Patrimônio cultural e ambiental: questões legais e conceituais

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FUNARI, P. P. A. (Org.) ; PELEGRINI, S. (Org.) ; RAMBELLI, G. (Org.) . Patrimônio cultural e ambiental: questões legais e conceituais. São Paulo: Annablume, 2009. v. 1. 246p .

Pedro Paulo A. Funari Sandra Pelegrini Gilson Rambelli (organizadores)

Patrimônio Cultural e Ambiental: questões legais e conceituais.

2008

Patrimônio Cultural e Ambiental: questões legais e conceituais.

2008

Dedicamos essas reflexões aos nossos filhos – geração futura – que vêm somar forças conosco na luta pelo respeito à diversidade cultural!

E também para todos que partilham a preocupação com a defesa do patrimônio cultural da humanidade e se empenham na proposição de políticas de proteção dos bens culturais materiais e imateriais das mais diversas culturas e povos.

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

PARTE I - A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO. OS BENS CULTURAIS MATERIAIS DOS POVOS INDÍGENAS: A REPATRIAÇÃO E A LEI DOMÉSTICA - Robert K. Paterson. O PATRIMÔNIO EM CUBA E NO BRASIL - Lourdes Domínguez e Pedro Paulo Funari. A IMPORTÂNCIA DO ANEXO DA CONVENÇÃO DA UNESCO SOBRE A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL SUBAQUÁTICO PARA A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO ARQUEOLÓGICO - Pilar Luna Erreguerena. PATRIMÔNIO CULTURAL SUBAQUÁTICO NO BRASIL: DISCREPÂNCIAS CONCEITUAIS, INCONGRUÊNCIA LEGAL - Gilson Rambelli. PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO, PÓS-COLONIALISMO E LEIS DE REPATRIAÇÃO - Lúcio Menezes Ferreira.

PARTE II – A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL.

A SALVAGUARDA E A SUSTENTABILIDADE DO PATRIMÔNIO IMATERIAL BRASILEIRO: IMPASSES E JURISPRUDÊNCIAS – Sandra C. A. Pelegrini. USOS LEGAIS DO PATRIMÔNIO: AS CARTAS INTERNACIONAIS E AS LEGISLAÇÕES NACIONAIS - Suzanna Sampaio. A UNESCO E O BRASIL: TRAJETÓRIA DE CONVERGÊNCIAS NA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL - Jurema Machado. O PREÂMBULO DA CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA: ORIGENS E HERANÇAS. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES EM TORNO DAS REIVINDICAÇÕES IDENTITÁRIAS - Glaydson J. da Silva

PARTE III – O ESTATUTO JURÍDICO E A PROTEÇÃO AOS BENS NATURAIS O PATRIMÔNIO NATURAL NO BRASIL - Carlos Fernando de Moura Delphim. “MINHA TERRA TEM PALMEIRAS”: PAISAGEM, PATRIMÔNIO E IDENTIDADE NACIONAL - Gilmar Arruda.

AS NORMATIVAS REFERENTES AO MEIO AMBIENTE E OS CAMPOS DE AÇÃO DA ARQUEOLOGIA - Aline Vieira de Carvalho. O PATRIMÔNIO NATURAL SOB PROTEÇÃO. A CONSTRUÇÃO DE UM ORDENAMENTO JURÍDICO - Wagner Costa Ribeiro e Silvia Helena Zanirato.

SOBRE OS AUTORES.

INTRODUÇÃO

O mundo passou por mudanças notáveis, nas últimas décadas. Desde o final do século XVIII, o passado foi erigido como patrimônio a partir do nascente conceito de estado nacional, fundado na homogeneidade. O patrimônio ligava-se à noção de compartilhamento de uma origem, um território e uma cultura. O século XX viria a alterar este quadro, com a introdução dos movimentos sociais e sua dissolução dos desgastados preceitos que não davam conta da diversidade social. Os modelos normativos de interpretação das sociedades foram, neste contexto, criticados, em benefício da valorização da diversidade humana e natural. Este volume insere-se nestas inquietações. A par da descoberta de novas centralidades e da expansão da noção de patrimônio, superamos os enfoques que reconheciam o patrimônio apenas no âmbito histórico, circunscrito a recortes cronológicos arbitrários, permeados por episódios militares e personagens emblemáticos. Assim, paulatinamente, passamos a contemplar as dimensões testemunhais dos bens culturais e a perceber sua ascendência sobre as identidades individuais e coletivas. Sob essa ótica, o patrimônio passou a ser reconhecido no âmbito das construções sócio-históricas culturalmente engendradas – pressupostos que ratificaram a ampliação das iniciativas legais, antes restritas apenas à proteção dos bens relacionados aos interesses dos segmentos sociais dominantes quase sempre circunscritos à preservação de prédios públicos e religiosos. Esse novo leque de possibilidades viabilizou a proteção de edificações inseridas nas atividades do cotidiano das populações como mercados públicos, terreiros de candomblé ou estações de trem, entre outros, incluindo-se também nesse rol as produções contemporâneas e bens culturais de natureza intangível, como expressões, conhecimentos, práticas, representações e ofícios tradicionais. Tal proposição acabou por valorizar a noção de conjunto de sítios mistos que envolvem os bens naturais, históricoculturais e arqueológicos, bem como a superação de visões fragmentadas e autônomas do patrimônio. A despeito dessa forma de abordagem, continuam revelvantes as ponderações do consultor da Unesco Hugues de Varine Boham, prolatadas na década de 1970, ao assinalar que o patrimônio se apresenta dividido em três grandes grupos. O primeiro deles refere-se ao meio ambiente. O segundo engloba a produção intelectual humana armazenada ao longo da história. O último agrega os bens culturais resultantes do processo de sobrevivência humana. Por essa via, são reconhecidos três tipos de sítios patrimoniais: os naturais, os culturais e os mistos. Os sítios naturais são constituídos por

formações físicas, biológicas ou geológicas excepcionais, habitats animais, vegetações e áreas científicas, históricas ou esteticamente valorizadas. Os sítios culturais englobam bens materiais e imateriais referentes às identidades, às ações e às memórias dos diferentes grupos da sociedade humana, manifestos através de distintas formas de expressão; criações científicas, artísticas e tecnológicas; objetos, documentos, edificações, paisagens culturais, conjuntos urbanos, sítios históricos, e arqueológicos de superfície ou subaquáticos. Os sítios mistos reúnem tanto os elementos naturais como os culturais. São inegáveis os avanços conceituais e metodológicos no campo da proteção aos bens patrimoniais alcançados no decorrer do século XX, ainda assim, inúmeros exemplares da cultura material e imaterial, da paisagem natural e cultural continuam sendo ameaçados por falhas nas estratégias de proteção e problemas que se agravam em função das dificuldades de fiscalização e da lentidão na tomada de decisões por parte das instâncias decisórias do poder constituído. Não raro, verdadeiros monumentos com inscrições e pinturas rupestres, testemunhos de diferentes sociedades pretéritas, são destruídos pela ação implacável do tempo, pela ambição desmedida de empresas de capital público e privado, e também, pelo incauto comportamento de turistas que deixam suas marcas por onde passam. A carência de prospecções prévias sobre o impacto arqueológico, ambiental e histórico de empreendimentos imobiliários ou extrativistas, somado a falta de informação por parte das populações residentes em áreas próximas dos sítios, também representam ameaças à conservação do meio circundante e da cultura material e imaterial. Diante da urgência da proteção dos bens patrimoniais da humanidade constatamos a imperiosa necessidade de propor uma análise introdutória às questões atinentes as esferas do Direito no âmbito do patrimônio cultural, arqueológico e ambiental. Desse modo, o objetivo do livro “Patrimônio Cultural e Ambiental: questões legais e conceituais” centra-se numa abordagem direta e inteligível sobre os impasses conceituais e jurídicos que envolvem os bens patrimoniais. Com o intuito de alcançar um público mais amplo, não restrito aos especialistas, ambicionamos introduzir o leitor num universo ainda pouco conhecido em nosso meio, mas cuja temática é extremamente atual. O leitor encontrará nesse volume, tanto as definições cruciais sobre cultura material e imaterial, como as referências essenciais às discussões contemporâneas sobre as temáticas da arqueologia pública e do ambiente relevantes em tempos de globalização econômica e de aquecimento global – fenômenos que, de uma forma ou de outra, ameaçam o equilíbrio do planeta, o patrimônio cultural e as múltiplas identidades da nossa civilização.

Entendemos que o equacionamento de diversos saberes como os da História, do Direito, da Antropologia, da Arqueologia, da Geografia e da Ecologia nos possibilitaram explicitar as articulações entre os bens culturais e naturais das mais distintas comunidades, suas histórias, memórias, identidades e os meios dessa população se relacionar com o ambiente e com a paisagem cultural. Esse propósito não deixa dúvidas sobre a importância de enfrentarmos as questões supracitadas e se coloca como prerrogativa para o desenvolvimento de debates sobre a construção de discursos plurais, capazes de reconhecer o imperioso empenho no sentido de fomentarmos o respeito à natureza, à diversidade e às diferenças culturais. Logo, com o propósito de suscitarmos reflexões críticas sobre o fenômeno da patrimonização e as questões do ambiente estruturamos o presente volume em três grandes blocos. No primeiro deles, nos ocupamos da proteção à cultura material dos povos indígenas, das questões que envolvem os sítios arqueológicos e do patrimônio cultural subaquático, bem como da institucionalização da cultura material com fins políticos e empresariais. No segundo, tratamos das normativas internacionais e da legislação brasileira referente ao patrimônio cultural, avaliando de que maneira as políticas preservacionistas têm garantido a proteção e a sustentabilidade do patrimônio cultural. Por último, analisamos o estatuto jurídico relativo à proteção das reservas da bioesfera e ao manejo de parques ecológicos e sítios que apresentam vestígios da cultura material, a conceituação de distintas paisagens (naturais, culturais e arqueológicas) e o processo de tombamento dos bens naturais brasileiros. Para tanto, contamos com a colaboração de experientes profissionais que têm se dedicado à proteção dos nossos bens patrimoniais. Assim, cumpre-nos destacar a aquilatada colaboração de Robert K. Paterson - professor da Faculdade de Direito, da University of British Columbia (Vancouver, Canadá); de Lourdes Domínguez, da Oficina do Historiador (Havana – Cuba) e Pilar Luna Erreguerena – do Instituto Nacional de Antropologia e História (México). Devemos salientar o desprendimento de Carlos Fernando de Moura Delphim, profissional que atua no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS); Jurema Machado, coordenadora de Cultura da sede da Unesco em Brasília; Suzanna Sampaio, advogada especialista em Criminologia e Direito Penal pela USP, conselheira do IPHAN e Presidente de Honra do ICOMOS/BRASIL desde 2002. Não obstante, igualmente valiosas, foram as contribuições dos colegas que atuam como docentes e pesquisadores em diversas instituições do ensino superior no Brasil, como Aline Vieira de Carvalho, Lúcio Menezes Ferreira, Glaydson José da Silva, Gilmar Arruda e Wagner Costa Ribeiro.

O caráter introdutório do presente volume nos impeliu ao trato de conceitos essenciais que regem as normativas internacionais sintetizadas em documentos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), do Conselho Nacional dos Recursos Hídricos (CNRH), do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), entre outros. Além disso, procurarmos, na medida do possível, analisar a trajetória da legislação brasileira nessas esferas. Por fim, almejamos suscitar o interesse pelo patrimônio cultural e natural nas suas mais distintas dimensões. Em tempos de globalização torna-se fundamental difundir o conhecimento plural sobre os conceitos, as normativas, as convenções internacionais e as legislações, de modo a viabilizar iniciativas no sentido da preservação das tradições e dos saberes populares, da cultura material e imaterial, do patrimônio arqueológico e ambiental. Pelo acesso à informação, multiplicamos as ações em defesa desses patrimônios da humanidade e nos tornamos capazes de revisitar antigas práticas (cujo fundamento reside em visões etnocentristas) e de nos opormos às pressões que tendem a destruir a riqueza da diversidade cultural da humanidade.

Sandra C. A. Pelegrini Pedro Paulo A Funari Gilson Rambelli

PARTE I A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO.

OS BENS CULTURAIS MATERIAIS DOS POVOS INDÍGENAS: A REPATRIAÇÃO E A LEI DOMÉSTICA.1

Robert K. Paterson

O destino da cultura material dos povos indígenas evoca dois diferentes cenários. Museus ocidentais e galerias de arte contêm vastas coleções de material etnográfico indígena expatriado, bem como de outros materiais, majoritariamente coletados no exterior durante o período colonial. Em muitos países, as populações indígenas apenas podem ter acesso às evidencias materiais de seu passado cultural ao visitar tais instituições. Em ambas as situações, os representantes indígenas têm buscado um maior acesso a estas coleções e, algumas vezes, têm reivindicado a posse dos objetos que elas contêm. Estes fenômenos serão analisados aqui de forma comparativa com o objetivo de se avaliar abordagens divergentes.

O Significado de “Povos Indígenas” O atual interesse dos advogados pelo patrimônio cultural dos povos indígenas não tem precedente. Este desenvolvimento tem coincidido com um número maior de esforços para se definir o que se considera como sendo um povo indígena (SANDERS, 1999). Enquanto está claro que um povo indígena pode constituir uma minoria da população de um país, nem todas as minorias são necessariamente indígenas (como os Afro-descendentes nos Estados Unidos). Apesar de um certo nível de consenso, ainda não há uma definição estabelecida do que venha a ser um povo indígena. O propósito de se buscar o status de um grupo indígena é geralmente o de se afirmar direitos coletivos, e não individuais. Algumas definições se focalizam no apego à terra e na vulnerabilidade, enquanto outras olham para a descendência histórica da população mais antiga. Os Aborígines da Austrália e os Maori da Nova Zelândia têm sido aceitos como minorias indígenas, e os países nórdicos tem

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Este artigo apareceu originalmente como Robert K. Paterson, “Claiming Possession of the Material Cultural Property of Indigenous Peoples” (2001) 16 Connecticut Journal of International Law, 238. Àqueles que desejarem citar este artigo deverão usar a referência do Connecticut Journal of International Law como a fonte original. O autor é grato aos editores do Connecticut Journal of International Law pela permissão de republicar o artigo neste volume.

aceitado os Saami como indígenas. Em outras partes, alguns governos (como a China e a Índia) declararam que suas populações “tribais” não são populações indígenas.2

O Significado de “Patrimônio Cultural” Ao mesmo tempo em que tem emergido o interesse por se definir o que se entende por grupos indígenas, tem havido mudanças no que se considera ser o significado do patrimônio cultural em relação a estes povos. Isto tem sido particularmente evidente desde que os membros vivos de tais grupos têm buscado um maior controle de e um maior envolvimento com suas próprias culturas. Em relação aos povos indígenas, a Sra. Erica-Irene Daes, Presidente do Grupo de Trabalho em Populações Indígenas, descreveu o patrimônio como:

“Patrimônio” é tudo o que pertence à identidade própria de um povo e que é deles para compartilharem, se quiserem, com outros povos. Ele inclui todas aquelas coisas as quais o direito internacional contemporâneo considera como sendo o resultado da produção criativa do pensamento e da capacidade manual do ser humano, tais como canções, musica, danças, literatura, obras de arte, pesquisa científica e conhecimento. Ele também inclui as heranças do passado e da natureza, como os vestígios humanos, as características naturais da paisagem e espécies de plantas e animais que surgem naturalmente e com as quais um povo esteve desde muito tempo conectado.3

Enquanto os sistemas legais ocidentais tendem a considerar o patrimônio dentro dos termos dos direitos de propriedade e como uma categoria distinta, aparte de outros aspectos da sociedade, os povos indígenas geralmente vêem o patrimônio como um direito que é comunal e que se encontra interconectado dentro da sociedade como um todo. Esta percepção tem produzido desafios para os advogados de todas as partes que buscam modos de proteger o patrimônio indígena dentro de estruturas legais pré-existentes.4

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O Professor Sanders definiu os povos indígenas como “uma coletividade que descende da mais antiga população sobrevivente na parte do Estado onde o povo tradicionalmente viveu (seja ainda vivendo nesta área ou, como resultado de re-alocação involuntária, em outra parte do Estado) e a qual tem uma identidade própria associada com sua história”, id, na p. 9. 3 Cf. E-I Daes, “Protection of the Heritage of Indigenous People”, UN Office of the High Commissioner for Human Rights, Geneva (1997), prefácio na página iii. Esta definição claramente se estende para cobrir tanto os bens culturais tangíveis (móveis) quanto os intangíveis (imóveis). O presente artigo irá se concentrar no primeiro tipo. Para uma discussão sobre a diferença entre os termos “bem cultural” e “patrimônio cultural” (PROTT & O’KEEFE, 1992). 4 Este tem sido um desafio particular no caso do patrimônio cultural intangível dos povos indígenas. Cf. "Intellectual Property Needs and Expectations of Traditional Knowledge Holders", World Intellectual Property Organization (WIPO)

As Categorias de Culturas Indígenas Para os propósitos desta discussão sobre questões de propriedade e proteção do patrimônio cultural indígena, duas situações distintas serão discutidas separadamente.

A primeira compreende

instâncias onde as culturas indígenas constituem uma minoria reconhecível em um país particular. Este é o caso em países como a Austrália, o Canadá, os Estados Unidos, a Nova Zelândia, a Indonésia, a Índia, a China e a Federação Russa. Em outro grupo de países, muitos dos quais alcançaram a independência na última metade do século XX, as culturas indígenas podem constituir toda ou uma proporção significativa da população total de um dado país. Esta é a situação em muitos estados na Oceania, na África, no Oriente Médio e em partes da Ásia; países como a Samoa Ocidental, Vanuatu, Fiji, Nigéria, Uganda, Turquia, Tailândia e Birmânia podem ser incluídos nesta categoria.

A Repatriação de Bens Culturais Transnacionais Muitos países que foram ex-colônias dos poderes europeus são países em desenvolvimento e é freqüentemente uma característica de sua história que uma quantidade significativa de sua cultura material (incluindo os vestígios humanos) tenha sido tomada de seus territórios durante o período colonial. Este material é agora freqüentemente encontrado em museus estabelecidos e em coleções particulares na Europa, nos Estados Unidos e noutras partes (BARRINGER & FLYNN, 1998). Os bens culturais foram tomados em vastas quantidades, primeiramente por missionários, soldados e exploradores e depois por antropólogos, etnólogos e oficiais do governo. Este movimento enorme de bens culturais freqüentemente se pareceu com aquele que ocorreu entre as nações em guerra na Europa e noutras partes. Tais perdas ainda estão ocorrendo hoje devido à habilidade limitada de muitos destes países em proteger seus sítios culturais e em aprovar leis locais voltadas para o patrimônio cultural (LEYTEN, 1993). Em um país como a Nigéria, por exemplo, grandes quantidades de material cultural indígena foram removidas em tempos coloniais e podem agora ser vistas na Europa, na América do Norte e alhures (GREENFIELD, 1989, p. 141-148). Estes objetos, por causa de sua idade e qualidade artística, Draft Report on Fact-finding Missions on Intellectual Property and Traditional Knowledge (1998-1999). Visto em 3 de Julho de 2000. Disponível em: http://www.wipo.org/traditionalknowledge/report/contents.html .

freqüentemente recebem altos preços quando estão disponíveis para compra no mercado aberto. As prioridades do desenvolvimento e outras forças podem impedir a repatriação por compra. Ainda que coleções de museus locais devam existir, estas devem estar ameaçadas pela falta de recursos para se contratar curadores e conservadores habilidosos, assim como pela inabilidade para se comprar novos objetos (SHYLLON, 2000). Deve haver ainda sítios arcaicos e de outros tipos neste grupo de países que estão ameaçados por escavações não autorizadas e pela remoção dos artefatos culturais. A redescoberta de tais sítios ainda continua a ocorrer hoje em dia. Um bom exemplo é a bem conhecida situação dos sítios arqueológicos em Mali.5 A coincidência de secas severas e da piora nas condições de vida neste país, junto a uma crescente consciência e interesse pela arte Mali da parte de colecionadores ocidentais, tem produzido uma situação crítica ao longo das últimas duas décadas. Tanto o saque casual quanto o organizado tem causado a degradação da superfície e a perda de dados valiosos sobre a origem e a idade dos objetos saqueados. O governo de Mali tem respondido a estas atividades de forma concreta ao aprovar leis sobre a escavação, comércio e exportação de artefatos culturais, assim como por se tornar um signatário à Convenção de 1970 da Unesco sobre os Meios de se Proibir e Prevenir a Importação, Exportação e Transferência Ilícita da Propriedade dos Bens Culturais.6 Em 1993, o governo dos Estados Unidos garantiu a aprovação de uma lei restringindo a importação de bens culturais vindos de Mali.7 Existe um conjunto de barreiras aos esforços feitos pelos países desta categoria que desejam recuperar os objetos levados ao exterior – talvez há dois séculos atrás. Em muitos casos a localização dos objetos em coleções estrangeiras é desconhecida. Esta situação é formada quando os diretores e a equipe de funcionários de instituições estrangeiras podem não estar eles mesmos cônscios sobre o que possuem. Um alto nível de ambigüidade e de falta de informação freqüentemente cerca a aquisição original de material histórico cultural. A natureza singular e complexa dos primeiros contatos entre as culturas indígenas e as culturas imperiais européias faz com que estes eventos sejam difíceis de se interpretar em termos contemporâneos. Deverão ter sido sem dúvida casos de roubo e pilhagem completos neste contexto, mas outras situações documentadas tais como de dádivas, trocas e outros modos de comércio sugerem que títulos legítimos de propriedade podem ter sido conferidos para o material cultural em muitas instâncias. 5

Cf. 28 African Arts (1995), (Edição Especial intitulada “Protecting Mali’s Cultural Heritage). 828 UNTS 231 (No. 11806). 7 Cf. 58 Federal Register, 23 de Setembro de 1993, No. 183, p. 49428, na p. 49430. Para uma lista completa dos acordos bilaterais dos Estados Unidos sobre bens culturais, cf.: http://www.exchanges.state.gov/culprop/chart.html. 6

Outra incerteza diz respeito à qual lei ou quais leis devem ser aplicadas? Mesmo se se considera que a posse atual de um objeto não corresponde um título legítimo de propriedade, uma reivindicação para a restituição do objeto (replevin) ou para a sua recuperação (conversion) pode ser negada sob estatutos restritivos (BIBAS, 1996). Este problema se parece com aquele que surgiu em um número de casos americanos envolvendo obras de arte roubadas durante a Segunda Guerra Mundial (PATERSON, 1999). Em alguns destes casos julgou-se que o estatuto restritivo deveria funcionar apenas a partir do momento em que o paradeiro dos bens roubados tivesse sido determinado pelo seu dono original. Um tipo de teste de equilíbrio tem sido usado às vezes para se calcular o grau de consciência relativa dos dois lados em uma disputa, quando são conduzidas investigações para se descobrir o paradeiro de um objeto (no caso da vitima de um roubo) ou por causa do fato de ele ter sido furtado (no caso de um comprador bona fide).8 Este é um exercício suficientemente especulativo no caso de obras de arte perdidas há 50 ou 75 anos atrás, mas ele pode não ser realista em relação aos eventos passados há um século ou mais. Outra abordagem tem sido em declarar que a limitação de períodos não deve ser nunca utilizada, com base em políticas públicas, no caso das reivindicações feitas por povos indígenas.9 Enquanto certos acordos multilaterais têm definido direitos de recuperação em relação aos bens culturais roubados e ilegalmente exportados, estes acordos não operam retroativamente e, portanto, não podem ser usados em relação à tomada de bens culturais durante os períodos coloniais (SIDORSKY, 1996). Assim, o Artigo 7 da Convenção de 1970 da Unesco declara que a proibição sobre a importação de bens culturais roubados apenas se aplica às importações ocorridas depois da entrada em vigor da Convenção, em relação tanto ao país de exportação (estado origem) quanto ao país de importação (estado mercado). Em um caso, entretanto, uma estratégia jurídica engenhosa conseguiu de fato realizar uma rara repatriação internacional. Quando uma cabeça tatuada Maori (toi moko) foi consignada para um leilão em Londres, o presidente do Conselho Maori Neozelandês buscou por cartas de administração da Alta Corte da Nova Zelândia em relação à venda do defunto. A Corte da Nova Zelândia foi empática sobre o pedido a ela administrado:

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Cf. Autocephalous Greek-Orthodox Church of Cyprus v. Goldberg Feldman Fine Arts, Inc. 917 F. 2d 278 (U.S.C.A. 7th Circ.) 9 Cf. Oneida County v. Oneida Indian Nation, 470 U.S. 226, 240-244,1985.

“Tem que haver pouco, se algum, dissenso da proposição de que a venda e a compra de vestígios humanos com fins ao lucro e à curiosidade é abominável aos Neozelandeses e, eu espero, para toda pessoa civilizada. Existe uma circunstância macabra na transação proposta, a qual tem alguns dos atributos da necrofilia. Isso sem dizer, é claro, que por razões arqueológicas e outras razões científicas os vestígios humanos não devam ser conservados para estudo e outras considerações. Eu não me esqueço, também, que por razões religiosas os vestígios humanos devem ser reverenciados e retidos para estes propósitos. É o propósito implícito desta situação, a qual, em minha opinião, suscita uma indignação adequada.”10

A corte concluiu que o defunto era um Maori que tinha morrido na Nova Zelândia por volta de 1820. Ela então concedeu uma administração para constituir um representante pessoal com o objetivo de permitir que os procedimentos legais na Inglaterra impedissem a proposta de venda da cabeça. A real concessão administrativa foi para que se iniciassem os procedimentos legais e se concedesse ao defunto um sepultamento adequado, conforme as leis e costumes Maori (PATERSON, s/d). O resultado do Re Estate of Tupuna Maori representa um poderoso impedimento para qualquer um que tente vender os vestígios ancestrais Maori. Depois da decisão no caso, o Presidente do Conselho Maori Neozelandês buscou por uma injunção na Inglaterra para prevenir a venda da cabeça e ela foi retirada da venda e retornou à Nova Zelândia para o sepultamento. A inabilidade de se reivindicar um título de propriedade para os vestígios humanos sob a lei comum faz a estratégia no caso do Tupuna Maori ter aplicabilidade limitada (DOBSON, 1997).11 A mera concessão de um título legítimo de testamento também não resolveria a questão das reivindicações que competem sobre a propriedade dos bens móveis. Entretanto, se o roubo de bens culturais ocorreu recentemente, então os procedimentos de recuperação podem ser efetivos. No caso inglês da Bumper Development Corporation, et al v. Commissioner of Police for the Metropolis um numero de requerentes indianos, incluindo um templo e seus ídolos, foram bem sucedidos em recuperar a posse de uma escultura de bronze que se provou ter sido roubada na Índia depois de 1976.12 O réu foi um comprador bona fide que havia adquirido a escultura em Londres de um negociante. Sob a lei comum inglesa não havia a possibilidade de um tal comprador poder adquirir os direitos de propriedade em detrimento de um dono original. Em casos de roubo recente, os estatutos restritivos normalmente não se aplicam e a evidência dos direitos de propriedade por parte do reclamante é 10

Cf. Re Estate of Tupuna Maori (não noticiado) (Alta Corte da Nova Zelândia) (Wellington, 19 de Maio de 1988). Cf. DOBSON v. North Tyneside Health Authority [1997] 1 W.L.R. 596 (Corte de Apelo), p. 600-601. 12 Cf. 1 W.L.R. 74 (Corte de Apelo), 1991. 11

prontamente disponível. No caso de requisições históricas estas circunstâncias são geralmente revertidas. Mesmo em casos envolvendo bens culturais recentemente roubados uma requisição pode falhar quando a questão do direito de propriedade é governada pela lei de um país (como a Itália) onde um comprador bona fide de objetos de arte roubados pode adquirir em certas circunstâncias os direitos legítimos de propriedade em detrimento do dono original.13 Objetos culturais que têm sido alocados em museus ocidentais por muitas gerações parecem seguros dentro dos muros destas instituições. As reivindicações legais para a recuperação de tal material são raras, e os retornos que ocorreram geralmente foram feitos como resultado de longas negociações.14

A Repatriação de Bens Culturais na Lei Doméstica Uma situação diferente emerge quando as reivindicações sobre o patrimônio cultural são feitas por aqueles que representam as populações indígenas nos seus países de origem. Tais reivindicações são feitas usualmente contra instituições ou indivíduos locais e surgem dentro de um contexto puramente doméstico, o qual é desprovido da incerteza e da complexidade de uma reivindicação internacional. Não obstante, tais reivindicações são freqüentemente novidades e são baseadas numa jurisprudência emergente que diz respeito aos direitos indígenas no país em questão. Este é o cenário atual em países como os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia. Nestes países as reivindicações sobre o patrimônio cultural indígena têm ocorrido contra o pano de fundo de uma batalha mais ampla destes povos para garantir seus direitos legais e políticos. Em muitos outros países, entretanto, as minorias indígenas não possuem meios constitucionais de obterem compensação e suas reivindicações podem não ter sido sempre claramente articuladas. Isto se assemelha à situação de países tais como a Índia, o Laos e a Indonésia. Nestes países as questões sobre bens culturais podem não estar sequer na agenda legal e política dos governos locais. É triste e irônico, mas provavelmente verdadeiro, que a coleta estrangeira entre as populações indígenas locais em tais lugares tenha sido freqüentemente uma forma efetiva de proteção para os bens culturais, dado a falta de recursos e práticas locais. Ainda mais irônico é o fato de que é às vezes a cultura material das culturas extintas (como os antigos Egípcios) que recebe mais atenção e proteção do que a das muitas populações indígenas vivas!

