Patrimônio agroindustrial em Pernambuco: Usinas de açúcar e caminhos de ferro na formação da paisagem cultural da Zona da Mata canavieira de Pernambuco

June 4, 2017 | Autor: M. Freire | Categoria: Industrial Heritage, Restauration and Conservation
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Patrimônio agroindustrial em Pernambuco: Usinas de açúcar e caminhos de ferro na formação da paisagem cultural da Zona da Mata canavieira de Pernambuco

Marcelo de Brito Albuquerque Pontes Freitas1 Maria Emília Lopes Freire2

Introdução

O artigo traz ao debate o tema do patrimônio agroindustrial açucareiro, abordando-o a partir da análise de dados provenientes de dois inventários temáticos desenvolvidos na Superintendência Estadual do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Pernambuco (Iphan-PE): o Inventário do Patrimônio Ferroviário em Pernambuco e o Inventário de Varredura dos Bens Culturais Materiais relacionados ao Ciclo da Cana de Açúcar em Pernambuco.3 Identifica-se, neste estudo, o modo como as ferrovias em Pernambuco, na segunda metade do século XIX, se articularam operacional e espacialmente com os engenhos centrais e usinas de açúcar, como um complexo agroindustrial voltado à produção e ao transporte do açúcar, moldando a paisagem da Zona da Mata de Pernambuco. Pensar estas duas temáticas a partir da noção de patrimônio agroindustrial açucareiro traz novos desafios no que diz respeito à identificação, conhecimento e valoração do patrimônio cultural e de sua prática de preservação, levando ao questionamento de seus limites (conceituais, temáticos, tipológicos e cronológicos) e de suas fronteiras. Os inventários de conhecimento são – do modo como metodologicamente vêm sendo construídos dentro do Iphan – instrumentos que tornam fixas as fronteiras no campo da preservação do patrimônio cultural? Eles consolidam a divisão, já existente no âmbito da legislação de preservação cultural e institucional, entre o patrimônio material e imaterial? Eles

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Arquiteto do Iphan-PE. Mestre em Desenvolvimento Urbano (UFPE). Arquiteta do Iphan-PE. 3 Teve como foco a Região Metropolitana do Recife e a Zona da Mata de Pernambuco. 2

dificultam a afirmação de um olhar multidisciplinar sobre o bem cultural, impossibilitando uma declaração de significância mais complexa e totalizadora? Ainda hoje há uma grande dificuldade no Iphan de compreender o objeto destes dois inventários de maneira mais complexa e articulada. No primeiro caso, as ações de salvaguarda quase sempre valorizam a estação ferroviária (o fato arquitetônico) e em situações excepcionais o valor patrimonial é extensível ao pátio ferroviário (ou esplanada ferroviária). No segundo caso, durante décadas o olhar se voltou aos engenhos de açúcar, em particular no Nordeste os engenhos bangüês, exemplares arquitetônicos de um passado colonial. Sabe-se, contudo, que muito pouco restou deste patrimônio. E que a paisagem da Zona da Mata Pernambucana foi transformada a partir da segunda metade do século XIX por dois acontecimentos contemporâneos: o surgimento dos engenhos centrais e das usinas de açúcar e a implantação dos caminhos de ferro. Estes dois acontecimentos históricos transformaram não somente a fisionomia do território, mas principalmente as relações sócio-econômicas da região. Ao se recorrer nesta comunicação à noção de patrimônio agroindustrial está se buscando trabalhar com uma idéia mais complexa de patrimônio cultural que dê conta de todo nosso campo de pesquisa. Para isto, fez-se uso, inicialmente, da definição da Carta de Nizhny Tagil sobre o Patrimônio Industrial, julho 2003: O patrimônio industrial compreende os vestígios da cultura industrial que possuem valor histórico, tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Estes vestígios englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de processamento e de refinação, entrepostos e armazéns, centros de produção, transmissão e utilização de energia, meios de transporte e todas as suas estruturas e infra-estruturas, assim como os locais onde se desenvolveram atividades sociais relacionadas com a indústria, tais como habitações, locais de culto ou de educação4. A um relance imediato do texto, percebe-se que o conceito de patrimônio industrial ainda está restrito a uma dimensão material. Aquilo que é definido como patrimônio cultural imaterial, isto é, as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas5 não estão aí incorporados. Neste sentido, buscando estabelecer uma definição de patrimônio agroindustrial mais abrangente, afirmamos que este constitui os bens de natureza imaterial e material, relacionados à produção agroindustrial, que possuem valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, antropológico, etnológico, técnico e científico. Este patrimônio engloba representações e práticas culturais e os lugares em que elas se reproduzem, expressões culturais, conhecimentos e técnicas,

