemento de objeto direto: amar o quê? E todo cristão já sabe a quem amar: "Ame ao Senhor seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma, com todo o seu entendimento e com toda a sua força. E ame ao seu próximo como a si mesmo. Não existe outro mandamento mais importante do que esses dois." (Mc 12,29-31). Porém, não basta conhecer o mandamento de Cristo para saber como vivê-lo e cumpri-lo na prática. Neste mundo enorme, confuso, e com tanta gente, o leigo parece se perguntar: "E quem é o meu próximo para que eu o ame? Por onde posso começar? Como poderia fazer isto? Com tanta gente neste mundo, com tão grandes problemas, com tantos compromissos e afazeres, o que eu posso fazer nas minhas condições?" E com tais dúvidas no coração, o leigo sai da missa e vai embora pela cidade, sem saber direito o que fazer ou como fazer. E enquanto aguarda uma inspiração do Céu e uma orientação da Igreja, o leigo volta para sua rotina de sempre. A mesma de sempre. E o próximo continua distante: na sua família, no seu trabalho, na sua escola, e no seu condomínio. Se ainda nem sabemos cuidar do que nos é próximo, como é que poderemos cuidar do que nos é distante? Ações e movimentos sociais, políticos, eclesiais e religiosos, só têm consistência e eficácia quando se apóiam na união e cooperação de pequenas comunidades de base muito sólidas, maduras e bem estruturadas. Do contrário, não passam de ações e movimentos de "massa", isto é, de indivíduos anônimos, isolados e passivos como grãos de poeira movidos pelo vento. Sem fortes raízes comunitárias, o indivíduo isolado e massificado não é capaz de influenciar os rumos da história. Nem mesmo os rumos da sua história particular. Se no próprio prédio onde moram, os cristãos leigos são vítimas passivas e omissas de estruturas comunitárias deficientes, desumanas e injustas, ou de administradores corruptos, perversos e mentirosos, que só semeiam o mal sem nenhuma oposição ou providência, como esperar que estes mesmos cristãos atuem nas grandes transformações sociais, políticas, econômicas e culturais tão necessárias e urgentes na sua cidade, no seu país, ou no mundo? É como disse o apóstolo: "Aprendam primeiramente a cumprir seus deveres para com a própria família e a recompensar os seus pais, pois isso é agradável diante de Deus. Se alguém não cuida dos seus e principalmente dos que são de sua própria casa, esse renegou a fé e é pior que um incrédulo." (1Tm 5,4.8). Podemos aplicar estas duras palavras do apóstolo àqueles outros que nos são mais próximos também, isto é, àqueles que são membros das nossas diversas comunidades de vida e ação: "Aprendam primeiramente a cumprir seus deveres sociais e cristãos para com as suas próprias comunidades de família, trabalho, educação e moradia, pois sem elas ninguém pode viver." A missão das pastorais ambientais seria promover este primeiro aprendizado social cristão, pois quem não cuida dos seus e principalmente dos que são de sua própria casa e comunidade, como poderá viver a sua fé e amar o próximo como a si mesmo? Não diria que renegou a fé nem que é pior que um incrédulo. Diria apenas que ainda não sabe direito como viver e alimentar a sua fé "nos lugares" que ocupa no mundo, pois ainda vive e age em sociedade como um incrédulo sem inteligência, indiferente aos outros e sem interesse pelo bem comum. (Falo sobretudo por experiência própria, mas também alheia. Pois esta é a situação real de grande parte do laicato católico, do qual faço parte. É só olhar e conferir. Talvez eu esteja enganado, mas é isto o que vejo 98

acontecer nas comunidades de trabalho, educação e moradia das nossas cidades. Das famílias não sei. Apenas imagino.) Como uma Pastoral dos Condomínios poderia orientar e estimular os fiéis leigos para que estes "alimentem a sua fé" a fim de vivê-la no seu condomínio? Como fazer isto sem transformar esta pastoral em outra coisa? Pois o objetivo específico desta pastoral não é criar círculos bíblicos nos prédios, nem tampouco criar círculos teológicos ou grupos de oração nos condomínios. O objetivo específico desta pastoral é criar grupos de "ação e participação" nos condomínios (pois sem isto não podemos realmente falar de conversão). Porém, para que esta ação seja "cristã" e esta participação seja "católica", é evidente que a sua fé precisa ser alimentada, e alimentada de acordo com esta finalidade. Como fazer isto? Como todos nós sabemos, a pastoral paroquial proporciona alimento diário à fé dos cristãos por meio dos ministérios da Palavra, da liturgia e da caridade. Porém, centraliza todos estes ministérios nos lugares da Igreja e os torna todos dependentes de ministros ordenados ou de auxiliares autorizados. De modo que o leigo, quando não está na paróquia (isto é, quando está em outros lugares da cidade e longe dos ministros ordenados), não sabe como alimentar a sua fé por meio destes ministérios. Isto é, não sabe como "servir-se" da Palavra, da oração e da ação para alimentar-se a si mesmo, de modo que a sua fé fica sempre mal alimentada e meio desnutrida. Uma grande parte dos fiéis leigos "praticantes" costuma se alimentar apenas uma vez por semana: quando vai à missa aos domingos. O resto do tempo fica em jejum e passa fome, de modo que não é de se admirar que a fé de muitos desfaleça e que seu espírito adoeça ou entre em estado de coma! Como remediar isto? Uma providência pastoral simples, sensata e realista seria orientar e estimular os leigos para que desenvolvam o hábito da leitura pessoal da Bíblia (sobretudo o Evangelho), o hábito da leitura dos demais textos eclesiásticos (vida, obras e palavras dos Santos da Igreja, do Magistério etc.), o hábito da oração, e o hábito da ação eclesial e participação comunitária nos lugares onde vivem e com real autonomia (isto é, quando não estão na sua paróquia nem juntos de um ministro ordenado ou agente autorizado). Se quisermos formar cristãos leigos bem nutridos na sua fé e protagonistas da missão da Igreja, seria preciso descentralizar os ministérios da Palavra, liturgia e caridade em tudo aquilo que os leigos podem (e devem) fazer sozinhos e com autonomia nos seus lugares normais de vida e de ação. Vejamos uma coisa por vez.

1.2. Leitura da Bíblia. Quantos fiéis leigos possuem uma Bíblia? Quantos conhecem a sua Bíblia? Quantos já leram pelo menos uma vez na vida o Evangelho inteiro, do começo ao fim? Ou um livro inteiro da Bíblia? E quantos possuem o hábito da leitura diária da Bíblia? Isto evidentemente não é problema algum para o clero nem para os religiosos (que se alimentam da Palavra de Deus todos os dias), mas isto é um grande problema para a maioria dos leigos. Falo por experiência própria e também alheia. Nunca fui objeto de ações pastorais católicas que visassem desenvolver em minha vida o hábito da leitura bíblica. Todas as vezes que se propunha a leitura da Bíblia para os leigos, sempre se tratava de ações litúrgicas, retiros, cursos ou círculos bíblicos num lugar qualquer da paróquia, com hora marcada e sob a dependência de um "agente" autorizado. Qualquer outra forma de contato com a Bíblia ficava por minha própria conta, iniciativa e risco. De modo que eu nasci e cresci na Igreja sem nunca ter uma Bíblia, sem conhecê-la e 99

sem lê-la. Só fui tomar consciência desta necessidade muito tarde, e ainda assim porque já estava prestes a ser internado definitivamente numa UTI espiritual. E quem me ajudou neste encontro pessoal com a Palavra e me empurrou para dar os primeiros passos sozinho, foram os membros das outras Igrejas cristãs (protestantes e evangélicos). A pastoral católica pode aprender muito com eles, pois sabem melhor do que nós despertar no cristão leigo a consciência desta necessidade: todo cristão precisa adquirir e cultivar o hábito da leitura diária ou freqüente da Bíblia como alimento indispensável da nossa fé. Esta necessidade só não existe para quem vive na paróquia ou numa comunidade religiosa, e que já é obrigado por profissão a ler a Bíblia todos os dias, como é o caso dos padres e dos religiosos. Mas como o leigo não vive na paróquia nem tem por profissão a leitura da Bíblia, é preciso que tal hábito seja nele incentivado e por ele cultivado o tempo todo, senão o leigo se distrai em seus afazeres e obrigações e nem se lembra de ler a Bíblia. Talvez por não vivenciarem quotidianamente este tipo de problema, os pastores católicos não percebam a sua real dimensão na vida dos leigos nem saibam como orientá-los quanto a isto. Pois esta é uma grande verdade pedagógica: só sabe ensinar um caminho, aquele que um dia teve que percorrê-lo. Se o próprio trabalho e obrigação diária dos padres e religiosos inclui a leitura da Bíblia, a oração e a ação eclesial, é claro que nada disto será um problema constante para eles, pois o seu trabalho normal e as suas obrigações quotidianas já os levam a isto e portanto não irão jamais impedi-los nem distraí-los de fazer estas coisas. Mas esta não é a situação dos leigos, cujos trabalhos e obrigações não são nunca relativos à Palavra, oração e ação eclesial. No entanto, estas coisas são tão necessárias à vida cristã do leigo como o são para os padres e religiosas. Mas de que maneira um leigo, que vive nesta correria da cidade grande, poderá encontrar todo dia o espaço, tempo, energia, meios e modos necessários e adequados para ler a sua Bíblia, orar, e agir em comunidade eclesial? Este é um problema constante e difícil de resolver para a maioria dos leigos, e poucos encontram soluções práticas e satisfatórias. A maioria de nós precisa de alguma ajuda, orientação e estímulo pastoral para conseguir resolver tal problema, só que não recebe este tipo de ajuda na sua Igreja. Pois quem me ajudou a resolver este "probleminha típico de leigo desnorteado" foi um pastor protestante que vivia e trabalhava como um leigo qualquer e que também encontrou no início muita dificuldade em "arranjar tempo" para ler a Bíblia. E a solução que este pastor "leigo" encontrou para si mesmo, foi a seguinte: decidiu não tomar o café da manhã sem antes ter lido a Bíblia. Para isso precisava levantar-se mais cedo. Achei isto um exagero, mas resolvi experimentar essa solução à minha moda: enquanto tomava o meu café da manhã, eu lia a Bíblia. Após uma semana o hábito estava adquirido. Veja que coisa simples e óbvia! Associar a leitura da Bíblia a uma ação ou situação já habitual em nossa vida. Mas enquanto uma outra pessoa (que passou pelo mesmo problema) não me incentivou e me deu esta idéia, eu sozinho não encontrava nenhuma solução que funcionasse. Mas este é apenas um daqueles "pequenos" problemas que nós leigos temos de resolver sozinhos quando tentamos começar a ler e a conhecer a Bíblia. Há outros problemas ainda, para os quais eu também demorei muitos anos até encontrar por acaso uma solução prática. Cito como exemplo dois problemas básicos que tive de resolver: (1) Que tradução da Bíblia ler? (2) Por onde começar e continuar a leitura? Isto pode parecer óbvio para os pastores e religiosos, mas para um católico leigo no assunto pode ser (e costuma ser) um longo caminho de buscas e tentativas a percorrer sozinho e no escuro.

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Muitos leigos desistem de ler a Bíblia porque não entendem nada do que ela diz. Era este o meu caso: lia, relia, mas parecia que o texto sempre me falava numa língua estrangeira. E de fato, a maioria das edições da Bíblia não estão em português moderno, mas num português anterior a Camões. E eu só comecei a entender a Sagrada Escritura e a lê-la com gosto e fluência normal, no dia em que "descobri" por acaso a Edição Pastoral da Paulus (a melhor tradução e revisão literária que encontrei até hoje para o leitor comum). Em minha total ignorância, eu achava que todas as Bíblias eram do mesmo jeito: hieróglifos escritos e traduzidos em linguagem arcaica e misteriosa, cheias de construções rebuscadas e de palavras raras e desconhecidas. Depois que eu conheci esta Edição Pastoral, não entendo por que razão as demais traduções ainda teimam em falar nas segundas pessoas do singular e plural (tendes, crede, virdes, rides, perscrutais...), quando nenhum escritor moderno da língua portuguesa utiliza estas formas de linguagem! Elas simplesmente não fazem parte da nossa língua portuguesa, pois ninguém as utiliza (exceto estas traduções da Bíblia). Além destes problemas de tradução e de linguagem, muitos leigos também desistem de ler a Bíblia porque não sabem por onde começar nem como continuar. Quando um leigo resolve ler a Bíblia, ele faz como sempre fez com todo livro que lê: abre na primeira página e começa a ler do princípio até o fim. É o que vejo muita gente fazendo (e logo desistindo). E foi também o que eu fiz. Abri a Bíblia na primeira página e comecei a ler. No começo ainda agüentei firme, mas quando o texto começou a falar de rituais, guerras e de genealogias sem fim, eu desisti de ler desta maneira. Pois tinha que ler mais de 1.200 páginas até chegar no Evangelho! Resolvi tentar ler de outro modo. E fiquei tentando, ora de um jeito, ora de outro, mas nenhum funcionava. Tentei seguir um roteiro de leitura proposto num livro que encontrei por acaso, mas não conseguia ir adiante. Era muito chato. Até que um dia vi alguém usando aquele livreto do Ano Litúrgico, com as leituras diárias indicadas, e resolvi experimentar este caminho. Foi a solução! A Bíblia começou a fazer sentido, eu ia conhecendo todos os principais textos e livros, e não demorava mais do que dez ou quinze minutos para ler. Infelizmente, demorei anos de buscas e tentativas até descobrir este tesouro que é simplesmente seguir a leitura litúrgica da nossa Igreja Católica. É como diz o ditado: "Em casa de ferreiro o espeto é de pau." Veja em que labirintos tolos e desnecessários se perdem os leigos católicos quando tentam ler a Bíblia! Este tipo de orientação, esclarecimento e estímulo, que pode parecer coisa absurda ao clero, na verdade constitui o tipo de ajuda de que mais precisa o leigo e que menos lhe é dado. Talvez seja por isso que nós católicos leigos não temos ainda o hábito de ler a Bíblia. Mas isto pode ser facilmente remediado: basta investigar as ignorâncias e dificuldades "práticas" do leigo nesta área, ver como fazem os protestantes e evangélicos para motivar os seus fiéis a adquirirem o hábito salutar de lerem a Bíblia, e abrir diante do leigo todos os tesouros da Igreja Católica que nós não vemos nem conhecemos, embora estejam todos debaixo do nosso nariz. E para mim, o maior tesouro que encontrei nesta área foi a Edição Pastoral da Bíblia Sagrada e o livreto barato do Ano Litúrgico. Agora, só não leio a Bíblia por minha culpa, preguiça e má vontade. Porém, há muito leigo que não lê nem conhece a Sagrada Escritura porque não recebe nenhuma orientação e estímulo adequado para conseguir fazê-lo. Esta seria uma das tarefas da pastoral dos condomínios. Logo nos primeiros encontros de formação, propor aos membros dos núcleos missionários uma conversa informal sobre este assunto: Quem tem uma Bíblia? Você costuma ler? Com que freqüência e de que modo lê? Como é a sua tradução e linguagem? É fácil ou difícil de entender? Por que os cristãos lêem a Bíblia? Você acha que isto é necessário? Por que?

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E depois desta conversa introdutória, propor que cada um experimente, durante um mês, ler a sua Bíblia todos os dias seguindo as indicações de leitura do Ano Litúrgico. E depois de um mês dessa experiência, o núcleo volta a conversar sobre o assunto. Pronto: a orientação e o estímulo pastoral já foram dados. E de vez em quando o núcleo poderia voltar a conversar um pouco sobre o mesmo assunto, para que este hábito seja adquirido, conservado e aperfeiçoado. Não será grande coisa, mas já é muito e melhor do que nada. E deste modo, conhecendo melhor a Sagrada Escritura através da sua leitura pessoal e diária, os membros do núcleo poderão examinar "os métodos e frutos de sua atividade apostólica e comparar o seu modo de vida quotidiano com o Evangelho" (AA, 30). E sem necessidade de nenhuma outra providência especial, a Palavra de Deus estará sempre presente iluminando e orientando as conversas e as atividades do núcleo, porque já estará presente e atuante na mente e no coração de cada um de seus membros, graças ao hábito da leitura pessoal e diária da Bíblia, em sintonia com a Igreja. Deste modo o núcleo não se transforma em círculo bíblico, nem ignora as Escrituras. Este é o ponto de equilíbrio ideal para os leigos agirem e testemunharem o amor de Jesus nos seus condomínios. Mas para isso, é preciso que os leigos "conheçam" Jesus. E de que modo nós conhecemos Jesus?

1.3. Leitura do Evangelho Todos nós conhecemos Jesus através do Evangelho (segundo Mateus, Marcos, Lucas e João) e demais textos do Novo Testamento. Mas sobretudo através dos evangelhos. Daí a palavra "evangelizar", que significa literalmente dar a conhecer o Evangelho de Jesus. Há outro modo melhor para se conhecer Jesus? Não há. Portanto, a principal coisa que se deveria fazer na formação cristã do leigo é fazer com que o leigo conheça o Evangelho. E isto se faz simplesmente lendo os evangelhos, que narram a vida de Jesus. Pois conhecer uma Pessoa através da sua vida, até uma criança é capaz de fazer. Foi assim que eu conheci Jesus quando criança: lendo o texto bíblico (devidamente selecionado, ordenado e adaptado à linguagem infantil) nas aulas de religião que tive no curso primário num colégio católico. E graças a Deus que isto aconteceu, porque depois ninguém nunca mais me fez ler o Evangelho. Este é o pior defeito da evangelização e da catequese católica: o sujeito passa por todo tipo de atividade formativa, sem que jamais lhe peçam para ler e conhecer o Evangelho inteiro do começo ao fim, de modo que a maioria dos católicos passa pela vida sem conhecer direito o Evangelho, do qual só conhece uns pedaços e ainda por cima embaralhados. Isto é um fato que qualquer leigo pode testemunhar. E para que esta crítica não fique no abstrato, cito um caso concreto dentre os muitos que presenciei. O caso foi o seguinte. Conforme o costume da época, fui crismado na infância sem nenhuma preparação especial. Então, já na meia idade, eu participei de uma catequese crismal durante um ano numa paróquia em São Paulo. Os encontros eram domingo à noite, após a missa. E toda semana pediam-nos para ler e preparar em casa um capítulo inteiro de um livro muito bom chamado "Catequese Crismal". De modo que ao final do ano, todos nós tínhamos lido e conhecido este livro inteiro, do começo ao fim. Esta catequese foi excelente sob todos os aspectos. Exceto neste ponto essencial: após um ano de intensa catequese (com encontros semanais, leituras, dinâmicas, retiros, orações, palestras, amizades, festas, etc.), depois de passarmos por tudo isso, todos nós ainda tínhamos, e continuávamos tendo, apenas um conhecimento superficial, fragmentário, desordenado e absurdamente incompleto do próprio

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Evangelho de Jesus. E por que isto aconteceu? Bem, isto aconteceu porque em vez de lermos o Evangelho, tivemos que ler o livro de catequese! Diante desta opção pedagógica, eu pergunto o seguinte: será que ler e conhecer um livro de catequese tem mais valor e evangeliza melhor do que ler e conhecer o Evangelho? Será que o autor deste livro de catequese é mais inspirado ou melhor apóstolo e testemunha de Jesus do que Mateus, Marcos, Lucas e João? Vejo aí uma curiosa inversão de valores e de prioridades pedagógicas. Felizmente que isto é fácil de se corrigir. Basta adotar também na catequese o livro do Evangelho, e pedir ao sujeito que leia (apenas "leia") em casa dois capítulos do Evangelho a cada semana, o que não passa de três ou quatro páginas de texto. E no final do ano e da catequese, todo mundo terá pelo menos "lido" uma vez na vida (e assim conhecido) os quatro evangelhos inteiros, do começo ao fim, como convém a "uma narração bem ordenada" (Lc 1,3). Isto é o mínimo necessário para alguém poder conhecer ou dar a conhecer Jesus. Por isso, antes de anunciar nossas próprias palavras evangelizadoras e catequéticas, convém anunciar primeiro a Palavra de Deus, que está escrita nos Evangelhos. É uma questão de bom senso pedagógico e de humildade apostólica. Eis o que diz o Catecismo: "A Palavra de Deus, que é a força de Deus para a salvação de todo crente, é apresentada e manifesta o seu vigor de modo eminente nos escritos do Novo Testamento. Estes escritos fornecem-nos a verdade definitiva da Revelação divina. Seu objeto central é Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado, seus atos, ensinamentos, paixão e glorificação, assim como os inícios da sua Igreja sob a ação do Espírito Santo. Os Evangelhos são o coração de todas as Escrituras, uma vez que constituem o principal testemunho sobre a vida e a doutrina do Verbo encarnado, nosso Salvador." (Cf. DV 17, 20 e 18; CIC 124-125). "Não existe nenhuma doutrina que seja melhor, mais preciosa e mais esplêndida do que o texto do Evangelho. Vede e retende o que nosso Senhor e Mestre, Cristo, ensinou com as suas palavras e realizou com os seus atos." (Sta. Cesária a Jovem; CIC 126). "É acima de tudo o Evangelho que me ocupa durante as minhas orações; nele encontro tudo o que é necessário para a minha pobre alma. Descubro nele sempre novas luzes, sentidos escondidos e misteriosos." (Sta. Teresinha do Menino Jesus; CIC 126). "A Igreja exorta com veemência e de modo peculiar todos os fiéis cristãos... a que, pela freqüente leitura das divinas Escrituras, aprendam 'a eminente ciência de Jesus Cristo' (Fl 3,8). 'Porquanto ignorar as Escrituras é ignorar Cristo' (S. Jerônimo)." (CIC 133).

1.4. Leitura dos demais textos eclesiásticos. Outro tesouro que precisa ser transmitido aos leigos como herança de Cristo, são os textos que conservam a memória dos Santos: sua vida, suas ações e suas palavras. Pois não há nada melhor para alimentar a fé cristã do que o testemunho pessoal de todos os Santos. Isto nos ensina o Papa Bento XVI: "Os santos são a verdadeira interpretação da Sagrada Escritura. Na experiência da vida, os santos verificaram a verdade do Evangelho; assim, eles introduzem-nos no conhecimento e na compreensão do Evangelho." (Audiência Geral, 19 de agosto de 2009). Se nos momentos de grande provação eu não tivesse sido instruído diretamente por eles (por seu exemplo e por suas próprias palavras), será que eu teria permanecido na fé cristã e católica? Às vezes, eu temo que não. A luz de Cristo (como a do sol) é

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demasiado forte para nossos olhos doentes poderem ver e suportar, mas o seu reflexo na pessoa dos Santos é suportável, e por meio destes reflexos nós vamos conhecendo o tamanho e a força da fonte, que é Cristo. Todas as vezes que a minha pouca fé foi posta à prova, era sempre a "memória" de algum ato ou palavra santa de um cristão que impedia a minha fé de errar ou de morrer. E assim continua sendo. Infelizmente, a maioria dos leigos só conhece dos Santos a sua imagem ou retrato num vitral ou parede. E muitas vezes apenas a visão destas imagens basta para levantar um cristão caído, pois elas comunicam sem palavras toda a memória da Igreja. Porém, confiar a transmissão de toda a memória da Igreja apenas a estas imagens silenciosas (e tão eloqüentes), é um grande risco e em muitos casos um grande perigo. Pois é muito diferente alguém ver diretamente um imenso tesouro aberto ou ver apenas um pequeno retrato ou fotografia deste tesouro fechado. Ora, a vida, o exemplo e as palavras dos nossos Santos, esse tesouro da Igreja, pode ser visto e conhecido diretamente por nós através dos textos que conservam sua memória e nos comunicam o Espírito das suas ações e palavras. Como promover o acesso dos leigos a todos estes textos? Por nunca terem visto diretamente estes tesouros de espiritualidade, muita gente imagina que eles não existem na Igreja Católica e então partem para outros lugares em busca da pérola escondida, e ficam encantados quando encontram por aí algum pedregulho espiritual lustroso. E se afastam da Igreja e até de Cristo só por causa destas pedrinhas que encontraram. Isto acontece o tempo todo. E sei bem como é, porque isto também aconteceu comigo. Além de serem em sua maioria completamente ignorados e inacessíveis para o povo, os poucos textos acessíveis que existem deixam de sê-lo por causa do preço das publicações e da pouca divulgação que recebem. Quem quiser encontrá-los e com eles se alimentar, precisa procurar como agulha num palheiro e ainda por cima precisa ter os meios de adquiri-los. Quantos de nós temos condições de fazer isto? Não existe nas paróquias e dioceses nenhuma Biblioteca Cristã para servir o povo. Isto não seria muito difícil de se fazer. E hoje em dia nós temos a Internet, onde podemos colocar à disposição de todos, e de graça, todo o acervo de obras que constitui a memória e a tradição escrita da Igreja. Por que não fazê-lo? Se cada diocese do Brasil, congregação religiosa, movimento ou pastoral, se comprometer a digitalizar um único texto por ano, em pouco tempo nós teremos publicado na Internet os maiores tesouros da espiritualidade cristã e católica. Isto ajudaria muito na transmissão da fé e na formação espiritual do povo, que tem grande devoção pelos Santos mas que não conhece seus atos nem suas palavras. Enquanto não fizermos isto, o povo continuará lendo diariamente e conhecendo apenas a vida, os atos e as palavras dos artistas de novela, dos astros do esporte, dos políticos, dos criminosos, dos ricos e dos famosos. Esta é a formação espiritual a que o povo tem fácil acesso na Internet. Enquanto isso, as fontes escritas da nossa cultura e tradição cristã continuam inacessíveis para quase todo mundo. Quantos leigos já puderam algum dia ler as próprias palavras e os atos de São Vicente de Paulo? Ou de São Francisco de Assis? Pergunte para os leigos que lêem de tudo (professores e estudantes universitários, por exemplo) se eles algum dia leram alguma obra de Santo Afonso Maria de Ligório? Pergunte a algum cristão leigo, estudante de literatura, se ele já leu algum destes Santos escritores citados no Catecismo, como Sto. Agostinho, S. Bento, Sta. Catarina de Sena, S. Domingos, S. Francisco de Sales, Sto. Inácio de Loyola, S. João da Cruz, Sta. Teresa de Jesus, Sta. Teresinha de Jesus, Sto. Tomás de Aquino, os Padres e Doutores da Igreja, os Padres do Deserto, A Didaché, A Imitação de Cristo, e tantos outros, inclusive os santos e mártires do nosso tempo. E pergunte também onde é que eles podem encontrar todas estas obras

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reunidas, disponíveis e de livre acesso. E ouça a resposta. Ou se preferir, passeie pelas bancas de jornal e de revista, pelas livrarias e bibliotecas públicas e particulares, pela Internet, e veja o que o povo encontra para ler fora da Igreja. Por outro lado, se olharmos para dentro da Igreja, o que vemos acontecer? Como estamos nós, católicos, agindo neste ponto? A verdade é esta: em qualquer lugar da Igreja, e por diversos meios (rádio, TV, Internet, revistas, jornais, livros, púlpitos, palcos, etc.), há sempre alguém falando e fazendo o povo ouvir suas próprias palavras e contemplar sua própria pessoa e exemplo de vida, enquanto que os próprios Santos já canonizados nos altares permanecem calados e escondidos. Não porque eles sejam mudos ou preguiçosos, mas somente porque nós não os deixamos nunca falar e ensinar ao povo. Talvez nem meio por cento do que se comunica ao povo na Igreja é reservado aos Santos. Será que as nossas palavras seriam mais ungidas e eficazes do que a palavra deles? Será que o nosso exemplo de vida converte mais gente do que o exemplo deles? É para se pensar nisto. Felizmente que há muitos santos e santas vivendo e atuando no meio de nós. Porém, considerando o que aconteceu com Sto. Inácio de Loyola e com tantos outros cristãos, acredito que a evangelização católica produzirá frutos bem mais abundantes e saudáveis no dia em que colocarmos todos os Santos adiante de nós, na linha de frente do combate, pois eles já se mostraram mais que vencedores nesta batalha. Pergunte a você mesmo: como andaria hoje a sua fé e a sua vida cristã se você nunca tivesse lido, nem ouvido, nem conhecido nenhum Ato ou Palavra de nenhum Santo? Dá para imaginar isto? Pois é. Então façamos o povo ver também estes atos e ouvir estas palavras dos Santos que tanto nos ajudaram, senão o povo ficará sempre olhando para nós e ouvindo apenas as nossas palavras. Como uma pastoral dos condomínios poderia incentivar os leigos a conhecerem melhor os nossos Santos? Nesta matéria, como sabemos, cada um tem suas devoções e preferências particulares que não abre mão de jeito nenhum. Então, para que os núcleos missionários não fiquem sem nenhum padroeiro, e para que ninguém veja seu Santo preferido ser rebaixado por outros, pode-se propor o seguinte: quando um núcleo missionário se formar, ele deverá escolher não apenas um único padroeiro, mas uma equipe de Santos padroeiros para auxiliar, ensinar e iluminar a todos. Deste modo todo mundo pode eleger o Santo ou a Santa que quiser e achar melhor, e todos ficam felizes e ainda saem lucrando com isto, pois é melhor ter uma comunidade de Santos padroeiros nos ajudando do que ter apenas um único Santinho isolado e sozinho. E depois que o núcleo tiver escolhido o seu time preferido de Santos, cada membro do núcleo teria o tempo que lhe for necessário para pesquisar livremente sobre a vida do seu Santo escolhido, descobrir o que ele fez, falou e escreveu, e coletar todo material que puder conseguir sobre ele. E de vez em quando o núcleo voltaria a conversar sobre o assunto para ver em que pé estão as pesquisas e descobertas de cada um. Pronto: a orientação e estímulo pastoral para que os leigos conheçam melhor todos os Santos já estará dada. E não será preciso nenhuma outra providência especial para que os leigos se ajudem uns aos outros e divulguem entre si os resultados de sua pesquisa. Isto, todos farão naturalmente, com muito gosto, amor e devoção. Mas é preciso que o resto da Igreja também ajude os leigos, tornando acessíveis e disponíveis todas as obras, textos e informações que tiverem para dar. Um site na Internet seria o espaço ideal para se fazer isto. E se os coordenadores da pastoral perceberem que são sempre os mesmos Santos os escolhidos por toda parte, após algum tempo podem propor aos núcleos que ampliem o número de padroeiros, e que continuem a fazer o mesmo trabalho de pesquisa e coleta de material. E assim sucessivamente, até que a comunhão dos santos no céu fique bem conhecida na terra.

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Com o tempo, isto poderia (e deveria) resultar em excelentes Bibliotecas Cristãs por toda parte e também numa grande Biblioteca Digital Católica, completa e de graça, aberta e acessível a todo mundo na Internet. Imagine que facilidade seria para o povo saber que há um site católico na Internet onde é possível encontrar todas as obras dos santos e da tradição escrita da Igreja, reunidas e publicadas com o devido cuidado editorial e técnico. Isto não é impossível nem muito difícil de se fazer, pois sites deste tipo já existem em outros países e em língua estrangeira, mas não no Brasil nem em língua portuguesa. De modo que os grandes tesouros escritos da Igreja continuam fechados, lacrados, escondidos e inacessíveis ao povo brasileiro. Mas além dos atos e palavras dos Santos, o leigo precisa também conhecer as orientações e instruções do Magistério da Igreja, a começar pelo Catecismo. Do mesmo modo que não se concebe um professor ou estudante de português que não tenha em casa um bom dicionário e uma boa gramática, não se concebe um "cristão leigo missionário" que não tenha em casa pelo menos o Catecismo da Igreja Católica para poder instruir-se melhor e também consultar sempre que tiver alguma dúvida sobre a doutrina da fé. Além da Bíblia, acho prudente recomendar a cada núcleo missionário que adquira pelo menos um exemplar do Catecismo. Melhor seria se cada pessoa tivesse o seu exemplar, para ler e consultar à vontade quando e onde quiser. Com a ajuda dos Santos e com um Catecismo na mão, é impossível os leigos se perderem pelo caminho. Tendo acesso à espiritualidade e à doutrina dos Santos e do Magistério, os leigos naturalmente buscarão estas fontes e beberão desta água sempre que tiverem sede. Deste modo o núcleo não se transforma em academia teológica, nem ignora a espiritualidade e a doutrina cristã. Este é o ponto de equilíbrio ideal para os leigos agirem e testemunharem o amor de Jesus nos seus condomínios. Mas apenas a leitura de textos ou o conhecimento literário de Jesus e de seus Santos não basta para isso. É preciso também ficar "unido" a Jesus por meio da oração: "Fiquem unidos a mim, e eu ficarei unido a vocês. Quem fica unido a mim, e eu a ele, dará muito fruto, porque sem mim vocês não podem fazer nada." (Jo 15,4-5). * * * Mas antes de tratar da prática da oração nos condomínios, talvez seja preciso abrir aqui um parêntesis para tratar deste problema da comunicação católica que é o povo "não ter acesso" às fontes escritas da nossa Tradição, pois parece que este "problema" não está sendo devidamente considerado na Igreja, inclusive por pastores e especialistas em comunicação. No entanto, sabemos que o grande diferencial da Católica em relação às outras Igrejas cristãs é exatamente a continuidade e fidelidade na transmissão da fé apostólica que a Sagrada Tradição garante e realiza. Daí ser um grande problema para a evangelização católica o fato do povo "não ter acesso" às fontes escritas desta Tradição. Pois sem poder conhecê-la, como as pessoas poderão diferenciar em profundidade a Católica das outras tradições cristãs ou religiosas? Tudo fica parecendo igual ou arbitrário, sem nenhuma razão ou fundamento histórico. E por isso as pessoas transitam de uma Igreja à outra, e até de uma religião à outra, tendo por base apenas aquilo que elas próprias podem ver, ouvir, sentir ou experimentar diretamente (e superficialmente) em uma e outra comunidade local de Igreja, culto, ou religião. Falo isto por experiência própria, mas também alheia. Pois é isto o que eu percebo ao conversar com parentes e amigos batizados na Católica e que hoje participam de outras Igrejas ou até mudaram de religião: eles nunca tiveram acesso à Tradição escrita da Igreja, nem sabem que ela

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existe. Por isso não a conhecem nem poderiam conhecê-la. Isto é um sério problema na "transmissão" da fé e da espiritualidade cristã, pois nenhuma pregação, catequese ou curso de teologia é capaz de substituir e dispensar o contato direto com o ensino dos Santos, Padres, Doutores e Magistério da Igreja. E a providência mais prática e simples para resolver este problema é o seguinte:

1.5. A Tradição escrita da Igreja na Internet Precisamos refletir melhor sobre o uso que podemos fazer da Internet para divulgar todo o acervo de obras que constitui a memória e a tradição escrita da Igreja, este patrimônio cultural único produzido ao longo de dois mil anos de história eclesial. Não há na cultura ocidental nada comparável a este imenso acervo de obras, seja pelo seu volume, seja sobretudo pela sua qualidade e inestimável valor espiritual, doutrinário, literário e histórico. Infelizmente, esta tradição escrita da Igreja Católica não será transmitida às futuras gerações caso não seja digitalizada, reunida e publicada num site na Internet. Pois as novas gerações estudam e trabalham com um computador conectado à Internet, e só recorrem a livros e materiais impressos quando a isto são obrigados. Até os trabalhos escolares que antigamente tínhamos que escrever no papel, muitos professores universitários exigem hoje que sejam digitalizados e enviados por e-mail. Habituadas a lerem o mundo através da tela de um computador, as pessoas já estão começando a esperar que a informação que procuram esteja disponível online. Estudos feitos nesta área mostram que os estudantes, e muitos profissionais, usam a Internet como "primeiro" recurso para obter informação, e em mais de 40 por cento dos casos como seu "único" recurso! A tese de que "se não está na Internet, é como se não existisse", já está se tornando uma verdade de fato. Por isso, a tradição escrita que não for digitalizada e publicada na Internet será simplesmente ignorada pelas novas gerações e não poderá assim influenciar suas criações culturais, e tenderá com o tempo a desaparecer da nossa cultura. Isto já aconteceu com outras tradições culturais, que se perderam ou se reduziram a "peças de museu" por falta de transmissão. E esta tendência já se faz sentir com relação à tradição escrita da Igreja Católica, cujo acesso ainda continua limitado a alguns membros privilegiados da própria Igreja. Pois nem o clero comum tem hoje acesso ao conjunto destas obras. Imagine então os leigos e o resto da humanidade! Por que não usamos a Internet para ampliar e "universalizar" este acesso? O que nos impede de fazer isto? Como sabemos, a Igreja Católica ao longo de sua história tem sido extremamente responsável e competente na conservação e transmissão de suas obras escritas. E sempre o fez usando os meios técnicos disponíveis em cada época. Na Idade Média, esta tradição foi conservada e transmitida graças ao trabalho de milhares de monges copistas que passavam um ano inteiro copiando uma única obra manuscrita. Na Idade Moderna, com o advento da imprensa, esta mesma tradição foi conservada e transmitida graças ao trabalho de centenas de editores católicos que faziam imprimir e divulgar estas obras (Migne, por exemplo), e quando necessário as traduziam do grego ou latim para as diversas línguas modernas. Porém, na atual Era Pós-Moderna e Digital, este nosso pioneirismo e competência parecem ter desaparecido por completo da nossa Igreja. Por que isto acontece? Por que não estamos hoje usando a tecnologia digital e a Internet para conservar e transmitir este rico acervo de obras? Penso que isto acontece por duas razões: (1) primeiro, porque as atuais lideranças e autoridades eclesiais são todos de uma geração mais velha que não foi formada nem educada com os meios digitais (como ocorre hoje com as jovens gerações); (2) e também porque estas mesmas lideranças e

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autoridades podem ter acesso a estas obras quando quiserem, e além disso podem lê-las no original ou em latim (o que não é o caso do restante da humanidade). Portanto, do ponto de vista destas pessoas privilegiadas, realmente não há a menor necessidade de se investir na tradução, digitalização e divulgação destas obras pela Internet. Tal necessidade só existe do ponto de vista dos demais seres humanos, que só poderão ter acesso a estas obras através da Internet e traduzidas em algum idioma moderno. Contudo, nada deveria estar impedindo a Igreja de manifestar também na Era Digital o mesmo interesse e competência que teve no passado em conservar e transmitir sua tradição escrita. Será que não estamos percebendo a rápida mudança cultural que se realiza no mundo inteiro com a transferência em massa das obras impressas para o meio digital? Ou será que não estamos mais interessados em conservar esta tradição e transmiti-la às futuras gerações? Qualquer que seja o caso, esta nossa omissão ou lerdeza digital terá certamente conseqüências culturais e religiosas imprevisíveis e irreversíveis no futuro. Pois o tempo está passando, e as novas gerações (inclusive de seminaristas e noviços) já estão se formando e fazendo suas opções de vida e de trabalho sem terem tido acesso a este rico patrimônio espiritual da nossa Igreja. No entanto, a Internet permite hoje que este acesso seja universal e gratuito! Considere bem isto: universal e gratuito. Há algo mais cristão e católico do que isto? Oferecer de graça, para todo mundo, o que de melhor foi vivido, pensado, falado e realizado na Igreja, e depois foi escrito, preservado e transmitido na Igreja, ao longo de seus dois mil anos de história! Esta ação do Espírito Santo na história da Igreja é uma notícia maravilhosa, e poder conhecê-la e anunciá-la para todo mundo também faz parte da nossa missão. "Vão pelo mundo inteiro e anunciem a Boa Notícia para toda a humanidade." (Mc 16,15). "Vocês receberam de graça, dêem também de graça!" (Mt 10,8). Pois a Internet não serve apenas para publicar nossos próprios artigos e opiniões, dar notícias, enviar e-mails, ou fabricar Tweets e páginas no Facebook. Ela serve também para conservar e transmitir toda a Tradição escrita da Igreja. Mas isto depende, em primeira instância, de uma tomada de decisão por parte dos dirigentes e das lideranças eclesiais. E no caso do Brasil, de uma decisão conjunta da CNBB, CRB, CNP, CND, CNIS e CNLB. É o que nos ensina o Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais no seu documento "Igreja e Internet" (que eu só pude ler e conhecer porque estava na Internet): 1. Sobre a transmissão da Tradição escrita da Igreja por meio da Internet, o documento diz o seguinte: "Contudo, para além e acima disto, existem também alguns benefícios mais ou menos peculiares da Internet. Ela oferece às pessoas um acesso direto e imediato a importantes recursos religiosos e espirituais — grandes bibliotecas, museus e lugares de culto, os documentos do Magistério, os escritos dos Padres e dos Doutores da Igreja, assim como a sabedoria religiosa de todos os tempos. (...) A Igreja pode prestar um importante serviço tanto aos católicos como aos não-católicos mediante a selecção e a transmissão de dados úteis através deste meio de comunicação." (n. 5) "Considerem-se as capacidades positivas da Internet para transmitir informações e ensinamentos religiosos para além de todas as barreiras e fronteiras. Um auditório tão vasto estaria além das imaginações mais ousadas daqueles que anunciaram o Evangelho antes de nós." (n. 4) 2. E sobre o papel que cabe às lideranças eclesiais no processo de decisão pastoral, planejamento e realização nesta matéria, o documento diz o seguinte: "Aos dirigentes da Igreja. As pessoas que ocupam posições de liderança, em todos os setores da Igreja, precisam compreender os mass media, aplicar esta compreensão na elaboração de planos pastorais para as comunicações sociais, juntamente com políticas e programas 108

concretos nesta área, e fazer um uso apropriado dos mass media. Onde for necessário, eles mesmos deveriam receber uma formação no campo das comunicações; com efeito, «a Igreja seria melhor servida, se um maior número de pessoas que ocupam cargos e desempenham funções no nome dela fossem formados em comunicação». Isto é válido tanto para a Internet como para os meios de comunicação mais antigos. Os líderes da Igreja têm o dever de utilizar «o pleno potencial da "era do computador" para servir à vocação humana e transcendente do homem e para dar assim glória ao Pai, de quem vêm todas as coisas boas». Eles devem empregar esta surpreendente tecnologia em inúmeros aspectos da missão da Igreja, explorando ao mesmo tempo as oportunidades para a cooperação ecumênica e inter-religiosa no seu uso." (n. 11) Considerando este ensinamento do Magistério e as características culturais da nossa época, podemos concluir o seguinte: Além do necessário e custoso trabalho para manter nossas imensas bibliotecas católicas funcionando, com seus livros e manuscritos livres de umidade, poeira e cupins, é urgente começar a digitalizar todas estas obras, traduzilas na medida do possível e do necessário, reuni-las e publicá-las num site na Internet, oferecendo a todos uma Biblioteca Digital Católica com qualidade editorial e técnica que corresponda dignamente ao valor de suas obras. Por incrível que pareça, são apenas algumas organizações americanas, sobretudo não católicas, que estão tomando esta iniciativa e levando a sério este trabalho, digitalizando e publicando na Internet as Obras Completas de nossos escritores "católicos", que foram no passado publicados por editores "católicos", e que estão hoje bem guardados e conservados em bibliotecas também "católicas". Enquanto isso, as próprias organizações e lideranças da Igreja Católica pouco (ou nada) fazem neste sentido, sobretudo no Brasil e em língua portuguesa. E se alguém quiser verificar este fato, basta procurar na Internet aquelas obras e autores citados no Catecismo e ver o que encontra (no original ou traduzido, em idiomas estrangeiros ou em português), e ver também quanto tempo perde nesta busca inútil. E se por acaso encontrar alguma coisa nos sites brasileiros ou em língua portuguesa, será graças à iniciativa e amadorismo de alguns indivíduos ou grupos isolados e dispersos que compartilham pela Internet textos digitalizados, geralmente sem nenhum cuidado editorial e de baixíssima qualidade técnica: livros mal escaneados, ou textos mal reproduzidos e cheios de erros de revisão, incompletos, sem indicação da fonte impressa (editor, tradutor, etc.), sem índice e numeração de página, sem as introduções e as notas, com diagramação confusa e pavorosa, etc.; ou então os textos são fragmentados e publicados aos pedaços em dezenas e até centenas de páginas da Web, inviabilizando a leitura e download da obra. Sugiro inclusive que visite, por exemplo, a Biblioteca Digital da Congregação para o Clero14 e avalie com honestidade a sua forma de organização e classificação das obras, o acervo disponível, a forma de apresentação e edição dos textos, e tente também fazer o download de alguma obra e veja o que acontece, pois todas elas são oferecidas para download em arquivos do tipo "Binary file", e não em arquivos de texto normalmente usados no mundo todo para download na Internet, como o PDF etc. Por outro lado, um exemplo de ótima digitalização e publicação de obras "católicas" na Internet é a Biblioteca Digital que está no site americano e não católico "Internet Archive", uma organização sem fins lucrativos fundada em 1996 por Brewster Kahle (São Francisco, Califórnia), cujo objetivo é preservar o conhecimento humano e disponibilizá-lo a todos pela Internet. Esta imensa Biblioteca digital (não católica) já oferece ao público mais de 6 milhões de livros digitalizados em parceria com um 14

Link - http://www.clerus.va/content/clerus/pt/biblioteca.html. Acesso em 5 de agosto de 2014.

