Paternidade e filiação na IV Partida de Afonso X (1252-1284): casamento e família segundo lógicas retributivas de senhorio e dependência.

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Paternidade e filiação na IV Partida de Afonso X (1252-1284): casamento e
família segundo lógicas retributivas de senhorio e dependência.

As Siete Partidas compõem o maior e mais completo texto legislativo
afonsino. Tornaram-se, ao longo do tempo, um dos mais importantes códigos
na história do direito castelhano. O nome pelo qual as conhecemos hoje
deriva do fato de terem sido separadas em sete livros[1]. A autoria das
Siete Partidas é atribuída ao próprio rei Afonso X de Castela e Leão (1252-
1284). É a autoridade legal a mando de quem foram escritas e sancionadas.
As leis do quarto livro das Siete Partidas ( IV Partida[2]) -
dedicado ao direito matrimonial - além de conceituarem o casamento
desenvolvem também um modelo de sociedade elaborado a partir dos
significados que elas conferiam primeiramente ao matrimônio e,
posteriormente, aos laços de paternidade e filiação derivados dele. Ao
casamento era dada a capacidade de manter a ordem hierarquizada da
sociedade, que se organizaria, então, através de laços originados
naturalmente em débitos pessoais. Os frutos gerados por tais dívidas –
através de variados e sucessivos serviços e benefícios – possuiriam a
capacidade de preservar os laços de obrigação pessoal entre os diferentes
tipos de senhores e seus dependentes. Os sentimentos retributivos,
derivados da correta observância das regras dessa obrigação pessoal, seriam
capazes de conservar aquelas relações. Pelo o que se depreende do texto da
IV Partida, os vínculos hierárquicos mais básicos - porque originariam os
demais – corresponderiam à filiação e à paternidade; sendo que essas
dependeriam, para o seu bom funcionamento, da observância de uma lógica
retributiva. Pode-se dizer que as leis da IV Partida, ao legislarem sobre o
matrimônio, descreviam também um modelo de família caracterizado a partir
da célula conjugal, a qual, imbuída de uma lógica hierarquizante, seria o
centro de uma família ampla conformada através de variados laços
retributivos de senhorio e de dependência. A sociedade ordenada,
desenvolvida a partir desses laços, se regeria pelo mesmo princípio.
A historiadora Anita Guerreau-Jalabert questionou a utilização de
alguns conceitos pelos historiadores dedicados a estudar os sistemas de
parentesco medievais[3]. Um deles é justamente o termo "família". Segundo
ela, a noção de "família", da forma como é entendida nos trabalhos dos
medievalistas, está sujeito a grandes imprecisões, e termos tais como
família "alargada", "vertical" ou "horizontal", "natural" ou "conjugal" não
contribuiriam com clareza na definição do termo[4]. Essa imprecisão se
confirmaria ou se aprofundaria ainda mais quando se verifica que o vocábulo
muitas vezes parece ser utilizado como sinônimo de termos tais como
"parentela", "linhagem" ou "linha", de origem medieval[5]. Segundo ela,
todos esses termos seriam utilizados pelos historiadores de maneira fluída,
sem o devido apoio que a antropologia oferece a esse respeito. Já o
anacronismo especificamente presente no termo "família" derivaria do fato
dessa palavra não ter pertencido ao uso medieval[6].
Porém, no sétimo livro das Siete Partidas, há uma lei consagrada à
definição de algumas palavras, entre as quais se encontra o termo
"família"[7]. Essa lei está dedicada ao "entendimento, e significado de
outras palavras escuras[8]", ou seja, se empenha em definir vocábulos cujo
significado poderia não estar claro, talvez pela variedade de significados
atribuídos a eles. Diz-se ali que:
Por esta palavra, Familia, entende-se o senhor dela, e sua mulher, e todos
os que vivem sob ele, sobre quem ele tem mandamento, tais como os filhos, e
serventes, e os outros criados. Pois Familia é dita aquela, em que vivem
mais de dois homens sob o mandamento do senhor, e daí em diante; e de outra
maneira não seria familia. E aquele é dito, Paterfamilias, que é senhor da
casa, muito embora não tenha filhos. E Materfamilias é dita a mulher que
vive honestamente em sua casa, ou é de boas maneiras. Outrossim, são
chamados Domésticos tais como esses; e ainda o lavradores ( labradores),
que lavram suas herdades, e os alforriados [9].