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Disponível em: http://www.mnactec.cat/ticcih/pdf/NTagilPortuguese.pdf, acesso em 18 de julho de 20011, às 14h40. Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Paris, 2003. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001325/132540por.pdf, acesso em 18 de julho de 2011, às 15h33. 5

bem como objetos, máquinas, edifícios e espaços relacionados à produção agroindustrial, além dos meios de transporte e sua infraestrutura e estrutura. Deste modo, falar do patrimônio agroindustrial açucareiro é tratar das formas de organização espacial e operacional dos engenhos centrais e usinas e sua articulação com os complexos ferroviários (estação e esplanada ou pátio ferroviário, armazéns, casa de telégrafo, casa do agente, restaurante, posto médico, escola, cine-teatro, rotunda, caixa d’água, tanque de óleo e inflamáveis, oficinas, vilas e clubes operários etc.). É importante observar, contudo, que estes espaços não têm valor cultural exclusivamente por suas qualidades estilísticas ou operacionais. Neles foram estabelecidas relações sociais (de trabalho, de cultura, de poder e controle social, entre outras) que deixaram marcas ao longo do tempo. Estes espaços e os seus suportes materiais são os lugares da memória e da identidade social forjadas a partir da produção da agroindústria açucareira. Sem desconhecer a amplitude do conceito de patrimônio agroindustrial e tomando ele como balizamento, em razão do próprio conteúdo dos dois inventários de conhecimento e da formação profissional dos autores desta comunicação, optou-se por se escolher a seguinte proposta de investigação e de pesquisa: a identificação do modo como as ferrovias – linhas, ramais, subramais e desvios particulares, a partir da segunda metade do século XIX, se articularam, operacional e espacialmente, com os engenhos centrais e usinas de açúcar, como um complexo agroindustrial voltado à produção e ao transporte do açúcar, moldando a paisagem da Zona da Mata de Pernambuco. Dela se fez um recorte para esta comunicação: a descrição e a análise da disposição espacial dos equipamentos e infraestrutura ferroviária nos complexos agroindustriais açucareiros no atendimento à demanda da produção e comercialização dos produtos derivados da cana-deaçúcar. A análise parte de dois estudos de caso, o da Usina Catende e o da Usina Pedrosa, localizadas na Zona da Mata de Pernambuco - às quais estão associadas, respectivamente, a implantação dos pátios ferroviários Catende e Ilha de Flores e suas estações. As duas usinas foram fundadas na última década do século XIX e criaram suas ferrovias ou desvios particulares articuladas à ferrovia tronco ou principal para o transporte da cana de açúcar à fábrica e do açúcar ao porto do Recife.

Ferrovias, engenhos centrais e usinas de açúcar em Pernambuco: síntese histórica

O processo de implantação dos caminhos de ferro em Pernambuco foi contemporâneo à fundação dos engenhos centrais e usinas de açúcar. Para determinação de seu traçado foram

