PASTORAL E PERSONALISMO. UMA REFLEXAO SOBRE A FILOSOFIA DE EMMANUEL MOUNIER

July 9, 2017 | Autor: Paolo Cugini | Categoria: Pastoral Theology, Personalism, Emmanuel Mounier
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PERSONALISMO E PASTORAL: UMA ABORDAGEM FILOSOFICA Á AÇÃO PASTORAL [Artigo publicado na REB 4/2008] De Pe Paolo Cugini1

Introdução No ano 2005, na ocasião do centenário do nascimento do filosofo francês Emmanuel Mounier, em vários lugares do mundo e também no Brasil, foram organizados eventos culturais para a comemoração. O pensador francês - nascido em Grenoble no ano de 1905 e falecido em Paris em 1950- dedicou toda a sua breve e intensa existência, para elaborar uma reflexão filosófica que soubesse conciliar força especulativa e atenção a realidade histórica. Fundador de “Esprit”2- revista cultural e política cujo objetivo era tecer um diálogo com a sociedade francesa e européia, para buscar soluções possíveis a grande crise econômica, política e cultural, que estava afetando o mundo Ocidental nos anos Trinta – Mounier conseguiu manter um diálogo aberto e crítico com todas os componentes da sociedade. Criticado pela Igreja Católica3, pela sua abertura, considerada excessiva, aos partidos e movimentos de esquerda e ao mesmo tempo questionada pelos mesmos partidos de esquerda por causa da posição dura e extremamente crítica de toda a equipe da Revista para com os acontecimentos que naquela época turbulenta envolviam a União Soviética e os países do leste europeu, Mounier soube manter constantemente o seu olhar atento e fixo no centro do seu interesse: a pessoa humana. O “Personalismo Comunitário”4 tornou-se assim uma filosofia, fruto de uma longa e atenta reflexão à condição da pessoa no caminho da história, na escuta constante do “evento” do tempo presente. É por este cunho existencial e, ao mesmo tempo, experiêncial, que achamos interessante tentar uma reflexão que envolve a ação pastoral da Igreja, no desejo de uma vida pastoral sempre mais pensada e menos deixada aos impulsos emotivos e extemporâneos dos agentes de pastoral. 1

Paroco de Tapiramutà-BA e professor de filosofia na FAFS (Faculdade Arquidiocesana de Feira de Santana-BA). O primeiro numero da revisata “Esprit” foi publicado o primeiro de outubro 1932. O melhor estudo que ainda hoje se encontra sobre a historia e o conteudo da revista “Esprit”, sobretudo no periodo da direção de Mounier (1932-1950) è: Michel Winock, Histoire politique de la revue Esprit, Seuil, Paris 1975. 3 Logo no começo da atavidade de “Esprit”, Mounier foi avisado pelo padre Plaquevent – um amigo do mesmo Mounier – que nos ambientes eclesiasticos estava sendo realizada um inquerito sobre a sua revista. Os problemas apresentados eram estes: não era considerata positiva a colaboracão com os não catolicos; também negativa era considerada a colaboração com o movimento esquerdista de “Troisiéme Force”, no final era considerada preocupante a escassa consideração que “Esprit” estava manifestando com a posição oficial da Igreja. 4 E’ o titulo de um artigo que apareceu na revista “Esprit” no 1933 e que foi colocado como capitulo de um libro do mesmo Mounier, que coletava una serie de artigos publicados em “Esprit” nos primeiros anos de atividade. O nome do livro è o seguinte: "“Révolution personaliste e comunautaire (1935), traduzido em italiano com o tittulo: Rivoluzione personalista e comunitaria, Ecumenica, Bari 1984. 2

Folhear as páginas da filosofia mounieriana na busca de indicações para uma ação pastoral mais fiel e coerente com o Evangelho de Jesus, não é forçar uma reflexão teórica puxando-a no campo da prática. O Personalismo é de fato, uma filosofia encharcada de vida e, ao mesmo tempo de fé autêntica, pois autêntica e sincera foi a busca do pensador francês de uma vida cristã encarnada na história, fiel ao mistério da Encarnação que, desde o tempo dos estudos universitários, o fascinou5. Tentaremos então, nas páginas seguintes, esboçar uma reflexão que ajude entender o quanto uma reflexão filosófica, atenta aos problemas da história e da vida e aberta ao transcendente, pode contribuir para iluminar a ação pastoral, entendendo esta não como uma mera prática, mas como uma resposta a um apelo que nos precede e que exige fidelidade e amor.