O empenho em definir essas palavras "escuras" mostra que o
conhecimento do seu significado e a correta utilização dos vocábulos eram
importantes. De qualquer forma, o termo "família" não era desconhecido, e a
noção que se escolheu transmitir com ele nessa lei está relacionada a
ideias de parentesco e de domínio da forma como eram entendidas no momento
de composição do texto. Os membros da família se ligavam por laços de
consanguinidade ou por outros laços de parentesco, mas principalmente por
laços de dependência com relação ao paterfamilias, palavra latina utilizada
segundo o que se considerava que era a sua tradução romance e que ali
corresponde à noção muito medieval e ibérica de "senhor". Uma família
compreendia, assim, de preferência alguns parentes próximos, mas não se
restringia a isso, e compreendia na realidade todos aqueles que vivessem
juntos sob o mandamento do mesmo senhor, e que possuíssem com ele laços de
dependência pessoal. Uma família seria um senhorio, que deveria ser
exercido por um homem sobre os seus.

Apesar das ressalvas existentes à utilização do termo "família", essa
palavra é utilizada, por exemplo, pelo britânico Jack Goody[10], cuja
formação é antropológica. De forma geral, para Goody, as mudanças ocorridas
na Europa na transição da antiguidade para a Idade Média estiveram
intrinsecamente relacionadas com o crescente avanço sobre a condução da
vida social operado pelo cristianismo, em um primeiro momento, e pelo
catolicismo, em um segundo. Também para Anita Guerreau-Jalabert a Igreja
católica teria sido o agente propulsor das transformações ocorridas na
Europa no casamento e no sistema de parentesco[11].

Na IV Partida, o casamento – geralmente apresentado em concordância
com os moldes estabelecidos pelo direito canônico – é a unidade fundamental
a partir da qual a reprodução humana se desenvolveria corretamente, de
forma que seria por isso o elemento estruturador da correta ordem social.
Essa ordem deveria ser hierarquizada, e as relações de domínio e
dependência que a caracterizariam derivariam originalmente das dívidas
geradas pelo enlace matrimonial. No interior do casamento haveria uma
primeira dívida, entre marido e esposa, que era também a primeira dívida
existente entre os seres humanos, porque teria sido estabelecida ainda no
momento da Criação do mundo, quando Deus fizera o primeiro homem e a
primeira mulher, e estabelecera entre eles a lei do casamento. Entre os
filhos e seus pais haveria também uma dívida natural derivada da dádiva da
vida, e, se essa dívida se estabelecesse no interior de um casamento
legítimo, estaria em conformidade com a ordem correta.

A noção da dívida que uniria com laços fortes dois desiguais, e do
beneficio e do serviço por ela gerados e que obedecidos serviriam à sua
manutenção, perpassava a mentalidade da sociedade feudal. Os seres humanos
regiam-se pela idéia de um mundo composto por diferentes tipos de senhores
e dependentes que, a partir de seus lugares desiguais, ligavam-se uns aos
outros através das dívidas que deveriam respeitar, cada qual segundo a
possibilidade e as exigências de sua posição. A relação com Deus, tal como
qualquer criação da mente humana, era imaginada segundo o modelo e a
prática social existentes, de forma que, em última instância, era entendida
como uma relação feudal, identificando-se a natureza (natura), como
sinônimo de toda a Criação, como o benefício que a poria em marcha. Mais do
que isso, essa relação se tornava a régua que serviria de medida e de molde
às demais relações humanas, entendidas então a partir de um modelo que na
documentação legislativa afonsina correspondeu à idéia das dívidas
naturais. Estas seriam o elemento básico que originaria e manteria a
relação entre senhores e seus dependentes.
O modelo sobre a filiação seguia esses mesmos moldes. Nele, pais e
filhos estariam ligados à priori por uma dívida natural porque descendiam
uns dos outros. A dívida da filiação era de natureza ( natura) porque
derivaria da vida dada pelos pais aos filhos. A vida era o benefício
fundamental dado pelos pais, e a contrapartida deveria ser o amor e a
lealdade filiais - de maneira que os filhos servissem seus pais
corretamente, observando a hierarquia entre eles.
Embora se considerasse o poder paterno um elemento inerente à relação
de filiação, derivado da dívida do nascimento e da criação, a sua
existência também estava sujeita a certos limites e a rigor nenhum filho
deveria permanecer a vida inteira sujeito ao poder de seu pai. Porém,
embora o poder efetivo não fosse eterno, o laço beneficiário e retributivo
que ele criava deveria ser, e assim, mesmo depois de saído do poder de seu
pai, ao filho e ao pai deveriam permanecer certas obrigações. Se os pais
eram obrigados a criar os filhos, esses, uma vez saídos do seu poder, à
guisa de retribuição deviam lhes prover o sustento da mesma forma como o
haviam recebido deles. Além da obrigação de prover o sustento dos pais, que
era a retribuição econômica; os filhos deviam-lhes também uma retribuição
afetiva. Deviam-lhes amor, temor, honra, serviço e ajuda. É interessante
notar como as qualidades exigidas dos filhos com relação aos pais são as
mesmas exigidas dos vassalos e também dos servos com relação aos seus
senhores. A relação entre pais e filhos configurar-se-ia como um tipo de
relação beneficiária, na qual os filhos deveriam serviço ao seus pais como
forma de demonstrar gratidão pelas benesses que haveriam recebido deles.
Apenas a ingratidão poderia levar à total dissolução dessa obrigação,
justamente porque subvertia a sua lógica. A relação de paternidade e
filiação estava fundamentada numa dívida, onde a paternidade era entendida
como uma forma de senhorio beneficiário e a filiação como uma forma de
dependência retributiva. A ingratidão configurava-se como um desserviço.
Ia, assim, contra o que mantinha uma dinâmica retributiva nas relações. O
sentimento desejado, o que era benéfico e deveria ser cultivado a fim de
que essa dinâmica se sustentasse – e ela estaria assim fundamentada nele –
era o da gratidão. Era esse o sentimento que pôria em marcha a dinâmica
das retribuições: ao ser demonstrada, deveria gerar uma gratidão
correpondente que se materializaria na forma de serviços ou de benefícios.
A cada retribuição da gratidão recebida, gerava-se uma nova necessidade de
retorno na qual consistia a dívida.
A emancipação não poderia ser feita à força, e sim com o livre
consentimento tanto do pai como do filho[12]. Porém haveriam exceções[13]
a essa regra, situações nas quais seria legítimo forçar o pai a emancipar
seu filho, e a maioria delas se deviam ao abuso de poder por parte do pai.
Pois, assim como era muito grande o poder que os pais detinham sobre seus
filhos, eles também tinham a responsabilidade de saber utilizá-lo bem. A má-
ulilização desse poder levaria à sua perda.