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Para um bom exemplo desta situação veja o caso inglês de WINKWORTH, v. Christies, 1 Ch. 496, 1980. Um exemplo recente de uma tal devolução negociada ocorreu em setembro de 2000 quando o Museu Etnográfico de Estocolmo concordou em devolver um mastro de totem para a Primeira Nação Haisla da Colúmbia Britânica. O mastro tinha sido enviado por navio para a Suécia em 1929 e uma delegação Haisla solicitou a sua devolução em 1991. O mastro chegou na Colúmbia Britânica em abril de 2006. 14

É raro que colecionadores privados de bens culturais estejam sujeitos às reivindicações indígenas pela posse dos seus bens. A razão provável de uma ausência de tais reivindicações é a falta de evidência sobre as circunstâncias que cercaram a aquisição dos objetos de interesse dos antropólogos, colecionadores privados, missionários e museus. Enquanto a influência indevida ou a retirada forçada podem ter caracterizado muitas destas aquisições, isto pode não ser passível de prova. Muitos povos indígenas não guardam nenhum registro escrito e muitos criadores e testemunhas estarão logo mortos há muito tempo. Como discutido acima, estatutos restritivos podem apresentar uma barreira adicional às reivindicações, mesmo se o titulo de propriedade legítimo puder ser provado da parte de um requerente indígena. O segredo que cerca o comércio e a formação de coleções privadas de arte é a explicação usual para a ausência de processos envolvendo proprietários privados de objetos indígenas. Nenhuma jurisdição da lei comum tem experimentado reivindicações significativas em relação aos objetos mantidos privativamente. Um país, a Nova Zelândia, tem estabelecido um sistema para o registro de colecionadores e para a regulamentação das transações por colecionadores e museus envolvendo os artefatos Maori.15 Sob o Antiquities Act Neozelandês, um sistema para o registro de coleções de objetos Maori anteriores a 1902 está em exercício.16 Sob este sistema, um colecionador é considerado qualquer um, com exceção de um negociante ou de um museu, que possui um ou mais desses artefatos. Os colecionadores sofrem limitações em suas capacidades para dispor de qualquer parte de suas coleções (como por venda para colecionadores estrangeiros ou não registrados). O efeito dessas regras, junto com uma proibição paralela sobre a exportação de objetos Maori da Nova Zelândia, consiste na criação de um mercado altamente visível e insular para os artefatos Maori dentro do país. O esquema Neozelandês parece funcionar bem, provavelmente por causa do pequeno tamanho e do isolamento do país. Um largo mercado para os objetos Maori existe fora da Nova Zelândia e não é afetado pelas restrições do Antiquities Act sobre os colecionadores privados. É somente uma questão de especulação se o modelo Neozelandês seria efetivo em outros países. Muitos países têm controles sobre a exportação que se aplicam aos artefatos culturais produzidos pelas suas próprias culturas indígenas, mas poucos parecem ter ficado dispostos a ir tão longe na regulamentação de coleções privadas como ficou a Nova Zelândia.17

15

Cf. Supra, n. 17, p. 114-119. Antiquities Act, 1975 (Nova Zelândia). 17 Uma primeira decisão inglesa sobre a não obrigatoriedade do controle da exportação de bens culturais estrangeiros envolveu a exportação de uma antiguidade Maori da Nova Zelândia (ORTIZ & OTHERS, 1983; PATERSON, 1995). 16

Naqueles países onde os direitos legais das populações indígenas têm sido o foco de um desenvolvimento recente, tem havido um número de estratégias bem-sucedidas para garantir o retorno dos objetos culturais de museus e outras instituições para os representantes indígenas. Para os propósitos da discussão estas estratégias podem ser classificadas dentro de três itens: legislação, negociação e alternativas para a repatriação e o retorno dos objetos. O exemplo mais abrangente de legislação que lida com a devolução de bens culturais para as populações indígenas minoritárias tem ocorrido nos Estados Unidos. Um estatuto federal de 1990 – o Native American Graves Protection and Repatriation Act (NAGPRA) – estipula o retorno, para as tribos americanas e havaianas nativas, de certas classes de objetos culturais, assim como de vestígios humanos, conforme procedimentos prescritos.18 O alcance da lei se estende para as agências federais dos Estados Unidos e para os museus que são financiados com verba federal, mas não para os colecionadores privados. Sob o NAGPRA, as agências e os museus devem preparar inventários de vestígios humanos dos nativos americanos e havaianos, assim como dos objetos funerários, objetos sagrados e dos objetos do patrimônio cultural que devem ser repatriados. Concessões federais de verba são colocadas à disposição dos museus e tribos indígenas para este propósito. O retorno imediato dos objetos para os descendentes ou os grupos com a afiliação cultural mais próxima é exigido segundo as solicitações. A repatriação não é exigida de objetos que se mostram serem indispensáveis à conclusão de estudos científicos específicos. Os museus podem reter o material até que reivindicações competidoras sejam resolvidas e são protegidos contra as reivindicações feitas pelas partes lesadas se os objetos são devolvidos de boa fé. Existe uma comissão de sete membros estabelecida para o propósito de resolver certas disputas sob a legislação. O NAGPRA representa uma tentativa bastante ambiciosa de se resolver dentro de um estatuto guarda-chuva muitos dos problemas associados com a repatriação, mas ele é ainda muito recente para ser considerado um sucesso completo. A prova de suficiente afiliação cultural para se reivindicar o material ou a necessidade de se resolver reivindicações competidoras pelo mesmo objeto são apenas duas instâncias que podem provar-se problemáticas sob o esquema do Ato. A solução dos Estados Unidos para a demanda de minorias indígenas pela devolução de seus bens culturais pelos museus e outras instituições não tem sido típica. Em muitos outros países onde uma

18

Public Law No. 101-601, 104 Stat. 3048, aprovada em 16 de Novembro de 1991 (CARTER, 1999; SYMPOSIUM, 1990; NAFZIGER apud BELL & PATERSON).

situação similar está presente, o retorno de tais objetos tem ocorrido numa base ad hoc. Existe uma variedade de razões para estas soluções diferentes – políticas, legais, constitucionais e econômicas. O Ministro das Comunicações canadense anunciou, em 1990, um plano de legislação que concernia à proteção da propriedade e à administração de bens arqueológicos encontrados em terreno dentro de jurisdição federal.19 O plano de lei federal deu posse ao governo nacional (a Coroa federal) de vários bens, como sepulturas, naufrágios e espécimes achados sobre ou sob a terra e perdidos e abandonados por mais de cinqüenta anos (HAUNTON, 1992). A lei estipulava consultas junto aos grupos culturais e religiosos aborígines no caso de objetos recentemente descobertos e estipulava a conclusão de acordos com povos aborígines em relação à propriedade e ao controle de recursos arqueológicos. Apesar das tentativas de se resolver várias preocupações aborígines sobre estas e outras questões do patrimônio, o plano de lei não foi seguido e não se tornou lei. O modelo legislativo representado pelo NAGPRA não tem sido imitado em outras partes. No Canadá, por exemplo, a preferência tem sido por negociar as devoluções dos objetos das Primeiras Nações dentro de uma base ad hoc. A estrutura para tais negociações foi um relatório que pode ser relacionado aos eventos que cercaram uma exposição no Museu Glenbow em Calgary, Alberta, em 1988, e intitulada “O Espírito Canta”. A Primeira Nação do Lago Lubicon se colocou contra a exibição pública de certas máscaras e organizou um boicote à exposição. Alguns grupos Mohawk buscaram então conseguir uma injunção provisória para prevenir a exibição de uma máscara Cara Falsa na exposição. A corte se negou a notificar-se de uma injunção provisória que aguardaria julgamento com base no fato de que, apesar de que a reivindicação por um bem cultural tribal fosse uma questão séria para ser julgada, por outro lado os requerentes não tinham declarado que um dano irreparável seria resultante da exibição continua da máscara (BANDS, 1988). O juiz baseou sua opinião na sua percepção de que a máscara em questão tinha estado em exibição em vários museus por vários anos e nenhuma objeção tinha sido feita a estas exibições. A Assembléia das Primeiras Nações no Canadá então concordou em co-patrocinar uma conferência nacional com a Associação de Museus Canadenses para discutir várias questões relacionadas à relação entre os museus e os povos aborígines. Esta conferência conduziu ao estabelecimento de uma força de tarefa nos museus e nos Primeiros Povos cuja missão era a de desenvolver uma estrutura para uma nova relação entre os museus canadenses e os povos aborígines.

19

Proposed Act Respecting the Protection of the Archeological Heritage of Canada (Ottawa, 1990).

A Força de Tarefa sobre os Museus e os Primeiros Povos produziu seu relatório “Virando a Página: Forjando Novas Parcerias Entre Museus e Primeiros Povos” em 1991.20 Seguindo o fracasso dos esforços para se obter financiamento governamental para se estabelecer um Conselho para Museus e Primeiros Povos, a implementação do relatório foi deixada ao cargo dos museus individuais e à Associação de Museus Canadenses, trabalhando com os grupos aborígines. Em contraste com os EUA, o Canadá não possui um sistema centralizado para administrar e monitorar as recomendações da força de tarefa. Estas recomendações não possuem força legal e sua observância e implementação depende da discrição dos museus individuais e das associações de museus. O relatório da força de tarefa continha recomendações detalhadas em relação à repatriação de bens culturais aborígines no Canadá. O relatório lida separadamente com os vestígios humanos e os objetos do “patrimônio cultural”. Vestígios humanos são separados em três categorias. A primeira é aquela das pessoas cuja evidência sugere que sejam lembradas pelo nome. Estes vestígios devem ser colocados à disposição segundo o pedido das famílias, herdeiros ou clãs. Vestígios humanos que são afiliados por nome a uma Primeira Nação devem ser relatados àquela Nação e devolvidos de modo tradicional em cooperação com o museu. Vestígios humanos e objetos associados de sepultamento que não estão afiliados segundo o sentido mencionado devem ser tratados e colocados à disposição depois de uma consulta entre os museus e os representantes dos povos aborígines. Para o tratamento, uso, apresentação e disposição daquilo que a força de tarefa descreve como os “objetos sagrados e cerimoniais e quaisquer outros objetos do patrimônio cultural”, o relatório da força de tarefa define um número de tratamentos alternativos. O relatório distingue entre os objetos considerados tendo sido “adquiridos ilegalmente” e aqueles “obtidos legalmente”. No primeiro caso, os objetos devem ser devolvidos, juntamente com uma transferência do título de propriedade, para os grupos culturais ou indivíduos originais. No segundo caso, de aquisição presumivelmente legítima, os museus devem negociar com as comunidades aborígines apropriadas dentro de uma base caso a caso, de acordo com a solicitação, a devolução de objetos sagrados e cerimoniais e outros objetos de especial importância, levando em consideração tanto preocupações morais quanto éticas, assim como as considerações de ordem legal. Um outro exemplo canadense de repatriação negociada é propiciado pelo Acordo Final Nisga’a de 1998, entre a Primeira Nação Nisga’a da Colúmbia Britânica e os governos do Canadá e da

20

Cf. Task Force Report on Museums and First Peoples (Turning the Page: Forging New Partnerships Between Museums and First Peoples), 1992.

Colúmbia Britânica.21 Se conjectura que o tratado servirá de precedente para as futuras negociações de tratados entre as Primeiras Nações na Colúmbia Britânica e os governos desta província e o Canadá. O tratado Nisga’a garante um retorno de aproximadamente 2000 quilômetros quadrados de terra, estabelece um sistema de auto-governo Nisga’a e garante os direitos de caça e pesca. O Capítulo 17 do tratado, intitulado “Artefatos Culturais e Patrimônio”, lida com a repatriação dos artefatos culturais Nisga’a das duas coleções de museus da parte governamental do tratado: o Museu Canadense da Civilização (Gatineau, Quebec) e o Museu Real da Colúmbia Britânica (Victoria, Colúmbia Britânica). O tratado garante o retorno de partes das coleções Nisga’a de ambos museus. Quatro apêndices ao tratado listam os artefatos Nisga’a em cada coleção de museu e dividem a coleção de cada museu. A posse ou propriedade de uma parte da coleção de cada museu deve ser transferida para a nação Nisga’a (alcançando uma fração de 25 por cento da coleção dos museus canadenses até aproximadamente 40 por cento da coleção dos museus da Colúmbia Britânica). O compromisso salomônico pela repatriação, garantido pelo tratado Nisga’a, é consistente com a filosofia de parceria concernente os bens culturais aborígines em museus canadenses desenvolvido anteriormente pelo relatório da força de tarefa. O compromisso negociado tem também caracterizado os pedidos de repatriação em outras partes. Na Nova Zelândia, a casa de reuniões Maori Mataatua foi devolvida para os descendentes dos que a edificaram (o povo Ngati Awa) pelo Museu Otago em 1996.22 A casa de reuniões tinha sido construída entre 1872 e 1875 e mandada para o exterior pelo governo Neozelandês em 1879 para exibição em várias exposições na Austrália e na Inglaterra. Depois de seu retorno à Nova Zelândia em 1925, ela foi depositada no Museu Otago como empréstimo permanente. Em 1983, o povo Ngati Awa solicitou a devolução da casa. Depois de longas discussões, um acordo foi alcançado para que a casa fosse devolvida. Os termos da devolução incluíam um pagamento feito pelo governo de $NZ 2.95 milhões para o Museu Otago, o qual será provavelmente utilizado para organizar a construção de outra casa similar. O caso do Museu Otago ilustra um padrão de compromisso de ambos os lados para se resolver pedidos de repatriação, mesmo na ausência de uma legislação guarda-chuva (tal como o NAGPRA) ou de princípios previamente acordados governando tais pedidos (tais como aqueles estabelecidos pela Associação de Museus Canadenses/força de tarefa da Assembléia das Primeiras Nações).

21

Cf. Nisga’a Final Agreement (1998) e o website do Ministério da Colúmbia Britânica para Assuntos Aborígines em http://www.aaf.gov.bc.ca/aaf/. (SANDERS, 1999). 22 Cf. Nota, 6 Intern. Jo. of Cultural Property, 404, 1997.

Uma terceira via de se responder aos pedidos feitos aos museus para a devolução de artefatos culturais indígenas tem sido a concordância sobre algum resultado para além da devolução incondicional dos objetos concernidos. Este tipo de solução é às vezes usado em combinação com a devolução de um número limitado de objetos sujeitos ao pedido inicial. O papel da Força de Tarefa Canadense sobre Museus e Primeiros Povos foi bem além das questões ligadas à repatriação e também faz referência à melhoria do acesso dos povos aborígines às coleções de museus, assim como a um aumento do envolvimento dos aborígines na administração de tais instituições e de suas coleções. O relatório da força de tarefa incluía recomendações específicas sobre a interpretação, acesso, repatriação e treinamento. Ele recomenda que os povos aborígines se envolvam na preparação de exposições e em outros projetos que incluam a cultura aborígine e que seja garantido pelos museus e galerias um aumento das oportunidades de emprego aos povos aborígines e que seja garantida a sua representação em organizações administrativas (como os quadros de diretores). O relatório sugere que os museus revelem mais informação sobre suas coleções aborígines e permitam o acesso do povo aborígine aos objetos e à documentação relevante. O relatório recomenda que o financiamento seja fornecido para o treinamento técnico e profissional do povo aborígine em conexão com iniciativas tais como os centros culturais. Ele insta os museus a reconhecerem a legitimidade das credenciais de indivíduos e grupos aborígines que possuem conhecimento de culturas particulares. Muitas destas sugestões tem sido desde então implementadas dentro de uma base ad hoc por museus que são membros da Associação de Museus Canadenses. Em relação à repatriação, o relatório da força de tarefa define três estratégias alternativas, em adição ao retorno físico dos objetos acompanhados pela transferência do título legal de propriedade. Ele sugere que os museus considerem o empréstimo de objetos sagrados e cerimoniais para o uso de comunidades aborígines e que os museus também permitam a replicação de materiais em suas coleções. Finalmente, o relatório encoraja os museus a se engajar na administração compartilhada de suas coleções de material aborígine ao envolver as Primeiras Nações canadenses em questões como a de definir o acesso, determinar as condições de armazenamento e reconhecendo os diferentes sistemas de propriedade das culturas aborígines. As alternativas desenvolvidas no relatório canadense para a concessão da posse total dos objetos serão úteis aos museus ao negociarem pedidos de repatriação distintos. Muitos pedidos de repatriação não são feitos dentro de um modo de confronto tipo “tudo ou nada”. Muitos se preocupam com o reconhecimento de que os papéis futuros dos museus com extensas coleções indígenas devem proceder dentro da base de um maior envolvimento dos representantes daquelas

culturas representadas em tais coleções. Os pedidos de devolução são usualmente feitos com o propósito de tornar os museus ou centros culturais em centros de populações indígenas e fornecer educação e acesso para aqueles povos sobre suas próprias culturas. Esta forma de abordagem tem também sido recentemente endossada pelo Comitê de Direito do Patrimônio Cultural da Associação Internacional de Direito em seus “Princípios para a Co-operação em Mútua Proteção e Transferência de Material Cultural”, de 2006.23

Conclusão A posse e a propriedade do material cultural de povos indígenas apresenta complexas questões políticas e legais sobre as quais a generalização se faz difícil. Esta dificuldade se deve muito aos perigos de se generalizar sobre culturas cujas diferenças freqüentemente sobrepujam suas similaridades. Quando questões de propriedade e posse de bens culturais emergem dentro das leis nacionais, diferentes resultados podem surgir por causa de significativas diferenças legais entre os países. No caso de povos colonizados, as reivindicações de repatriação são em geral internacionais por natureza e, portanto, sujeitas a ainda maiores complexidades legais. Os desenvolvimentos futuros nesta área provavelmente serão menores em termos de reivindicações confrontantes para a restituição e maiores em recursos para forjar novas relações entre povos indígenas e museus que envolvam a responsabilidade compartilhada pelas coleções e seus desenvolvimentos futuros.

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23

Cf. http://www.ila.org e Paterson (2005).

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O PATRIMÔNIO EM CUBA E NO BRASIL

Lourdes S. Domínguez Pedro Paulo A Funari

Introdução Este capítulo visa a apresentar, de forma comparada, as experiências cubana e brasileira, referentes ao patrimônio. No caso cubano, tratamos de Havana, a cidade patrimônio por antonomásia, enquanto no Brasil apresentamos um panorama geral. De início, cabe explorar os diferentes sentidos ligados ao conceito mesmo de “património cultural”. As línguas românicas usam termos derivadas do latim patrimonium para se referir à “propriedade herdada do pai ou dos antepassados, uma herança”. Os alemães usam Denkmalpflege, “o cuidado dos monumentos, daquilo que nos faz pensar”, enquanto o inglês adotou heritage, na origem restrito “àquilo que foi ou pode ser herdado” mas que, pelo mesmo processo de generalização que afectou as línguas românicas e seu uso dos derivados de patrimonium, também passou a ser usado como uma referência aos monumentos herdados das gerações anteriores. Em todas estas expressões, há sempre uma referência à lembrança, moneo (em latim, “levar a pensar”, presente tanto em patrimonium como em monumentum), Denkmal (em alemão, denken significa “pensar’) e aos antepassados, implícitos na “herança”. Ao lado destes termos subjectivos e afectivos, que ligam as pessoas aos seus reais ou supostos precursores, há, também, uma definição mais económica e jurídica, “propriedade cultural”, comum nas línguas românicas (cf. em italiano, beni culturali), o que implica um liame menos pessoal entre o monumento e a sociedade, de tal forma que pode ser considerada uma “propriedade”. Como a própria definição de “propriedade” é política, “a propriedade cultural é sempre uma questão política, não teórica”, ressaltava Carandini (1979, p. 234). Há não muito tempo, Joachim Hermann (1989, p. 36) sugeriu que “uma consciência histórica é estreitamente relacionada com os monumentos arqueológicos e arquitectónicos e que tais monumentos constituem importantes marcos na transmissão do conhecimento, da compreensão e da consciência históricos”. Não há identidade sem memória, como diz uma canção catalã: “aqueles que perdem suas origens, perdem sua identidade também”(BALLART, 1997, p. 43). Os monumentos históricos e os restos arqueológicos são importantes portadores de mensagens e, por sua própria natureza como cultura material, são usados pelos actores sociais para produzir significado, em especial ao materializar conceitos como identidade nacional e diferença étnica. Deveríamos,

entretanto, procurar encarar estes artefactos como socialmente construídos e contestados, em termos culturais, antes que como portadores de significados inerentes e ahistóricos, inspiradores, pois, de reflexões, mais do que de admiração (POTTER, s.d.). Uma abordagem antropológica do próprio património cultural ajuda a desmascarar a manipulação do passado (HAAS, 1996). A experiência brasileira, a esse respeito, é muito clara: a manipulação oficial do passado, incluindo-se o gerenciamento do património, é, de forma constante, reinterpretada pelo povo. Como resumiu António Augusto Arantes (1990, p. 4): “o património brasileiro preservado oficialmente mostra um país distante e estrangeiro, apenas acessível por um lado, não fosse o fato de que os grupos sociais o reelaboram de maneira simbólica”. Esses estratos são os excluídos do poder e, assim, da preservação do património. Tratamos, primeiro, de Havana, patrimônio cultural da Humanidade.

Havana, cidade patrimonial A cidade de Havana tem uma extensa história. Tudo que se disse ou escreveu sobre ela também se estudou em relação a sua arquitetura única e viva referente a seus habitantes e a seu porto, o qual desempenhou um papel muito importante desde o início de sua existência em relação a tudo que lá se comercializou. Mas a verdade é que muito poucas referências foram feitas em relação à sua arqueologia. São poucos os que escreveram sobre as informações de seu solo antropogênico. A potencialidade arqueológica que se encontra em Havana Velha é incalculável, a ponto de pensarmos que várias gerações irão dispor de seu conhecimento, já que o grau de autenticidade de suas construções e dos espaços urbanos concebidos em épocas diferentes, assim como a imutabilidade de seu subsolo, faz desta cidade o sonho dos arqueólogos históricos (DOMÍNGUEZ, 1990). Desde os anos de 1960, é comum o debate entre arqueólogos especialistas em relação à autonomia da Arqueologia Histórica como disciplina científica. Alguns pensam que ela é uma ferramenta da História propriamente dita, enquanto outros a consideram uma técnica, e outro ainda, que ela é somente uma subárea da própria Arqueologia. Nós a consideramos uma ciência e, sobretudo, uma Ciência Social independente, por possuir um corpo conceitual próprio e um objeto de estudo muito bem definidos, o que é nada menos que o estudo dos rastros deixados pelo homem no decorrer de sua existência e que se sucedem na cultura material dos povos. Também desde os anos de 1960, o debate girou em torno do próprio nome da ciência: alguns a chamavam de Arqueologia Colonial (de fato, foi assim designada durante muito tempo), outros de

Arqueologia de níveis coloniais, Arqueologia da etapa colonial ou de lugares históricos, embora atualmente esta discussão não defina concretamente esta ciência (DOMÍNGUEZ, 1984; 1996). Sem a esperança de uma definição consenso, em Havana Velha se praticavam escavações nos imóveis mais antigos para se recuperar todo o tipo de informação, principalmente materiais, a fim de delimitar espaços que estavam ocupados com antecedentes e mudanças estruturais que originalmente constavam nos imóveis. Somente depois de 1968 que os trabalhos arqueológicos neste contexto havanês se realizaram junto ao processo de reestruturação e, principalmente, devido a uma executória oficial. É neste ano que se começa a efetuar as escavações arqueológicas nos prédios do atual Museu da Cidade (Museo de la Ciudad), outrora Prefeitura da Cidade de Havana (Alcaldía de la Ciudad de La Habana), e que havia sido o Palácio dos Capitães Generais (Palacio de los Capitanes Generales) durante o governo espanhol (DOMÍNGUEZ, 1983b). A partir dessas escavações pioneiras foi que Havana Velha tornou-se objeto de um estudo sistemático de seu subsolo, como parte do ambicioso plano de reabilitação do patrimônio edificado que nela ocorre. Este trabalho é realizado a partir de uma seleção com imóveis de alto valor patrimonial, complicando-se de tal forma que foi necessário fundamentar um pressuposto metodológico para abarcar de maneira ordenada e eficiente a crescente demanda de trabalhos arqueológicos, pois ficou estabelecido que toda a intenção de restauração implica em uma pesquisa arqueológica prévia (DOMÍNGUEZ & FUNARI, 2002). Em muitos casos, esta circunstância fez com que tanto o sentido como os objetivos da Arqueologia estivessem subordinados aos projetos de restauração, dependendo sempre, ou na maioria dos casos, dos prazos e das estratégias construtivas, bem como da valorização das obras no momento em que as necessidades arquitetônicas eram determinadas. Graças à determinação do Escritório do Historiador da Cidade de Havana (Oficina del Historiador de la Ciudad) foi possível concretizar um caminho conjunto de trabalho entre os planos de restauração e os interesses arqueológicos, o que, diga-se de passagem, foi conseguido muito poucas vezes em situações e espaços similares. Apesar das estimativas iniciais, não se perdeu de vista a formação de quem se encarregaria de conduzir estas tarefas de pesquisa, realizadas de forma empírica e com grande dose auto-formadora, levadas à prática através do fazer e do errar, do voltar a fazer e do continuar.

Infelizmente, nem naquele momento e nem hoje, a Arqueologia contou com um reconhecimento para seu estudo acadêmico, de modo que o conhecimento acumulado pudesse ser transmitido no ensino médio e superior. No entanto, de certa forma essa carência pôde ser suprida. Graças ao empenho de alguns especialistas, novos arqueólogos foram se formando por diferentes caminhos, a exemplo dos cursos da Escola Oficina Gaspar Melchor de Jovellanos (Escuella Taller Gaspar Melchor de Jovellanos) pertencentes ao Escritório do Historiador (Oficina del Historiador), além dos cursos oferecidos pelo Gabinete de Arqueologia também desta instituição, e outros cursos de pós-graduação que foram patrocinados no Centro de Antropologia e pelo Museu Montané. A Universidade de Oriente junto a Casa do Caribe (Casa del Caribe) também exerceram docência em arqueologia de modo conjunto dentro de seus planos de trabalho (DOMÍNGUEZ, 2000). Quando se investe em uma linha de pesquisa na Arqueologia Histórica, tal linha deve conter - da mesma forma que qualquer outra disciplina científica - uma alta precisão quanto à determinação e finalidade do trabalho, e que em nenhum momento se confunda a área de trabalho com o objetivo da ciência em si, o que é o mesmo que dizer em outras palavras, que não devemos escavar por escavar, sem que haja um objetivo definido de antemão e um propósito pré-estabelecido para poder conseguir um resultado de acordo com o raciocínio dessa ciência (FUNARI & MENEZES, 2003). Deve-se provar que o recurso arqueológico corresponde à operação empreendida, de modo a ampliar, complementar e retificar a documentação já existente e, assim, marcar o ritmo do que se vai executar adiante. Em Havana Velha se aplicou esta especialidade dando os passos necessários para seu desenvolvimento e, como resultado, obteve-se uma informação de primeira mão em resposta a uma estratégia concreta e definida. Até as escavações feitas em 1968 não se sabia o que havia debaixo da cidade. Então, ao surgirem incógnitas que guardavam zelosamente o subsolo antropogênico, tomouse consciência de que deveria existir um estudo sistemático do que foi se sobrepondo ao longo do tempo e que cada sítio arqueológico deveria ser abordado a partir da metodologia mais apropriada (DOMÍNGUEZ, 1983a). Em nenhum momento, a Arqueologia Histórica em Havana Velha tratou de fazer história arquitetônica ou de estudar somente os materiais ou evidências que foram desenterrados desse subsolo, mas sim sempre tratou de unir áreas de interesse para um fim maior: a revitalização de

Havana Velha para conhecer plenamente seu passado arqueológico mediante as técnicas mais modernas. Isto deve ocorrer cumprindo-se a premissa de que cada edificação será reabilitada segundo a época em que foi erguida ou em que sofreu transformações irreversíveis, cuja expressão tem perdurado no tempo. Esta concepção tange em especial os imóveis situados na zona intramuros, cuja história pode ser definida com o auxílio da Arqueologia e seus métodos, capazes de estudá-la com orientação sem ter que depender de documentação comum ou de evidências já catalogadas com antecedência (DOMÍNGUEZ, 2001). No decorrer desta operação pontual, existiram escavações e estudos que marcaram momentos muito precisos dentro da prática arqueológica em Havana Velha. Nos anos 60, a estratégia utilizada era a de resgatar os imóveis e ambientes físicos de qualquer tipo, os quais se encontravam ameaçados, porque era a única forma de encarar o desafio que a história nos delineava e, assim, a especialidade da Arqueologia Histórica se conformava como uma ciência nova, e sem deixar dúvidas em relação a sua debilidade teórica e metodológica. Sob esta óptica, foram executados os trabalhos arqueológicos da Paróquia Principal (Parroquial Mayor) e da Casa de la Obrapía (obras religiosas), os quais supriram uma necessidade importante na pesquisa de seu tempo e significaram uma contribuição inestimável para a tarefa de identificação e datação dos artefatos provenientes do subsolo de Havana. Não podemos esquecer que estes foram os primeiros trabalhos realizados em Havana, representando exemplos precisos no território, clássicos expoentes da Arqueologia Histórica particularista que, pela data em que foram feitos, podem ser considerados também um dos primeiros trabalhos feitos no Caribe. O início da Arqueologia Histórica em Havana Velha remonta a 1968, como dito anteriormente, quando foram feitas escavações na Casa de la Obrapía ou na Casa de Calvo de la Puerta. Em suas paredes foram encontradas as primeiras pinturas murais na cidade e, a partir dos estudos efetuados em seu estábulo, em especial o estudo dos expoentes materiais, foram extraídos os primeiros desta natureza pertencente ao século XVI. Os estudos realizados no edifício dos Capitães Generais (Capitanes Generales), hoje Museu da Cidade (Museo de la Ciudad) e onde inicialmente estava localizada a Paróquia Principal (Parroquial Mayor), podem ser considerados o primeiro caso de uma pesquisa arqueológica prévia em relação a um processo de restauração, mas também houve um interesse especial em resgatar as relíquias do subsolo, as quais poderiam ser as primeiras do

contexto religioso achadas em Cuba através da utilização do estudo estratigráfico efetuado pela primeira vez. Posteriormente, foram efetuados alguns trabalhos que buscavam reconstruir modos de vida do passado como parte do estudo de grupos sociais estruturados em uma região determinada, sendo um exemplo o Convento de Santa Clara de Assis. Este tipo de arqueologia foi denominada de "traspatio" ("quintal"), embora tenham sido feitas indagações muito além dos detalhes construtivos em Santa Clara, chegando-se a um profundo estudo de toda uma comunidade religiosa. As escavações arqueológicas, em sua execução, podem ser divididas em quatro contextos principais: o civil, ou seja, os edifícios públicos, o doméstico ou aqueles para a moradia de famílias, o religioso, no qual podem estar as igrejas e os conventos, e por fim, as construções militares, em especial os castelos, os baluartes e as unidades de artilharia. Os contextos domésticos são mais trabalhados no âmbito de Havana intramuros, porque pela lógica, eles estão de acordo com o processo de valorização dos imóveis que abrigam a grande maioria dos Museus do Complexo Museístico de Havana Velha, declarada patrimônio da humanidade em 1982. Dentro desses imóveis objetos de estudo se encontram o Mercaderes l5, o antigo colégio Santo Ambrósio (San Ambrosio) e que hoje é o Museu da Casa dos Árabes (Museo de la Casa de los Arabes); a casa da família Sotolongo e que agora tem os prédios de Alojamento de Valência (Hostal Valencia). A Casa de Juana Carvajal, onde está a sede do Gabinete de Arqueologia, é uma das moradas mais belas da história e a Casa da Muralla no 60, onde atualmente se encontra a Empresa de Restauração de Monumentos. Todos esses trabalhos foram realizados nos anos de 1980. Dentro desse mesmo contexto doméstico em 1990 escavações pontuais foram realizadas, como por exemplo, na antiga casa de Mariano Carbó, hoje sede do museu do pintor Guayasamín, na casa que pertenceu a Gaspar Rivero de Vasconcellos, na casa de Santiago C, Burnhan a qual é atualmente sede do Museu ao Libertador Simón Bolívar (Museo al Libertador Simón Bolívar), e na casa dos Condes de Vila Nova (Condes de Villanueva). A Casa dos Condes de Santovenia (Casa de los Condes de Santovenia) foi objeto de um estudo arqueológico muito especial, sobretudo em relação à parte dietética, o que forneceu uma informação muito valiosa, além de ter representado a possibilidade de escavar uma zona primata da cidade. Em seu conteúdo foi resgatada uma cerâmica de origem espanhola que não foi encontrada em escavações anteriores, além de provas de que o nível do mar chegava até o lado norte da mansão.

Os contextos religiosos têm inúmeros expoentes, entre os quais um exemplo representativo é o Convento de São Francisco de Assis (Convento de San Francisco de Asis) ou a Basílica Menor, onde em suas escavações e trabalhos arqueológicos estruturais as conchas recheadas com cerâmica envidraçada do primeiro terço do século XVIII chamou muita atenção. Podemos observar outros trabalhos arqueológicos em sítios religiosos na Capela de Loreto (Capilla del Loreto) na Catedral de Havana, na capela do Forte de São Carlos da Cabana (Fortaleza de San Carlos de la Cabaña), no Convento de Belém e na Igreja e no Hospital de Paula. A esfera militar foi objeto de estudo histórico durante muito tempo em nosso país, e o primeiro trabalho de restauração efetuado nestas transições se realizou no Morro de Santiago de Cuba, mas indiscutivelmente é Havana que tem expoentes maiores, dentre os quais se escavou a Guarita do Arsenal (La Garita de la Maestranza), onde foi encontrado o forno de cubilotes mais antigo de Cuba e moldes para a fundição de peças da Artilharia havanesa. Também foram feitos trabalhos na Cortina de Valdés, na Fortaleza do Morro (Fortaleza del Morro) ou Castelo dos Três Reis (Castillo de los Tres Reyes), onde se pôde evidenciar as bases do Baluarte de Santo Tomás. Também se escavou no Castelo da Ponta (Castillo de la Punta) e no mais antigo da América, o Castelo da Força Real (Castillo de la Real Fuerza), como também na fortaleza de São Carlos da Cabana (fortaleza de San Carlos de la Cabaña). A partir da criação do Gabinete de Arqueologia em 1987 se estabelece uma verdadeira linha de pesquisa em matéria de Arqueologia Histórica, pois se obtém uma inter-relação entre as buscas arqueológicas e o plano de restauração de Havana Velha. Com a valorização das grandes obras já dentro de um âmbito delimitado e vital, pensa-se nela como um Museu representativo das cidades caribenhas capaz de superar em diversidade de contextos cronológicos seus similares de Santo Domingo e Porto Rico. Santo Domingo constitui, na verdade, um expoente insuperável da cidade do século XVI, mas somente desse século, enquanto que em São João (San Juan) predominam os contornos de um século XIX simples e mestiço (DOMÍNGUEZ, 1991). Por sua vez, São Cristóvão (San Cristóbal) de Havana conserva um amplo espectro que engloba ininterruptamente expoentes dos séculos XVI até XIX, mostrando ao mundo atual elementos de quase todas as variantes arquitetônicas domésticas, civis, militares, eclesiásticas e comerciais. Além disso, há uma grande amostra do registro arqueológico artefatual para um incomparável e detalhado estudo na área caribenha, o que se expressa em padrões dispostos em qualquer fase da pesquisa.