1. A dialética de interioridade e objetividade Ao longo de toda a sua obra, Emanuel Mounier frisa constantemente um dado que, além do mais, é uma preocupação: a necessidade de manter em harmonia o movimento de interiorização da pessoa, com o movimento de exteriorização. De fato, segundo o filosofo francês, a pessoa vive numa constante ameaça: de fechamento em si mesmo ou de dispersão no mundo. Entre exterioridade e objetividade deve, então, existir um relacionamento dialético, uma circularidade para que não aconteça que a pessoa se perca na vida ativa ou nas profundidades da vida interior. Estas ameaças se tornam tais, somente quando a pessoa não consegue alcançar o equilíbrio. Antes, porém, vida interior e exterior, são consideradas pelo nosso Autor nos detalhes dos seus itens positivos, que nos parece importante sublinhar, se quisermos depois iluminar o campo da ação pastoral com a reflexão personalista. Em primeiro lugar, a vida exterior. “O primeiro movimento que na primeira infância, revela o ser humano é um movimento para outrem”6. A comunicação é percebida na filosofia personalista como o dado primário da pessoa. De fato, se o amor é a vocação original da pessoa, então para amar é preciso comunicar e, esta comunicação é marcada por atos originários: “que não tem equivalente em mais parte nenhuma do universo”7. Estes atos originais desvendam a pessoa no seu específico, ou seja, no seu relacionamento com o outro. Mounier, na sua prosa existencial, enquanto apresenta o universo pessoal, é constantemente preocupado em afastar uma acusação que o acompanhou ao longo dos anos, ou seja, de levar a própria filosofia numa espécie de individualismo fechado. Na realidade, a perspectiva da filosofia mounieriana leva exatamente no lado oposto, apontando o caminho de saída da pessoa de si mesma para se descentrar e, assim, tornar-se disponível para os outros. Na pessoa encontramos um dinamismo que a leva ao encontro do outro, na doação de si mesmo, na generosidade, gratuidade e na fidelidade. Estas são características que mostram a pessoa no 5

Nisso foi bastante influenciado pela obra de Charles Péguy(Orléeans 1873-Villeroy 1914), ao qual dedicou a primeira obra da sua vida: Le pensée de C: Péguy (1931), tr.it. Il pensiero di C Péguy, Ecumenica Bari, 1987. 6 O personalismo, Centauro Editora, 2004 p 18 7 Ibidem.

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incessante movimento rumo ao outro, também porque é no relacionamento gratuito e fiel com o outro que a pessoa define a própria identidade. O realismo filosófico de Mounier, não esquece que a comunicação da pessoa para com os outros, não acontece num clima poético, mas é constantemente solapada para uma série de obstáculos que a ameaçam e, estes se encontram dentro e fora de nós. “Há sempre algo em nós – escreve Mounier – que resiste essencialmente a todo esforço de reciprocidade”8, uma espécie de má vontade, que puxa o relacionamento com o outro para baixo. Existe na pessoa uma espécie de opacidade irredutível, que podemos chamar de egocentrismo ou de egoísmo, que estorva a autêntica relação interpessoal. É por isso que, se de um lado a pessoa percebe em si um élan natural de se doar paro o outro, do outro lado sente dentro de si uma força que a leva a si fechar, uma barreira que se levanta e não permite uma comunicação autêntica. E assim, “sempre que formamos uma nova reunião de reciprocidade, família, pátria, corpo religioso, etc., cedo esta vai alimentar um novo egocentrismo”9. A pessoa, além de ser comunicação, é também interioridade. Cada pessoa adverte em si a necessidade de se recuperar, de “recuar para depois saltar melhor”10. A dimensão pessoal do sujeito, aponta para um vocabulário que desvende as riquezas deste mundo desconhecido11. Interioridade é antes de qualquer coisa segredo, o contrario da vida exibida, sem profundidade, das pessoas totalmente atraídas pela vida exterior. Nessa altura, a reflexão de Emanuel Mounier, retoma as considerações que Martin Heidegger fazia em “Ser e tempo” sobre a vida inautêntica12. A singularidade da pessoa, o seu ser original, se percebe nas profundezas da vida interior, na qual a pessoa colhe o seu segredo, a sua mesma originalidade, que desabrocha na sua vocação. O segredo íntimo da pessoa é expresso, também, naquela palavra muitas vezes esquecida na cultura contemporânea: o pudor. Escreve Mounier: “O pudor é o sentimento da pessoa que não quer ser esvaziada nas suas expressões, nem ameaçada em seu ser pelos sentimentos que assumiria a sua existência no momento que esta totalmente se manifestasse”13. O sentimento do pudor protege a pessoa para que não se identifique com os seus dados exteriores. O pudor, para ser cultivado, necessita de intimidade ou, em outras palavras, da vida privada. A este nível, segundo o filósofo francês, é necessário desmistificar o privado, pois é a mesma vida pessoal que o exige. “A reflexão não somente um olhar interior sobre mim e minhas imagens; é também intuição, projeto de nós próprios”14.