predominantes os interesses políticos e econômicos, vinculados à produção do açúcar, em detrimentos dos técnicos, na maioria dos casos. O início deste processo se deu ainda em meados do século XIX com a concessão à construção e operação por 90 anos da linha Recife – Água Preta, aos engenheiros ingleses Edward e Alfred de Mornay6. Esta concessão deu origem à Recife and São Francisco Railway Co. Ltda., a segunda estrada de ferro construída no Brasil e a primeiro no Nordeste. A primeira seção desta linha foi a Cinco Pontas – Afogados – Boa Viagem – Prazeres – Ilha – Cabo, inaugurada em 1858, com 31,511 km. Seguiram-se a abertura da seção Ipojuca – Olinda – Escada, de 1860, com 26,160 km, da seção Limoeiro – Flecheiras – Aripibu – Ribeirão – Água Preta – Una (atual Palmares), de 1862, com 67,068 km. Estas seções da Recife and São Francisco Railway Co. Ltda. possuíam dormentes de madeira de lei e trilho de ferro ou de aço com bitola de 1,67 m. Outras duas linhas foram construídas em Pernambuco, partindo de Recife para o interior e para outros estados – a Estrada de Ferro do Recife – Limoeiro (iniciada em 1879) e a Estrada de Ferro Central de Pernambuco (iniciada em 1881). Foram abertos também o ramal Garanhuns (inaugurado em 1887), o ramal Cortês (provavelmente iniciado em 1890, foi adquirido pela Great Western em 1907), o ramal Barreiros (iniciado em 1912) e o ramal Nazaré (inaugurado em 1882). Além destas linhas e ramais foram construídos desvios ferroviários particulares, implantados em terras dos próprios engenhos ou usinas que serviam de transporte da cana de açúcar para a unidade de produção onde era processado o açúcar e de transporte deste para as linhas, ramais e estações ferroviárias. Estes desvios ou ramais particulares assim classificados de acordo com sua extensão eram financiados, tanto a construção como a manutenção, pelos proprietários dos engenhos centrais e das usinas de açúcar. Neles eram utilizados trilhos TR 25 e linha com menor bitola, com trens de menor capacidade de carga, tracionados por locomotivas, em plataformas denominadas “cambiteiras” que levavam a cana-de-açúcar da plantação até a unidade de produção e em vagões fechados até as linhas troncos ou principais. Daí havia o transporte de açúcar para os trens de maior tração de carga. MELLO (2000) afirma que, nas primeiras décadas do século XX, havia uma rede de desvios com aproximadamente 1.533 km em terras de 55 usinas. No início do século XX, iniciou-se o processo de unificação (de gestão e de bitolas) de todos os caminhos de ferro no Nordeste sob o domínio da Great Western of Brazil Railway. Nas décadas seguintes, a ferrovia se tornou o principal meio de transporte de carga e de passageiros em Pernambuco, alterando as relações sócio-econômicas no estado. A implantação da ferrovia, com seus pátios e edifícios ferroviários, transformou vilarejos, fazendas e engenhos de açúcar em 6

Decreto Imperial nº. 1.030, de 07 de agosto de 1852.

cidades e vilas, alterando a paisagem da Zona da Mata, do Agreste e do Sertão. Engenhos tornaram-se usinas. Em seu auge, a malha ferroviária em Pernambuco alcançou aproximadamente 1.400 km de linha7. Poucas décadas separam a implantação das ferrovias do surgimento dos engenhos centrais e das usinas de açúcar. Com a modernização da agroindústria açucareira em Pernambuco, os antigos engenhos bangüês que produziam açúcar mascavo, rapadura e aguardente, tornaram-se meros fornecedores da cana de açúcar para os engenhos centrais e usinas que adotaram modernas técnicas de produção, produzindo o açúcar cristal e álcool. Os engenhos bangüês ficaram em fogo morto. A sua decadência, segundo MELLO (2000), se acentuou a partir da década de 1930. Os engenhos centrais, implantados em Pernambuco a partir da década de 1880, foram em menos de duas décadas substituídos pelas usinas de açúcar. Com capital estrangeiro, majoritariamente inglês, os engenhos centrais eram fábricas modernas que exigiam, para sua instalação, elevados investimentos de capital e alta produtividade para o retorno deste capital. A curta duração desta experiência é decorrente, segundo PERRUCI (1978), MELLO (2000) e ANDRADE (2001), de problemas de abastecimento que afetaram a produção industrial do açúcar. Por determinação do Estado os engenhos centrais não podiam possuir terras, nem plantar cana de açúcar. O abastecimento da cana de açúcar empregada na produção dos engenhos centrais, que era produzida pelos engenhos bangüês, muitas vezes não era contínuo, o que prejudicava a produção. Com as usinas de açúcar houve uma maior presença do capital nacional na agroindústria açucareira. Estas, ao contrário dos engenhos centrais, possuíam terras e plantavam a cana de açúcar que era empregada na produção industrial. Para as usinas de açúcar convergiam a produção dos engenhos e aos poucos estes foram por elas absorvidos.