As indagações que até o momento surgiram em torno da freqüência relativa com que aparecem os diferentes grupos de artefatos (cerâmicas, vidrarias, metais, ossos, madeiras, pedras, entre outros) permitiram definir traços esclarecedores que ajudam a interpretar os pontos de destaque dos sítios sobre os quais a documentação e as informações são quase nulas. Através desse enfoque quantitativo se investigou com caráter individual a majólica do século XVI no Calvo de la Puerta (Casa de la Obrapía) e a porcelana oriental em Havana, estudos os quais serviram de base para reconhecer padrões que possibilitaram inferir a conduta humana. Por outro lado, a análise da cerâmica mexicana do século XVII proporciona um esclarecimento para desemaranhar as redes do comércio intercolonial em um período tão obscuro. É de vital importância reconhecer a colaboração que a Arqueologia Histórica proporcionou ao estudo histórico-social da Havana intramuros a partir de uma perspectiva regional que, ao considerar a parte antiga da cidade como âmbito tempo-especial onde se desenvolve um processo sociocultural concreto, a converte em um universo idôneo para a pesquisa. Com o auxílio da Arqueologia Histórica, diversos contextos físicos foram classificados e delimitados mediante a análise profunda das sucessões estratigráficas e através da seqüência dos materiais exumados. As escavações realizadas no Convento de São Francisco de Assis (Convento de San Francisco de Asís) e na Casa dos Condes de Sotovenia (Casa de los Condes de Santovenia) não foram tratados como imóveis particulares ou estudos de caso em si, mas sim como áreas que representam o desenvolvimento que ocorreu historicamente em um dado momento desta região. Seguindo esta mesma diretriz, pode-se considerar a cerâmica como referência para investigar a união de várias culturas e as culturas resultantes desta fusão em uma cidade como a nossa, arquétipo de tais combinações. O estudo da cerâmica de contato ou de transculturação - chamada "cerâmica de colonos (colono ware)" ou "crioula (criolla)" - permite saber até que data se deu esta simbiose, além de reunir evidências muito concretas sobre o comércio, tanto lícito, ou seja, o permitido pelas autoridades, como o comércio ilícito, ou de contrabando, constatadas ou não nas fontes documentais da época. Como disciplina científica, a Arqueologia Histórica em Havana Velha não se subordina à restauração, mas as duas se uniram e se complementaram e o resultado até o momento tem sido uma união muito valiosa que não está isenta de erros, mas a soma final é o mais importante, e isto é bem claro e de grande importância.

Há trinta anos, podíamos mencionar entre os precursores nesta Havana - além de Eusebio Leal, alma e ação - os também arqueólogos Leandro Romero, Rodolfo Payarés, Ramón Dacal, Rafael ValdesPino, Eladio Elso, e a que subscrevem; e lembrar com gratidão o artista Ernesto Navarro. Eles lutaram e trabalharam com esmero e aplainaram o caminho pelos quais hoje prosseguem os mais jovens.

O Brasil A preservação dos edifícios de igrejas coloniais poderia ser considerado, no Brasil e no resto da América Latina (García 1995: 42), como o mais antigo manejo patrimonial. É interessante notar que a importância da Igreja Católica na colonização ibérica do Novo Mundo explica a escolha estratégica de se preservar esses edifícios, sejam templos construídos sobre os restos de estruturas indígenas (cf. o exemplo maia, em ALFONSO & GARCÍA, s.d., p. 5), sejam as igrejas nas colinas que dominavam a paisagem, como foi o caso na América portuguesa. Contudo, nem mesmo as igrejas foram bem preservadas no Brasil, com importantes exceções, e isto pode ser explicado pelo anseio das elites, nos últimos cem anos, de “progresso”, não por acaso um dos dois termos na bandeira nacional surgida da Proclamação da República, em 1889, “ordem e progresso”. Desde então, o país tem buscado a modernidade e qualquer edifício moderno é considerado melhor do que um antigo. Houve muitas razões para mudar-se a capital do Rio de Janeiro para uma cidade criada ex nouo, Brasília, em 1961, mas, quaisquer que tenham sido os motivos econômicos, sociais ou geopolíticos, apenas foi possível porque havia um estado d’alma favorável à modernidade. A melhor imagem da sociedade brasileira não deveria ser os edifícios históricos do Rio de Janeiro, mas uma cidade moderníssima e mesmo os mais humildes sertanejos deveriam preterir seu patrimônio, em benefício de uma cidade sem passado. Talvez o exemplo mais claro dessa luta contra a lembrança materializada seja São Paulo, essa megalópolis, cujo crescimento não encontra paralelos. Ainda que fundada em 1554, continuou a ser uma cidadezinha até fins do século XIX, até tornar-se, nestes últimos cem anos, a maior cidade do hemisfério sul. Nesse processo, restos antigos sofreram constantes degradações ideológicas e físicas, sendo construídos novos edifícios para criar uma cidade completamente nova. Os edifícios históricos, se assim se pode falar, são a Catedral e o Parque Modernista do Ibirapuera, planejado por Niemeyer, ambos inaugurados em 1954 para comemorar os quatrocentos anos da cidade. Os principais prédios públicos, como o Palácio dos Bandeirantes, sede do governo do Estado de São

Paulo ou o Palácio Nove de Julho, que abriga a Assembléia Legislativa do Estado, são, também, muito recentes e a mais importante avenida, a Paulista, fundada em fins do século XIX como um bastião de mansões aristocráticas, foi totalmente remodelada na década de 1970. Mesmo em cidades coloniais, algumas delas bem conhecidas no exterior, como Ouro Preto, declarada Patrimônio da Humanidade, a modernidade está sempre presente, por desejo de seus habitantes. Guiomar de Grammont (1998, p. 3) descreve esta situação com palavras fortes:

“A distância entre as autoridades e o povo é a mesma daquela entre a sociedade civil e o passado, devido à falta de informação, ainda que os habitantes das cidades coloniais dependam do turismo para sua própria sobrevivência. Quem são os maiores inimigos da preservação dessas cidades coloniais? Em primeiro lugar, a própria administração municipal, não afectada pelos problemas sociais e ignorante das questões culturais em geral mas, às vezes, os moradores também, inconscientes da importância dos monumentos, contribuem para a deformação do quadro urbano. Novas janelas, antenas parabólicas, garagens, telhados e casas inteiras bastam para transformar uma cidade colonial em uma cidade moderna, uma mera sombra de uma antiga cidade colonial, como é o caso de tantas delas”.

É fácil entender que as pessoas estejam interessadas em ter acesso à infraestrutura moderna mas, como notam os europeus quando visitam as cidades coloniais, se os edifícios medievais podem ser completamente reaparelhados, sem danificar os prédios, não haveria porque não fazê-lo no Brasil. Outra ameaça ao património arqueológico das cidades coloniais é o roubo, já que os ladrões são muito atuantes, havendo mais de quinhentas igrejas e museus locais coloniais (ROCHA, 1997). Um problema mais prosaico é a deterioração dos monumentos devido à falta de manutenção e abrigo, mesmo no interior de edifícios (LIRA, 1997). Estes três perigos para a manutenção dos bens culturais, aparentemente não relacionados, revelam uma causa subjacente comum: a alienação da população, o divórcio entre o povo e as autoridades, a distância que separa as preocupações corriqueiras e o ethos e políticas oficiais. Houve uma “política de património que preservou a casagrande, as igrejas barrocas, os fortes militares, as câmaras e cadeias como as referências para a construção de nossa identidade histórica e cultural e que relegou ao esquecimento as senzalas, as favelas e os bairros operários” (FERNANDES, 1993, p. 275). Para o povo, há, pois, um sentimento de alienação, como se sua própria cultura não fosse, de modo algum, relevante ou digna de atenção. Tradicionalmente, havia dois tipos de casa no Brasil: as moradas de dois ou mais andares, chamados de “sobrados”, onde vivia a elite, e todas as outras formas de habitação, como as “casas” e “casebres”, “mocambos” (derivado do quimbundo,

mukambu, “fileira”), “senzalas” (locais da escravaria), “favelas” (tugúrios) (REIS FILHO, 1978, p. 28). O resultado de uma sociedade baseada na escravidão, desde o início houve sempre dois grupos de pessoas no país, os poderosos, com sua cultura material esplendorosa, cuja memória e monumentos são dignos de reverência e preservação e os vestígios esquálidos dos subalternos, dignos de desdém e desprezo. Como enfatizou o grande sociólogo brasileiro, Octávio Ianni (1988, p. 83), o que se considera património é a Arquitetura, a música, os quadros, a pintura e tudo o mais associado às famílias aristocráticas e à camada superior em geral. A Catedral, frequentada pela “gente de bem”, deve ser preservada, enquanto a Igreja de São Benedito, dos “pretos da terra”, não é protegida e é, com frequência, abandonada. Os monumentos considerados como património pelas instituições oficiais, de acordo com Eunice Durham (1984, p. 33), são aqueles relacionados à “história das classes dominantes, os monumentos preservados são aqueles associados aos feitos e à produção cultural dessas classes dominantes. A História dos dominados é raramente preservada”. Devemos concordar com Byrne (1991, p. 275) quando afirma que é comum que os grupos dominantes

usem seu poder para promover seu próprio patrimônio, minimizando ou mesmo

negando a importância dos grupos subordinados, ao forjar uma identidade nacional à sua própria imagem, mas o grau de separação entre os setores superiores e inferiores da sociedade não é, em geral, tão marcado quanto no Brasil. Neste contexto, não é de surpreender que o povo não preste muita atenção à protecção cultural, sentida como se fora estrangeira, não relacionada à sua realidade. Há uma expressão no português do Brasil que demonstra, com clareza, esta alienação das classes: “eles, que são brancos, que se entendam”. Note-se que esta frase é usada também por brancos para se referirem às autoridades em geral. A mesma distância afeta o patrimônio, pois os edifícios coloniais são considerados como “problema deles, não nosso”. Poderíamos dizer, assim, que a busca da modernidade, mesmo sem levar em conta a destruição dos bens culturais, poderia bem ser interpretada como um tipo de luta não apenas por melhores condições de vida, mas contra a própria lembrança do sofrimento secular dos subalternos. O patrimônio arqueológico stricto sensu poderia deixar de ser afetado por esta falta de interesse na preservação da cultura material da elite, na medida em que a Arqueologia produz evidência de indígenas e dos humildes em geral (TRIGGER, 1998, p. 16). Entretanto, há muitos fatores que inibem um engajamento ativo da gente comum na proteção patrimonial. Em primeiro lugar, há falta de informação e de educação formal sobre o tema. Indígenas, africanos e pobres são raramente mencionados nas lições de História e, na maioria das vezes, as poucas referências são negativas, ao serem representados como preguiçosos, uma massa de servos atrasados incapazes de alcançar a

civilização. Os índios eram considerados ferozes inimigos, dominados por séculos e isso pleno iure. Em famoso debate, no início do século XX, Von Ihering, então diretor do Museu Paulista, propôs o extermínio dos índios Kaingangs que, segundo ele, estavam a atravancar o progresso do país (SCHWARCZ, 1989, p. 59) e, mesmo que tenha sido desafiado por outros intelectuais, principalmente do Museu Nacional do Rio de Janeiro, sua atitude era e ainda é muito sintomática da baixa estima dos indígenas, mesmo na academia. Basta lembrar que o material indígena proveniente do oeste do Estado de São Paulo, coletado há oitenta anos, à época de Von Ihering, apenas agora está sendo exposto, graças a um projecto inovador da Universidade de São Paulo (CRUZ, 1997): antes tarde do que nunca! No Brasil, o cuidado do patrimônio sempre esteve a cargo da elite, cujas prioridades têm sido tanto míopes como ineficazes. Edifícios de alto estilo arquitetônico, protegidos por lei, são deixados nas mãos do mercado e o comércio ilegal de obras de arte é amplamente tolerado. Recentemente, Christie’s vendeu uma obra-prima de Aleijadinho (BLANCO, 1998a, 1998b). A imprensa está sempre a noticiar a respeito, sem que se faça algo a respeito (WERNECK 1998). Arqueólogos de boa cepa não escondem sua ligação com antiquários (LIMA, 1995). A gente comum sente-se alienada tanto em relação ao patrimônio erudito quanto aos humildes vestígios arqueológicos, já que são ensinados a desprezar índios, negros, mestiços, pobres, em outras palavras, a si próprios e a seus antepassados. Neste contexto, a tarefa acadêmica a confrontar os arqueólogos e aqueles encarregados do patrimônio, no Brasil, é particularmente complexa e contraditória. Devemos lutar para preservar tanto o patrimônio erudito, como popular, a fim de democratizar a informação e a educação, em geral. Acima de tudo, devemos lutar para que o povo assuma seu destino, para que tenha acesso ao conhecimento, para que possamos trabalhar, como acadêmicos e como cidadãos, com o povo e em seu interesse. Como cientistas, em primeiro lugar, deveríamos buscar o conhecimento crítico sobre nosso patrimônio comum. E isto não é uma tarefa fácil.

Conclusão Cuba e Brasil compartilham tradições comuns, assim como especificidades. Ambos países resultam da colonização ibérica, marcados pela escravidão e pela mescla cultural, com um passado colonial de conseqüências duradouras. As diferenças não podem ser, também, subestimadas, a começar pelas divergências entre as colonizações espanhola e portuguesa (FUNARI, 2006). A coroa espanhola, centralizada, estabeleceu balizas de assentamento, enquanto os lusos deram continuidade à ocupação

do espaço de origem medieval. A isso, some-se a independência tardia de Cuba, ante a experiência monárquica brasileira. Por fim, no último meio século, Cuba seguiu uma via revolucionária, à diferença do Brasil, primeiro, vítima de ditadura militar, depois integrado à economia capitalista de forma marginal. Havana, patrimônio da humanidade, assim como os patrimônios tombados no Brasil, representam desafios para a preservação e apenas a inclusão dos grupos sociais na gestão patrimonial poderá garantir sua vivificação.

Agradecimentos: Agradecemos a diversos colegas, que contribuíram de diferentes maneiras, para que este artigo fosse escrito: Scott Allen, Jopep Ballart, Brian Durrans, Juan Manuel García, Siân Jones, Vítor Oliveira Jorge, Robert Layton, Charles E. Orser, Jr., Parker Potter, Michael Rowlands, Bruce G. Trigger, Peter Ucko. A responsabilidade pelas idéias restringe-se aos autores. Devemos mencionar, ainda, os apoios institucionais da FAPESP, Congresso Mundial de Arqueologia, Instituto de Arqueologia (Londres), CNPq, Universidade de Barcelona e do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas (NEE/UNICAMP).

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A IMPORTÂNCIA DO ANEXO DA CONVENÇÃO DA UNESCO SOBRE A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL SUBAQUÁTICO PARA A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO ARQUEOLÓGICO24.

Pilar Luna Erreguerena

Antecedentes Desde a segunda metade do século XX, alguns países começaram a manifestar sua inquietação para os riscos que corriam os vestígios culturais que estavam debaixo de suas águas. Em 1956, a Unesco adotou a Recomendação que define os princípios internacionais que deveriam ser aplicados às escavações arqueológicas, a qual inclui as explorações efetuadas “no leito ou no subsolo de águas interiores ou territoriais de um Estado membro” (UNESCO, 2002, Artículo 1). Todavia, o patrimônio cultural submerso continuou desprotegido e ameaçado, sobretudo, a partir da invenção do equipamento de mergulho autônomo, conhecido como SCUBA, depois da Segunda Guerra Mundial, que converteu o acesso ao fundo dos oceanos em algo tangível e próximo. Durante a década de 1980, se tornou iminente que novas e mais drásticas medidas em relação à proteção desse patrimônio deveriam ser tomadas. A criação de um comitê internacional se converteu em uma necessidade imprescindível. Assim nasceu, em 1991, dentro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), o Comitê Internacional do ICOMOS para a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático (ICUCH), formado por especialistas dos cinco continentes que trabalham tanto na investigação e proteção dos recursos culturais submersos, como em seu manejo e gestão. O promotor foi Graeme Henderson, diretor do Museu Marítimo da Austrália Ocidental, em Fremantle, que se tornou o primeiro presidente do ICUCH, posição atualmente ocupada pelo arqueólogo canadense Robert Grenier, incansável batalhador pela preservação do patrimônio cultural submerso. O desafio que enfrentavam os especialistas que formavam o ICUCH era enorme. O século XX havia sido o marco de um importante desenvolvimento das técnicas de mergulho que permitiam acessar cada vez mais sítios com vestígios culturais que durante muitos séculos haviam permanecido

24

Tradução realizada por Gilson Rambelli do artigo “La importancia del Anexo de la Convención para la producción de conocimiento arqueológico”, apresentado no Simposio Internacional de Arqueología Subaquática – XIII Congresso da Sociedade deArqueologia Brasileira – SAP, Campo Grande, Brasil, 5-7septiembre 2005.

protegidos por estarem localizados em grandes profundidades ou em lugares que era difícil, e em alguns casos, impossível de se chegar. Entre as primeiras tarefas do novo comitê estava a elaboração de uma carta que serviria de guia para os paises e pessoas interessados na preservação de uma importante herança cultural que durante muito tempo permaneceu esquecida, permanecendo a mercê de grupos de caçadores de tesouros, ou mesmo de mergulhadores que desconheciam seu valor como parte vital do patrimônio da humanidade. Em outubro de 1996, durante a décima primeira Assembléia Geral do ICOMOS, em Sofia, Bulgária, se adotou e ratificou a Carta Internacional do ICOMOS sobre a Proteção e Gestão do Patrimônio Cultural Subaquático, que “tem por objetivo estimular a proteção e a gestão do patrimônio cultural subaquático em águas interiores e próximas da costa, em mares pouco profundos e em oceanos profundos. Põe sua ênfase nos atributos e circunstâncias específicos do patrimônio cultural subaquático que deve ser interpretado como um suplemento da Carta do ICOMOS para a Gestão do Patrimônio Arqueológico de 1990” (ICOMOS s/f).

A Convenção da Unesco. A Carta elaborada pelo ICUCH resultou um elemento inspirador e de grande valor para os especialistas governamentais convidados pela Unesco para elaborar o texto da Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático, aprovada em 2 de novembro de 2001, durante a 31 ª Reunião da Conferência Geral da Unesco, em Paris, a qual define o patrimônio cultural subaquático como “todos os vestígios da existência do homem de caráter cultural, histórico ou arqueológico que se encontrem parcial ou totalmente, periódica ou continuamente, submersos há, pelo menos, 100 anos, nomeadamente: i) sítios, estruturas, edifícios, artefatos e restos humanos, bem como o respectivo contexto arqueológico e natural; ii) navios, aeronaves e outros veículos, ou parte deles, a respectiva carga ou outro conteúdo, bem como o respectivo contexto arqueológico e natural; iii) artefatos de caráter pré-histórico...” (UNESCO 2001, p2). Com algumas modificações, os conceitos da Carta do ICUCH passaram a fazer parte da Convenção da Unesco como o Anexo, sob a denominação de “Regras relativas a intervenções sobre o patrimônio cultural subaquático”, tendo sido aprovado por unanimidade pelos especialistas, reunidos na sede da Unesco, em julho de 2001. Cabe ressaltar, que o Artigo 33 da Convenção determina que

“as regras anexas fazem parte integrante da presente Convenção, e salvo disposição expressa em contrário, a referência à presente Convenção abrange as regras” (UNESCO, 2001, p.14). As regras se dividem em quatorze tópicos referentes a: I. Princípios gerais; II. Plano do projeto; III. Trabalhos preliminares; IV. Objetivo, metodologia e técnicas do projeto; V. Financiamento; VI. Duração do projeto – Calendário; VII. Competência e qualificações; VIII. Preservação e gestão do sítio; IX. Documentação; X. Segurança; XI. Meio ambiente; XII. Relatórios; XIII. Conservação dos arquivos do projeto; XIV. Divulgação. Estes tópicos estão direcionados para auxiliar nas distintas etapas que constituem um projeto arqueológico subaquático e para assegurar que o mesmo seja levado adiante de acordo com o espírito da Convenção. O tópico “Princípios Gerais” inclui as oito primeiras regras. A número um se refere à preservação in situ como primeira opção, para não alterar os vestígios culturais e nem o contexto em que estão inseridos, ou mesmo quando não se conta com recursos financeiros e humanos necessários para se levar adiante um projeto arqueológico que implique na escavação parcial ou extensa, e que garanta a conservação dos materiais recuperados. Embora a preservação in situ seja ideal para a produção do conhecimento arqueológico, já que permite preservar o lugar intacto como fonte permanente de informação e de consulta, e representa ainda a possibilidade de se criar um museu de sítio que pode ser usado também como escola para o treinamento de futuros especialistas, esta opção nem sempre é viável uma vez que existem vários fatores para se considerar. Como, por exemplo, a localização do próprio sítio, porque se este se encontra a pouca profundidade, o material arqueológico estará exposto a fenômenos meteorológicos ou a uma pilhagem em menor escala que não requer grandes dispositivos e, portanto, não será fácil de ser detectada. Isto exige especial importância no caso dos sítios remotos que não podem ser vigiados. Neste sentido, a Regra número um é extremamente clara ao especificar que só serão autorizados trabalhos arqueológicos que se realizem de acordo com o conceito de proteção da própria Convenção, sempre e quando esses "contribuírem igualmente, de forma significativa, para a proteção, o conhecimento ou a valorização desse patrimônio" (UNESCO, 2001, p 15). Pode-se considerar que a Regra número dois manifesta um dos aspectos fundamentais do espírito da Convenção ao afirmar, de maneira categórica, que a exploração comercial do patrimônio cultural subaquático ou sua dispersão irreversível é incompatível com a proteção e a gestão corretas dessa herança cultural. Esta Regra é crucial na batalha permanente que se segue contra os grupos de caçadores de tesouros, cujo interesse é, unicamente, a recuperação dos bens econômicos no menor

tempo possível. É comum que para alcançar os seus fins utilizem, inclusive, dinamites, destruindo dessa maneira não só o contexto arqueológico mas também o natural no qual esse se encontra imerso. Isto está diretamente relacionado com a Regra número três que indica muito claramente que "as intervenções sobre o patrimônio cultural subaquático não deverão afetá-lo negativamente mais do que o necessário para consecução do projeto" (UNESCO, 2001, p.15). Vale lembrar que, quando se realiza qualquer trabalho arqueológico em um sítio é inevitável se causar algum tipo de dano; porém, é responsabilidade do coordenador do projeto e dos demais participantes causar o mínimo impacto tanto no patrimônio cultural como no natural e, de ser possível, se encarregar de adotar as medidas apropriadas para a recuperação do sítio e do ambiente o qual está inserido. Um exemplo que aconteceu no México foi o projeto arqueológico-biológico no Recife Chitales, no Caribe, onde em 1990 foram desenvolvidos trabalhos conjuntos que participaram arqueólogos da Subdirección de Arqueología Subacuática del Instituto Nacional de Antropología e Historia (INAH) e da organização Barcos de Exploración y Descubrimiento com sede no Texas (SEDR), como também os biólogos do Instituto de Ciencias del Mar y Limnología de la Universidad Nacional Autónoma de México. (UNAM). Uma vez que os arqueólogos escolheram a área onde eles escavariam vários poços de sondagem, os biólogos se ocuparam de fotografar, inventariar e retirar os corais vivos dessa área. Quando os arqueólogos concluíram o trabalho deles, os biólogos reimplantaram os corais e os acompanharam durante um ano, até que não apresentassem mais vestígios do impacto do trabalho arqueológico. Este projeto resultou em uma fonte significativa de conhecimento tanto para a arqueologia como para a biologia marinha. Por outro lado, a Regra número quatro insiste no uso de técnicas e métodos de exploração não destrutivos, sempre considerando a preservação in situ como primeira opção, e mesmo nos casos em que sejam necessários extrair o patrimônio, as técnicas e os métodos deverão ser "o menos destrutivos possível e contribuir para a preservação dos vestígios" (UNESCO, 2001, p 15). Isto, evidentemente permitirá que o sítio conserve as informações que manteve zelosamente guardadas durante tanto tempo e incrementará as possibilidades de investiga-lo de maneira científica. A Regra número cinco, contida na seção de Princípios gerais, do Anexo, fala que as atividades dirigidas ao patrimônio cultural subaquático não devem perturbar de maneira desnecessária os restos humanos ou sítios venerados. Isto adquire importância especial para os países onde grupos nativos utilizaram, ou continuam utilizando, diversos corpos de água – como rios, mananciais, lagos,

lagunas e cenotes – como depósitos mortuários, sítios de sacrifício humano ou para realizar rituais dedicados às suas divindades. Também se aplica aos sítios que há milhares de anos estavam secos e que se tornaram cobertos de água com o passar do tempo, como as cavernas inundadas nos estados mexicanos de Yucatán e Quintana Roo, onde as descobertas de restos humanos têm sido notáveis e falam de uma ocupação que remonta há mais de dez mil anos, datação esta, que se confirmada, será uma das mais antigas do país. No que se refere às águas marinhas se contam, principalmente, os restos daqueles homens que perderam a vida em naufrágios provocados por causas como incêndios, tempestades ou ataques, de piratas, corsários e bucaneiros que, em tempos mais recentes, durante batalhas e guerras. Um passo vital para a produção do conhecimento arqueológico é o registro de toda a informação contida em um sítio, tanto em cada um dos elementos como no contexto arqueológico e natural. A Regra número seis assinala a estrita regulamentação das atividades dirigidas ao patrimônio cultural subaquático para que o registro de toda a informação cultural, histórica e arqueológica possa ser efetuado devidamente. O acesso do público ao patrimônio cultural in situ foi um tema polêmico, inclusive durante as reuniões de especialistas governamentais para elaborar o texto da própria Convenção. Relativo a este ponto, a Regra número sete do Anexo fomenta esse acesso, contanto que o mesmo não constitua um risco para o legado cultural. O reconhecimento do “direito do público de beneficiar das vantagens educativas e recreativas decorrentes de um acesso responsável e não intrusivo ao patrimônio cultural subaquático in situ e da importância da educação do público para uma maior conscientização, valorização desse patrimônio", também está presente na primeira página da própria Convenção (UNESCO, 2001, p 1). Na realidade, quando se chegou a um acordo neste sentido, a PADI (Professional Association of Diving Instructors) - organização internacional dedicada ao mergulho recreativo e que esteve presente em algumas das reuniões da Unesco – elaborou, de imediato, um folheto informativo a fim de conscientizar os seus associados, quanto a importância e a necessidade de se proteger os naufrágios. Certamente, hoje em dia as fronteiras que separam o mundo têm ficado cada vez mais sutis. A globalização tem permitido um amplo intercâmbio em todas as esferas da vida, e desde sempre se tem demonstrado que tanto para o bem, quanto para o mal, a união faz a força. No campo da

preservação do patrimônio cultural subaquático, a cooperação internacional é a melhor forma para salvaguardá-lo e investigá-lo de maneira científica. Um projeto de multidisciplinar e multinstitucional, tanto a nível nacional como internacional, terá mais possibilidades de sucesso ao otimizar os recursos humanos, financeiros e materiais; trocar experiência tecnológica, e contar com a assessoria de renomados especialistas. Este espírito de cooperação está presente tanto no Artigo 19, que se refere a "Cooperação e a troca de informação”, como na Regra número oito do Anexo, que aponta que a cooperação internacional será “encorajada, de modo a favorecer intercâmbios profícuos entre arqueólogos e especialistas de outras profissões conexas, bem como um melhor aproveitamento em suas competências" (UNESCO, 2001, p 15). Um exemplo excelente desta cooperação internacional é o caso dos navios bascos do século XVI afundados em Red Bay, Península de Labrador, no Canadá, onde tanto o país que a bandeira tremulava nessas embarcações, como aquele em cujas águas se encontram esses restos arqueológicos, têm unido esforços em benefício da investigação e preservação desse importante legado. Por sua vez, o México sempre contou com a participação de especialistas nacionais de disciplinas afins e com a colaboração de especialistas internacionais, essencialmente americanos e canadenses que generosamente têm compartilhado suas experiências e conhecimentos de 1979 até o presente. O segundo bloco de Regras, ou seja, da nove a treze, está contido no tópico número II denominado "Plano do projeto" e contempla desde investigação prévia até o programa de gestão, passando por todas as etapas de um projeto científico, como: objetivos, técnicas e metodologias, financiamento, calendário, equipe de participantes, conservação, relatórios, publicações, etc.. Cabe ressaltar que, as etapas detalhadas neste bloco de Regras são indispensáveis em qualquer projeto científico e constituem a única maneira de se obter conhecimento de um sítio com seus vestígios culturais, ou até mesmo de um elemento isolado. As Regras 14 e 15 estão incluídas no tópico número III intitulado: "Trabalhos preliminares". A primeira se refere à necessidade de se avaliar um sítio e o seu entorno natural, antes de se iniciar qualquer trabalho arqueológico, considerando a vulnerabilidade quanto ao possível dano que poderá ser causado e as possibilidades para a obtenção de informação, de acordo com os objetivos do projeto. Por sua vez, a Regra número 15 estabelece que essa avaliação deverá incluir todo o tipo de

estudos prévios relativo ao sítio, assim como uma consideração realista de quais seriam as conseqüências das atividades que se planejam realizar neste sítio, a curto, médio e longo prazo. O tópico IV (quatro): "Objetivos, metodologia e técnicas do projeto", contém a Regra número 16, que enfatiza que os métodos e técnicas a serem empregados devem ser ajustados aos objetivos do projeto e o menos prejudicial possível. Isto evidentemente dependerá do tipo de projeto, seus objetivos e do lugar onde se realiza, porque não é a mesma coisa escavar um sítio que já foi coberto por um arrecife, onde terão que ser utilizadas ferramentas pesadas para quebrar esta camada, que uma caverna inundada onde o sedimento é em geral muito fino. Relativo ao financiamento e a duração do projeto (informações incluídas nas Regras de 17 a 21), a recomendação principal é contar tanto com o financiamento total tanto como com um calendário que garanta a execução de todas as fases do projeto, inclusive a análise dos materiais recuperados, sua conservação, a elaboração de relatórios técnicos e a difusão. Embora esta seria a situação ideal, muitas vezes, e, sobretudo em nossos países em desenvolvimento, os recursos financeiros devem ser geridos ano a ano, uma vez que as instâncias nacionais autorizadas não contam com pressupostos de longo prazo. Este é o caso do México. Porém, embora não se tenha o dinheiro com antecedência, a instituição, neste caso o Instituto Nacional de Antropologia e História, respalda a continuação do projeto, contanto que este cumpra ano após ano o programa da fase correspondente. Um exemplo disto é a situação vivida no Proyecto de Investigación de la Flota de la Nueva España de 1630-1631, uma das investigações levadas adiante desde 1995,

pela Subdirección de

Arqueología Subacuática do INAH. Embora durante três anos, de 2000 a 2002, não se contou com os recursos financeiros necessários para continuar as prospecções no Golfo de México, o que obrigou a modificar o calendário original, o trabalho de gabinete não foi interrompido. Também se continuou com a difusão do avanço deste projeto e da arqueologia subaquática de maneira geral. Por sua vez, as Regras 22 e 23 destacam um aspecto fundamental de qualquer projeto que pretenda investigar o patrimônio cultural subaquático: a competência e qualificações tanto do arqueólogo subaquático responsável pelo projeto como dos demais participantes. Neste ponto, a experiência do responsável pelo projeto é fundamental, já que, de certa forma, depende dele os objetivos planejados serão ou não alcançados. Embora se possa contar com a colaboração de estudantes e de convidados (voluntários) para que se qualifiquem em diversas áreas, é importante que a maioria dos participantes tenha experiência nas tarefas que são designados. Assim mesmo, é indispensável que o responsável pelo projeto permaneça à frente dos trabalhos durante toda a etapa de campo.