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O personalismo, cit. p23 O personalismo,cit. p26 10 Ibidem. 11 E’ bom salientar que estas reflexões de cunho psicologico, encontram-se de uma forma mais elaborada num trabalho que Mounier realizou na epoca da segunda guerra mundial, no periodo em que se encontrava preso. Cf E. Mounier, Traité du caracter (1947), tr.it. Trattato del carattere, Paoline Alba 1950. Este texto foi editato varias vezes. 12 Martin Heidegger, Ser e tempo, 2 voll, Vozes, Petropolis 2001. 13 O personalismo, cit. p 34 14 Ibidem. 9

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Tudo isso quer dizer que, aprimorar a dimensão interior da pessoa não é tempo perdido, como se fosse um luxo para poucos. A interioridade é um dado antropológico inegável, que deve ser cultivado desde a infância. Por isso, segundo Mounier, a família e a sociedade devem colaborar para que a pessoa encontre os espaços necessários para amadurecer na interioridade. Quanto mais a pessoa souber cuidar da própria interioridade, tanto mais os atos que ela realizar serão firmes. A existência pessoal vive, então, na perspectiva da filosofia personalista, nesta circularidade entre interioridade e exterioridade. A grande dificuldade é manter em harmonia estas duas dimensões da pessoa. Dimensões que são visíveis também a nível social, naquilo que Mounier chama de pólo político e pólo profético. Na vida cotidiana encontramos dois tipos de pessoas: o ativo e o espiritual. Nenhuma ação poderá ser viável se recusar a contribuição da vida espiritual. “É indispensável – salienta Mounier – para uma ação bem combinada, a existência destes dois tipos de homem, o político e o profeta, e a articulação que entre eles se estabelecerá. Caso contrário, o profeta perder-se-á em vãs imprecações e o tático deixaria se arrastar em manobras várias”15. Uma ação pastoral que saiba acatar esta reflexão, deve aprender a criar espaços para que a pessoa, na vida da comunidade, encontre a possibilidade de valorizar estas duas dimensões da vida pessoal: o diálogo, ou seja, a tendência espontânea a sair de si mesmo e, do outro lado, a vida íntima, a interioridade. Se o mesmo Mounier revela que dificilmente encontram-se numa só pessoa estas duas características antropológicas bem harmonizadas, é fora de questão que a pessoa viva dentro de si esta dialética. Acompanhar a pessoa na vida da comunidade para que possa amadurecer a sua personalidade, sem frustrar nenhuma das dimensões do universo pessoal, pra chegar a valorizar aquilo que a mesma natureza doou, é um grande objetivo da vida pastoral. O exemplo, o encontramos em Jesus que sabia escutar, acompanhar, aconselhar e orientar os seus discípulos para que amadurecesse neles uma vida pessoal íntegra. Infelizmente, a tendência que amiúde encontra-se nas paróquias e nos movimentos, é a valorização de um dos elementos da vida pessoal, desvalorizando o outro. E, assim, encontramos os “espiritualistas” que vivem só de oração e de momentos de interioridade, em um fechamento interior que beira a psicose. Do outro lado, encontramos os “ativos”, que acham a ação o verdadeiro caminho que Jesus apontou, mistificando desta maneira uma própria incapacidade de viver uma vida interior. O “Personalismo comunitário” de Mounier, ensina que vida interior e vida ativa são elementos que devem ser constantemente cultivados ao longo da vida, para não correr o risco de uma vida pessoal castrada, forçados a supervalorizar aquele elemento que mais se conforma a própria atitude pessoal, desvalorizando o outro. Se a vida privada não é um luxo, mas uma exigência intima das pessoas, então a ação pastoral deve ajudar as pessoas, para descobrirem esta dimensão tão necessária para o amadurecimento da própria vocação. Identificar interioridade com individualismo egoístico, é perder de vista a essência da vida pessoal que, para realizar atos 15

O Personalismo, cit. p. 98.