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impressionante número de bibliotecas e editoras do mundo todo (inclusive em parceria com algumas bibliotecas e universidades católicas). A maioria destas obras está em Inglês (mais de 4 milhões), um pouco em Francês (300 mil livros), Alemão (200 mil), Espanhol (100 mil), e demais línguas modernas ou clássicas (Grego, Latim, etc.). Em Português há atualmente apenas 16 mil textos, na maioria obras sem nenhuma relevância cultural, escritas ou digitalizadas por usuários da Internet que fazem por iniciativa própria o upload destes textos, pois a construção desta Biblioteca está aberta à colaboração da comunidade humana inteira. Aos interessados neste assunto, peço que visitem o site "Internet Archive" e avaliem a qualidade técnica de seus livros digitais (muito melhor que os do Google). Façam, por exemplo, o download PDF do primeiro volume das Obras Completas de São Vicente de Paulo (14 vol., Correspondance, Entretiens, Documents), publicadas e anotadas por Pierre Coste (padre da 'Congrégation de la Mission'), Paris 1920-1925. O link da página para este download é: http://archive.org/details/correspondanceen01vinc. Trata-se de um arquivo tipo PDF, que reproduz na tela do computador a "imagem" do próprio livro impresso digitalizado em sua totalidade, de modo que o leitor tem diante de si exatamente o mesmo livro que está na Biblioteca da Universidade de Toronto, e que um cidadão brasileiro jamais poderia ler ou consultar se não estivesse disponível na Internet. Esta técnica de digitalização de livros é a melhor que há do ponto de vista editorial, pois a reprodução do livro "por imagem" dispensa qualquer trabalho posterior de revisão e edição de texto, permitindo que se faça com perfeição e rapidez uma cópia digital do livro impresso, que poderá então ser disponibilizado na Internet e acessado, baixado, consultado, lido, estudado, transcrito, citado, impresso, traduzido, e passado adiante por qualquer usuário da Internet em qualquer lugar do mundo! Desconheço os detalhes desta técnica (o tipo de scanner e o programa utilizados), mas além de produzir uma imagem fotográfica perfeita da página impressa, o texto é também editável (OCR), permitindo que o leitor "selecione, copie, e cole" o texto num arquivo Word ou bloco de notas, podendo assim citá-lo num trabalho ou utilizá-lo como achar melhor. De todos os livros escaneados que se encontram na Internet, esta é a técnica que melhor satisfaz às necessidades do leitor. Só por curiosidade, veja como é simples o scanner "Scribe" usado pelo Internet Archive para escanear livros, e como é fácil o trabalho do copista digital se comparado ao do copista medieval:

Scanner

Copista digital

O único defeito do "Internet Archive" (e de outras grandes Bibliotecas digitais) é não oferecer ao usuário uma visão geral e completa do seu acervo por meio de um simples catálogo ou lista metódica dos autores e de suas obras classificadas com critérios racionais e didáticos, de modo que o leitor é obrigado a ficar fazendo buscas aleatórias e intermináveis num labirinto imenso de milhões de obras só para saber o que lá existe ou

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para encontrar o que procura. Aliás, este é o grande problema da Internet: a desorientação dos usuários diante de tanta informação disponível. E esta seria a primeira função de uma boa Biblioteca Digital Católica: orientar pastoralmente as pessoas no conhecimento de nossa tradição escrita. Pois uma parte desta tradição já está disponível na Internet, no idioma original ou traduzida em algum idioma moderno, porém está toda dispersa e perdida em milhões de sites, páginas e links da Web, ou então não possui a qualidade técnica e editorial necessária. Por isso, um primeiro passo na construção de uma Biblioteca Digital Católica seria elaborar um catálogo racional e ordenado dos autores e obras que constituem esta tradição, publicar este catálogo na Internet, e convocar o povo católico (bibliotecários, editores, pesquisadores, teólogos, historiadores, professores, estudantes, e demais usuários da Internet) para que cooperem na construção desta Biblioteca, começando por fazer um levantamento bibliográfico das publicações "impressas" que existem (no idioma original ou traduzidas) e das respectivas publicações "digitais" que já se encontram disponíveis na Internet, e enviando estas informações para o site da Biblioteca poder conferi-las e publicá-las junto ao catálogo dos autores e obras, que além de incluir os Santos, Padres, Doutores e Magistério da Igreja, deveria incluir também as diversas traduções e comentários da Bíblia, bem como orações e liturgias, dicionários e enciclopédias, e os principais historiadores e teólogos de todos os tempos, tanto nas línguas originais como nas diversas traduções para as línguas modernas mais conhecidas, especialmente o nosso Português. Só esta primeira e simples providência de "reunir" num único site todas estas informações bibliográficas e respectivos endereços eletrônicos, só isto já ajudaria as pessoas no conhecimento de nossa tradição escrita, permitindo que elas localizem na Internet os autores e obras já disponíveis, e motivando-as para levar adiante este serviço. Ao menos isto nós poderíamos desde já começar a fazer, dando assim os primeiros passos na construção de uma boa Biblioteca Digital Católica, providência necessária e urgente para a Igreja promover a formação cristã das pessoas e orientá-las neste labirinto caótico da Internet. Pois é preocupante ver os jovens da própria família lendo todo tipo de literatura filosófica, ética, espiritual ou científica que encontra pela Internet, e constatar que estão sendo influenciados e confundidos por obras muito bem escritas e divulgadas, porém tendenciosas e falaciosas, sem a menor coerência lógica e sem a devida consideração aos fatos históricos e naturais, sobretudo no que diz respeito ao cristianismo e à Igreja, à natureza humana e à Lei (moral) Natural. Enquanto isso, aquelas obras da nossa tradição cristã e católica que poderiam interessar e influenciar o espírito de muitos jovens, estas continuam desconhecidas, escondidas e inacessíveis para quase todo mundo. Cabe a nós providenciar o acesso eletrônico ao conjunto destas obras, cujos autores souberam (melhor do que nós) viver, conservar e transmitir a fé e o Evangelho de Jesus. Ou será que nos julgamos melhores do que todos estes Santos, Mártires, Pastores, Padres e Doutores da Igreja? É para se pensar nisto. E se for o caso, pedir a Deus que nos conceda o dom da "humildade apostólica". Pois a humanidade tem o sagrado direito de conhecer estas testemunhas e de ouvir suas próprias palavras. (Fim do parêntesis sobre a Tradição escrita da Igreja na Internet). * * * Dito isto, volto a tratar da prática da oração nos condomínios. Pois apenas a leitura de textos ou o conhecimento literário de Jesus e de seus Santos não basta para os leigos poderem viver, agir e testemunhar o amor de Jesus nos seus condomínios. É preciso

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também que fiquem "unidos" a Jesus por meio da oração: "Fiquem unidos a mim, e eu ficarei unido a vocês. Quem fica unido a mim, e eu a ele, dará muito fruto, porque sem mim vocês não podem fazer nada." (Jo 15,4-5).

1.6. Oração. Quantos cristãos leigos sabem orar? Quantos fazem regularmente o que Jesus ensinou: "Quando rezar, entre no seu quarto, feche a porta, e reze ao seu Pai ocultamente" (Mt 6,6)? Quantos se lembram de recorrer à oração quando necessário? Quantos já possuem o hábito da oração diária? E o hábito da oração contínua? E ainda, o que é fundamental para uma pastoral missionária nos condomínios: Quantos fiéis leigos oram pelas pessoas e situações da sua comunidade condominial? Eu nunca fiz esta pesquisa, mas pelo que vejo em mim e fora de mim, não devem ser muitos os leigos que fazem isto. Muitos de nós oramos pelas nossas situações pessoais e familiares, mas quantos de nós nos lembramos, por exemplo, de orar pelo bom sucesso de uma Assembléia Geral do nosso condomínio? Pela paz e união entre os moradores do nosso prédio? Ou pelo fim da corrupção e injustiça que nós mesmos promovemos por omissão e participação? Enfim, quantos de nós incluímos em nossas orações diárias a nossa comunidade condominial com todas as suas "alegrias e esperanças, tristezas e angústias"? Se toda a formação missionária dos leigos nos condomínios consiste em aprender a amar o seu condomínio (pois é este o mandamento de Cristo), então a base de tudo será aprender a orar pelo seu condomínio, porque "o amor é o fruto da oração fundada na humildade" (Sta. Teresa de Jesus). Se a missão do cristão é amar (ao próximo como a si mesmo), a missão do cristão é sempre orar (pelo próximo como por si mesmo), pois sem oração ninguém aprende nem consegue amar. E sem amor não há missão nem salvação em Cristo. "Digo e repito e repetirei sempre, enquanto tiver a vida, que toda a nossa salvação está na oração" (S. Afonso Maria de Ligório). Infelizmente, ainda continua atualíssima esta queixa do Santo: "E o que mais me causa dor é ver que os pregadores e confessores tão pouco se lembram de recomendar a oração a seus ouvintes e penitentes! Mesmo os livros espirituais, que hoje em dia andam nas mãos dos fiéis, não tratam suficientemente deste assunto, quando é certo que todos os pregadores e confessores e todos os livros não deveriam incutir nada com mais empenho e afinco do que a necessidade de rezar. Ensinam às almas tantos meios de se conservarem na graça de Deus, como fugir das ocasiões, freqüentar os sacramentos, resistir às tentações, ouvir a Palavra de Deus, meditar nas verdades eternas e outros tantos meios, todos eles, certamente, de muita utilidade. Digo, porém: de que servem as pregações, as meditações e todos os outros meios aconselhados pelos mestres da vida espiritual, se faltar oração, quando é certo que o Senhor diz não conceder suas graças, senão a quem pedir? 'Pedi e recebereis' (Mt 7,7)." (S. Afonso de Ligório, A Oração.) Como uma Pastoral dos Condomínios poderia orientar e estimular os leigos para que estes aprendam a orar? Para que orem sempre? E para que orem não só para si mas também uns pelos outros? E também para que orem por toda a comunidade de pessoas de seu condomínio? E como fazer isto sem transformar os núcleos missionários em grupos de oração sem ação nem participação? A providência pastoral mais simples, sensata e realista seria orientar e estimular os leigos para que eles busquem adquirir o hábito da oração pessoal e diária tendo por

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conteúdo (ou objeto de oração) a vida comunitária de todos os membros do seu condomínio, o que inclui orar por si mesmo, pelos membros do núcleo missionário, e pelas demais pessoas que vivem, trabalham e se relacionam com esta comunidade. Este hábito será o alicerce de toda a ação pastoral e missionária nos condomínios. De outro modo, construiremos sobre areia. Porque faltando a oração, falta em nós o amor de Jesus, e faltando em nós este amor, falta o essencial de tudo e o único necessário para tudo. Se os cristãos leigos de um prédio não aprenderem a amar uns aos outros, como é que poderão cooperar na missão e trabalhar juntos e unidos? Se não aprenderem a amar todos os membros do seu condomínio, como é que poderão "evangelizar" esta comunidade de pessoas? E se não orarem, como poderão amar? É da falta de oração dos leigos pelos seus condomínios que nascem todas as nossas faltas de ação, participação e evangelização nessas comunidades. O que vejo acontecer com freqüência é o seguinte (falo por experiência própria e como leigo no assunto): quando estamos em casa ou pela cidade ocupados com nossos afazeres diários e obrigações quotidianas, nós passamos a maior parte do tempo com a atenção voltada para as coisas que fazemos, e normalmente estamos esquecidos de Deus e do nosso condomínio. Isto é um fato. E é costume nos lembrarmos de Deus apenas em certas ocasiões e momentos especiais, como nos domingos durante a missa, ou quando rezamos, ou quando vemos e ouvimos por acaso algum símbolo ou sinal religioso, ou ainda quando nos acontece alguma grande tragédia, e então fazemos aquilo de que fala o profeta Jeremias: "Eles voltam para mim as costas, e não o rosto. Mas, na hora do aperto, eles me dizem: 'Vem! Salva-nos!'" (Jr 2,27). E também é costume nos lembrarmos do nosso condomínio apenas em certas ocasiões e momentos, como no começo do mês quando recebemos a cobrança das taxas de condomínio, quando recebemos uma convocação para alguma Assembléia Geral, quando o prédio está em obras e a poeira e o barulho não nos dão sossego, quando somos obrigados ou proibidos de fazer algo no prédio, quando um direito nosso é violado, ou ainda quando acontece alguma grande tragédia, e então fazemos com as outras pessoas do condomínio a mesma coisa que fazemos com Deus: "Voltamos as costas uns para os outros, e não o rosto. Mas, na hora do aperto, procuramos os outros e dizemos: 'Ajuda-me! '" Isto também é um fato. Mas o fato crucial para o qual desejo sobretudo chamar a vossa atenção, é este: nas ocasiões e momentos em que nos lembramos de Deus, jamais nos lembramos do condomínio; e vice-versa também: nas ocasiões e momentos em que nos lembramos do condomínio, nós jamais nos lembramos de Deus. De modo que nem o condomínio pode participar de nossas relações com Deus, nem Deus pode participar de nossas relações com o condomínio. Esta é, creio eu, a raiz espiritual daquela tão denunciada ruptura entre fé e cultura: quando oramos e nos colocamos na presença de Deus, excluímos o condomínio desta relação, e quando estamos agindo e reagindo em relação com o condomínio, excluímos a oração e a presença de Deus desta relação. De modo que as nossas relações vitais (ou espirituais) com o mundo e com Deus são sempre binárias, fragmentadas ou excludentes, jamais ternárias, completas e inclusivas: ou a relação só inclui eu e o mundo (e exclui Deus), ou a relação só inclui eu e Deus (e exclui mundo). E o resultado disso é uma vida espiritual e de relação em constante alternância: ora vivemos uma relação ou cultura pagã (que exclui Deus), ora vivemos uma relação ou cultura farisaica (que exclui os outros e o resto do mundo). Não sei se estou conseguindo me expressar direito, mas é isto o que vejo acontecer em mim e nas outras pessoas também. É claro que existem as exceções, que até podem ser mais numerosas do que eu imagino, mas esta me parece ser a regra geral do que

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acontece com os leigos "no mundo", isto é, no condomínio, no trabalho, na escola, na família etc. E esta me parece ser a raiz espiritual de todos os males que fazemos e sofremos: em nos relacionarmos com as coisas do mundo sem que Deus esteja presente e atuante nesta relação por meio da oração, ou então em nos relacionarmos com Deus por meio da oração sem que as realidades deste mundo estejam presentes nesta oração e relação com Deus. Este é o principal desafio a ser enfrentado na formação espiritual dos leigos para que possam viver uma autêntica "espiritualidade laical". Sabemos, porém, o quanto é difícil para um leigo estar no mundo agindo e reagindo, e ao mesmo tempo estar em oração na presença de Deus. Mas este é o único remédio para os nossos males, portanto este remédio tem que ser receitado e o doente tem que aprender a tomá-lo se quiser melhorar. Pois a principal finalidade da oração é nos tornar conformes ao Senhor Jesus: "A oração é comunhão: a Santíssima Trindade, nesta relação, conforma o homem, imagem de Deus, à sua semelhança." (Catecismo, 2713). Infelizmente, esta finalidade costuma ficar esquecida em meio a tantas necessidades, urgências e tragédias em nossas vidas, de modo que muitos recorrem à oração na hora do aperto, ou quando as coisas não correm segundo a nossa vontade e desejo, para pedir a Deus socorro, ajuda e até milagres. Mas poucos se lembram de recorrer à oração por outras razões e finalidades, como agradecer a Deus pelos benefícios que dele recebemos por meio das suas criaturas, ou para louvar e contemplar a sua glória, beleza e bondade que se manifesta em todas as suas obras. E mais raramente ainda recorremos à oração como meio de conversão, de transformação e de correção de nós mesmos. Nós até que "gostamos" de pedir em oração pela conversão e transformação "dos outros": do nosso marido ou esposa que nos maltrata ou nos trai, pelos filhos que só nos causam tristezas e problemas, pelos parentes e amigos que não vivem conforme Cristo, pelos políticos e bandidos, corruptos e malvados etc. Mas quem é que gosta de reconhecer os próprios erros e defeitos e de pedir pela própria correção e transformação? Quem é que gosta de se examinar diante de Deus com ajuda da Sua Palavra, do testemunho dos Santos, dos ensinamentos da Igreja, para ver se estamos conformes à imagem de Cristo ou se estamos em desacordo como Ele? Quem é que gosta de fazer esta forma de oração? Além de ser a mais difícil de todas, é aquela que menos nos agrada porque é a forma de oração que mais nos humilha: "Quem pode discernir os próprios erros? Purifica-me das faltas escondidas! Preserva do orgulho o teu servo, para que ele nunca me domine." (Sl 19,13-14). No entanto, esta é a forma de oração mais necessária à vida cristã, pois é nesta forma de oração que nós pedimos e permitimos à Santíssima Trindade agir em nós, nos transformar e nos conformar à sua imagem e semelhança. O que não se faz sem dolorosas correções e constantes humilhações. Se estas deficiências na oração já nos acontecem de modo geral, isto se agrava ainda mais quando consideramos as nossas relações com o condomínio. Quantas vezes nós observamos (ou "examinamos") os nossos próprios sentimentos, pensamentos, desejos, palavras, projetos e modos de agir em relação ao nosso condomínio, para ver se nesta área da nossa vida nós estamos de acordo ou em desacordo com o Espírito de Cristo, com o seu Evangelho, com o testemunho dos seus Santos e com os ensinamentos da sua Igreja? A julgar pelos frutos produzidos e colhidos nos condomínios, esta forma de oração ainda é pouco cultivada e praticada por nós. E falo por mim mesmo, que já estou de cabelos brancos e ainda não aprendi a orar desta maneira. Pois acabo de perceber a sua necessidade, ao refletir e escrever este texto! E por que ainda não aprendi? Como é que se aprende isso? Como é que se ensina isto?

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Ora, aprendemos a nadar, nadando. Aprendemos a andar, andando. Aprendemos a falar, falando. E aprendemos a rezar, rezando. Não há outro método de ensino e aprendizado da oração que não seja o método prático ou ativo. Foi deste modo que Jesus ensinou seus discípulos a rezar. Primeiro, pelo seu exemplo prático: Jesus rezava em todos os momentos e de todos os modos, sozinho e junto com os outros, em silêncio e em voz alta, com palavras, com sentimentos, gestos e movimentos. Em segundo lugar, Jesus sempre explicava, orientava e estimulava os seus discípulos a rezarem, chamando regularmente a atenção deles para a necessidade de praticarem a oração. E em terceiro lugar, Jesus ensinava quais deveriam ser os conteúdos e as formas da oração, isto é, o que devemos buscar, pedir ou fazer por meio da oração (o Pai Nosso, o agradecimento, a súplica, o louvor, a conversão, a contemplação...). E acima de tudo, a quem, por quem e com quem, devemos orar: "Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo". Ou seja, todo o ensino de Jesus era sempre de ordem prática e orientado para a prática. Estes foram os meios e esta a finalidade: a prática simples da oração. É deste modo também que a pastoral dos condomínios poderia fazer para ensinar os leigos a orarem, concentrando-se contudo no objetivo específico desta ação pastoral: aprender a orar pelo condomínio. Pois além de ser preciso estimular a prática da oração, é fundamental orientá-la para as relações no condomínio. E o modo mais simples de ensinar isto é propor aos membros de cada núcleo missionário que experimentem fazer esta forma de oração. Que tentem durante um mês fazer essa experiência pessoal e diária de oração por todas as pessoas e situações do condomínio. Que rezem se quiserem, quando e onde puderem, e do jeito que souberem ou acharem melhor. E que anotem num caderno o que vai acontecendo: lembro ou esqueço de fazer isto? por quem e pelo quê estou orando? que formas de oração faço ou não faço? etc. E depois de um mês dessa experiência e observação pessoal, o grupo deveria voltar a conversar sobre o assunto. E depois continuariam a fazer esta mesma experiência de oração pessoal, até que "orar pelo condomínio" se torne um hábito de cada missionário. E de vez em quando, o grupo voltaria a conversar sobre isto para trocar suas experiências de oração. Nem que no início a oração pelo condomínio seja feita apenas por um único e breve instante do dia ou mesmo da semana, o simples fato de nos lembrarmos "em oração" do nosso condomínio, já vai gerando em nós o hábito de associar as lembranças, as pessoas e as situações do condomínio "à oração", o que permite que Deus se faça cada vez mais presente em todas as nossas relações com o condomínio. E deste modo, não ficamos apenas "nós e o condomínio", (como acontece normalmente nos prédios da cidade), nem ficamos apenas "nós e Deus" (como acontece normalmente em nossas orações e práticas religiosas), mas ficamos os três: "nós, o condomínio, e Deus", reunidos em cooperação e unidos em comunhão. E assim o amor de Deus poderá se fazer cada vez mais presente e atuante em todas as nossas relações com o condomínio. Pois é isto o que Deus mais quer, para o nosso próprio bem. Mas então é só isto? Só oração pessoal? Os membros do núcleo missionário nunca irão rezar juntos e reunidos? Não se reza nos encontros e reuniões? Evidente que sim, pois não há reunião de Igreja sem que Cristo seja convidado a participar e a se fazer presente pela oração. Mas para isso não é preciso que se gaste todo o tempo da reunião em orações (e muito menos com gemidos e clamores ensurdecedores), pois Cristo não se faz de rogado nem de difícil para estar no meio de nós: "Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearemos juntos." (Ap 3,20). Para abrir a porta da nossa reunião para Cristo entrar, basta fazer o que se faz em qualquer reunião de Igreja: Estamos aqui reunidos "em nome do Pai, do Filho e do

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Espírito Santo". E depois orar ao Espírito Santo: "Vinde, Espírito Santo, enchei os corações dos vossos fiéis e acendei neles o fogo do vosso amor. Enviai, Senhor, o vosso Espírito, e tudo será criado. E renovareis a face da terra..." Após esta simples invocação, Cristo já estará no meio de nós. Então podemos rezar com Ele ao Pai Nosso que está no céu e saudar a nossa mãe Virgem Maria com os Santos padroeiros que escolhemos. E podemos concluir com alguma canção, ou oração espontânea ou escrita, na intenção dos membros do núcleo e de toda a comunidade do prédio. Se isto não bastar, não sei mais o que seria necessário fazer para que o núcleo esteja reunido em Cristo. Porém, se isto faltar, o núcleo não estará reunido com Cristo (como algumas vezes acontece em nossas próprias reuniões de Igreja, quando nos esquecemos de orar e de abrir a porta para Cristo entrar). Considerando que ninguém está proibido ou impedido de se reunir quando quiser e com quem quiser para rezar o quanto quiser, não se deveria permitir que as poucas e difíceis reuniões gerais do núcleo missionário se transformem em grupos de oração, pois não é este o objetivo da pastoral. Se não quisermos cansar as pessoas nem espantálas das reuniões, elas devem ser poucas, curtas, objetivas e tratar do estritamente necessário. Tudo o que os membros de um núcleo missionário puderem fazer fora destas reuniões (sozinhos em suas casas, ou reunidos como quiserem), deve ser proposto como tarefa e lição de casa, trabalho individual ou em grupos livres e espontâneos. Do mesmo modo que promover a descentralização e a autonomia na Igreja é uma condição necessária à ação e missão dos leigos no mundo, também promover a descentralização e autonomia nos núcleos missionários será condição indispensável para que o maior número de pessoas possa participar, colaborar e sobretudo perseverar. Do contrário, reproduz-se nos condomínios (e nos demais ambientes da cidade) os mesmos princípios pedagógicos e pastorais da paróquia (centralização e dependência), o que seria um contra-senso e um grande equívoco missionário. Se os leigos não aprenderem a assumir com liberdade, responsabilidade e autonomia as tarefas necessárias à sua formação e missão, como poderão assumir o papel de protagonistas da nova evangelização? Toda forma de centralização e dependência inibe a atividade própria das pessoas e impede o seu aprendizado e desenvolvimento. Toda mãe e educadora saudável e equilibrada faz de tudo para que seus filhos aprendam o quanto antes a andarem com as próprias pernas, a comerem com as próprias mãos, a falarem com a própria boca, e a agirem com o próprio juízo. É claro que as crianças caem e se machucam sem parar, se lambuzam de comida, falam tudo errado e fazem uma bobagem atrás da outra. Mas é assim que todas crescem e aprendem. Não existe outro caminho. A mãe apenas cuida e orienta para que nada de grave aconteça, mas não impede que a criança experimente fazer as coisas sozinha e que aprenda por seus próprios esforços. Pelo contrário, a mãe incentiva tais esforços e cuida de todos os detalhes para que este aprendizado aconteça da melhor forma possível. Pois é fazendo (e errando) que alguém aprende a acertar. A pastoral católica precisa buscar o equilíbrio pedagógico necessário para poder de fato orientar a atividade própria dos leigos no mundo, a fim de evitar os extremos tão perniciosos do "laisser faire, laisser passer" (sem nenhuma orientação pastoral) ou da "centralização e dependência" (sem nenhuma espécie de atividade própria). Isto vale tanto para a formação espiritual e doutrinária dos leigos, como também (e sobretudo) para a formação prática e atuação secular dos leigos no mundo. Pois é esta a nossa vocação e missão.

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1.7. Ação e Participação – a prática do amor no condomínio. Sem a prática da religião cristã no mundo, a experiência religioso-cristã dos leigos não se realiza, por mais que ouçam a Palavra de Deus, freqüentem os sacramentos, rezem e não saiam da paróquia. É o que nos ensina Cristo e seus apóstolos: "Lembre-se de como você recebeu e ouviu. Pratique e se converta!" (Ap 3,3). "Vou retribuir de acordo com a conduta de cada um." (Ap 2,23). "Sejam praticantes da Palavra, e não apenas ouvintes, iludindo a si mesmos." (Tg 1,22). "Nem todo aquele que me diz 'Senhor, Senhor', entrará no Reino do Céu. Só entrará aquele que põe em prática a vontade do meu Pai, que está no céu." (Mt 7,21). "Tudo o que vocês desejam que os outros façam a vocês, façam vocês também a eles. Pois nisso consistem a Lei e os Profetas." (MT 7,12). Portanto, a finalidade da leitura da Bíblia e demais textos eclesiásticos (ministério "leigo" da Palavra), e a finalidade da oração pelo condomínio (ministério "leigo" da liturgia), é a prática do amor no condomínio (ou ministério "leigo" da caridade). É a este ministério (ou serviço) que estou chamando aqui de "ação e participação" no condomínio. Pois não existe amor de verdade sem obras de caridade: "Filhinhos, não amemos com palavras nem com a língua, mas com obras e de verdade." (1Jo 3,18). Mas que "obras de caridade" podemos fazer num condomínio? Se fizermos esta pergunta aos moradores católicos de um prédio, é quase certo que muitos responderão: ajudar um vizinho em suas necessidades, socorrer um morador doente, emprestar dinheiro para alguém pagar o aluguel, pacificar brigas e desavenças pessoais, prestar um serviço qualquer, emprestar coisas e objetos, ajudar alguém a arranjar emprego, olhar as crianças da vizinha que precisou sair, ouvir com paciência alguém desesperado e aflito, suportar com paciência um vizinho problemático, hospedar um morador que perdeu a chave do seu apartamento, levar um presente de aniversário para uma viúva solitária, e todas aquelas obras de caridade que se costuma fazer individualmente, de uma a outra pessoa. Porém, quantos leigos incluirão entre as "obras de caridade" que pode fazer num condomínio, algo como participar de uma Assembléia Geral? Ou conferir as contas do condomínio? Ajudar a elaborar uma nova Convenção e um novo Regimento Interno para o condomínio? Ou acolher moradores do prédio para reunião no seu apartamento? Denunciar a corrupção e a injustiça? Ou colaborar para a renovação e desenvolvimento das estruturas de comunicação, convivência e cooperação do condomínio? Ou ainda, estudar e refletir junto com outros para resolver os problemas do condomínio? E todas aquelas ações que buscam realizar não apenas o bem particular de uma pessoa, mas o bem comum de todas as pessoas do condomínio? Destas "obras de caridade" poucos leigos se lembrarão de citar e enumerar. Por que isto acontece? Como podemos ver, trata-se aí de dois âmbitos distintos de ação: o individual e o comunitário.15 Acontece que a formação cristã e a orientação pastoral que normalmente

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. Nestes dois âmbitos de ação (o individual e o comunitário), trata-se sempre de uma ação e relação de natureza "pessoal", pois tanto um indivíduo humano como uma comunidade humana são "pessoas". A diferença está apenas no número (singular ou plural) de pessoas envolvidas na ação e relação. Em ambos os casos trata-se de ações e de relações "interpessoais", isto é, entre pessoas. Ao varrer individualmente a casa de algum indivíduo que está doente, estou pessoalmente prestando um serviço a uma outra pessoa; e ao examinarmos em grupo as contas do condomínio, estamos pessoalmente prestando um serviço a outras pessoas. Por isso, em vez de adotar a terminologia usada na Igreja para destacar os três âmbitos da ação evangelizadora (pessoa, comunidade e sociedade), prefiro adotar aqui este outro modo de caracterizar os diferentes âmbitos da ação (indivíduo, comunidade e sociedade) a fim de destacar melhor a diferença entre a caridade exercida em âmbito individual e a exercida em âmbito comunitário ou social, pois é

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recebemos na Igreja, são mais que suficientes para cada um de nós saber realizar no seu condomínio obras de caridade no âmbito individual, mas não é suficiente e nem nos capacita para realizarmos obras de caridade no âmbito comunitário. Por esta razão, nós leigos geralmente desconhecemos a prática da caridade "comunitária" nos lugares e ambientes onde vivemos e atuamos. Quando foi que nós, leigos católicos, nos reunimos e formamos pequenas comunidades ou núcleos eclesiais para realizar o bem comum dos nossos condomínios e demais comunidades sociológicas de base? Isto, nós ainda não fazemos nem sabemos como fazer. Portanto, é isto o que é preciso promover pela pastoral dos condomínios e pelas demais pastorais ambientais: a prática do amor ao próximo em âmbito comunitário. Tanto em seu sujeito como em seu destinatário, a ação e participação dos leigos nos seus condomínios precisa superar o atual individualismo e tornar-se também uma ação e participação comunitária. É isto o que falta, e é isto o que convém ensinar: 1. Em primeiro lugar, a atuação dos leigos nos condomínios precisa tornar-se eclesial. Isto quer dizer que precisa ser baseada na Palavra de Deus, na oração, e na união de todos num núcleo missionário. É esta "forma" de ação que a pastoral precisa promover. Pois todas as outras formas de ação e participação já acontecem: os leigos agem e participam nos seus condomínios sem se basearem na Palavra e na oração, e sem estarem unidos entre si formando uma pequena comunidade cristã. 2. Em segundo lugar, esta ação precisa tornar-se condominial. Isto quer dizer que precisa ser baseada na Lei de Condomínio, na Convenção e no Regulamento Interno, nas estruturas de comunicação, convivência e cooperação existentes no condomínio, e na união da comunidade condominial. É esta forma de ação e participação que é preciso promover. Pois é sobretudo isto o que não está acontecendo. Os leigos (como os demais moradores do prédio) agem e participam sem conhecerem, respeitarem e aperfeiçoarem a Lei, a Convenção e o Regimento Interno do condomínio. Sem utilizarem ou desenvolverem as suas estruturas ou meios de comunicação, convivência e cooperação, e sem se unirem aos demais membros da comunidade para promoverem juntos o bem comum de todos. 3. Em síntese: o que a pastoral precisa promover acima de tudo é a dimensão comunitária (eclesial e condominial) da ação e participação dos leigos nos seus condomínios. Este é o caminho necessário para o leigo superar o seu individualismo eclesial e condominial, e poder caminhar no futuro rumo à participação da construção de uma sociedade justa e solidária. E para se conseguir isso, a formação deve sempre orientar a atenção dos núcleos missionários para os aspectos comunitários da vida em Cristo e da vida em condomínio, aspectos estes normalmente ausentes da nossa consciência e excluídos pelo nosso individualismo e egocentrismo. É com esta nova perspectiva que os leigos devem aprender a ver, julgar e agir em todas as coisas do seu condomínio: uma perspectiva comunitária (eclesial e condominial). E esta perspectiva de modo algum anularia as pessoas. Ao contrário, as plenificaria no amor. Pois "ser imagem e semelhança do Criador é também trazer no coração um enorme anseio de ser comunidade". (DGAE 2003-2006, n. 120). Como despertar este anseio no coração dos moradores (católicos) de um prédio? Só há um meio: Procurando formar, educar e renovar a comunidade condominial pela ação essencial compreendermos esta diferença se quisermos superar o atual individualismo vigente por toda parte, sobretudo na vida (eclesial e secular) dos cristãos leigos.

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dos seus próprios membros (católicos). E quais seriam os principais conteúdos, meios e métodos desta formação? Vamos ver uma coisa por vez, começando por refletir sobre os conteúdos específicos que é preciso incluir nesta formação.

2. CONTEÚDOS DA FORMAÇÃO Então Jesus lhe perguntou: 'O que você quer que eu faça por você?' (Mc 10-51)

2.1. A cultura condominial. Esta pergunta de Jesus (O que vocês querem que eu faça por vocês?) é a origem da ação pastoral da Igreja nos condomínios. E deveria portanto ser também o princípio organizador da formação missionária a ser oferecida aos leigos: um itinerário de fé e de testemunho cristão que funda seu próprio método pedagógico sobre as necessidades específicas das comunidades condominiais. Necessidades que é preciso primeiro discernir, para depois providenciar respostas adequadas. E não poderemos fazer nem uma coisa nem outra, se não "olharmos" para o nosso condomínio, isto é, se ele não se tornar um objeto da nossa atenção, interesse, estudo e reflexão. Em termos mais práticos, isto quer dizer que se tomaria como referência e ponto de partida para a elaboração dos subsídios da formação os problemas e assuntos de condomínio (e não os problemas e assuntos da Igreja, tais como Calendário Litúrgico, esquemas teológicos e catequéticos, livros da Bíblia, etc.). Ou seja, o critério para a seleção e organização de todos os conteúdos, métodos e objetivos dos encontros de formação seria sempre um critério "ambiental". Pois são as necessidades do ambiente (e não as necessidades da própria Igreja) que devem determinar a estrutura da ação pastoral da Igreja: "O que vocês querem que eu faça por vocês?" Esta atitude de "serviço" é uma condição indispensável para que se elabore e se proponha uma formação missionária adaptada ao ambiente da missão, e por isso mesmo uma formação capaz de ajudar os leigos "a trabalhar por uma evangelização inculturada que penetre os ambientes de nossas cidades" (SD 303). Para que aconteça uma evangelização inculturada, o aprendizado prático do amor de Jesus precisa se fazer em função do ambiente que se pretende evangelizar. E o melhor exemplo deste tipo de formação cristã é a Campanha da Fraternidade, cujos subsídios desencadeiam por toda a Igreja um esforço gigantesco de inculturação do evangelho. Neste sentido, podemos considerar a Campanha da Fraternidade um verdadeiro "modelo" de evangelização inculturada, cujo texto-base é uma das melhores coisas que se publica hoje no país inteiro. Um outro exemplo desta maneira de elaborar subsídios de formação cristã em função do ambiente, é o roteiro para os encontros da Novena de Natal (2001) da Arquidiocese de São Paulo e dioceses vizinhas. Nesta novena, cada encontro se organiza em função de um tema ou aspecto da realidade de São Paulo: criança, mulher, moradia, educação, saúde, trabalho, e idosos. De modo semelhante, a pastoral dos condomínios buscaria definir uma estrutura de formação missionária a partir dos principais temas (aspectos, problemas e necessidades) daquelas comunidades interpessoais de vida e ação que se desenvolvem nos edifícios residenciais. E quais seriam tais temas? 119

Para se ter uma idéia destes temas, que revelam a "cultura" que se vive atualmente nos milhares de condomínios de nossas cidades, reproduzo a seguir o índice do "Guia do Condomínio", elaborado pelo IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Ed. Globo. S. Paulo, 2002. "Série Cidadania"). É claro que este índice temático não expressa um ponto de vista pastoral e missionário, mas sim o ponto de vista do IDEC na defesa do consumidor, cuja "Série Cidadania" tem por finalidade "facilitar o acesso do leitor ao universo de leis e disposições legais que interferem no cotidiano dos cidadãos comuns, pois quem não conhece seus direitos, não sabe nem tem como se defender". Apesar de suas evidentes limitações e lacunas, esse "Guia do Condomínio" nos oferece um índice temático bastante realista e amplo, o suficiente para se ter uma idéia do tipo de assunto que uma pessoa precisa hoje conhecer para viver e agir num condomínio. Por isso vale a pena conhecê-lo na íntegra.