O tópico VIII do Anexo se refere a dois aspectos cruciais: a preservação e a gestão do sítio. A preservação de materiais provenientes de meios aquáticos é sem dúvida a parte mais cara e prolongada de um projeto desta natureza. Há vários exemplos no mundo nos quais os especialistas investiram entre 30 e 40 anos na preservação dos cascos de madeira dos navios recuperados. Dois deles são o Vasa na Suécia e o Mary Rose na Inglaterra. Não se pode planejar um projeto que implique na escavação ou na remoção de peças se não estiver assegurada a preservação dos objetos a serem recuperados. Outro ponto para enfatizar é a qualidade da preservação. A Regra 24 é incisiva quando afirma que "a preservação deve ser efetuada em conformidade com as normas profissionais vigentes" (UNESCO, 2001, p 18). Por outro lado, há exemplos como os trabalhos realizados pela agência Parks Canadá com os restos de madeira dos navios bascos localizados em Red Bay, na Península de Labrador, como já foi mencionado. Uma vez que se obteve toda a informação possível, a madeira foi depositada novamente no leito marinho, dentro de um ambiente anaeróbico e controlado, o qual se monitora de maneira constante. Este tem sido um exemplo de como se pode extrair todo o conhecimento possível, sem a tremenda inversão econômica e de trabalho que implica a preservação, principalmente se se trata de um objeto da magnitude do casco de uma embarcação. Relativo à gestão, a Regra número 25 assinala que, durante o trabalho de campo e uma vez que este tenha terminado, deverão ser previstas as medidas necessárias para a operação adequada ao sítio, incluindo sua estabilização, controle sistemático e proteção, como também atividades de informação pública. Embora isso dependa das características de cada sítio, está intimamente relacionada com uma constante campanha de conscientização relativa ao valor e importância do patrimônio cultural submerso como fonte de conhecimento, e o seu manejo como um lugar onde o público geral pode passar um bom momento ao mesmo tempo em que incrementa sua cultura. As Regras 26 e 27 se referem à documentação. Em todo projeto arqueológico, a documentação das diversas atividades e etapas é obrigatória, especialmente quando se trabalha debaixo d’água. O registro por diversos meios, como desenho, fotografia e vídeo, é o que permitirá para o investigador continuar a análise fora da água e consultar outros especialistas que não podem acessar o sítio. Também, esse registro constitui per se a memória de um fato histórico que é a própria descoberta e as intervenções que são feitas nele. Cada traço realizado e cada imagem captada em um sítio subaquático tem um grande valor, já que devido às características do ambiente, o acesso e o tempo de permanência são limitados. Inclusive,

existem casos em que já não é mais possível se regressar ao sítio, ou também os que se podem ver afetado por diversas razões como fatores meteorológicos ou saques que podem incluir o uso de explosivos. Estas são algumas das grandes diferenças entre um projeto arqueológico debaixo da água e um em superfície, no qual o investigador pode ir tantas vezes quanto requeira para o seu sítio e nele permanecer todo o tempo necessário. Da qualidade do registro de dados obtidos in situ dependerá a possibilidade de uma adequada análise e interpretação que serão expressas nos relatórios técnicos e na difusão, e finalmente na produção de conhecimento. Se a segurança dos investigadores é um elemento fundamental em qualquer projeto arqueológico, quando se trabalha debaixo d’água essa adquire outra dimensão, já que o especialista se encontra em um ambiente estranho ao seu hábitat natural e depende de uma série de equipamentos e acessórios que lhe permitem trabalhar por um certo período e respirar ar comprimido, mas que também podem falhar e causar situações limites ou até mesmo a morte. Igualmente, está exposto a uma série de riscos que envolvem correntes, falta de visibilidade e contatos com animais perigosos, entre outros. É por isso que a Regra número 28 ressalta a importância de se elaborar um plano de segurança adequado. Este plano dependerá, em boa parte, da localização e da profundidade do sítio onde se trabalha; porém, sempre deverá incluir elementos básicos como certificados de saúde dos participantes, contratação de seguros contra acidentes, kits de primeiros socorros, um programa de imersões elaborado rigorosamente de acordo com as tabelas de mergulho internacionais e um programa de emergência que contemple a localização dos hospitais e da câmara de descompressão mais próximos, entre outros. Como foi mencionada em parágrafos anteriores, a proteção do ambiente é uma responsabilidade que o arqueólogo deve ter presente ao realizar suas atividades, já que o patrimônio cultural se encontra imerso no patrimônio natural. É por isso que a Regra número 29 indica que deve preparar-se uma política adequada para que não se perturbem indevidamente os fundos ou a vida marinha. Os relatórios técnicos, parciais e finais, de um projeto arqueológico constituem a história do mesmo, e serão fontes de informação e conhecimento para futuros especialistas. Sua importância é enfatizada nas Regras 30 e 31, as quais detalham a informação que tais relatórios devem conter. Este está vinculado com o tópico número de XIII que contém as Regras 32, 33 e 34, as quais se referem à conservação dos arquivos do projeto. Cabe ressaltar, que por "arquivos do projeto" se entende não só os documentos adquiridos e gerados, mas todos aqueles bens culturais que tenham

sido recuperados e que deverão ser mantidos juntos e intactos em forma de coleção. A Regra 34 indica que esses arquivos deverão ser manejados de acordo com as normas profissionais internacionais e aquelas ditadas pelas autoridades competentes. Considerando à arqueologia como uma ciência social, a difusão dos resultados das investigações é um compromisso indispensável. Os relatórios técnicos completam uma função, mas é importante compartilhar com o público em geral as atividades realizadas e os frutos obtidos. Para esta tarefa, os meios maciços de comunicação resultam um veículo ideal, o mesmo que os foros acadêmicos e aqueles abertos a todo o público. Isto, indiscutivelmente contribui à educação e a tomada de consciência em relação a variedade e riqueza do patrimônio cultural submergido, sua importância como parte da história da nação em cujas águas se encontra e da própria humanidade, e a necessidade de contribuir para sua preservação. Para isso se refere o tópico de “Difusão” que é o último do Anexo e o qual contém as Regras 35 e 36. Ainda que, o país em cujas águas se encontra o patrimônio cultural é o primeiro responsável pela preservação e investigação do mesmo, contar com um instrumento internacional como a Convenção da Unesco sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático e um Anexo que se refere de maneira tão específica e detalhada às atividades dirigidas a esta herança é um privilégio que é necessário agradecer profundamente. Buscando ganhar a batalha contra os caçadores de tesouros, implementar mecanismos adequados de proteção e investigar de maneira científica o patrimônio cultural que está debaixo das águas do planeta, a melhor maneira é unindo esforços para dar vida a cada um dos artigos e regras da Convenção. Desta maneira, poderemos salvaguardar este legado para que as gerações futuras se beneficiem do conhecimento derivado do mesmo e se convertam por sua vez em guardiões zelosos desta riqueza cultural.

Referências Bibliografícas ICOMOS (s/f), Carta Internacional del ICOMOS sobre la Protección y la Gestión del Patrimonio Cultural Subacuático, Parks Canada, Canadá UNESCO. Proteger el Patrimonio Cultural Subacuático, carpeta de información, París, 2002. UNESCO. La Convención de la Unesco sobre la Protección del Patrimonio Cultural Subacuático, en la carpeta de información, Artículos 1, p2; 33, p14; I Principios Generales, Norma, p15, París, Francia, 2001.

PATRIMÔNIO CULTURAL SUBAQUÁTICO NO BRASIL: DISCREPÂNCIAS CONCEITUAIS, INCONGRUÊNCIA LEGAL. Gilson Rambelli

“Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira [...].” Constituição Brasileira, 1988, art. 216

Introdução O presente capítulo pretende, obedecendo a temática do próprio livro, discutir as questões conceituais e legais concernentes ao patrimônio cultural subaquático no Brasil e, especificamente, no que diz respeito às pesquisas arqueológicas realizadas no ambiente aquático. Considerando que, para os arqueólogos, a Arqueologia é uma disciplina bastante importante na produção de conhecimento sobre esse patrimônio. Pretende também, discutir o problema da elitização do patrimônio cultural, com ênfase ao patrimônio submerso, que devido a sua interação com ambiente aquático se torna mais distante da sociedade, discutindo a importância da Arqueologia Pública para reverter esse processo, bem como, a importância do uso social do patrimônio cultural subaquático. O ponto de partida para essa reflexão é a ambigüidade no tratamento dado ao patrimônio cultural brasileiro, de natureza material – o sítio arqueológico –, se o mesmo se encontra, por algum motivo, embaixo d’água. Curiosamente, o simples fato de o patrimônio cultural estar submerso acaba por permitir compreensões e interpretações variadas, decorrentes de construções simbólicas que envolvem o ambiente aquático e, em particular, os ambientes marítimos, resultantes da relação histórica milenar entre o ser humano e esse ambiente. Assim, citar como epígrafe o artigo 216 de nossa Carta Magna, foi intencional e provocativo. Porque, estranhamente, o conteúdo dele e o da legislação atual – Lei Federal 10.166/00 (que alterou a Lei Federal n 7.542/86) –, que se ocupa do patrimônio cultural subaquático, são contraditórios. E, a legislação é um elemento fundamental para a gestão e proteção do patrimônio cultural. Talvez, o equívoco identificado seja resultante da presença de água encobrindo os sítios arqueológicos.

A agravante desse equivoco é que o patrimônio cultural subaquático no Brasil, longe de representar a versão molhada do patrimônio cultural, muito bem conceituado na Constituição de 1988, a Lei Federal 10.166/00 o define como “coisas e bens de valor artístico, de interesse histórico ou arqueológico”; e o que é pior, não reconhece a Arqueologia científica – sistemática –, consagrada no ambiente terrestre, como a base para as intervenções sobre o patrimônio cultural submerso. Por ser ratado como coisas e bens de valor, concebe a intervenção intrusiva sobre esse patrimônio como uma mera operação para a recuperação de objetos do fundo do mar, sobretudo dos restos de navios afundados. Embora o resultado desse jogo de palavras, com efeito, prático considerável, ainda não seja perceptível ao senso comum, cabe aos especialistas alertarem a sociedade para a gravidade do problema; porque os efeitos desse processo atingem diretamente todos nós. O que está ameaçado não é o objeto de estudo dos arqueólogos, e sim um patrimônio cultural público – único e não renovável – portador de inúmeras referências às diversas identidades “dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (Constituição Brasileira, 1988, Art. 216.). Nesse contexto, cabem algumas explicações para as indagações apresentadas, porque para a Arqueologia,

o

patrimônio

cultural

material,

representado

pelos

sítios

arqueológicos,

independentemente de estarem ou não submersos, é caracterizado pela existência de cultura material, “que deve ser entendida como tudo que é feito ou utilizado pelo homem” (FUNARI, 2005, p. 85)25. De forma que a Arqueologia Subaquática ou é Arqueologia, ou é pura aventura submarina! Não deve ser compreendida de maneira diferente dos estudos de Arqueologia feitos em superfície, fora d’água. As diferenças impostas pelo ambiente aquático não caracterizam outra disciplina, nem descaracterizam o patrimônio cultural! Não estamos falando de outra Arqueologia, nem de algo que deixa de ser patrimônio cultural por estar submerso! O que muda mesmo é o trabalho de campo, que exige o domínio do mergulho autônomo26 pelo arqueólogo e a necessidade de adaptações de

25

É importante enfatizar, uma vez que compreendemos a cultura material como objeto de estudo da Arqueologia, que “as relações humanas, em qualquer sociedade, dão-se por meio de contatos, seja entre o homem e a natureza, seja entre os próprios homens. A cultura é tudo o que foi criado, feito (desenvolvido, melhorado modificado) pelo próprio homem, diferentemente do que fornece a natureza. Na cultura, está representada a qualidade fundamental do homem: a sua capacidade de desenvolver a si mesmo, que torna possível a própria história da humanidade. O objeto apropriado ou desenvolvido pelo ser humano converte-se em artefato, recebe uma forma dada pelo homem, uma ‘forma humana’, porque encerra em si um conteúdo social, e não apenas natural” (FUNARI, 2003, p. 36). 26 O mergulho autônomo teve sua origem nos anos 1940, com a invenção do aqualung (ou equipamento scuba), por Jacques-Yves Cousteau e Emile Gagnan. Que permite ao mergulhador levar consigo o ar (ou outras misturas gasosas) dentro de um ou mais cilindros presos às costas, e respirá-lo embaixo d’água, através de uma válvula de demanda. Sua

métodos e técnicas, bem como cuidados especiais com a conservação dos vestígios arqueológicos (BASS, 1969; RAMBELLI 2002; 2003; 2006; BAVA-DE-CAMARGO, 2002; CALIPPO, 2004). Trata-se de uma mudança logística, técnica, em relação ao ambiente e não epistemológica, em relação à ciência! Logo, é inconcebível, em pleno século XXI, no Brasil, o patrimônio cultural subaquático e a Arqueologia Subaquática ainda serem considerados de maneira diferente das contrapartidas terrestres! Para um melhor entendimento desse significado do patrimônio cultural subaquático e da Arqueologia em águas brasileiras, temos que nos remeter ao histórico em que esse patrimônio está inserido.

Aspectos históricos sobre o patrimônio cultural subaquático. A percepção ao patrimônio cultural subaquático está diretamente ligada a História da Arqueologia Subaquática, e esta, à História do mergulho, e esta, por sua vez, à História da própria Arqueologia e, particularmente, à maneira de como a sociedade ocidental concebe o ambiente aquático, e, principalmente, o mar. Desse contexto histórico surgiram duas tradições antagônicas que se fazem presentes e atuantes: a da caça ao tesouro, que trabalha com a comercialização do patrimônio cultural subaquático, atribuindo não só valor histórico, artístico ou arqueológico, mas também o econômico aos bens culturais recuperados, e tem seus princípios fundamentados em uma tradição milenar e aventureira dos resgates e salvados marítimos; e a da Arqueologia Subaquática científica, que trabalha com a produção do conhecimento sobre o patrimônio cultural subaquático, tem seus princípios fundamentados na Arqueologia, e se iniciou na década de 1960, com arqueólogos aprendendo a mergulhar (RAMBELLI, 2006b). O problema dessa dicotomia na maneira de abordar o patrimônio cultural subaquático é que a tradição mais antiga, a da caça ao tesouro, se sobrepõe a recente, da Arqueologia, e assim se legitima ao grande público, que tem uma visão romântica do ambiente aquático, associando-a ao fetiche dos objetos provenientes da aventura submarina, à coragem dos mergulhadores, aos custos elevados das operações de resgate, aos riscos dos trabalhos no mar. De forma que, esses adjetivos acabam influenciando diretamente na percepção das pessoas em relação ao patrimônio cultural

autonomia de tempo submerso dependerá de fatores como profundidade, temperatura da água, condicionamento físico do mergulhador, etc (RAMBELLI, 2002).

subaquático, com ênfase aos naufrágios marítimos, e conseqüentemente, à Arqueologia Subaquática (RAMBELLI, 2003; 2006; 2006b). Assim, a percepção da Arqueologia ao patrimônio cultural subaquático, que se pretende enfatizar neste capítulo, se perde facilmente diante desses pressupostos fantasiosos construídos ao longo do tempo, sustentados pela maneira simbólica de se conceber o mar, e, em particular, o fundo do mar. Segundo o antropólogo Antonio Carlos Diegues, “nas sociedades ocidentais, o mar permanece ainda como um espaço mal conhecido, perigoso, fora da cultura terrestre, fora da lei que impera no continente” (DIEGUES, 1998, p.58). Constatação que ajuda a explicar essa incompreensão generalizada em torno dessa temática. Quando o equipamento de mergulho autônomo foi desenvolvido, na década de 1940, e se popularizou, se tornando esporte, nos anos 1960, ele rompeu na prática com a tradição milenar que envolviam alguns poucos aventureiros, destemidos, que desafiavam o ambiente aquático, mas não com a maneira de pensar dessa atividade, ou seja, com as mentalidades atreladas ao mergulho. Assim, cabe enfatizar, que esse estigma, de característica universal, da caça ao tesouro, que se iniciou há milhares de anos, com os resgates de cargas submersas de navios, feitos por aventureiros destemidos, em troca do pagamento de recompensas, ainda se faz presente hoje. Por mais que mergulhar não representa mais uma aventura arriscada, e nem que o mergulhador tenha que ser alguém destemido, as notícias que envolvem o patrimônio cultural subaquático e, principalmente, os sítios arqueológicos de naufrágios insiste na percepção romântica a esse patrimônio. O que representa um grave problema, com efeitos bastante negativos em muitos países, como o nosso, por exemplo, para a proteção e gestão do patrimônio cultural subaquático e, conseqüentemente, à Arqueologia Subaquática. Este problema, facilmente identificado “pela presença e actuação de uma indústria marginal mas política e socialmente activa, dedicada à exploração comercial dos vestígios dos antigos naufrágios” (BLOT, 1999, p. 42), nos remete também a uma observação a respeito das condições sócioeconômicas das pessoas que se acham no direito de explorar esse patrimônio público em benefício próprio. As atividades aventureiras de caráter lucrativo privado sobre o patrimônio cultural subaquático público se regulamentaram historicamente em leis específicas, como num antigo Direito do Mar, por exemplo, posto em prática no final do século XIX, que explicitava que, qualquer embarcação, de qualquer tamanho, pertencia ao responsável pelo achado no momento em que, por qualquer razão, o

último representante do proprietário ou armador abandonasse o barco (BLOT, 1999). Ou ainda, em casos como a Lei de Salvamento, utilizada, sobretudo nos países anglo-saxões, “lastreada em pragmática lógica econômica, a lei assegura um percentual àqueles que recuperam bens ameaçados de perda em caso de afundamento da embarcação, o qual pode chegar a 90% do total do que se lograrem a salvar” (BO, 2003, p. 66). Com tantas possibilidades de se fazer fortuna “fácil”, é provável que os efeitos criados em torno desse “universo aquático”, expoente de personalidades destemidas, audaciosas e bem amparadas social, econômica e politicamente, como os homens dedicados aos resgates marítimos, tenham contribuído consideravelmente, para essa distinção entre Arqueologia de terra e de água. A preocupação internacional para com a ameaça ao patrimônio submerso vai ganhar legitimidade com o aparecimento das primeiras pesquisas arqueológicas subaquáticas sistemáticas, no início dos anos 1960, no Mediterrâneo, e terá o seu ápice, no início do século XXI, com a “Convenção da Unesco sobre a proteção do patrimônio cultural subaquático” 27, adotada em Paris, em novembro de 2001. Este documento internacional, que reforça a “Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos do Mar” – Doalos, ONU (Montego Bay, 1982), reconhece a importância dos testemunhos de atividades humanas que se encontram em diferentes contextos submersos como parte integrante da história da humanidade, com atenção especial aos sítios arqueológicos de naufrágios, pois esses foram formados pelos restos das mais diferentes embarcações afundadas no planeta água, de diferentes épocas e nacionalidades, expressando nitidamente a idéia de um patrimônio cultural sem fronteiras, de interesse de todos. E, a pertinência da pesquisa arqueológica subaquática sistemática para as intervenções intrusivas. A logomarca dessa Convenção da Unesco é a reconstituição arqueológica do casco de um galeão baleeiro basco, do século XVI, que se supõe ser o “San Juan”28; resultante de pesquisas arqueológicas subaquáticas sistemáticas realizadas pela equipe do Parks Canada, em Red Bay, no Labrador, Canadá. O que ilustra, literalmente, a dimensão de patrimônio cultural sem fronteiras comentada acima. Conhecemos muito pouco sobre os povos em suas relações mútuas que se consolidaram com as navegações ao longo da epopéia humana sobre o planeta água. Daí a Convenção se preocupar tanto com o futuro dessa herança comum a todos os povos. Herança formada, principalmente, pelos mais 27

A Convenção da Unesco sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático (UNESCO, 2001). (Tradução Francisco J. S. Alves). In: As cartas internacionais sobre o patrimônio (FUNARI & L. DOMINGUES, 2005). 28 Todas as informações levantadas pela Arqueologia e pela documentação histórica sugerem que se trata do galeão basco San Juan, naufragado em meados do século XVI.

diferentes restos de naufrágios espalhados pelo mundo, mas, constantemente ameaçados por iniciativas de empresas modernas de caça ao tesouro, que só visam lucrar com a comercialização desses bens culturais em um mercado ilícito, que se enquadra em outro segmento também combatido pelo direito internacional: o tráfico ilícito de bens culturais.

O histórico brasileiro A concepção da Arqueologia para a realização de pesquisas embaixo d’água: Arqueologia Subaquática (que começou com arqueólogos que aprenderam a mergulhar), que se espalhava rapidamente pelo mundo, excluía quaisquer iniciativas voltadas à exploração comercial do patrimônio cultural subaquático, fazendo com que vários países fechassem as portas aos seus caçadores de tesouros. O Brasil, infelizmente, não acompanhou essa tendência arqueológica internacional, ao contrário, foi vítima dela. Esses indivíduos, social, econômica e politicamente poderosos, proibidos de trabalhar em seus países, encontraram no Brasil, nos anos 1960/70 e início dos 80, excelentes parceiros e um campo promissor, sem nenhuma resistência ou obstáculo, para o desenrolar de suas atividades exploratórias. Vale ressaltar, que a Arqueologia brasileira só vai começar a ganhar o status de ciência, no final da década de 1950 e início dos anos 60. É nesse período que aparecem os primeiros pesquisadores profissionais brasileiros, fazendo investigações e chamando atenção para os problemas relativos à destruição dos sítios arqueológicos em nosso país, principalmente dos sítios pré-históricos. Esse processo, que envolveu universidades, museus, institutos, e até mesmo a legislação da época (a Lei Federal 3.924, de 1961, para a proteção das jazidas arqueológicas), não incluiu em nenhum momento a temática dos sítios arqueológicos submersos, e nem sequer citou o potencial dos sítios de naufrágios, que já eram bastante comentados e cobiçados. Enquanto, em terra, a Arqueologia se afirmava como ciência autônoma, desvinculada da concepção simplista de técnica auxiliar e ilustrativa da História, capaz de interpretar o passado por meio da intervenção (análise e interpretação) no contexto arqueológico; embaixo d’água os conceitos e as regras eram outros. Pode-se dizer que desde a concretização do saber arqueológico brasileiro, em nenhum momento o patrimônio cultural subaquático foi motivo de preocupação, ou das atenções voltadas aos procedimentos adotados em relação ao patrimônio cultural terrestre. Inclusive a salvaguarda desse patrimônio ficou fora da alçada do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), do Ministério da Cultura, o órgão responsável pelo patrimônio cultural

brasileiro. Coube a Marinha do Brasil, não pelo significado do patrimônio cultural subaquático, mas por sua localização: ambiente aquático; a responsabilidade, entre outras atribuições, sobre ele. Como a incumbência de autorizar e fiscalizar as intervenções subaquáticas. Até 1986, ano da promulgação da Lei Federal n 7.542, todas as intervenções realizadas em sítios arqueológicos submersos em águas brasileiras aconteceram, portanto, sob autorização e fiscalização da Marinha do Brasil. Os critérios que concediam ao explorador 80% do material resgatado, como forma de incentivo e de recompensa pela empreitada, e os 20% restantes à União, que os utilizava basicamente para a realização de exposições em museus; tiveram como inspiração, certamente, a Lei de Salvamento (dos países anglo-saxões), já citada anteriormente. A influência dos exploradores para a adoção desses critérios é explícita. Em outras palavras: qualquer semelhança é mera coincidência! A presença de caçadores de tesouros atuando livremente no litoral brasileiro pode ser justificada por vários motivos, o primeiro deles encontra respaldo na própria atividade da caça ao tesouro, que ainda hoje é caracterizada, na maioria dos casos, por pessoas respeitáveis e influentes no alto escalão dos governos, como financeiros e aristocratas, que falam bem (são ótimos lobistas), que estão sempre “rodeados de advogados e, ultimamente, também de arqueólogos sem escrúpulos” (CASTRO, 2005, p. 5). O segundo motivo a ser considerado, é que nessa época o Brasil vivia em plena ditadura militar, e, como foi citado, cabia a Marinha brasileira (e ainda cabe), sem nenhuma tradição em Arqueologia, ser a responsável pela salvaguarda de nossos sítios arqueológicos submersos e pelas autorizações de exploração. O terceiro motivo, é que os esforços feitos pelo IPHAN, à época, foram insuficientes para reverter esse processo que confundia Arqueologia com produção de coleções para museus (20% do material resgatado), e assistia os 80% serem comercializados pela iniciativa aventureira em leilões no exterior. E, o último deles, de acordo com essa nossa análise, diz respeito à própria Arqueologia brasileira, que nesse período, como já foi citado anteriormente, estava voltada quase que exclusivamente para os estudos da Pré-História de sítios

localizados

em

superfície,

e

assim,

alienada

às

possibilidades,

comprovadas

internacionalmente, de se estudar sistematicamente sítios arqueológicos históricos submersos, ficando distante desse processo e não impondo nenhuma resistência a ele (RAMBELLI, 2002; 2003; 2006; 2006b). O resultado dessas motivações mencionadas foi o surgimento de uma pseudo-arqueologia subaquática, conivente com o discurso dos caçadores de tesouros, que considerava o patrimônio cultural subaquático como “coisas e bens de valor artístico, de interesse histórico ou arqueológico”

e comercial que estavam perdidos no fundo do mar e que deveriam ser recuperados para serem colocados em museus (20%). Essa posição, autônoma em relação à Arqueologia brasileira e internacional, se legitimou perante a opinião pública garantindo o direito desses pseudo-arqueólogos explorarem por recompensas (80% do material resgatado) os sítios arqueológicos formados por diferentes naufrágios em águas brasileiras. A Lei Federal 7.542/86, mesmo sem contemplar a pertinência da pesquisa arqueológica sistemática subaquática feita por arqueólogos e nem todos os sítios arqueológicos subaquáticos, porque considera basicamente os sítios de naufrágios, vai ter como mérito acabar com esse processo descabido de partilha entre explorador e União, e determinar como pertencente à União todos os sítios arqueológicos submersos29. Vale ressaltar, que este documento representou um verdadeiro choque às livres iniciativas aventureiras que atuavam em nosso litoral, e, desde então, foi combatido por um forte lobby político. No dia 27 de dezembro de 2000, durante as comemorações de final de ano, foi sancionada, certamente com influência do lobby político mencionado, a Lei Federal 10.166/00 – alterando o texto da Lei Federal 7.542/86 –, voltando a estabelecer, nas entrelinhas, valor comercial às “coisas e bens de valor artístico, de interesse histórico ou arqueológico” resgatados de embarcações naufragadas por empresas de resgate ou ONGs, nacionais e internacionais. Cabe, no entanto, considerar outros fatores (modernos) que influenciaram essa mudança na legislação. É sempre bom lembrar que a estratégia de financiamento da caça ao tesouro mudou muito nos últimos anos,

“o negócio deles não é encontrar galeões com tesouros debaixo d’água, mas investidores ricos ou suficientemente estúpidos para lhes pagarem as contas. (...) Desenterram dos arquivos uma história de um naufrágio qualquer com um tesouro, real ou imaginário. As vezes, inventam uma história e metem-lhe elementos plausíveis” (CASTRO, 2005, p. 6), Os caçadores de tesouros aliam-se a políticos corruptos e à imprensa sensacionalista, tudo para atrair patrocinadores que se deixam enganar pelas fantasias das fortunas fáceis submersas. Ainda, segundo Filipe Castro, arqueólogo português, e professor do Institut of Nautical Archaeology (Texas A&M University): 29

Esta lei foi acrescida da Portaria Interministerial 69/89 (Ministério da Marinha e Ministério da Cultura), que estabeleceu algumas normas técnicas, legitimando a idéia do resgate de objetos do fundo do mar e de sua partilha monitorada, e não a pesquisa arqueológica sistemática in situ.

“os investidores são diferentes: uns não fazem a mínima idéia do que se passa e participam nestes projectos para viajar e confraternizar com aristocratas e estrelas do rock, outros julgam que vão enriquecer e os outros acreditam genuinamente que a arqueologia é encontrar artefactos, e que é melhor para os países pobres ficar com ‘metade dos artefactos’ do que ‘não os gozar no fundo do mar’” (2005, p. 7).

É importante ressaltar que isso se torna possível, porque diferentemente do que acontece com os sítios arqueológicos terrestres, que estão sob a jurisdição do IPHAN, que só emite autorizações de pesquisas para arqueólogos devidamente qualificados, após avaliação de projetos científicos e de currículos dos pesquisadores que comprovam suas qualificações; a nova lei, específica para os sítios arqueológicos de naufrágios, permite a Marinha brasileira emitir autorizações de pesquisa, sem nenhum critério arqueológico científico, para não arqueólogos; e preconiza a possibilidade de recompensas pelas atividades de resgate desenvolvidas. Ou seja, contradiz a legislação de proteção patrimonial e a própria Constituição Federal, de 198830; com a agravante de ignorar por completo os critérios arqueológicos científicos consagrados no século XX pela Arqueologia Subaquática e sugeridos pela “Convenção da Unesco sobre a proteção do patrimônio cultural subaquático” (de 2001); colocando o Brasil na contramão do mundo.

O uso social do patrimônio cultural subaquático A Convenção da Unesco de 2001, da qual o Brasil se absteve da votação, desaprova, explicitamente, as atividades de resgates e de recuperação de objetos do fundo do mar, desprovidos de contextos arqueológicos, de apelos estéticos (bonitos), para serem expostos em museus públicos ou privados, ou comercializados; daí sua ênfase contra a caça ao tesouro. Ela esboça uma nova tendência, sobretudo ética, de consenso internacional, para a abordagem responsável desse patrimônio cultural. De forma que, novas diretrizes às pesquisas arqueológicas subaquáticas são lançadas, fazendo com que os arqueólogos retirem muito conhecimento e informação dos sítios pesquisados, mas o mínimo de materiais possível. Contemplando outro compromisso social, com as gerações futuras. Daí, recomendar o uso social desse patrimônio por meio de políticas públicas. As preocupações referentes à conservação do patrimônio cultural subaquático in situ são consideradas fundamentais para todo e qualquer projeto a ser realizado no ambiente aquático, de 30

Uma de nossas indagações era compreender como o Congresso Nacional pôde aprovar um Projeto de Lei, que sabíamos de seu teor inconstitucional, e que tramitou pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça). Os episódios de escândalos do “mensalão”, com a absolvição de culpados em plenário, facilitou bastante nosso entendimento sobre como as coisas funcionam no Brasil.

forma que, uma das respostas encontradas e incentivadas por esta Convenção, para evitar o transtorno e o ônus da manutenção dos artefatos provenientes desses sítios em museus tradicionais, é a criação de museus de sítios e sua integração ao turismo subaquático já existente. Realidade esta que dialoga muito bem com a museologia contemporânea, pois, segundo a museóloga Cristina Bruno, “a musealização de sítios arqueológicos assume papel mais definido e amplia vetores de articulação entre a pesquisa e a sociedade, no que diz respeito às interfaces entre preservação e desenvolvimento local” (BRUNO, 2005, p. 235). Se considerarmos que mergulhar se tornou algo bastante acessível, as visitas orientadas ao patrimônio cultural subaquático devem ser incentivadas ao grande público como forma de educação patrimonial, como forma de integrar as pessoas com as investigações, e assim poder valorizar a importância desse patrimônio cultural para a História da humanidade. É importante ressaltar que, o patrimônio cultural e a produção de conhecimentos proveniente dele, como a arqueológica, por exemplo, só têm sentido se forem de caráter público e interagirem com as diferentes comunidades, de modo que “a implementação de políticas patrimoniais deve partir dos anseios da comunidade e ser norteada pela delimitação democrática dos bens reconhecidos como merecedores de preservação” (FUNARI & PELEGRINI, 2006, p.59). Hoje, não se concebe mais a idéia de pesquisas arqueológicas sem o engajamento público, como se os sítios arqueológicos fossem propriedades intelectuais dos pesquisadores (FUNARI, 2006) ou propriedades privadas, no caso do subaquático, das empresas de caça ao tesouro. Esse novo posicionamento que caracteriza o arqueólogo como um agente social e legitima a preocupação com a diversidade cultural, só começou a ganhar corpo na Arqueologia, após 1986, com a fundação do World Archaeological Congress (Congresso Mundial de Arqueologia), que reuniu arqueólogos, estudiosos de outras áreas e pessoas de diferentes segmentos das sociedades, preocupados com as dimensões sociais da Arqueologia (FUNARI, 2006), e que resultou em uma vertente pública da Arqueologia: a Arqueologia Pública, que vem tomando maiores proporções a cada ano. No entanto, para evitar o mau entendimento da terminologia em português, convém explicitar que:

“No Brasil, a expressão Arqueologia Pública, surgida em âmbito anglo-saxão, ainda é nova e pode levar a confusão. De fato, público, em sua origem inglesa, significa ‘voltada para o público, para o povo’ e nada tem a ver, stricto sensu, com o sentido vernáculo de público como sinônimo de ‘estatal’. Ao contrário, o aspecto público da Arqueologia refere-se à atuação com as pessoas, sejam membros das comunidades indígenas,

quilombolas ou locais, sejam estudantes ou professores do ensino fundamental ou médio” (FUNARI & ROBRAHN-GONZÁLEZ, 2006, p.3).