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autênticos, precisa entrar em si mesma, aprender a se escutar, discernir os próprios sentimentos, avaliar o leque de possibilidade que uma ação exige. Uma paróquia, um movimento que ajuda os seus componentes a aprimorar a própria interioridade talvez, ao longo dos anos, perceberá uma vida comunitária mais atenta a acolher os outros, mais disposta ao dialogo. O profeta e o homem da ação devem poder conviver não apenas na mesma pessoa, mas também na mesma comunidade, de qualquer tendência ela seja.

2. Pessoa e liberdade Um elemento central do discurso personalista de Mounier é a liberdade. A época na qual o filósofo francês resolveu elaborar as linhas diretrizes da filosofia personalista, era extremamente delicada. De um lado, a Europa estava saindo da segunda guerra mundial, que tinha abalado a estrutura da sociedade no sentido mais profundo16. Do outro, a filosofia existencialista de Sartre17, que estava no auge nesta época, considerava a liberdade como um dado absurdo, levando as extremas conseqüências o niilismo nietzschiano da morte de Deus. Por fim, um grande questionamento sobre a liberdade pessoal estava sendo posto pelas famosas “purgas” stalinianas que, na União Soviética e nos países do leste europeu, estava sendo aplicada provocando milhões de vítimas inocentes. Perante um quadro deste, Mounier advertiu a urgência de indicar o sentido autêntico da liberdade pessoal. Em primeiro lugar, Mounier lembra que a liberdade não é uma coisa, um objeto e também não é simples manifestação espontânea. De fato, se tantos erros aparecem cada vez que se fala de liberdade, é porque amiúde é considerada como algo de sovrapessoal, de absoluto, sem uma clara ligação com a realidade. Cada vez que a filosofia mitologisa a liberdade, colocando-a num patamar divino, ou abaixando-a aos ínferos, provoca na história, ou seja, no plano da realidade, os horrores que acabamos de citar acima. Contra a sartriana identificação do homem com aquilo que faz, como se a liberdade fosse pura matéria histórica18, Mounier aponta um caminho totalmente diferente. “Sou dado a mim mesmo e o mundo antecede-me”19. Esta verdade simples, desvenda a idéia de que a liberdade é um dom que o homem recebe, seja que ele olhe a realidade a partir do alto, que no plano da história. Além disso, a pessoa não é uma idéia absoluta, mas é esta pessoa específica assim constituída e situada em si própria, no mundo e perante os valores. Ser livre é, então, aprender a aceitar aquelas que podemos definir como limitações naturais. Este elemento da estrutura antropológica da pessoa, revela que a liberdade não é uma 16

Citare alcuni testi di storia. A obra do filosofo e escritor Jean Paul Sartre (1905-1980), està serndo totalmente republicada na ocasião do sei centenario de nascimento. Em modo especial queremos apontar as seguintes: O ser e o nada, Vozes, 2005, As palavras, Nova Fronteira, 2005; A idade da razão, Nova Fronteira 2005. 18 Esta tese encontra-se em J.P.Sartre, O existencialismo è um humanismo, Bertrand, Lisboa 2004. 19 O personalismo, cit. p. 49. 17