Guia do Condomínio Um Pouco de História Definições O condomínio Denominação legal e CNPJ Áreas comuns e privativas Os condôminos Obrigações e direitos

O Corpo Diretivo O síndico Mandato Quem pode ser síndico Remuneração e contribuição previdenciária Síndico profissional Destituição Ausências Responsabilidades O conselho Mandato Atribuições Destituição

A Convenção do Condomínio O Regulamento Interno A diferença entre Convenção e Regulamento

As Assembléias Assembléia Geral Ordinária (AGO) Assembléia Geral Extraordinária (AGE) Convocação Local Poderes Andamento Discussão do tema Procuração Votações Quórum Quóruns especiais

Atas Impugnação de atas

A Administração Contratação de administradora Administração financeira Conta pool Conta própria do condomínio Autogestão Autogestão com assessoria Terceirização A escolha da administradora Responsabilidade da administradora Como escolher a administradora – Dicas Poderes da administradora Remuneração Substituição Cuidado com o que diz o contrato

Finanças e Contabilidade Contas ordinárias Contas extraordinárias Fundo de reserva Despesas Despesas ordinárias Despesas extraordinárias Despesas do fundo de reserva Quota de contribuição Multa por atraso de pagamento

Previsão Orçamentária Balancete mensal Arquivamento dos documentos O que o condomínio deve arquivar Tempo de guarda de documentos

Recursos Humanos Atribuições dos funcionários Zelador Porteiro

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Faxineiro Jardineiro Vigia Prestação de serviço a condômino Contratação de pessoal Dicas para contratar funcionários Treinamento Remuneração Cuidados no pagamento de salários Outras obrigações do condomínio Terceirização de serviços Cuidados

A Manutenção Ferramentas e utensílios Manutenção preventiva Rede hidráulica Elevadores Rede elétrica Gerador Iluminação de emergência Minuteiras Portões automáticos Interfones / telefone DDR (discagem direta a ramal) Outros equipamentos e itens diversos Equipamentos contra incêndio Antenas Sauna Jardim Quadras esportivas Piscina Playgrounds Tubulações e registros de gás Diversos Manutenção corretiva Como diminuir despesas no condomínio Com energia elétrica Com água Com horas extras Medição individual

O Condomínio como Consumidor Orçamento Contrato Dicas para a boa contratação de serviço As garantias e seus prazos Prazos legais para reclamar de defeitos

Obras, Reformas e Consertos No condomínio Nas unidades privativas Reformas e instalações especiais

Segurança Prevenção de acidentes Contratação de seguros

Cuidados ao contratar seguros Seguros obrigatórios Seguros facultativos O que pode ser incluído no pacote Seguro de unidade habitacional O que fazer com o seguro Demolição do condomínio

O Locatário no Condomínio O que deve e o que não deve pagar Despesas ordinárias Despesas extraordinárias Impostos e taxas Reparos de danos causados pelo inquilino Fundo de reserva Como agir em caso de reformas ou de reparos urgentes Voto em assembléias, sem procuração Participação do Conselho Consultivo Locatário como síndico Como reclamar

Condomínios Novos O passo a passo do estabelecimento legal do condomínio O "habite-se" e as chaves Cuidados na compra de imóvel na planta Dicas importantes Cláusulas que não podem existir nos contratos

A Vida em Condomínio Áreas comuns Garagem Áreas privativas Horários para barulho A proteção da lei Horários que devem ser regulados Lei autoriza entrada de vizinho Animais no condomínio Visitantes Acesso com porteiro Acesso com portão eletrônico Atendimento de clientes Atendimento de vendedores e pedintes Penalidades Queda ou arremesso de objetos das janelas Multas por infração às normas Política de boa vizinhança Orientações e Modelos de Comunicação Orientação para a elaboração da Convenção de Condomínio Orientações para a elaboração do Regulamento Interno Modelo de convocação de assembléia geral ordinária

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Modelo de convocação de assembléia extraordinária Modelo de procuração de proprietário para proprietário Modelo de procuração de proprietário para inquilino Modelo de ata de assembléia Modelo de lista de presenças Modelo de carta ao condômino que cometeu infração às normas do Regulamento Interno Modelo de carta ao síndico para contestar multa

Glossário A Lei de Condomínio Outras Leis Aplicáveis ao Condomínio Código de Defesa do Consumidor Lei do Inquilinato nº 8.245 (18/10/1991) Código Civil Código de Trânsito Brasileiro (CTB) Lei 11.228 – Código de obras e edificações Lei das Contravenções Penais – (art.42) Instrução Normativa nº 14, de 10/2/1998

Endereços Úteis

Siglas

Santo Deus! Mas será que a Igreja deve perder tempo com toda esta baboseira temporal? Será que os missionários leigos precisam estudar estas coisas e aprender a refletir sobre estes assuntos? Bem, é em torno destes assuntos, ou por causa deles, que tanto os cristãos como as demais pessoas num condomínio se aproximam ou se afastam, se entendem ou se desentendem, se unem ou se desunem, cooperam ou brigam, mentem ou dizem a verdade, roubam ou são honestas, fazem o bem ou fazem o mal, enfim, é em torno destes assuntos que as pessoas num condomínio se amam ou se odeiam. E se quisermos que o Evangelho "penetre os ambientes de nossas cidades", é precisamente nestes assuntos e nesta baboseira temporal que a luz do Evangelho deve penetrar, pois esta é a vida e a cultura que se vive nos condomínios residenciais! Para evangelizar índios, Anchieta teve até mesmo que aprender o tupi! Então, para evangelizar os condomínios será preciso aprender a linguagem (cultural e antropológica) dos condomínios, e nesta linguagem expressar e comunicar o Amor de Cristo. Por desconhecerem e ignorarem esta linguagem, seu vocabulário e sua gramática, os cristãos leigos freqüentemente não comunicam nada ou então comunicam ao condomínio o contrário do amor de Cristo. Porém, conhecendo esta linguagem, eles poderão discernir os seus significados e saber como comunicar este amor. Por exemplo: De que modo o amor de Cristo se faz presente, dá forma e se manifesta numa Assembléia Geral? (Só isto já seria matéria para infinitos estudos, reflexões e providências concretas!). E no processo de redação da ata da assembléia? E no processo eleitoral do condomínio? De que modo o amor de Cristo pode se expressar e se realizar nas normas jurídicas (Leis, Convenções e Regulamentos Internos) que regulam as relações no condomínio? E na aplicação destas normas? De que modo a dinâmica das reuniões que acontecem no condomínio comunica (ou não) o amor de Cristo? E a aplicação das multas? As decisões orçamentárias? E as estruturas de comunicação interna do condomínio, favorecem ou dificultam a prática do amor ao próximo, o conhecimento da verdade, a promoção da justiça e da liberdade? Como manifestar o amor de Cristo e os valores evangélicos na definição das prioridades de ação, de informação, de gastos, e demais providências no condomínio? Como manifestar o amor no combate à corrupção administrativa? Na luta por justiça e verdade?... E assim por diante. Pois, nas palavras do Papa João Paulo II "uma fé que não se torne cultura é uma fé não plenamente recebida, não inteiramente pensada nem fielmente vivida" (CfL 59). Esta é a "carga de Jesus" que todo apóstolo tem de carregar: a encarnação evangélica. Carga leve e suave quando carregada por amor e com amor.

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Se a encarnação evangélica foi a resposta de amor de Deus por todos nós neste mundo ("Nisto se tornou visível o amor de Deus entre nós: Deus enviou o seu Filho único a este mundo, para dar-nos a vida por meio dele", 1Jo 4,9), então a encarnação será também a resposta de amor da Igreja por este mundo, conforme a orientação dos Pastores reunidos em Puebla: "Continua válido, na ordem pastoral, o princípio de encarnação formulado por Santo Irineu: 'O que não é assumido não é redimido.'" (Puebla 400). "A dimensão missionária da Igreja Particular exige uma evangelização que assuma a encarnação como caminho da missão e se fundamente na plena inserção na realidade sócio-cultural." (CNBB, Igreja: comunhão e missão, 122). Se "a ruptura entre o Evangelho e a cultura é o drama da nossa época" (EN 20), então o único remédio para esta calamidade é obviamente unir Evangelho e cultura, conforme ensina João Paulo II: "Ao descobrir e viver a própria vocação e missão, os fiéis leigos devem ser formados para aquela unidade, de que está assinalada a sua própria situação de membros da Igreja e de cidadãos da sociedade humana." (Cf L 59). Portanto, a formação cristã do laicato teria por objetivo unir o que em nós encontrase separado e em situação de ruptura ou conflito: a divindade e a humanidade, a fé da Igreja e a atuação no mundo, o amor a Deus e o amor aos seres humanos, o sagrado e o profano, o eterno e o temporal, a oração e a ação, a Palavra de Deus e a vida quotidiana, a graça divina e o esforço humano, os valores evangélicos e as nossas estruturas de convivência, etc. etc. etc. E a construção desta unidade se realiza na própria formação cristã que se oferece (ou que não se oferece) aos fiéis: "O apostolado não pode atingir eficácia plena, senão através da formação múltipla e integral. Exigem-na não apenas o progresso contínuo do leigo na espiritualidade e na doutrina, mas também o conjunto variado de assuntos, pessoas e encargos, aos quais sua atividade deve adaptar-se." (Vaticano II, AA 28). "Cabe-nos acolher o apelo e a orientação de João Paulo II aos Bispos do Brasil, no sentido de que 'uma prioridade importante e inadiável seja a de formar leigos... Formar leigos significa favorecer-lhes a aquisição de verdadeira competência e habilitação no campo em que devem atuar; mas significa, sobretudo, educá-los na fé e no conhecimento da doutrina da Igreja naquele campo.'" (DGAP 1991-1994, 272).

2.2. Os três conteúdos fundamentais da formação. Nestas orientações do magistério supremo da Igreja, o Concílio, o Papa e a CNBB são concordes e unânimes ao definir os três conteúdos fundamentais da formação missionária do laicato: 1. Competência e habilitação no campo em que devem atuar (o Concílio diz "o conjunto variado de assuntos, pessoas e encargos, aos quais sua atividade deve adaptar-se"). Se o campo ou o ambiente em que os leigos devem atuar for o condomínio, então é claro que a aquisição de verdadeira competência e habilitação neste campo significa aprender todos aqueles assuntos que estão no índice do "Guia do Condomínio", aquela "baboseira temporal" que organiza e estrutura a vida das pessoas nos condomínios. 2. A fé (o Concílio diz "espiritualidade"). Se nós entendemos por "fé e espiritualidade cristã" a vida nova segundo o Espírito de Cristo, então isto significa, acima de qualquer outra coisa, aprender a amar como Jesus amou. E se

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a missão for num condomínio, então precisamos aprender a amar esta comunidade concreta de pessoas. 3. A doutrina da Igreja naquele campo (o Concílio diz simplesmente "doutrina"). A respeito desta doutrina, o Papa afirma: "Sobretudo para os fiéis leigos, é absolutamente indispensável uma consciência mais exata da doutrina social da Igreja, a qual contém os princípios de reflexão, os critérios de julgar e as diretivas práticas." (CfL 60). Se é absolutamente indispensável para os leigos conhecer a doutrina da Igreja no campo em que devem atuar, então qual é a doutrina social da Igreja relativa ao condomínio residencial? Se tal doutrina não existe, como seria possível construí-la? Os princípios gerais da doutrina social da Igreja já foram muito bem elaborados. Creio que falta apenas concretizá-la no varejo e nas miudezas da vida social de um condomínio. Para isto, seria necessário construir uma espécie de "doutrina micro-social" bem detalhada que oriente o leigo na sua reflexão, julgamento e atuação no condomínio. De acordo com estas orientações do Concílio, do Papa e da CNBB, a formação dos leigos não pode omitir nenhum destes três conteúdos fundamentais, nem tampouco pode separá-los e isolar, de um lado, a fé e a espiritualidade cristã, e de outro lado, a competência e habilitação no campo ou ambiente em que os leigos devem atuar, pois é exatamente esta omissão e separação o que provoca (ou perpetua) a tão denunciada "ruptura entre o Evangelho e a cultura": sem a luz da fé e a força do Espírito (isto é, sem o amor de Cristo em nós), a nossa competência se corrompe e a cultura torna-se tenebrosa; e sem a competência, a nossa fé se paralisa e o amor torna-se inoperante diante da complexidade cultural do mundo de hoje.

2.3. Uma formação integral e unitária. Assim como "não pode haver na sua existência duas vidas paralelas: por um lado, a vida chamada 'espiritual', com os seus valores e exigências; e, por outro, a chamada vida 'secular', ou seja, a vida da família, do trabalho, das relações sociais, do empenho político e da cultura" (CfL 59), tampouco pode haver na vida dos leigos duas formações paralelas, separadas e até contrárias entre si: de um lado, a formação chamada 'religiosa', com seus conteúdos, valores e exigências, e que o leigo recebe na sua paróquia; e, por outro lado, a chamada formação 'secular ou mundana', com seus conteúdos, valores e exigências, que o leigo recebe no mundo e que orienta (e desorienta) a sua vida e atuação na família, no trabalho, nas relações sociais, na política e na cultura. É por esta razão que o Papa insiste tanto numa "formação integral e unitária dos fiéis leigos", ou "formação integral para viver em unidade", como diz na sua Exortação Apostólica, "aquela unidade, de que está assinalada a sua própria situação de membros da Igreja e de cidadãos da sociedade humana". (CfL 59). As palavras "integral" e "unitária" são as palavras-chave do ensinamento do Papa sobre a formação cristã do laicato. Entende-se por formação integral aquela que não omite nem exclui nada do ser, em que não falta nenhuma parte: é formação completa, inteira, pois considera o ser humano em sua totalidade, isto é, leva em conta todos os aspectos e dimensões da existência do leigo. E a formação unitária é aquela que não divide nem fragmenta o ser, não separa nem isola, uns dos outros, os diversos aspectos e dimensões da existência do leigo: é formação que junta, integra e une estes vários aspectos e dimensões, pois considera o ser humano em sua unidade, isto é, leva em conta as relações que unem entre si os aspectos e dimensões do ser.

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Pois bem! E quais seriam os aspectos ou as dimensões básicas do "ser cristão leigo"? Simplificando e esquematizando bem as coisas, pode-se dizer que o religioso e o secular, a doutrina e a prática, constituem as 4 dimensões (ou os 2 eixos) fundamentais do "ser cristão", isto é, da nossa existência cristã. Constituem, por assim dizer, os 4 braços (ou os 2 lenhos) da cruz de Cristo: Céu Doutrina

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Prática

Terra Uma formação "cristã" (integral e unitária) deve necessariamente procurar integrar e unir estas 4 dimensões da nossa vida em Cristo. Para o cristão, tudo o que é humano e terrestre tem (ou deveria adquirir) um sentido e um significado divino e celeste, por meio do qual o humano e o divino, a terra e o céu, se unem e se integram. Para o cristão, tudo o que é doutrina de fé tem (ou deveria adquirir) um sentido e um significado prático e vital, por meio do qual doutrina e prática, fé e vida, se unem e se integram. Olhando a figura da cruz, vemos que os seus 4 braços (ou 2 lenhos) se encontram no meio, onde está Cristo, que une céu e terra, doutrina e prática: se nós eliminamos ou excluímos qualquer um destes braços (ou dimensões da vida cristã), a cruz deixa de existir e o cristianismo desaparece, torna-se outra coisa. Por exemplo: 

Se nós eliminamos a dimensão religiosa de nossas vidas, o céu, ou o Reino de Deus, resta apenas uma doutrina prática das coisas da terra (ateísmo, secularismo, cientificismo, materialismo ...).



Se nós eliminamos a dimensão secular de nossas vidas, a terra, ou as atividades e ocupações terrenas, resta apenas uma doutrina prática das coisas do céu (angelismo, espiritualismo desencarnado, fantasia religiosa ...).



Se nós eliminamos a doutrina, a Palavra de Deus e os ensinamentos da Igreja, o estudo e o conhecimento das realidades terrenas, desaparece até mesmo a idéia do céu, da terra, de Deus e das criaturas, restando apenas uma prática pura, imediata e instintiva (animalismo, ativismo puro dos animaizinhos...).



E por fim, se eliminamos a prática, restam apenas teorias e bastante falatório sobre as coisas do céu e da terra: "Por que vocês me chamam: 'Senhor! Senhor!', e não fazem o que eu digo?" (Lc 6,46). "Sejam praticantes da palavra, e não apenas ouvintes, iludindo a si mesmos." (Tg 1,22).

Observando a formação cristã que a maior parte do laicato normalmente recebe em suas paróquias (nas celebrações litúrgicas, na catequese, nos encontros, nos cursos, nas atividades comunitárias, nas obras de caridade, nas festas, procissões, etc.), percebemos que esta formação não é integral, uma vez que nestas atividades de formação omite-se ou exclui-se a própria prática secular ou atividade e ocupação normal e quotidiana dos fiéis leigos, atendo-se basicamente à doutrinação religiosa e às práticas religiosas (falo da maioria, e não das exceções). E por não ser integral, esta formação não pode ser considerada unitária, pois ao se excluir a prática secular das atividades de formação, a própria formação já separou e isolou a doutrina e prática religiosa (de um lado), e a prática secular ou ação dos fiéis leigos no mundo (de outro lado).

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E por que razão isto acontece? Por que a formação que os leigos recebem na paróquia não consegue jamais incluir no seu programa a prática secular dos fiéis leigos? Nem consegue unir esta prática secular à doutrina e à prática religiosa? Enfim, por que a formação do laicato nas paróquias não consegue ser nem integral nem unitária? Isto me parece ser o resultado de um grande equívoco pedagógico. E o equívoco está no seguinte: a "prática secular" ou as "ocupações e atividades terrenas" dos fiéis leigos se realizam todas no mundo, e nenhuma delas se realiza na paróquia. Ora, como a formação dos leigos acontece sempre e apenas na paróquia (no templo, no salão, etc.), pela sua própria "localização" a formação do laicato não pode, obviamente, integrar e incluir no seu programa, entre as suas atividades pedagógicas, a prática secular dos fiéis leigos (que acontecem todas em outro "lugar"). De modo que tal "prática secular" só pode aparecer na formação do laicato enquanto "doutrina", na forma de "teoria", mas não enquanto prática ou ação concreta. Isto é, apenas "fala-se" desta prática secular, aborda-se esta prática apenas "teoricamente", por meio de "instruções teóricas gerais" (o que já é maravilhoso e uma bênção divina), mas ela mesma não é objeto de interação pedagógica, não é parte integrante da própria formação. Daí que a formação cristã do laicato torna-se predominantemente doutrinária e teórica, sem que haja nenhuma espécie de formação prática: a ação do leigo no mundo, a sua prática secular, as suas ocupações normais e atividades terrenas, tudo isto fica por conta de cada leigo resolver sozinho e por conta própria como é que vai ser. E qual é o resultado disso? É esta calamidade que vemos e que apenas denunciamos como o "drama de nossa época". Adianta muito denunciar a falta de juízo de um bebezinho que põe a mão no fogo ou que se atira pela janela? Pois nós, os leigos, temos uma prática cristã no mundo semelhante à de uma criancinha de colo. Sabemos vagamente o que é preciso fazer: "Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo". Mas como fazê-lo concretamente nos "lugares" onde estamos? Nos ambientes e nas situações concretas em que nos encontramos? Se a doutrina da fé cristã não é fruto de especulações individuais ou de esforços particulares de cada um de nós buscando isoladamente na sua vida uma verdade para crer (mas sim uma Verdade revelada que nos é transmitida e cuidadosamente elaborada por toda a Igreja com a colaboração de todos os cristãos), por que razão a prática da fé cristã dos leigos no mundo há de ser na maioria das vezes um fruto de especulações individuais e de esforços particulares de cada um de nós buscando isoladamente na sua vida um caminho a seguir e inventando por conta própria o seu "modo cristão" de ser e agir no mundo? Se a doutrina religiosa dos cristãos tem que ser "eclesial", por que a prática secular dos leigos tem que ser quase sempre "individual"? Qual é o resultado mais provável de uma formação cristã predominantemente doutrinária e teórica realizada na paróquia, sem uma equivalente formação prática das atividades e ocupações seculares dos fiéis leigos no mundo? Bem, o resultado mais freqüente desse tipo de formação é o "drama de nossa época" que tanto se denuncia: cristãos ortodoxos na doutrina e heterodoxos na prática. Ora, esta separação entre teoria e prática, e esta exclusão da prática na formação cristã do laicato, isto não acontece em nenhuma "formação profissional" que seja digna desse nome: todos os professores, médicos, mecânicos, artistas, dentistas, cozinheiros, terapeutas, pedreiros, motoristas, enfermeiras, costureiras, carpinteiros, agrônomos, biólogos, físicos, escritores, tipógrafos, vidraceiros, pintores, marceneiros, etc., toda essa gente se forma não apenas freqüentando cursos teóricos fechados numa sala de aula, mas todos eles se formam ou completam a sua formação teórica por meio de

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estágios ou atividades práticas no próprio ambiente onde deverão atuar, cooperando com as pessoas com as quais deverão trabalhar, lidando com as coisas, instrumentos e materiais que irão utilizar, e aprendendo todas aquelas coisas que só se aprende por meio de uma formação prática que se dá na relação viva, concreta e ativa da pessoa com o seu ambiente de atuação. É por esta razão que uma parte importante da formação de toda essa gente se dá necessariamente no ambiente real de trabalho: a formação de professores inclui um estágio numa escola, a dos médicos inclui prolongados estágios num hospital, ambulatório, clínica e pronto socorro, o artista forma-se no ateliê ou estúdio, a cozinheira forma-se numa cozinha, o pedreiro numa construção, o motorista num automóvel circulando pela rua, o agrônomo nas fazendas, o biólogo em contato com a natureza ou num laboratório de pesquisa, o marceneiro numa marcenaria, um padre numa comunidade, e até uma freira faz seu estágio prático no noviciado. Não se concebe uma formação exclusivamente teórica ou doutrinária para nenhuma destas atividades e profissões, pois isto significaria um grande equívoco e uma irresponsabilidade pedagógica: imagine formar um médico apenas com instruções teóricas gerais, e depois enviá-lo ao mundo para diagnosticar, operar e tratar de pessoas doentes, sem que ele tenha feito antes o aprendizado prático da medicina! Alguém acharia razoável formar um motorista de carro, ônibus ou caminhão apenas com instruções teóricas, sem nenhum aprendizado prático na direção e no trânsito? Ora, se o aprendizado prático é absolutamente necessário para se poder dirigir um automóvel pelas ruas da cidade, o que não será necessário para alguém dirigir bem a própria vida neste mundo de hoje? No entanto, para o cristão leigo dirigir a própria vida neste mundo, para exercer suas atividades e ocupações terrenas, para tratar das realidades temporais ordenando-as segundo Deus, parece que é suficiente que ele receba uma formação puramente teórica e doutrinária acerca da religião, sem que se inclua na sua formação um conjunto de atividades práticas no próprio ambiente onde os cristãos leigos deverão atuar e viver a sua religião cristã. Portanto, para não se formarem melhores "profissionais" do que se formam hoje os "cristãos", a formação do laicato deve ser integral e unitária, isto é, verdadeiramente "cristã". Para isto, deve-se procurar um método de ensino e de formação para leigos que não inclua somente a indispensável doutrinação religiosa, a necessária instrução teórica sobre a vida e a ação cristã no mundo, e as salutares práticas religiosas e assistenciais que se realizam na paróquia, mas que inclua também a prática secular dos leigos no mundo, nos seus próprios ambientes normais de vida e ação. Isto exige que uma parte importante da formação cristã do laicato (a parte "prática e secular" da sua formação) se realize fora dos espaços da Igreja, isto é, que se realize nos próprios "lugares" que constituem o ambiente e o meio da vocação cristã e da missão dos fiéis leigos. A respeito deste método, podemos ver o que o Concílio Vaticano II nos ensina.

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3. MÉTODO PARA A FORMAÇÃO MISSIONÁRIA DO LAICATO 3.1. O que diz o Concílio? No Decreto "Apostolicam Actuositatem" (Capítulo VI, Formação para o Apostolado, n. 29), nós lemos o que segue: [Princípios de Formação para os Leigos no Apostolado] 29. Uma vez que os leigos participam a seu modo na missão da Igreja, sua formação apostólica assume característica especial, a partir da índole secular e própria do laicato e da sua espiritualidade. (...) Como no entanto a formação para o apostolado não pode manter-se na pura instrução teórica, gradativamente e com prudência, desde o início da formação, aprendam a ver, julgar e agir em todas as coisas sob a luz da fé, a formar-se a si mesmos e a aperfeiçoar-se pela ação e assim a entrar para o serviço ativo da Igreja. Esta formação, que deve ser sempre aperfeiçoada, por causa da maturação progressiva da personalidade e por causa da evolução dos problemas, exige conhecimento sempre mais profundo e ação adaptada. Ao cumprirem-se as exigências todas de formação, mantenha-se diante dos olhos o ideal da unidade e integridade da pessoa humana, de forma a salvar-se e ampliar-se a harmonia e o equilíbrio. Desta sorte o leigo se insere plena e ativamente na própria realidade da ordem temporal e assume com eficiência a sua responsabilidade no encaminhamento das realidades terrenas, e, ao mesmo tempo, como membro vivo e testemunha da Igreja, torna-a presente e ativa no seio das coisas temporais. Encontramos aí uma orientação simples, clara e segura acerca do método mais adequado para a formação missionária do laicato. Como esta formação "não pode manter-se na pura instrução teórica, gradativamente e com prudência, desde o início da formação": 1. "Aprendam a ver, julgar e agir em todas as coisas sob a luz da fé." 2. "Aprendam a formar-se a si mesmos e a aperfeiçoar-se pela ação e assim a entrar para o serviço ativo da Igreja." Como no entanto a formação para o apostolado não pode manter-se na pura generalidade e universalidade abstrata de "todas as coisas", é necessário adaptar este método ao ambiente particular e concreto da missão. Se o ambiente da missão for o condomínio, então o ensinamento do Concílio pode ser traduzido assim: 1. "Aprendam a ver, julgar e agir em todas as coisas do condomínio sob a luz da fé." 2. "Aprendam a formar-se a si mesmos e a aperfeiçoar-se pela ação no condomínio e assim a entrar para o serviço ativo da Igreja na cidade."

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3.2. Método ativo com base na autonomia dos sujeitos Em síntese, o Concílio Vaticano II recomenda que se adotem os princípios pedagógicos de um método ativo com base na autonomia dos sujeitos ("aprendam a formar-se a si mesmos pela ação"), através da conhecida seqüência ver, julgar e agir no próprio ambiente de sua atividade, isto é, estando os leigos inseridos plena e ativamente na própria realidade da ordem temporal, tendo em vista o ideal da unidade e integridade da pessoa humana. Haveria ensinamento mais claro e simples do que este? Desnecessário é dizer que a formação que os leigos recebem nas paróquias não segue nenhum destes princípios pedagógicos propostos pelo Concílio para a formação dos leigos "no apostolado", o que explica em grande parte a paralisia apostólica do leigo no mundo. E se alguém quiser verificar este fato, basta comparar os princípios de formação dos leigos na sua paróquia com estes princípios enumerados pelo Concílio. E esta divergência de princípios não é nenhum descaso ou má vontade do pároco ou dos paroquianos, mas decorre da própria natureza limitada da comunidade paroquial e da pastoral paroquial, que estão circunscritas e limitadas a uma pequena parte do território urbano e vocacionadas antes de tudo para oferecer àquela população local apenas uma formação básica e comum a todos os cristãos. Este é o limite natural (e a virtude) da paróquia e da sua pastoral. No entanto, como diz o Concílio: "Além da formação, comum a todos os cristãos, muitos tipos de apostolado exigem formação específica e peculiar, em vista das pessoas e circunstâncias diferentes." (AA 28). E este é o caso do apostolado leigo nos seus diferentes ambientes de vida e ação. Daí a necessidade de se providenciar formas "complementares" de agregação e de formação para os leigos além da paroquial, pois somente pastorais "ambientais" poderão oferecer aos leigos uma adequada formação para este tipo de apostolado, ou seja, uma formação segundo estes princípios enumerados pelo Concílio. Se não, raciocine um pouco: como é que os leigos poderão aprender a formar-se a si mesmos "pela ação" no seu condomínio, família, trabalho ou escola, se a formação que recebem é sempre "na paróquia" e nunca "nestes lugares ou ambientes" onde devem atuar? E ambientes que, na maior parte dos casos, nem se localizam no território da sua paróquia, mas em outros lugares da cidade, como costuma ser o caso das suas comunidades de trabalho, educação, e também de família, as quais geralmente integram pessoas oriundas de diferentes paróquias ou territórios da cidade. Só isto já impede que o cuidado pastoral e a formação apostólica dessas pessoas seja, neste caso, de natureza "paroquial". E além disso, trata-se aqui também de ambientes seculares, extremamente diversificados e demasiado complexos e específicos para serem objeto de um cuidado pastoral de âmbito "paroquial", cuja obrigação primeira é dar ao povo de seu território aquela formação e vivência religiosa básica e comum a todos os cristãos, e que se espera encontrar em toda paróquia: os ministérios da Palavra, Liturgia e Caridade, serviços de formação e vivência religiosa que a muito custo e com grande esforço as paróquias mal conseguem realizar de modo plenamente adequado. É por estas e outras razões que uma pastoral exclusivamente "paroquial" não forma nem tem condições de formar os leigos para o apostolado "ambiental". Para isso é preciso que a própria pastoral também seja de natureza "ambiental", e não mais "paroquial" (mas "supra-paroquial", isto é, diocesana ou nacional). E afinal de contas, por que razão o cuidado pastoral e a formação dos leigos paroquianos tem que ser sempre e apenas de âmbito "paroquial"? Por que não pode ser também de âmbito "diocesano", ou mesmo "nacional", como tem que ser por natureza uma pastoral ambiental? Por que razão a vida eclesial do leigo paroquiano tem que ficar reduzida e

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limitada à sua inserção e participação numa paróquia sob o governo de um pároco? Por acaso diocese e bispo, CNBB ou Papa, deixaram de existir ou de valer pastoralmente para os leigos paroquianos? Convém repetir e insistir neste ponto para que fique claro: as pastorais ambientais de que falo aqui, apenas ofereceriam aos leigos paroquianos formas "complementares" (e não "substitutivas") da agregação e formação paroquial. Isto precisa ficar claro, pois qualquer coisa que ultrapasse o âmbito institucional, restrito e "controlado" da paróquia, parece assustar e apavorar os pastores do rebanho como se fosse algo ameaçador à unidade e existência hierárquica da própria Igreja. Quando na realidade é o contrário o que ocorre: a excessiva ânsia de se manter tudo "sob controle" hierárquico (o que não significa "comunhão" hierárquica) apenas sufoca a expansão missionária da Igreja e sobretudo a missão própria dos leigos paroquianos no mundo atual. Mas nem por isso estes leigos paroquianos deixam de estar e de agir no mundo com total autonomia, fazendo-o porém sem a devida formação ou orientação pastoral. E é isto o que está hoje ameaçando a Igreja. E o Concílio percebeu isto com muita clareza: sem promover pastoralmente e pedagogicamente a missão própria dos leigos no mundo, a Igreja fica muito limitada e fechada em si mesma. E isto pode ser entendido como um sintoma típico de "clericalismo", na medida em que se ignora e se exclui da organização pastoral da Igreja o ponto de vista "existencial" do cristão leigo (sua índole secular). Ponto de vista que o Concílio tudo fez para que fosse reconhecido teologicamente e levado em consideração na renovação pastoral da Igreja. Por isso, além de se promover a difícil e tão necessária renovação das paróquias, convém providenciar também novas estruturas pastorais, de natureza supra-paroquial e ambiental, capazes de formar os leigos paroquianos para o apostolado nos seus próprios ambientes normais de vida e ação. E os princípios pedagógicos desta formação precisam ser estes mesmos já indicados sumariamente pelo Concílio, princípios que devemos procurar entender para poder depois aplicá-los na prática. Mas quem poderia nos ajudar a compreender melhor estes princípios pedagógicos? A resposta me parece óbvia, pois o Concílio reuniu apenas pastores, e não pedagogos. Portanto, é com estes últimos (os pedagogos) que devemos procurar alguma ajuda "suplementar" neste caso. Ao propor como princípio e diretriz geral da formação do laicato "o ideal da unidade e integridade da pessoa humana" (Concílio), e ao caracterizar insistentemente a formação do laicato como "a formação unitária e integral dos fiéis leigos" (Papa João Paulo II), o magistério supremo da Igreja (Concílio e Papa) comunica não só uma determinada concepção do ser humano como também aponta para um determinado tipo de educação que seja coerente com esta mesma concepção de ser humano. Embora nem o Concílio nem o Papa recomendem explicitamente esta ou aquela corrente pedagógica como sendo a melhor ou a mais adequada a uma visão cristã do homem, ao adotarem os conceitos de "unidade e integridade" da pessoa humana para expressar o ideal a ser perseguido e preservado nos processos educativos promovidos pela Igreja, o Concílio e o Papa assumem implicitamente um determinado (e bem vasto e diversificado) conjunto de teorias, práticas e métodos educativos que, por estarem também comprometidos com este mesmo ideal de uma formação "integral e unitária" da pessoa humana, poderiam ajudar a Igreja a desenvolver suas próprias teorias, práticas e métodos educativos. E qual seria este conjunto de teorias pedagógicas, práticas e métodos educativos que, mesmo não sendo teoricamente ou "filosoficamente" adeptos explícitos da fé cristã, poderiam assim mesmo ajudar a Igreja na criação de seus próprios métodos de formação cristã do laicato?

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Neste sentido, importa lembrar que as principais correntes e movimentos de renovação pedagógica do século XX desenvolveram as suas teorias, pesquisas e experiências educacionais orientadas precisamente pela idéia matriz (pelo ideal) de "unidade e integridade" da pessoa humana e pela crítica radical dos métodos tradicionais de educação na medida em que eles fragmentavam e diminuíam o ser humano, produzindo e reproduzindo toda espécie de desequilíbrio e desarmonia nas pessoas e na sociedade em geral (como se podia constatar nos horrores da época: a miséria e exploração dos trabalhadores, os conflitos sociais, as revoluções, as ditaduras nazi-facistas ou comunistas, as grandes guerras civis e mundiais do século, os genocídios colonialistas, etc.). E foi em função deste ideal (científico, humanista e cristão) que se promoveu no mundo todo um amplo (e sempre marginalizado) movimento de renovação dos métodos educacionais, pesquisados e experimentados numa busca contínua do método mais adequado e eficaz para uma abordagem do ser humano em sua integralidade e unidade reais, isto é, do ser humano histórico e em interação ou em relação "ativa" com o seu ambiente normal de vida. Estas correntes de renovação pedagógica, conforme a época e o lugar, assumiram denominações diversas e particulares, mas de um modo geral todas elas se identificavam como Nova Pedagogia, Educação Nova (New Education Fellowship, Mouvements d’Éducation Nouvelle), Escola Nova (Bureau Internationnel des Écoles Nouvelles), Educação Ativa (CEMEA’s) etc. Portanto, a proposta pedagógica do Concílio e do Papa para a formação "unitária e integral" do laicato nos remete necessariamente a todas as pessoas que contribuíram para criar no mundo uma nova concepção e uma nova prática de educação: uma educação integral e unitária da pessoa humana, cujo fundamento ético-pedagógico é sempre "o respeito pela pessoa" em relação ativa com o seu ambiente. E entre os mais conhecidos criadores desta Nova Educação, seja por sua real importância e valor, seja por sua influência ou mera notoriedade, podemos citar John Dewey (educação pela ação), Maria Montessori (método auto-educativo), Georg Kerschensteiner (escola do trabalho), Adolphe Ferrière, Pierre Bovet, Édouard Claparède (educação funcional, sistema dos grupos móveis), Henri Wallon, Jean Piaget, Ovide Decroly (método globalizador), William H. Kilpatrick (método dos projetos), Kurt Lewin (dinâmica de grupos), Hellen Parkhurst (plano Dalton), O’Brian Harris (plano Howard), F.W. Sanderson, Roger Cousinet (método de trabalho em equipe), Peter Petersen (plano Jena), P. Natorp (educação social para a vida em comunidade), Homer Lane (Little Commonwealth), B. Profit (cooperativas escolares), Carleton Washburne (sistema de Winnetka), Célestin Freinet (escola ativa), Anton S. Makarenko (escolas da comunidade), Alexander Neill (Summerhill), Gerda Alexander (eutonia, educação corporal), Georg F. Kneller (pedagogia existencial), Carl Rogers (educação nãodiretiva), Theodor Brameld (pedagogia reconstrucionista), e para interromper e finalizar esta lista que já está muito longa, lembramos o nosso Paulo Freire (educação libertadora), e demais pioneiros e promotores da renovação pedagógica no Brasil. Todas estas pessoas, e muitas outras que não foram citadas, perseguiram o ideal da unidade e integridade da pessoa humana na educação. E a formação cristã e missionária do laicato ganharia muito em qualidade e eficácia se ela considerasse o trabalho e a experiência de, pelo menos, alguns dos mais lúcidos dentre os criadores da Nova Educação. Pois a criação de métodos concretos, eficazes e adaptados à formação dos leigos em seus diversos ambientes de missão, não pode se realizar apenas com base nas orientações e diretrizes gerais do Concílio e do Papa, nem apenas com base na imaginação pastoral de pessoas com boa vontade (como eu estou fazendo aqui neste

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texto). É indispensável que se elaborem os métodos de formação do laicato com base também na experiência histórica e científica da humanidade, onde também age e opera o Espírito Santo. Somente assim a Igreja poderá "traçar critérios e caminhos, baseados na experiência e na imaginação, para uma pastoral da cidade" (Puebla 441). E na falta dessa experiência, eu volto para este meu trabalho de pura imaginação pastoral com base nas orientações do Concílio, para quem a formação apostólica do laicato se faria com auxílio de "meios de formação que levem em conta os diversos tipos de apostolado nos ambientes em que são exercidos" (AA 32). E quais seriam estes meios de formação?

4. MEIOS DE FORMAÇÃO 4.1. Meios a serem empregados. Sobre os meios de formação a serem empregados, o Concílio diz o seguinte: "Aos leigos que se dedicam ao apostolado já se oferecem muitos meios, a saber, reuniões, congressos, recoleções, retiros espirituais, encontros freqüentes, conferências, livros, revistas para a compreensão mais profunda da Sagrada Escritura e da doutrina católica, para nutrir a vida espiritual, como também para conhecer as condições do mundo, encontrar e aperfeiçoar os métodos acertados. Tais meios de formação levam em conta os diversos tipos de apostolado nos ambientes em que são exercidos." (AA 32). Todos estes meios de formação citados pelo Concílio são encontros interpessoais, que podem ser encontros diretos ou presenciais (como reuniões, congressos etc.) ou encontros indiretos ou não-presenciais mediados por publicações (livros, revistas etc.). Para a formação dos leigos nos condomínios, os principais meios a serem empregados também seriam encontros interpessoais, tanto diretos (1 e 2) como mediados por publicações (3), na seguinte forma: 1. A convivência e cooperação no interior do grupo ou núcleo missionário (os encontros de formação e o trabalho dos leigos em pequenas equipes). 2. A supervisão e assessoria de um agente coordenador da pastoral. 3. A orientação pastoral fornecida através de subsídios (os cadernos de roteiros para encontros de formação e reuniões de trabalho). Com estes 3 meios, a Igreja poderia oferecer a cada leigo uma formação sistemática, permanente, segura e suficiente, graças ao auxílio destes 3 agentes eclesiais de formação: 1. Os próprios leigos membros dos núcleos missionários (ajuda recíproca). 2. O agente coordenador da pastoral (assessoria e acompanhamento). 3. A equipe responsável pela elaboração dos subsídios (orientação pastoral). Com tantos agentes de formação, não há que se temer a descentralização pastoral das paróquias, a autonomia dos leigos, nem a ausência de "líderes ou dirigentes autorizados" chefiando, fiscalizando e controlando tudo e todos em cada núcleo da cidade! Pelo contrário, o que se deveria temer e apavorar é a atual dispersão e desorientação do 132

laicato católico no mundo urbano, resultado da excessiva centralização e dependência que se vive nas paróquias. Por isso, convém refletir um pouco sobre cada um destes possíveis meios de formação do laicato para o apostolado nos seus condomínios. a) Primeiro Meio de Formação: Encontros e Reuniões do Núcleo Missionário. A respeito deste primeiro meio de formação, o Concílio diz o seguinte: "Também os grupos ou associações de leigos hão de fomentar com insistência e persistência a formação para o apostolado. Constituem eles muitas vezes a rota normal da formação acertada para o apostolado. Pois neles se encontra a formação doutrinária, espiritual e prática. Os seus membros examinam com os companheiros e amigos, em pequenas equipes, os métodos e frutos de sua atividade apostólica e comparam o seu modo de vida cotidiano com o Evangelho. Esta formação deve ser orientada no sentido de levar em conta todo o apostolado dos leigos, que há de ser exercido não apenas nas rodas das associações, mas em todas as circunstâncias através da vida toda, sobretudo da vida profissional e social." (AA 30). Orientação semelhante é dada pelo Papa João Paulo II ao falar sobre a formação dos leigos: "Na ação formativa, certas convicções tornam-se particularmente necessárias e fecundas. Antes de mais, a convicção de que não se dá formação verdadeira e eficaz se cada qual não assumir e não desenvolver por si mesmo a responsabilidade da formação, pois esta configura-se essencialmente como autoformação." (CfL 63). "Na formação que os fiéis leigos recebem na diocese e na paróquia, especialmente em ordem ao sentido da comunhão e da missão, tem particular importância a ajuda que os vários membros da Igreja se dão reciprocamente: é uma ajuda que revela e simultaneamente realiza o mistério da Igreja Mãe e Educadora." (CfL 61). "Depois, no seio de algumas paróquias, sobretudo quando vastas e dispersas, as pequenas comunidades eclesiais existentes podem dar uma ajuda notável na formação dos cristãos, podendo tornar mais capilares e incisivas a consciência e a experiência da comunhão e da missão eclesial." (CfL 61). As 3 palavras-chave deste ensinamento do Papa são "autoformação e ajuda recíproca no seio de pequenas comunidades eclesiais": este é o primeiro meio de formação do laicato nos seus condomínios. Mas só isto não basta: os leigos sozinhos e por conta própria, ainda que "reunidos", jamais conseguirão evangelizar os condomínios. É fundamental que recebam orientação e ajuda de outros membros da Igreja, e sobretudo que recebam orientação segura e ajuda qualificada. Esta é a principal razão de se criar esta pastoral específica: orientar a atuação do laicato nos condomínios da cidade. E por razões óbvias, esta orientação e ajuda precisa ser providenciada dentro dos limites do que se poderia chamar de "o mínimo necessário". Isto significa o seguinte: menos orientação e ajuda não seria suficiente para suprir às necessidades dos leigos, e mais orientação e ajuda não seria possível à Igreja oferecer. Creio que os outros 2 meios de formação citados acima (nº 2 e 3) correspondem exatamente a este "mínimo necessário", suficiente para suprir às necessidades dos leigos e possível à Igreja oferecer. Vamos ver estes 2 outros meios de formação. b) Segundo Meio de Formação: Assessoria de um Agente Coordenador. Considere o seguinte: por meio de um único agente coordenador da pastoral, a Igreja poderia acompanhar e assessorar o trabalho de todos os núcleos missionários de um vasto território urbano. Que os grupos de leigos possam contar com pelo menos uma

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pessoa realmente qualificada, disponível e interessada em ajudá-los, é o mínimo que se pode esperar para o bom desenvolvimento da pastoral. Sem esta assessoria, a quem recorreriam os leigos em caso de necessidade? E sem este acompanhamento e supervisão, como os Pastores poderão cuidar do rebanho de Cristo? Porém, o agente coordenador da pastoral não poderá fazer nada mais do que supervisionar, acompanhar e assessorar o trabalho e a atividade própria dos leigos. Sendo um só, ele não teria condições de comparecer aos encontros e animar as reuniões de todos os núcleos que coordena. Daí a necessidade de um terceiro meio de formação que desempenhe este papel, trazendo para cada encontro de cada núcleo a orientação pastoral necessária: isto pode ser feito por meio de subsídios escritos. c) Terceiro Meio de Formação: Orientação através de Subsídios. Considere agora o seguinte: com uma única equipe de pessoas, a Igreja no Brasil poderia elaborar todos os subsídios da pastoral dos condomínios, e por meio destes subsídios oferecer orientação para todos os encontros de formação de todos os núcleos missionários que se criarem nos condomínios do país (como fazemos na CF). Que os leigos recebam orientação para poderem realizar sozinhos os seus encontros e reuniões de trabalho, é o mínimo que se pode esperar para o bom funcionamento da pastoral. Sem receber nenhuma orientação, o que farão os leigos reunidos? E sem oferecer orientação, como os Pastores poderão conduzir o rebanho de Cristo? Portanto, toda a ação pastoral da Igreja nos condomínios depende basicamente de uma decisão e providência dos Pastores: convocar e reunir uma equipe pastoral que assuma a tarefa de: 1. Planejar a pastoral. 2. Formar e qualificar os agentes coordenadores da pastoral. 3. Elaborar os subsídios que orientarão o trabalho dos leigos. Vamos refletir um pouco sobre a equipe pastoral, a função dos coordenadores e sobre a organização dos subsídios de formação.