O poder e o senhorio especiais que os pais tinham sobre os seus
filhos derivariam de uma razão natural e do direito. Primeiro porque os
filhos descendiam do seu sangue, e segundo porque haveriam de herdar os
seus bens[14]. Este poder sobre os filhos era essencialmente masculino, e
transmitia-se somente pela linha vertical agnática. No entanto, recaía
apenas sobre os filhos legítimos. Os ilegítimos, nascidos e vividos à
margem da ordem de dívida, obrigação e recompensa da relação hierárquica
entre pais e filhos, carecendo do primeiro laço de dependência que deveria
se estabelecer, ficariam à margem da ordem hierárquica da organização
social. A legitimação seria uma forma de integrá-los a essa ordem. A
herança que receberiam, juntamente com as funções sociais acopladas a ela,
era o principal benefício que ganhariam em troca do cumprimento da dívida
pertencente à posição em que entravam. A insistência das leis da IV Partida
quanto à legitimação corresponde a uma preocupação, juntamente com a
preocupação com a garantia da transmissão patrimonial, com a integração na
ordem hierarquizada daqueles que conceitualmente estavam fora dela e
todavia ainda a poderiam integrar. Através da legitimação, os filhos
poderiam receber mercês, entrar a serviço de seu pai e dali também a
serviço de outros senhores.

Era legítimo o filho oriundo de um casamento reconhecido, que havia
sido sagrado sem impedimentos à sua realização[15].. O controle matrimonial
sobre os corpos das mulheres aparece na preocupação com a descendência,
pois era a partir dele que se garantiria a legitimidade da filiação. Embora
a garantia da legitimidade se fizesse através das mães, a transmissão da
honra se fazia através dos pais[16]. O mesmo ocorria quanto à herança
material, e aquela que derivava da linha agnática só poderia ser
transmitida ao filhos legítimos, de onde se depreende o papel fundamental
da filiação legítima para as políticas patrimoniais linhagísticas. As leis
da IV Partida estão preocupadas muito mais em apresentar a legitimidade
como um modelo de filiação do que em efetivamente regralizá-la. Os filhos
oriundos do cumprimento da dívida matrimonial seriam naturalmente melhores
do que aqueles que não viessem dela.