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quantidade, um peso externo, mas progride mediante obstáculos, opções e sacrifícios. É isso, o dado existencial do universo pessoal, no qual é necessário colocar o discurso da liberdade, se não quisermos correr o risco de absolutizá-la e fazer dela uma entidade separada, alheia até da natureza e. assim, desnaturá-la. Um fator fundamental, na perspectiva da antropologia personalista, é a abertura ao transcendente. Nessa altura a pessoa percebe a liberdade como invocação, como apelo, que exige uma resposta. É isso que dá a liberdade humana algo de intrépido. Contra qualquer forma de liberdade que tente de adaptar-se ao mundo por medo de ousar de realizar o chamado, ou contra a tentação de vender a própria liberdade por um mínimo de segurança por causa das angústias e preocupações que a vida apresenta, Mounier afirma a necessidade de uma “loucura criadora” ínsito na liberdade, que destroça as correntes do espírito de escravidão intrínseco a cada homem. “Um gosto passivo da autoridade que tem mais a ver com a patologia do que com a teologia, cegas adesões as diretrizes dos partidos, indiferença dócil das massas desorientadas, tudo nos denuncia a queda do homem livre: é preciso reconstruir a espécie por estes formada. A liberdade é operária mas, sobretudo, divina”20. Assim entendida, a liberdade pessoal leva a pensar no duplo sentido, de opção e disponibilidade. A liberdade se, de um lado, é capacidade de ruptura, de opção, do outro, não se identifica só com isso, mas vai bem além. Liberdade é também adesão e disponibilidade. Desta forma, é possível perceber que a liberdade não isola, mas une. De fato, não leva por caminhos de arrogância e auto-suficiência, mas, pelo contrário busca com responsabilidade a comunhão com os demais. Estas poucas indicações mounierianas sobre a idéia de liberdade, elaboradas pela filosofia personalista, podem nos ajudar a encontrar caminhos para que a ação pastoral acompanhe a pessoa a viver o dom da liberdade. Mounier conseguiu uma resposta positiva às análises niilistas do existencialismo sartriano, colocando o discurso sobre a liberdade no plano transcendente. Se a pessoa é livre, enquanto responde a um apelo que o precede e antecipa desde a eternidade, quer dizer que a ação pastoral deve dirigir-se nesta direção, esforçando-se de colocar as pessoas em contato com Deus. Por isso, todo o cuidado com o jeito de celebrar, de realizar as liturgias é pouco. Se de fato, como nos lembra o Concilio Vaticano II, “A liturgia é o cume e a fonte de toda a vida da Igreja”21 e se neste cume a pessoa, de uma forma eminente, tem a possibilidade de se encontrar misteriosamente com Deus, isso quer dizer que não é de qualquer jeito que se celebra. Além do mais, para que uma pessoa possa viver de uma forma livre, ou seja, capaz de responder ao chamado de Deus, é preciso liberar o campo de qualquer dependência humana. Aquilo, de fato, que assistimos às vezes nas comunidades e, de uma forma especial, nos movimentos, é a identificação da vontade de Deus com o líder carismático. Só Deus liberta as pessoas e, um bom trabalho pastoral, deve visar ajudar as pessoas a viverem uma experiência pessoal com Deus. Nessa altura, estas reflexões batem com aquilo que colocamos no parágrafo anterior sobre a interioridade da pessoa. Quanto mais uma 20 21

O personalismo,cit. p.52 Documento Sacrosantum Concilium, § 10.

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pessoa é envolvida numa experiência pessoal com Deus, tanto mais terá a possibilidade de viver de uma forma livre, ou seja, responsável. Mais uma vez apontamos a dificuldade que se apresenta nas comunidades e nos movimentos que assumem o acompanhamento espiritual das pessoas, ou seja, o perigo de uma escassa maturidade do líder, que liga a si mesmo as pessoas em busca de Deus, transformando as próprias carências afetivas em valores para serem assimilados pelos adeptos. Os estragos que tais relacionamentos pseudo-espirituais provocam nas pessoas, são amiúde indeléveis22.

3. Dialética de temporalidade e espiritualidade Nos últimos anos da vida, para Mounier estava ficando bem claro que o projeto da Cristandade, que tanto tinha acompanhado o destino da Igreja Católica ao longo dos séculos, deixando marcas profundas na sua estrutura, era totalmente falido. Por isso, que alguns setores da cultura francesa não recusavam de retomar o caminho de uma nova Cristandade, como por exemplo Jacques Maritain23. Pra o nosso Autor era necessário tentar novas veredas. Foi nessa época- 1947/1950- que Mounier retoma nas mãos a lição do seu antigo mestre: Charles Péguy24. Deste último, Mounier retomou o grande ensinamento sobre o Mistério da Encarnação. Contra o Cristianismo que não apaixonava mais ninguém, enquanto mergulhado no baixo nível da vida burguesa, o filosofo Francês sustentava a necessidade de um cristianismo fiel a terra e as preocupações corriqueiras dos homens. “Nos tornamos cristãos da mesma forma que colocamos uma meia, na maneira mais cômoda do mundo, sem ver de fato a oposição entre ordem cristã e desordem do mundo. É um absurdo e é uma heresia”25. Esta situação absurda foi o fruto de uma separação que, ao longo dos séculos, veio se realizando entre o espiritual e o temporal, a vida eterna e a vida terrena, a cidade da terra e a cidade do céu. Na realidade, observa Mounier, “o espiritual está constantemente deitado no leito do temporal” e o temporal, na sua totalidade, é o “sacramento do Reino de Deus”26. São estas as expressões, que visavam provocar nos leitores o desejo de um cristianismo mais fiel a história e a terra, em outras palavras um cristianismo mais encarnado, na mesma linha e pelo mesmo caminho que o seu fundador deixou: Jesus