5. EQUIPE PASTORAL: COMPOSIÇÃO E MODO DE TRABALHO Se a pastoral dos condomínios é uma ação educativa - da Igreja - nos condomínios da cidade, então a equipe responsável por sua criação precisa integrar pessoas que entendam muito bem destes 3 assuntos: 1. Pedagogia. 2. Pastoral e espiritualidade cristã. 3. Condomínio. Deste modo a equipe terá condições de unir pedagogicamente a espiritualidade cristã e a vida em condomínio, elaborando uma eficaz ação educativa da Igreja nos condomínios de nossas cidades. Porém, esta ação educativa não será muito eficaz se ela expressar somente o ponto de vista pedagógico, pastoral ou sociológico da equipe responsável, por mais qualificada e 134

experiente que seja nestes assuntos. Pelo contrário, esta ação educativa será tanto mais eficaz quanto mais "católica" ela for, isto é, quanto mais ela for uma ação "de todos para todos", pois é assim que o Espírito Santo age: "Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para a utilidade de todos" (1Cor 12,7). A fé católica nos ensina que toda a riqueza e diversidade de dons, serviços e modos de agir que há na Igreja e no mundo vem de Deus, e a sua finalidade é manifestar o Espírito para a utilidade de todos. Portanto, a ação educativa mais eficaz é aquela que vem de Deus por meio de todos, para utilidade de todos. É exatamente isto o que o Papa ensina na Exortação Apostólica Christifideles Laici, ao falar da formação dos fiéis leigos: "A formação reciprocamente recebida e dada por todos". E João Paulo II termina a Exortação, dizendo: "De singular importância é a consciência de que a ação formativa, ao recorrer com inteligência aos meios e aos métodos das ciências humanas, é tanto mais eficaz quanto mais for aberta à ação de Deus: só a vide que não tem medo de se deixar podar pelo agricultor é que dá mais fruto para si e para os outros" (CfL 63). E para abrir-se à ação de Deus é preciso abrir-se à ação de todos, porque Deus "está presente em todos e age por meio de todos" (Ef 4,6), "distribuindo os seus dons a cada um, conforme ele quer" (1Cor 12,11), "para a utilidade de todos" (1Cor 12,7). Este ensinamento do Apóstolo é o fundamento da catolicidade cristã, conforme a exata expressão do Papa: "A formação reciprocamente recebida e dada por todos". Esta doutrina católica é misteriosamente bela e verdadeira, porém é um tanto dura e difícil de se engolir na prática, pois reconhecer que Deus "age por meio de todos" (e não apenas por meio de alguns, entre os quais nós geralmente nos incluímos!) muitas vezes significa para nós uma dolorosa e humilhante "poda" das nossas próprias opiniões e vontades. É por isto que o Papa compara a ação de Deus à poda do agricultor, pois a "poda" que mais receamos e que mais nos atormenta e perturba, é precisamente aquela que Deus nos faz por meio da opinião, vontade e ação dos outros, que geralmente é diferente e até contrária à nossa própria opinião, vontade e modo de agir. E quando esta "poda" nos acontece, e o nosso amor próprio se eleva acima do nosso amor a Deus e ao próximo, então a gente enrijece a nuca e teimosamente se fecha à ação de Deus e à catolicidade cristã: o diálogo cessa, a troca se interrompe, ouvidos se fecham, vozes se alteram, e começam as indiferenças, desconsiderações, separações e imposições apaixonadas. E com esta burrice e infantilidade, o que era vinho vira vinagre (falo do que acontece em mim, e talvez em outros também). E quem pode nos abrir de novo à ação de Deus (e à poda do agricultor) é a humilde caridade de Cristo. Porque só a humildade cristã é capaz de receber e aceitar tudo de Deus por meio de todos, e só a caridade cristã é capaz de tudo entregar e oferecer a Deus por meio de todos, "para que Deus seja tudo em todos" (1Cor 15,28). Se assim não fosse, não haveria ação de graças nem pedidos e súplicas, nem comunhão em Cristo. Bendito seja. Mas há ainda outra verdade para nos humilhar ainda mais: nós só podemos dar (ou ensinar) aquilo que primeiro recebemos (ou aprendemos). Pois tudo o que somos, sabemos, temos e até fazemos,16 nós recebemos de Deus por meio de todos: "Vejamos: em que você é mais do que os outros? O que é que você possui que não tenha recebido?" (1Cor 4,7). É por isso que na frase do Papa a formação é primeiro "recebida", e só depois "dada" reciprocamente por todos. Esta é a ordem justa e verdadeira: "Vocês receberam de graça, dêem também de graça!" (Mt 10,8). A caridade que tudo oferece e dá só pode nascer na humildade que tudo recebe e aceita, assim 16

Como ensina o profeta Isaías: "Javé, tu nos governarás na paz, pois és tu quem realiza tudo o que fazemos." (Is 26,12).

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como Jesus (a Caridade de Deus) nasceu de Maria (a humildade da criatura): "Eis a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra." (Lc 1,38). Portanto, é justo dizer que a equipe pastoral irá providenciar uma ação educativa tanto mais eficaz quanto mais a equipe se abrir à ação de Deus, "que age por meio de todos". Em termos práticos, isto implica duas coisas: Primeiro. Para a equipe pastoral elaborar uma eficaz ação educativa da Igreja nos condomínios, ela precisa trabalhar do mesmo modo que a abelha trabalha para produzir o mel: a abelha voa livremente pelo campo e de cada flor que encontra ela colhe o néctar, a matéria-prima para fabricar o seu mel. Ora, o campo do Senhor é o mundo, e de modo especial a sua Igreja, cujos membros são como as flores deste campo: cada pastoral, movimento, associação, escola, ordem religiosa, diocese, congregação etc., cada flor tem algo próprio e extremamente valioso a oferecer para enriquecer e tornar mais eficaz o trabalho da equipe. Se esta souber procurar e colher em cada flor do campo o néctar de uma boa idéia, de um método acertado, de uma experiência bem sucedida, de uma alternativa valiosa, de uma sugestão luminosa e de uma crítica construtiva, o resultado desta colheita será a criação de uma ação educativa mais rica, variada e "católica". E por isto mesmo, mais eficaz para formar os leigos nos condomínios. É estonteante a riqueza de dons e modos de agir que a Igreja (e o mundo inteiro) recebe de Nosso Senhor. E seria uma pena que ao lado de tanta riqueza e variedade, os leigos recebessem uma pobre e minguada formação. Para planejar a pastoral, para formar os agentes coordenadores, e sobretudo para elaborar os subsídios, a equipe responsável deveria ter em mente toda a riqueza de dons que há na Igreja (e no mundo), e com humildade e sabedoria cristã buscar ajuda, sugestão e crítica junto a outros membros da Igreja (e do mundo), podendo então com todo este néctar fabricar o seu mel, um mel rico e nutritivo para utilidade de todos os leigos. Enfim, seria muito bom para todos se a equipe pastoral adotasse como norma de trabalho o princípio básico da "catolicidade" cristã, que consiste em receber de todos a fim de dar para todos. E não há ninguém mais católico do que o Espírito de Cristo: 1. Com humildade pastoral, pedir e receber o auxílio de todos, pois "cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para a utilidade de todos" (1Cor 12,7). 2. E com caridade pastoral, examinar e selecionar o que melhor convém para que a formação se adapte a todos e seja útil para todos: "Examinem tudo e fiquem com o que é bom" (1Ts 5,21). Segundo. Para que a equipe possa "receber", os demais membros da Igreja precisam "dar". Considerando a grande quantidade de leigos a serem formados nos condomínios do país, e considerando a urgência de uma ação missionária do laicato nas grandes cidades, é de se esperar que muitos membros da Igreja (de suas pastorais, movimentos, associações, ordens religiosas e dioceses...) se interessem por auxiliar a equipe em seu trabalho, respondendo aos seus pedidos de idéias, sugestões, críticas e informações. Pois, como diz o Papa, "o problema missionário apresenta-se hoje à Igreja com tal amplitude e gravidade que só se todos os membros da Igreja o assumirem de forma verdadeiramente solidária e responsável, tanto singularmente como em comunidade, é que se poderá confiar numa resposta mais eficaz" (CfL 35). 136

"Neste diálogo entre Deus que chama e a pessoa interpelada na sua responsabilidade, situa-se a possibilidade, antes, a necessidade de uma formação integral e permanente dos fiéis leigos, a que os padres sinodais justamente dedicaram grande parte do seu trabalho. Em particular, depois de terem descrito a formação cristã como "um contínuo processo pessoal de maturação na fé e de configuração com Cristo, segundo a vontade do Pai, sob a guia do Espírito Santo", claramente afirmaram que "a formação dos fiéis leigos deverá figurar entre as prioridades da diocese e ser colocada nos programas de ação pastoral, de modo que todos os esforços da comunidade (sacerdotes, leigos e religiosos) possam convergir para esse fim". (CfL 57). Esta convergência de esforços também acontecerá se cada flor da Igreja doar um pouquinho do seu néctar para ajudar a equipe criar uma mais eficaz (e católica) ação educativa e missionária nos milhares de condomínios de nossas cidades: "O dom que cada um recebeu, ponha-o a serviço dos outros, como bons administradores da tão diversificada graça de Deus." (1Pd 4,10). Um site na Internet permitiria esta comunicação "de todos para todos". Basta querer.

6. OS AGENTES COORDENADORES DA PASTORAL 6.1. Quem seriam os coordenadores? Considerando a necessidade absoluta de agentes coordenadores para iniciar nas paróquias a pastoral dos condomínios e acompanhar o seu desenvolvimento, a primeira questão que surge é: quem seriam estes agentes? Porque sem eles a pastoral não poderá existir. Mas onde encontrá-los? Eis o problema. Para responder a esta questão, podemos fazer outra pergunta: o que se exige destes agentes? Para ser coordenador, exigem-se 2 coisas: competência e disponibilidade. A competência pode ser adquirida com uma boa formação. Mas a disponibilidade depende da condição e estado de vida da pessoa, pois cada estado e condição de vida determina uma disponibilidade própria. E quem na Igreja estaria disponível "para" esta função, em virtude do seu próprio estado e condição? Considerando a distinção que existe na Igreja entre 3 classes de fiéis (sacerdotes, religiosos e leigos), podemos dizer o seguinte: os fiéis ordenados estão (ou deveriam estar) disponíveis para aquelas tarefas que são exclusivas do ministério ordenado, porque sem eles estas tarefas não podem ser realizadas. "Na economia da redenção, existem tarefas e funções – como o oferecimento do sacrifício Eucarístico, o perdão dos pecados, o ofício do magistério – que Cristo quis ligar essencialmente ao sacerdócio, e nas quais ninguém, sem ter recebido a ordem sagrada, nos poderá substituir". (João Paulo II, Pronunciamentos do Papa no Brasil, na missa de ordenação de sacerdotes no Rio de Janeiro, 2/07/1980). Portanto, enquanto houver falta e escassez de ministros ordenados, os poucos que há não estão (ou não deveriam estar) disponíveis para outras tarefas e funções nas quais o sacerdote pode ser substituído. Por outro lado, os fiéis leigos estão (ou deveriam estar) disponíveis para aquelas tarefas a que estão obrigados em virtude da sua condição, situação e estado de vida, porque sem a atuação do leigo estas tarefas e obrigações não podem ser realizadas. Parafraseando o Papa, podemos dizer que: "Na história da criação e na economia da

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redenção, existem tarefas e funções – como a geração e a criação dos filhos, o cuidado da família, o trabalho da produção e distribuição dos bens e serviços necessários à vida, a organização da vida social, etc. – que Cristo (ou a Igreja) quis ligar essencialmente ao matrimônio (ou ao estado laical), e nas quais ninguém, sem ter recebido o Sacramento do Matrimônio (ou sem estar na condição de leigo e naquela situação particular), os poderá substituir". Portanto, enquanto houver filhos para criar, famílias para cuidar, idosos para amparar, doentes para socorrer, necessidade de bens e de serviços para se viver, misérias para combater e injustiças para sanar, isto é, enquanto houver necessidade de leigos engajados no serviço ao próximo nos vários âmbitos da vida familiar, social, profissional, cultural e política, os leigos que estão ocupados neste serviço não estão (ou não deveriam estar) disponíveis para outras tarefas e funções a que não estão obrigados pela sua condição e pelo seu estado de vida. E um leigo que trabalha, cuida de sua família e da sua casa, cumpre suas obrigações profissionais, sociais e políticas, e até estuda, e faz tudo isto numa cidade grande, esse leigo mal tem tempo para respirar, pois vive correndo como lebre atrás do necessário à vida. Como uma pessoa destas poderia arranjar tempo disponível para desempenhar as funções de coordenação de uma pastoral complicada e trabalhosa como seguramente será uma pastoral dos condomínios? Geralmente essas pessoas não têm tempo nem para dizer bom dia aos seus vizinhos de prédio. E se conseguirem algum tempo para "colaborar" com o núcleo missionário no seu prédio, elas já estarão fazendo um grande serviço e sacrifício. Resta, portanto, aquela porção do laicato que não está obrigada a viver nesta constante correria, como por exemplo os profissionais que já se aposentaram e já criaram os filhos (e que seriam excelentes coordenadores, por terem muita experiência de vida e maturidade espiritual), e também aquelas pessoas cuja situação familiar, social ou econômica os dispensa de muitas necessidades e obrigações e que poderiam por isso se dedicar às tarefas de coordenação (ou de assessoria) pastoral. Fora estas pessoas, não vejo como os demais leigos poderiam desempenhar as funções de coordenação sem faltarem com suas obrigações de estado e situação no mundo. Resta considerarmos o abençoado estado de Vida Consagrada, este "pau para toda obra" disponível no seio da Igreja: "Por sua disponibilidade ao serviço do Evangelho, a Vida Consagrada tem também condições de assumir um papel pioneiro na renovação pastoral, buscando iniciativas inovadoras. Dela espera-se, hoje, um empenho especial na linha da evangelização inculturada." (DGAE 1999-2002, 319). Como disse João Paulo II às religiosas em São Paulo: "Conheceis os motivos desta confiança que a Igreja deposita em vós: pela vossa vida de oração, sois sinal do Absoluto de Deus e da importância da contemplação; pela vossa disponibilidade sempre pronta, sois uma ponta de lança para as urgências missionárias; e pela vossa vida em fraternidade, sois afirmação de comunhão e de participação, em apelo para se viver a dimensão comunitária da Igreja. (...) O vosso compromisso de viver os conselhos evangélicos vos torna mais disponíveis para esse testemunho." (Pronunciamentos do Papa no Brasil). Parece que a disponibilidade espiritual exigida para o desempenho adequado das tarefas e funções de agente coordenador da pastoral dos condomínios é mais abundante entre os fiéis consagrados e mais escassa entre os fiéis leigos. Estes, porém, são muito mais numerosos do que aqueles, e uma coisa pode compensar a outra. De maneira que quando imagino uma pastoral nos condomínios, vejo os padres no altar (onde são insubstituíveis), vejo a maioria dos leigos nos edifícios (onde também são insubstituíveis), e um punhado de fiéis leigos e consagrados (religiosas e religiosos) tentando unir estes 2 lugares, de modo que a vida dos condomínios seja consagrada a Deus no altar das igrejas.

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Então, vamos pedir a Deus que suscite no coração de muitos leigos, e sobretudo no coração das vidas consagradas, o desejo de "assumir este papel pioneiro na renovação pastoral": a geração de pequenas comunidades eclesiais leigas nos edifícios das grandes cidades, o que só poderá acontecer se alguém assumir a coordenação da pastoral dos condomínios. E para sacudir aquela "inércia pastoral" que às vezes acomoda o clero e o laicato das grandes paróquias urbanas, só mesmo aquela "força pastoral" própria das vidas consagradas, força que "lhe vem sobretudo do fato de ser expressão do seguimento de Cristo no meio do Povo de Deus e sinal de esperança para ele". (DGAE 1999-2002, 320).

6.2. O que fariam os coordenadores? Porém, quaisquer que sejam as pessoas que Deus chamar para serem ponta de lança nesta urgência missionária, elas teriam que receber alguma formação adaptada à função e às tarefas de coordenação. E entre as possíveis tarefas do coordenador, existem 3 que não poderiam ser omitidas porque são tarefas constitutivas da própria pastoral: 1. A primeira destas tarefas seria, obviamente, atuar numa paróquia para dar início à pastoral. Nisto incluem-se todas aquelas providências e ações necessárias para que se realize na paróquia o levantamento dos fiéis que moram em condomínio, a convocação missionária destes fiéis e os encontros de proposta missionária. 2. A segunda tarefa do coordenador seria acompanhar e assessorar a criação dos núcleos, a formação dos leigos e a sua participação na vida do condomínio. Através de uma atuação claramente pedagógica (sem contudo assumir o papel de líder, chefe, professor ou animador dos núcleos), o coordenador procuraria "acompanhar" cada núcleo desde o momento de sua criação, procurando manter-se informado do que acontece em cada núcleo que coordena a fim de poder avaliar a sua ação e desenvolvimento, e orientá-lo quando julgar necessário. Assim fazia o apóstolo Paulo com todas as comunidades que formava: mesmo estando longe delas, e apesar das dificuldades de comunicação da época, o apóstolo sabia o que estava acontecendo em cada comunidade e por isso podia orientar, corrigir e ensinar cada uma delas em particular, conforme atestam as suas cartas pastorais. Para poder realizar este tipo de acompanhamento pastoral, o coordenador poderia se servir de um instrumento pedagógico bastante simples e eficaz: se cada núcleo escrever num caderno a Ata (ou uma síntese) de todas as suas reuniões e encontros de trabalho, e se depois entregar uma cópia destas Atas ao coordenador, este teria sempre em mãos a informação necessária para saber como anda cada núcleo em particular, e assim poder planejar suas intervenções e realizar um verdadeiro trabalho de acompanhamento pedagógico. Além de responder às necessidades do coordenador, isto também responderia às necessidades dos leigos: aprender a fazer uma Ata de uma reunião é parte essencial da formação dos leigos nos condomínios, pois se trata de uma atividade indispensável à vida comunitária organizada, tanto num condomínio como em uma comunidade eclesial. O registro das atividades do núcleo missionário (freqüência das reuniões, pessoas presentes, assuntos tratados, debates e decisões, planos de ação, distribuição de tarefas, resultados obtidos, auto-avaliação, dúvidas e problemas, etc.) permitiria objetivar, comunicar e conservar o que de outra forma pode dissolver-se no ar ou perder-se no esquecimento. Além de acompanhar cada núcleo, o coordenador também deveria ser capaz de assessorar, isto é, “auxiliar, tecnicamente, graças a conhecimentos especializados em 139

dado assunto” (Dic. Aurélio), toda vez que um núcleo precisar ou pedir esta ajuda. E se o coordenador não for capaz ele mesmo de resolver a questão, pelo menos ele deveria saber indicar alguém (um assessor) que possa fazê-lo ou então indicar o caminho para que o próprio núcleo encontre a solução. Esta assessoria ou ajuda externa sempre se fará necessária quando o núcleo tiver dúvidas sobre algum aspecto técnico ou prático da vida em condomínio (direito, contabilidade, comunicação, administração, engenharia etc.), ou quando houver dúvidas sobre questões éticas e alternativas de ação, ou ainda quando houver divisão e conflitos de opinião entre os membros do núcleo, etc. Nestas ocasiões, a existência de uma pessoa qualificada e disponível a quem recorrer será um fator decisivo para que os núcleos não se desorientem ou se desintegrem, e os leigos não desanimem, mas perseverem na caminhada. 3. A terceira tarefa do coordenador seria promover a cooperação entre os núcleos vizinhos de uma mesma paróquia, e aos poucos ampliar esta cooperação até unir os núcleos de um mesmo setor, região, cidade, etc. Esta cooperação é necessária não só para desenvolver e aprofundar a dimensão eclesial dos núcleos e evitar o seu isolamento, como também para responder às necessidades dos moradores dos condomínios, cujos problemas comuns só poderão encontrar solução adequada através da cooperação entre núcleos e condomínios. Entre as possíveis formas de cooperação que a pastoral dos condomínios poderia promover, algumas me parecem particularmente úteis e necessárias, a começar pela criação de estruturas de comunicação sem as quais não será possível nenhuma forma de cooperação entre as pessoas. Além das indispensáveis estruturas de comunicação, podemos imaginar formas específicas de cooperação com a finalidade de responder a certas necessidades comuns da população dos prédios, tais como a criação de uma Associação dos moradores de condomínio (para dar assistência técnica e jurídica na defesa de direitos comuns), a organização de um Serviço de proteção aos moradores (à semelhança do SPC - Serviço de Proteção ao Crédito, mas destinado agora à proteção "dos moradores" em relação a empresas e profissionais golpistas que atuam nos condomínios da cidade), e outros tipos de serviço e de ação solidária, como acolhida aos novos moradores do prédio, auxílio em situações de emergência doméstica, de desemprego, partilha de transporte (as caronas urbanas), e também iniciativas de integração eclesial e social que promovam a participação e colaboração dos núcleos e condomínios com as campanhas e as ações pastorais da Igreja e da sociedade civil tendo em vista o bem comum. (Trato dessas possibilidades de cooperação com mais detalhes no ANEXO que está no final do texto, na pág. 175.) * * * Passo agora a refletir um pouco sobre o terceiro meio de formação dos leigos nos condomínios, e que seria a orientação pastoral oferecida através de "subsídios" (lembrando que os outros meios desta formação seriam os "encontros e reuniões de trabalho do núcleo missionário", e o "acompanhamento de um agente coordenador da pastoral"). Uma vez, porém, que a necessária "autonomia" dos leigos em seus condomínios só dará os frutos esperados se for devidamente orientada por meio de subsídios escritos, é de se esperar que a elaboração destes subsídios se faça com critérios adequados à função pedagógica que deverão desempenhar ao longo de todo este processo auto-formativo dos leigos. Tendo como ideal e modelo a qualidade exemplar dos textos-base da Campanha da Fraternidade, e consciente das dificuldades inerentes a qualquer ação educativa que se 140

pretenda realizar por meio apenas de "textos escritos", apresento a seguir algumas reflexões sobre a estrutura ou forma de organização que me parecem mais adequadas aos subsídios desta formação.

7. OS SUBSÍDIOS DA FORMAÇÃO 1. Princípios estruturais dos subsídios da formação. A grande diversidade de leigos a serem formados coloca à pastoral dos condomínios o seguinte desafio: como elaborar um único conjunto de subsídios que se adapte a essa diversidade de pessoas, situações, necessidades, capacidades, condições e interesses que existem nos milhares de condomínios do país? O caminho para se encontrarem soluções práticas a este desafio é indicado nesta frase: "Nas coisas necessárias reine a unidade, nas duvidosas a liberdade, em tudo a caridade." (GS 92). Partindo deste princípio básico da catolicidade cristã, devemos nos perguntar: na formação dos leigos nos condomínios, o que precisa ser invariável e claramente determinado (porque é necessário que assim seja) e o que pode ser indeterminado, flexível e livre? Para que a formação oferecida seja a mesma para todos e ao mesmo tempo possa diversificar-se e adaptar-se a cada situação particular, é preciso encontrar o melhor equilíbrio possível entre duas exigências contrárias: a necessária unidade (e unicidade) da formação oferecida e a necessária diversidade (e pluralidade) da formação recebida. Pois numa formação, nem tudo precisa ser obrigatório, determinado e inflexível, mas nem tudo tampouco pode ser indeterminado, flexível e livre. Há que se buscar um meio-termo, pois "a virtude se encontra entre dois vícios opostos: o excesso e a falta" (São Vicente de Paulo). 1.1. Máxima flexibilidade e adaptabilidade possível. Para que se alcance este equilíbrio, a formação do laicato precisaria ter uma organização flexível e uma estrutura aberta em tudo aquilo que não comprometa a unidade e a coerência necessárias da formação. Pois existem inúmeros aspectos e detalhes de organização e de estrutura que podem perfeitamente ser flexíveis, isto é, que podem ser livremente e diversamente escolhidos e determinados por cada núcleo missionário, sem que isto em nada comprometa a unidade básica e a coerência necessária da formação, como por exemplo:      

A definição dos locais, datas e horários dos encontros; A duração e a periodicidade dos encontros; O ritmo de trabalho e evolução de cada grupo; A seqüência (ou a ordem) em que serão tratados diversos temas ou conteúdos da formação; O tamanho do grupo e o número de pessoas que participam de um encontro e que colaboram nas suas atividades; A organização interna dos grupos, a distribuição de papéis, tarefas e funções necessárias a cada encontro ou atividade do grupo;

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 

O tipo de suporte material dos subsídios (se são textos impressos vendidos em livrarias, ou textos digitais distribuídos gratuitamente pela Internet, por exemplo); etc...etc...etc...

Estes detalhes de organização e estrutura podem nos parecer insignificantes e sem importância. Porém, não será significativo o fato destes "detalhes" serem todos eles cuidadosamente e rigidamente pré-determinados de modo inflexível pelas estruturas escolares e tradicionais de formação que ainda encontramos por toda parte, tanto fora da Igreja como dentro da Igreja? E freqüentemente, é a rigidez de alguns detalhes "circunstanciais" de tempo, lugar, conteúdo ou método, o que torna as melhores oportunidades de formação oferecidas pela Igreja inacessíveis (ou inadequadas) à maioria do laicato, pois neste caso ou o leigo se adapta a todos os detalhes e circunstâncias da formação oferecida, ou então não pode (ou não se interessa em) participar dela. A excessiva rigidez "circunstancial" de toda formação concebida e organizada nos moldes escolares tradicionais, exige que todo mundo se adapte ao molde pré-estabelecido, como se fosse possível a todo mundo calçar e usar um mesmo número de sapato! Portanto, o desafio de uma pastoral dos condomínios (e também das demais pastorais ambientais) é encontrar uma forma de organizar os subsídios de modo que a formação oferecida seja a mais flexível possível e, nos seus métodos, tempos, lugares e conteúdos, seja adaptável à grande diversidade de situações, interesses, capacidades, necessidades e tarefas dos cristãos leigos (cf. DGAE 1999-2002, n.317). Isto exige que se introduzam algumas modificações estratégicas na maneira habitual de se conceber e elaborar subsídios de formação para leigos. Refiro-me aqui aos subsídios que se costuma oferecer ao povo nos grandes projetos de evangelização, tais como novenas de Natal, Campanha da Fraternidade, PRNM, SINM, etc. Sem desconhecer a necessidade e o valor inestimável destes subsídios e do tipo de formação que eles proporcionam, creio que é necessário avançar e ir um pouco mais adiante na busca de novas formas e de novos caminhos para a formação do laicato, reconhecendo em primeiro lugar que a formação proposta nestes subsídios costuma ser pouco flexível nos seus tempos ou lugares, conteúdos ou métodos (e portanto é pouco adaptável à diversidade de situações e tarefas dos cristãos leigos). Geralmente, estes subsídios são pouco flexíveis nos seus tempos, na medida em que se estabelecem datas, prazos e cronogramas de atividades rigidamente atrelados ao calendário litúrgico ou civil. Ou então, são pouco flexíveis nos seus conteúdos, na medida em que se definem os conteúdos e a sua organização a partir de esquemas teológicos e catequéticos ou a partir dos livros da Bíblia, e não a partir dos problemas e perguntas relacionados às atividades normais dos leigos no mundo. Outras vezes, são pouco flexíveis nos seus métodos, na medida em que se utilizam métodos mais próximos do "ensino teórico e tradicional" do que dos métodos ativos, explorando-se muito pouco as possibilidades pedagógicas do "trabalho em equipes" onde cada grupo exercite a própria capacidade de ver, julgar e agir com a autonomia (e a orientação) necessárias ao seu desenvolvimento. A formação do laicato nos condomínios (e também nos seus demais ambientes de vida e atuação: trabalho, escola, família...) exige que se busquem novas metodologias pedagógicas na elaboração de subsídios. Antes de tudo, para que esta formação seja de fato "possível" (e não apenas desejada e continuamente adiada). E sobretudo, para que ela "seja orientada predominantemente para a atuação nas transformações sociais, onde o testemunho dos leigos é especialmente qualificado" (DGAE 1999-2002, n.317).

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Adotando então o princípio pedagógico e pastoral da "máxima flexibilidade e adaptabilidade possível", vamos refletir sobre cada um dos aspectos da formação e ver até que ponto é possível torná-los flexíveis, diversificáveis e adaptáveis. a) Lugar. A própria estrutura de uma formação concebida essencialmente como "autoformação" (CfL 63), baseada no trabalho em equipes, com o auxílio de subsídios escritos e o acompanhamento de um agente coordenador da pastoral, já permite que o lugar da formação seja livremente escolhido e diversamente determinado por cada núcleo missionário. Neste caso, não há nenhuma "necessidade" de centralizar a formação dos leigos nos espaços da paróquia ou da Igreja. Esta "autoformação" pode acontecer em qualquer lugar da cidade, conforme a diversidade de situações e tarefas dos cristãos leigos. b) Tempos. As datas, os prazos e a ordem (ou seqüência) são os principais aspectos da organização temporal da formação. Quais destes aspectos podem ser flexíveis, e quais não podem sê-lo? Datas. (Data é a "indicação precisa do ano, mês ou dia em que deverá ocorrer algum fato", conforme o Dicionário Aurélio). Para que os subsídios possam ser utilizados a qualquer tempo por todos os núcleos missionários que forem se criando nos condomínios do país, a formação proposta não pode obviamente estar atrelada a datas e tempos do calendário civil ou litúrgico, pois cada núcleo iniciará a sua formação numa época diferente. Os subsídios mais amplamente utilizados na formação do laicato (tais como as novenas, a CF, PRNM, SINM, etc.) geralmente determinam rigidamente as datas e as épocas da formação proposta. Isto não pode acontecer nos subsídios de uma pastoral dos condomínios, que deveriam ser totalmente desvinculados do calendário litúrgico ou civil. As datas e épocas da formação devem ser flexíveis, para que possam ser livremente determinadas por cada núcleo conforme a sua situação particular. Prazos. ("Espaço de tempo durante o qual deve realizar-se alguma coisa", Aurélio). Para se respeitar o ritmo de trabalho de cada núcleo, a formação não pode organizar-se segundo períodos de tempo definidos que estipulem prazos para se fazer isto ou aquilo. Pois cada grupo terá um ritmo próprio (e diferente) de trabalho e evolução. Alguns grupos poderão se reunir com bastante freqüência em encontros prolongados. Outros só poderão se reunir de vez em quando em encontros mais rápidos. Alguns grupos serão muito ativos fora das reuniões, enquanto outros só conseguirão fazer algum trabalho durante o tempo das reuniões. Alguns serão capazes de evoluir rapidamente, outros serão bastante lentos no seu desenvolvimento. Haverá momentos em que o grupo será obrigado a diminuir e até interromper o trabalho. Em outros momentos poderá acelerar... Toda esta diversidade de ritmos e andamentos deveria ser respeitada, e nada disso deveria afetar ou atrapalhar a sua formação. Para não impor aos núcleos um mesmo ritmo de trabalho, seria preciso conceber uma formação organizada em unidades e sub-unidades (isto é, em etapas, fases ou estágios; em módulos temáticos; e em propostas concretas de trabalho, etc.) sem nenhum prazo definido para sua realização ou conclusão, de maneira que cada núcleo possa avançar no seu próprio ritmo, com total liberdade para programar seus encontros e suas atividades conforme a sua situação particular. Uma vez concluída uma etapa, um módulo temático,

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ou uma tarefa específica, passa-se ao seguinte, e assim por diante. Se um grupo demorar cinco anos para concluir uma etapa ou um módulo da formação, muito bem! Se outro grupo demorar apenas um mês, muito bem! O importante não é que se cumpram prazos pré-determinados na realização de uma tarefa, mas que todos recebam a formação necessária e estejam a caminho. Ordenação. (É a "organização dos elementos de um conjunto de acordo com uma relação de ordem com a qual se atribui, a todo elemento, um antecedente e um sucessor", Aurélio). Geralmente, os programas tradicionais de formação impõem aos alunos uma ordem (ou seqüência) inflexível e imutável para todos os seus conteúdos e atividades, como se tal ordenação fosse absolutamente necessária, a única possível e a melhor para todo mundo: "primeiro os alunos vão fazer isto, depois aquilo, e assim sucessivamente ao longo de toda a sua formação". E deste modo, não se dá ao aluno nenhuma margem de liberdade para ele mesmo escolher e determinar pelo menos a ordem de algumas das atividades que compõem a sua própria formação, impedindo que esta se organize também em função dos interesses e necessidades dos próprios alunos. E geralmente, esta "ordem" inflexível é imposta a um conjunto de conteúdos e de atividades educacionais também pré-selecionados e pré-determinados de modo inflexível e imutável, de maneira que o aluno não pode jamais escolher e determinar nenhum dos conteúdos ou atividades de sua própria formação. No ensino tradicional, tudo lhe é imposto: tanto os conteúdos e atividades educacionais, como a sua ordenação ao longo do tempo. Também aqui é preciso se perguntar: onde a ordenação curricular é necessária, e onde ela não é necessária? É preciso fazer este discernimento para poder organizar os subsídios de modo que "nas coisas necessárias" a composição e ordenação curricular seja determinada, inflexível e idêntica para todos, e "nas duvidosas" ou desnecessárias ela seja flexível e livremente determinada por cada grupo. Vamos tentar discernir uma coisa da outra. 1.2. Discernir os conteúdos necessários e a ordem necessária. Construir pedagogicamente uma "nova realidade" é como construir uma casa. Em primeiro lugar, uma casa é necessariamente composta por alguns elementos constitutivos essenciais: os alicerces ou fundações, as paredes, o teto, e as aberturas por onde entrar e sair. Se faltar uma destas coisas, não existe uma casa. Portanto, a construção de uma casa tem que incluir todas as atividades necessárias para se construir o alicerce, as paredes, o teto e as aberturas (portas e janelas). Em segundo lugar, a construção de uma casa exige que se realizem as atividades necessárias numa ordem também necessária: Como alguém poderá colocar um telhado sobre paredes que ainda não construiu? E como alguém poderá levantar as paredes, se não construir primeiro os alicerces? E como poderá construir os alicerces sem antes preparar o terreno para isto? Portanto, a construção de uma casa exige que se faça de modo ordenado todas as coisas necessárias à obra que se pretende realizar. E se faltar uma (e apenas uma) das atividades necessárias, seja por omissão ou por inversão da ordem, a obra se interrompe, não pode ser concluída, ou então resulta em algo disforme e imprestável. Se é assim para se construir uma casa ou um prédio, também é assim para se edificar a Igreja na cidade (isto é, para evangelizar a cidade). Daí a importância (e também a dificuldade) do planejamento pastoral e pedagógico, pois qualquer omissão ou desordem na organização das ações pastorais e educativas simplesmente impede que elas se completem e atinjam o seu fim, a sua finalidade: "De fato, se alguém de vocês

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quer construir uma torre, será que não vai primeiro sentar-se e calcular os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar? Caso contrário, lançará o alicerce e não será capaz de acabar. E todos os que virem isso, começarão a caçoar, dizendo: "Esse homem começou a construir e não foi capaz de acabar." (Lc 14,28-30). Do mesmo modo, para elaborar os subsídios e organizar a formação dos leigos nos condomínios, a Equipe Pastoral precisa primeiro "sentar-se e calcular os gastos", isto é, precisa sentar-se e refletir sobre as condições e atividades necessárias para o laicato poder evangelizar os seus condomínios e neles construir relações comunitárias cristãs. E este "cálculo" consistiria precisamente em enumerar e co-ordenar todas as coisas necessárias à realização desta obra, segundo a mesma lógica de raciocínio ou razão prática de um construtor de casas e edifícios. 1.3. O "fim" como princípio de organização. A desordem pedagógica que reina na maioria dos processos educativos que conheço parece ser fruto de uma insuficiente definição das finalidades da ação educativa e de um deficiente cálculo das condições necessárias (ou meios) para se alcançar estas finalidades. Alguns educadores sequer definem a finalidade da ação educativa que desenvolvem! Outros, definem finalidades tão vagas, confusas e abstratas, que depois não conseguem discernir nenhuma ação concreta que conduza a tais metas e objetivos. A julgar pelo que conheci como aluno e discípulo ao longo de toda a minha vida, parece que uma grande parte dos mestres e educadores profissionais educam por educar, sem rumo certo nem objetivo definido: simplesmente aceitam quaisquer orientações curriculares oficiais das autoridades competentes, adotam qualquer material didático vendido no mercado, e seguem um plano de ação feito por outros, sem jamais se perguntarem seriamente qual é a finalidade última disso tudo que estão fazendo. Ora, o princípio organizador de nossas ações intencionais reside na sua finalidade: o fim é o princípio de organização. Se o fim é visualizado e concebido confusamente, o critério para organizar nossas ações será também um critério confuso, e o resultado será uma ação confusa e desordenada: agimos e não alcançamos o fim esperado, simplesmente porque não sabemos direito o que queremos alcançar. Queremos coisa vaga e indefinida! É somente esclarecendo os fins que podemos discernir os meios necessários para alcançá-los. Então, vamos esclarecer novamente os fins: o que queremos com uma pastoral dos condomínios? Qual seria a finalidade de uma ação educativa da Igreja nos condomínios da cidade?

2. Finalidade da ação pastoral : evangelizar o condomínio. 2.1. Exigências intrínsecas da evangelização. De acordo com o objetivo geral da ação da Igreja no Brasil, a finalidade desta ação educativa seria evangelizar o condomínio. E para a Igreja fazer isto, os leigos precisam testemunhar Jesus Cristo nos seus condomínios por meio da comunhão fraterna, do serviço à comunidade condominial, do diálogo com todos que ali vivem e trabalham, e do anúncio do Evangelho. Estas são as coisas necessárias da evangelização, do mesmo modo que alicerce, paredes, teto e aberturas são necessárias a uma casa. Os fiéis leigos jamais conseguirão "testemunhar Jesus Cristo" nos seus condomínios se não estiverem 145

unidos entre si, se não prestarem nenhum serviço à comunidade condominial, se não se comunicarem com ela e se não falarem do Evangelho. É absolutamente impossível "testemunhar Jesus Cristo" sem fazer estas quatro coisas essenciais: elas são as ações constitutivas (ou exigências intrínsecas) do testemunho cristão. Mas além de serem exigências intrínsecas da evangelização, será que não haveria também uma ordem intrínseca nestas quatro ações? Ou será que elas podem ser realizadas em qualquer ordem e de qualquer jeito? 2.2. Ordem intrínseca da evangelização. Para ser verdadeiro, eficaz e suscitar a fé em Cristo, o testemunho cristão nos condomínios há de se organizar (ou ordenar-se) de acordo com o exemplo de Jesus, dos apóstolos e de todos os santos da Igreja: "Eu lhes dei um exemplo: vocês devem fazer a mesma coisa que eu fiz." (Jo 13,15). "Pois, enquanto consideramos a vida daqueles que seguiram fielmente a Cristo, somos instruídos sobre o caminho seguríssimo pelo qual podemos chegar à perfeita união com Cristo, ou seja à santidade." (LG, 50). E a primeira coisa que vemos e aprendemos ao contemplar esta nuvem de testemunhas, é a universalidade do diálogo (ou da comunicação) como instrumento de comunhão, de serviço e de anúncio. Sem diálogo (ou qualquer forma de comunicação) não é possível haver comunhão, serviço ou anúncio. No testemunho dos santos, o diálogo (verbal e não-verbal) não é uma ação separada que vem antes ou depois ou entre as outras ações, mas é uma atividade permanente que acompanha e realiza todas elas. É por meio do diálogo e da comunicação que os santos entram na comunhão, prestam serviço e anunciam o Reino de Deus: 

O diálogo é instrumento de comunhão com Deus: "O aspecto mais sublime da dignidade humana está nesta vocação do homem à comunhão com Deus. Este convite que Deus dirige ao homem, de dialogar com ele, começa com a existência humana." (Catecismo, 27).



O diálogo é instrumento de comunhão eclesial: "No interior da comunidade eclesial, o diálogo deve ser uma regra permanente para a boa convivência e o aprofundamento da comunhão." (DGAE 2003-2006, n.132).



O diálogo é instrumento de comunhão universal: "Antes da formação específica para o diálogo ecumênico, inter-religioso ou intercultural, é importante ajudar a todos a reconhecer que, somente no diálogo, a pessoa pode realizar-se. A pessoa não se desenvolve num "esplêndido isolamento", mas na comunicação constante com os outros, a começar pela família." (DGAE 2003-2006, n.89).



O diálogo é instrumento de serviço ao próximo: "Então Jesus parou, chamou os dois cegos, e disse: "O que vocês querem que eu faça por vocês?" Eles responderam: "Senhor, queremos que nossos olhos se abram." (Mt 20,32-33).