Pensar o patrimônio cultural subaquático no Brasil por meio de uma Arqueologia Subaquática Pública, engajada, é pensar nas identidades entre os sítios arqueológicos submersos e as diferentes pessoas de nossa sociedade, resgatando, por meio do uso social do patrimônio e do discurso arqueológico “as vozes, os vestígios e os direitos de nativos, negros e de todos os outros excluídos das narrativas dominantes” (FUNARI, 2006, p. 21). Somente o estudo da cultura material em seu contexto arqueológico permite conhecer detalhes das diferentes sociedades e pode contar outras Histórias, diferentes das oficiais, registradas pelos letrados, e assim, aproximar as pessoas comuns do patrimônio estudado. De acordo com essa interação entre Arqueologia, público e patrimônio, cabe perguntar – no intuito de justificar as críticas feitas ao longo deste capítulo – o quanto se perdeu e ainda se perde, devido aos deslizes da legislação brasileira, sobre o cotidiano das tripulações iletradas, ou das minorias a bordo, como as mulheres, os homossexuais31, dos contextos arqueológicos dos restos dos navios naufragados, que tiveram seus vestígios explorados como uma operação de garimpo? Ou mesmo sobre os objetos de usos ordinários que, com certeza, foram encontrados, mas desprezados por não terem atrativos estéticos para serem vendidos ou expostos em museus? E quanto aos navios propriamente ditos? E os restos de madeiras dos cascos, testemunhos de suas diferentes técnicas de construção naval, enquanto artefatos flutuantes móveis, foram consideradas? Considerando que cada embarcação tem sua forma e nomenclatura que representam em si suas dimensões, função, tripulação, carga, período, etc. Será que esse tipo de abordagem voraz, que prioriza a retirada de objetos do fundo do mar se preocupou com as madeiras das embarcações exploradas? Infelizmente, não! Para uma dimensão quantitativa do estrago irreparável ao patrimônio cultural subaquático, realizado oficialmente pelas intervenções da, já mencionada, pseudo-arqueologia subaquática brasileira, podese destacar (ou lamentar) as principais empreitadas levadas adiante sobre os seguintes restos de navios afundados, ou sítios arqueológicos de naufrágios: o galeão português Nossa Senhora do Rosário (afundado em 1648); o galeão holandês Utrecht (1648); o galeão português São Paulo, (1652); o galeão português Santíssimo Sacramento (1668); a nau Santa Escolástica, (1701); a nau Nossa Senhora do Rosário e Santo André (1737); a fragata Queen (1800); a fragata Dona Paula 31

Temas pouquíssimos explorados pela historiografia tradicional, por exemplo.

(1827); a fragata Thetys (1830); o vapor D. Afonso, (1853); o encouraçado Aquidabã, (1906); o vapor Príncipe de Astúrias (1916). O que torna tudo isso insustentável, inadmissível, do ponto de vista da Arqueologia preocupada com o público, do arqueológo-cidadão, é que além da destruição do contexto arqueológico, que nos proporcionaria diferentes Histórias, como as comentadas acima, e da perda para particulares de 80% do material resgatado (leia-se patrimônio cultural público), as poucas informações que conseguimos nas raras publicações existentes nada trazem sobre os resultados dessas intervenções. Em conseqüência, nada sabemos sobre os projetos realizados, sobre os resultados das escavações realizadas, sobre os métodos e as técnicas utilizados nos sítios explorados, sobre a conservação dos artefatos retirados desses sítios. Por discrepâncias conceituais e incongruência legal, essas intervenções consistiram basicamente na retirada de artefatos do fundo marinho, sem nenhuma preocupação com o registro, e principalmente com a interpretação arqueológica. Com a exceção da tentativa de descrição de alguns métodos de demarcação de terreno para a retirada do material arqueológico, como no caso do Galeão Sacramento, no litoral da Bahia, e do Galeão São Paulo, no litoral de Pernambuco, nada mais é informado. E, até nesses casos, a preocupação técnica com a área de trabalho, se perde rapidamente ante a necessidade de se recolher objetos dos naufrágios. Nada se cogita sobre as madeiras do casco. Os seis únicos textos existentes insistem no discurso da Arqueologia Subaquática como uma técnica auxiliar e ilustrativa da história trágico-marítima (RAMBELLI, 2002). Cabe ressaltar, que as críticas feitas não devem ser confundidas como reserva de mercado, “os arqueólogos não querem ‘possuir’ navios afundados, pois acreditamos que pertencem ao domínio público tal como os monumentos históricos terrestres. O nosso trabalho é compreende-los e divulgar, para outros estudiosos e para o público em geral, o nosso conhecimento através dos meios apropriados” (BASS, 1985 apud RAMBELLI, 2004, p.8). Daí o descontentamento da categoria para com essa depredação injustificável. Dessa forma, busca-se legitimar a importância do arqueólogo nas pesquisas arqueológicas subaquáticas. Ainda, fazendo uso das palavras do arqueólogo norte-americano George F. Bass, o primeiro arqueólogo a aprender a mergulhar, ainda na década de 1950, com o objetivo explícito de fazer Arqueologia debaixo d’água 32:

32

Foi o fundador do Institute of Nautical Archaeology (INA), sediado na Texas A&M University.

“Quem iria a um dentista amador? Qual a diferença entre um arqueólogo amador e um neurocirurgião amador? Há pessoas bem intencionadas que invocam curas de cancro e de outras doenças, as vezes citadas na imprensa, mas a sociedade não as autoriza a praticar sem as credenciais adequadas. Estive eu perdendo o meu tempo estudando Arqueologia durante tantos anos, quanto os candidatos a médico estudam medicina?” (BASS, 1985 apud RAMBELLI, 2004, p. 7).

Conclusão Este capítulo buscou apresentar um panorama geral sobre o patrimônio cultural subaquático, enfatizando os problemas da legislação brasileira, como também, sobre a pesquisa arqueológica subaquática, uma especialidade da Arqueologia, que ainda é mal compreendida; e assim suprir a lacuna existente – até então – no Brasil, sobre as possibilidades de se fazer arqueologia subaquática científica, com a mesma seriedade que se faz em superfície. Tais possibilidades embasadas nos preceitos da Arqueologia Pública, engajada, e na sua maneira de se relacionar com o patrimônio e a diversidade cultural sugerem o debate temático crítico. Propiciando vários questionamentos, principalmente em relação à maneira como a Arqueologia Subaquática era entendida e vinha sendo realizada no Brasil. Convencidos de que esta especialidade da Arqueologia nada tem a ver com tradição milenar dos resgates marítimos, uma reflexão sobre o futuro de nosso patrimônio cultural subaquático se faz urgente e necessária. As dificuldades para isso decorrem, de um lado, da maneira equivocada como a Arqueologia Subaquática é compreendida no país (a questão conceitual); e, de outro, da predominância de interesses comerciais no debate sobre o tema e nas posições adotadas pelas autoridades brasileiras em favor desses interesses (a questão legal). Esse quadro é ainda mais preocupante porque a situação do Brasil é privilegiada. Temos um litoral que se estende por mais de 8.500 km e águas interiores que representam uma das maiores redes fluviais do mundo. Logo, o Brasil oferece muito campo, ou melhor, muita água para pesquisas arqueológicas. Estamos inseridos diretamente no contexto histórico das navegações, onde milhares de naufrágios aconteceram ao longo de nossos 500 anos de história trágico-marítima. Isto sem levarmos em conta a navegação fluvial, que representou, e ainda representa em determinadas regiões brasileiras, o único meio de transporte. Mas, os sítios de naufrágios (oceânicos/marítimos/fluviais/lacustres), embora representem os sítios arqueológicos mais cobiçados e mais ameaçados de destruição, não são os únicos que compõem o potencial arqueológico subaquático brasileiro. Testemunhos de atividades humanas de diferentes

épocas e culturas ajudaram a formar, ao longo dos milhares de anos de ocupação humana no Brasil, um vasto e promissor campo de atuação da Arqueologia Subaquática brasileira: os sítios de abandono de diferentes tipos de formação (áreas portuárias, ocupações próximas ao ambiente aquático), sítios terrestres submersos devido às variações (naturais ou artificiais) do nível das águas (marítimas ou interiores), e os sítios santuários (depósitos rituais) (RAMBELLI, 2002). Para finalizar, é importante ressaltar, que existe um movimento de Arqueologia Pública Subaquática, resistente à pressão da caça ao tesouro! Que, nos últimos quinze anos, vem realizando muitos trabalhos, no Brasil e no exterior33, envolvendo diferentes lugares, sítios, contextos e pessoas. Muito foi publicado (capítulos, artigos, notas, entrevistas, documentários entre outros.), inclusive dois livros, um que divulga e introduz a arqueologia subaquática: “Arqueologia até debaixo d´água” (RAMBELLI, 2002) e outro que serve de alerta aos problemas que ameaçam os sítios arqueológicos subaquáticos no Brasil, um manifesto pró-patrimônio cultural subaquático (Livro Amarelo, 2004)34. Três dissertações de mestrado foram apresentadas sobre o tema no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo / MAE-USP (RAMBELLI, 199835; BAVA-DE-CAMARGO, 2002; CALIPPO, 2004), mais duas se iniciaram, uma na Universidade Federal de Pernambuco (RIOS, 2005) e outra no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo / MAE-USP (GUIMARÃES, 2006), além disso, uma tese de doutoramento foi concluída (RAMBELLI, 2003) e três outras estão em andamento (Leandro Duran, 2003; Paulo Bava-de-Camargo, 2004; e Flávio Calippo, 2005), no MAE-USP. A criação do primeiro centro especializado, o Centro de Estudos de Arqueologia Náutica e Subaquática (CEANS), no Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Universidade Estadual de Campinas (NEPAM/UNICAMP), respeitado internacionalmente, é um dos exemplos da projeção e do reconhecimento desses acontecimentos no Brasil; assim como o projeto de pós-doutorado do autor deste capítulo: “Arqueologia subaquática de um navio negreiro”, em andamento; o I Simpósio Internacional de Arqueologia Subaquática, realizado no XIII Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira, em Campo Grande, em 2005, que inspirou o Projeto de Lei 7.566/06, que 33

Cabe enfatizar a importância do apoio internacional ao nosso movimento. Com destaque ao apoio do International Committee on Underwater Cultural Heritage, do Conselho Internacional de Monumentos e Sítio (ICUCH / ICOMOS). 34 LIVRO Amarelo: Manifesto Pró-Patrimônio Cultural Subaquático Brasileiro. Campinas, Centro de Estudos de Arqueologia Náutica e Subaquática (CEANS), do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas (NEE / UNICAMP), 2004. Disponível em www.historiaehistoria.com.br 35 Gilson. A Arqueologia subaquática e sua aplicação à Arqueologia brasileira: o exemplo do baixo vale do Ribeira de Iguape. 1998. Dissertação (Mestrado em Arqueologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP: Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, São Paulo, 1998.

dispõe sobre o patrimônio cultural brasileiro subaquático, nos moldes da Convenção da Unesco, de autoria da Deputada Nice Lobão, do Maranhão; as disciplinas de pós-graduação: Arqueologia Subaquática e Arqueologia Marítima, ministradas, pela primeira vez no Brasil, no Programa de Doutorado em Ambiente e Sociedade do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais – NEPAM / IFCH / UNICAMP; e a criação do Núcleo Avançado de Pesquisas de Arqueologia e Etnografia do Mar, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia, em Itaparica, que irá sediar, em outubro de 2007, o Simpósio Internacional: Arqueologia Marítima nas Américas, e a Reunião Anual International Committee on Underwater Cultural Heritage (ICUCH / ICOMOS).

Agradecimentos: Agradeço Pedro Paulo Abreu Funari e Sandra C. A. Pelegrini pelo convite para organizar este livro, e escrever este capítulo; e aos companheiros de batalha em prol do patrimônio cultural subaquático: Paulo Bava de Camargo; Flávio Calippo; Leandro Duran; Glória Tega; Randal Fonseca; Carlos Rios; Rodrigo Torres; Carlos Caroso; Robert Grenier; Pilar Luna Erreguerena; Eric Rieth; Francisco Alves; Filipe Castro; Maria Cristina Mineiro Scatamacchia; e Armando de Senna Bittencourt. Agradeço ainda à Fapesp, ao NEE/UNICAMP e ao NEPAM/UNICAMP. A responsabilidade pelas idéias restringe-se ao autor.

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PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO, PÓS-COLONIALISMO E LEIS DE REPATRIAÇÃO.

Lúcio Menezes Ferreira “Quanto mais os arqueólogos fazem descobertas, mais descobrem impérios” (Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mille Plateaux, 1980) “Desecrate a white grave and you get a jail. Desecrate an Indian grave and you get a Phd” (Walter R. Echo-Hawk. Senior Staff Attorney for the Native American Rights Fund, 1980)

As palavras do título deste capítulo ocupam, hoje, um campo agitado e turbulento. Elas manifestam boa parte dos conflitos e problemas contemporâneos das pesquisas arqueológicas e das políticas de patrimônio. Meu objetivo, aqui, é o de descrever esses conflitos e problemas. Comecemos pela definição daquelas palavras em suas inter-relações. Quando falo em patrimônio arqueológico, penso, sobretudo, na institucionalização da cultura material para fins políticos. A cultura material, mesmo a do mais remoto passado, pode servir aos diferentes grupos sociais para criar e valorizar identidades culturais. Ela é capaz de mediar relações políticas e sociais, de fortalecer hierarquias e poderes, legitimando-as por meio de testemunhos materiais que lhes dão sustentação. Para definir o que é repatriação, gostaria de dar um exemplo. Recentemente, o Governo de Ancara reivindicou a museus europeus a repatriação, ainda que apenas para uma única exibição pública, do material arqueológico que Heinrich Schliemann (1822-1891), no século XIX, recolheu do solo turco. Schliemann, empunhando a Ilíada, anunciara ao mundo uma fascinante descoberta: o encontro do tesouro de Príamo. Não há nenhuma evidência histórica que associe o atual Governo de Ancara ao rei Príamo da Guerra de Tróia. Contudo, exibir publicamente as jóias de Helena mostraria, ao povo de Ancara, uma herança cultural coberta de ouro e glória. Reforçaria um senso de identidade nacional ancorando-o num passado longínquo, imortalizado nas páginas de Homero. Assim, tradicionalmente, a idéia de repatriação implica manipular o patrimônio arqueológico para vinculálo à identidade de uma nação e ao Estado. Pouco importa, neste caso, o erro histórico. Ainda no final do século XIX, evidenciou-se que os artefatos de ouro achados por Schliemann não provinham dos povos e eventos versificados por Homero (HERING: 2005). Contudo, as pesquisas de Schliemann se fizeram em condições históricas muito particulares. Naquele contexto, marcado pelo colonialismo, via-se com certa naturalidade que

um arqueólogo de uma potência colonial assomasse a outros continentes, escavasse o solo, recuperasse materiais e, por fim, no-los transportasse para figurar nas coleções de museus metropolitanos. E é justamente esse passado colonial das pesquisas arqueológicas que tem majoritariamente justificado os reclames pela repatriação dos materiais arqueológicos. O que nos remete à nossa terceira definição. O hífen do pós-colonialismo não deve iludir-nos. Póscolonialismo não significa propriamente um período que já passou. Há uma imensa literatura a discutir como as grandes estruturas coloniais, desmanteladas após a Segunda Guerra Mundial, continuam a exercer, de uma maneira ou de outra, influência cultural e política considerável no presente (HALL, 1996). Embora o pós-colonialismo seja uma disciplina multiforme, com perspectivas teóricas e metodológicas variadas, é possível dizer que um de seus objetivos é exatamente o de mapear as modulações assumidas pelo passado colonial no presente histórico (MACLEOD, 2000; MOORE-GILBERT, 2000). As políticas de repatriação do patrimônio arqueológico é um dos pontos de tensão, um campo agitado e turbulento, como eu disse a princípio, no mapa que assinala as formas de sobrevivência do colonialismo no quadro das relações globais do mundo contemporâneo. Situarei este ponto de tensão, este campo de ebulição, lançando duas questões principais, ambas pertinentes aos estudos pós-coloniais: Quais são as vozes políticas que clamam pela salvaguarda do patrimônio e pela legitimidade de interpretação sobre o passado? E, especialmente, como os grupos subalternos se inserem nas políticas de representação do patrimônio? Minhas respostas a estas questões perseguirão um fio condutor que nos conduzirá a uma terceira questão, também ela atinente aos estudos pós-coloniais: em que medida as políticas de repatriação favorecem as discussões sobre as relações entre o ponto de vista nativo da História e os encontros culturais, sobre as traduções entre culturas ou, para dizê-lo de outro modo, os processos de hibridização cultural?

Governar com o Patrimônio Para esboçar os contornos gerais destas questões é preciso delinear, inicialmente, os dois mecanismos políticos que engendraram a noção moderna de patrimônio. O primeiro deles é o nacionalismo. Para resumir a relação entre patrimônio e nacionalismo em uma sentença, poder-se-ia dizer que nenhum governo governa sem patrimônio. Afinal, no mundo moderno, a constituição da idéia de patrimônio nasceu sob a égide da Revolução Francesa. Neste momento, particularmente

durante o período jacobino, o Estado arregimenta uma série de instituições para administrar e conservar o patrimônio histórico (CHOAY, 2001). A meta política visada pela administração do patrimônio foi a de efetivar as idéias de nação e cidadania. Desde a Revolução Francesa, portanto, o conceito de cidadania passa pela possessão do patrimônio público. Ser cidadão e pertencer a uma nação implica imbuir-se de um passado tangível, materializado no patrimônio. Cria-se o que Pierre Nora chamou de lugar de memória: a fundação de marcos definitivos e imorredouros voltados à celebração de fatos históricos (NORA, 1984). Instituíram-se imbricações entre política, construção de espaços urbanos, atividades cívicas e monumentos comemorativos de episódios e heróis nacionais (AGULHON, 1988). Inventaram-se, por meio do patrimônio, as tradições nacionais. Nas palavras do historiador Eric Hobsbawm, tais tradições foram criadas, após as Revoluções Francesa e Industrial, a partir do lugar conferido pelo poder político do Estado. As tradições estribaram-se numa leitura de fragmentos culturais de longa duração, direcionando-se para símbolos, celebrações e, sobretudo, suportes materiais que deram visibilidade à nação (HOBSBAWM, 1984a, p. 12). Hobsbawm considera, igualmente, que desde meados do século XIX as tradições inventadas, em todas as sociedades modernas, tiveram peso coercitivo na vida pública dos cidadãos. Revestiram de forte carga emotiva os sinais emblemáticos da identidade e soberania nacionais (Hobsbawm, 1984b, p. 275). O patrimônio, jungido pela retórica nacionalista, estipula o cânone cultural e a memória oficial de uma nação. Serve para circunscrever os lugares plácidos de refinamento apolíneo dos grupos dominantes e para incutir a idéia de ancestralidade e legitimidade do poder estatal. Como cânone cultural de um Estado, o patrimônio veicula as hierarquias de valores, de patriotismo, de lealdade, de pertencimento, de fronteiras geopolíticas. Incute nas memórias coletivas o que deve ser excluído e incluído, o que deve ser lembrado e cultuado, esquecido e silenciado. O segundo mecanismo político ao qual atrela-se a noção moderna de patrimônio é o colonialismo. Isso fica claro na própria origem da pesquisa arqueológica. Como diz Lynn Meskell, a origem da Arqueologia é indissociável das relações ideológicas entre exploração, mercantilismo e colonialismo (Meskell, 1998: 3). A dominação colonial implicou não só na extração das riquezas naturais e minerais, mas também das riquezas arqueológicas, que abasteceram abundantemente os museus metropolitanos. Uma colonização de artefatos por meio da qual se teceram representações culturais dos colonizados como povos bárbaros, primitivos, sem direitos (PATTERSON, 1997), legitimandose, assim, o domínio colonial (HINGLEY, 2000, p. 6). A Arqueologia sempre acompanhou as

pretensões de expansão territorial dos impérios. Um exemplo, dentre tantos outros, é-nos fornecido pelos Estados Unidos. Durante as três primeiras décadas do século XX, quando os Estados Unidos ambicionaram o Caribe, uma série de pesquisas arqueológicas justificou políticas coloniais nas porções insulares da região, como foi o caso, em Porto Rico, com os trabalhos de Julian Steward (SÁNCHEZ, 2004). A consciência desta ligação entre patrimônio, nacionalismo e colonialismo levou alguns arqueólogos a redefinirem a própria palavra Arqueologia. Para Michael Shanks e Christopher Tilley, a Arqueologia deve definir-se não como estudo do passado, mas como estudo do poder (SHANKS & TILLEY, 1987). Isto porque esta intersecção entre patrimônio arqueológico, nacionalismo e colonialismo promoveu e promove conflitos diversos. É ela que faz com que as políticas de representação e seleção do patrimônio sempre atuem num campo agitado e turbulento. O passado, configurado pelo patrimônio arqueológico, assenta-se num campo minado. É que o passado ainda não passou. O patrimônio arqueológico torna-o palpável, tangível. O passado, materializado pela cultura material, é sempre institucionalizado. Compõe as relações de força das sociedades. As representações culturais sobre o passado articulam as táticas de governo, as estratégias de poder, de cultura e sociedade. Assim, o patrimônio é periodicamente selecionado, re-selecionado, revisado, dispensado e, muitas vezes, deliberadamente destruído. O cinema contemporâneo captou bem essa questão. Wolfgang Becker, em Adeus Lênin! (2004), montou várias seqüências, campos e contra-campos (diríamos em linguagem cinematográfica), mostrando como todo o cenário urbano da então Alemanha Oriental, após a queda do Muro de Berlim, foi substituído: a estátua de Lênin deu lugar aos ícones do capitalismo. O patrimônio material é um poderoso símbolo do conflito. Tanto é assim que, em 1991, fundamentalistas hindus demoliram mesquitas na Índia, sob a justificativa de que elas se erigiram sobre os vestígios de seus legendários heróis. Sérvios e croatas, durante a guerra da Iugoslávia, destruíram-se não apenas com armas de fogo, mas também simbolicamente, cada qual arrasando os monumentos de seus respectivos oponentes. Recentemente, selecionou-se o lixo do World Trade Center para uma exposição pública na Smithsonian Institution, o Museu Nacional dos Estados Unidos, com sede em Washington (SHANKS et all, 2004).

O Governo de Si pelo Patrimônio Neste ponto, já podemos articular respostas para as questões propostas neste capítulo. Uma das vozes que clama pela salvaguarda do patrimônio arqueológico e pela legitimidade das interpretações

sobre o passado é a da soberania política dos Estados. Trata-se de uma voz oficial, canônica, a falar pelo Governo das populações nacionais. Trata-se, também, de uma voz cujo idioma prega a hegemonia imperial, o governo colonial, a sujeição do “bárbaro”, do “selvagem”. Mas há, ainda, outras vozes, dissonantes e altissonantes, que se fazem ouvir neste debate: as vozes das minorias, dos grupos subalternos, dos excluídos pelas representações nacionalistas ou inferiorizados pelo passado colonial. Hoje, diversos grupos sociais exigem o direito de gestão do patrimônio arqueológico: os imigrantes da Era da globalização (New Age travellers, Resident Aliens), grupos de religiões “pagãs” (FINN, 1997) e as ecofeministas (HODDER, 1998). Podemos novamente sintetizar o problema numa sentença, dizendo: “o governo de si passa pelo governo do patrimônio”. As minorias étnicas, os grupos marginalizados e subalternos, alijados, elididos ou silenciados nas narrativas nacionalistas e colonialistas de representação do patrimônio, estão, hoje, conscientes de que o passado ainda não passou. Os grupos subalternos e marginalizados parecem incorporar as teses de Walter Benjamim. Querem reconstruir o destruído a partir dos escombros acumulados pela marcha triunfal dos vencedores; sabem que o que se chama de bens culturais resultou de uma pilhagem, que qualquer documento cultural é um documento de barbárie (BENJAMIM, 1991, p. 156-157). Essa percepção radical conduziu a mudanças significativas na gestão moderna do patrimônio arqueológico. Surgiram, assim, outras vozes, desta vez acadêmicas, que engrossaram o coro em favor dos grupos subalternos: arqueólogos, museólogos, curadores, em associação com movimentos civis diversos, têm valorizado, na extroversão do patrimônio arqueológico, estruturas não oficiais. Procura-se manejar e exibir as culturas dissidentes, as contra-culturas, as memórias regionais e locais, um conjunto de práticas culturais ligadas aos pobres, marginalizados, trabalhadores, rebeldes, artistas populares etc (BYRNE, 1991). Tais políticas de representação do patrimônio se coadunam com proposições centrais do póscolonialismo. Em primeiro lugar, elas podem encontrar, no pós-colonialismo, uma linguagem e uma política que descentra as narrativas tradicionais focadas na divisão ontológica entre o Ocidente e os outros povos, nucleadas na supremacia cultural e legitimação colonial (YOUNG, 2003). Em segundo lugar, as políticas de representação do patrimônio, ao privilegiarem estruturas marginalizadas e vozes marginais, podem aplicar a proposição do historiador indiano Ranajit Guha: a pretensão hegemônica dos discursos colonialistas, bem como dos nacionalistas, nunca sobrepô-se totalmente em vastas áreas da vida dos grupos subalternos (GUHA, 1997). Sempre houve espaço para os contra-discursos e as interpretações alternativas do passado, para o dissenso e a resistência.

Vejamos isso mais de perto, observando os debates sobre repatriação arqueológica.

Políticas de Repatriação As políticas de repatriação emergiram, sobretudo, no intercurso das lutas de libertação anticolonial, a partir de meados dos anos 1950. Os povos colonizados conscientizaram-se de que o passado foi, além das terras e riquezas, objeto de expropriação e legitimação do colonialismo. Retomar o passado, expropriar os expropriadores, reaver as coleções espalhadas pelos museus das potências coloniais, integrou os nacionalismos diversos do Terceiro Mundo (Paczensky: 1985). As novas nações buscavam e buscam, com as políticas de repatriação, reafirmar sua herança cultural e forjar, com a cultura material, símbolos para uma identidade nacional (GREENFIELD, 1996). As políticas de repatriação, contudo, deram-se não apenas por meio das narrativas nacionalistas. Pode-se acompanhá-las, também, em lutas mais localizadas, de grupos “menores”, subalternos. Dois diversificados grupos sociais destacam-se por suas campanhas pela repatriação: os aborígenes australianos e os indígenas dos Estados Unidos. Os reclames destes grupos nativos pela repatriação ligam-se diretamente a História de resistência à colonização. Nos Estados Unidos, numerosos líderes indígenas, a partir do final do século XVIII, conclamaram os diferentes grupos nativos para resistir às agressões do recém formado governo americano (WALLACE, 2000). Criaram um sentimento Pan-Nativista: o despertar de um “nós’ indígena em oposição a um “eles” “branco” e europeu. Por sua vez, os aborígenes australianos, desde o início da colonização inglesa, bateram-se em armas contra os colonizadores, desencadeando guerrilhas coloniais (REYNOLDS, 1982). Esse passado de resistência bateu às portas do presente, chamando a esses grupos nativos para a ação e o engajamento políticos. As campanhas pela repatriação articularam-se, com efeito, a uma série de movimentos civis. No início dos anos 1920, já havia, por toda a Austrália, organizações políticas aborígenes, que se intensificaram e se multiplicaram nas décadas seguintes, dando ensejo, hoje, a vários centros culturais (COLLEY, 2002). Os indígenas norte-americanos, por seu turno, possuem, desde os anos 1960, sólidas organizações políticas (SIMPSON, 2001). Como os pós-colonialistas, os aborígenes australianos e indígenas dos Estados Unidos sublinham que o passado colonial não é fogo morto, fogo ultraleve de lareira que se contempla tranqüilo. Eles entendem que o passado colonial se transfigurou, mas continua vivo no presente, demarcando as políticas públicas e o senso de identidade cultural. Um exemplo da reconfiguração moderna do passado colonial é-nos dado pelo arqueólogo Denis Byrne. Seu estudo sobre Arqueologia da

paisagem e manejo do patrimônio arqueológico na Austrália mostra como o espaço geográfico ainda é organizado de modo racializado e permanece segregando os aborígenes. A topografia social do presente australiano carrega consigo os estereótipos culturais e hierarquizações “raciais” do passado colonial (BYRNE, 2003). Tanto nos Estados Unidos, quanto na Austrália, a Arqueologia acionou uma ideologia colonial, decretando o conceito de terra nullius (terras que não pertencem a ninguém). A idéia de vazio demográfico, os conceitos difusionistas de imigração de povos mais avançados que colonizaram povos primitivos, asseguraram a tomada das terras indígenas (MACGUIRRE, 1992; RUSSEL & MCNIVEN, 1998). Este raciocínio ainda impera na Austrália, onde a pesquisa arqueológica tem poder de veto e outorga. Interpretações arqueológicas que desvinculam os sítios mais antigos da Austrália (as datas para o processo de ocupação da região variam entre 40.000 e 60.000 AC) de grupos historicamente documentados e demonstram que eles foram abandonados até a chegada dos colonizadores ingleses, habitualmente são usadas para denegar as pretensões aborígenes pela terra e pelo controle do patrimônio cultural. De outro lado, interpretações arqueológicas que argumentam pela continuidade de ocupação das áreas arqueológicas, lidimam as lutas aborígenes pela terra e pela repatriação do patrimônio arqueológico (COLLEY, 2002). Daí que, para estes grupos nativos, a repatriação dos bens culturais é parte integrante dos conflitos pela terra, cidadania e igualdade de direitos. Eles não separam seu interesse na herança cultural e na História de outros elementos de sua vida; desejam o controle de seus acervos arqueológicos como estratégia para a luta por justiça social, autodeterminação e soberania. Trata-se, para eles, de fundar um ponto de vista nativo da História, capaz de limpar a crosta de estereótipos despejada em suas identidades culturais pelos discursos coloniais. A luta desses grupos nativos pela auto-gestão de seu patrimônio arqueológico, porém, tem ocasionado conflitos diversos. Setores da comunidade arqueológica recusam-se abertamente a repatriar os bens arqueológicos. Como enfatiza Moira Simpson, a oposição de arqueólogos à repatriação lastra-se no argumento de que a Arqueologia, como ciência, não fala apenas para grupos étnicos: como ciência universal, os resultados da pesquisa arqueológica interessam a toda humanidade (SIMPSON, 2001). Esta posição de um sujeito arqueológico universal é bastante disseminada. Os arqueólogos Jim Allen e Tim Murray, por exemplo, proclamam que, na Austrália, a Arqueologia fala por “todos nós” e por “todos os australianos”; num Estado democrático, como a Austrália o é, “todos os australianos” perderão se as instituições de pesquisa tiverem de repatriar o patrimônio arqueológico (MURRAY & ALLEN, 1995). A oposição à repatriação e à discussão do ponto de vista nativo da

História, gerou, inclusive, censura por parte do establishment arqueológico. Randall MacGuirre conta-nos que, nos Estados Unidos, os arqueólogos mais radicais que acataram o ponto de vista nativo e acolheram as políticas de repatriação tiveram oportunidades de trabalho e publicação vetadas (MACGUIRRE, 1992). Como diz Sara Colley, não há respostas universais para resolver este conflito entre a comunidade arqueológica e as populações indígenas (COLLEY, 2002). Contudo, em diferentes lugares do mundo, seja na Austrália (COLLEY, 2002), no Brasil (FUNARI, 1998; 2000) ou na Turquia (HODDER, 1999, 59), arqueólogos procuram realizar suas pesquisas em consonância com as expectativas das comunidades locais, num processo contínuo de diálogo e negociação de identidades. Nos Estados Unidos, o arqueólogo Larry Zimmerman, que defendeu, em textos diversos, as políticas de repatriação (ZIMMERMAN, 1994a; 1994b), envolveu-se ativamente com os movimentos civis. Para ele, os arqueólogos não devem prosseguir com suas pesquisas desrespeitando os lugares tidos como sagrados para os indígenas, e tampouco desconsiderando, em suas interpretações, as vozes dos nativo-americanos (ZIMMERMAN: 2001).