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Sobre este assunto cf. o meu Missione e contemplazione. Verso un nuovo paradigma missionario, La Rivista del Clero italiano,2003, pp 124-135. 23 Cf. J.Maritain, Por um humanismo cristão,Paulus 1999. 24 De Péguy sinalamos as seguintes obras: Clio, dialogue de l’histoire et de l’ame paienne, L’argent, em Ouvres em Prose (1909-1914), Paris 1957; Le mystère de la Charité de Janne d’Arc, Eve, em Oeuvres poetiqués complets, Paris 1941. Indicamos, também, doi textos importantes para entender o pensamento de Péguy: Alain Finnkielkraut, Le mécontemporain,Gallimard, Paris,1991; Simone Fraisse,Péguy, Seuil, Paris 1979. 25 E Mounier, Cristianità nella storia, Ecumenica, Bari 1979, p. 79. 26 Ibidem.

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Cristo27. O problema mais profundo que aconteceu na história do cristianismo e que se realizou na forma político-teológica da cristandade, é que um excesso de idealismo levou a pensar e a produzir um espiritualismo desencarnado, um espírito sem carne, um céu sem a terra. “Pensando que o cristão deve viver no espiritual – escrevia Mounier -, é colocado debaixo deste sino pneumático e, quando por sorte o cristão se dá conta que o ar está faltando, se diz para ele que deve empenhar-se no temporal como se seu espiritual fosse separado do temporal e o temporal fosse privado de espiritualidade”28. A luta contra estas duas doenças espirituais do cristianismo histórico, perpassa toda a obra filosófica e política de Emanuel Mounier. O espiritualismo desencarnado e o ativismo desespiritualizado, são os frutos mais maduros daquele cristianismo burguês, que tanto prejuízo levou ao seio da vida cristã. Neste sentido, as páginas do último Mounier são em linhas seja com a prosa radical de Péguy, ou a crítica ferrenha que o grupo de “Esprit” lançava no início dos anos Trinta contra aquela que o mesmo grupo chamava de: “Desordem estabelecida”29. Foi nestas páginas memoráveis de “Esprit”, que o primeiro Mounier traçava as linhas características da figura do Burguês, sinônimo de espiritualismo vazio e desencarnado. O Burguês é o homem que perdeu o sentido do ser, perdeu o sentido amor. O Burguês não acredita em nada: nem nos homens nem nos eventos e, menos ainda, em Deus. O valor central do Burguês é a ordem e, ordem para ele, quer dizer tranqüilidade. O Burguês é um homem respeitoso e metódico e, tendo perdido o sentido do ser aponta todas as próprias forças no ter30. Toda esta tranqüilidade, moderação, todo este esforço no ter, mais do que no ser, na análise de Mounier aponta para os falsos valores modernos, que se infiltraram no cristianismo e que, por isso mesmo, é preciso desmascarar. O resultado mais profundo do desmascaramento dos falsos valores burgueses, é que não existe uma história profana e uma história sagrada- separação tipicamente moderna, como teria afirmado Péguy- mas uma só história, aquela da humanidade rumo ao Reino de Deus. “O crente deve tomar consciência de ser um cidadão da terra e, se quiser imitar plenamente o Cristo deve, com ele, assumir plenamente os deveres e as tarefas dessa cidadania, e não apenas medir a grandeza de Deus sobre a pequenez do mundo”31. O cristão é, então, homem entre os homens. A percepção desta temporalidade, da vocação terrena e ao mesmo tempo humana, não deve levar o cristão a esquecer o sentido do próprio caminho. De fato, o cristianismo é um povo em caminho rumo ao 27

E’ significativo observar como a reflexão mounieriana anticipa não apenas as ideias que encontraremos nos documentos do Concilio Vaticano II, em modo especial a Gaudium et spes, mas também chama atenção a impressionante sintonia com as intuições do teologo alemão Dietrich Bonhoeffer. De fato, nos anos em que ficou preso, Bonhoeffer ipotizava a necesidade de um cristianismo mai maduro para que o homem aprenda a viver com se Deus não existisse, assumindo a responsabilidade da propria vida. Cf. Resistenza e resa, Queriniana, Brescia 2000. 28 Cristianità nella storia, cit. p. 94. 29 Cf em modo especial o numero 6 que apareceu em março do 1933 com o seguinte titulo: “Rupture entre l’ordre chrétien et le desordre étabili”, com artigos do mesmo Mounier, Maritain, Berdiaeff, Denis de Rougemont. 30 Clarissima, nesta reflexão a influencia di Gabriel Marcel, que aliàs fazia parte do grupo “Esrit”. Cf em modo especial G. Marcel,Le mystèr de l’etre, Aubier, Paris 1952. 31 Cristianesimo nella storia, cit. p. 132.