Ao passo que se admitia apenas uma forma de filiação legítima, a
ilegítima se dividia em diversos tipos hierarquizados e mais ou menos
desvalorizados de acordo com o grau de certeza que se considerava possível
ter acerca da paternidade [17]. Os filhos naturais seriam aqueles que
haviam sido gerados por uma barregã, ou seja, fora de um matrimônio
reconhecido como tal, e onde haveria o respeito da monogamia por parte da
mulher. Dessa forma, a paternidade seria facilmente reconhecida. Os
fornezinos seriam aqueles que nasciam dos outros tipos de união sexual nas
quais o controle, tanto sobre os corpos das mulheres, como sobre a condição
social das mesmas, não podia ser assegurado. Fica manifesta a preocupação
com a descendência que pudesse ser reconhecida para propósitos
linhagísticos, e a valorização da monogamia como política hereditária mesmo
à margem da legitimidade matrimonial.
A prestação de um serviço seria uma das principais formas de se obter
uma legitimação. A função filial deveria passar pela prestação de serviços,
e o reconhecimento de um filho pelo cumprimento dessa atribuição. Ao
realizar sua função através de um serviço, preferencialmente de acordo com
o desígnio de seu pai, o filho natural estaria se aproximando o suficiente
da filiação legítima, podendo então ser incluído nela.

A partir do que foi exposto acima, vê-se que o discurso da IV
Partida, ao legislar sobre o casamento e sobre as relações pessoais
derivadas dele, em especial sobre aquelas que poderiam receber o
qualificativo de "familiares", transmitia uma idéia segundo a qual o
funcionamento da sociedade humana dependeria desses laços, porque, em
última instância, se originaria neles. Por isso era importante o seu bom
funcionamento, a fim de que a sociedade se desenvolvesse corretamente. Esse
funcionamento correspondia a um modelo essencialmente hierarquizado da
divisão social, constituída por senhorios e dependências que se manteriam,
cada qual em seu lugar, entrelaçados através de dívidas. Tais dívidas
seriam perpetuadas pela necessidade de retribuição gerada por variados
serviços e benefícios. A primeira relação de senhorio e de dependência era
a de pais e filhos. Uma vez que o bom cumprimento dessa dívida levaria ao
correto cumprimento das outras dívidas da ordem social, então o modelo
beneficiário e retributivo dessas relações serviria de molde aos demais. No
final das contas, o modelo de paternidade e de filiação, conforme
apresentado no texto jurídico que se analisou, servia não apenas à
descrição dessas relações, mas também à defesa de um modelo de exercício do
poder e de sujeição a ele.

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[1] PÉREZ, António Martín. La obra legislativa alfonsina y puesto que en
ella ocupan las Siete Partidas. Glossae: revista de história del derecho
europeo. Murcia, v. 3,1992, pg. 32.

[2] Cuarta Partida. In: ALFONSO X. Las Siete Partidas (Glosadas por el
Licenciado Gregório López). Madrid: Compañía General de Impresores y
Libreros del Reyno, 1843.
[3] GUERREAU-JALABERT, Anita. Sur les structures de parenté dans l'Europe
Médiévale. In: Annales, Économies, Sociétés, Civilisations, n. 06: Paris,
1981, pg. 1030.

[4] Idem.
[5] Idem.
[6] Idem.
[7] ALFONSO X. Septima Partida. In: Las Siete Partidas (Glosadas por el
Licenciado Gregório López). Madrid: Compañía General de Impresores y
Libreros del Reyno, 1843. Título XXXIII, lei VI, pgs. 540-541.
[8] Idem.
[9] "por esta palabra, Familia, se entiende el señor della, e su muger, e
todos los que biuen so el, sobre quien ha mandamiento, assi como los fijos,
e los siruientes, e los otros criados. Ca Familia es dicha aquella, en que
biuen mas de dos omes al mandamiento del señor, e dende en adelante; e no
seria família fazia suso. E aquel es dicho, Paterfamilias, que es señor de
la casa, maguer que non aya fijos. E Materfamilias es dicha la muger, que
biue honestamente en su casa, o es de buenas maneras. Otrosi son llamados
Domesticos tales como estos; e demas, los labradores, que labran sus
heredades, e los aforrados". Tradução livre. In:Idem.
[10] GOODY, Jack. The development of the family and marrriage in Europe.
Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

[11] GUERREAU-JALABERT, Anita. Op. Cit, pg. 1032.

[12] Cuarta Partida, Op. Cit. Título XVIII, lei XVII, pgs. 591-592.

[13] Cuarta Partida, Op. Cit. Título XVIII, lei XVIII, pg. 592.

[14] Idem.

[15] Idem.

[16] Cuarta Partida, Op. Cit. Titulo XIII, lei II, pg. 562-563.

[17] Cuarta Partida. Op. Cit. Título XV, lei I, pg. 566.
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