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May 28, 2017 | Autor: Patricia Cunegundes | Categoria: Photography, History and Memory, Cinema, Memoria E Historia, Fotografia, Family Photography
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Fotografia de família em filmes documentários sobre mortos ou desaparecidos políticos

Como a fotografia de família pode ser usada como um dos elementos de constituição de memória em filmes documentários? Cada foto guardada tem, atrás de si, uma história, embora seja uma história hierarquizada, em que, pelo menos visualmente, os momentos de fragilidade, dor e sofrimento familiares estejam escondidos. Os álbuns de família, entendidos como “um conjunto de fotografias que compõem o imaginário documentado de um grupo atado por laços de intimidade, encerram uma temporalidade própria” (BUCCI, 2008, p. 69-88). Nesse contexto, o pesquisador e historiador Boris Kossoy afirma que: [...] Pelas fotos dos álbuns de família, constata-se a ação inexorável do tempo e as marcas por ele deixadas, apesar de nos álbuns só aparecerem os momentos felizes; como lembra um psicólogo: “As famílias constroem uma pseudonarrativa que dá realce a tudo o que foi positivo e agradável na vida, com uma sistemática supressão do que foi o sofrimento” (KOSSOY, 2012, p. 112) Para o historiador e teórico da fotografia André Rouillé, a fotografia seria um dispositivo munido de poder misterioso e divino de ressuscitar simbolicamente os mortos, de autorizar a volta dos corpos da morte para a vida, ressuscitar o que o tempo eliminou, de inverter o curso. [...] Uma prova fotográfica não é mais apenas uma lembrança, mas uma contralembrança, que ela é sobretudo um acionador de lembrança – a percepção de um retrato desencadeando um verdadeiro processo de atualização, um encontro do passado com o presente. (ROUILLÉ, 2009, p. 217). A relação com o passado deve respeitar, necessariamente, a experiência, caso se tenha a intenção de buscar as lembranças na memória. Para o historiador Jacques Le Goff, a memória é a propriedade de conservar certas informações, propriedade que se

refere a um conjunto de funções psíquicas que permite ao indivíduo atualizar impressões ou informações passadas, ou reinterpretadas como passadas. O estudo da memória passa da Psicologia à Neurofisiologia, com cada aspecto seu interessando a uma ciência diferente, sendo a memória social um dos meios fundamentais para se abordar os problemas do tempo e da História. Maurice Halbwachs (1990, p.80) afirma que, enquanto uma memória subsiste, é inútil fixá-la. “A necessidade de escrever a história de um período (...) e mesmo de uma pessoa desperta quando eles já são muito distantes do passado.” Quando a memória de uma sequência de acontecimentos não tem mais por suporte um grupo, aquele mesmo em que esteve engajada ou que dela suportou as consequências, que lhe assistiu ou dela recebeu um relato vivo dos primeiros atores e espectadores, quando ela se dispersa por entre alguns espíritos individuais, perdidos em novas sociedades para as quais esses fatos não interessam mais porque lhes são decididamente exteriores, então o único meio de salvar tais lembranças é fixálas [...] em uma narrativa. (HALBWACHS, 1990, p.80) . Neste sentido, “os documentários mostram aspectos ou representações auditivas e visuais de uma parte do mundo histórico” (NICHOLS, 2008, p.30). De acordo com o professor Bill Nichols, os filmes documentários significam ou representam os pontos de vista de indivíduos, grupos e instituições.

A construção de identidades nacionais envolve a construção de um sendo de comunidade. A “comunidade” evoca sentimentos de interesse comum e respeito mútuo, de relações recíprocas mais próximas de laços familiares [...]. [...] O senso de comunidade muitas vezes se parece com uma característica “orgânica”, que une as pessoas quando elas compartilham uma tradição, uma cultura, um objetivo comum. (NICHOLS, 2008, p.181) Para o professor Cássio dos Santos Tomaim (2009, p.59), o que interessa em um documentário não é o que ele testemunha, registra, mas como ele opera um discurso fílmico sobre o passado. Imagens do passado que fixadas no suporte (seja película, digital ou analógico) são justapostas ou associadas a outros elementos fílmicos (imagens de arquivo, fotográfico ou cinematográficas, reconstituições de acontecimentos, músicas e trilhas etc) no intuito de compor a “voz” do documentário, para usarmos um conceito de Bill Nichols. (TOMAIM, 2009, p. 59) O projeto trata documentários latino-americanos sobre mortos ou desaparecidos políticos durante ditaduras militares no Cone Sul, que tenham os álbuns de família como elemento central da narrativa. A pesquisadora uruguaia Beatriz Tadeo Fuica (2016), diz que o uso de fotografias de família em documentários sobre pessoas que sofreram a violência da ditadura mostra como se confundem os espaços públicos e privados e como estas imagens redefinem o tempo. A ditadura militar brasileira não foi um fato isolado na América Latina. Na mesma época, regimes semelhantes nasceram de rupturas de ordem institucional de outros países no subcontinente, com as Forças Armadas assumindo o poder: Paraguai (1954), Brasil (1964), Argentina (1966 e 1976), Uruguai (1973), Chile (1973). Para o corpus da pesquisa, foram selecionados três documentários, um brasileiro, um uruguaio e um argentino. No Brasil, são contabilizados, oficialmente, 434 mortes ou desaparecimentos durante os 21 anos da ditadura militar. Na Argentina, onde as cifras da violência repressiva atingiram patamares sem precedentes, estima-se em cerca de 30