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cumprimento definitivo. O cristianismo era escatológico poucos anos depois de Cristo, da mesma maneira que o é hoje. Esta tensão escatológica é possível somente se o cristão tiver a humildade de recolher-se e de mergulha-se nas tradições e na vida da Igreja, “pra não ser um meio cristão, mais do que um meio homem”32. Esta dialética de temporal e espiritual deverá constantemente marcar a vida da Igreja, o caminho do povo de Deus Assim, a vida da Igreja depararà continuamente entre dois movimentos: o movimento de inserção no temporal, onde ela perguntará para as estruturas temporais o máximo para poder subsistir, e o movimento de redobramento do temporal, onde pedirá o mínimo para as estruturas temporais para subsistir além delas. Tempo forte e tempo fraco da encarnação, tempo fraco e tempo forte da transcendência. “Saímos de uma fase para entrarmos numa outra”33. É vivendo intensamente a própria humanidade na fidelidade à terra e à história, que o cristão assume o espírito encarnado. O espírito do Cristo encarnado na história leva os cristãos não fora do tempo ou da cidade, mas plenamente inseridos nas estruturas do mundo. Uma paróquia, uma comunidade, um movimento aonde a ação temporal seja sinal do transcendente presente na história: deve ser esta a nossa constante preocupação. Somente uma espiritualidade atenta a pessoa, a valorizar a pessoa nas suas múltiplas dimensões pode ajudar a ação pastoral a não cair no ativismo extremo, no espiritualismo desencarnado. Como realizar uma pastoral que seja ao mesmo tempo fiel a terra e a história e, ao mesmo tempo expressão da busca de transcendência? Em outras palavras, como manter unidas a dimensão espiritual e temporal na mesma ação pastoral? O equilíbrio na vida pastoral se consegue na constante referência à espiritualidade encarnada, cujo exemplo encontra-se em Jesus. Se, de fato, os atos históricos de Jesus eram manifestações da presença misteriosa de Deus na sua carne, isso se deve ao seu ser repleto do amor de Deus, recheado de Espírito, na busca constante de realizar a vontade do Pai. Em Jesus a oração não era fuga da realidade porque buscava o Pai para entender como realizar o seu projeto na história. Por isso quando Jesus cuidava de doentes e pobres, não expressava um interesse social, mas manifestava a misericórdia gratuita de Deus. Em Jesus, Deus não é uma palavra vazia, sem sentido, sem presa na historia. Pelo contrario, na ação histórica de Jesus é bem visível na sua mesma carne e nos seus gestos, o amor misericordioso do Pai. O nosso problema é entender como vivermos uma espiritualidade que não seja ou fuga da realidade ou desejo de se substituir a Deus.

4. O “Engajamento” O sentimento profundo que Mounier tinha do valor da Encarnação na realização do cristianismo, o levou a elaborar uma categoria que perpassará toda a sua obra: o empenho. Quem estiver consciente do Mistério da Encarnação, de Deus que se fez 32 33

Cristianesimo nella storia, cit. p. 137 Ibidem.