E o diálogo é instrumento de anúncio: "Um aspecto da pedagogia do anúncio que merece destaque é a necessidade de conceber o anúncio também em termos de diálogo e, especificamente, de reflexão sobre a experiência de vida, abrindo-a a seu verdadeiro sentido. (...) Por isso, o anúncio procura partir da experiência de vida das pessoas, dialogar com elas." (DGAE 2003-2006, n.97).

Portanto, o diálogo cristão (seja ele verbal ou não-verbal) se orienta sempre para a comunhão em Cristo, para o serviço ao próximo e para o anúncio do Evangelho: "Aí está o desafio do diálogo: tornar possível a união e o entendimento entre todos." (DGAE

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2003-2006, n.87). Fora disso e orientado para outra coisa, o diálogo é conversa fiada, maledicência, comunicação inútil ou perniciosa da qual seremos todos julgados: "Eu digo a vocês: no dia do julgamento, todos devem prestar contas de cada palavra inútil que tiverem falado." (Mt 12,36). A segunda coisa que vemos no exemplo dos santos é que antes de ensinar a Verdade aos outros, todos eles procuraram primeiro praticá-la. Esta ordem (ou seqüência) foi claramente expressa e determinada pelo Senhor: "Por que você fica olhando o cisco no olho do seu irmão, e não presta atenção à trave que está no seu próprio olho? Ou como você se atreve a dizer ao irmão: 'deixe-me tirar o cisco do teu olho', quando você mesmo tem uma trave no seu? Hipócrita, tire primeiro a trave do seu próprio olho, e então você enxergará bem para tirar o cisco do olho do seu irmão." (Mt 7, 3-5). Portanto, a ordem intrínseca do testemunho cristão é primeiro praticar e depois ensinar os outros a fazer o mesmo, como nos ensina Jesus: "Portanto, quem desobedecer a um só desses mandamentos, por menor que seja, e ensinar os outros a fazer o mesmo, será considerado o menor no Reino do Céu. Por outro lado, quem os praticar e ensinar, será considerado grande no Reino do Céu." (Mt 5,19). Aquele que se põe a falar e ensinar sem praticar (como eu estou fazendo aqui), é semelhante aos doutores da Lei e aos fariseus hipócritas, a respeito dos quais Jesus disse: "Não imitem suas ações, pois eles falam e não praticam. Amarram pesados fardos e os colocam no ombro dos outros, mas eles mesmos não estão dispostos a movê-los, nem sequer com um dedo." (Mt 23, 3-4). Além de merecer todas estas condenações do Senhor, qual seria o resultado ou a eficácia de um anúncio verbal e explícito do Evangelho nos condomínios sem nenhum serviço prestado à comunidade e sem a união entre os que pregam o Evangelho? Pode semelhante "anúncio" suscitar nos outros a fé em Cristo? O mais provável é que semelhante "anúncio" (ou falatório) suscite nos outros o seguinte pensamento: "Eles dizem que conhecem a Deus, mas negam isso com os próprios atos, pois são cheios de ódio, desobedientes e incapazes de fazer qualquer obra boa." (Tt 1,16). O anúncio explícito do Evangelho nos condomínios supõe a comunhão fraterna entre aqueles que o anunciam, o serviço à comunidade e o diálogo com as pessoas. Sem isto, tal "anúncio" seria um atrevimento hipócrita, ineficaz e sem sentido. "Sejam praticantes da Palavra, e não apenas ouvintes [ou pregadores], iludindo a si mesmos." (Tg 1,22). "Filhinhos, não amemos com palavras nem com a língua, mas com obras e de verdade." (1Jo 3,18). Portanto, antes de falar do Evangelho aos outros moradores, os fiéis leigos "praticantes" precisam primeiro aprender a praticar (com diálogo) a comunhão fraterna entre si e o serviço ao condomínio, pois "a coerência de vida dos cristãos com sua fé é condição de eficácia da evangelização". (DGAE 2003-2006, n. 193). É o que nos ensina Paulo VI, considerando sobretudo a evangelização dos jovens: "Estes 'sinais dos tempos' deveriam encontrar-nos vigilantes. Tacitamente ou com grandes brados, sempre porém com grande vigor, eles [os jovens] fazem-nos a pergunta: Acreditais verdadeiramente naquilo que anunciais? Viveis aquilo em que acreditais? Pregais vós verdadeiramente aquilo que viveis? Mais do que nunca, portanto, o testemunho da vida tornou-se uma condição essencial para a eficácia profunda da pregação. Sob este ângulo, somos, até certo ponto, responsáveis pelo avanço do Evangelho que nós proclamamos." (EN 76).

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E a terceira coisa que percebemos no testemunho dos santos é que o serviço ao próximo é fruto da comunhão cristã. Sem estar na comunhão dos santos, ninguém é capaz de servir ao próximo, pois só "o amor é prestativo e não procura seu próprio interesse" (1Cor 13,4-5). Como alguém poderá amar e servir os outros sem estar unido a Cristo? "Quem fica unido a mim, e eu a ele, dará muito fruto, porque sem mim vocês não podem fazer nada." (Jo 15,5). E como alguém poderá estar unido à Cabeça se não estiver unido ao Corpo? "Pois assim como a comunhão entre os cristãos da terra nos aproxima de Cristo, da mesma forma o consórcio com os santos nos une a Cristo, do qual como de sua fonte e cabeça promana toda a graça e a vida do próprio Povo de Deus." (LG 50; cf. Catecismo 957). Ninguém pode unir-se a Cristo sem unir-se aos seus membros (da terra e do céu), pois "há um só Corpo e um só Espírito" (Ef 4,4). E não há unidade do Espírito sem unidade do Corpo: "Para conservar a unidade do Espírito, mantenham entre vocês laços de paz: sejam humildes, amáveis, pacientes e suportem-se uns aos outros no amor." (Ef 4,2-3). Assim como não há unidade do Corpo sem unidade do Espírito: "Em Jesus Cristo, por meio do Evangelho, somos chamados a participar da mesma herança, a formar o mesmo corpo e a participar da mesma promessa." (Ef 3,6). "Pois todos fomos batizados num só Espírito para sermos um só corpo." (1Cor 12,13). "Vivendo amor autêntico, cresceremos sob todos os aspectos em direção a Cristo, que é a Cabeça. Ele organiza e dá coesão ao corpo inteiro, através de uma rede de articulações, que são os membros, cada um com sua atividade própria, para que o corpo cresça e construa a si próprio no amor." (Ef 4,15-16). Portanto, o testemunho dos leigos nos seus condomínios deve começar pelo fim, pela sua finalidade última: a comunhão de amor que se realiza na união das pessoas que se unem a Cristo. "O fim último da missão é fazer participar na comunhão que existe entre o Pai e o Filho: os discípulos devem viver a unidade entre si, permanecendo no Pai e no Filho, para que o mundo conheça e creia." (RMi 23). "Por isto, rezou Cristo, na Última Ceia: "Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que também eles sejam em nós um só, para que o mundo creia que tu me enviaste." (Jo 17,21). Nesta comunhão está o fundamento da fecundidade da missão." (RMi 75). Esta comunhão, portanto, é o fundamento e o fim da missão, como ensina o apóstolo João: "Isso que vimos e ouvimos, nós agora o anunciamos a vocês, para que vocês estejam em comunhão conosco. E a nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo." (1Jo 1,3). Ou seja, a evangelização dos condomínios deve começar necessariamente pela união dos cristãos leigos que lá vivem. As demais exigências intrínsecas desta ação evangelizadora (o diálogo com o condomínio, o serviço ao condomínio, e o anúncio do Evangelho ao condomínio) serão os frutos desta união dos leigos em Cristo: "A partir da comunhão intra-eclesial, a caridade abre-se, por sua natureza, ao serviço universal, frutificando no compromisso de um amor ativo e concreto a cada ser humano." (Novo Millennio Ineunte 49). Esta é a ordem necessária das coisas, como ensina o Papa: "Antes de planejar iniciativas concretas [de diálogo, serviço e anúncio no condomínio], é preciso promover uma espiritualidade da comunhão [entre os próprios cristãos leigos que lá vivem]." (DGAE 2003-2006, n. 18). Como podemos ver, há no testemunho cristão uma ordem intrínseca e necessária que não pode ser alterada, sob pena de transformar-se inadvertidamente numa "desordem" e num contra-testemunho incoerente e irracional. Esta ordem intrínseca do testemunho cristão pode ser esquematizada do seguinte modo:

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-Comunhão-diálogo-

-Serviço-diálogo-

-Anúncio-diálogo-

Esta é a estrutura básica (e o dinamismo intrínseco) da ação evangelizadora, que integra quatro exigências intrínsecas, todas elas essenciais, numa ordem também intrínseca e toda ela essencial. E quaisquer que sejam os modos e as circunstâncias de sua realização, a ação cristã no mundo (isto é, a evangelização) tem sempre esta mesma estrutura e este mesmo dinamismo, conforme o exemplo de Jesus, dos apóstolos e de todos os Santos. Este é um critério simples, prático e objetivo para o planejamento pastoral e sobretudo para pensar a formação do laicato e elaborar os subsídios desta formação.

3. As etapas sucessivas e necessárias da formação. Considerando a estrutura básica da ação evangelizadora e o dinamismo intrínseco do testemunho cristão, já podemos começar a discernir as três etapas sucessivas e necessárias para a formação missionária dos leigos nos condomínios. E cada uma dessas etapas se definiria (e se organizaria) em função de uma finalidade específica e na seguinte ordem: 1) (primeira etapa da formação) Comunhão entre os membros do núcleo missionário. 2) (segunda etapa da formação) Serviço ao condomínio. 3) (terceira etapa da formação) Anúncio do Evangelho ao condomínio. E tendo em mente estas finalidades ordenadas da formação, é possível então pesquisar os meios pedagógicos e discernir as ações educativas necessárias para se alcançar a finalidade específica de cada etapa da formação. E considerando que estas etapas não são coisas estanques, nem processos isolados e fechados em si mesmos, mas são fases de um crescimento natural e orgânico que deve ocorrer segundo o dinamismo intrínseco e próprio do testemunho cristão, a pergunta que deve orientar a nossa reflexão pastoral e a nossa pesquisa pedagógica também precisa ser formulada dinamicamente, isto é, de acordo com esse dinamismo intrínseco do testemunho cristão. Então, para elaborar os subsídios necessários a cada etapa da formação, podemos nos perguntar assim: 1) Primeira etapa: Que atividades educativas é preciso propor para que os membros do núcleo missionário possam promover entre si uma forma de comunhão eclesial intrinsecamente orientada para o serviço ao condomínio? 2) Segunda etapa: Que atividades educativas é preciso propor para que os núcleos missionários possam desenvolver no seu condomínio uma forma de serviço intrinsecamente orientado para o anúncio do Evangelho ao condomínio? 3) E terceira etapa: Que atividades educativas é preciso propor para que os núcleos missionários possam desenvolver no seu condomínio uma forma de anúncio do Evangelho intrinsecamente orientado para a integração e participação dos outros moradores na sua comunhão eclesial-condominial?

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Pois não é qualquer forma de comunhão eclesial que se orienta naturalmente para o serviço ao condomínio. (A forma "paroquial" de comunhão eclesial, ou a forma "vicentina", por exemplo, e outras mais que podemos considerar, não se orientam naturalmente ou intrinsecamente para este serviço.) Nem é qualquer forma de serviço ao condomínio que se orienta intrinsecamente para o anúncio do Evangelho ao condomínio. E não é qualquer forma de anúncio do Evangelho que se orienta necessariamente para a integração e participação dos demais moradores na comunhão eclesial-condominial. Discernir estas "formas" concretas de comunhão, serviço e anúncio, e encontrar os meios pedagógicos adequados para realizá-las, é o grande desafio que se coloca à inculturação do Evangelho nas comunidades condominiais: "A primeira exigência da inculturação é pensá-la como um processo de longa duração, o que implica prever de antemão uma caminhada com diversas etapas, sem a pretensão de alcançar imediatamente as metas que indicam o rumo do processo." (DGAE 1995-1998, n. 187). O que eu estou tentando fazer aqui é discernir as metas e as etapas desse processo, e encontrar os meios pedagógicos necessários para orientar os leigos nesta caminhada. E é evidente que este discernimento não se fará por obra de algumas pessoas apenas, mas de uma multidão de discípulos interessados nesta inculturação missionária do Evangelho nos milhares de condomínios residenciais de nossas cidades. E para concluir este meu interminável falatório, vou fazer algumas observações e sugestões sobre a forma de comunhão, serviço e anúncio que julgo adequada para este caso. 3.1. PRIMEIRA ETAPA - Comunhão entre os membros do núcleo missionário. Esta primeira etapa da formação deveria ser pensada como uma espécie de Introdução Geral que permitisse aos leigos: a) Definir alguns aspectos práticos de dinâmica de trabalho e de reunião para o grupo. b) Promover no grupo uma espiritualidade de comunhão por meio da Palavra e da Oração. c) Ter uma visão geral da estrutura e funcionamento do próprio condomínio. d) Ter uma visão geral da estrutura e funcionamento da Pastoral e da Formação proposta. Isto permitiria integrar e unir os aspectos práticos de dinâmica de grupo com a espiritualidade de comunhão cristã, de modo que tais práticas sejam animadas pelo espírito cristão e de modo que a espiritualidade cristã se encarne em regras práticas de relacionamento e funcionamento do grupo. Isto também permitiria integrar e unir a realidade secular da comunidade condominial (Mundo) com a proposta pastoral cristã da comunidade eclesial (Igreja), de modo que os problemas e necessidades do condomínio encontrem respostas e soluções cristãs e de modo que a religião cristã ajude o povo dos condomínios a encontrar caminhos de vida para todos, com justiça, paz, amor e liberdade. E isto permitiria sobretudo orientar (ou ordenar) a comunhão eclesial do núcleo para o serviço cristão ao condomínio, de modo que esta comunhão que se promove por meio da Palavra, da Oração e da reunião dos fiéis venha a produzir frutos e serviços ao

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condomínio, e de modo que estes frutos e serviços expressem e comuniquem a comunhão do grupo no mesmo e único Espírito de Cristo. Como, no entanto, a finalidade primeira desta fase Introdutória da formação é "promover a comunhão entre os membros do núcleo missionário", é sobretudo para esta finalidade que se deveria orientar a maior parte das atividades educacionais propostas nesta primeira etapa da formação, de modo que se abordem e se resolvam os principais aspectos e problemas de dinâmica de trabalho e reunião do grupo, e de modo que se explorem as principais possibilidades de estudo da Palavra e de Oração orientadas para a promoção de uma espiritualidade de comunhão entre os próprios membros do núcleo. E apenas secundariamente, enquanto finalidade segunda, é que se deveria promover uma visão geral e rápida do condomínio, da pastoral e da formação proposta, o suficiente para que as pessoas possam se situar no processo global da missão da Igreja nos condomínios residenciais. Podemos agora refletir um pouco sobre cada um destes itens que constituem os quatro principais objetivos desta primeira etapa da formação. a) Dinâmicas de trabalho e de reunião. Se nós quisermos que os leigos sejam "protagonistas" da Nova Evangelização, será preciso promover por todos os meios e modos a atividade própria das pessoas. Era assim que Jesus formava seus discípulos e curava o povo, fazendo os cegos verem, os endoidecidos recuperarem o juízo, os paralíticos andarem, os mudos falarem, os surdos ouvirem, os encurvados se erguerem, os de mãos atrofiadas agirem, enfim: os mortos viverem. Jesus não via no lugar do cego, não falava no lugar do mudo, nem carregava os paralíticos no colo. Por isso, a formação do laicato deverá ter como um dos seus objetivos gerais, centrais e permanentes: formar sujeitos dos verbos ver, julgar e agir. E isto deveria ter conseqüências práticas em todos os aspectos e detalhes da formação, a começar pela própria dinâmica das reuniões e trabalhos dos leigos. Para que todos os membros do núcleo sejam constantemente estimulados a ver com os próprios olhos, a julgar com o próprio juízo, e a agir com o próprio ser, seria preciso que os núcleos adotassem um pequeno conjunto de "regras" capazes de promover a atividade própria das pessoas como principal meio de aprendizado. Uma regra que deveria ser proposta para todas as atividades do núcleo é o rodízio de funções. Isto quer dizer que as diferentes tarefas e funções necessárias para a realização de uma reunião, de um trabalho ou de um serviço qualquer, seriam desempenhadas em rodízio permanente das pessoas, de modo que todos os membros do grupo tenham a oportunidade de desempenharem (e assim aprenderem) todas as diferentes funções e tarefas necessárias à atividade do grupo. Por exemplo, para que se realize uma reunião com sucesso, é preciso que alguém providencie e prepare o local da reunião (que provavelmente será no apartamento de alguém ou em outro local do prédio), é preciso que alguém presida e anime a reunião (e para isso tem que se preparar antes), é preciso que alguém escreva a Ata da reunião, é preciso que alguém providencie algum material ou um xerox para todos, é preciso que alguém obtenha determinadas informações para trazê-las à reunião, é preciso que alguém observe e avalie a reunião etc. Se não houver rodízio de pessoas nestas funções, alguns sempre farão tudo nas reuniões e outros nunca farão nada. Alguns tomarão todas as decisões e outros nunca decidirão nada. Alguns terão idéias e iniciativas e outros permanecerão apáticos e inertes. E por fim, alguns acabarão mandando e todos os outros obedecendo passivamente! Nestas condições, não haverá atividade própria nem aprendizado, não haverá trabalho de grupo nem protagonismo dos leigos. Por isso, é fundamental que não se fomente no interior dos

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núcleos nenhuma forma de hierarquia, liderança instituída (como se costuma fazer na formação paroquial) ou dominação antidemocrática. E um modo prático e fácil de se evitar isto é fazendo o rodízio permanente de funções: a cada reunião, por exemplo, pessoas diferentes preparariam o local da reunião, outras presidiriam a reunião, outras escreveriam a Ata, outras providenciariam algum material necessário, outras desempenhariam o papel de observador etc. E para que ninguém se sinta constrangido a nada, nem tenha que fazer sozinho algo que não sabe e nunca fez, o rodízio deveria sempre ser proposto de forma voluntária e cada função ou tarefa (sobretudo quando difícil) deveria ser realizada em conjunto por duas ou três pessoas que se ajudariam e se apoiariam mutuamente naquela função ou tarefa. Esta forma de cooperação por rodízio exigiria do grupo uma certa dose de paciência, solidariedade, ajuda recíproca e compreensão pelos limites e incapacidades dos outros. Porém, é preciso que todos compreendam que a finalidade dessa formação cristã é educar e capacitar todas as pessoas do grupo, e não obter resultados a qualquer custo. Ou dizendo de outro modo: a finalidade da formação não é fazer reuniões, mas aprender a fazer reuniões (por exemplo). Deste modo haveria de fato uma "formação reciprocamente recebida e dada por todos", e se realizaria mais plenamente o mistério da Igreja Mãe e Educadora, conforme a orientação do Papa. Além disso, o rodízio permanente de funções no interior dos núcleos evitaria um problema bastante comum nos condomínios: existe grande rotatividade entre os moradores, uns chegando e outros indo embora do prédio, e se um grupo "depende" de um líder ou líderes que sabem e fazem tudo, quando estes "líderes" mudam-se do prédio ou se ausentam do grupo por qualquer razão, o grupo inteiro se desorienta e se desintegra pois não sabe (e nunca aprendeu) a agir sozinho. Vejo isto acontecer o tempo todo nos condomínios. E o único modo de se evitar esta dependência e este tipo de problema, é estimulando todos os membros do núcleo para que aprendam a desempenhar todas as funções e tarefas necessárias, o que só será possível se houver rodízio permanente das pessoas em todas essas funções. Creio que o maior equívoco pedagógico (e político) que se poderia cometer na formação missionária do laicato nos condomínios é instituir lideranças fixas (supostamente capacitadas) e gerar este tipo de dependência no interior dos núcleos, em vez de tudo fazer para formar e capacitar a todos para que todos sejam "protagonistas e sujeitos" das ações do núcleo. E pelo que eu pude observar nos condomínios, todas as pessoas receberam de Deus o dom de exercer alguma forma de liderança em algum momento e em algum aspecto particular necessário à vida do grupo, e geralmente uma "forma de liderança" valiosa e insubstituível que os outros membros do grupo são incapazes de exercer quando se faz necessário. Portanto, lideranças nos núcleos missionários sempre existirão, mas que sejam então lideranças espontâneas, múltiplas, diversificadas, complementares e democráticas, e não lideranças arbitrariamente determinadas e rigidamente instituídas por decisões alheias e estranhas ao próprio grupo. A única liderança fixa e imutável nos grupos deveria ser a de Cristo. Outra "regra" que deveria nortear a elaboração dos subsídios e a dinâmica de trabalho dos núcleos, é fazer fora das reuniões tudo o que for possível fazer, promovendo-se por todos os meios e modos a atividade própria das pessoas também fora das reuniões. A formação não pode centralizar-se apenas nos encontros e reuniões do grupo (como geralmente ocorre na formação dos leigos), mas precisa também descentralizar-se em tarefas ou "lições de casa", que podem ser realizadas tanto individualmente como em grupos espontâneos e livres. Isto amplia as possibilidades de formação sem multiplicar ou prolongar desnecessariamente as reuniões.

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Em suma. É preciso evitar que os núcleos missionários se organizem e se formem segundo os princípios tradicionais de "dependência" e "centralização" que encontramos por toda parte em nossas sociedades, e que apenas dificultam (desnecessariamente) o pleno desenvolvimento da pessoa humana. Sugiro estas duas "regras" a partir das experiências de grupo que tive no meu condomínio e também das experiências de formação que tive na paróquia. Não sei como estas regras funcionariam na prática, mas sei que é preciso elaborar um conjunto de regras práticas para "regular" da melhor forma possível as atividades dos núcleos, pois a maioria de nós não sabe como conduzir ou participar de uma reunião, não sabe como refletir, discutir e tomar decisões coletivas, e por isso não sabemos como agir em cooperação. Pois isto não se faz nem se ensina em parte alguma, nem nas escolas, nem nas igrejas, nem nas famílias, nem nas empresas, e nem nos condomínios. A formação que eu recebi na minha vida foi sempre esta: autoritária e individualista. E o desafio desta pastoral é este: como ensinar os membros dos núcleos missionários a agirem de forma comunitária, participativa, cooperativa, democrática e cristã? Eu não faço a menor idéia de como ensinar isto, pois nunca tive esta experiência. Apenas percebo a sua absoluta necessidade, em mim e nos outros também. Talvez a leitura e o conhecimento das "regras" de algumas comunidades eclesiais e religiosas possa ajudar os leigos a compreenderem melhor qual é a razão prática e espiritual de se adotarem regras de funcionamento para as atividades dos núcleos missionários nos condomínios. Certa vez eu li as regras propostas por São Vicente de Paulo para as "Filles de la Charité", e também as regras escritas por São Francisco de Assis, e fiquei impressionado com tanta sabedoria, simplicidade e beleza. Esta rica tradição da Igreja pode servir como inspiração para as regras leigas nos condomínios. b) Promover no grupo a espiritualidade de comunhão por meio da Palavra e da Oração. De que forma a leitura da Palavra e a Oração podem promover nos membros do grupo uma espiritualidade de comunhão? Que atividades concretas de leitura da Palavra e de Oração devem ser propostas para se alcançar esta finalidade? Como relacionar estas atividades de leitura e oração com as regras e os problemas de dinâmica de trabalho, de convivência e de cooperação do grupo? Por onde começar e por onde continuar? Refletindo sobre estas questões, é possível imaginar uma lista enorme (e quase infinita) de atividades que se pode selecionar, co-ordenar e propor aos leigos para que estes aprendam (pela experiência) as principais formas de leitura da Palavra e de Oração que os ajude a desenvolver a necessária espiritualidade de comunhão no grupo. Para que as pessoas saibam o que fazer, as atividades precisam ser propostas na forma de orientações simples, precisas e objetivas. Pouco adianta fazer propostas vagas ou demasiado amplas, como se costuma fazer: "Leiam a Bíblia", ou "Orem uns pelos outros". Isto é o mesmo que dizer a uma criança de cinco anos: "Faça o almoço para hoje". Ou dizer a um simples pedreiro: "Faça um edifício". Por outro lado, se dissermos à criança: "Pegue a batata que está ali no armário. Já pegou? Então agora ponha a batata nesta tigela. Isso! Agora lave a batata nesta torneira..." e assim por diante, no final a criança talvez consiga fazer alguma coisa para o almoço de hoje. São instruções simples como estas que poderiam nos ensinar a ler a Palavra e a Orar com a finalidade de promover o nosso espírito de comunhão e superar os nossos problemas de convivência e cooperação no grupo.

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Por exemplo (e apenas como exemplo): Se alguém propuser a um leigo que sabe ler e que tem uma Bíblia: "Procure no Evangelho segundo São Mateus tudo aquilo que Jesus ensina sobre a necessidade da oração", esta já seria uma proposta exeqüível, uma orientação precisa, uma atividade que qualquer um sabe e pode fazer, mesmo que seja trabalhosa e demorada, pois seria preciso ler este Evangelho do começo ao fim. Pode-se distribuir esta tarefa entre várias pessoas, cada uma procurando numa parte do Evangelho. Pode-se mudar o assunto da pesquisa. Pode-se mudar o texto pesquisado. Enfim, pode-se fazer infinitas propostas de leitura. Mas sempre é preciso dar uma orientação qualquer e bem precisa, senão ninguém saberá o que fazer com a Bíblia na mão. A mesma forma de orientação deveria ser dada a respeito da Oração. É preciso sempre propor uma forma precisa de oração e um objeto também preciso de oração (exatamente como faz o Apostolado da Oração). Por exemplo: "Procure agradecer a Deus pela boa vontade de cada pessoa do grupo em renunciar a seus afazeres para participar das reuniões e colaborar na Missão da Igreja neste condomínio. E procure fazer isto todos os dias até a próxima reunião. Nem que seja apenas por um minuto, lembre-se de agradecer a Deus por esta boa vontade de cada um." (Neste exemplo, a forma da oração é agradecer, e o objeto do agradecimento é a boa vontade das pessoas.) Com propostas simples e sempre variadas, feitas ao longo de toda a formação, os leigos com certeza aprenderiam (pela experiência) as principais formas e conteúdos de oração que precisam fazer para esta missão no condomínio. Deste modo, o leigo poderá ampliar gradualmente as suas possibilidades de leitura e estudo da Bíblia, e também o seu repertório de Orações, que geralmente é demasiado pobre e limitado. E após algum tempo de prática e experiência, os próprios núcleos serão capazes de formular para si mesmos propostas de leitura e de oração especialmente adaptadas às suas necessidades particulares e de momento. Para isso, os subsídios deveriam também estimular a criatividade das pessoas nesta área, propondo tarefas e atividades neste sentido. c) Visão global do condomínio, da pastoral e da formação. Um itinerário. As companhias de turismo costumam informar aos seus clientes o itinerário detalhado da viagem, os lugares que irão visitar, as condições de hospedagem, refeições, transporte e custos. É parte do negócio. Ninguém embarca numa viagem sem antes se informar destas coisas. Do mesmo modo, a pastoral dos condomínios precisa informar os futuros missionários leigos sobre o itinerário de fé e de testemunho que irão percorrer. Não convém que ninguém entre neste barco e parta em viagem sem saber direito quem os conduz e por onde irão caminhar. E isto deve ser explicado logo no começo. Mas como ainda não existe nada pronto nesta pastoral e nesta formação, não há muito que se possa dizer deste itinerário. Ele ainda precisa ser construído e detalhado. Portanto, vamos passar para a próxima fase ou etapa da formação, que é a viagem propriamente dita, pois tudo o que os viajantes missionários fizeram até agora, nesta fase Introdutória da formação, foi arrumar suas bagagens e se acomodarem na embarcação (que é a comunhão eclesial do grupo). 3.2. SEGUNDA ETAPA - Serviço ao condomínio. Esta segunda fase deveria ser considerada o centro da formação, pois é aí que os leigos aprenderão verdadeiramente como seguir o exemplo de Jesus, que nos chama para navegar pelo condomínio: "Vem, e segue-me." E por onde nos conduzirá Jesus? 154

Nosso Senhor sempre escolheu entrar na casa dos outros pela humilde porta de serviço: "O que você quer que eu faça por você?" E se quisermos segui-lo, é por aí também que precisamos entrar nos condomínios: pela humilde porta de serviço, "sinal privilegiado do seguimento daquele que veio para servir e não para ser servido" (DGAE 1999-2002, n.195). Portanto, esta segunda fase da formação teria por finalidade capacitar os leigos para o serviço ao condomínio. Mas que forma de serviço seria esta? Pois sem determinar uma forma concreta para este fim, não é possível determinar os meios (pedagógicos) para alcançá-lo. Se não há suficiente clareza quanto ao fim, tampouco haverá suficiente clareza quanto aos meios: para "qualquer" fim, "qualquer" meio serve. Este é o nosso problema: determinar um fim e os meios de alcançá-lo. O que nos ensina a Igreja a respeito disso? "É porém específico dos leigos, por sua própria vocação, procurar o Reino de Deus exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus." (LG 31). No ensinamento conciliar da Igreja, ordenar é um conceito tão abrangente e crucial, que não é possível entender tal ensinamento se não entendermos claramente o que significa "ordenar" (e todos os seus sinônimos e conceitos correlatos, como: destinar, chamar, vocacionar, tender naturalmente para, orientar para, visar, ter a finalidade de, ter por fim, encaminhar para, etc.). E sobretudo não é possível praticar tal ensinamento se não soubermos como "ordenar" todas as coisas na prática. Se "ordenar" é assim tão importante, como é que se faz isto? O que significa "ordenar"? Conforme ensina o Concílio Vaticano II: "A caridade como vínculo de perfeição e plenitude da lei, rege, informa e conduz ao fim todos os meios de santificação." (LG 42). É isto o que significa "ordenar": reger, informar e conduzir ao fim todos os meios. O dicionário Aurélio ensina algo semelhante: "Ordenar: Por em ordem. Ordem: Disposição conveniente dos meios para se obterem os fins." Portanto, para "ordenar" uma ação pastoral e educativa, a questão capital que antes de tudo deve ser respondida por nós é, evidentemente, a questão de saber em que consiste o fim que queremos e escolhemos alcançar com esta ação. E depois disso (e só depois disso), é preciso refletir sobre os meios necessários para alcançarmos este fim, regrando nossos atos em relação a este fim e de maneira a conduzi-los a esse fim. Porém, tanto o fim como os meios de alcançá-lo só se tornam reais e existentes para nós neste mundo, quando nós lhes damos uma forma concreta e definida: primeiro em nossa mente, imaginação e intenção (é o planejamento), e a seguir em nosso corpo e suor (é a execução). É assim que eu entendo a palavra "ordenar": antes de tudo, dar forma aos fins, e depois aos meios de alcançá-los. Sem fazer isto, como seria possível "ordenar" as nossas funções e atividades temporais? Esta necessidade de dar forma aos fins para poder dar uma forma aos meios (e assim poder agir de modo ordenado), talvez fique mais clara e evidente se considerarmos um caso concreto. Por exemplo, se alguém procura um marceneiro e lhe pede apenas isto: "Faça-me uma mesa". Será que apenas esta informação ("uma mesa") é suficiente para o marceneiro poder agir? É evidente que não. Enquanto a forma do objeto "mesa" não for suficientemente definida e particularizada, não será possível a ninguém fazer tal objeto. Embora "uma mesa" seja informação suficiente para distingui-la de "cadeiras" ou de "camas", apenas isto não é suficiente para o marceneiro poder construí-la. E ele certamente irá perguntar ao cliente: "Mas que tipo de mesa você quer que eu faça?" E o

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cliente dirá talvez: "Eu quero uma mesa simples de cozinha, com 2 metros de comprimento por 1 metro de largura, feita de pinho." Agora sim! A forma do objeto foi definida o suficiente para o marceneiro saber como deve agir para alcançar este fim: fazer uma mesa. Para ser um fim prático e exeqüível, apenas a forma "mesa" não basta. Ela precisa ter pelo menos estas 3 determinações adicionais: o modelo (mesa simples de cozinha), o tamanho (1m X 2m) e a matéria (pinho). Somente informado desta maneira, o fim permite ao marceneiro dar forma aos meios, isto é, regular ou ordenar a sua ação de modo a alcançar aquele determinado fim. De outro modo não é possível agir nem ordenar nada neste mundo! De modo semelhante, é preciso determinar melhor a forma de serviço ao condomínio que queremos promover por meio desta segunda fase da formação, pois do contrário não poderemos definir quase nada que seja realmente necessário nesta formação, e tudo o que conseguiremos fazer será organizar arbitrariamente uma formação "qualquer". Portanto, que outras determinações adicionais precisamos dar a este "serviço ao condomínio"? Uma destas determinações já foi aqui sugerida e bastante argumentada: o serviço ao condomínio precisa ser de âmbito comunitário, isto é, realizado por um sujeito coletivo (o núcleo missionário) e para um destinatário também coletivo (a comunidade condominial). Esta determinação não proíbe nem impede ninguém de realizar outras formas de serviço, mas apenas especifica melhor a finalidade desta pastoral e desta formação. Porque é esta finalidade específica a única coisa que justifica a criação desta pastoral específica, que não pode ser confundida nem pode ser substituída por outras ações pastorais igualmente válidas e necessárias que também prestam "serviço" ao próximo, como a pastoral familiar, da juventude, dos idosos, da sobriedade, da criança, do menor, da saúde, da educação, do trabalho etc., cada uma delas possuindo também uma finalidade própria, específica e diferente das demais. E uma outra determinação que gostaria agora de sugerir e argumentar aqui é a seguinte: além de dar-se em âmbito comunitário, o serviço ao condomínio também tem que ser orientado (ou ordenado) para o anúncio do Evangelho ao condomínio. Isto tem muitas conseqüências para a formação que é preciso oferecer. Em primeiro lugar, o serviço dos leigos ao condomínio não seria, neste caso, reformar ou embelezar os prédios da cidade, mas sim "renovar as comunidades condominiais", pois o Filho de Deus não veio a este mundo para restaurar prédios e edifícios, mas para restaurar a humanidade e as relações dos homens entre si, com Deus e com a natureza. Isto significa que o primeiro e principal objeto da atenção (e da formação) dos leigos devem ser as relações humanas comunitárias e condominiais, e não as relações individuais ou não-condominiais, e menos ainda o estado físico do prédio. Só isto já nos permite definir um conjunto de assuntos que precisam ser tratados na formação, e também nos permite estabelecer uma hierarquia de valor e de importância para organizar todos os assuntos da formação. E em segundo lugar, o serviço dos leigos ao condomínio não pode ser contrário nem indiferente ao que ensina o Evangelho, pois neste caso tal serviço não se orienta (ou não se ordena) para o anúncio do Evangelho ao condomínio. Isto significa que a primeira e principal ocupação dos leigos deve ser "renovar as comunidades condominiais" de acordo com os valores e os métodos evangélicos, de modo que as relações humanas comunitárias e condominiais sejam sempre examinadas, avaliadas, julgadas e transformadas conforme o espírito cristão ou a ética cristã.

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Então, para que o serviço ao condomínio seja de fato orientado para o anúncio do Evangelho, este serviço tem que ter uma forma coerente com o Evangelho. Não é qualquer forma de serviço comunitário e condominial que se orienta para este fim. Infelizmente, nós leigos freqüentemente inventamos em nossos condomínios muitas formas de serviço absolutamente contrárias ou indiferentes ao Evangelho, de modo que tais formas de serviço se orientam não para o anúncio, mas para a ocultação, negação e escárnio do Evangelho. Vou dar um exemplo do que aconteceu num grande condomínio de classe média alta, localizado bem no meio de um bairro pobre da cidade de São Paulo. Por ocasião do Natal, três senhoras (católicas) foram designadas pela Assembléia Geral para comporem uma comissão encarregada de fazer as decorações de Natal no condomínio. Estas senhoras trabalharam muito e prestaram um grande serviço ao condomínio. Porém, que forma de serviço elas fizeram lá? Elas simplesmente entulharam os jardins do condomínio com gigantescos enfeites natalinos que custaram aos moradores a absurda quantia de 23 mil reais. No entanto, a paróquia que freqüentam vive com dificuldades financeiras para sustentar suas obras de caridade e socorro à população pobre do bairro. Pergunto aos senhores: esta forma de serviço está orientada para o anúncio do Evangelho ao condomínio ou está orientada para a negação do Evangelho e descrédito da Igreja no condomínio? Quando os condôminos receberam no final do mês a conta deste belo serviço, a reação e o julgamento de muitos moradores que não freqüentam a Igreja nem professam a religião cristã, foi bem mais coerente com o Evangelho do que este serviço prestado pelas senhoras (católicas). Este é apenas um pequeno exemplo para demonstrar que não é qualquer forma de serviço comunitário e condominial que se orienta para o anúncio do Evangelho à comunidade condominial. Resumindo. Esta segunda fase da formação teria por finalidade promover uma forma de serviço com as seguintes determinações ou características: 1. Serviço ao condomínio. 2. Serviço de âmbito comunitário. 3. Serviço orientado para o anúncio do Evangelho. Com esta finalidade em mente, é possível elaborar uma formação que conduza a este fim. E para conduzir a este fim, a formação precisa obviamente ter por conteúdo: 1. Os assuntos de âmbito comunitário e condominial. 2. Os ensinamentos éticos do Evangelho (e da Doutrina Social da Igreja). E o principal desafio desta formação é integrar os assuntos condominiais com a ética cristã, de modo que os núcleos missionários aprendam a ver, julgar e agir em todos os assuntos de condomínio conforme ao ensino de Jesus, dos apóstolos, dos santos, do magistério e de toda a Igreja. (Tanto falatório para dizer o óbvio que todos já sabem.) O que eu estou tentando encontrar aqui, com estas reflexões intermináveis, é uma forma de organizar os subsídios que seja de fato necessária (e não arbitrária), e que ao mesmo tempo permita aos núcleos escolherem livremente a ordem dos assuntos que desejam tratar em suas reuniões, estudos, trabalhos e serviços. Pois um fator essencial para o sucesso de uma ação educativa é o próprio interesse das pessoas por aquilo que estudam e pelo trabalho e serviço que fazem. Por outro lado, a formação oferecida precisa ser a mais completa possível, de modo que todos os aspectos da vida num condomínio sejam devidamente considerados por todos os núcleos, independentemente de seus interesses ou da situação particular e momentânea do seu condomínio.