A organização espacial e operacional do complexo ferroviário com a usina de açúcar

O processo de produção industrial do açúcar e dos demais produtos derivados da cana de açúcar requereu o estabelecimento de uma organização espacial que atendesse a todo o ciclo produtivo: da plantação da matéria-prima a sua transformação industrial e a sua comercialização. Assim, o transporte da matéria-prima, a cana de açúcar, da plantação para a usina, e o transporte do produto final, o açúcar, o álcool ou outros produtos derivados, para o mercado consumidor, é uma etapa indissociável deste processo. Por este motivo, a análise da organização espacial da produção do açúcar implica o exame da forma de implantação dos edifícios associados à 7

Segundo a Revista do Instituto Archeologico, Historico e Geographico Pernambucano, vol. XXIV, jan - dez 1922, em 1922 as linhas da Great Western, que ligavam a cidade do Recife ao interior do estado, a Maceió, a João Pessoa e a Natal, possuíam a extensão total de 890 km em Pernambuco, enquanto as ferrovias particulares das usinas de açúcar alcançavam 1.163 km. Apud GIESBRECHT (s.d.).

produção industrial em si (oficinas, fábricas, armazéns etc.), da maquinaria, dos meios de transporte e sua estrutura e infraestrutura (estações e pátios ou esplanadas ferroviárias, armazéns etc.), além dos lugares e edifícios onde se desenvolvem as atividades sócio-culturais relacionadas à agroindústria açucareira, como vilas operárias, cinemas, locais de culto e de educação, entre outros. Há, assim, uma relação de complementação de funções e operações entre a usina de açúcar e a ferrovia. Este estudo, foca particularmente a descrição e análise da relação espacial e operacional do pátio ferroviário com a usina. A finalidade do pátio ferroviário era atender a uma demanda de transporte de carga e de passageiros. Nele estão presentes as edificações e os equipamentos operacionais e não operacionais que configuram o conjunto ferroviário: 1. a estação; 2. o armazém (que podia ser conjugado ou não ao prédio da estação); 3. as vilas e os clubes ferroviários; 4. a casa do agente; 5. a caixa-d’água; 6. tanque de óleo e inflamáveis; 7. a oficina de reparo de material rodante – de vagões de carga ou de carros de passageiros (que de acordo com a tipologia é chamada em alguns casos de “dique” ou “diqui”, espaço de manutenção das locomotivas e dos vagões). A implantação destas edificações no pátio ferroviário segue uma lógica operacional em que os serviços necessários à operação do trem se localizam sempre em áreas planas, enquanto que os outros serviços se dispunham em outras situações. No caso em que o pátio ferroviário era de topografia acidentada, as casas de moradia dos funcionários da ferrovia se localizavam na parte mais alta do terreno. O estudo, como foi indicado, se fundamenta em dois casos: a Usina Catende e a Usina Pedrosa e seus complexos ferroviários.

A Usina Pedrosa e o Complexo Ferroviário Ilha de Flores

Localizada a 7 km da cidade de Cortês, a Usina Pedrosa foi fundada em 1892, por capital nacional, nas terras do antigo Engenho Ilha de Flores. Sua produção era escoada por desvio particular que ligava a usina, por 3 km, à Estrada de Ferro Ribeirão – Bonito, construída provavelmente no final do século XIX. Este ramal, que nunca chegou a Bonito, possuía um percurso de 28,657 km de extensão, ligando a estação terminal em Cortês com a linha tronco – Estrada de Ferro do Recife ao São Francisco8. Em 1918, segundo MOURA (1998), a Usina Pedrosa incorporou os engenhos Riachão, Flor da Ilha e Tigre. Neste mesmo ano, a usina adquiriu duas locomotivas, bem como os desvios particulares para Flor da Ilha e Tigre. Artigo da publicação Ilustração Brasileira, indica que, em

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Com a aquisição da Estrada de Ferro Ribeirão – Bonito pela Great Western ela passou a ser denominada de Ramal Cortês. Este ramal foi fechado ao tráfego em 1968, sendo, no ano seguinte, alienados todos os seus trilhos.