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carne e veio morar no meio da humanidade, não pode ficar de braços cruzados. É este o princípio inspirados da idéia de “engajamento”, que se encontra na obra mounieriana. Se, porém, é verdade que ninguém pode se abster do empenho, é também verdade que se abre nessa altura um grande problema: como realizar este empenho quando se acredita em valores absolutos? Talvez, não seria melhor “atender, para agir, objetivos perfeitos e meios irrepreensíveis?34”. Perante esta objeção Mounier lembra que o Absoluto não é deste mundo e que, consequentemente, nos empenhamos sempre em lutas discutíveis, por objetivos imperfeitos. Para se empenhar é necessário, então, tolerar as impurezas, os atrasos e, sobretudo, não ter medo de sujar as mãos, mas conservar uma fidelidade absoluta com os valores nos quais acreditamos. É preciso manter sempre presente a realidade do dinamismo dialético entre os valores absolutos e a inserção destes, no mundo que é finito e relativo. Desta forma, o empenho “nasce da fecunda tensão que ele suscita entre imperfeição da causa e a absoluta fidelidade aos valores envolvidos”35. Frisando esta mesma idéia, num escrito de 1949, Mounier lembrava que, quando Cristo falou: “O meu reino não é deste mundo”, não disse que nós não somos deste mundo, mas que “a sua mensagem, não era diretamente destinada para a feliz arrumação deste mundo”36. É por isso que, para uma ação que visa encarnar os valores espirituais, as pessoas devem aprender a trabalhar com as dificuldades da hora, com as limitações que a condição humana leva consigo. Precisamos, por isso, “fazer propriamente o nosso trabalho de homens como todos os homens”37. Encontramos nestas palavras as linhas fundamentais da reflexão que o mesmo Mounier tinha esboçado no inverno de 1943, enquanto estava preso por causa da segunda guerra mundial, naquele pequeno livro memorável que foi: “O afrontement chretién”38. Nestas páginas, nas quais Mounier tentava um diálogo imaginário com Nietzsche, saiu uma dura crítica a toda forma de cristianismo que se reduz a uma vida burguesa, fechada em si mesma, sem élan e sem força. Neste sentido, para Mounier permanecem válidas as acusações que Nietzsche dirigia para o cristianismo, afirmando que se tratava de um sistema de segurança para viver amparados dos perigos da vida. “Quem passa a juventude a frear e a recusar não consegue propor à vida outra coisa que não seja gestos de negação e de fechamento”39. As técnicas de ascese não devem produzir uma domesticação do homem, mas a sua transfiguração. Mounier quer resgatar um cristianismo de virtudes fortes, de homens corajosos como São Paulo e os primeiros cristãos que, para anunciar o Evangelho, enfrentaram perigos, as ondas do mar, sem medo de morrer. 34

Cristianesimo nella storia, cit. p. 158. Ibidem. 36 Trata-se de Fue la chrétienté, que se encontra na mesma obra que estamos citando: Cristianesimo nella storia, cit. p. 174. 37 Ibidem. 38 Publicado pela primeira vez no 1945, apareceu sucesivamente na tradução italiana com o seguinte titulo: L’affrontamento cristiano, LEF, Firenze 1951 e republicado pela Ecumenica, Bari 1987. 39 Ibidem, p. 27 35

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“Quanto mais uma vida é pessoal, no sentido mais elevado, tanto mais a morte física perde aos seus olhos importância e capacidade de incutir medo; quanto mais uma individualidade é preocupada em si, tanto mais a derrota se aproxima...”40. Não fazer do cristianismo uma idéia que se conversa tranquilamente no sofá: é contra isso que Mounier combate. Por isso é necessário retomar uma educação cristã que mostre que o cristianismo não é a religião dos covardes e medrosos que, em nome de um espiritualismo desencarnado, se esconde num espiritualismo ridículo, fora da vida, cultivando um gosto de submissão que, longe de expressar um relacionamento maduro com Deus, presta ao lado para a pior forma de covardia. “Homens que tem medo de pular: eis o que nos tornamos homens educados a desconfiar do salto. Todos passam enquanto nós restamos parados na beira do abismo do futuro. Como aprender novamente a ter coragem de pular?”41. Por isso Mounier repropõe o valor da força, valor retoamdo costantemente ao longo da sua reflexão politica. Os covardes e os medrosos tentam de mostrar como, em nome do espírito, a agressividade é sempre um mal. Mounier sustenta que a agressividade é um instinto e não existem instintos negativos, mas somente negativos usos do instinto. De fato, a iniciativa e a coragem moral precisam sempre de um empurrão. “quem nunca sentiu o sangue ferver, não conhece a paz cristã. Quem nunca desejou se bater por aquilo que ama, ama só a metade:”42. Mais uma vez o equilíbrio dialético que Mounier propõe no agir cristão, não é a negação dos impulsos opostos, mas a transfiguração deles. Acompanhar as pessoas nas nossas comunidades, para que se tornem capaz de não recuar perante os inevitáveis fracassos da vida e aprender a caminhar nas imperfeições dos meios a disposição, é sem duvida alguma um grande desafio. A filosofia personalista de Mounier estimula, também, para aprender o caminho de um cristianismo mais corajoso, mais pronto a enfrentar com determinação a luta com o mundo da injustiça. Se for verdade que o cristão deve viver neste mundo de lobos como um cordeiro, da mesma forma que Jesus viveu, é também verdade que este estilo de “cordeiro” exige força e firmeza. Agüentar o pressionamento do mundo que não quer que a comunidade cristã denuncie a injustiça social, não seja profética e fique calada e omissa, exige muita força espiritual. Somente cristãos que na luta do dia a dia enxergam a presença misteriosa de Deus, conseguem a permanecer firmes para nunca desistir.

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L’affrontamento cristiano, cit. p. 32. Ibidem. 42 Ibidem, p. 57. 41

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