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3.2.1. Como organizar os subsídios desta 2ª etapa da formação? Talvez a solução prática para este desafio pedagógico seja definir um conjunto de assuntos básicos que precisam ser estudados e conhecidos por todos os núcleos, sem contudo definir a ordem (e talvez nem a profundidade) na qual estes assuntos devam ser abordados, de modo que cada núcleo possa abordar todos estes assuntos na ordem (e com a profundidade) que achar melhor. Este já poderia ser um dos princípios práticos de organização para elaborar os subsídios desta fase da formação. Para isso, seria preciso enumerar exaustivamente todos os principais aspectos da vida num condomínio, e a partir daí definir o conjunto dos assuntos básicos da formação. E então elaborar um pequeno roteiro (ou caderno) de estudos, trabalhos e serviços para cada um destes assuntos, que constituiriam assim os diferentes "módulos" (ou "unidades temáticas") desta etapa da formação, todos obviamente necessários, mas livremente ordenados pelos próprios núcleos de acordo com seus próprios interesses e necessidades. E considerando que os condôminos normalmente carecem de conhecimento técnico ou especializado nestes assuntos de condomínio (direito, contabilidade, administração, engenharia, etc.), e que não conseguem obter em parte alguma este tipo de informação e ajuda, seria necessário que os roteiros ou cadernos de estudo de cada "módulo" (ou "unidade temática") suprissem de algum modo esta lacuna, oferecendo aos leigos uma espécie de introdução teórica, técnica e geral sobre cada um dos assuntos ou "temas" que deverão abordar no seu condomínio. Por esta razão, cada roteiro ou caderno temático de estudo deveria sempre se compor de duas partes distintas: 1. Uma parte teórica, introdutória e geral, sobre o assunto ou "tema" tratado (direito, contabilidade, administração, etc.), contendo informações básicas e válidas para todos os condomínios em geral, de modo a se oferecer aos núcleos uma espécie de "assessoria" técnica e especializada, necessária para os leigos poderem se orientar em seus trabalhos e não ficarem perdidos ou paralisados por ignorarem coisas que apenas um especialista nestes assuntos é capaz de saber. 2. E uma parte prática, baseada na atividade própria dos núcleos em seus condomínios, contendo orientações e propostas concretas de ação que ajudem o grupo a "ver, julgar e agir" com relação a este assunto no seu próprio condomínio em particular. Este modo de organizar os roteiros em duas partes distintas se justifica por várias razões. A primeira e óbvia razão é a própria diferença de natureza entre uma introdução teórica e geral ao assunto, e uma orientação prática para o núcleo ver, julgar e agir no seu condomínio em particular. Pois uma coisa é o núcleo saber, por exemplo, quais são as diversas leis e normas que regem a vida dos condomínios em geral e que é preciso conhecer, e outra coisa bem diferente é o núcleo agir para obter estes textos normativos, e depois dar-se ao trabalho de ler e estudar cada um deles em particular, procurando entender bem o significado de cada parágrafo ou conceito, e também providenciar para que todo morador tenha direito a receber do Condomínio uma cópia da Convenção e do Regulamento Interno, e sobretudo organizar uma pasta com todos os textos normativos aplicáveis ao Condomínío e colocá-los à disposição de todos que quiserem fazer uma cópia. Apenas esta diferença entre "saber" e "agir" (ou entre informação teórica e orientação prática) já justificaria este modo de organizar os roteiros da formação. Porém, a segunda e decisiva razão para isto é que os moradores não têm meios ou condições de obter as informações técnicas que se fazem necessárias a cada momento para poderem "ver, julgar e agir" de modo adequado e inteligente no seu condomínio, e por isso costumamos fazer o papel de "cegos", de "bobos", e de vítimas "passivas e indefesas" das raposas condominiais. Por exemplo (e só como exemplo): em questões 158

de direito e justiça, ocorrem situações em que os moradores, mesmo conhecendo as normas legais relativas ao condomínio (o que raramente é o caso), mesmo assim eles não sabem o que fazer, como reagir ou em quem acreditar, uma vez que o próprio "entendimento" e "aplicação" destas normas escritas depende em grande parte de outras leis, normas ou princípios jurídicos, de ordem superior ou interpretativo (a jurisprudência, por exemplo) que os moradores ignoram por completo, e que apenas um especialista em direito condominial é capaz de conhecer. Pois as leis e normas que regem o Condomínio, sendo por natureza abstratas e gerais, são necessariamente omissas em relação a detalhes e a inúmeros casos concretos ou situações possíveis de acontecer, uma vez que nenhum texto normativo é capaz de "prever" e de regular antecipadamente todas as possibilidades reais de conduta humana, inclusive as possibilidades de má interpretação ou má aplicação da própria lei. E normalmente é neste amplo espaço vazio dos "detalhes" e dos "casos" omitidos pela norma, que acontecem as arbitrariedades, manipulações, enganações, corrupções, injustiças e violação de direitos nos condomínios. Como exemplo desta situação, cito um caso típico de conflito entre condôminos gerado pela ignorância de uns e má fé de outros em matéria de direito e justiça, caso ocorrido em meu condomínio e em milhares de outros condomínios por todo o país, a ponto do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ter sido obrigado a produzir uma Súmula para esclarecer de vez a questão. Trata-se neste caso de um conflito entre condôminos gerado por sua discordância na interpretação da Lei de Condomínio num ponto absolutamente crucial à vida de todos: precisamente o Art. 9º, que determina as condições de "validade jurídica" da Convenção de condomínio. A dúvida (e a discórdia) que atormentava os condomínios, que ocupava os tribunais, e que levou o STJ a produzir uma Súmula, era a seguinte: uma Convenção de condomínio já aprovada em Assembleia Geral mas ainda não registrada no registro de imóveis (como manda fazer a Lei de Condomínio), é norma válida ou não, eficaz ou não, para regular as relações no condomínio? Esta era a questão e o objeto da discórdia e dos conflitos. Pergunto agora ao leitor: qual é o cidadão comum que saberia de imediato responder a tal questão com absoluta certeza jurídica? Você saberia? Pois eu não. Eu ficaria na dúvida e com cara de bobo (como de fato eu fiquei, até que um advogado me esclareceu a questão e me fez ler a súmula do STJ que diz: "A convenção de condomínio aprovada, ainda que sem registro, é eficaz para regular as relações entre os condôminos."). Esta questão jurídica pode até parecer a alguns de nós (discípulos e missionários) uma coisa secundária, burocrática e sem muita relevância, porém esta dúvida gera num condomínio o mesmo tipo de confusão e de conflitos que ocorrem numa nação quando parte da população nega, e não reconhece, a validade normativa da própria Constituição Federal (como ocorre em revoluções e golpes de Estado). No meu condomínio negou-se a validade normativa (tanto jurídica como moral) de uma nova Convenção que fora amplamente discutida e elaborada em reuniões semanais abertas a todos os moradores interessados, e finalmente aprovada em Assembleia Geral conforme manda a Lei (por 2/3 dos condôminos). Fizemos isto para atualizar e melhorar a nossa antiga Convenção, feita em 1964 e omissa ou defeituosa em muitos pontos essenciais. Pois bem. Passado algum tempo, os moradores numa Assembleia foram informados de que esta nova Convenção não valia pois não fora registrada, e que por isso tínhamos que seguir a velha (o que era muito conveniente no momento para a Administração no poder). Mais tarde, em outra Assembléia, disseram aos moradores que a velha Convenção tampouco era registrada, e que portanto o Condomínio não tinha nenhuma Convenção, devendo reger-se apenas pelo que diz a Lei de Condomínio (o que também convinha para a

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Administração naquele momento). Mas depois, disseram aos moradores que uma Convenção vale mesmo sem registro, e deste modo manipulam até hoje as Assembléias, ora ignorando e desrespeitando, ora impondo e fazendo valer, a norma que mais convém à Administração no momento. Faz 12 anos que mudei de São Paulo e não moro mais neste prédio, mas tenho acompanhado de longe estes lances por meio de correspondência que recebo. Sugeri por e-mail a um professor (membro do Conselho Fiscal) que se procurasse então registrar a nova Convenção para acabar de vez com este descalabro, e que rejeitasse a proposta da atual Administração que queria elaborar uma terceira Convenção, o que seria muito perigoso considerando a ingenuidade e o desinteresse dos atuais moradores, mas ele ficou doente e deixou de se comunicar comigo. Narro estes fatos apenas para demonstrar que nada disso estaria acontecendo nos condomínios do Brasil se ao menos um pequeno grupo de moradores tivesse algum conhecimento teórico, técnico e seguro nestes assuntos. É claro que isso não seria preciso se fôssemos criaturas humanas plenamente racionais, justas e éticas, pois neste caso bastaria a razão natural e o senso natural de justiça para resolver todos estes problemas e conflitos. Como não é este o caso, é preciso que a formação dos leigos inclua uma "introdução geral e técnica" (isto é, teórica) sobre cada aspecto da vida em condomínio, para que os católicos possam atuar nestas comunidades com mais inteligência e ajudar a resolver seus conflitos e problemas com maior racionalidade técnica além do indispensável senso de justiça. E para saber quais informações é preciso incluir nesta introdução teórica, basta dialogar com os moradores e investigar as dúvidas que têm (ou que já tiveram) sobre cada um dos assuntos e aspectos da vida em condomínio. O uso da Internet permitiria ampliar este diálogo e fazer esta pesquisa com todos os milhões de brasileiros que moram em condomínio, e permitiria também publicar simultaneamente os resultados da pesquisa, que nos surpreenderiam pela quantidade e diversidade de dúvidas (sem resposta) que afligem os moradores de condomínios. Eis aí uma forma simples de diálogo (e de serviço cristão) que interessaria e mobilizaria grande parte da nossa população! Este seria um modo objetivo de se elaborar uma lista das dúvidas ou "Perguntas Freqüentes" (FAQs - Frequently Asked Questions) que convém responder nesta parte teórica e introdutória dos subsídios da formação. Para se ter uma idéia bem realista do tipo de dúvidas que surgem nos condomínios, enumero a seguir algumas das "dúvidas" que afligem atualmente os moradores do prédio em que eu morava em São Paulo, e faço também um breve relato da "situação" que provocou esta dúvida e que nos permite comprender o seu significado prático e humano. As dúvidas são estas: 1. Quais são os casos em que um condômino é proibido por lei de se candidatar ao cargo de síndico? Existe alguma lei proibindo que pessoas acima dos 70 anos ocupem o cargo de síndico? Pois neste prédio, a candidatura de um condômino (professora aposentada, evangélica e muito honesta) ao cargo de síndico, foi impugnada no momento da eleição com a alegação de que "a lei proibe que pessoa acima de 70 anos ocupe este cargo". Esta "lei" foi invocada por um advogado aliado da administração (corrupta) que queria se reeleger. Os moradores presentes na Assembleia foram pegos de surpresa, acreditaram no "advogado", e aceitaram calados a exclusão de sua candidata preferida. 2. O síndico ou a Assembleia Geral tem o direito de proibir a livre circulação, expressão e comunicação entre condôminos e moradores de um prédio? Pois uma moradora indignada e participativa, membro do Conselho Fiscal, que escrevia suas 160

observações de Conselheira e as entregava aos moradores de porta em porta, foi ameaçada de multa e proibida pelo síndico de continuar fazendo isso, com a alegação de que este tipo de atividade "incomodava" os moradores e "perturbava a ordem" do condomínio. E tal proibição e ameaça de multa valia para todo mundo, foi decretada em Assembleia Geral, e foi aceita com o silêncio passivo e medroso de todos os presentes. 3. Como descobrir se a Convenção do condomínio foi ou não foi registrada? Onde e como se faz o registro de uma Convenção? E o registro de uma Ata de Assembleia Geral? O que é exigido para se fazer isto? 4. Qual é o procedimento normal para a redação e aprovação de uma Ata de Assembleia Geral? Qualquer dos condôminos presentes numa Assembleia Geral tem o direito de exigir que o seu parecer sobre o assunto em pauta seja devidamente registrado na Ata? Pois neste condomínio as Atas muitas vezes não informam o que de fato ocorreu na Assembleia, e os moradores só ficam cientes disso algum tempo depois, quando todos recebem por correspondência uma cópia da Ata (já registrada em cartório), mas que jamais foi lida, corrigida ou aprovada pelos que estavam presentes na Assembleia. Como proceder para evitar que isto ocorra? Pois uma vez o "fato consumado" (e a desinformação comunicada), o estrago já está feito. E se alguém quiser mesmo assim corrigir a Ata, terá que contratar advogado e recorrer à Justiça. Alguns moradores inconformados com isso resolveram gravar em vídeo as ditas Assembleias, mas foram proibidos de fazê-lo. 5. O que fazer nos casos em que a Lei ou um texto normativo (Convenção, Regulamento Interno) é omisso ou ambíguo? E o que fazer nos casos em que a administração não cumpre (ou não faz cumprir) o que determina a Lei ou texto normativo? A quem recorrer nestes casos? Pois não há nos condomínios nenhum órgão ou comissão de direito e justiça regularmente constituído ao qual se possa recorrer com facilidade e rapidez. A Justiça pública não se intromete nas questões internas de condomínio. As Assembleias Gerais são raras, e não é possível ou conveniente convocar a todo momento uma Assembleia Geral unicamente para tratar destes casos. É possível constituir no condomínio uma comissão de "justiça e paz" que faça a mediação dos conflitos entre as pessoas (moradores, administradores, funcionários e assembleias gerais)? Como isto poderia ser feito? Há alguma experiência bem sucedida neste sentido? 6. O que fazer quando a administração não permite que um condômino tenha acesso a pastas e documentos do condomínio, com a alegação (bastante razoável) de que estes papéis podem ser facilmente rasurados ou subtraídos caso sejam manuseados por todo mundo? O acesso aos documentos do condomínio é um "direito" de qualquer condômino, ou é apenas um favor ou concessão a critério do síndico? Se for um "direito", como é possível o seu exercício sem colocar em risco tais documentos? Pois de que modo os moradores poderão ajudar na fiscalização e administração do condomínio se não puderem examinar seus documentos? Os membros do Conselho Fiscal, embora eleitos para isso, nem sempre têm a competência, a honestidade, ou mesmo tempo e condições para fazerem tudo o que seria necessário fazer. Enfim, são dúvidas deste tipo que surgem nos condomínios, dúvidas que só podem ser respondidas com segurança por especialistas e peritos no assunto. E são exatamente questões deste tipo que é preciso tratar na parte teórica dos subsídios, e fazê-lo com a clareza didática necessária para que os moradores possam de fato entender e resolver suas dúvidas. Pois é muito comum os especialistas em condomínio darem orientações, explicações e informações vagas, parciais e insuficientes, que não resolvem as dúvidas

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reais dos moradores. Este é um problema recorrente no "Guia do condomínio" (publicado pelo IDEC) e em outros trabalhos do gênero, escritos sem dúvida por excelentes especialistas, mas sem nenhuma participação e colaboração dos próprios moradores interessados, os únicos que podem dizer quais são as suas dúvidas, e depois dizer se a explicação dada pelo especialista está clara e suficiente para eles. Daí ser importante que estes subsídios técnicos sejam elaborados por especialistas em constante diálogo e interação com o público para o qual se destinam. Estas dúvidas, porém, não surgem do nada, mas surgem apenas quando alguém "vê, julga e age" para transformar a realidade de seu condomínio. E as informações técnicas que forem dadas em resposta a tais dúvidas, ordenam-se obviamente para isto e só fazem sentido neste contexto prático: o serviço cristão ao condomínio. É por isso que a formação dos leigos nos condomínios tem que ser ao mesmo tempo teórica e prática (pois uma coisa depende da outra), e os subsídios desta formação precisam incluir uma parte teórica e informativa sobre cada assunto, além de uma parte prática que oriente a atividade própria dos núcleos em seus condomínios. E uma forma simples de orientar a atividade própria dos núcleos é formular perguntas e pistas de ação precisas, claras e objetivas que desafiem e estimulem a sua capacidade para ver, julgar e agir. Uma única pergunta bem formulada pode orientar a atividade de um núcleo durante meses a fio, sobretudo se esta atividade for regularmente registrada e comunicada ao Coordenador da Pastoral para que este possa de fato acompanhar, avaliar, e se necessário reorientar, as "respostas" do núcleo àquela pergunta. Um ótimo exemplo deste tipo de orientação prática por meio de "perguntas" é o §147 do texto-base da CF-2004, Fraternidade e Água (Agir): "Promover o levantamento da realidade local. Que cada comunidade, cada município, cada região conheça em mais detalhes a situação de suas águas. De onde vem a água consumida na comunidade? Qual é o processo de tratamento? Qual é a empresa responsável pelo abastecimento e saneamento? Como é a situação das populações nos bairros periféricos? E a situação da população no meio rural, no tocante à água?" Quanto mais detalhadas forem as perguntas e as pistas de ação, mais clara será a orientação pastoral oferecida e mais rica será a atividade dos leigos em seus condomínios. Enfim, estes roteiros deveriam ter uma estrutura didática semelhante ou inspirada nos textos-base da Campanha da Fraternidade, com todas as informações gerais de ordem técnica (e ética) que se julgar conveniente para que os núcleos tenham o suporte teórico necessário e suficiente para poderem "ver, julgar e agir" em relação a cada assunto no seu condomínio. E mais: se estes roteiros forem publicados eletronicamente e distribuídos pela Internet, eles poderão ser constantemente corrigidos e melhorados, e facilmente enriquecidos e aperfeiçoados, de acordo com as dúvidas, necessidades, experiências e contribuições dos núcleos e dos coordenadores. E além disso, os roteiros ou cadernos de estudo sairiam de graça para todo mundo! Em suma, esta seria uma boa solução pastoral e pedagógica para organizar os subsídios desta segunda fase da formação: (1) Procurar unir a teoria com a prática, incluindo nos subsídios uma parte informativa e técnica que esclareça as dúvidas e ignorâncias comuns dos moradores, ao lado de uma parte prática que oriente a atividade própria das pessoas para "ver, julgar e agir" no seu condomínio. (2) E organizar estes subsídios (e esta etapa da formação) em distintos "módulos" ou "unidades temáticas" conforme o assunto tratado (direito, contabilidade, administração,

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etc.), de modo que os leigos possam livremente utilizar estes subsídios e estudar estes assuntos de acordo com seus próprios interesses ou necessidades práticas. Esta foi a melhor solução que consegui encontrar até agora para que a formação oferecida possa responder à imensa diversidade de situações e necessidades dos leigos nos milhares de condomínios do País. Resta agora explicar melhor, com mais detalhes, a necessidade de organizar esta fase da formação em distintos "módulos" ou "unidades temáticas". Como e por que razão fazer isto? 3.2.2. Os "módulos" ou "unidades temáticas" desta etapa da formação. A principal razão para se dividir esta fase da formação em "módulos temáticos" é a grande complexidade cultural da vida em condomínio. Pois é impossível abordar com clareza e profundidade os seus diferentes aspectos sem classificá-los ou organizá-los tematicamente. Trata-se aí de uma simples exigência de ordem didática. E para começar, vou enumerar alguns aspectos da vida em condomínio que é absolutamente necessário considerar nesta formação. Pois qualquer coisa que se faz num condomínio envolve sempre, de um modo ou de outro, aspectos humanos (pessoais, funcionais e estruturais), aspectos legais, aspectos físicos e ambientais do edifício, aspectos documentais, aspectos financeiros e contábeis, e aspectos éticos. Esta classificação é obviamente arbitrária (aqui utilizada apenas como exemplo), mas expressa com bastante clareza aqueles aspectos da vida em condomínio com os quais temos constantemente que lidar: seres humanos em sociedade, normas legais, edifício, documentos, dinheiro, e ética. Estes seriam os "temas" ou assuntos básicos desta fase da formação (integrados, evidentemente, às atividades correspondentes de leitura da Palavra e de Oração, orientadas agora para ajudar os núcleos no serviço ao condomínio). Eis os assuntos que precisariam ser abordados nos diferentes "módulos temáticos" da formação: 1. A Comunidade Condominial. Entre os aspectos humanos, é preciso considerar: a) A personalidade e as características próprias de cada pessoa da comunidade (quem é o João, a Maria, a Lourdes, o Antonio, o José, etc...). Ou seja, é preciso simplesmente "conhecer" as pessoas da comunidade, ter contato e conviver com elas. b) Ao lado das diversas funções e papéis que as pessoas desempenham na comunidade condominial (quem são, e o que fazem, os funcionários, administradores, síndico, conselheiros, membros de comissões, condôminos moradores, condôminos que não moram no prédio, locatários, hóspedes, visitantes, proprietários ou empregados de empresas fornecedoras e prestadoras de serviço, trabalhadores autônomos etc...). c) E as estruturas da vida comunitária (quais são, e como funcionam, as estruturas de comunicação e convivência, as estruturas de decisão e de ação, de cooperação e de solidariedade etc., e que todas juntas definem as estruturas de relação e de poder – ou as estruturas políticas – da comunidade). Elas podem ser estruturas instituídas por força da lei ou por mera tradição e costume naquele condomínio, ou podem ainda ser estruturas espontâneas e não-instituídas, criadas e mantidas temporariamente por livre iniciativa dos moradores e que logo desaparecem e são esquecidas, sem que jamais sejam incorporadas ao costume ou à lei. A preguiça e a ignorância dos moradores a respeito dos aspectos humanos, tanto pessoais como comunitários e políticos do condomínio, é a principal fonte de todos os 163

problemas, males e injustiças que se fazem por toda parte. Por desinteresse e ignorância dos moradores, entrega-se a administração do condomínio a pessoas notoriamente mentirosas, desonestas, perversas e desequilibradas (exatamente como fazemos neste País ao eleger políticos corruptos fartamente denunciados e condenados na Justiça). Pessoas inocentes são caluniadas e perseguidas. Acredita-se em fofoqueiros inconseqüentes, delirantes e irresponsáveis. Confundem-se as personalidades de cada um com as funções e os papéis que desempenham na comunidade, e nunca se sabe exatamente quais são as atribuições ou funções inerentes a cada cargo ou papel existente na comunidade. Aceita-se toda sorte de obstáculos e de restrições ao exercício da própria liberdade, à comunicação da verdade, à defesa do direito e à promoção da justiça, à vivência da caridade e da solidariedade, e aceita-se tudo isso por imposição de personalidades fortes ou doentias, por leis omissas ou equivocadas, por costumes injustos e opressores, e sobretudo por estruturas comunitárias de comunicação, decisão, ação e cooperação absolutamente ineficientes e insuficientes, ou completamente ausentes e inexistentes no condomínio. Enfim, aceitam-se passivamente (ou promovemse ativamente) estruturas de poder injustas, arbitrárias, irracionais e perversas. A política interna de um condomínio é um retrato em miniatura da política nacional e internacional! E tudo por desinteresse e ignorância técnica e ética dos próprios moradores. 2. Leis, normas e costumes. Entre os aspectos legais, é preciso considerar tanto as leis internas do próprio condomínio (a Convenção e Regulamento Interno), como as leis externas da sociedade brasileira em geral (a Lei de Condomínio e muitas outras leis aplicáveis ao condomínio, como o Código de Defesa do Consumidor, a Lei do Inquilinato, legislação trabalhista, Código Civil etc.). A ignorância dos moradores a respeito destas leis ou normas é fonte de constantes ilegalidades, desrespeito aos direitos alheios, arbitrariedades e injustiças de toda sorte, mentiras e tapeações inimagináveis, e impunidades que fariam inveja aos políticos brasileiros. Além desta ignorância das leis, é preciso considerar também de que maneira um morador pode "fazer valer e aplicar" estas leis para promover o direito e a justiça no condomínio. Que instrumentos comunitários é possível criar para este fim? O que se deve fazer quando a própria lei é injusta, omissa ou irracional? Pois não basta conhecermos as leis do condomínio. É preciso conhecer também os meios de aplicá-la, e sobretudo os meios de modificá-la quando isto é necessário. E por ser muito difícil e complicado modificar uma lei federal ou mesmo uma Convenção de condomínio, que providência é possível tomar para resolver um problema sem ter que mudar a lei? É possível instituir no condomínio novas regras e costumes a partir de decisões coletivas tomadas numa simples Assembléia Geral? Ou ainda, a partir de iniciativas grupais espontâneas, livres e independentes de qualquer determinação legal ou decisão de Assembléia Geral? 3. Edifício. Entre os aspectos físicos e ambientais do edifício, é preciso considerar os espaços de uso comum: Onde as crianças podem ficar ou brincar em segurança? Onde fazer reuniões no prédio? Por onde retirar os moradores do prédio em caso de incêndio? Como é o acesso a cadeirantes e deficientes físicos? E tantas outras coisas que não é preciso dizer aqui. E também como é a rede hidráulica do prédio, como é a sua rede elétrica, como é o seu sistema de proteção contra incêndio, como é a estrutura do prédio, e todas as demais instalações e equipamentos que interferem na vida de todo mundo. A ignorância dos moradores a respeito destas coisas é fonte de constantes mentiras e 164

golpes por empresas e administradores. Esta ignorância permite que se tomem decisões coletivas irracionais e prejudiciais à segurança e ao bem-estar de todos, que se façam reformas supérfluas ou tecnicamente erradas, gastos absurdos e inconcebíveis, e toda sorte de imposições inaceitáveis e injustas. 4. Documentos. Entre os aspectos documentais, é preciso considerar que documentos o condomínio produz e deve arquivar. Quem são os responsáveis legais pela sua produção e guarda. Por quanto tempo o condomínio deve guardar cada tipo de documento, e o que fazer com eles depois disso. Onde devem ficar estes documentos. O que deve constar nestes documentos. Como o morador pode ter acesso a eles. O que é preciso examinar nos documentos. O que se deve suspeitar e como conferir melhor. O que fazer em caso de adulteração, desaparecimento, seqüestro ou mentira nos documentos, etc... A ignorância dos moradores a respeito de documentos é a melhor segurança que há para os corruptos falsificarem de tudo e impedirem a fiscalização de seus atos, a comunicação da verdade, a denúncia dos crimes, a restauração da justiça, e sobretudo o afastamento dos mentirosos e a punição dos criminosos. 5. Finanças e Contabilidade. Entre os aspectos financeiros e contábeis, é preciso considerar tudo aquilo que nós já sabemos muito bem, pois vivemos numa sociedade mercantil onde todo ser humano é socialmente obrigado a servir ao dinheiro se quiser viver. Nem que seja um pouquinho, ninguém mais consegue escapar desta servidão ao dinheiro. Por isso, os núcleos missionários precisam estudar e conhecer muito bem os aspectos financeiros e contábeis do seu condomínio se quiserem promover o bem e combater o mal: "Porque a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro. Por causa dessa ânsia de dinheiro, alguns se afastaram da fé e afligem a si mesmos com muitos tormentos." (1Tm 6,10). Se já é assim na própria Igreja, imagine então como será nos condomínios da cidade. É por causa dessa ânsia de dinheiro que tanta gente aflige os condomínios com muitos e infindáveis tormentos. Nunca encontrei um problema de condomínio que não tivesse por raiz esta ânsia de dinheiro. E se não podemos retirar esta ânsia dos homens, ao menos procuremos afastar dos cargos e funções os homens e mulheres dominados por tal ânsia. E para fazer isto, é preciso infelizmente perder tempo com os aspectos financeiros e contábeis do condomínio. Esta é a parte menos interessante para nós. Porém, é a parte que mais interessa aos lobos e às raposas de condomínio! Por isso, este assunto não pode ser omitido na formação dos leigos. 6. Ética. E de todos estes aspectos, o mais importante a considerar é o aspecto ético de todas as coisas. É para isso que os núcleos missionários deveriam orientar seu serviço e participação na vida do condomínio: "A iniciativa dos cristãos leigos é particularmente necessária quando se trata de descobrir, de inventar meios para impregnar as realidades sociais, políticas, econômicas, com as exigências da doutrina e da vida cristã. Esta iniciativa é um elemento normal da vida da Igreja." (Catecismo 899). E a primeira maneira de impregnar as realidades condominiais com os valores e as exigências do Evangelho é, obviamente, modificando pela força do Evangelho os nossos próprios valores que contam, os nossos próprios centros de interesse, as nossas próprias linhas de pensamento, as nossas próprias fontes inspiradoras, os nossos próprios modelos de vida, os nossos próprios critérios de julgar e os nossos próprios modos de agir e de

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participar em nosso condomínio e que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio de salvação (cf. EN 19). Esta é a primeira e fundamental forma de serviço cristão ao condomínio: com ajuda da Palavra e da Oração, batalhar pela própria modificação e transformação. Pois nós (cristãos leigos) somos "parte" das realidades que queremos transformar, e nada mais justo do que começar esta transformação pela parte que nos cabe: "Tire primeiro a trave do seu próprio olho, e então você enxergará bem para tirar o cisco do olho do seu irmão." (Mt 7,5). E à medida que formos tirando as traves dos nossos próprios olhos, começaremos a enxergar melhor todas as coisas do condomínio, e então poderemos descobrir e inventar meios e modos para impregnar as realidades condominiais com os valores e exigências do Evangelho. E a primeira trave que nós, cristãos leigos, precisamos tirar de nossos próprios olhos é aquela que nos impede de enxergar o nosso próprio modo de agir e de participar na vida do condomínio. Pois existem nos condomínios apenas quatro modos de ação e de participação. E disso ninguém escapa: querendo ou não querendo, todo mundo "participa" de um modo ou de outro na vida do seu condomínio, mesmo que se omita em tudo e não faça nada. E quando dizemos que os moradores "não participam" da vida comunitária, isto é mais uma maneira de dizer as coisas, pois todos participam na exata medida em que são "parte" dessas comunidades. A omissão também é uma forma de participação, e uma das piores por sinal! Portanto, se quisermos formular a questão de modo mais preciso, devemos nos perguntar: Que tipo de participação cada um de nós tem na vida do seu condomínio? Pois existem apenas estes quatro modos de participar: o modo da omissão, o modo individualista, o modo da corrupção e o modo da cooperação. Não existem outros modos de participar. E ninguém consegue participar sempre e exclusivamente de um mesmo modo cem por cento puro. Estes modos se misturam, se alternam ou se combinam em proporções diversas. E cada pessoa tem o seu modo habitual, preferido e dominante de participar. Qual será o nosso? A maioria esmagadora dos moradores prefere participar no modo da omissão: fecham os olhos, tapam os ouvidos, calam a boca, cruzam os braços, e vão cuidar de suas vidas particulares. Este é o modo mais fácil de participar: basta ficar indiferente a tudo no condomínio. E muitos só saem dessa omissão e procuram agir e interferir no condomínio apenas quando está em jogo algum interesse particular seu, e esta atuação limita-se a cuidar do seu interesse e problema particular: quando este é resolvido, voltam satisfeitos para o modo da omissão. Não querem nunca saber dos interesses, problemas ou direitos alheios, e menos ainda do interesse comum de todos. O que lhes preocupa e ocupa é apenas o seu interesse particular, mesmo quando no condomínio se fere gravemente o direito alheio ou o bem comum. Este é o modo de participação egoísta ou individualista, que não usa as armas da mentira nem da corrupção, mas apenas as armas próprias do egocentrismo infantil dos adultos: bate o pé, grita, esperneia, protesta, reclama, pede, argumenta, explica, suplica, justifica, seduz, agrada, sorri, chora, dá beijinhos, faz cara feia, enfim, usa de todos aqueles expedientes que uma criança usa para convencer a família e conseguir o que quer dos seus pais. Outros moradores adoram participar no modo da corrupção: os mais ousados geralmente se candidatam aos cargos administrativos para poderem roubar bastante ou gozar de privilégios desonestos; os mais tímidos se contentam em apoiar a quadrilha e se satisfazem com as migalhas que caem da mesa da corrupção. Se havia um corrupto entre os doze apóstolos de Cristo, imagine como não será entre as dúzias de moradores de um condomínio! Felizmente, há também o modo de participação por cooperação. Esta ave rara aparece no condomínio quando alguém procura reconhecer os direitos e os

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interesses de todos: tanto os comuns como os particulares, e tanto os próprios como os alheios. E busca promovê-los segundo um caminho de justiça, de verdade, de diálogo e de colaboração. É o modo de participação mais trabalhoso e doloroso, que às vezes se assemelha ao trabalho de Sísifo: um eterno recomeço da mesma coisa. Este modo de participação só é possível com a ajuda de Cristo, e a poder de muita oração e leitura santa. Portanto, é o único modo que convém aos cristãos. Esta é a primeira trave que precisamos tirar dos nossos olhos: De que modo eu costumo participar da vida do meu condomínio? E ao longo de toda a formação é preciso sempre voltar a esta primeira trave: De que modo o nosso núcleo missionário está participando da vida desta comunidade? Em que estamos nos omitindo? Em que estamos sendo egoístas ou imaturos? Em que estamos adotando métodos e práticas da corrupção (como dizer mentiras, desrespeitar direitos, aceitar injustiças, cometer atos ilegais, dizer calúnias, etc.)? E em que precisamente nós estamos cooperando para promover o bem comum e particular, nosso e dos outros? Defendemos o direito alheio como defendemos o nosso? Consideramos o interesse de todos como consideramos os nossos interesses particulares? Etc. E depois de tirar esta trave dos próprios olhos (isto é, depois se examinar em oração e se corrigir na ação), os núcleos missionários enxergarão melhor para tirar o cisco do olho alheio e espanar a poeira da comunidade. Esta será a segunda maneira de impregnar as realidades condominiais com os valores e as exigências do Evangelho. E como fazer isto? Aplicando o método "ver, julgar, agir" às realidades condominiais. 3.2.3. Ver, Julgar, Agir. Serviços essenciais no condomínio. É aqui que entra "a iniciativa dos cristãos leigos, particularmente necessária quando se trata de descobrir, de inventar meios para impregnar as realidades sociais, políticas, econômicas, com as exigências da doutrina e da vida cristã" (Catecismo 899). Esta iniciativa deveria ser um elemento normal da vida da Igreja. Mas ainda não é. E para que seja, esta formação precisa orientar a atenção dos leigos para as realidades condominiais, de modo que os núcleos missionários possam: 1. Ver estas realidades. Estudar, examinar, observar, conhecer e compreender cada aspecto da vida do seu condomínio: os aspectos humanos, as leis, o edifício, os documentos, as finanças e a contabilidade, e sobretudo o tipo de "ética" (ou antiética) que predomina em todas estas coisas e que costuma reger a vida da comunidade. (E o maior problema ético dos condomínios é o frágil compromisso de todos para com a verdade, a justiça, a liberdade e a caridade. Aceita-se com muita facilidade a mentira, a injustiça, o autoritarismo e a falta de caridade nas relações comunitárias.) 2. Julgar estas realidades. Com os critérios e valores do Evangelho, avaliar o que é bom e está direito, e o que é mau e não é justo. Discernir o que promove o bem comum e o que impede a realização do bem comum. O que existe de positivo e que deve ser mantido e desenvolvido. O que há de negativo e que deve ser denunciado e corrigido. E sobretudo o que ainda falta e não existe, e que precisa ser inventado, imaginado, proposto, criado, feito, experimentado e promovido no condomínio. (Ao lado dos problemas humanos relativos ao caráter das pessoas e ao uso inepto ou desonesto que se faz das estruturas de comunicação, decisão e ação existentes no condomínio, há ainda o gravíssimo problema da insuficiência das estruturas existentes para comunicar a verdade, administrar a justiça, democratizar o poder, e

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promover a cooperação na comunidade. Nos condomínios, todos os poderes se concentram nas mãos do sindico. Na prática, o síndico controla o funcionamento de quase todas as estruturas de comunicação, decisão e de ação existentes na comunidade. A Lei de Condomínio (de 1964) instituiu nos condomínios um regime e uma forma de organização política mais autoritária, irracional e antiética, do que a instituída pelos militares durante a ditadura. Nos condomínios, por exemplo, não existe nenhum órgão diferenciado para ouvir e comunicar as queixas e as dúvidas das pessoas, defender os direitos, resolver os conflitos, fazer respeitar a lei e administrar a justiça. Tudo isso é feito soberanamente pelo próprio síndico. É como se numa república não existisse o poder judiciário, apenas o legislativo e o executivo (que também seria responsável pela administração da justiça, inclusive para si próprio!). Além do síndico, o único poder legalmente instituído no condomínio é a Assembleia Geral Ordinária, que só funciona uma vez por ano. O resto do tempo, a Assembleia Geral só funciona "extraordinariamente" quando é convocada pelo síndico, que decide a data, o horário, o local e a pauta da Assembleia. E jamais se prepara a participação dos condôminos para nenhuma Assembleia: todos são obrigados a decidirem de imediato sobre assuntos que lhes são apresentados rapidamente no momento da assembléia, sem que ninguém tenha tido condições de se informar antes e de refletir melhor sobre o objeto de decisão (inclusive quando se trata das eleições). Se o síndico quiser, ele consegue facilmente manipular tudo e exercer um poder absoluto no condomínio, sem que ninguém perceba ou possa oferecer resistência. O seu único obstáculo seria a união espontânea e a cooperação solidária e ética dos moradores, coisa tão rara nos condomínios como o vôo dos elefantes na Avenida Paulista. Mas esta exagerada concentração de poder nas mãos do síndico não só é injusta, autoritária e opressora para os moradores, como também é irracional e desumana para o próprio síndico. Pois junto com o poder do cargo, o síndico também assume "sozinho" toda responsabilidade prática, moral e jurídica, por tudo que se faz e acontece no condomínio, e isto representa um fardo insuportável que nenhuma pessoa normal, honesta e responsável, deseja assumir ou carregar sozinha. Para os corruptos, no entanto, o cargo de síndico é um "fardo de ouro" que eles desejam e procuram possuir a qualquer custo; mas para os honestos, é apenas um acúmulo insuportável de mais trabalhos e responsabilidades na vida. Isto tende a gerar na comunidade um deplorável círculo vicioso: os mais corruptos e irresponsáveis sempre se candidatam ao cargo de síndico, enquanto que os mais honestos e responsáveis raramente ou nunca o fazem. E a única maneira de se corrigir isso é democratizar o poder, partilhar com outros as tarefas e responsabilidades do síndico e aliviar assim a sua pesada carga, o que exige maior união, participação e cooperação dos moradores.) 3. Agir para transformar estas realidades. Elaborar planos de ação, definir metas comuns e encontrar os meios necessários para alcançá-las. Algumas ações básicas e indispensáveis para "renovar a comunidade condominial" são: a) Combate à corrupção. Fiscalização, investigação, comunicação da verdade, explicação objetiva e análise ética dos fatos observados, providências cabíveis, etc. (Muitas vezes, o combate à corrupção é a ação mais urgente a fazer num condomínio. E é também aquela atividade que mais mobiliza o interesse e a participação dos moradores, pois ninguém gosta de fazer papel de otário. Por isso, o combate à corrupção é a ocasião mais propícia para se promover ao mesmo tempo a ética nas relações comunitárias: a democratização do poder, a consciência dos direitos, o respeito às leis, o amor pela verdade, o desejo de

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justiça e a valorização das virtudes. Por isso, o combate à corrupção não deveria jamais ser encarado como fim em si mesmo, mas sempre como um meio e uma ocasião para se promover algo de bom e de positivo na comunidade. Pois não adianta nada limpar um terreno e não plantar nada de bom no lugar. Em pouco tempo, o mato volta a crescer de novo com mais vigor ainda.) b) Democratização do poder. Promover a união, a participação e a cooperação de todos os moradores, com a criação de novas estruturas, meios ou órgãos de comunicação, decisão e ação no condomínio. (A maior ilusão dos moradores é acreditar que basta uma mudança de síndico para que tudo melhore e se resolva milagrosamente. Sem uma mudança na mentalidade e no comportamento dos próprios moradores e sem uma mudança correspondente nas estruturas políticas da comunidade, apenas mudar de síndico resolve pouco. E freqüentemente não resolve nada, pois geralmente troca-se um ditador ou um corrupto por outro, e tudo continua igual ou pior que antes. Por isso, a democratização do poder no condomínio exige sobretudo atividades que eduquem os moradores e que ao mesmo tempo transformem as estruturas de poder na comunidade, o que geralmente provoca uma mudança de síndico e às vezes uma mudança no síndico. O equívoco de todos é perder-se nas disputas pelo poder, sem jamais considerar as estruturas comunitárias de poder nem a mentalidade omissa e egoísta dos próprios moradores. Este equívoco deveria ser cuidadosamente evitado pelos núcleos missionários. E a última coisa que deveriam fazer é lutar para ocupar os cargos de poder e querer administrar sozinho o condomínio. Do jeito que as coisas funcionam, isto seria o suicídio missionário dos núcleos. Neste sentido, o máximo que a prudência recomenda é o núcleo missionário tentar eleger um de seus membros ao Conselho Fiscal, a fim de ter fácil acesso aos documentos e também conhecimento de certos processos decisórios e administrativos realizados em "reuniões fechadas" das quais só podem participar os administradores eleitos (síndico e membros do Conselho), mas não os demais moradores interessados no assunto, o que não me parece justo e que se deveria procurar corrigir, tornando "públicas e abertas aos moradores" todas as reuniões do síndico com o Conselho, uma vez que o assunto tratado nestas reuniões não é assunto privado nem segredo de Estado, mas é de interesse comum e diz respeito a todos os moradores. Mas antes de tentar a abertura e publicidade destas reuniões secretas, um primeiro passo mais simples e fácil para a democratização do poder é instituir no condomínio a realização de reuniões mensais e informais entre os administradores eleitos e os moradores interessados, a fim de poderem conversar e interagir publicamente, esclarecer dúvidas, fazer reclamações, propor soluções, discutir e resolver juntos os problemas da comunidade. Apenas esta simples e inocente providência já é muitas vezes suficiente para desencadear na comunidade um processo irreversível de transformação e renovação, pois a simples publicidade das interações condominiais que se realizam em reuniões abertas e diante de todos, é o melhor meio de se evitar a sua individualização e conseqüente manipulação, clientelização, e corrupção. "Quem pratica o mal, tem ódio da luz, e não se aproxima da luz, para que suas ações não sejam desmascaradas. Mas, quem age conforme à verdade, se aproxima da luz, para que suas ações sejam vistas, porque são feitas como Deus quer." (Jo 3,20-21). c) Respeito à Lei e aos direitos de todos. Além de se promover entre os moradores o conhecimento das leis e normas que regem a vida da comunidade e que determinam as obrigações e os direitos de todos, é indispensável

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providenciar também os meios e os instrumentos comunitários para aplicação das leis e resolução dos conflitos, de modo que se cumpram as obrigações e se respeitem os direitos. Para isso, seria preciso criar nos condomínios grupos espontâneos de moradores (ou talvez comissões e conselhos eleitos e instituídos) que se dediquem a ouvir queixas, mediar conflitos e administrar a Justiça da Lei no condomínio, desempenhando as funções próprias de um poder judiciário no interior do condomínio, ajudando assim o trabalho do síndico e do conselho consultivo. Mesmo que isto não tenha nenhuma eficácia jurídica ou institucional, este pequeno grupo de moradores teria ao menos alguma eficácia prática (ou pelo menos influência moral) na defesa de direitos, na aplicação das leis, na solução de conflitos e na promoção da justiça e paz na vida da comunidade. d) Ética nas relações comunitárias. Como, porém, a estrita aplicação da Lei é insuficiente (e às vezes inadequado) para se promover a justiça e a paz nos condomínios, é preciso também que se criem grupos espontâneos de moradores dedicados ao exame, avaliação e promoção da ética cristã no conjunto das relações condominiais. Pois nem tudo na vida social é (ou deve ser) regulado por leis ou normas escritas, mas tudo precisa ser regulado com ética (isto é, com justiça e amor). Porém, não há nos condomínios ninguém que se preocupe sistematicamente com isso. Por esta razão, cada núcleo missionário deveria ser, ele próprio, um "grupo espontâneo de moradores" continuamente dedicados a esta tarefa fundamental de examinar, avaliar e promover a ética em todas as relações comunitárias e condominiais. Esta deveria ser a atividade principal dos núcleos: a reflexão ética como fonte inspiradora de todas as suas ações, comunicações, propostas e providências na comunidade. e) Respeito e consideração pelas pessoas, por suas diferenças, necessidades e situações particulares. Embora esta segunda fase da formação tenha por finalidade central promover uma forma de serviço que seja de âmbito comunitário e condominial (pois é isto o que justifica a criação de uma pastoral específica dos condomínios), é claro que a defesa e promoção do bem comum (comunitário e coletivo) jamais deve se opor, mas antes pressupor e incluir o bem particular de cada pessoa considerada individualmente em suas características, situações e necessidades pessoais. Isto precisa ser objeto de muita atenção e cuidado pelos núcleos missionários, pois nos condomínios não vivem apenas seres humanos adultos, capazes e iguais entre si, mas há também crianças, adolescentes, jovens, idosos, doentes, pessoas com problemas e deficiências físicas ou mentais, e sobretudo pessoas muito diferentes entre si por sua origem, crença religiosa, valores morais, opinião política, orientação sexual, etnia, escolaridade, situação familiar, social, profissional, econômica, disponibilidade de tempo, hábitos, aparência, etc. E buscar o bem comum em união (e não em oposição) ao bem particular de todas estas pessoas, representa o mais elevado ideal de justiça que se possa almejar numa comunidade, ideal que só pode ser aproximado e realizado com a prática do amor ao próximo e com o discernimento da justa hierarquia dos bens ou valores que a cada momento convém realizar ou renunciar. Pois quando falta este amor e discernimento num condomínio, não só o interesse particular de cada um age como pólvora explosiva que fragmenta a comunidade sem nenhuma consideração pelo bem comum de todos, como também o próprio interesse coletivo age como um trator cego e impiedoso que passa por cima das pessoas sem nenhuma consideração pelo seu bem em particular. Ambas as coisas

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ocorrem com espantosa freqüência nos condomínios. Portanto, além da defesa e promoção do bem comum e do interesse coletivo (indispensável à vida comunitária e aqui tratada com a necessária ênfase), é preciso também considerar, defender e promover o bem particular das pessoas (ou das minorias), sobretudo quando este bem é ignorado ou se vê injustamente ameaçado diante da força avassaladora do interesse coletivo (ou da opinião da maioria). E geralmente estes males e injustiças passam despercebidos, são aceitos e até aplaudidos por todo mundo, sem que haja uma única voz na comunidade que os denuncie e que esclareça eticamente o caso. Por isso é preciso que haja nos condomínios ao menos um pequeno grupo de moradores continuamente atentos não só às exigências do bem comum (comunitário e condominial), mas também atentos às necessidades individuais e aos interesses legítimos de cada pessoa em particular, para poderem falar e agir em caso de necessidade, seja para "lembrar" à comunidade algo que não está sendo devidamente considerado, seja para incentivar e organizar na comunidade frentes de solidariedade, cooperação e ajuda mútua em todas as áreas em que isto for possível, necessário e conveniente, tais como assistência aos doentes, idosos e pessoas com alguma deficiência, cuidado às crianças e jovens, apoio a desempregados, partilha de bens materiais, culturais e espirituais (objetos, informações, serviços), partilha de transporte (as "caronas urbanas"), etc. Para isso, os subsídios precisam oferecer aos núcleos alguma orientação17 quanto aos princípios de reflexão, os critérios de julgar e as diretivas práticas indispensáveis para que todos aprendam a aplicar o método "ver, julgar e agir" às realidades condominiais, e assim descobrir e inventar meios para impregnar estas realidades com as exigências da doutrina e da vida cristã. Esta iniciativa dos leigos seria uma atividade essencialmente ética. É para esta finalidade prática (ou ética) que devem convergir todas as orientações oferecidas nos subsídios. Esta seria a contribuição específica dos cristãos leigos aos seus condomínios: o trabalho e o serviço dos núcleos consistiria essencialmente em trazer à consciência da comunidade um ponto de vista ético exclusivamente preocupado e comprometido com os valores evangélicos, iluminando com a luz de Cristo todos os aspectos da vida do condomínio, e aceitando em paz as diferentes opções pessoais que cada um fizer, mas que farão agora com alguma consciência de suas relações com a ética cristã. Isto é, com alguma consciência dos fins (ou dos bens) que se deve buscar e dos meios necessários e adequados para alcançá-los. Portanto, o foco da ação e participação dos leigos na vida do condomínio seria comunicar à comunidade um ponto de vista ético sobre todas as coisas e assuntos do condomínio. (Comunicar, obviamente, com atos e providências, e não só com palavras e reclamações.) E para poder elaborar e comunicar um ponto de vista ético sobre alguma coisa do condomínio, é evidente que o leigo precisa estudar, observar e conhecer muito bem esta coisa. É por esta razão que a formação do laicato precisa ser simultaneamente ética e técnica, religiosa e laica, teórica e prática, isto é: uma formação integral e unitária. De outro modo, jamais conseguiremos "impregnar as realidades culturais, sociais, políticas, econômicas, com as exigências da doutrina e da vida cristã". Pois a regulação ética da vida não se faz (nem é possível fazer) de modo separado e independente da regulação técnica da vida. Uma regulação não se faz em separado da outra, mas sempre em união. E é esta unidade entre ética e técnica, entre fins e meios, 17

Seria de grande utilidade para a formação missionária dos leigos indicar a todos leitura e o estudo do "Compêndio da Doutrina Social da Igreja" (Pontifício Conselho Justiça e Paz), além de outras obras que também tratam de ética social conforme a rica tradição do direito natural de inspiração cristã e católica.