Repatriação e Legislação Vê-se, portanto, como o patrimônio arqueológico é alvo político e epistemológico de diferentes grupos sociais e instituições: pode enfeixar-se na trama de uma narrativa oficial, modularse pela voz reguladora do Estado; pode, de outro lado, esticar a corda vocal dos grupos subalternos, tornando-se, por meio das campanhas de repatriação, um brado a favor de direitos sociais e contra a permanência duradoura de práticas coloniais. É um cenário onde campos se abrem para o conflito político, caracterizando, nos termos de Gramsci, uma guerra de posições, isto é, uma composição de forças e ações sociais em prol da obtenção de uma hegemonia: arqueólogos e seus discursos para “todos nós”, o establishment arqueológico e as censuras; ou, então, arqueólogos que se aliam aos povos indígenas, negociando os processos interpretativos sobre identidades culturais, abraçando como causa as políticas de repatriação e o ponto de vista nativo da História. Há uma rede complexa, de finos detalhes, tecida nas relações entre povos indígenas, arqueólogos, o Estado e o público. Não há um ponto arquimediano onde as representações sobre o patrimônio arqueológico possam falar por si mesmas. Ao entrar na esfera pública, elas se entrelaçam a debates políticos sobre identidades e direitos culturais. Esta constatação está no cerne dos debates da Arqueologia pós-processual, que enfatizou, de modo contundente, a importância da disciplina na

luta dos povos pelo seu próprio passado e por seus direitos. Fundamentou, também, a formação, em 1986, do World Archaeological Congress (Congresso Mundial de Arqueologia), que congregou arqueólogos, cientistas sociais e povos indígenas preocupados com as dimensões sociais da Arqueologia (FUNARI et all, 1999). A partir da década de 1990, essa crescente vertente política desembocou no nascimento da chamada Arqueologia Pública, dedicada a toda gama de implicações de poder da disciplina, do cuidado pelo patrimônio aos direitos humanos (MERRIMAN, 2004). Esse debate internacional da Arqueologia, esse reconhecimento da guerra de posições que repousa na superfície das representações arqueológicas, incorporou-se na legislação de proteção ao patrimônio. Mais especificamente, a repatriação e o direito de controle sobre o patrimônio pelos povos indígenas da Austrália e Estados Unidos receberam amparo legal. Na Austrália, a Australian Archaeological Association (AAA) (Associação Arqueológica Australiana) derivou suas normas de pesquisa arqueológica e manejo do patrimônio baseando-se no primeiro código de ética do WAC (COLLEY, 2002; WAC, 2006). Nos Estados Unidos, a repatriação alçou-se a lei federal: a Native American Graves Protection and Repatriation Act (NAGPRA) (Lei de Repatriação e Proteção aos Cemitérios Nativo-Americanos), promulgada em 1990 (SIMPSON, 2001). Os códigos de ética da AAA e do WAC e os dispositivos do NAGPRA assemelham-se em suas resoluções principais. Eles garantem a proteção das sepulturas dos ancestrais dos povos nativos e a repatriação de objetos sagrados. A repatriação deve ser feita nesta ordem: para os descendentes lineares; para o grupo em cuja terra foram descobertos os materiais; ou para aqueles com filiações culturais mais aproximadas. Ambos os códigos e o NAGPRA afirmam, ainda, a importância do patrimônio arqueológico nativo para a sobrevivência cultural e o bem-estar social dos povos indígenas; reconhecem as metodologias indígenas de interpretação, curadoria, manejo e proteção do patrimônio arqueológico, por outra, apóiam o ponto de vista nativo da História. Essas resoluções trouxeram, indubitavelmente, uma série de benefícios éticos. Graças a elas, hoje, arqueólogos, nos Estados Unidos e Austrália (ao contrário do que acontece em vários lugares do mundo), não podem escavar um sítio arqueológico nativo sem consultar e trabalhar ao lado dos movimentos indígenas. Arqueólogos, seguindo estas orientações, comprometem-se a empregar os povos indígenas em seus projetos, orientando-os nas técnicas arqueológicas e tornando-os partícipes na monitoração das escavações e trabalhos laboratoriais.

Armadilha Epistemológica e Política Obviamente, os códigos de ética do WAC e da AAA, bem como as resoluções da NAGPRA, não são universalmente aceitas. Museus continuam a rejeitar pedidos de repatriação. Diante disso, recentemente, o WAC reafirmou seu apoio aos aborígenes australianos frente às negociações para reaver vestígios ósseos armazenados nos Museu Britânico (British Museum) e no Museu Nacional dos Estados Unidos (Smithsonian Institution) (WAC, 2003). Do mesmo modo, membros do WAC, como Larry Zimmerman e a representante indígena da instituição, Dorothy Lippert, endossam as emendas constitucionais promulgadas para o NAGPRA (ZIMMERMAN & LIPPERT, 2005). Existem críticas bem fundamentas, além disso, a outras noções vinculadas aos códigos de ética e ao NAGPRA. Tomemos, por exemplo, as proposições de Margarita Díaz-Andreu (1999; 2001), que vem escrevendo, desde meados dos anos 1980, uma vasta e consistente obra sobre as relações entre Arqueologia e nacionalismo. Díaz-Andreu vê a inserção do ponto de vista nativo da História e os reclames pela repatriação como sinais positivos de uma mudança das perspectivas interpretativas e éticas da Arqueologia. Contudo, para a autora, há, escondida por entre estes sinais luminosos, uma armadilha epistemológica e política. Segundo ela, seria ilusório pensar que o nacionalismo não vige mais nas narrativas centradas no ponto de vista nativo. Pelo contrário, os “novos discursos étnico não são necessariamente progressistas” (DÍAZ-ANDREU, 1999, p. 174). Para Díaz-Andreu, os povos indígenas abandonaram “sua linguagem”, e adotaram a “nossa”, nacionalista. Só assim eles foram entendidos pelo mundo ocidental. Sem a adoção do discurso nacionalista, os movimentos civis indígenas não lograriam a conquista das novas legislações dos Estados Unidos e Austrália; esta vitória, contudo, estaria limitando de várias maneiras o trabalho arqueológico (Díaz-Andreu: 2001, 15). A retórica das comunidades indígenas invocaria Idades de Ouro, postando-as no passado a fim de ratificar as pretensões políticas do presente: o direito de controlar um território próprio, incluindo-se a gestão do patrimônio arqueológico (DÍAZ-ANDREU, 2001, p. 15; 1999, p. 175). Seguindo-se esse argumento, poder-se-ia chegar as duas conclusões. Em primeiro lugar, alguns dispositivos do NAGPRA, do WAC e da AAA reacenderiam as chamas do nacionalismo. Os critérios escolhidos para a repatriação consagrariam uma visão primordialista de identidade cultural: prioritariamente, devolução para os descendentes lineares; opcionalmente, para aqueles que habitam no local das descobertas ou, ainda, àqueles cuja cultura comungue elementos estruturais e simbólicos com a tipologia dos artefatos encontrados. Em segundo lugar, se reafirmam concepções

primordialistas de identidade cultural, os critérios do NAGPRA, do WAC e da AAA teriam sido ditados por um modelo de análise ainda atuante na Arqueologia: o modelo histórico cultural. Pressupõe-se, neste modelo, que a cultura é uma célula homogênea composta por um povo (definido biologicamente) detentor de uma língua, de um território delimitado e de um quadro serial e morfológico de artefatos. Esse tipo de equação arqueológica cimentou os alicerces dos nacionalismos dos séculos XIX e XX (JONES, 1997). Nos casos mais extremos, ela foi um poderoso agente de legitimação dos regimes totalitários do século XX (ARNOLD, 1996). Se estas conclusões são verdadeiras, deveríamos questionar: como se pode saber até onde se perde, nas brumas do tempo, a cadeia genealógica de um povo? A “pureza” das cadeias de moléculas do DNA não é quebrada pela “impureza” das trocas culturais, pelas descontinuidades históricas e historicidades? Como identificar a continuidade de ocupação de um território por um mesmo povo, falante da mesma língua? Discussões teóricas em Arqueologia, para as quais Díaz-Andreu muito contribui (DÍAZ-ANDREU, 1996) argumentam que não há correlação unívoca entre cultura material, língua e território (THOMAS, 1999; MESKELL, 2001). O problema se acentua quando se trata de Arqueologia Pré-Histórica. Não dispomos de malhas suficientemente finas para peneirar as sutilezas etnográficas contidas num sítio arqueológico (SIMS-WILLIAMS, 1998).

Onde estão os laços da armadilha? Mas seria possível identificar, entre os aborígenes australianos e indígenas dos Estados Unidos, vestígios de uma retórica nacionalista? Se quisermos encontrá-los, deveremos procurá-los em outras paragens. Como já apontei, as políticas de repatriação ataram-se, efetivamente, aos nacionalismos surgidos, no Terceiro Mundo, durante as lutas pela descolonização. Em termos de políticas de representação do patrimônio, isto não significou somente o decantar de Idades de Ouro para se fazer aceitar pelo Ocidente. O canto da sereia, aqui, realmente evoca ecos da Marselhesa: governar com o patrimônio, homogeneizar as representações históricas, fazer da voz do Estado a voz oficial da História, em suma, arregimentar, com o patrimônio arqueológico, ícones nacionalistas, reproduzindo um modus operandi inaugurado pela Revolução Francesa. Contudo, a este respeito, é importante recordarmos a crítica de Frantz Fanon aos nacionalismos do Terceiro Mundo. Fanon desenha sua crítica como uma imagem bifronte: de um lado, o nacionalismo, no contexto colonial, seria um estímulo necessário e vital para a revolta contra o colonizador; o povo colonizado deveria reunir elementos simbólicos para confeccionar uma consciência nacional, e mobilizar, deste modo, uma identidade de resistência anticolonial (FANON,

1966; 1979). De outro, a consciência nacional, tão logo o colonizador se retirasse, deveria transformar-se no que ele chama de consciência social (FANON, 1979). Fanon delineia um paradoxo, nomeado por ele como desventuras da consciência nacional. O problema, a desventura, não é o discurso nacionalista per si. Mas, sim, seus efeitos posteriores. Findado o período de guerra e revolução, segundo Fanon, os Estados pós-coloniais foram ocupados por burocratas e manipuladores de jargão. Os aparelhos de Estado foram tomados por uma burguesia que sufocou a soberania do povo e canalizou-se para os circuitos internacionais das “ex-companhias coloniais”, por partidos nacionalistas que pregaram uma filosofia separatista e fundaram um “sistema nacional de exploração” (FANON, 1979, 136). Fanon, em suma, mostra que o colonialismo não acabou quando o último policial branco partiu e a última bandeira européia arriouse. Os Estados pós-coloniais, assim, fracassaram na transição do nacionalismo para a efetiva libertação popular; praticaram a política e a economia de uma nova opressão, tão perniciosa quanto a antiga. Como disse Ernest Renan (1990) há mais de cem anos, o nacionalismo exige o erro histórico e o esquecimento. A construção de uma narrativa sobre a nação expulsa, para além de suas margens, as etnias e os acontecimentos indesejados (CHATTERJEE, 1993). O patrimônio, nos Estados póscoloniais, tornou-se uma maneira eficaz de selecionar eventos e afirmar ritualmente uma identidade nacional. Tomaram-se signos e símbolos de liberdade, proporcionados pelo patrimônio, como forma de construção de um orgulho nacional. Entretanto, a consciência nacional não alçou a consciência social, isto é, não promoveu a soberania popular. A armadilha das políticas de repatriação e do ponto de vista nativo da História, pois, foi armada, na verdade, pela camuflagem do nacionalismo póscolonial como programa político e visão homogênea da vontade coletiva, e não como ponto de partida conveniente a partir do qual começaria o verdadeiro trabalho de libertação. Quanto aos aborígenes australianos e indígenas dos Estados Unidos, deve-se convir que eles não abandonaram sua linguagem para se imporem ao Ocidente. Pode-se mesmo dizer que estes povos pertencem ao mundo ocidental. Lembremo-nos mais uma vez de Fanon: “A Europa é literalmente a criação do Terceiro Mundo” (Fanon: 1979, 81). O Terceiro Mundo criou a Europa, e vice e versa, por meio das trocas culturais que se processaram no mundo moderno. Para seguirmos o antropólogo Eric Wolf, e sua insurgência contra toda uma tradição antropológica, os povos indígenas, as micropopulações, não se constituem como sistemas independentes, auto-reprodutores e auto-regulados. Nenhum povo indígena e nenhuma sociedade, desde a formação do mundo moderno, é uma ilha,

mas uma totalidade de processos interligados, de trocas culturais efetuadas em escala global (WOLF, 1982). O imperialismo consolidou globalmente, como diria Said, a mescla entre povos e culturas. Embora o imperialismo tenha separado metrópoles, colônias e periferias, e cada discurso cultural se desdobre segundo diferentes programas, retóricas e imagens, eles, na verdade, estão vinculados, mesmo que não sejam totalmente simétricos e correspondentes (SAID, 1995). Estes vínculos concretizam-se, também, no mundo material. Charles Orser enfatiza como os sítios arqueológicos, na Era moderna, apresentam artefatos que simbolizam interações mundiais; cada sítio arqueológico é um receptáculo de processos globais, um locus onde se reúnem o capitalismo, o colonialismo, a modernidade e o eurocentrismo, bem como as lutas de resistência dos povos nativos contra essas forças históricas (ORSER, 1996). Assim, nesse mundo emaranhado, os aborígenes australianos e indígenas dos Estados Unidos, como povos que integram o mundo moderno, não adotaram linguagens que lhes sejam estranhas. Eles convivem com os diversos idiomas políticos do Ocidente desde que o imperialismo e o colonialismo no-los intersectou, e a seus diferentes tipos de organização social, aos contatos culturais e processos de dominação globais. Porém, eles não enunciaram, propriamente, um discurso nacionalista. É outro o lugar epistemológico e político de onde esses povos falam; é outra a tonalidade vocal de seus discursos. Entre eles, as políticas de repatriação e a luta pela instauração de um ponto de vista nativo da História forjaram-se na bigorna de fundição do governo de si pelo patrimônio. A auto-gestão do patrimônio por grupos minoritários não invoca, necessariamente, a equação arqueológica do modelo histórico cultural, e tampouco pode carburar fogueiras nacionalistas. Para fazê-lo, eles precisariam tomar os aparelhos de Estado, dominar os sistemas de Educação pública, controlar um dos canais mais importantes para ministrar Histórias nacionalistas, as escolas. Ademais, é exatamente porque foram excluídos das prosas nacionalistas e inferiorizados pela Arqueologia colonialista, que eles articularam seus movimentos civis e campanhas pela repatriação. Antes de apagarmos potenciais fogueiras nacionalistas, devemo-nos perguntar, a exemplo de Pedro Paulo A. Funari, sobre quem ganha com a prática e o discurso arqueológicos. Tradicionalmente, a Arqueologia foi (e em boa medida ainda o é) uma disciplina que serviu às elites, apartada dos interesses públicos. Contudo, dentre as questões de interesse público, a Arqueologia pode promover o direito das populações indígenas de participar do manejo de seu patrimônio material (FUNARI, 2001). Esse trabalho se reveste de especial importância nos contextos pós-coloniais, entre os grupos

sociais que, no passado, foram sistematicamente dizimados ou “civilizados”, como foi o caso entre os povos nativos da Austrália e Estados Unidos. A Arqueologia, sem dúvida, possui autoridade para dispor e manejar o patrimônio material. Tal autoridade assegura à disciplina o acesso aos dados arqueológicos, permitindo-lhe atribuir significados aos sítios arqueológicos e decidir quais materiais devem ser conservados ou descartados (SMITH, 1999). Este tipo de autoridade, ao lado das desventuras nacionalistas dos Estados póscoloniais, pode lançar uma segunda armadilha epistemológica e política. Henrieta Fourmile mostranos a estreiteza deste laço. Segundo ela, o poder instrumental de definir o que são os sítios arqueológicos nativos e quais devem ser preservados, quando exercido unilateralmente, reveste-se de um componente colonialista. Ao decidir que a herança cultural nativa permanecerá em mãos não nativas, deve-se considerar que as comunidades indígenas conferem uma variedade de significados aos sítios arqueológicos: repositório de memórias, espaço sagrado ou, ainda, fonte de recursos alimentícios (FOURMILE, 1989). As observações de Fourmile remetem às críticas de Gérard Leclerc (1972), Talal Asad (1973) e Johannes Fabian (1983): na origem da pesquisa antropológica, há uma discrepância radical de poder entre antropólogos e nativos. Contra a manutenção deste desnível de poder, Linda Tuhiwa Smith escreveu um livro com um título sugestivo: Decolonizing Methodologies (Descolonizando Metodologias) (1999). Partindo do ponto de vista nativo, Tuhiwa Smith sublinha que pesquisas arqueológicas envolvem não apenas impactos físicos sobre a paisagem. Elas podem ser invasivas ao quebrarem os protocolos indígenas sobre os lugares tidos como sagrados, poderosos ou perigosos. Uma simples caminhada para registrar sítios arqueológicos pode transgredir estas regras indígenas. Se os povos indígenas objetam as pesquisas arqueológicas, alegando que elas quebram seus protocolos e tabus, e se, desde meados dos anos 1960, eles se fazem ouvir, organizando-se em movimentos civis e exigindo o retorno de seus bens arqueológicos, o que os arqueólogos podem dizer? Desconsiderar os significados que os grupos indígenas atribuem aos sítios arqueológicos, ou negar-lhes os pedidos de repatriação em nome da universalidade da ciência, equivale a reproduzir a discrepância de poder característica da Arqueologia colonialista. Os códigos da AAA, do WAC e do NAGRPRA, ao lado de várias outras legislações que regularizam a pesquisa arqueológica, ajudam a contrabalançar este desequilíbrio de poder, estatuindo um índice de mediação formal para as relações entre os arqueólogos e os povos indígenas.

Dentro e Fora Obviamente, qualquer legislação, como expressão formal do poder, não é capaz, por si só, de mudar incrustados hábitos de pensamento. A Arqueologia não se livrou de seu passado colonial. Ele continua rondando, como espectros de Hamlet, a cabeça dos arqueólogos e as relações políticas contemporâneas, neste mundo marcado pelos desequilíbrios e guerras globais (GOSDEN, 2002). Representações coloniais ainda povoam, como afirma o arqueólogo sul-africano Martin Hall, as interpretações contemporâneas sobre a cultura material dos “países periféricos” (HALL, 2000). Assim, pode parecer panglossiano supor que os fantasmas de Hamlet se afugentarão ao argumentarmos em favor das políticas de repatriação e do ponto de vista nativo. Repatriar o patrimônio material e negociar a participação dos povos nativos no manejo de sítios arqueológicos, como as letras da legislação, não é garantia de que as relações de força serão mais niveladas. Contudo, para retomar a proposição de Ranajit Guha, deve-se notar que, nos contextos coloniais, nunca houve uma hegemonia completa. Se o colonialismo falhou em suas pretensões hegemônicas, isto pode ser explicado, em parte, pelo fato de que os povos nativos resistiram. As políticas de repatriação e a luta pela instauração de um ponto de vista nativo da História são, hoje, uma das armas desta resistência secular. Além disso, elas podem enfrentar as atuais justificativas epistemológicas sobre as relações de força e os choques culturais. Não me refiro especificamente a Samuel Hutington ou ao atual staff de intelectuais da Casa Branca. Relações de força é exatamente o título de um dos livros do historiador Carlo Ginzburg (2002). O referido autor retoma as teses de Walter Benjamin, mas não no sentido em que as discuti acima. Não lhe interessam as barbáries dos documentos culturais, mas algo anteriormente explicitado por Foucault: o documento é monumento, revela o poder do passado sobre o presente (FOUCAULT, 1986). Para dissolver a autoridade do passado, é preciso, segundo Ginzburg, escrever a História em contra-pêlo, ler os documentos às avessas, contra as intenções de quem os produziu (2002, p. 43). Dessa maneira, nos ensaios que compõem o livro, ele trata das relações de força, dos choques e convivências culturais. Porém, a propósito das influências da arte figurativa africana em Demoisseles d’Avignon de Picasso, Ginzburg assevera: “Diálogo entre culturas, multiplicidade cultural: o caso analisado recorda-nos uma evidência que está, hoje, no geral, esquecida, a saber: nem todas as culturas dispõem do mesmo poder” (2002, p. 134). O que proporcionou a Picasso a apropriação das culturas figurativas da África, segundo Ginzburg, foi o colonialismo. Porém, Picasso decifrou os códigos das

imagens africanas graças à vitalidade da tradição na qual ele cresceu, a cultura clássica, de matriz greco-latina. O encontro com a arte africana apenas reforçou algo que Picasso “já sabia” (Idem, 2002, p. 133). A justaposição dos dois estilos, a clássica e a africana, em Demoiselles d’Avignon, testemunha um processo histórico importante: a força de uma tradição cultural que fornecera legitimações ideológicas para “a conquista do mundo pela Europa” (Idem, 2002, p. 134). A leitura às avessas, neste ensaio de Ginzburg, não chega ao reverso das intenções da autoridade. Não obstante identificar o colonialismo como recurso de inspirações para Picasso, Ginzburg reitera uma proposição largamente aplicada pelo mesmo: os encontros culturais são uma espécie de queda de braço em que vence o mais forte. Picasso, como se estivesse na caverna de Platão, só buscou na arte africana reminiscências já sabidas. A tese de Ginzburg é que a multiplicidade cultural desaparece se não falada numa linguagem específica. Os que falam essa linguagem são aqueles que, em princípio, têm o direito de expressá-la. Colocar a multiplicidade cultural nestes termos jurídicos implica perguntar: e aqueles que, na caverna de Platão, estavam acorrentados? Eles realmente seriam meros coadjuvantes projetando sombras na parede? E, sobretudo, a própria caverna estaria isolada? O mundo lá fora, ao redor da caverna, não mantinha relação com ela? Os encontros culturais, ou, para voltarmos aos conceitos do pós-colonialismo, as traduções entre culturas, não envolvem apenas um “Eu” soberano que fala de um “Tu” subalterno. Resultam da ambivalência dos jogos culturais, do caráter provisório e posicional das identidades culturais. Homi K. Bhabha, a este respeito, argumenta que o colonialismo não atua apenas por meio de oposições binárias, pela simples apropriação cultural do “outro”. O colonizador e o colonizado são enlaçados numa rede de reciprocidades em que as identidades culturais são negociadas de formas variadas, desencadeando conflitos e processos de dominação diversos (BHABHA, 1995). O ponto de vista nativo está contido nos próprios discursos coloniais. Os grupos subalternos recebem tal discurso, modificam-no, contestam-no, e mesmo colaboram com ele (LOOMBA, 1998). Os críticos pós-coloniais mostram como, no processo de tradução e diálogos culturais, a figura do nativo informante – aqueles que estavam acorrentados na caverna e também os que habitavam fora dela – foi fundamental para o funcionamento do colonialismo. Ele fornecia informações, dentre outras coisas, para elaboração de conhecimentos (arqueológicos e antropológicos, por exemplo), em linguagens e categorias locais (SAID et all, 2002, p. 6-7). Não é possível ignorar o ponto de vista nativo na elaboração de conhecimento acadêmico, arqueológico ou não. A inserção do ponto de vista nativo como constitutivo das Ciências Humanas

é, como argumenta Gayatri Spivak, um modelo que remonta ao século XVIII. Pode-se rastrear a personagem do nativo informante, as categorias e linguagens nativas, não só na Literatura, mas também na Filosofia e na História (SPIVAK, 1999). O “outro” – seja ele o nativo ou o público em geral – não está fora, mas sempre dentro das interpretações arqueológicas e das políticas de representação do patrimônio. Contudo, o reconhecimento da existência do ponto de vista nativo nas interpretações arqueológicas não deve levar-nos a relançar a armadilha montada pelos Estados pós-coloniais. Não se trata de fabricar, com os materiais arqueológicos, uma política de identidades como programa homogêneo, inclusivo e primordial. Como disse Hobsbawm a respeito das políticas de identidades, sentenças digitadas em teclados aparentemente inócuos podem tornar-se sentenças de morte (HOBSBAWM, 1998, 292). A Arqueologia e as políticas de patrimônio, ao reconhecerem o ponto de vista nativo, não precisam legitimar a continuidade de ocupação de um território por um mesmo povo, nem falsear evidências para provar correlações entre língua, etnia e território. Tradicionalmente, as coletividades humanas, nativas ou não, foram isoladas artificialmente. Uma das estratégias de isolamento foi exatamente a de catalogá-las em unidades estanques, em identidades fixas e essencializadas. Mas elas foram e são partes de um mundo mais amplo e complexo. A luta pela repatriação e inserção do ponto de vista nativo têm trazido para os museus, instituições que são os principais repositórios do patrimônio material, essa percepção dos encontros culturais em escala global, essa visão da História interligada das comunidades humanas. Experiências em museus australianos evidenciam que, ao trabalhar ao lado dos povos indígenas, eles conseguiram acomodar múltiplos paradigmas e exibir para o público, em exposições de História social, os processos de interação, diálogo e tradução cultural (ROBINS, 1996). Arqueólogos, tanto nos Estados quanto na Austrália, ao incorporarem os povos nativos e seus conhecimentos tradicionais nos trabalhos em museus, aprenderam uma pluralidade de significados, antes insuspeitados, sobre os artefatos (GIBSON, 2004; SIMPSON, 2001). O trabalho nesta direção pode apontar, efetivamente, para a descentralização das políticas de representação do patrimônio focadas no nacionalismo ou no predomínio do Ocidente e de sua força cultural. No futuro, talvez ele mude, inclusive, o significado atribuído à repatriação. Repatriar bens arqueológicos poderá significar, se me é permitido alterar etimologias, não o retorno à pátria, ao solo originário, mas para o mundo, para o público em geral, configurando políticas de representação do patrimônio que abordem os conflitos, diálogos e encontros culturais e políticos.

Agradecimentos: Os temas e problemas deste artigo foram apresentados, no segundo semestre de 2005, em dois cursos de extensão. O primeiro foi ministrado em várias cidades, junto ao projeto Teia do Saber (Convênio Unicamp/Secretaria de Educação do Estado de São Paulo), para os professores da rede pública do Estado de São Paulo. Ministrei-o, ainda, ao lado de Fábio Adriano Hering, no Festival de Inverno de Ouro Preto (25 a 28 de julho de 2005). Um público diverso participou do curso: professores da rede pública de Minas Gerais, gestores e conselheiros municipais do patrimônio histórico de Ouro Preto e Mariana, alunos da UFOP e da PUC de Belo Horizonte. Devo, assim, agradecer a todos os participantes dos cursos. As discussões ensejadas e experiências compartilhadas mudaram várias de minhas perspectivas acerca das políticas de representação do patrimônio. Devo, ainda, um agradecimento especial ao amigo Fábio Adriano Hering. Sem ele, muitas das idéias aqui argumentadas não seriam possíveis. Outros colegas e amigos leram as versões preliminares deste texto: Pedro Paulo Abreu Funari, Sandra Pelegrini, Gilson Rambelli, José Alberione dos Reis, Elohim Fonseca dos Reis e Fernanda Bordin Tocchetto. A eles também sou muito grato. Por fim, devo agradecimentos à FAPESP, pelo financiamento, desde 2000, de minhas pesquisas. Pelas idéias apresentadas, contudo, sou o único responsável.

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PARTE II A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL: NORMATIVAS INTERNACIONAIS E DISPOSITIVOS LEGAIS.

A SALVAGUARDA E A SUSTENTABILIDADE DO PATRIMÔNIO IMATERIAL BRASILEIRO: IMPASSES E JURISPRUDÊNCIAS.

Sandra C. A. Pelegrini.

“Patrimônio é o legado que recebemos do passado, que vivemos no presente e que transmitimos às gerações futuras. Nosso patrimônio cultural e natural é uma fonte insubstituível de vida e inspiração, nossa pedra de toque, nosso ponto de referência, nossa identidade” (Unesco, 1997).

A acepção de patrimônio cultural é na atualidade uma definição basilar nas áreas das Ciências Humanas e coloca em confronto tendências antagônicas como a diversidade e a globalização. Nesse sentido, os estudos que se debruçam sobre essa temática têm resultado, predominantemente, duas vertentes de análise: uma aborda as relações dos bens culturais e as memórias nacionais representadas nos bens naturais ou nos chamados bens de cal e pedra, quais sejam os monumentos, os conjuntos arquitetônicos e as obras de arte consideradas obras-primas ou expressões do gênio humano e que, em última instância, constituem representações dos interesses de determinados segmentos sociais dominantes. Outra vertente se dedica às histórias e as memórias dos segmentos menos favorecidos expressos nas tradições orais e no patrimônio imaterial desenvolvido em determinadas épocas e regiões do planeta. Essa perspectiva apresenta-se como uma tentativa de remediar as abordagens etnocêntricas típicas da sociedade ocidental e a superar as interpretações que tomam a produção cultural popular de maneira segmentada. Não obstante, devemos considerar a noção de “circularidade cultural” destacada nos estudos de Carlo Ginzburg (1989) e as intensas trocas entre diversos modos de ver o mundo e de construir representações e práticas sociais, evidenciadas nas pesquisas de Roger Chartier (2001). A partir desses referenciais, salientamos que as mais diversas fontes documentais, as memórias e as práticas se inserem num campo minado por embates sociais próprios de determinados territórios espaciais e temporalidades. Elas constituem manifestações do patrimônio material e imaterial da humanidade. Portanto, segundo estudos recentes como os de José Reginaldo Santos Gonçalves (2002), Regina Abreu e Mário Chagas (2003), Pedro Paulo Funari (2001; 2006; 2008) e Sandra C. A. Pelegrini (2006; 2007; 2008), as permanências ou desaparecimentos de certos bens culturais precisam ser identificados no cerne das lutas políticas e sociais do seu tempo.

Não podemos mais incorrer no erro de abordar os bens materiais como se eles estivessem desvinculados dos bens imateriais e vice-versa. Seja qual for nossa opção de enfoque, convém apreendê-los como distintas manifestações da ação humana. Observar a “alma nas coisas” e a materialização do imaginário, das lendas, das festas, dos saberes, entre outros conhecimentos, pode constituir um exercício fascinante, como atestam os antropólogos Flávio Leonel Abreu da Silveira e Manuel Ferreira de Lima Filho (2005). Nessa linha argumentativa, nos propomos a aprender o patrimônio cultural no sentido humanista, valorizando sua característica dinâmica, capaz de integrar as perspectivas locais e universais, materiais e imateriais, fortalecendo a diversidade cultural e a polifonia – tomada por Bakthin como traço essencial da cultura popular. Para tanto, consideramos imperioso o conhecimento dos critérios que nortearam as normativas internacionais e as formulações legais de proteção aos bens imateriais no Brasil, e ainda, refletir sobre os impasses referentes a sustentabilidade da salvaguarda desses bens na atualidade. Alguns expoentes da literatura que se ocupam tanto da historicidade, como da problematização das identidades, das culturas e das memórias, como os antropólogos Christopher Hill e Stuart Hall, o sociólogo Boaventura Souza Santos, os historiadores Michel de Certeau, Roger Chartier, Carlo Ginzburg, Jacques Le Goff, a arqueóloga Lourdes Domínguez e pesquisadores como François Choay e Jose Ballart, entre outros, destacam a relevância de não desqualificarmos as chamadas “identidades nacionais” ou subestimarmos as “identidades étnicas” e as “tradições populares”, consideradas dignas de nossa “ação” de “recuperação”, mas sim, de procurarmos equacionar políticas preservacionistas capazes de garantir a difusão das manifestações culturais e condições para sua sustentabilidade. Cabe-nos contribuir para visibilidade das múltiplas relações entre a história e a memória ou detectarmos os distintos modos de produzir cultura. Evidentemente, as mais variadas formas de expressão e maneiras do saber-fazer humano surgem vinculadas às manifestações eruditas e populares, às artes plásticas, à arquitetura, à musicalidade, aos linguajares, aos ofícios artesanais e aos conhecimentos tradicionais. Talvez esse exercício analítico nos auxilie a compreender certo distanciamento dos segmentos populares em relação aos “admiráveis” bens reconhecidos como obras primas do patrimônio nacional, e quiçá mundial, como bem o lembra a historiadora Déa Fenelon (1992; 2004). E ainda, explique as demandas pelo tombamento de monumentos menos suntuosos e de edificações integradas ao cotidiano das populações como estações de trem ou mercados públicos e, mais recentemente, elucidem o clamor pelo registro dos bens culturais de

natureza intangível como expressões, conhecimentos, práticas e técnicas populares, representativos do ponto de vista da maior parcela do contingente populacional mundial (FUNARI & PELEGRINI, 2008). Antes de aprofundarmos tais questões devemos lembrar, porém, que a Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) tem sido pródiga no fomento de congressos com vistas a estabelecer normativas relativas ao trato do patrimônio. Do mesmo modo, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) tem se dedicado à proteção dos bens culturais brasileiros.

