Paternalismo e desigualdade na Constituição

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Fórum debate paternalismo da Constituição
Cientista político discute com internautas se há equilíbrio entre direitos e deveres na lei e se é preciso mudar o texto constitucional.
08 Setembro 2006
Crédito: Reprodução da PrimaPagina

A nova edição do Fórum de Debates Interativo sobre a Reforma Política, criado pelo PNUD e pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), discute a partir desta sexta-feira a Constituição brasileira, em especial o modo atribui como direitos e deveres. Este é o quinto tema debatido no fórum, que a cada semana traz, para debater com os internautas, um dos autores do livro Reforma política no Brasil, publicado pelo PNUD e pela UFMG.

Desta sexta até 14 de setembro (de 2006), quem conversa com os leitores é o cientista político Gláucio Soares, do IUPERJ (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro). No livro, ele escreveu o artigo "Reforma Constitucional", no qual vê sinais de que o texto constitucional constrói um Estado "paternalista, protecionista e assistencialista". "A Constituição usa, por exemplo, nove vezes a palavra "deveres" — bem menos do que palavras como "direitos" (93 vezes), "garantia" (85), "benefícios" (81) e proteção (48).

O caráter paternalista, protecionista e assistencialista do Estado se revela na freqüência com que certos temas aparecem na Constituição. No Brasil, a herança corporativista pesou muito sobre os gastos do Estado, concedendo ao funcionalismo privilégios e prerrogativas não encontráveis na maioria dos países com alta renda per capita", afirma Soares. E exemplifica: "A previdência do setor público causa um desequilíbrio maior do que a privada, que se refere a um número muito maior de pessoas. Essas diferenças contribuem para aumentar a desigualdade total do país e são difíceis de mudar porque estão ancoradas em leis."

Alterar alguns pontos da Constituição não é tarefa fácil, avalia o cientista político. Isso decorre em parte do sistema eleitoral. "Num sistema eleitoral em que alguns interesses corporativos e particulares garantem a eleição de parlamentares, é difícil alterar a concepção do Estado, tal qual refletida na Constituição, de representação muito desigual de interesses, com privilégios e prerrogativas espalhados no seu texto, a um Estado onde todos sejam, efetivamente, iguais perante a Lei e onde direitos e deveres, gastos e receitas, se equilibrem", diz o autor.

A dificuldade é acentuada pelas regras constitucionais e pela composição do Congresso. "No Brasil, as emendas constitucionais exigem maioria de 60% em cada Casa do Congresso Nacional. Esta maioria nas duas casas não é fácil de ser obtida em temas que separem governo e oposição devido à pulverização partidária", comenta.
Soares: Critico a oficializacão do privilégio. Uma entrevista feita há quase dez anos, antes do mensalão, esclarece essa preocupação:

Constituição defende a 'ética do privilégio'
Para o cientista político Gláucio Soares, as leis brasileira beneficiam os funcionários públicos e criam 'categorias hierarquizadas de cidadania'
08 Setembro 2006 - Crédito: MMA/Divulgação da PrimaPagina

Os funcionários públicos brasileiros são privilegiados pela Constituição, que tem regras que desfavorecem aqueles que não pertencem ao setor. Isso permitiu a criação de "categorias hierarquizadas de cidadania", na opinião do cientista político e sociólogo Gláucio Soares:
"O Estado no Brasil privilegia os que trabalham para ele. É histórico, é antigo, começou na Colônia. Os programas beneficiaram, primeiro, os militares, depois, os servidores civis; alguns deles levaram muitas décadas até atingir os grupos ocupacionais mais (intencionalmente?) esquecidos, como trabalhadores rurais e empregadas domésticas", afirma Soares em entrevista à PrimaPagina.
Professor e pesquisador do IUPERJ (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e doutor em Sociologia pela Washington University em Saint Louis, ele participa da nova rodada do Fórum de Debates Interativo sobre a Reforma Política do site do PNUD, de 8 a 14 de setembro. Ele conversará com os internautas sobre a necessidade ou não de alterações na Constituição brasileira, em especial no que se refere ao equilíbrio entre direitos e deveres.
A Constituição, aponta o cientista político, estabelece mais do que regras diferentes para o funcionalismo estatal. "Não são simplesmente diferentes: são regras que favorecem o setor público", diz. "E, portanto, desfavorecem os demais, criando categorias hierarquizadas de cidadania. Os que não estão no setor público estão na mais baixa. Essas regras são parte da ética do privilégio", completa.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista, concedida por e-mail.
P: Por que, em menos de 20 anos, a Constituição brasileira já foi reformada diversas vezes? Ela foi mal feita, ou as reformas foram desnecessárias?

Gláucio Soares – A probabilidade de emendas aumenta com a extensão da Constituição. Nossa Constituição é das maiores — há mais o que modificar. De acordo com alguns, ela inclui muitos temas que deveriam ser tratados por leis menores. Nesse sentido, ela foi mal feita.