1924, a usina possuía estrada de ferro própria com 60 quilômetros de extensão, ligada à linha da Great Western9. Na década de 1960, mesmo período em que o ramal foi fechado, foi demolido quase todo o antigo prédio da fábrica e construído um novo, sendo substituída sua maquinaria – caldeiras e moendas – por novas. Nesta época foi também construída uma destilaria de álcool e silos. Nas terras da Usina Pedrosa foi construído o complexo ferroviário Ilha de Flores. O prédio da estação ferroviária Ilha de Flores possui planta retangular em pavimento térreo, com uma área construída de 230,90 m2. Ele segue a tipologia das estações ferroviárias classificadas, no inventário do Iphan, como Tipo 02, isto é, uma estação de médio porte que apresenta um programa básico (armazém, sala de espera, sala do agente e bilheteria), em estilo eclético, com variações no número de pavimentos, na coberta sobre a plataforma de embarque e desembarque, no prolongamento dos beirais, nas mãos-francesas e na existência da platibanda. De uma forma geral, as estações ferroviárias seguiam um programa básico, que privilegiava usos mínimos, sem o cruzamento dos fluxos de embarque e desembarque de passageiros, expedição ou recepção de bagagens e mercadorias, entrada e saída de funcionários etc. No armazém eram estocadas as mercadorias a ser embarcada e desembarcada, sendo, neste caso, o açúcar produzido pela usina o principal produto de embarque.

Além do prédio da estação existem ainda no complexo ferroviário Ilha de Flores a residência do agente e dois prédios isolados – o WC (do público e da residência) e o depósito de inflamáveis. Atualmente, não se encontra mais a caixa-d’água, equipamento ferroviário que fazia o abastecimento da locomotiva com água que junto com a madeira colocada na fornalha da locomotiva geravam o vapor.

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Há, porém, controvérsia a respeito destes dados. GASPAR (2009b) indica que, no ano de 1929, a Usina Pedrosa possuía uma via férrea de 34 quilômetros, cinco locomotivas e 110 carros e vagões.

Imagem 01. O complexo ferroviário Ilha de Flores: pátio e estação. Fonte: FIAM (1983).

O complexo ferroviário Ilha de Flores foi implantado em terreno com topografia levemente acidentada, próximo à Usina Pedrosa. Provavelmente, o pátio do complexo era composto pela linha principal e por desvios que permitiam a formação de trens, isto é, que fossem atrelados às locomotivas os vagões carregados e desatrelados os vagões vazios para carregamento do açúcar. Próximos ao complexo ferroviário foram construídos diversos edifícios de propriedade da Usina Pedrosa, como o cine-teatro Pedrosa, o edifício do centro recreativo, um armazém de estocagem – de planta retangular paralela à linha férrea – e uma vila operária com cerca de 100 casas geminadas – a “rua”. Esta vila operária possui uma tipologia padrão de habitações coletivas das usinas do início do século XX. No início da década de 1980, de acordo com o inventário da FIAM (1983), as casas da “rua” eram de alvenaria de tijolos, com cobertura de telha cerâmica canal em duas águas, com cumeeiras paralelas à fachada principal e beirais ocultos por platibandas.

A Usina Catende e o Complexo Ferroviário Catende

A usina foi fundada em 1890, em terras do antigo Engenho Catende, sob o nome de Usina Correia da Silva. Este nome, entretanto, não se consagrou passando em 1892 a ser chamada de Usina Catende. Ela se situava a poucos metros da sede do Distrito Catende, criado neste ano, à época pertencente ao Município de Palmares. O inglês Carlos Sinden e seu sogro Felipe Paes de Oliveira foram os primeiros proprietários da usina. Nas décadas seguintes ela teve diversos proprietários. Ao longo dos anos a usina

aumentou continuamente sua capacidade de moagem de cana, ampliando a área de plantação pela aquisição de dezenas de engenhos. A partir da década de 1930, ela era uma das maiores usinas do Estado de Pernambuco10. O escoamento da produção açucareira da Usina Catende era feito por meio de trem, pela Estrada de Ferro do Recife ao São Francisco. A usina possuía também uma extensa via férrea particular com bitola de 60 cm11. Um dos desvios particulares da usina se conectava à linha da Great Western, facilitando o transbordo do açúcar ensacado para os vagões da empresa e daí para o porto do Recife. O complexo ferroviário Catende foi inaugurado, de acordo com Pinto (1949), em 1882, nas imediações do arruado que deu origem ao Distrito Catende, estando, portanto, próximo à futura usina. O pátio ferroviário era composto pela linha principal e por desvios, além do prédio da estação, do armazém e da casa do agente. Estes imóveis foram implantados seguindo o alinhamento da linha férrea, estando os mesmos posicionados frente a frente. Provavelmente, a usina foi localizada próxima ao complexo ferroviário como forma de maximizar o embarque do açúcar e de seus derivados.