O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e o projeto de Mario de Andrade A atuação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1936) privilegiou os bens representativos sob a ótica da história nacional e distinguiu o conjunto de bens que deveria estar sob a assistência do Estado. Entretanto, antes mesmo da criação desse órgão, Mário de Andrade conjeturava a possibilidade de ampliação de tais critérios, pois já apontava a necessidade de se atentar para peculiaridades das manifestações relacionadas à cultura popular. Do seu ponto de vista, eventos e manifestações populares como as músicas, danças e objetos da cultura material não erudita também mereciam a atenção e deveriam ser mantidos sob a guarda estatal (LEMOS, 2007). A proteção do patrimônio histórico nacional aguçou o interesse das autoridades políticas que participaram da Constituinte de 1934. Por ela foi declarado o “impedimento à evasão de obras de arte do território nacional” e a introdução do “abrandamento do direito de propriedade nas cidades históricas mineiras, quando esta se revestisse de uma função social”. Três anos depois, o tema foi retomado na Carta Magna de 1937 que, ao garantir a submissão do instituto da propriedade privada ao interesse coletivo corroborou para a proteção ao patrimônio brasileiro. A promulgação da Constituição de 1946 inaugurou a preocupação em relação à proteção de documentos históricos e reafirmou o que havia sido prescrito em trinta e sete, ou seja, a responsabilidade do Estado para com o patrimônio e os bens culturais brasileiros (PELEGRINI, 2006, p. 13). Nas décadas de 1930 e 1940, os primeiros órgãos internacionais dedicados à preservação do patrimônio circunscrevam a própria acepção do termo à cultura material considerada de excepcional valor histórico ou artístico e representativo de uma época ou de uma sociedade. Essa normativa esteve presente nas discussões sobre o tema no Brasil e acabou influenciando as decisões do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1936) e a implementação do Decreto-lei no. 25/1937

que, por sua vez, se tornou um instrumento jurídico capital para a política preservacionista. Nessa época tal órgão era vinculado ao Ministério da Educação e Saúde Pública conduzido por Gustavo Capanema (FUNARI e PELEGRINI, 2006, p. 45). Após vários ajustes e depois de passar por inúmeras estruturações o Instituto do Patrimônio Histórico Nacional, na atualidade vinculado ao Ministério da Cultura, assumiu a tarefa de fiscalizar, conservar, restaurar, proteger e difundir os bens culturais brasileiros inclusos na Lista do Patrimônio Mundial, além daqueles reconhecidos apenas nacionalmente como bens representativos da cultura brasileira. E, desde 1979, sob a gestão de Aluízio Magalhães, passou a congregar também as pesquisas realizadas pelo Centro Nacional de Referência Cultural, criado em 1975. Como país signatário da “Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural” (1972), o Brasil vem seguindo as sugestões da Unesco no sentido da promoção e preservação dos bens culturais. Não obstante, como ocorreu com os demais países que adotaram os preceitos da referida convenção, a proteção do nosso patrimônio se restringiu ao tombamento das obras de arte, de monumento e de conjuntos arquitetônicos considerados de alto valor histórico ou de antiguidade, na sua maioria de propriedade do Estado e da Igreja católica. Da mesma forma, as questões do patrimônio nacional europeu e latino americano ficaram a mercê de disposições legais que se devotaram à limitação dos direitos de propriedade privada, fundamentadas na tradição do Direito romano. Não por acaso, o reconhecimento o patrimônio brasileiro foi delimitado por bens representativos da história oficial e da memória das elites (FENELÓN, 1992). Logo, a conceituação do patrimônio histórico nacional, além de privilegiar os bens associados aos segmentos privilegiados da sociedade brasileira, ignorou a contribuição de outras etnias no processo de formação da identidade nacional. Nos últimos anos, as políticas públicas de preservação têm sido norteadas pela ampliação do conceito de patrimônio cultural processado nas décadas de 1980 e 1990 e, paulatinamente, criado novos instrumentos de proteção. No caso Brasileiro foram decisivos: a) o artigo 216, da Constituição Federal Brasileira (1988) e b)a implementação do “Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial”, viabilizado pelo Decreto no. 3551/2000. Essa expansão das frentes de proteção do patrimônio nacional expressa no inventariamento e registro de “bens imateriais notáveis” como celebrações e rituais religiosos e/ou populares, tornou imperativa a abertura de novos livros de tombo.

Curiosamente, a “figura jurídica do tombamento”, instituída pelo Decreto-Lei n 25/37, como sugeriu o escritor Mário de Andrade e demais membros que o auxiliaram a redigir a proposta do Ante-projeto original do SPHAN, não seguiu o modelo francês de preservação que consistia na classificação e no registro dos bens históricos e arquitetônicos. As análises, inventariamentos e tombamentos dos bens móveis e imóveis promovidos pelo IPHAN, como asseverou Alexandre Fernandes Corrêa, tomaram como referencial o modelo português, cuja proposição se volta para a “inscrição dos bens e valores culturais em Livros do Tombo” (2007, p. 1). Embora a “figura jurídica do tombamento” continue em vigor, em 1998, o Ministério da Cultura frente à necessidade de promover o reconhecimento dos bens culturais intangíveis instituiu o Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. O GTPI, visando a agenciar reflexões e debates entorno da noção de proteção de bens culturais intangíveis ou imateriais, realizou encontros de trabalho e seminários. O grupo sintetizou algumas idéias e propôs um esboço de decreto presidencial, a partir do qual se determinou um novo instituto jurídico para a proteção dos bens imateriais. Essa minuta passava agora a assentar-se na “figura jurídica do registro”, de modo a atender a terminologia conjeturada na Constituição Federal de 1988. Esse procedimento implicou a idealização do “Registro de bens culturais de natureza imaterial”, como instrumento de salvaguarda, bem como a criação do “Programa Nacional de Identificação e Referenciamento de Bens Culturais de Natureza Imaterial”, cujo princípio consubstanciou a “inscrição de bens culturais de natureza imaterial em um, ou mais de um, dos seguintes Livros de Registro”:

I – Livro de Registro dos Saberes e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; II - Livro de Registro das Festas, celebrações e folguedos que marcam ritualmente a vivência do trabalho, da religiosidade e do entretenimento; III – Livro de Registro das Linguagens verbais, musicais, iconográficas e performáticas; IV - Livro dos Lugares (Espaços), destinado à inscrição de espaços comunitários, como mercados, feiras praças e santuários, onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas (GTPI-MinC:1998).

Nesse sentido, já foram registrados como patrimônio imaterial brasileiro, os seguintes bens: 1. Ofício das Paneleiras de Goiabeiras (dez./2002); 2. Arte Kusiwa dos Índios Wajãpi (dez./2002);

3. Samba de Roda no Recôncavo Baiano (out./2004); 4. Modo de fazer de Viola-de-cocho (jan./2005 ); 5. Ofício das Baianas de Acarajé (jan./2005); 6. Círio de Nossa Senhora de Nazaré (out./2005); 7. Jongo no Sudeste (dez./2005); 8. Cachoeira de Iauaretê – Lugar sagrado dos povos indígenas dos Rios Uaupés e Papuri (out./2006); 9. Feira de Caruaru (dez./2006); 10. Frevo (dez/2006) e 11. Tambor de Crioula do Maranhão (jun/2007).

Além desses, o IPHAN informa que vários registros de bens estão em fase conclusiva e cerca de 29 inventários estão em andamento36. Como podemos notar, as políticas preservacionistas no Brasil encontram-se balizadas por institutos jurídicos distintos: o do tombamento para os bens materiais (móveis ou imóveis) e o do registro para os bens imateriais. Todavia, resta-nos indagar de que maneira estes instrumentos legais têm efetivamente promovido a salvaguarda do patrimônio brasileiro.

A sustentabilidade e a salvaguarda dos bens imateriais e materiais. As recentes conquistas no âmbito da preservação dos bens intangíveis parecem irrevogáveis, no entanto, as dificuldades enfrentadas para se alcançar o acautelamento dos bens ainda está longe de tornar-se uma questão resolvida. Do ponto de vista do antropólogo Antonio A. Arantes, expresidente do IPHAN, as ações em torno da promoção dos bens culturais imateriais têm tangenciado programas que buscam a sustentabilidade a partir da inserção de “populações e territórios cuja paisagem natural e cujo patrimônio cultural” são reconhecidos pelas comunidades e pelos especialistas como “distintivas” e, por isso, tornam-se “objetos de salvaguarda” e “recursos úteis ao desenvolvimento de produtos de mercado” (2007, p. 12). Nessa linha, argumenta que iniciativas ora públicas, ora privadas, investem no turismo cultural ou no reality tourism, uma vez que essas

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Referimo-nos ao registro de bens, como por exemplo, o dos queijos artesanais e dos cantos sagrados do milho verde (ambos de Minas Gerais), da linguagem dos sinos nas cidades históricas mineiras, do teatro popular de bonecos (Mamulendo), da Feira de São Joaquim de Salvador (BA), entre outros. Cf. informação disponível no site: http://www.portal.iphan.gov.br.

comunidades e seus produtos culturais são tomados como exóticos – aspectos deveras atrativos na economia globalizada. Entretanto, no Brasil, os projetos voltados para a sustentabilidade se pautam por ações que “visam a estimular a ampliação do mercado para produtos” emanados de saberes tradicionais, mas para tanto implementam “mudanças técnicas, estéticas e gerenciais” para adequar a produção às demandas de um mercado em plena expansão. Por certo, antes disso, dá-se todo um trabalho de catalogação de práticas, de conhecimentos, de indivíduos que atuam como mestres de ofício. Contudo, a implementação de programas de fomento tende a dinamizar as condições de existência das comunidades e intensificar o processo de transformações sociais vivenciadas por elas, e também, alterar os seus modos de reproduzir a vida, os costumes, os rituais. Conseqüentemente, o ritmo dessas transformações acaba por relegar ao “esquecimento e ao desuso [...] as competências e informações que esses objetos consubstanciam” (ARANTES, 2007, p. 12-13). Paradoxalmente, enquanto esses produtos agregam valor à medida que são identificados como “culturas autênticas” e que as comunidades mantenham sua “cosmologia” própria, a urgência do mercado globalizado torna mais vulnerável a transmissão dos conhecimentos locais, susceptíveis às mudanças necessárias para a expansão das atividades econômicas das comunidades que são alvos de projetos de sustentabilidade econômica. Nesse sentido, como salienta Antonio A. Arantes, a valorização do patrimônio cultural torna imperiosa a atenção dos especialistas e gestores de programas de salvaguarda em relação a sustentação das “condições materiais e ambientais necessárias à reprodução”, ao “desenvolvimento” e a manutenção do patrimônio, bem como o acompanhamento das “formas costumeiras de transmissão dos conhecimentos” visando a “formação de novos executantes” (2007, 14). A propriedade dessa inferência pode ser observada nas ações em prol da salvaguarda da fabricação artesanal de recipientes de barro pelas Paneleiras de Goiabeiras, registrado em dezembro de 2002, no Livro de Saberes. Entre essas ações salientamos: 1. a valorização da tradição indígena, passada de geração a geração acerca de 400 anos; 2. a oferta de cursos práticos de capacitação para novos aprendizes, propostos pelas paneleiras mais antigas e conhecedoras do ofício; 3. a conscientização da comunidade através da educação patrimonial sobre a necessidade de preservação do meio ambiente que fornece os insumos para a produção das panelas; 4. os cuidados como a extração do barro no Vale do Mulembá e do tanino coletado do manguezal (usado na coloração das panelas);

5. a difusão da importância das panelas para o cozimento das moquecas capixabas, conhecidas como um prato típico da população do Espírito Santo; 6. a organização de uma Associação das Paneleiras de Goiabeiras (APG), uma cooperativa que assiste juridicamente as paneleiras e orienta a comercialização dos produtos artesanais com um selo de controle de qualidade. O plano de salvaguarda desse ofício envolve, portanto, não só ações atinentes à organização e à capacitação das paneleiras, mas, principalmente, medidas que visam a sustentabilidade deste ofício, a defesa dos direitos autorais das artesãs e a sobrevivência de cerca de 120 famílias da comunidade (FUNARI & PELEGRINI, 2008). Segundo os dados fornecidos pela Associação das Paneleiras de Goiabeiras o comércio desses artefatos está em plena expansão no Brasil e no exterior. Já conquistou os mercados consumidores de São Paulo, Rio de Janeiro, Pará, Rio Grande do Sul, Rondônia, Austrália, Estados Unidos e França37. O incentivo ao desenvolvimento de pesquisas sobre a cultura popular e a transmissão dos saberes, o estímulo aos artesãos e compositores, o apoio ao registro fonográfico e audiovisual de manifestações artísticas tradicionais, entre outras práticas, tem norteado as diretrizes do IPHAN e do Ministério da Cultura no século XXI. Recentemente, essas preocupações foram expressas pelo Presidente do IPPHAN Luis Fernando de Almeida e pelo Ministro da Cultura Gilberto Gil, nos discursos proferidos na solenidade que celebrou o registro do Tambor de Crioula, no Livro das Formas de Expressão do Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro, em 18 de junho de 2007 38. Cumpre lembrar que apesar da globalização tender a homogeneizar as culturas, a valorização das práticas populares tradicionais se impõe na contemporaneidade, pois estão imbricadas as noções de pluralidade, a inclusão social e ao exercício da cidadania (PELEGRINI, 2007). Logo, projetos que visem à integração entre jovens e anciãos detentores de conhecimentos e técnicas ancestrais devem constituir o ponto de partida para criação das condições propícias à transmissão dos conhecimentos e da herança cultural dos povos, e ainda, para a sustentabilidade e manutenção de seus bens culturais.

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Dados inseridos na documentação referente ao processo de registro do Ofício das Paneleiras. Disponível em site: http://www.portal.iphan.gov.br. 38 Em contrapartida, nessa ocasião alguns mestres do Tambor de Crioula lembraram a função social do registro e sua importância na esfera da sustentabilidade dos grupos e das comunidades. Para o mestre Amaral, esse registro “veio para melhorar as condições do grupo e divulgar ele em todo Brasil”, complementando essa fala, o mestre Felipe, um dos mais antigos da região, salientou que o “tambor tira(va) essas crianças (carentes) da marginalidade” (FUNARI & PELEGRINI, 2008).

Como veremos a seguir, vários documentos internacionais têm buscado auxiliar os países signatários da Unesco a proteger seus bens patrimoniais por meio da troca de experiências e da formulação de normativas que orientam a implementação de leis e decretos no âmbito da preservação.

A Unesco e a promoção de políticas preservacionistas no mundo. A Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura tomou para si a tarefa de defender o patrimônio mundial após 1945, em decorrência da irreversível destruição causada pela II Guerra Mundial. Desde então, empenhou-se na realização de eventos que congregaram estudiosos e autoridades

políticas

internacionais

visando

o incremento de

estratégias pacíficas

de

desenvolvimento, em particular, nas áreas das Ciências Naturais, Humanas e Sociais, da Cultura, da Comunicação, da Educação e da Informação. Por meio da operacionalização de diálogos entre vários países vem intermediando choques de interesse e impedindo a disseminação de guerras mundiais. No entanto, nem todos os países do mundo têm atendido as diretrizes desse órgão internacional, aspecto que torna sua atuação menos eficiente do que deveria, ainda assim, em 1972, ela alcançou significativo êxito quando consolidou a “Convenção do Patrimônio” – um acordo inicialmente extensivo à 148 países e que na atualidade congrega cerca de 190 signatários. Os documentos resultantes das conferências realizadas pela Unesco, somados às sugestões de outros órgãos independentes, sem sombra de dúvida, vêm formulando normativas substanciais em defesa do patrimônio cultural e natural da humanidade, abalizando políticas públicas de cultura e a implementação de leis e decretos adotados em vários países. Nesses termos, podemos afirmar que a “Carta de Haia” (1954) representa um marco na trajetória desse órgão, uma vez que propôs medidas para proteção de bens culturais em caso de conflito armado, num período muito conturbado das relações internacionais, o da “Guerra Fria”. Segundo o pacto de 1954 foi acordado que o patrimônio natural, os sítios arqueológicos, os centros históricos e culturais (como museus ou casas das artes) deveriam ser poupados de ataques em caso de conflitos inevitáveis. De todo modo, a proteção aos bens culturais ainda manteve-se, preponderantemente, circunscrita ao patrimônio natural, aos bens edificados, monumentos e obras de arte no continente europeu (ou relacionadas a ele). Não obstante, a revisão epistemológica do conceito de patrimônio pautado pelos novos paradigmas das ciências humanas, processados na segunda metade do século XX, corroborou para o questionamento das formas de poder e ampliação dos bens culturais reconhecidos como tal. A emergência de valores identitários antes debelados tornou visíveis os referenciais culturais antes

ignorados. A contestação de toda e qualquer forma de autoridade, as utopias por uma sociedade mais humana, a revisão de arquétipos de comportamento e a emergência de novas sensibilidades levou à percepção dos bens culturais como testemunhos do cotidiano e da concretização do insólito, do imaterial. Nessa direção, os fundamentos que norteavam a seleção dos bens e o sentido da preservação propugnada pela Unesco alargaram-se alcançando não somente monumentos suntuosos representativos do ponto de vista dos poderes hegemônicos, mas também construções mais simples e integradas ao dia-a-dia das populações e, mais recentemente, os bens culturais de natureza intangível (FUNARI e PELEGRINI, 2008). Diante de tais transformações, as recomendações contidas nas cartas patrimoniais resultantes das conferências internacionais realizadas pela Unesco, paulatinamente, adsorveram novos preceitos para a avaliação e preservação dos bens culturais. Primeiro, porque expandiram a concepção de monumento e de cultura, segundo, porque redefiniram os critérios para a classificação dos bens a serem protegidos39. Por essa via, a “Convenção do Patrimônio Mundial”, celebrada em 1972, solidificou as proposições da Unesco e demais organizações envolvidas com a defesa do patrimônio cultural. Esse pacto internacional estimulou a Bolívia, um dos seus coalescentes a pleitear maior atenção às manifestações relativas à “cultura tradicional e popular”. Nas décadas que se seguiram, esse fato implicou imissões jurídicas em prol da preservação da cultura popular e de suas práticas. Nos anos oitenta, portanto, documentos valorosos como o da “Conferência Mundial sobre as políticas culturais”, realizada em Mondiacult (México), em 1982, conferiu o devido destaque às relações entre a cultura e a identidade dos povos. Para o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), responsável pelo evento, a “identidade cultural” constituía “[...] uma riqueza que dinamiza(va) as possibilidades de realização da espécie humana ao mobilizar cada povo e cada grupo a nutrir-se de seu passado e a colher as contribuições externas compatíveis com a sua especificidade e continuar, assim, o processo de sua própria criação”. Portanto, os congressistas ainda ratificaram a idéia de que a “identidade” e a “diversidade” se complementavam mutuamente, consolidando a perspectiva de que o “pluralismo cultural” implicava o “respeito” e o “apreço” pelas “diversas tradições” culturais (Conferência Mundial sobre as políticas culturais, 1982). Notamos, a partir dessa convenção a valorização do “intercâmbio de idéias e experiências”, inclusive, da apreciação de valores e tradições diversos da civilização ocidental. Além disso, estavam postos os princípios basais para o futuro reconhecimento dos bens intangíveis, à medida 39

Nos referimos principalmente à “Carta de Veneza” (1964), na “Declaração de Amsterdã” (1975) e na “Declaração do México” (1982).

que o documento não dissimulava o intento de alargar a própria concepção de cultura agora tomada como um “conjunto dos traços distintivos espirituais, materiais, intelectuais e afetivos” que balizavam “uma sociedade e um grupo social”, suas manifestações artísticas e lingüísticas, suas forma de conduzir a existência e definir seus preceitos éticos, crenças e tradições (Idem, 1982). As sugestões da conferência supracitada adquiriram maior peso político na “Recomendação Sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular” (1989), documento síntese da 25ª. Reunião da Conferência Geral da Unesco, e também, no “Informe da comissão mundial de cultura e desenvolvimento”, redigido em 1996, e denominado “Nossa Diversidade Criativa”. A maior repercussão desses dois documentos se circunscreveu à ênfase na ordenação dos direitos culturais, antes disseminados entre os instrumentos legais de proteção aos direitos humanos. De fato, a proposta de realização de um inventário específico dos direitos culturais propiciou o reconhecimento formal do direito à difusão, à identidade cultural, à cooperação cultural internacional, à criação e participação na vida cultural e ao direito autoral – o primeiro deles a ser reconhecido40. A Conferência de 1989 ressaltava também a imperiosa necessidade de se respeitar cultura tradicional e popular em sua dinâmica, no seu permanente processo de transformação e recriação de valores. A partir desse enfoque, o documento asseverava que “a conservação da documentação relativa às tradições da cultura tradicional e popular devia privilegiar a percepção se tais práticas continuavam ou não sendo utilizadas ou se haviam passado por transformações” e que cabia aos pesquisadores ou as gerações futuras interessadas na manutenção das tradições aferir sobre as adequadas políticas preservacionistas. Em termos práticos, essa assertiva indicava que cada Estadomembro promovesse: 1) pesquisas para a identificação da cultura tradicional e popular no âmbito regional e nacional; 2) inventários nacionais de instituições interessadas nessa temática e sua inclusão em listas de registros regionais e/ou mundiais; 3) o desenvolvimento de sistemas de registro, catálogos ou guias de compilação. Concatenadas, essas medidas garantiriam a execução de projetos-piloto nesse campo e sistemas coordenados de classificação e tipologias normativas sobre a cultura tradicional. Tais diretrizes colocavam em evidência uma oportuna articulação entre o “direito cultural” e a concepção de cultura assentada nas proposições da Antropologia, pois a cultura tradicional e popular era definida no documento síntese de 1989 como um “conjunto de criações [...] fundadas na

40

Cumpre-nos lembrar que a instituição legal do direito autoral esteve articulada aos ideais revolucionários eclodidos na Inglaterra (1688), Estados Unidos (1776) e França (1789), mobilizações que corroboraram para o reconhecimento da criação intelectual e artística como uma das mais autênticas propriedades individuais (FUNARI e PELEGRINI, 2008).

tradição”, manifestas “por um grupo ou por indivíduos” que correspondiam à “expressão de sua identidade cultural e social”, expressas por meio da “língua”, “literatura”, “música”, “dança”, “jogos”, “mitologias”, “rituais”, “costumes”, “artesanato”, “arquitetura e outras artes”, instituídas através de valores transmitidos ancestralmente (Recomendação sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular, 1989). Todavia, ao afirmarem o caráter “evolutivo” da cultura, essas indicações, inadvertidamente, restauraram referenciais que, contraditoriamente, continuaram promovendo a hierarquização das culturas a partir de comparações equivocadas com a cultura ocidental, antecipando as suscetibilidades que seriam percebidas pelos estudiosos do patrimônio imaterial somente no início do século XXI. A propriedade desse impasse a ser enfrentado pelas políticas preservacionistas se deve justamente ao fato de que os princípios fundadores da cultura residem na sua diligência e vitalidade. A suspeição quanto à validade dos registros da cultura ou das expressões culturais populares assenta-se, portanto, na idéia de que seja considerado inconveniente defini-la como um conjunto preciso de dados que se conservam incólumes, haja vista que congregam significados ao longo do tempo. Contudo, convém salientarmos que as ressignificações absorvidas e re-elaboradas no dia-a-dia resistem e permanecem como vínculos identitários impregnados na dinâmica social das comunidades nos quais se inserem (CHARTIER, 1990; 2004). Daí sua razão de existir! Talvez, por essa razão, no limiar do século XXI, os debates internacionais tenham privilegiado a gestão cultural, priorizando a aplicação de medidas devotadas não só ao reconhecimento das mais distintas expressões culturais, mas, principalmente, a implementação de ações capazes de fomentar o desenvolvimento artístico, a tutela, a divulgação, o inventário e a salvaguarda dos bens. Grosso modo, podemos inferir que as políticas patrimoniais implementadas nos países signatários da Unesco vêm empreendendo esforços no sentido de retificar a perspectiva monumentalista atribuída ao patrimônio desde meados do século XIX (na França) e aquilatando a diversidade cultural. Outrossim, as alterações nos paradigmas que informam as normativas internacionais não ocorreram de maneira instintiva, muito pelo contrário, resultaram das pressões exercidas pelas culturas minoritárias que pleitearam o reconhecimento de seus bens culturais.

A “Convenção para a salvaguarda do patrimônio imaterial”.

Formulada em 2003, essa convenção embasou os princípios que passaram a nortear as políticas em defesa dos bens culturais imaterial, tal qual as proposições da “Convenção do Patrimônio” (1972) haviam se ocupado da proteção dos bens móveis e imóveis. Logo, no seu artigo segundo, afiançou que o patrimônio imaterial se definia pelas “[...] práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais” a eles agregados, considerados parte do patrimônio cultural pelas comunidades (Convenção para a salvaguarda do patrimônio imaterial, 2003). Como podemos observar, a conceituação supracitada tomava como pressuposto as relações de alteridade entre as culturas e o tempo. Ao fazê-lo admitia que as transformações ocorridas no cerne das comunidades e no meio ambiente interferiam nos meios de vida dos povos e na sua história. Mas, a despeito do valor dos princípios mencionados, a própria Convenção de 2003 reconhecia que os contínuos processos de transformação social e a globalização viabilizavam, por um lado, “um diálogo renovado entre as comunidades”, mas, por outro, suscitavam a “intolerância” e condições de desenvolvimento díspares que repercutiam na “deterioração, desaparecimento e destruição do patrimônio cultural imaterial”, porque a maior parte das comunidades ou minorias étnicas careciam de meios eficazes para a promoção da salvaguarda de seus bens culturais. Por certo, essa questão não invalidava a amplitude atribuída ao conceito de diversidade cultural e ao sentido de pertença e identidade desses grupos, muito pelo contrário, a compreensão das transformações das relações entre o homem e o meio e suas maneiras de produzir cultura reforça o respeito à pluralidade cultural. Contudo, não se avançava concretamente em relação às proposições da “Recomendação sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular” (1989) e da “Declaração universal da Unesco sobre a diversidade cultural” (2001). Ainda que a Convenção para a salvaguarda do patrimônio imaterial (2003) não tenha explicitado claramente os critérios para o reconhecimento do patrimônio imaterial, sugeriu que o acautelamento de bens de natureza imaterial devia ajustar-se aos “instrumentos internacionais de direitos humanos”, estimular o “respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos” e pautar-se pelo desenvolvimento sustentável”. Desse modo, incluía no rol dos bens imateriais as “tradições e expressões orais”, o “idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial”; as “expressões artísticas”; as “práticas sociais, rituais e atos festivos”; os “conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo”; as “técnicas artesanais tradicionais”. Em seu artigo segundo recomendava a

criação de um “Comitê Intergovernamental para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial” 41, bem como o investimento na investigação, identificação, catalogação e revitalização dos bens intangíveis e na “educação formal e não-formal” para garantir a transmissão dos conhecimentos relacionados aos bens imateriais às gerações futuras. Cumpre lembrar, conforme definia o artigo terceiro, sobre a “Relação com outros instrumentos internacionais”, que as disposições presentes na Convenção de 2003 não poderiam “modificar o estatuto”

da

“Convenção

do

Patrimônio

Mundial”

(1972).

Além

disso,

ao

Comitê

Intergovernamental para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial caberia definir os “critérios e modalidades” pelos quais se daria a certificação dos bens que pleitearem a inclusão na “Lista representativa do patrimônio cultural imaterial da humanidade”, de acordo com os princípios e os objetivos da presente Convenção. De certa forma, os dispositivos supracitados, ao manterem os critérios de antigüidade e excepcionalidade expressos na Convenção de 1972, tendem a reforçar a idéia de que o bem cultural para alçar o status de “patrimônio mundial da humanidade” deveria “estar associado direta ou indiretamente com acontecimentos ou tradições vivas, com idéias ou crenças, ou com obras artísticas ou literárias”. Portanto, ao enfatizarem a necessidade do seu “excepcional valor universal” parecem ratificar a universalidade do bem como um elemento fundamental e juízos de valor compatíveis com a cultura ocidental. Caso essa suposição esteja correta, podemos inferir que Unesco tende, ao contrário do que se propõe, a reafirmar

certa dicotomia cultural

entre os

povos

“desenvolvidos” e os

“subdesenvolvidos”. Se há na Unesco favorecimento do patrimônio material de civilizações dominadoras, em detrimento dos interesses das civilizações não ocidentais, como podemos interpretar os seus esforços no âmbito da proteção do patrimônio intangível, das tradições orais e populares? Se cogitarmos que seja essa a postura assumida pela Unesco, como poderemos apreender a pressuposta disposição do Comitê selecionar e promover “os programas, projetos e atividades de âmbito nacional, sub-regional ou regional para a salvaguarda do patrimônio imaterial”,

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Cf. o artigo quinto da Convenção, ficava estabelecida a criação de um comitê eleito em Assembléia Geral, entre os Estados-membro da Unesco. Na ocasião, foram escolhidos Mohamed Bedjaui (da Argélia, como primeiro presidente); O. Faruk Logoglu (da Turquia) e quatro vice-presidentes oriundos do Brasil, Etiópia, Índia e Romênia. Entre os demais países que integraram o Comitê constavam representantes da Bélgica, Bulgária, China, Emirados Árabes Unidos, Estônia, Gabão, Hungria, Japão, México, Nigéria, Peru, Senegal, Vietnam, Madagascar, Albânia, Zâmbia, Armênia, Zimbabue, Camboja, a ex-República Yugoslava de Macedônia, Marrocos, França e Côte d’Ivoire.

considerando-se as “necessidades especiais dos países em desenvolvimento”, expressa no artigo 18, da Convenção de 2003? Com certeza, o acompanhamento das políticas de proteção implementadas pela Unesco, no decorrer do século XXI, revelará suas intenções e prioridades.

Desafios da preservação do patrimônio imaterial. O empenho no sentido do reconhecimento da diversidade cultural e da conseqüente gama de bens patrimoniais, em especial os de natureza imaterial, decorrem das próprias transformações pelas quais passou o conceito de cultura e patrimônio. As alterações da dinâmica sócio-cultural repercutiram nas maneiras e nos modos de viver dos seres humanos, nas suas relações com a natureza e com os seus pares. As discussões que impulsionaram a revisão da própria acepção da salvaguarda do patrimônio imaterial estão imbricadas à historicidade dos conceitos e a eclosão de movimentos sociais que colocaram sob suspeição as mais distintas formas de poder. Como procuramos demonstrar a identificação do patrimônio histórico, cultural, paisagístico e natural da humanidade vem sendo efetuada sistematicamente desde os anos trinta do século XX, como síntese da necessidade de se alcançar soluções para o crescimento urbano sem destruir significativos legados da história e da memória da humanidade. Mas, com efeito, o prestígio adquirido pelo amplo leque de bens culturais relacionados aos saberes populares fez expandir a definição de patrimônio nas décadas de 1980 e 1990. Desde então, paulatinamente, o reconhecimento da diversidade cultural, étnica e religiosa existente no planeta vem compelindo a revisão dos critérios de seleção dos bens inclusos na Lista do Patrimônio Mundial, seja ele tangíveis ou intangíveis. No entanto, o contexto no qual está ocorrendo a valorização dos bens intangíveis parece ainda assentado em práticas, conceitos e visões cindidas entre o material e o imaterial, entre a cultura e natureza. Noções que continuam pautadas, como bem o lembra Corrêa, pelo “paradigma dualista ocidental” que “dicotomiza as relações” e se “nutre da compartimentação do saber em especialidades disciplinares” (2007, p. 2). Assim sendo, o grande desafio que se coloca na atualidade não se circunscreve a simples substituição da nomenclatura jurídica do “tombamento” pelo do “registro” como nos referimos no início dessa reflexão, torna-se necessário que superemos as visões reducionistas e busquemos apreender as singularidades que envolvem o trato das distintas tipologias patrimoniais, os discursos normativos e as áreas de conhecimento que nos auxiliam a compreender os simbolismos e as

articulações históricas e antropológicas referentes aos bens culturais. Não se trata de um dilema de fácil superação no mundo globalizado, mas que impõe uma mudança de atitude dos especialistas e entidades públicas ou privadas que investem na gestão dos bens imateriais. Não basta promover projetos de recuperação e acautelamento e incluir as comunidades em programas de fomento de mercadorias que visam os circuitos turísticos e o aumento da renda dos produtores culturais. Há que se levar em consideração as dificuldades de transmissão dos saberes tradicionais às novas gerações e propiciar condições para que ela efetivamente se concretize. Agradecimentos: Sou grata ao Prof. Dr. Pedro Paulo Funari, por partilhar comigo as agruras e as conquistas de quem busca pesquisar e refletir sobre os desfios da preservação do patrimônio no Brasil; ao CNPq, ao NEE/UNICAMP e a Universidade Estadual de Maringá pelo apoio estratégico ao desenvolvimento desse estudo. Sou grata também a Luismar Pelegrini pelo constante incentivo e colaboração.