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entre as boas intenções e a eficácia das ações, que precisa ser objeto de formação do laicato. É preciso unir a formação ética com a formação técnica, para que uma possa impregnar a outra. Pois toda e qualquer prática ou atividade humana neste mundo, implica sempre numa ética e numa técnica (isto é, numa racionalidade dos fins e dos meios), ambas inseparáveis entre si. E a nossa esquizofrenia de "cristãos leigos" é ter muitas vezes uma ética cristã ao lado de uma técnica pagã. É isto o que vemos acontecer, na maioria dos casos. Os professores cristãos, por exemplo, seguem o mesmo currículo e adotam os mesmos métodos pedagógicos que os professores pagãos, isto é, ensinam as mesmas coisas do mesmo jeito que todo mundo. Os trabalhadores e empresários cristãos produzem e negociam as mesmas coisas e do mesmo modo que os trabalhadores e empresários pagãos. E os condôminos cristãos agem e participam da vida do condomínio do mesmo jeito que os condôminos pagãos. Não se percebe nenhuma diferença substancial e significativa entre a prática de uns e de outros: todos (cristãos e pagãos) parecem adotar o mesmo modo de agir ou as mesmas técnicas educacionais, econômicas, sociais e políticas, embora uns acreditem no Evangelho e outros não. É isto que denunciamos como "a ruptura entre fé e cultura". E só uma formação cristã e missionária, ética e técnica, integral e unitária, poderá curar esta esquizofrenia espiritual e cultural que nós vivemos. 3.3. TERCEIRA ETAPA – Anúncio do Evangelho ao condomínio. É claro que exagerei bastante no que eu disse acima, pois o contrário também é verdade: os cristãos leigos fazem diferença, e muita diferença, nas práticas deste mundo. Vi isto acontecer com muita clareza no meu condomínio: o pequeno grupo de pessoas que se reuniu espontaneamente, batalhou, se doou, persistiu e continua persistindo para melhorar algumas coisas na vida do condomínio, é composto por cristãos, católicos e evangélicos. Sem a prática dos moradores cristãos no meu condomínio, e sem a união e cooperação entre católicos e evangélicos, muita coisa boa não teria acontecido por lá. Isto me obriga a levantar um problema dos mais difíceis para os cristãos: a nossa divisão entre Igrejas separadas que não se entendem em muitos pontos essenciais da nossa fé e vida em Cristo. A pastoral dos condomínios terá que encontrar uma solução para este problema, pois não podemos simplesmente ignorá-lo. Por um lado, a atuação dos cristãos nos condomínios ganhará força e será mais eficaz se todos os cristãos (católicos e evangélicos) atuarem juntos e em estreita colaboração. Isto é uma evidência teológica e sociológica. Por outro lado, a formação missionária dos católicos, tal como seria normal e necessário fazê-la, certamente irá chocar-se contra muitas opiniões e modos evangélicos de viver a espiritualidade cristã. Não consigo sequer imaginar uma formação que pudesse servir simultaneamente aos católicos e evangélicos sem ter que empobrecê-la e mutilá-la em muitas coisas essenciais do catolicismo e que são rejeitadas pelos evangélicos (tais como a comunhão dos santos e a Virgem Maria, a Tradição e o ensino do magistério, as estruturas eclesiais e pastorais da Igreja etc.). Por outro lado, excluir os cristãos não-católicos dos núcleos missionários e das suas atividades de formação, me parece contradizer a vontade de Cristo. E incluílos, me parece difícil e problemático. Que solução dar para este problema? Pois alguma solução tem que ser dada. Mas qual? Se já será difícil para os próprios católicos se entenderem entre si e construírem uma união estável no grupo, imagine então se misturarmos católicos e evangélicos que mal se conhecem e que se entendem muito mal em questões de doutrina! A dificuldade será maior ainda. Porém, Cristo jamais disse que o seu caminho era fácil. Talvez seja a hora

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de enfrentarmos esta dificuldade, e conceber o núcleo aberto e a formação adaptada para todo mundo que quiser participar: cristãos e não-cristãos, católicos e não-católicos. E pensar numa formação que seja a mais leiga e ecumênica possível (a Campanha da Fraternidade é um modelo neste sentido), sem contudo mutilar a formação dos católicos de nenhum elemento essencial (isto é, sem excluir os santos padroeiros e a Virgem Maria, a Tradição e o ensino do magistério, as estruturas eclesiais e pastorais da Igreja etc.). E deixar que Cristo cuide do resto. Pois assim fazemos a sua vontade e não excluímos ninguém: todos serão convidados, acolhidos e respeitados. E para que os católicos tenham todo o tempo necessário para se conhecerem, se amarem, se unirem e se organizarem melhor entre si, os outros moradores poderiam ser incluídos mais tarde, e serem convidados aos poucos, naturalmente, conforme as relações pessoais de amizade e conhecimento dos católicos no prédio. E assim todos seriam convidados, mas cada um a seu tempo: primeiro os da casa, depois os amigos e conhecidos, e por fim os estranhos. De outro modo, a festa vira uma bagunça, e até o Dono da Casa acaba sendo excluído e expulso de lá! E este processo gradual e natural de inclusão dos demais moradores na comunhão eclesial-condominial promovida pelos católicos no prédio em que moram, seria por assim dizer a terceira fase da formação missionária (o anúncio), na qual se aprenderia na prática a falar da relação EvangelhoCondomínio aos demais moradores com a finalidade de integrá-los nesta comunhão eclesial-condominial "católica" (isto é, aberta à participação de todos). E por se tratar aí de uma forma de comunhão eclesial-condominial leiga (isto é, do povo católico nos condomínios), penso que esta integração se fará mais facilmente e naturalmente do que se imagina, pois neste caso tal integração não envolveria questões complicadas de natureza hierárquica, sacramental ou doutrinal, mas simplesmente questões éticas (e práticas) da vida comunitária de um condomínio. Esta poderia ser uma maneira leiga de evangelizar o condomínio e de praticar o ecumenismo. E acima de tudo, esta seria uma maneira leiga de nós, católicos, praticarmos o cristianismo na nossa vida real, normal e quotidiana. Talvez esta seja uma solução pastoral possível. Pois na medida em que os católicos leigos forem aprendendo a praticar a verdade do Evangelho no seu condomínio e nos demais ambientes onde vivem e atuam, nesta exata medida saberão também o que falar e como testemunhar com palavras esta mesma verdade do Evangelho. Esta é a ordem e também a hierarquia natural das coisas: "Nem todo aquele que me diz 'Senhor, Senhor', entrará no Reino do Céu. Só entrará aquele que põe em prática a vontade do meu Pai, que está no céu." (Mt 7,21). Portanto, não convém colocar a carroça na frente do boi e ficar obcecado com o anúncio verbal do Evangelho: mesmo que os leigos não consigam anunciar o Evangelho com palavras, pelo menos o proclamarão com as obras. E as "obras" seriam estas: a sua união e comunhão em Cristo, e o serviço cristão à comunidade urbana da qual fazem parte. Pois sem a própria conversão e a conseqüente prática do amor a Deus e ao próximo, não faz sentido sairmos por aí falando e pregando aos outros a verdade do Evangelho: "Filhinhos, não amemos com palavras nem com a língua, mas com obras e de verdade. Desse modo saberemos que estamos do lado da verdade." (1Jo 3,18). Que Deus nos socorra e nos ajude a ficar sempre do lado da verdade.

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CONCLUSÃO Ao longo deste texto procurei dar uma resposta concreta aos desafios pastorais indicados nestas Conclusões de Santo Domingo (Os leigos hoje em nossas Igrejas): "Comprova-se, porém, que a maior parte dos batizados ainda não tomou plena consciência de sua pertença à Igreja. Sentem-se católicos, mas não Igreja. Poucos assumem os valores cristãos como elemento de sua identidade cultural, não sentindo a necessidade de um compromisso eclesial e evangelizador. Como conseqüência, o mundo do trabalho, da política, da economia, da ciência, da arte, da literatura e dos meios de comunicação social não são guiados por critérios evangélicos. Assim se explica a incoerência entre a fé que dizem professar e o compromisso real na vida (cf. P 783). Também se comprova que os leigos nem sempre são adequadamente acompanhados pelos Pastores na descoberta e amadurecimento da própria vocação. A persistência de certa mentalidade clerical nos numerosos agentes de pastoral, clérigos e inclusive leigos (cf. P 784), a dedicação preferencial de muitos leigos a tarefas intra-eclesiais e uma deficiente formação privam-nos de dar respostas eficazes aos atuais desafios da sociedade." (Santo Domingo, 96). São estes os principais desafios pastorais relativos à vocação e missão dos cristãos leigos na Igreja e na sociedade. Mesmo eu não tendo nenhuma competência profissional ou científica para tratar destes assuntos, e tendo por base apenas a minha experiência pessoal de participação nos problemas, desafios e urgências do nosso "mundo secular" e também "eclesial" (cf. Puebla, 795), espero que esta reflexão e sugestão pastoral que ora vos envio possa um dia contribuir para a organização e formação missionária dos leigos em seus condomínios e nos demais ambientes urbanos onde vivem e atuam diariamente. FIM

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ANEXO Neste Anexo trato com mais detalhes de algumas formas possíveis (e necessárias) de cooperação entre os núcleos missionários e os condomínios, referidas sumariamente na página 140, e cuja promoção seria uma das tarefas do coordenador da pastoral: 1. Meios e estruturas de comunicação entre moradores, núcleos e condomínios. 2. Iniciativas de integração eclesial e social dos núcleos e condomínios. 3. Associação dos moradores de condomínio. 4. Serviço de proteção aos moradores de condomínio. 5. Serviço de acolhida aos novos moradores do prédio. 6. Ação solidária em situações de emergência doméstica, desemprego e transporte. * * * 1. COMUNICAÇÃO 1. Comunicação entre os moradores no interior do condomínio. Qualquer forma de comunicação e cooperação "entre os diferentes núcleos e condomínios" pressupõe obviamente a comunicação "entre os moradores" no interior de seu próprio condomínio. E como sabemos, a forma mais natural de comunicação numa pequena comunidade é o encontro e a reunião das pessoas. Forma fundamental e indispensável de comunicação, que deveria ser promovida mensalmente nos condomínios como espaço regular de encontro para os moradores e administradores poderem conversar e resolver juntos os problemas da vida comunitária. Porém, esta forma simples e natural de comunicação comunitária tem também os seus limites naturais: no caso das comunidades condominiais, em razão do seu tamanho e de suas características, é praticamente impossível realizar um encontro ou reunião com todos os seus membros. O máximo que se consegue num prédio, é reunir uma parte pequena dos seus moradores. E se por alguma razão um condômino precisar ou desejar se comunicar com todos os moradores do condomínio (o que é normal acontecer na vida destas comunidades), esta pessoa terá que encontrar alguma outra maneira de se comunicar que não seja por meio de um encontro ou reunião. Mas então, que outra maneira haveria para um morador poder se comunicar com a comunidade toda? Infelizmente, não há nos condomínios nenhum meio "comunitário" de comunicação que seja desenvolvido e administrado pelos própios moradores, pois todos que existem são controlados exclusivamente pelos administradores (o síndico e a empresa administradora contratada), que obviamente comunicam apenas o que querem e quando querem, de acordo com seu juízo ou interesse particular. Esta situação mantém a maioria dos moradores em permanente estado de isolamento, alienação e ignorância comunitária, pois além de não ser possível uma reunião com todos, também não é possível alguém conseguir se comunicar "pessoalmente" e de porta em porta com centenas de moradores quando isto se faz necessário: além do tempo absurdo que se gastaria para fazer isto, uma parte dos moradores nunca está em casa, outra parte espia desconfiada pelo olho-mágico e prefere não atender gente estranha, e os que atendem geralmente estão (ou dizem estar) "ocupados" e por isso não podem perder muito tempo com conversas e assuntos de condomínio. Dentre os que atendem, só uma pequena minoria demonstra algum interesse e disposição para conversar. Esta é a realidade que 175

encontra todo aquele que tenta se comunicar "pessoalmente" e de porta em porta com todos os moradores do seu prédio. Além de difícil e cansativo, este modo de se comunicar também não funciona para este caso. Mas será que não existe nenhum modo simples e prático de se fazer isto num prédio? Ora, existe sim: o modo mais fácil de se comunicar com todos os moradores de um prédio é por meio de um texto escrito afixado numa parede ou num quadro mural, em local bem visível no hall de entrada do prédio ou no elevador. É o que geralmente faz o síndico quando quer comunicar-se rapidamente com a comunidade toda. Mas isto, só o síndico tem o direito de fazer. Os demais moradores (inclusive os conselheiros) não podem fazer isto sem autorização do síndico. Certa vez, em nosso condomínio, obtivemos autorização do síndico para fazer um quadro mural "público e aberto" para todos os moradores, mas a experiência logo nos mostrou que era preciso que alguém organizasse e administrasse o uso do mural, pois os moradores desprovidos de espírito público e comunitário começaram a fazer progadanda comercial no mural, arrancavam do mural o que não queriam, colocavam bilhetes pessoais ou textos inconvenientes uns sobre os outros, de modo que o síndico logo foi obrigado (e com razão) a assumir o "controle" também do mural comunitário, pois este ficava ao lado do elevador e em área de uso comum, cuja administração é de responsabilidade do síndico. De modo que também o mural comunitário não serve aos interesses e necessidades dos moradores: quando público e aberto a todos, vira uma anarquia imprestável, e quando controlado pelo síndico, serve apenas aos seus próprios interesses. Existiria, no entanto, uma solução possível e mais equilibrada para tal dilema: bastaria que cada membro eleito do Conselho Consultivo tivesse também o direito de administrar pessoalmente (e sem qualquer tipo de intervenção do síndico ou dos outros conselheiros) o uso comunitário do quadro mural, o que tornaria um pouco mais democrático o uso deste meio de comunicação. Afinal de contas, cada conselheiro é eleito do mesmo modo que o síndico: para representar os condôminos. Conclusão: além de um mural comunitário, que mesmo "controlado pelo síndico e pelos conselheiros" será sempre útil providenciar, a única forma que resta para os moradores de um prédio se comunicarem entre si sem o controle (ou censura prévia) da administração, é por meio de material impresso distribuído diretamente nos apartamentos. Infelizmente não existe outro meio a não ser este! E de fato, em nosso condomínio tivemos que fazer isto em algumas ocasiões, quando o bem comum estava sendo gravemente ameaçado e era preciso alertar rapidamente a comunidade inteira: então alguém digitava o texto num computador, imprimia na sua impressora, fazia cópias num xerox barato da cidade, e depois entregavávamos de porta em porta aos moradores. Este foi o único meio eficaz e bem sucedido que encontramos para nos comunicar com todos os moradores de modo livre e independente de qualquer controle administrativo. E creio que em qualquer condomínio este também é o único meio possível para um morador se comunicar diretamente com todos os demais moradores do seu prédio. Uma das vezes que fizemos isto, foi para alertar a comunidade sobre o texto da nova Convenção que seria votada. O caso foi este: após meses de reuniões e discussões no prédio, chegamos enfim a um acordo sobre o texto da nova Convenção do Condomínio. A Lei exige que uma nova Convenção seja votada em Assembleia Geral e aprovada por 2/3 dos condôminos. Quando os moradores receberam a convocação para esta Assembleia junto com o texto a ser votado, uma moradora (católica, viúva, e muito esperta) veio correndo até meu apartamento dizendo: "Hugo, precisamos conferir este texto para ver se está conforme ao que acordamos nas reuniões. Acho que foi 176

modificado." E de fato, a síndica (por conta própria, e a conselho de um advogado) havia modificado o texto num ponto fundamental, sem conversar antes com qualquer das pessoas que participaram das reuniões. Ela mudava a regra de praxe para a aprovação das Contas do condomínio, que é por "maioria simples dos presentes à assembleia". A nova regra inventada pela síndica seria esta: "Caso a Assembleia Geral não atinja o quórum de 1/3 dos condôminos, as contas do exercício anterior estarão automaticamente aprovadas." Ora, neste condomínio nunca houve assembleia geral que conseguisse reunir 1/3 dos condôminos. Portanto, se isto fosse aprovado, dali em diante todas as contas do síndico estariam "automaticamente aprovadas". Era preciso alertar a comunidade inteira deste absurdo, e fazê-lo antes da assembleia. Pois deixar para esclarecer isto no momento da assembleia seria muito arriscado (os manipuladores de plantão sabem como confundir, calar e enganar as pessoas), e possivelmente o texto seria aprovado pois ninguém lê nem confere nada, ou não imagina que o texto acordado possa ter sido alterado. Então redigimos um alerta, fizemos as cópias xerox necessárias, e distribuímos por todos os apartamentos. Só isto já foi suficiente, eficaz, e resolveu a questão (sem bate-boca ou gritaria inútil entre os moradores). Conto este caso apenas para justificar a absoluta necessidade de se prever nos condomínios um meio "comunitário" de comunicação que seja livre e independente de qualquer "controle" por parte dos administradores eleitos (síndico e conselho). Por isso, os núcleos missionários deveriam planejar a criação e o modo de funcionamento de um "jornalzinho ou boletim comunitário", destinado a promover a comunicação interna no seu condomínio, aberto à participação e colaboração de todos os moradores, mas obviamente administrado e produzido pelo próprio núcleo missionário com critérios éticos e cristãos. Deste modo os moradores teriam um meio de comunicação próprio e independente, simples e democrático, com distribuição gratuita, a serviço do bem comum "condominial". E se nenhum membro do núcleo missionário quiser ou puder pagar as despesas com o xerox (que são irrisórias, além de esporádicas), pode-se reduzir bastante este custo enviando o "jornalzinho" por e-mail aos moradores que tiverem acesso à Internet e que assim preferirem. E se nós (leigos da Igreja Católica) quisermos que este "jornalzinho comunitário" preste um real serviço à comunidade e seja aceito e lido com interesse por todos os moradores, é preciso evitar duas coisas: 1. Que este meio de comunicação se transforme em "boletim paroquial" a serviço apenas dos católicos ou da própria Igreja. Digo isto porque as providências "missionárias" que nós (leigos paroquianos) costumamos conceber e realizar, trazem sempre a marca registrada do nosso arraigado "clericalismo", que privilegia as ações missionárias próprias ou dependentes do clero (como a pregação religiosa, a celebração de sacramentos, informações eclesiais, etc.), e acaba sempre omitindo e deixando de lado aquelas ações missionárias que são próprias e específicas do leigo: "É porém específico dos leigos, por sua própria vocação, procurar o Reino de Deus exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus." (Lumen Gentium 31.). Portanto, o boletim comunitário deveria tratar de assuntos temporais e condominiais que interessam e dizem respeito a todos os moradores, e não de assuntos religiosos ou eclesiais próprios e específicos dos católicos. Do contrário, obrigaremos os moradores das outras Igrejas e religiões a fazerem também seus próprios boletins religiosos, e a comunicação interna do condomínio em vez de unir os moradores para resolver os problemas comunitários de todos, irá apenas dividir os moradores em torno de suas divergências religiosas e eclesiais que em nada ajudam a resolver os problemas da comunidade. A decisão é nossa: ou fazemos um boletim "comunitário" do condomínio, ou fazemos um

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boletim "paroquial" no condomínio. As duas coisas misturadas e ao mesmo tempo não dá certo. É preciso definir qual é a nossa prioridade neste caso: praticar ou falar da nossa fé? E afinal, de que adianta todo mundo no condomínio falar aos outros da sua fé, mas ninguém no condomínio praticar a própria fé? Pois é isto o que acontecerá se os leigos começarem a fazer pregação religiosa (e católica) no boletim comunitário, que por isso mesmo deixará de ser "comunitário" para se tornar um boletim "dos católicos". Por outro lado, nada impede os católicos leigos de fazerem também no condomínio um boletim de caráter explicitamente religioso e católico. O que não convém é misturar e fazer as duas coisas num mesmo e único boletim. No serviço ao condomínio (que seria a finalidade de um boletim "comunitário"), convém respeitar as divergências religiosas da comunidade em vez de atiçá-las com pregação e doutrinação católica fora de propósito ou de lugar. Para isso, se for o caso, crie-se um outro boletim especificamente católico. E depois, os católicos que agüentem a enxurrada de boletins e pregações de todo tipo que outros também farão no condomínio: evangélicos, protestantes, espíritas, judeus, budistas, muçulmanos, esotéricos, ateus, etc. Só espero que nenhum falatório e preconceito religioso venha atrapalhar o serviço cristão dos leigos ao seu condomínio. 2. E também seria bom evitar que o boletim seja produzido regularmente por mera rotina, sem que haja uma real necessidade ou urgência de comunicação entre os moradores. Pois um boletim comunitário só desperta interesse na medida em que este meio é usado com parcimônia e apenas quando existe algo importante e necessário para se dizer. Qualquer "excesso" ou rotina no uso desta forma de comunicação, apenas fará com que os moradores se cansem, se desinteressem, e deixem de ler o boletim comunitário. Num condomínio, a comunicação só é eficaz quando segue esta máxima: "O menos é mais". 2. Comunicação e cooperação entre os núcleos e entre os condomínios. São tantas as dúvidas e problemas que atormentam os moradores de condomínio, que alguns jornais de grande circulação começaram a publicar colunas e artigos sobre o assunto, respondendo a dúvidas e questões dos leitores. Isto, porém, não resolve o problema dos moradores, porque não é este o principal objetivo destes jornais, cujo propósito e interesse é, antes de tudo, comercial. Por isso, seria preciso criar também estruturas ou meios de comunicação que permitissem a cooperação entre os núcleos e os condomínios no sentido de trocar informações, colocar dúvidas e fazer perguntas, ajudar com respostas e propor soluções, dar sugestões e oferecer orientações, noticiar casos de condomínio, relatar experiências bem sucedidas, refletir sobre os esquemas típicos de corrupção e o que fazer para evitálos ou combatê-los, etc. A tarefa do agente Coordenador da pastoral seria incentivar e orientar a criação destes meios de comunicação e cooperação, primeiro entre os próprios núcleos missionários que forem se formando, e depois promovendo a participação dos demais moradores. Tais estruturas e meios de comunicação poderiam ser criados na forma de um site na Internet. Isto permitiria uma comunicação ágil e imediata entre núcleos e condomínios, possibilitando uma interação permanente entre os moradores dos edifícios. O ideal seria organizar uma "rede" de sites oficiais da Pastoral dos Condomínios, interligando bairros, cidades e estados do país todo. Estes sites poderiam oferecer todo tipo de informação e de serviço que se julgar necessário. As possibilidades de comunicação e cooperação pela Internet são quase infinitas, basta usar a imaginação. E para que não se crie aleatoriamente uma rede caótica de sites sem pé nem cabeça na Internet, o ideal também seria que se planejasse uma estrutura de rede organizada e 178

hierarquizada, definindo formatos, conteúdos e funções para cada site conforme fosse a sua abrangência territorial e posição hierárquica na rede. Para funcionar bem, qualquer iniciativa na área da comunicação exige planejamento, elaboração de projetos e constantes correções. Apenas "improvisações definitivas" não bastam. Para que estes meios de comunicação não se transformem em meios de manipulação, é preciso evitar que eles caiam sob o controle ou influência das raposas de plantão, que têm uma extraordinária capacidade para manipular e controlar tudo o que lhes interessa do modo que lhes convém. Para enganar o rebanho, estas raposas de condomínio são capazes até mesmo de ir a Aparecida do Norte de joelhos, com um terço na mão, cantando hinos religiosos em sinal de penitência! Para que os meios de comunicação criados pela pastoral continuem de fato sob a guia do Espírito Santo, os coordenadores precisariam também "supervisionar" o seu funcionamento e os seus conteúdos, realizando o trabalho de um editor responsável pelo que se faz e se comunica nestes meios. Pois isto seria uma parte importante da formação dos leigos: aprender a organizar e utilizar meios de comunicação com discernimento cristão. "Eis que eu envio vocês como ovelhas no meio de lobos. Portanto, sejam prudentes como as serpentes e simples como as pombas." (Mt 10,16).

2. INTEGRAÇÃO ECLESIAL E SOCIAL. Não convém que a pastoral dos condomínios, os núcleos missionários e os demais moradores dos prédios fiquem isolados do resto da Igreja e do resto do mundo. Por isso, seria preciso criar também estruturas ou meios de integração da pastoral dos condomínios ao conjunto das atividades pastorais da Igreja, de modo que os núcleos possam cooperar com as demais pastorais, movimentos e associações que queiram atuar junto à população dos prédios. Além disso, seria preciso promover também a integração da pastoral dos condomínios no conjunto das atividades da sociedade civil, de modo que os núcleos e os condomínios possam participar e colaborar em ações que tenham em vista o bem comum local, municipal ou nacional, sobretudo no que diz respeito a leis e a políticas públicas. E isto seria outra parte importante da formação dos leigos: como ampliar a perspectiva e o campo de visão dos núcleos para que eles vejam também o que acontece fora dos condomínios e, na medida do possível, colaborem com as ações e os esforços que outros realizam para o bem comum, seja por meio de organizações da Igreja ou das demais organizações da sociedade civil.

3. ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DE CONDOMÍNIO Um dos maiores problemas que enfrentam os moradores dos edifícios (tanto proprietários como inquilinos) é a falta absoluta de apoio e auxílio na defesa dos seus direitos mais elementares. Quando um morador ou grupo de moradores precisa de algum conhecimento técnico e assessoria jurídica para defender os seus direitos, promover a justiça e combater a corrupção no seu condomínio, eles não encontram em parte alguma quem os ajude, pois todas as estruturas de assistência técnica e jurídica que existem para tratar de assuntos de condomínio, ou estão sob o controle direto do síndico (no caso das empresas administradoras de condomínio), ou então só atendem e prestam serviço ao síndico e aos membros do Conselho (no caso do SECOVI, o Sindicato da Habitação, que é a Instituição legalmente encarregada de representar e defender os interesses dos condomínios, mas que deveria na verdade chamar-se o "sindicato dos síndicos", e não dos condomínios). 179

Veja que absurdo: embora sejam os próprios moradores aqueles que pagam e sustentam estes 2 serviços de assistência técnica, administrativa e jurídica ao seu condomínio, eles mesmos não podem utilizá-los na defesa dos seus direitos e interesses. Por outro lado, os serviços públicos de assistência técnica e jurídica não atendem os casos e os problemas internos "de condomínio", pois isto, segundo eles, deve ser resolvido pelos próprios moradores conforme determina a Lei de Condomínio e a Convenção de cada prédio. De modo que ao morador só resta a seguinte alternativa: ou ele contrata em particular e paga do seu bolso os serviços profissionais de algum contador, advogado ou engenheiro a fim de obter informação e receber alguma orientação no assunto, ou então (o que normalmente acontece) ele renuncia aos seus direitos e aceita calado toda espécie de erro, injustiça e corrupção no seu condomínio. Para resolver este problema, seria preciso criar uma Associação dos moradores, proprietários e inquilinos dos condomínios para ajudá-los em suas necessidades, promover o conhecimento jurídico, contábil e técnico, oferecer assistência e assessoria nestas áreas, e propor ações judiciais e outras formas de ação que fossem necessárias. Em São Paulo já se tentou criar uma Associação dos Moradores de Condomínio, que funcionou por algum tempo apenas. Fui informado que esta Associação fechou por excesso de corrupção na sua administração! Parece que esta praga só pode ser evitada com a ajuda de Deus, isto é, com a colaboração e participação de pessoas movidas pelo Espírito cristão de serviço ao próximo. Eis aí uma tarefa específica da pastoral dos condomínios e uma das possíveis tarefas do agente coordenador da pastoral.

4. SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS MORADORES DE CONDOMÍNIO Um dos grandes problemas que se vive hoje nas aglomerações urbanas é o anonimato crescente e generalizado de todos em relação a todos, o que cria novas situações e necessidades humanas que desafiam a caridade cristã. E a primeira coisa que a caridade cristã faz é tomar consciência destes problemas e procurar entendê-los, com a finalidade de encontrar soluções ou pelo menos algum alívio provisório. Quem viveu numa cidade ou comunidade pequena, tradicional e estável do passado recente, lembra que seus habitantes se conheciam mais ou menos integralmente, desde a infância, e se encontravam e se comunicavam com freqüência em relacionamentos que abrangiam os vários aspectos da rotina total da vida, de modo que qualquer coisa que alguém fizesse de bom ou de mau para outro, logo era divulgado e conhecido por toda a população. Este conhecimento mútuo e facilidade de comunicação (ou melhor, de fofocas) permitia que as pessoas se protegessem dos maus e desonestos e confiassem nos bons e honestos, o que era um poderoso freio à corrupção moral de todos. Apesar da falta de caridade com que se revestia muitas vezes este tipo de controle social, ele ao menos permitia que se construísse na comunidade uma rede de confiança mútua bastante benéfica como influência na atitude global das pessoas diante da vida, dos outros e até de Deus. A honra e a palavra dada eram consideradas patrimônio pessoal valioso a ser preservado a todo custo. Num ambiente destes, ser honesto e sempre correto com todos e em todos os setores da vida, trazia para a pessoa vantagens visíveis no convívio social, enquanto que ser desonesto só lhe trazia dificuldades e prejuízos, de modo que o controle social exercia uma poderosa ação educativa e seletiva, valorizando as virtudes sociais e condenando os vícios e os comportamentos anti-sociais.

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Já nas cidades e metrópoles de hoje ocorre o inverso: o anonimato geral em que se vive nestes centros urbanos faz de cada habitante um indivíduo desconhecido, isolado e jogado no meio de uma enorme massa de indivíduos também desconhecidos e sem nenhuma referência sólida. No entanto, todos são obrigados a se relacionarem sobre estas bases etéreas do anonimato, o que abre um campo imenso para a ação de gente desonesta e golpista. Pois o súbito crescimento das populações urbanas, a sua constante mobilidade e desenraizamento social, o isolamento, a falta de comunicação e de conhecimento mútuo, tudo isso impede que as pessoas se protejam dos vigaristas e desonestos, que podem agir livremente protegidos pelo anonimato de todos numa sociedade que se fragmenta em livres relações de mercado, que são por natureza relações impessoais e temporárias. Nos condomínios, este tipo de problema se multiplica e se agrava ainda mais por inúmeras razões: (1) em primeiro lugar, o problema se multiplica porque a habitação em edifícios obriga que se criem (e que se multipliquem) novas relações contratuais, profissionais e comerciais entre os moradores e as pessoas que trabalham e atuam no condomínio (os funcionários do prédio, os administradores eleitos, a empresa administradora, e as inúmeras empresas e profissionais que atuam na comercialização, instalação, manutenção, reformas e consertos dos equipamentos e estruturas do edifício e dos apartamentos); (2) em segundo lugar, o problema se agrava porque estas novas relações se dão entre desiguais, e por isso são sempre relações assimétricas e sem reciprocidade: de um lado estão os moradores que desconhecem todos os aspectos legais, contábeis e técnicos destas relações, e de outro lado estão os profissionais especializados que só fazem isto na vida e por isso conhecem muito bem os aspectos legais, contábeis e técnicos do serviço que fazem, e freqüentemente usam este conhecimento para enganar, manipular e explorar os moradores; (3) e em terceiro lugar, este problema é constante e parece não ter fim, porque é muito grande o volume de dinheiro envolvido nestas relações, o que faz dos condomínios uma verdadeira "mina de ouro" (como disse certa vez um funcionário do meu prédio) que atrai a cobiça de todo tipo de gente desonesta, aventureira, golpista e corrupta da cidade, que vê nos moradores apenas um "bando de otários" fácil de enganar, tapear, explorar e roubar, tanto coletivamente como individualmente. A respeito da enganação e exploração coletiva, já vimos o suficiente ao tratar da corrupção administrativa nos condomínios. Porém, é preciso lembrar também a exploração e enganação individual, aquela da qual o morador é uma vítima solitária e sem possibilidade de defesa. Os golpes que se aplicam nos condomínios são variações intermináveis de um mesmo esquema básico de ação: roubo, mentira e prepotência. Coisa bastante conhecida pelo povo brasileiro: falsificações de documentos, licitações manipuladas, propinas, empresas-fantasma, superfaturamentos, serviços mal feitos, abandonados pela metade ou que nem mesmo são iniciados, pois o golpista desaparece com o dinheiro que os "otários" lhe adiantaram na maior ingenuidade e boa fé deste mundo. Como ninguém se conhece nem se comunica na cidade, o golpista e o corrupto (entre os quais estão respeitáveis empresas e profissionais que atuam no setor) continuam a aplicar seus golpes sem nenhum embaraço ou dificuldade, pois nem os moradores de um mesmo prédio ficam sabendo o que aconteceu no condomínio ou num apartamento particular. Deste modo, o anonimato e a ausência de qualquer controle social cria na cidade um ambiente favorável à desonestidade e à corrupção das pessoas, e prejudicial à honestidade e à boa fé dos outros. Cria-se assim uma vasta e generalizada rede de

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desconfiança mútua, onde honestos e desonestos se confundem e recebem igual tratamento, e então o crime compensa e a virtude só dá prejuízo. Este estado de coisas alimenta nos habitantes das grandes cidades uma atitude global de desconfiança diante da vida, dos outros e até de Deus. Num ambiente destes, os nossos próprios semelhantes não são mais familiares e companheiros de caminhada, mas estranhos que até podem ser perigosos. Neste contexto, a realidade humana (e divina) dos outros não se manifesta nem pode manifestar-se: os outros (e o Outro) são seres desconhecidos, sem nenhuma referência histórica e social possível, dos quais é preciso sempre desconfiar e com os quais, no entanto, é preciso sempre se relacionar, pois dependemos cada vez mais uns dos outros para poder viver. Portanto, esta questão não se restringe apenas aos seus aspectos financeiros e jurídicos, mas se alastra como peste no tecido social e penetra como espada no âmago das pessoas, interferindo até mesmo em suas relações com Deus, pois dificulta a experiência interior de "confiança e entrega", tão necessária na vivência religiosa. Como remediar esta situação numa cidade com milhões de desconhecidos? Um modo possível de se remediar "um pouco" estes males gerados pelo anonimato das pessoas na cidade grande, seria exatamente combater o anonimato dando-se o nome aos bois. Com este propósito, já se criaram em nossas sociedades várias formas de associação voluntária que fazem exatamente isto: dão o nome aos bois. Isto é, recebem e registram num "banco de dados" as queixas e denúncias dos associados, e depois colocam estas informações à disposição de todos os interessados que desejam ter acesso a tais informações, permitindo com isso que o associado identifique as raposas e os trapaceiros da cidade e possa ao menos se proteger de quem já enganou e explorou a boa fé e a credulidade alheia. Para compensar a fraqueza e a ignorância do "indivíduo isolado" numa sociedade mercantil, os consumidores criaram vários serviços de proteção ao consumidor, e também os comerciantes criaram um serviço de proteção ao crédito (o SPC). E os industriais já fizeram o mesmo para proteger seus produtos, marcas, patentes e invenções. Só o cidadão comum continua desprotegido, isolado e ignorante, vendo calado um bando de raposas rapinar-lhe o voto, a boa fé, o trabalho e a vida por meio de mentiras, trapaças e roubos na política, na empresa, na escola, no posto de saúde, no banco, no supermercado, no ônibus e nos locais de habitação. Seja no centro ou na periferia, na favela, no cortiço ou num condomínio, o cidadão continua isolado, ignorante e desprotegido. Então, ao lado de tantos serviços de proteção já existentes, por que não poderia existir também um serviço de proteção ao morador de condomínio? Algo deste tipo poderia ser criado por iniciativa dos núcleos da pastoral dos condomínios, que organizariam um "banco de dados" para registrar informações (tanto positivas como negativas) relativas aos administradores, aos profissionais e às empresas que trabalham e atuam nos condomínios da cidade, seja na forma de denúncias, críticas e reclamações, ou na forma de recomendações e apreciações positivas, tudo obviamente apoiado em "fatos" devidamente narrados, explicados, e se possível documentados. Basta que se encontre uma maneira para receber, registrar e comunicar estas informações de modo a não criar problemas éticos ou jurídicos. Creio que tais problemas poderiam ser evitados se o "serviço de proteção ao morador" fosse feito sempre por meio dos núcleos missionários e com a supervisão do coordenador da pastoral. Isto permitiria conferir e averiguar bem as informações dadas antes de registrá-las e comunicá-las aos outros, evitando assim que se cometam erros de identidade ou que se façam afirmações infundadas, calúnias e injustiças (coisa bastante comum nos condomínios e entre os seus moradores, que passam com muita facilidade da desconfiança à suspeita, da suspeita à

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certeza, e da certeza à acusação e denúncia, sem nenhum fundamento, comprovação, ou relação com os fatos e a realidade objetiva das coisas). O único modo de responsabilizar (ética e juridicamente) alguém pelas informações dadas, é identificar a pessoa que deseja registrar uma reclamação ou denúncia contra um administrador, um profissional ou uma empresa que agiu com desonestidade no seu condomínio. E o único modo de permitir que outros se protejam destes golpistas, é identificá-los e dizer claramente o que eles fizeram. Para isto, é preciso que os membros do núcleo missionário conversem com o morador e procurem esclarecer bem o caso, o que exigirá tempo, paciência e espírito de solidariedade dos fiéis leigos. Este "serviço" seria uma excelente ocasião para o diálogo cristão com os moradores do prédio (e eventualmente com o profissional ou a empresa denunciada). Diálogo difícil, sem dúvida, porque se trataria de um conflito geralmente apaixonado, cheio de reclamações, acusações, confusões e hipocrisias. Mas procurar a verdade e discernir o que é justo, não seria uma das principais tarefas do povo cristão neste mundo? "Por que vocês não julgam por si mesmos o que é justo?" (Lc 12,57). Em casos muito difíceis ou nebulosos, pode-se até fazer aquilo que o índio Juruna fazia: liga-se um gravador, e registram-se as palavras de cada um. Tentamos fazer isto em nosso condomínio, e os mentirosos e corruptos fogem do gravador como o diabo da cruz. Este serviço de proteção aos moradores começaria a diminuir o anonimato dos golpistas e criaria na cidade algum tipo de controle social para proteção e orientação das pessoas, promovendo uma seleção negativa dos desonestos e positiva dos honestos, o que significa criar na cidade um ambiente mais favorável à honestidade e à confiança recíproca. Pois não adianta apenas lamentar o anonimato e denunciar os seus males. É preciso (e é possível) combatê-lo com as armas da verdade. Porque o anonimato é a melhor proteção que há para os golpistas: eles têm a certeza absoluta de que podem continuar com seus golpes em outro lugar e com outras pessoas, pois na cidade grande não existe praticamente nenhuma possibilidade de comunicação entre as suas vítimas passadas, presentes, futuras ou potenciais. E o que este "serviço" faria na cidade é exatamente tornar possível esta comunicação entre as pessoas. Nada mais do que isto. Só a notícia de que existe na cidade um tal serviço, já levaria os golpistas e os profissionais corruptos ou irresponsáveis a colocarem suas barbas de molho e pensarem duas vezes antes de continuarem com seus golpes ou irresponsabilidades. Quem sabe eles até se arrependam e mudem de conduta, se não por amor ao próximo, ao menos por temor das consequências futuras. Se a justiça pública é inacessível ao morador comum de um condomínio, com este serviço ele ao menos poderia contar com alguma espécie de justiça: uma justiça "preventiva", que muito ajudaria a população a "se prevenir" contra os lobos e as raposas que enganam e se aproveitam da ingenuidade das ovelhas, se ocultam no anonimato da cidade grande, e riem da inoperância da justiça comum.