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Em 1929, a Usina Catende já possuía 43 propriedades agrícolas (GASPAR, 2009b). ANDRADE (1989) afirma que a usina possuía 125 km de via férrea em 1914 e 140 km em 1929, além de 11 locomotivas e 266 vagões. O Anuário dos Diários Associados de 1931, na sua página 200, indicava que em 1931, ela possuía 150 km de via férrea, além de 13 locomotivas. Apud GIESBRECHT (2007). 11

Imagem 02. O complexo ferroviário Catende – pátio e estação. Fonte: FIAM (1983).

O prédio da Estação Catende, térreo, foi construído em planta retangular, com o seguinte programa: armazém/bagagem, sala do agente, sala do telégrafo, salas de espera de 1ª. e de 2ª. classe. Ele possui coberta em duas águas em telha cerâmica canal, com estrutura em tesouras de madeira, que se prolonga no sentido das fachadas longitudinais formando amplos beirais. O armazém também possui planta retangular com telhado em telha canal em duas águas. A casa do agente está conjugada à empena dos fundos do armazém, constituindo com ele um bloco único, numa solução inédita até então (Iphan, 2009).

Tipos de organização espacial e operacional

Nestes dois estudos de caso foram identificados dois tipos de organização espacial e operacional dos complexos ferroviários. Na Usina Pedrosa, os elementos formadores do pátio (linhas, desvios, estações, armazéns, casas de moradia, caixas d’água, sinalização, obras de arte etc.) foram implantados dentro das terras da usina, e quase que exclusivamente atendiam à demanda dela própria. Na Usina Catende, os pátios ferroviários e todos os seus elementos formadores se implantavam próximo a ela, mas atendiam também a outras usinas das imediações e a população do distrito.

Percebe-se, em ambos os casos, que as usinas de açúcar se localizaram próximas à linha férrea da Great Western para se aproveitar da facilidade de escoamento da produção do açúcar. Em Pernambuco, a usina, como unidade de produção, raramente se caracterizou como um elemento de arquitetura isolada. Ela funcionava com um conjunto de outros edifícios que davam suporte à produção do açúcar e dos seus derivados, como as vilas operárias. E foi sempre freqüente a presença do complexo ferroviário, em suas dependências (no caso da Usina Pedrosa) ou em sua proximidade (no caso da Usina Catende). Estudos de mais casos poderão ajudar a confirmar esta afirmação.

Considerações Finais

Trabalhar a temática dos inventários realizados em Pernambuco - o Inventário do Patrimônio Ferroviário em Pernambuco e o Inventário de Varredura dos Bens Culturais Materiais relacionados ao Ciclo da Cana de Açúcar em Pernambuco –, sob o ponto de vista da noção de patrimônio agroindustrial, nos leva a questionar e tentar superar antigas fronteiras da preservação cultural. Até hoje a ação de salvaguarda nestes campos temáticos esteve centrada no tombamento da estação ferroviária e do engenho bangüê (casa-grande, capela, moita e senzala), enquanto expressões de um valor de excepcionalidade estética e histórica, e na preservação de sua integridade estilística. Cronologicamente há uma definição bastante clara dos dois objetos: o engenho banguê refere-se a uma arquitetura colonial e no máximo a algumas expressões tardias do início do século XIX; a estação ferroviária é uma expressão moderna que se remete no tempo ao final do século XIX e ao século XX. Dois bens culturais com limites cronológicos bem determinados, que não se tocam e não se ligam. O emprego da noção de patrimônio agroindustrial nos leva a outro olhar, em que a produção (usina) e o transporte do açúcar (complexo ferroviário) são percebidos de modo espacial e operacionalmente articulados. Apesar dos dois inventários terem sido realizados sem relação de comunicação, percebe-se, que o emprego da noção de patrimônio agroindustrial, aproxima os seus conteúdos, permitindo novas leituras dos bens culturais e de seus valores. Novas leituras que inclusive incorporem a dimensão imaterial do patrimônio, isto é, as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas. Em suma, este artigo, a partir de suas reflexões, pretende trazer novas perspectivas sobre o campo do patrimônio: o conceito, sua forma de valoração e suas práticas de preservação.

Referências

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