mil mortos e desaparecidos entre os que resistiram ao regime naquele país. No Uruguai, o levantamento dá conta de 400 mortes e desaparecimentos.1 A definição do objeto se deu a partir do interesse em álbuns de família de pessoas desaparecidas ou mortas durante os regimes ditatoriais da segunda metade do século 20 na América Latina. Uma das utilizações mais comuns destas fotografias é nos chamados “documentários de busca”, os quais tentam reconstituir identidades e a memória não apenas individual, mas coletiva, numa tentativa de reparação de injustiças dentro de um período histórico importante para os países do Cone Sul. As fotografias de família são objetos privilegiados para nos transportar ao passado, para alimentar, formar e até mesmo contradizer a memória (KUHN, 2010, p. 303). Seu uso em documentários sobre pessoas que sofreram a violência da ditadura mostra como essas fotos se ressignificam com o passar do tempo. Conflitos, dramas e outras situações que podem ser reconstruídas a partir da leitura de álbuns de família são utilizados como pontos de partida de filmes sobre a história moderna, que remetem a um passado coletivo, chamados por François Niney (NINEY apud PEIXOTO, 2011) de “o teatro da memória”. De acordo com Peixoto (2011), utilizando documentos fílmicos, jornais, fotografias, desenhos e testemunhos, eles (os filmes) reconstroem um momento da história, falam do passado por meio de “personagens” que são confrontados com sua própria memória. “Cada memória individual constitui um ponto de vista da memória coletiva” (HALBWACHS, 1990). Nesse sentido, Peixoto (2011) afirma que biografias podem ser fontes metodológicas extremamente eficazes para a compreensão dos processos de construção de memória social e completa: É assim, por meio da reconstituição das memórias individuais, entendidas como versões plausíveis dos processos históricos e de traços culturais, que se constitui a memória social. Reavivar uma memória que, ao fio do tempo, cria uma tensão permanente entre o passado e o presente, entre o particular e o universal, é uma forma de compreender e/ou desvendar o silêncio de uma 1 Os números dos mortos e desaparecidos durante os regimes militares

em países do Cone Sul estão publicados no livro Direito à Memória e à Verdade – Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (2007)

geração, de um lugar, de um grupo social. (PEIXOTO, 2011, p. 19-20). De acordo com a pesquisadora em Antropologia Clarice Ehlers Peixoto (2011, p. 22), são filmes de memória que, fugindo da narrativa ficcional, procuram criar uma narração própria, pautada muitas vezes em um período histórico, uma questão política, na vida de uma testemunha/personagem [...]. De

fato,

a

linguagem

cinematográfica

possibilita

essa

reconstrução de narração histórica, levando-nos a perceber o transcorrer do tempo, sobretudo se considerarmos, como nos convida P. Riccoeur, que “o tempo torna-se humano na medida em que ele desenha os traços de uma existência temporária. (PEIXOTO, 2011, p. 22). Ainda segundo Peixoto (2011), as fotografias inseridas no filme apontam para a questão da linguagem e da complexidade da relação entre imagens em movimento que englobam imagens fixas. Por isso, Pedon (1997) diz que a produção de um conjunto visual heterogêneo poderia significar um outro modo de se relacionar à memória, mais variável e dinâmico: se cada tipo de imagem implica um nível específico de memória (ligado ao modo de representação de um referente em um dado espaçotempo), a alternância organizada das imagens demonstraria um trabalho complexo na constituição ou reconstituição da memória. (PEDON, 1997, apud PEIXOTO, p.23). Fotografias de família – sejam guardadas em álbuns, esquecidas em caixas de sapato, expostas em porta-retratos ou ‘grudadas’ na geladeira – preservam nossa história ancestral e perpetuam memórias. Quando fotografamos nossos momentos familiares, normalmente criamos uma imagem idealizada das relações inter-familiares. No entanto, com o passar do tempo, a análise do conjunto de imagens revela camadas mais profundas, evocando lembranças que vão além do que o idealizado pelo fotógrafo e pelos fotografados à época. Uma fotografia de aniversário pode revelar, por exemplo, a relação conflituosa entre pais e filhos, entre irmãos; pode revelar distanciamento entre

os fotografados, pode trazer à tona fatos não retratados, mas que estão impressos, em camadas ocultas, esperando um escrutínio. Por isso, a importância do uso de fotografias de família ressignificadas em como “lugares de memória” em documentários sobre mortos ou desaparecidos políticos durante as ditaduras civis-militares nos países do Cone Sul.

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