OUTROS SERVIÇOS Além da necessidade de proteção contra as raposas que invadem, perturbam e saqueiam os condomínios da cidade, que outras necessidades percebemos entre os seus moradores e que exigem também alguma forma de cooperação entre os núcleos e os condomínios? Algumas delas são típicas da cidade grande, como por exemplo a necessidade que todos têm de conhecer o lugar onde moram, a necessidade de encontrar trabalho, a

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dificuldade de transporte, a necessidade de auxílio em situações de emergência doméstica e familiar, etc. Para não encompridar mais o assunto, vamos parar nestes 4 exemplos e imaginar algum tipo de serviço que poderia responder a estas necessidades que observamos nos condomínios.

5. SERVIÇO DE ACOLHIDA AOS NOVOS MORADORES DO PRÉDIO Vamos olhar um pouco para aquelas pessoas que chegam para morar nos prédios das grandes cidades, vindas de longe, de outros estados, do interior, ou mesmo de outras regiões da cidade. O que acontece com todas estas pessoas que se mudam para os nossos prédios? Para todas elas, sem exceção, acontece uma mudança do ambiente de vida, geralmente uma mudança súbita e profunda de ambiente. E o que isto significa para elas? Para todas elas, isto significa o início de um longo processo de adaptação (ou ajustamento) a este novo ambiente. E para qualquer pessoa se adaptar a um novo ambiente, ela precisa necessariamente transformar-se. Pois sem transformar-se não é possível adaptar-se a um novo ambiente, e sem adaptar-se não é possível viver nem agir neste ambiente. Isto parece ser uma lei natural óbvia: toda pessoa que se muda de um ambiente a outro, passa por uma transformação de si própria. Transformação que pode ser mais ou menos profunda, conforme o caso, mas que sempre acontece. Portanto, ao vermos uma pessoa ou uma família mudar-se para um prédio da cidade grande, a primeira questão que se coloca é: Esta mudança será para melhor ou para pior? Qual será o sentido de sua transformação ao se adaptar a este novo ambiente? Será para a sua felicidade ou para a sua desgraça? Para a vida ou para a morte? Para aproximar-se de Cristo ou para afastar-se dele? Esta é uma questão crucial que devemos fazer quando olhamos para a constante migração das populações no atual processo de urbanização. Não podemos ignorar e deixar de considerar este significado humano da "mudança", pois ela sempre desencadeia um processo imprevisível de transformação dando início a uma nova fase (muitas vezes decisiva) na vida de todas as pessoas que "se mudam". Tal "mudança" não significa apenas uma mudança dos móveis e do endereço postal, mas significa sobretudo uma mudança do ambiente de vida de uma pessoa, e portanto significa uma mudança (ou transformação) na própria pessoa, resultado de sua interação com este novo ambiente de vida. E quantas não são as pessoas ou famílias que, ao mudarem-se para a cidade grande, ou ao mudarem-se de uma região da cidade para outra, iniciam um processo de transformação que as conduz para a desgraça, a infelicidade e autodestruição! Não é difícil constatar a realidade deste quadro sombrio que nos mostra o Papa: "O fenômeno da urbanização apresenta grandes desafios para a ação pastoral da Igreja, a qual deve enfrentar o desenraizamento cultural, a perda dos costumes familiares, o abandono das próprias tradições religiosas, com o resultado bastante freqüente do naufrágio da fé, privada das manifestações que contribuíam para sustentá-la." (Ecclesia in America, n.21). Mas será que a migração das pessoas e o fenômeno da urbanização são sempre sombras? Será que significam apenas perda, abandono, desenraizamento, privação e naufrágio? Embora isto tudo aconteça com demasiada freqüência, a realidade urbana moderna não significa apenas uma "perda" das boas coisas do passado. Pois também é

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grande o número de pessoas para as quais a mudança para a cidade grande significou o seu verdadeiro desabrochar e o seu desenvolvimento como pessoas saudáveis e felizes, o que não conseguiam ser nos seus ambientes tradicionais de origem. E não é difícil constatar também a realidade deste quadro mais positivo, que se entrevê nestas palavras dos Bispos do Brasil: "A grande cidade moderna favorece o contato com uma pluralidade de experiências e expressões culturais, multiplicando as possibilidades de escolha do indivíduo. Ao mesmo tempo priva-o da solidariedade – mas também do controle – que encontrava nas comunidades menores." (DGAE 2003-2006, n. 50). Na verdade, a migração e a urbanização são fenômenos complexos e contraditórios, com múltiplos significados, tanto positivos como negativos. E o ponto de partida mais adequado para se pensar e agir na grande cidade moderna é indicado por esta frase: "A grande cidade moderna favorece o contato com uma pluralidade de experiências e expressões culturais, multiplicando as possibilidades de escolha do indivíduo." Esta frase expressa com muita precisão o espírito e o significado humano da metrópole. E partindo desta idéia-mestra, podemos olhar e caminhar para qualquer direção no labirinto metropolitano. Porém, para qualquer direção que se olhe e que se caminhe numa metrópole, nós nos deparamos com a seguinte contradição: se por um lado é verdade que na metrópole multiplicam-se as possibilidades de escolha do indivíduo, por outro lado não é verdade que os indivíduos possam de fato "escolher" entre as múltiplas possibilidades que a metrópole oferece. Porque na metrópole (como em qualquer outro lugar deste mundo) não existe só a liberdade individual de escolha, mas existe também uma série de determinações que limitam e freqüentemente negam ao indivíduo qualquer liberdade de escolha. Diante das múltiplas possibilidades de escolha que a metrópole oferece ao indivíduo (genérico e abstrato), qual é a liberdade ou quais são as possibilidades reais de "escolha" que a metrópole oferece, por exemplo, a este menino de rua que vemos ali deitado na calçada? E a este caipira analfabeto que está sem trabalho e sem dinheiro para pagar a pensão? E a este outro, filho de um grande produtor de soja que veio estudar medicina na metrópole? E a cada uma dessas pessoas que vemos na cidade? Esta é a primeira e a fundamental contradição que encontramos na metrópole: multiplicam-se as possibilidades de escolha do indivíduo ao mesmo tempo em que se multiplicam as determinações que limitam e reduzem as suas possibilidades de escolha. E para complicar ainda mais a vida das pessoas, imbricada nesta contradição primeira encontramos outra igualmente fundamental: se na metrópole multiplicam-se as mais maravilhosas possibilidades de escolha para os indivíduos, multiplicam-se na mesma proporção as mais pavorosas possibilidades de escolha para os indivíduos. Porque assim como na metrópole se multiplicam as melhores possibilidades de educação, de realização profissional, de contatos humanos, de desenvolvimento cultural e artístico, de assistência médica e hospitalar, de divertimentos, de consumo de bens e de serviços, de formação religiosa e de crescimento espiritual etc., na mesma metrópole multiplicam-se também as piores possibilidades e ocasiões de degradação humana, de contatos nocivos e perigosos, de ocupação desonesta, de abandono e isolamento, de experiências destrutivas, de diversões perversas, de habitações insalubres, de misérias e sofrimentos, de desenvolvimento dos vícios, de corrupção dos costumes etc. Ou seja, na metrópole multiplicam-se tanto as possibilidades de vida e desenvolvimento humano como as possibilidades de morte e degradação humana: esta é a segunda e também fundamental contradição que encontramos na metrópole.

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Estas duas contradições definem o ambiente geral e o quadro de vida das pessoas na grande cidade moderna. E com este quadro em mente, vamos olhar de novo para as pessoas que se mudam para os prédios de nossas cidades: o que vemos aí? De um ponto de vista missionário, o que importa sobretudo é ver como os novos moradores interagem com este ambiente de vida, porque é aí neste encontro e interação, neste ajustamento recíproco, que ocorre a transformação (ou "metanóia") tanto da pessoa como do seu ambiente. "Nenhuma pessoa existe isolada do seu ambiente cultural. É pela mediação da cultura de seu ambiente social que cada pessoa se realiza." (CNBB, Igreja: Comunhão e Missão, n. 247). A unidade que existe entre o ser vivo e o seu ambiente total de vida é o fundamento natural de qualquer ação educativa ou de qualquer transformação que se pretenda realizar neste mundo. E se quisermos "ver" cada pessoa em sua unidade e integralidade reais, não podemos nunca separá-la do seu ambiente natural, social e histórico. Por esta razão, convém sempre focalizar a nossa atenção na história das relações da pessoa com o seu ambiente, porque é deste modo que as pessoas existem e se realizam: "Assumimos o termo 'cultura' no seu aspecto globalizante, como maneira peculiar através da qual, dentro de um povo, os homens cultivam as suas relações com a natureza, entre si e com Deus." (CNBB, Idem, n. 230). Então, vamos ver como é que os novos moradores se relacionam com o seu novo ambiente de vida. Neste caso, o que de imediato chama a nossa atenção é a "novidade" da relação: os moradores são "novos" para o ambiente, e o ambiente é "novo" para estas pessoas. E o que significa ser "novo"? "Novo" significa que é recente, que é visto pela primeira vez, que é estranho e desconhecido. De fato, o que caracteriza as relações dos novos moradores com o seu novo ambiente de vida é, antes de tudo, o desconhecimento mútuo: a pessoa não conhece o ambiente nem é conhecida por ele. E que importância tem isto? Bem, neste caso as possibilidades reais de "escolha" do indivíduo se reduzem ao extremo, pois só existe liberdade de escolha entre possibilidades ou alternativas que conhecemos: como pode alguém escolher entre coisas que desconhece ou entre possibilidades que ignora? A situação dos novos moradores na metrópole é semelhante à de alguém que entra pela primeira vez numa gigantesca e confusa biblioteca, cujos livros lhe são todos desconhecidos e estão sem nenhuma referência catalográfica (título, autor, ou assunto): baseada no quê esta pessoa poderá "escolher" algum livro para ler? Nesta situação de ignorância total, a pessoa não tem nenhuma possibilidade de escolha. Só lhe resta a possibilidade de experimentar aleatoriamente, isto é, de ir abrindo e lendo quaisquer livros ao acaso para conhecê-los e assim, com base neste conhecimento, poder então "escolher" o que ler e o que não ler. E por mais que esta pessoa examine livros e conheça a biblioteca, as suas possibilidades reais de "escolha" estarão sempre limitadas aos livros que conhece, e que representam apenas uma reduzida parte das possibilidades de leitura que a gigantesca biblioteca lhe oferece. A Biblioteca de Babel (conforme o delírio de Borges) é uma imagem perfeita da metrópole moderna, desconhecida até mesmo para os seus mais antigos moradores! Conclusão: o conhecimento do ambiente é uma das condições fundamentais para o exercício da liberdade de escolha, que pode ficar diminuída ou suprimida pela ignorância. Porque mesmo que alguma coisa esteja dentro das minhas possibilidades reais, o simples fato de eu ignorar e desconhecer esta possibilidade impede que eu a escolha e que a realize. E as experiências de vida na metrópole são todas elas marcadas profundamente por este fato bastante óbvio e pouco considerado. Para que se tenha uma visão mais nítida deste fato óbvio e da sua importância vital no processo quotidiano de 186

transformação das pessoas e do seu ambiente, podemos refletir sobre alguns casos simples e banais que todos conhecemos ou que já vivemos. Por exemplo: 1. Estava dentro das possibilidades reais de Pedro participar das atividades da Semana Fé e Compromisso Social, cujo tema abordado lhe interessa muito. Se ele tivesse tido conhecimento destas atividades, ele teria "escolhido" participar delas. Mas como Pedro não teve conhecimento desta possibilidade, ele não pôde optar por ela, e foi obrigado a "escolher" outra coisa para fazer. Mais tarde, ele se lamentou: "Se eu soubesse, é claro que eu teria participado destas atividades! O assunto me interessa e eu estava com tempo livre. É uma pena que não fiquei sabendo." 2. Estava dentro das possibilidades reais de Joana inscrever seus dois filhos num curso de natação que fica perto de sua casa. Se ela tivesse tido conhecimento desta piscina municipal e do que ela oferece à população, Joana teria "escolhido" mandar seus filhos para lá. Mas como ela não tinha conhecimento desta possibilidade, ela não pôde optar por ela, e foi obrigada a "escolher" outra coisa: ligou a TV para distrair os filhos durante as férias. Mais tarde, ela se lamentou: "Se eu soubesse desta piscina perto de casa, eu não teria deixado meus filhos trancados em casa na frente da TV. Eles gostam tanto de brincar na água! É uma pena que eu não fiquei sabendo disso antes." Poderíamos multiplicar infinitos casos e exemplos deste tipo, pois a nossa vida quotidiana e o nosso destino se tecem com o fio tênue deste fato fundamental: o exercício da liberdade individual de escolha só é possível em relação ao que se conhece, e impossível em relação ao que se desconhece. Portanto, o conhecimento (ou a ignorância) do ambiente em que vivemos é um fator determinante das nossas possibilidades reais de escolha e de interação com o ambiente, e por conseguinte da nossa própria transformação. No entanto, pouca ou nenhuma importância damos a este fator cognitivo, mesmo nas situações em que se intensifica ao máximo o seu poder de determinação relativamente aos demais fatores psicológicos e sociais que também condicionam e limitam o exercício da liberdade humana. E este é o caso dos novos moradores na metrópole, para quem o conhecimento do ambiente adquire sua máxima importância como fator determinante das suas possibilidades de escolha, pois quaisquer que sejam as suas condições psicológicas, sociais, econômicas ou culturais, todos eles desconhecem por completo o ambiente onde deverão viver e agir. Portanto, a primeira necessidade dos novos moradores é conhecer este ambiente, pois é com base neste conhecimento que eles poderão "escolher" para si as melhores (ou as menos piores) possibilidades de satisfação para todas as suas necessidades, desde as necessidades básicas de sobrevivência ou de vida material até as necessidades mais sofisticadas de vida social, cultural e espiritual. E como é que os novos moradores desenvolvem o seu conhecimento do ambiente? Quem já se mudou alguma vez na vida, sabe perfeitamente como isto acontece: da forma mais aleatória e incerta possível. Na metrópole, o acaso é o único mestre que orienta este aprendizado. Pois não há nada nem ninguém que acolha e oriente o novo morador ajudando-o a conhecer e a inserir-se no ambiente da metrópole. De modo que a sua interação com este ambiente e a sua própria transformação pessoal se dão também de forma aleatória e incerta: "Na cidade grande tudo pode acontecer." Ao mudar-se, qualquer pessoa sente-se "perdida" na imensidão da metrópole, pois não sabe nem conhece nada por ali. E como não há nenhuma referência ou sinalização organizada para ajudá-lo a "encontrar-se", cada um é obrigado a desbravar às cegas o seu próprio caminho, tendo que descobrir e aprender tudo pela experiência própria (que é sempre aleatória e casual) e também pela experiência de outros, geralmente estranhos 187

e desconhecidos que vai encontrando pelo caminho (o que também é sempre incerto, duvidoso, e às vezes muito perigoso). Meu Deus! Esta forma aleatória e incerta do "aprendizado de vida" que se faz na metrópole tem resultados imprevisíveis e conseqüências irreversíveis: esta forma de aprendizado tanto pode levar uma pessoa por bons caminhos e conduzi-la para fontes tranqüilas, como pode arrastá-la por um vale tenebroso e conduzi-la à beira de um precipício! Esta situação de ignorância, incerteza, ou "cegueira" ambiental que vive todo migrante numa metrópole, é uma situação estressante, desumana e perigosa, e portanto inaceitável do ponto de vista cristão. Embora cada migrante chegue acompanhado por seu Anjo da Guarda, este é um daqueles problemas que "não podem ser estranhos à Igreja, ao menos pelos aspectos éticos que eles comportam." (João Paulo II, Mensagem ao Episcopado do Brasil, 9/4/86, n. 2). E o conhecimento do nosso ambiente quotidiano de vida comporta aspectos éticos fundamentais, na medida em que tal conhecimento condiciona o exercício quotidiano da liberdade humana, multiplicando ou reduzindo, melhorando ou piorando, as nossas possibilidades de escolha na vida. E qualquer coisa que interfira neste conhecimento, interfere diretamente no exercício do livre-arbítrio, pelo qual cada um dispõe sobre si mesmo. Isto não pode ser estranho à Igreja. Os cristãos podem (e por isso têm o dever de) interferir neste conhecimento e orientá-lo conforme o plano de Deus. Por que deixar que isto aconteça somente por obra do acaso? Ou por iniciativa de pessoas ou grupos movidos por interesses, valores e critérios pouco ou nada cristãos? Pois é exatamente isto o que acontece e o que normalmente se faz por meio de propostas, convites, ofertas, propagandas, anúncios, reportagens, noticiários, guias da cidade, páginas amarelas, e demais informações que se comunicam por todos os meios e que orientam constantemente o conhecimento que as pessoas têm do seu ambiente, e deste modo orientam o comportamento e o desenvolvimento das pessoas na direção que querem. Não é isto o que se busca fazer com a posse, o controle ou a censura dos meios de comunicação e educação? Não é isto também o que fazemos em todas as conversas e formas de comunicação humana? Orientamos o conhecimento dos outros, e daí o comportamento dos outros. É bem isto o que todos fazemos através da comunicação! Portanto, é perfeitamente possível aos cristãos influenciar e orientar a transformação e o desenvolvimento das pessoas na metrópole simplesmente influenciando e orientando o seu conhecimento do ambiente em que vivem, o que pode ser realizado por meio de informações selecionadas, organizadas e comunicadas com critérios cristãos. E um momento bastante propício para uma intervenção deste tipo é o momento em que as pessoas se mudam de um lugar para outro, pois é nesta hora que elas mais necessitam de ajuda e dependem dos outros para obter informações e conhecer o ambiente. É o momento em que se reorganizam as rotinas da vida, se enterram velhos hábitos e se constroem os novos. É um momento em que as pessoas se abrem ao novo e ao desconhecido, e se tornam mais permeáveis (e vulneráveis) a influências externas e a orientações dos outros. O que os núcleos missionários poderiam fazer nos condomínios para ajudar os novos moradores neste momento de "mudança"? Nas Diretrizes Gerais de 2003-2006, a CNBB propõe o serviço de acolhida e orientação aos migrantes como uma das iniciativas que "podem ajudar, hoje, as pessoas a alcançar – antes de tudo no plano humano – a formação e o desenvolvimento (no campo afetivo, cognitivo, profissional, social e religioso) que cada um deseja e procura para realizar-se conforme o plano de Deus." (DGAE 2003-2006, n. 84). "É dever da comunidade cristã acolher o migrante e ajudar sua inserção nela, no trabalho e na sociedade." (Idem, n. 123). 188

E uma das formas mais simples e eficazes de ajudar a inserção do migrante no ambiente caótico da metrópole, é dar-lhe as informações, a orientação e o apoio de que necessita para poder inserir-se neste ambiente da melhor forma possível. "O exercício da solidariedade não se limita apenas ao combate contra a fome. Cada comunidade ou grupo, diante do seu 'próximo', deve prestar atenção às suas reais necessidades e urgências e estabelecer prioridades para sua ação." (DGAE 2003-2006, n. 159). E uma das primeiras necessidades e urgências dos novos moradores nos condomínios é simplesmente conhecer o novo ambiente para saber onde ou como pode encontrar uma solução para suas necessidades. A começar por aquelas necessidades práticas e imediatas que temos ao fazer uma mudança, como por exemplo: Onde posso fazer uma cópia da chave do apartamento? Onde posso comprar alimento por aqui? Será que tem feira aqui perto? Onde achar uma farmácia aberta a esta hora da noite? Preciso comprar gás, onde será que vende? Meu Deus, esta febre não passa, onde eu posso levar meu filho para consultar um médico? Onde eu posso achar prego e parafuso por aqui? Preciso chamar um encanador para consertar este vazamento, mas não conheço ninguém por aqui. Como encontrar um encanador bom e honesto nesta cidade? Onde será que tem uma comunidade (cristã, judaica, muçulmana, espírita, esotérica...) aqui por perto para eu ir? Minha mãe precisa fazer algum tipo de exercício para melhorar esta dor nas costas. Será que tem algum lugar onde ensinam ioga ou relaxamento? Acho perigoso deixar as crianças brincando nesta praça desse jeito. Será que existe por aqui alguma associação dos moradores para a gente melhorar este lugar? Etc... etc... etc... e todos os demais etc... que já sabemos. A grande cidade moderna oferece inúmeras possibilidades para o novo morador resolver seus problemas e satisfazer às suas necessidades. A dificuldade é descobrir onde e como! Para ajudar os migrantes a encontrar a melhor solução "possível" para suas necessidades, os núcleos missionários que moram em prédios vizinhos, numa mesma área ou região da cidade, poderiam cooperar para organizar um pequeno serviço de acolhida e orientação às pessoas que chegam para morar naquele lugar, oferecendolhes uma espécie de "guia ou mapa social e geográfico" daquela região da cidade onde vão habitar, contendo todo tipo de informação útil que conseguissem reunir a respeito do que existe de bom por ali: comércio, transporte, serviços públicos, profissionais autônomos, saúde, educação, cultura (biblioteca, cinema, teatro etc.), esporte, lazer, lugares de culto e reunião dos cristãos e não-cristãos, associações, organizações, instituições, empresas etc., com o endereço, telefone, horário de funcionamento, e uma pequena descrição do que é, faz ou oferece, e como freqüentar, utilizar ou participar. Não seria muito difícil nem impossível fazer um pequeno "Guia Cristão" do bairro ou da região, pois já existem muitos "guias" nada cristãos conduzindo a vida do povo pela cidade! Para isso, os núcleos precisariam fazer um "mapeamento" da vizinhança com a finalidade deles próprios conhecerem aquela parte da cidade e poderem assim elaborar (com critérios cristãos) um pequeno guia urbano para ajudar os novos moradores a encontrar na metrópole o que "cada um deseja e procura para realizar-se conforme o plano de Deus". Com este serviço simples de "coleta e distribuição de informações", os núcleos missionários estariam multiplicando e melhorando as possibilidades reais de escolha das pessoas na metrópole, e deste modo estariam influenciando e orientando a sua interação com o ambiente, e portanto a sua formação e desenvolvimento (no campo afetivo, cognitivo, profissional, social e religioso) com critérios mais humanos e cristãos. Esta seria uma forma racional e simples de "sinalizar" o ambiente urbano para as pessoas poderem se inserir nele com maior liberdade e conhecimento.

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Este tipo de serviço seria bem aceito por todo mundo, tanto pelos novos moradores como por aqueles que atuam na área. Quem é que não gostaria de ver a sua atividade reconhecida e divulgada entre os habitantes da região? E quem é que não gostaria de ser acolhido e orientado desta maneira quando vem morar numa região desconhecida da cidade? Que melhor acolhida podemos dar a quem chega, do que dar aquilo de que mais precisa naquele momento? Além de servir aos outros, o trabalho de mapeamento da vizinhança ajudaria os próprios núcleos em sua atuação na cidade, permitindo-lhes conhecer o ambiente local da missão e desenvolver uma ação adaptada. Conhecer o que existe fora dos condomínios é indispensável para os núcleos se inserirem na vida da cidade e poderem colaborar com outras pessoas e organizações da sociedade. Este "mapeamento" seria uma ótima tarefa a ser proposta na formação missionária dos leigos, pois apenas uma clara percepção da realidade pode sugerir pontos de reflexão e caminhos da ação. Sem "ver", não se pode "julgar" nem "agir". Um serviço de acolhida e orientação deveria também ajudar a inserção dos novos moradores na vida do condomínio e, se for o caso, no próprio núcleo missionário. Como fazer isto? Aí está mais um assunto a ser tratado na formação missionária dos leigos. Ao fazerem este trabalho, os núcleos entrariam em contato com tudo e com todos, dentro e fora dos condomínios, ajudando a criar na metrópole uma atmosfera de maior proximidade, conhecimento e união entre as pessoas que vivem e atuam naquela área. Se este serviço for feito com sensibilidade, persistência e inteligência, aos poucos os núcleos missionários se tornarão uma importante referência cristã na cidade, um elo de ligação para toda a população: uma ponte confiável para quem deseja atravessar o fosso do seu isolamento metropolitano e colaborar na edificação de verdadeiras comunidades urbanas, alicerce necessário para a construção de uma sociedade justa e solidária. * * *

5.1. Nota sobre o serviço de acolhida nos ambientes eclesiais. Deveríamos fazer esta mesma reflexão também a respeito dos nossos ambientes e comunidades eclesiais (dioceses e paróquias, e sobretudo a Igreja da cidade): Como é que os novos membros de uma diocese, cidade ou paróquia desenvolvem o seu conhecimento destes ambientes eclesiais, do que neles existe e se faz? Quem já mudou alguma vez de diocese, de cidade, ou de paróquia, sabe perfeitamente como isto acontece: da forma mais aleatória e incerta possível. Também na Igreja parece que o acaso é o principal (e às vezes o único) mestre que orienta o povo neste conhecimento e aprendizado. De modo que a sua interação com este ambiente eclesial e a sua própria formação e transformação pessoal se dão também ao acaso, de forma aleatória e incerta. Se não, vejamos: por quais meios e modos de comunicação a sua diocese, a Igreja da sua cidade, ou a sua paróquia, acolhe um novo membro ajudando-o a conhecer e a inserir-se neste ambiente eclesial novo e desconhecido para ele? E esta pergunta vale não apenas para os "novos" membros, mas também para os mais antigos membros da diocese, cidade ou paróquia. É claro que não estou me referindo aqui ao clero, religiosos e leigos que vivem, trabalham e até moram na Igreja, e sim ao povo leigo que freqüenta as missas de domingo. Como este povo leigo fica conhecendo o que existe e se faz na sua diocese, na Igreja da sua cidade, ou na sua paróquia? Será que os diversos meios de comunicação diocesanos e paroquiais estão de fato preocupados em ajudar o povo leigo a conhecer e a inserir-se no ambiente eclesial, de modo a cada um poder "escolher" com conhecimento e liberdade em que organização ou atividade participar ou colaborar? 190

Neste sentido, convém examinarmos detalhadamente o que se comunica nos vários meios de comunicação diocesanos e paroquiais: nos seus sites na Internet, nas rádios, revistas e semanários diocesanos, nos boletins e quadros murais paroquiais, e também nas homilias e avisos durante as missas. E fazer tal exame com a finalidade de responder a estas perguntas: As diferentes organizações e associações eclesiais da sua diocese, cidade ou paróquia, estão todas elas usando estes meios para se comunicar diretamente com o povo? Elas têm (ou não têm) algo a dizer para as pessoas? Em que medida estão abertas à comunicação, participação e colaboração do povo? Ou será que vivem fechadas, caladas e isoladas da comunidade, sem que o povo as conheça nem saiba o que estão fazendo na sua própria diocese, cidade, ou paróquia? Convém refletirmos melhor sobre isto: De que modo, ou por que meios, um leigo comum pode ficar sabendo do que existe e se faz na sua própria diocese, cidade ou paróquia? Pergunte para um leigo qualquer (sobretudo aos jovens, mas aos velhos também) o que ele sabe e conhece da Igreja na sua diocese, cidade ou paróquia, e ouça a sua resposta. Falo por mim, e por tantos outros: nós leigos geralmente conheçemos muito pouco, ou quase nada, da Igreja em nossa diocese, em nossa cidade, e até mesmo em nossa própria paróquia. E talvez esta falta de conhecimento ou ignorância eclesial explique em grande parte certas "escolhas" eclesiais e religiosas que as pessoas livremente fazem ao longo da vida, e que tanto nos preocupam. Para permitir um melhor conhecimento e participação do povo na vida da Igreja, todos os meios de comunicação eclesiais, sobretudo diocesanos e paroquiais, deveriam reservar um espaço permanente para cada uma de suas organizações se fazer presente e dar-se a conhecer publicamente a todos os demais membros da comunidade eclesial, tanto em âmbito de diocese, cidade, e paróquia. Conselhos e pastorais, movimentos, associações, congregações, enfim, todas as organizações que existem e atuam numa diocese, cidade, ou paróquia, precisam ter um espaço permanente de comunicação, informação e diálogo com a comunidade toda. E também com a população toda. Afinal, temos ou não temos interesse em nos comunicar com todas estas pessoas? Do mesmo modo que não é possível comunhão com Cristo sem comunicação com Ele (pela escuta da Palavra, sacramentos e oração), assim também não é possível comunhão eclesial numa diocese, cidade, ou paróquia, se não há comunicação eclesial entre os membros destas comunidades. E se a comunicação por meio de um encontro pessoal e direto com todos é algo impossível na maioria dos casos, então que se usem da melhor forma possível os outros meios eclesiais de comunicação. É para isto que eles servem. De que modo, porém, nós estamos usando estes meios de comunicação? Convém examinar e conferir isto pessoalmente. Pois sem comunicação, não há comunhão. Não há conhecimento ou participação. Não há diálogo nem cooperação.

6. AÇÃO SOLIDÁRIA EM SITUAÇÕES DE EMERGÊNCIA DOMÉSTICA, DESEMPREGO E TRANSPORTE. Auxílio em situações de emergência doméstica. A dispersão da família, a diluição da vida comunitária, o isolamento egoísta, o anonimato, a desconfiança e o medo, tudo isso impede que os habitantes dos grandes centros urbanos desenvolvam entre si aquelas relações naturais de ajuda recíproca indispensáveis à vida quotidiana de qualquer ser humano. Situações inesperadas, de emergência, ou mesmo situações quotidianas e necessidades comuns (como o cuidado

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das crianças, casos de doença, incidentes domésticos, viagens prolongadas, ausência temporária, e tantas outras circunstâncias da vida em que um precisa da ajuda do outro), muitas vezes ficam sem nenhuma resposta, ou não encontram soluções mais humanas e inteligentes por falta de comunicação e cooperação entre as pessoas. Ora, a comunicação e o espírito de cooperação e serviço podem ser promovidos em qualquer comunidade humana desde que se busquem os meios adequados para fazer isto. "Renovar a comunidade não significa voltar à comunidade natural ou à comunidade tradicional. Nosso esforço será criar condições para que as pessoas possam viver relações de solidariedade e de fraternidade que permitam sua maior realização, no contexto atual." (DGAE 2003-2006, n.113). Como os núcleos missionários poderiam promover relações solidárias e fraternas não só entre os moradores de um mesmo prédio, mas também de prédios vizinhos? Como romper o isolamento das pessoas e criar redes de comunicação e solidariedade abertas a todos? Conforme as Diretrizes Gerais, uma educação ao relacionamento solidário e fraterno "exige atenção às pessoas, aos seus anseios e condicionamentos, e diálogo ou convivência com essas mesmas pessoas. Não há um único modelo válido para todos. Tendo consciência disso, procurar-se-á oferecer às pessoas oportunidades de encontro, de contato e conhecimento com outras, inclusive com aquelas que são 'diferentes', que ainda não fazem parte da experiência de vida do grupo; promover-se-ão oportunidades de práticas solidárias ou de participação em projetos comuns, experiências de amizade e reciprocidade, experiências de doação gratuita a serviço dos irmãos." (DGAE 20032006, n.123). Desemprego e trabalho. Além da falta objetiva de um meio de subsistência, o que também aflige o desempregado numa metrópole é sentir a falta de solidariedade humana, pois o desempregado depende da ajuda dos outros para encontrar uma forma de trabalho e de subsistência. O que os cristãos podem fazer nos seus condomínios para ajudar os moradores que procuram trabalho? Diante desta situação, os núcleos missionários podem fazer várias coisas: 1. Ajudar os moradores a encontrar emprego. Para isso, os núcleos da cidade poderiam cooperar entre si para criar uma espécie de "banco de ofertas e procuras de emprego", simplesmente abrindo um espaço para este serviço nos vários meios de comunicação que se criarem por iniciativa da Pastoral dos Condomínios (o mural do condomínio, o boletim comunitário, e sobretudo a Internet). Deste modo, o morador desempregado teria como se comunicar com toda a população que mora nos prédios da cidade, o que certamente aumentaria a sua chance de encontrar o emprego que procura. Além de ajudar quem está desempregado, este serviço despertaria o interesse dos moradores por tais meios de comunicação: na busca de emprego ou de empregado, as pessoas geralmente acabam lendo também as demais coisas que se comunicam no mural e no boletim comunitário, no site da pastoral, etc. 2. Ajudar os moradores a encontrar uma forma de trabalho autônomo ou cooperativo, sem necessidade de "patrão". Pois além de "empregos", existem muitas outras formas de trabalho e subsistência neste mundo. E para muitas pessoas, este pode ser um caminho mais acertado para resolver o seu problema. Cada caso particular pode sugerir uma forma diferente de ajuda e também de cooperação entre os núcleos. Muitas vezes as pessoas ficam patinando atrás de um emprego que nunca aparece, e não 192

enxergam outras possibilidades e formas de trabalho! Nestes casos, uma conversa, uma orientação, informações e contatos, podem ajudar alguém a encontrar um novo caminho de formação profissional e de inserção no mundo do trabalho. 3. Ajudar a combater a privação social do trabalho, colaborando em ações e movimentos que tenham em vista a construção de uma nova sociedade, onde todos tenham acesso ao trabalho para sustentar-se, a si e aos seus, bem como para prestar serviço à comunidade humana. Transporte. A dificuldade de transporte é um dos maiores tormentos de quem vive numa metrópole: engarrafamentos, falta de transporte coletivo direto e rápido para a maioria dos lugares, passagens caras, ônibus superlotados que não param no ponto para pegar os passageiros, atrasos constantes, baldeações complicadas, excesso de automóveis circulando quase vazios, e todas essas coisas que conhecemos muito bem. A poluição, os engarrafamentos, o desperdício de recursos naturais e as dificuldades de transporte da população podem ser diminuídos se duas ou mais pessoas partilharem o mesmo automóvel. No entanto, as "caronas urbanas" não acontecem porque falta iniciativa e comunicação entre as pessoas, pois não custa nada dar carona a vizinhos que vão para o mesmo lugar da cidade no mesmo horário. Ainda mais se os "caronas" contribuirem com as despesas de combustível. Os núcleos missionários poderiam organizar um banco de "caronas" que promovesse a partilha e o uso comum dos meios de transporte individuais entre os moradores de uma mesma área da cidade. Além de ajudar a resolver vários problemas da metrópole, este serviço seria também uma boa ocasião para a Igreja "anunciar" o princípio cristão da partilha e promover o convívio e a união entre os moradores do bairro. * * * Estes são alguns exemplos do que uma pastoral dos condomínios poderia propor para promover a cooperação entre os núcleos missionários e a sua participação na vida da Igreja e da Cidade. FIM DO ANEXO

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SIGLAS UTILIZADAS AA Decreto Apostolicam actuositatem do Concílio Vaticano II CfL Exortação pós-sinodal Christifideles laici do Papa João Paulo II CIC Catecismo da Igreja Católica. DGAE Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil – CNBB DGAP Diretrizes Gerais da Ação Pastoral da Igreja no Brasil – CNBB DV Constituição Dogmática Dei Verbum do Concílio Vaticano II EA Exortação pós-sinodal Ecclesia in America do Papa João Paulo II EN Exortação pós-sinodal Evangelii nuntiandi do Papa Paulo VI GS Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II LG Constituição Dogmática Lumem Gentium do Concílio Vaticano II RMi Carta Encíclica Redemptoris missio do Papa João Paulo II SD Conclusões de Santo Domingo – IV Conferência do Episcopado Latino-Americano

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Informação sobre o autor Quando me comunico por e-mail com pessoas da Igreja que nem conheço, algumas querem saber "quem sou eu". Pois bem: sou um leigo comum. Não sou padre, nem frei, nem teólogo ou agente de pastoral. Esta é a minha situação na Igreja. E como qualquer leigo, vivo no "século", tratando das coisas temporais. Minha formação e atividade profissional sempre foi dispersa, complicada, e em constante alternância e conflito entre corpo e palavra, movimento e pensamento, natureza e cultura. Na infância, minha maior alegria era poder nadar e brincar na água, e a maior tristeza era ter que ficar sentado e quieto assistindo às aulas no curso primário, que fazia num colégio católico. Era considerado bom aluno mas com mau comportamento, pois não conseguia ficar parado. Foi um alívio quando veio no 3º ano uma jovem professora (madre Lourdes) que aplicava o "método experimental" na educação, que incluía movimento consciente, atividade em grupo e auto-avaliação, desenvolvendo em nós o conhecimento e a disciplina com liberdade e responsabilidade (um paraíso escolar para qualquer criança). Nesta época, o Colégio era internato feminino e só admitia alunos homens no seu curso primário, depois disso tínhamos que procurar outra escola. Então fui fazer o curso ginasial numa escola pública, considerada na cidade como muito boa. Mas não foi isto o que encontrei por lá. Além de ser ruim, esta mudança de escola foi o maior trauma da minha vida: saí de um ambiente escolar impregnado de valores e ideais cristãos, e caí num ambiente burocrático, despersonalizado, e em constante pé de guerra, onde professores, alunos e funcionários em vez de amigos e colaboradores, agiam mais como inimigos e algozes uns dos outros. Fiquei horrorizado, indignado, e em estado de choque: a escola parecia campo de batalha (ou circo), onde se perdia o tempo e a vida. Foi o fim da minha infância, e o início da revolta juvenil contra a estupidez humana e a hipocrisia social que eu tinha de aceitar e de viver. E daí em diante a minha vida se tornou uma constante luta para não ficar demasiado estúpido, nem muito hipócrita, e sucumbir assim completamente às pressões e convenções do meio. Felizmente que nesta idade eu já conhecia Cristo, para me orientar e sustentar nesta confusão. Foi a minha salvação. E graças ao curso primário das Filhas de Jesus, que evangelizavam os alunos por meio do ensino e do ambiente escolar que administravam com tanto amor. Na adolescência, cuidei de uma biblioteca que ninguém freqüentava, então passava o tempo lendo seus livros e comendo carambola. Li toda a obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato, e tomei gosto pelos livros (mas não pelo ginásio que freqüentava, que mais parecia um campo de concentração e tortura do que um lugar de estudo e aprendizado). Nesta época, me interessei por todo tipo de arte a que tive acesso: literatura, música, cinema, artes plásticas, e também artesanato. Gostava de todas. Comecei então a pintar quadros, fazer desenho e escultura, coisa que até hoje gosto de fazer mas que nunca faço. As férias eu passava no sítio com meus primos participando da vida na roça. Gostava tanto dessa vida simples, que queria morar no sítio. Mas a vida na cidade tinha também suas vantagens, de modo que eu me sentia dividido entre o campo e a cidade. Sonhava um dia poder juntar as duas coisas. Até hoje não consegui. Terminado o curso secundário, tive que me mudar para São Paulo a fim de fazer o curso superior, que não tinha na minha cidade. Fiz o curso de Letras na Universidade de São Paulo, e ao mesmo tempo estudava dança. Comecei a vida profissional como dançarino no Grupo da Renée Gumiel, depois no Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo, e em companhias de dança no exterior (Danses Nationales d'Espagne,

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Ballet Théâtre du Silence). Gostava muito de dançar, mas não da maneira que se trabalhava a dança na época, que parecia treinamento militar sem nenhuma atenção à sensibilidade e à estrutura do corpo humano. Comecei então a procurar formas alternativas de trabalho corporal, e foi quando conheci a Eutonia (de Gerda Alexander). De volta ao Brasil, parei de dançar e voltei para as Letras. Fui revisor de texto para editoras em São Paulo, professor particular de Português e Francês, e pesquisador auxiliar no Arquivo de manuscritos literários do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Cansado e com dor nas costas de tanto ficar sentado lendo papeizinhos, deixei as Letras e fui cuidar do corpo. Fiz formação profissional na Escola Latino-Americana de Eutonia (educação corporal), e virei eutonista. E agora na terceira idade, antes que tenha um derrame e me internem num asilo, virei "palpiteiro profissional" em assuntos pastorais da Igreja Católica. Esta última profissão tanto pode ser um sinal dos tempos, como um sinal geriátrico da minha própria senilidade que se aproxima. Sinceramente, eu não sei. Além disso tudo, fiz muitas outras coisas na vida que não convém dizer aqui. Pois se disser, me colocam de vez num sanatório ou hospício. Mas graças a Deus, à família e à Igreja, não fiz crime grave que merecesse a prisão. Agradeço a todos o cuidado que recebi na vida, desde a minha concepção até o dia de hoje. Espero ainda viver muitos anos e morrer feliz de morte natural, de preferência dormindo com um ataque do coração. Amo esta vida e toda a criação e obra de Deus. Não procuro entender os insondáveis mistérios, e me contento em poder admirá-los com afeto e gratidão. Espero que estas informações sejam suficientes para os curiosos saberem quem sou eu. Mais do que isto já seria inconveniente ou inútil dizer. Hugo Camargo Rocha Caixa Postal 1023 Centro, Bragança Paulista - SP CEP: 12900-970 E-mail: [email protected]

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