P: O sr. menciona em seu artigo a importância do equilíbrio entre "direitos" e "deveres" e diz que a Constituição brasileira não tem esse balanceamento. Podemos apontar esse como o maior defeito da Constituição?

Soares – Este é um grande defeito da estrutura política brasileira, não apenas da Constituição.

P: Por quê?

Soares – O Estado no Brasil, como também na América Latina, é um Estado que privilegia os que trabalham para ele. É histórico, é antigo, começou na Colônia. Os programas beneficiaram, primeiro, os militares, depois, os servidores civis; alguns deles levaram muitas décadas até atingir os grupos ocupacionais mais (intencionalmente?) esquecidos, como trabalhadores rurais e empregadas domésticas. O acesso a benefícios e programas públicos não se fez simultaneamente a todos os segmentos da sociedade. Seguindo a matriz corporativa do nosso pensamento, uns grupos tiveram acesso antes e outros depois. As diferenças temporais não foram pequenas: em alguns casos ultrapassaram um século, entre os que tiveram acesso primeiro e os que tiveram acesso por último. Essas são diferenças no tempo; as diferenças na qualidade e na quantidade também existem e são muito grandes.

P: Em que pontos o sr. acha que a Constituição é "paternalista, protecionista e assistencialista"?

Soares – Na ausência de deveres.

P: O sr. acha que políticas públicas (cobrança e repasse de tributos, definições de orçamentos mínimos para algumas áreas sociais etc.) deveriam ficar de fora da Constituição? Por quê?

Soares – As políticas públicas variam com o que é considerado social e politicamente relevante naquele momento. As prioridades e as necessidades mudam rapidamente, criando descompassos com o que está engessado na Constituição.

P: Se todos os pontos da Constituição foram aprovados pela maioria do Congresso ou da Assembléia Constituinte, como identificar alguns itens específicos a pressões corporativistas? Como avaliar, por exemplo, se a definição de regras diferentes para a aposentadoria do funcionalismo público reflete a pressão dessa categoria ou uma avaliação da sociedade de que essas regras resultariam em um funcionalismo mais eficiente?

Soares – A pergunta supõe clarividência e legitimidade automáticas do Congresso ou da Assembléia Constituinte e, portanto, do que for aprovado por eles. É uma tese difícil de sustentar. Não conheço uma só avaliação feita diretamente pela sociedade civil na qual ela tenha expressado o desejo de ter pensões e aposentadorias menores do que as do setor público.

P: Por que o sr. acha que a definição de regras diferentes para o funcionalismo público contribui para que o "povo" não se veja na Constituição?

Soares – Não são simplesmente diferentes: são regras que favorecem o setor público e, portanto, desfavorecem os demais, criando categorias hierarquizadas de cidadania. Os que não estão no setor público estão na mais baixa. Essas regras são parte da ética do privilégio.

P: Para passar uma emenda constitucional, exige-se uma aprovação de 60% dos parlamentares em cada Casa do Congresso Nacional (o que, de acordo com o sr., representava, em 2002, o voto dos quatro maiores partidos na Câmara dos Deputados). Isso deve ser mantido ou prejudica a modernização da Constituição?

Soares – A observação feita apresenta a hipótese de que a legislação partidária e a legislação referente às emendas foram feitas de maneira estanque, não relacionadas, favorecendo contradições. Quanto mais incluir a Constituição, maior a probabilidade de descompasso entre ela e as transformações de um país que não pára de mudar. Incluir mais e mais na Constituição foi uma tentativa do legislador de congelar o futuro.

P: Por que o sr. acha que essa proporção incentiva a migração partidária?

Soares – Há condições para a migração partidária: talvez a mais óbvia seja a de que a cadeira, de fato, "pertence" ao eleito e não ao partido. Os governos, devido à distribuição das cadeiras entre os partidos, não contavam com maioria, iniciando um duplo movimento, de governos tentando atrair partidos, grupos e deputados individuais para formar maiorias estáveis e de deputados e senadores sem identificação com seus partidos buscando poder e benefícios associados com ser governo. O "Presidencialismo de coalisão" tem sido bem analisado por cientistas políticos brasileiros. O partido do Presidente, sempre em minoria, paga caro para conseguir a governabilidade.

P: Isso em alguma medida estimula a corrupção?
Soares – Alguns incentivos seguem formas variadas de corrupção, umas mais sutis do que outras. Estamos falando da corrupção individual, de deputados, e não de bancadas ou de partidos.

P: O sr. diz que "um ponto importante de uma reforma constitucional seria aumentar o controle dos eleitores sobre os eleitos". Quais pontos deveriam ser reformulados ou acrescentados para garantir isso?

Soares – Impedir a migração partidária, reduzir o número dos deputados federais e estaduais e eliminar a necessidade de autorização para processar ocupantes de cargos executivos e legislativos por crimes comuns, exceto para o presidente da República. Há outras possibilidades que precisam ser estudadas.
Menções na Constituição de 1988




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