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USOS LEGAIS DO PATRIMÔNIO: AS CARTAS INTERNACIONAIS E AS LEGISLAÇÕES NACIONAIS.

Suzanna Sampaio

As exigências do “progresso”, no mundo inteiro, e a conservação dos testemunhos históricos do Patrimônio Cultural, objeto da Ciência da Preservação, obrigam os profissionais e estudiosos da área, à concentração de esforços para a salvaguarda dos testemunhos da Historia da passagem do Homem sobre o planeta. Várias questões relacionadas a este tema tem motivado publicações, explicativas e comparativas de textos das Cartas Internacionais do Patrimônio diante das legislações nacionais, e principalmente, das leis brasileiras instituídas para a Preservação do Patrimônio Nacional . As considerações deste estudo são fruto de reflexões, origem de dezenas de perguntas, muitas sem resposta, que pretendem de maneira positiva apoiar o trabalho dos preservacionistas. De início nos deparamos com o problema da diferente natureza entre as normas patrimoniais e as da legislação positiva de todos os países. As normas jurídicas de direito público ou privado são cogentes, tem poder coercitivo e punitivo, enquanto os dispositivos das recomendações internacionais são proposições de orientação para os trabalhos de reabilitação, restauração, revitalização e conservação. Não é possível condenar um infrator por desobedecer às práticas propostas nas Cartas Internacionais de Patrimônio. Suas instruções podem complementar e confirmar as diversas petições submetidas ao Tribunal Civil ou Criminal. Todas as nações cujo Direito Positivo esteja baseado no Direito Romano, com influências posteriores aos códigos de Napoleão (Código Civil / 1804 – Código Comercial / 1807 – Código Penal / 1810), baseiam sua Lei nos Princípios da Anterioridade e da Reserva Legal, segundo a Máxima Pretoriana, que constitui o Art.1 do Código Penal Brasileiro: Não existe crime sem lei anterior que o defina. . (nullum crime, nulla poena sine lege...). O legislador de países como Itália, França, Bélgica, Alemanha, Holanda, Grécia, Portugal, Espanha, México, Repúblicas do Caribe, Repúblicas da América Central e todas as Repúblicas de América do Sul, cujo direito substantivo está baseado no Direito Romano, não pode condenar transgressões não caracterizadas em Lei Especial. Em outros países, onde a Legislação tem outras origens históricas, como, por exemplo, o Reino Unido, os Estados Unidos e o Canadá, existem resoluções de

Jurisprudência resultantes de numerosos julgamentos. Estas resoluções descrevem as punições infligidas a agentes que danificaram, destruíram, furtaram ou roubaram bens patrimoniais, móveis ou imóveis, proporcionando um “Vade-mecum” para as sentenças judiciais. Em seu detalhado “Report on Cultural Heritage Policies in Europe”, (Relatório sobre as políticas de Patrimônio Cultural na Europa), editado em 1996, a Comunidade Européia apresenta um resumo da legislação dos 27 países membros, referente à Proteção da Herança Cultural. No Brasil, o sistema jurídico que obriga o juiz a enquadrar os fatos dentro do conjunto de elementos descritivos do delito contidos na Lei, proíbe aos mesmos eleger outra figura que não seja a própria. O Direito brasileiro define crime como: fato Típico e Antijurídico.A tipicidade é a descrição legal enquanto a antijuridicidade é a ausência de fatos que excluem a ilicitude,art.23 incisos 1,2, e3 do Código Penal: “Exclusão de ilicitude Art.23.Não há crime quando o agente pratica o fato:I- em estado de necessidade;II- em legitima defesa; III- em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito”. Incriminações vagas ou indeterminadas não obrigam o Ministério Público a apresentar denúncia e o sistema jurídico não chega a ser acionado. Pelo Decreto-Lei no 25, de 30 de novembro de 1937, em nosso país foi organizada a proteção ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. No capítulo I foram definidos os bens considerados Patrimônio Histórico e Artístico tanto móveis quanto imóveis, e no artigo 21, os atentados cometidos contra os bens mencionados que são submetidos às sanções punitivas previstas na Lei penal vigente. De fato, em 1940, o Código Penal, promulgado pelo Decreto-Lei no 2040 de 7 de dezembro, caracterizou no Capítulo IV DO DANO, os crimes contra o Patrimônio Cultural, em concordância com o decreto que criou o IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.O novo Código Penal,modificado em sua Parte Geral pela Lei 7209 de 11/Julho 1984 mantem integralmente o dispositivo,na parte especial.

Art. 165 – Destruir, inutilizar ou deteriorar algo registrado historicamente pela autoridade competente em virtude do valor artístico, arqueológico ou histórico. Pena – Detenção de seis meses a dois anos, e multa.

Atualmente, a Constituição Federal de 1988 estabelece no Art. 216, o sistema de proteção ao Patrimônio Cultural, assegurando a vigência do decreto Lei no 25, de novembro de 1937, que dispõe no inciso 3 do seu Artigo 3 , a remissão à Lei de Introdução do Código Civil de 1916, mantida depois da promulgação do novo Código Civil pela Lei 10406 de 10/Janeiro/2002;

Art.3- Excluem-se do patrimônio histórico e artístico nacional as obras de origem estrangeira; inciso -3- que se incluam entre os bens referidos no Art-10 da Introdução ao Código Civil,e que continuam sujeitas à lei pessoal do proprietário;

No Código Civil brasileiro,

as pessoas jurídicas de direito privado _ Sociedades Civis não

governamentais_ Das Associações artigos 53 a 61_e _Das Fundações artigos 62 a 69_ podem ser representadas nas ações judiciais, por terceiros designados em seus respectivos estatutos. Para terem legitimidade, essas sociedades precisam registrar seus estatutos nos Tabeliães de Títulos e Documentos de sua região. É o caso do ICOMOS /BRASIL organização não governamental, ligada à Unesco, desde 1970 - 1972,que em nosso pais existe desde1978,com a finalidade de estudar ,defender e preservar o Patrimônio Artístico e Cultural ,e que teve seus atos constitutivos registrados no 1º Cartório de Títulos e Documentos Marcelo Ribas, de Brasília. Todos os dispositivos relativos à propriedade particular, o direito de construir e suas limitações também se encontram no Código Civil Brasileiro, no título III, do Livro III Do Direito das Coisas. No entanto, no Brasil, os Municípios são autônomos e regidos por Lei Orgânica que atende aos Princípios Constitucionais da União e dos Estados (Artigo 29 C.F.). Os Municípios também são responsáveis pela legislação de assuntos de interesse local, segundo determina o Artigo 30 C.F. Os incisos VIII e IX deste documento determinam que o ordenamento territorial através do planejamento e controle de uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, assim como a promoção da proteção do Patrimônio Histórico e Cultural local, observe a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual. As normas jurídicas referentes ao uso correto do Patrimônio Cultural são facilmente desrespeitadas em nosso país, sobretudo o uso do solo urbano e edificado. Isto porque ao endossar os interesses das poderosas empresas de construção imobiliária, as políticas locais são incorretas e atendem a pressões de movimentos demagógicos com orientações errôneas que permitem o assentamento de habitações precárias, favelas, em áreas proibidas. Estas são freqüentemente destruídas por inundações, desmoronamentos, incêndios e por todas as catástrofes enfatizadas no noticiário nacional e internacional. O Direito é um conjunto inerte de dispositivos, que, somente ao ser devida e corretamente acionado, produz os efeitos necessários. Cabe aos advogados e membros do judiciário e do ministério Público movimentar o conjunto de leis na esfera pública e privada.

A promulgação em 24 de Julho de 1985 da Lei 7.347_Ação Civil Pública_ que disciplina a responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor ,e a bens de valor artístico estético,histórico turístico e paisagístico, constituiu um avanço que vem permitindo a ação direta de instituições junto ao Ministério Público que pode ser o titular da ação. Sendo o Estado Nacional

soberano, é atualmente imune à sanção, de organismos jurídicos

internacionais.Os processos e punições ,se tribunais vierem a existir no campo específico da salvaguarda mundial do Patrimônio Cultural ,devem ser precedidos por cuidadosos estudos e acordos diplomáticos , para que constituam instancia legítima de poder. Nos últimos anos, especificamente na Assembléia Geral do ICOMOS em Sofía, 1996, advogados presentes como Delegados representantes de seus países reuniram-se para tentar organizar um Comitê Legislativo para orientar e obrigar o cumprimento dos preceitos expostos nas diversas Cartas Internacionais de defesa, proteção e restauração dos Monumentos e Sítios. A Convenção de 1972 estabeleceu o Acordo para a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, formulando os Critérios Básicos e Paradigmas da Unesco, (condições sine qua non) para a Fundamentação do pedido de Inclusão de Bens, Monumentos e Sítios Históricos na Lista do Patrimônio Mundial da Unesco. É preciso que os países signatários desta Convenção discutam os critérios mundiais de punição, a qualquer indício de delitos que danifiquem seu Patrimônio Cultural. O grupo organizado para instituir o Comitê Científico de Legislação, chegou a uma acertada conclusão criando o novo comitê cujo colegiado está representado por 31 países, incluindo o Brasil. Atualmante preside o Comitê Científico de Legislação o Advogado Dr. James Reap dos Estados Unidos,que sucedeu ao Professor Werner von Trutszchler da Alemanha. Um estudo comparativo entre os diversos sistemas contemporâneos de legislação confirma, desde 1945, a preocupação mundial em definir um sistema jurídico internacional. A partir do final do século XIX, historiadores de arte, filósofos e arquitetos estiveram empenhados em discutir o tratamento que deve ser dado aos testemunhos pré-históricos, históricos e artísticos da Cultura Humana. Surgiram diferentes vertentes de pensamento, seguindo os postulados de John Ruskin, Camillo Sitte, Violet – Lê-Duc, e Giovanoni e do barão Haussman que marcaram os trabalhos de intervenção do Patrimônio Monumental Europeu. Não obstante, foi no período “entre - guerras” (1920-1939), após a Primeira Guerra Mundial (19141918), que o estudo para estabelecer princípios e valores da herança cultural ganhou um corpo

doutrinário através de “Cartas” promulgadas depois de Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM). Fundados em 1928 na Suíça, os dez Congressos de Arquitetura Moderna, realizados por influencia de Le Corbusier, a cada dois anos em cidades européias, através de trabalhos coletivos, discussões e resoluções, estabeleceram princípios “renovados” da arte de edificar. O sentido de “renovação” que pretendiam, com o tempo tornou-se mais rígido do que o “academicismo”, que combatiam. Durante este período, (1928-1956), diversas Declarações foram publicadas, a principal sendo a 2ª Carta de Atenas (1933). Esta Carta estudou a cidade e as funções urbanas essenciais de Moradia, Circulação, Trabalho e Lazer, apresentadas em apêndice, considerações sobre o Patrimônio Histórico das cidades. Algumas das informações ocasionaram o distanciamento dos profissionais interessados na preservação do Patrimônio, porque prejudicaram a conservação do conteúdo original e da autenticidade dos testemunhos e não asseguravam a permanência dos conjuntos urbanos seculares. Duas grandes ideologias dirigiam o pensamento mundial na época: a doutrina Nazi-Fascista (Itália e Alemanha) e o Comunismo (União Soviética – Rússia atual). É interessante constatar que sistemas filosóficos oriundos de pensamentos antagônicos, Giovani Gentile e Marx e Engels, tenham elaborado sistemas parecidos de conservação. Os textos da 2ª Carta de Atenas e de outros documentos da época refletem as posições das duas correntes ideológicas e são objeto hoje de uma releitura crítica fruto de discussões posteriores. A destruição provocada pela 2ª Guerra Mundial (1939-1945) e a necessidade de reconstrução dos Centros Históricos levaram um grupo de profissionais ligados ao Patrimônio Histórico e Artístico de Itália, França, Alemanha e Bélgica, a convocar congressos de arquitetos. No 2º Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos, em Veneza, em 1964, um conjunto de normas que compõe a Carta de Veneza, foi resumido. Apelando para todas as disciplinas e todos os profissionais, o texto propõe condutas que até hoje orientam a ação de defesa, proteção, restauração e conservação do Patrimônio Monumental e dos Sítios Históricos e Arqueológicos. Neste congresso, também foi sugerida a criação de um conselho de nações para a defesa conjunta de Monumentos e Sítios Históricos. A criação do “International Council on Monuments and Sites – ICOMOS” foi efetivada em Cracóvia em 1965. Em 1970, o ICOMOS, através da associação de especialistas em proteção, restauração e conservação do Patrimônio Monumental e dos sítios históricos e pré-históricos, passou a fazer parte da Unesco, reconhecido como prestador de serviços de perícia específica para aprovar a lista de bens de todo o mundo,candidatos a ingressar na honrosa Lista do Patrimônio Mundial.

Hoje, com quarenta anos de trabalho, mais de seis mil associados em todos os continentes, o ICOMOS, cujos princípios estão definidos na Carta de Veneza, aprovou o texto de mais de cinqüenta Documentos, entre os quais as

Cartas Doutrinárias publicadas ao final das quinze

Assembléias Gerais, que constituem o mais importante corpo conceitual da instituição. Neste momento, é fundamental encontrar uma forma adequada de transformar as recomendações especificadas nos textos dos documentos, em lei, em todos os países. Os advogados membros do ICOMOS trabalham no sentido de aprovar as propostas resultantes dos movimentos de defesa da sociedade civil organizada em cada país, para incluí-las nos Códigos Internacionais. No plano internacional, é necessário criar um Tribunal Internacional seguindo os moldes das Cortes de Haia, já existentes no que diz a respeito à punição contra os crimes de guerra e às infrações contra os direitos humanos. O grupo organizado para a criação do Comitê Científico de Usos Legais trabalha para sintetizar os conceitos universais adaptados a todos os sistemas jurídicos. Surgem várias questões que serão discutidas a frente, mas cuja resposta está longe de ser fácil.

Como transformar Cartas Internacionais em prescrições obrigatórias de Direito no maior número de paises? Ao final da Segunda Guerra Mundial foram criadas a ONU – Organização das Nações Unidas e a Unesco – United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. Esta última ampliou a cooperação entre os povos promovendo o surgimento de acordos, recomendações e convenções para a organização do intercâmbio cultural. Também tentou coibir o roubo e a apropriação indébita de bens culturais. A aceitação jurídica de que existem bens culturais de interesse “universal” e que devem ser protegidos pelo consórcio das nações, só aconteceu em 16 de novembro de 1972, em Paris, com a aprovação da Convenção sobre a proteção do patrimônio mundial, cultural e natural, aprovada pela Conferência Geral da Unesco na sua 17ª reunião. Outros atos internacionais já tinham sido publicados, mas sempre no sentido de uma colaboração ou intercâmbio para a proteção de bens nacionais. O patrimônio cultural da Humanidade – o passo mais importante na proteção dos bens culturais, dado pela Unesco, foi o de estabelecer uma Convenção, ainda em 1972, para definir e proteger os bens culturais do patrimônio mundial. Conhecidos como Patrimônio Cultural da Humanidade, os bens assim declarados passam a ter uma preservação obrigatória pelo Estado Membro que, perante os demais Estados membros da Unesco, se compromete a preservá-los. A preservação desses bens deixa de ser um problema de economia doméstica, para se tornar um

compromisso internacional. O primeiro Artigo da Convenção define o que pode ser considerado patrimônio mundial: “os monumentos: obras arquitetônicas, de escultura ou de pinturas monumentais, elementos ou estruturas de caráter arqueológico, cavernas e grupos de elementos que tenham um valor extraordinário do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; os conjuntos: grupos de construções, isoladas ou reunidas, cuja arquitetura, unidade e integração com a paisagem lhes dêem um valor especial do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; os lugares: obras do homem ou obras conjuntas do homem e da natureza assim como as regiões, incluindo os lugares arqueológicos que tenham um valor universal extraordinário do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico”. O processo de classificação de bens está descrito pela própria Unesco: “Quando o Comitê do ICOMOS tiver julgado os monumentos e os sítios de valor universal indica sua inscrição na Lista do Patrimônio Mundial. Os proponentes são os Estados o ICOMOS os analisa, e cabe ao Conselho do Patrimônio Mundial da Unesco a sua proclamação, aplicando os rigorosos critérios de originalidade e de autenticidade, mantendo um justo equilíbrio entre o patrimônio cultural e o patrimônio natural. Desta maneira, os bens inscritos são aqueles que a comunidade internacional considera particularmente dignos de serem conservados para as gerações futuras”. O texto da Convenção está baseado nos princípios das Cartas Internacionais, ao referendá-las e destiná-las às Nações Convencionais estas passam a aceitá-las como Prescrições Obrigatórias de Direito Internacional.

Como criar um Tribunal Internacional, nos moldes da Cortes Internacionais de Haia para punir crimes contra o Patrimônio Cultural? Existem nos Estados Unidos, dois programas especiais para garantir a permanência e manutenção do Patrimônio Cultural no mundo inteiro, “World Monuments Fund, 949 Park Avenue, New York, NY 10028”. _Fundo Mundial para os Monumentos _ é uma organização privada sem fins lucrativos, fundada em 1965 por pessoas preocupadas com destruição em estado avançado de importantes tesouros artísticos no mundo inteiro. Até agora, o WMF tem motivado mais de 165 projetos importantes em 51 países. Atualmente, com filiais na Europa – na Grã Bretanha, França, Itália, Portugal e Espanha – World Monuments Fund patrocina um programa continuado de conservação do patrimônio cultural mundial. World Monuments Fund participa em sessenta e seis projetos em quarenta e oito países. World Monuments Watch, _(Assistência Mundial para Monumentos.)um programa global lançado em 1995 no ensejo do trigésimo aniversário de World Monuments Fund, visa melhorar a qualificação impar da organização para identificar sítios monumentais do

patrimônio cultural ameaçados e conseguir ajuda financeira e técnica para sua conservação. Um terceiro programa foi criado pelos Comitês Nacionais do ICOMOS, ICOM e as Comissões Nacionais da Unesco para ajudar sistematicamente na defesa contra os acidentes naturais e aqueles provenientes dos desastres das guerras de destruição. Refere-se ao programa chamado “Escudos Azuis procedimentos & respostas de emergência para a Herança Cultural em risco como resultado de ação natural ou de desastres provocados pelo Homem”. – Blue Shield “Preparedness & Emergency: A Programme for Cultural Heritage At Risk as a result of Natural or Man-Made Disaster-“. Para informações detalhadas, os interessados devem dirigir-se ao Bureau dos Países Baixos, ou simplesmente à central do ICOMOS em Paris. Diversos países desenvolvem um trabalho efetivo com esse programa, entre eles os vitimados por terremotos e furacões na América Central e nos países em guerra como Servia, Albânia, Macedônia e outros, tristemente bombardeados pelas forças da OTAN. Assistimos desde 2003 ,a destruição dos mais antigos depósitos arqueológicos, e monumentos ainda visíveis entre os Rios Tigre e Eufrates,no Irak.Não se poderia imaginar que para retaliar a ação de terroristas

o mundo assistisse de maneira passiva ,sem ter a que instituto

internacional recorrer para impedir tal crime contra a Memória Histórica da Humanidade.São crimes incomparavelmente mais graves do que destruições cometidas por populações carentes e sem nenhuma formação cultural.Assassinatos que tem levado responsáveis por massacres ao Tribunal de Haia,sem todavia que menção seja feita à destruição de bens culturais ,memória perdida da mesma Humanidade sacrificada.

Como submeter as ações de Governos Soberanos ao julgamento de um Tribunal Internacional? Em Haia, Capital dos Países Baixos existem tribunais gerais de arbitragem internacional dedicados aos Direitos Humanos contra os Crimes de Guerra, questões de fronteiras geográficas entre nações, entre outros que regulam as relações jurídicas internacionais. Um corpo de juristas de todas as Nações, notáveis estudiosos que decidem, por maioria, as intricadas e complexas questões internacionais, elabora e decide a Legislação que irá orientar e definir o Tribunal Internacional de Haia. Como a Convenção da Unesco para o Patrimônio Cultural de 1970/72 é hoje reconhecida e assinada por quase todos os países dos cinco Continentes, a instituição de um conjunto de dispositivos que vincule as nações que assinaram o Tratado, às normas de tutela que venham a ser promulgadas, não constitui uma abstração impossível. Efetivamente, como já visto os instrumentos de desempenho financeiro da gestão do patrimônio ameaçado ou afetado por guerras de destruição,

têm sido bem sucedidos. Basta dar às normas penais, como as que condenam os criminosos de guerra, a possibilidade de punir chefes de estado que tenham ludibriado e prejudicado os testemunhos da História da Humanidade. Ao mesmo tempo, este tribunal oferecerá todo o apoio aos governantes que solicitem ao Conselho da Corte Internacional de Proteção e Defesa do Patrimônio Mundial medidas de avaliação e averiguação dos prejuízos e danos ocasionados nos Estados que governam e que querem proteger. Entretanto, restrições especiais terão que ser definidas para que não sejam cometidos atos agressivos de nação contra nação sob o pretexto de salvaguarda que não esteja estritamente previsto por lei. Todos os atos praticados à revelia do Conselho Superior terão que ser severamente punidos. Como se pode observar essa solução ainda está longe de ser aplicada, por causa da grande diferença de poder que existe entre as Nações. As respostas – tentativas, são possíveis proposições para que se compreendam e se ampliem os conceitos restritivos de Estado e Soberania no campo ideológico e filosófico, quando o assunto se refere aos bens tombados como Patrimônio da Humanidade. Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, que atualmente compõem o Tratado de Cooperação Mutua dos Países do Mercosul, (assistentes Chile e Bolívia) tentam encontrar soluções viáveis de atuação legal única. A criação de normas jurídicas comuns de proteção ao Patrimônio Cultural, no setor Sul do continente Americano talvez venha a contribuir para a instituição da tão desejada Convenção Internacional. Da mesma forma,, o Tratado da Cooperação Amazônica, multilateral entre os países da bacia amazônica: Brasil, Venezuela, Colômbia, Equador, Bolívia e Peru em uma série de atuações estão voltando sua atenção para as populações indígenas. A região se está preparando para novos Tratados Internacionais com a preocupação de integrar as questões ambientais e culturais. É preciso atenção para que a cooperação econômica e a “globalização” não prejudiquem as diferenças Materiais e Imateriais entre as culturas de todos os continentes, regiões e Estados Nacionais. É preciso que leis internacionais, gerais e justas lembrem a todos os homens que acima das fronteiras nacionais estão a Humanidade e o registro de sua Ação em milhões de anos de existência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FERREIRA, Ivete Senise. Tutela Penal do Patrimônio Cultural. São Paulo: RT, 1995. ICOMOS/BRASIL. Cartas do ICOMOS - Volume I- 2ª Edição. São Paulo: ICOMOS, 2004. MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Edições Malheiros, 1998. MARX , Murillo. Cidade Brasileira. São Paulo: Ed.Melhoramentos,1986.

MILARÉ, Edis-Legislação Ambiental do Brasil. São Paulo: Edições APMP,1992. SAMPAIO, Suzanna. A Lei e a História. In Revista do Icomos/ Brasil. São Paulo: ICOMOS, 1990. SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. In: Revista dos Tribunais, São Paulo,1981. CARTAS PATRIMONAIS. Internacionais do ICOMOS. Carta de Atenas – Para a restauração de Monumentos Históricos , 1931. Carta de Veneza, 1964. Convenção para a proteção mundial do patrimônio cultural e natural, 1972. Carta de Burra – Austrália, 1979 - revisada em 1999. Carta de Florença – Dos jardins históricos, 1981 Carta de Washington –Conservação de área urbanas em cidades históricas, 1987. Carta de proteção e manejo do patrimônio arqueológico, 1990. Guia para educação e treino em conservação de monumentos, conjuntos e sítios, 1993. Documento de Nara sobre a autenticidade, 1994. Carta internacional sobre a proteção e gestão do patrimônio cultural subaquático, 1996. Princípios para a criação de arquivos documentais de monumentos, conjuntos e sítios, 1996. Carta internacional sobre turismo cultural, 1999. Carta do patrimônio vernacular construído, 1999. Princípios para preservação das estruturas históricas em madeira, 1999. Princípios para preservação e conservação / restauração de pinturas murais, 2003. Princípios para a análise,, conservação / restauração estrutural do patrimônio arquitetônico, 2003. Declaração de XI ‘AN – sobre a conservação do entorno edificado, sítios e áreas do patrimônio cultural, 2005. CARTAS BRASILEIRAS DO ICOMOS Carta de Petrópolis, 1987. Carta de Cabo Frio, 1989. Declaração de São Paulo, 1989. Carta de Brasília, 1995. Declaração de São Paulo II, 1996. Declaração da Serra da Capivara, 1997. Declaração de Manaus, 1998. Manifesto de São Paulo, 2006.

LEIS E DECRETOS. SENADO FEDERAL. Constituição Federal de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988. Código Penal Brasileiro. Código Civil Brasileiro. Decreto –Lei no. 25, de 11 de Novembro de 1937.

A UNESCO E O BRASIL: TRAJETÓRIA DE CONVERGÊNCIAS NA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL

Jurema Machado

Quem se interessar por compreender o que é a Unesco, além da estrita definição do seu mandato nas áreas de Educação, Ciências e Cultura, vai encontrar uma consistente resposta no conjunto de cinco funções que a Organização estabeleceu como sendo a síntese de sua forma de atuação. A primeira delas é a de se constituir em um laboratório de idéias, contribuindo para antecipar questões emergentes em suas esferas de competência e identificar estratégias e políticas adequadas para lidar com elas. A segunda é a de compartilhar, transferir e “disseminar informações e conhecimento” entre seus estados-membros. Outras funções importantes são contribuir com a formação e capacitação de recursos humanos e institucionais e “catalizar a cooperação internacional”, identificando oportunidades de programas de cooperação bi ou multilaterais. Essas funções se interpenetram, se complementam e raramente ocorrem de forma isolada. No entanto, a quinta e mais nítida delas, aquela por meio da qual mais claramente se pode delinear a trajetória do pensamento e da atuação da Unesco, é a sua “função normativa”. A aprovação, nas suas instâncias decisórias, de instrumentos normativos internacionais – as Recomendações, Declarações e Convenções – possibilita à Unesco dar conseqüência prática a um conjunto de princípios, ao consagrá-los por meio de instrumentos vinculantes, que criam direitos e obrigações, como é o caso das Convenções, ou mesmo a orientar a elaboração de políticas públicas ou mobilizar opiniões, como fazem não apenas as Convenções, mas também as Declarações e Recomendações. Atrair a comunidade científica e acadêmica, assim como organizações não-governamentais, para a concepção e implementação desses instrumentos normativos foi uma estratégia adotada pela Unesco desde seus primórdios. Com tal intuito, essa organização estimulou a criação e vem participando da manutenção e realizando atividades de cooperação com o ICOM – International Council of Museums - criado em 1946; com o ICA – International Council of Archives - criado em 1948 sob influência da Unesco e à semelhança da criação do ICOM; com o ICCROM - International Organization for Conservation of Cultural Heritage - criado em 1956 pela 9ª Conferência Geral da Unesco; ou o ICOMOS – International Council of Monuments and Sites - criado por recomendação da Unesco em 1964, durante o II Congresso Internacional de Arquitetos, o mesmo congresso que

gerou a Carta de Veneza, um dos mais importantes documentos sobre a preservação de sítios e monumentos históricos. Esses são exemplos que se reproduzem para as tantas áreas de atuação da Unesco, configurando uma extensa rede de colaboradores e difusores de idéias e conceitos da Organização. 42 Cotejar instrumentos normativos da Unesco e as Cartas produzidas pelas organizações internacionais, com a legislação e a evolução das formas de gestão do patrimônio cultural brasileiro é um exercício que favorece análises muito ricas.

O Brasil e a Unesco: simultaneidades e convergências. De imediato, o que se percebe é uma estreita sintonia entre o Brasil e a Unesco, que vai muito além do campo da Cultura e do patrimônio. O Brasil foi um dos países que participaram diretamente da criação e concepção do Ato Constitutivo da Unesco, em 1945, e um dos 19 primeiros a ratificá-lo, possibilitando que a Organização entrasse em vigor a partir de 1946. Nos passos iniciais da Organização, foi notável a participação do embaixador brasileiro Paulo Carneiro, cuja relação com a Unesco iria prosseguir pelos 37 anos que se seguiram, atuando em importantes realizações, como a produção da “História do desenvolvimento cultural e científico da Humanidade” e a “Campanha Internacional de Núbia” para a salvaguarda de monumentos históricos, que, mais tarde, seria um dos motivadores da Convenção do Patrimônio Mundial de 1972. Intelectuais brasileiros como Anísio Teixeira, Paulo Freire e Celso Furtado, em diferentes momentos, participaram da formulação de diretrizes importantes da Unesco nas áreas de Educação e Cultura. Mais significativo, no entanto, é observar a relativa rapidez com que se dá a ratificação ou a adoção, pelo Brasil, dos instrumentos normativos da Unesco, especialmente na área da Cultura. Da sua criação até julho de 2006, o país que ratificou o maior número de Convenções da Unesco foi a Dinamarca, com 26 ratificações, seguida da França, com 25. Com 20 ratificações, o Brasil é o país que ratificou o maior número de Convenções dentre todos os pertencentes às três Américas, ficando atrás de apenas 20 países em todo o mundo, todos eles europeus. 43 Em que pese essa performance de “bom aluno”, não se pode afirmar, de maneira simplista, que a Unesco tenha influenciado de forma linear a legislação e políticas públicas de cultura e patrimônio 42

Para maiores informações sobre as instituições citadas ver os sites http://icom.museum; http://www.international.icomos.org; http://www.iccrom.org; http://www.ica.org . 43

O portal da Unesco http://portal.unesco.org contém textos na íntegra dos principais instrumentos normativos aprovados – Convenções, Recomendações, Declarações, assim como dados relativos às ratificações pelos países membros.

no Brasil, já que são expressivos os exemplos em que o país até mesmo se antecipou às normas da Unesco, seja conceitualmente, seja por meio de medidas concretas. Os casos mais evidentes dessa antecipação são o caráter vanguardista da legislação e do projeto que deram origem à proteção do patrimônio histórico brasileiro, o Decreto-Lei 25 de 1937

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, assim como a política de salvaguarda

do patrimônio imaterial, originária da Constituição Federal de 1988 e posteriormente regulamentada por decreto no ano 2000. No caso da criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atual IPHAN, e seu aparato normativo, essa antecipação pode ser atribuída ao alargado conceito de patrimônio contido no projeto de Mário Andrade e mesmo na sua adaptação posterior, assim como à prematura preocupação com a paisagem e com os sítios urbanos, ao reconhecimento do não-monumental, da cultura e dos saberes construtivos e artísticos de origem popular. Já no que diz respeito ao hoje chamado patrimônio imaterial, a trajetória da Unesco se inicia e se estende por várias décadas focada na valorização do folclore, da cultura popular e do artesanato. O Brasil foi dos primeiros estados-membros a responder à recomendação da Unesco de criar sua Comissão Nacional do Folclore e o fez já em 1948. Desde então, o país vem acompanhando a discussão mundial sobre esse tema e, nos últimos anos, concebeu sua legislação e suas políticas de forma pioneira. Pode-se dizer que o conceito de patrimônio cultural introduzido pela Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais – México, 1982, que estende a Cultura para além das artes, associando-a à identidade, ao desenvolvimento e à democracia, está representado à altura pelos artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. Art. 216. Constituem o patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, (...) entre os quais se incluem: as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e etnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico– culturais; os conjuntos urbanos e lugares de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. 44

O portal do IPHAN http://portal.iphan.gov.br contem textos na íntegra dos principais instrumentos legais relacionados à preservação, assim como as chamadas Cartas Patrimoniais, ou seja, documentos produzidos por conferências, congressos, reuniões de especialistas e que são referência conceitual para a proteção do patrimônio cultural.

Em 1989, a Unesco aprovou a Recomendação para a Salvaguarda da Cultura Popular e do Folclore, instrumento que inspirou a concepção do Decreto 3551/2000. Da Recomendação constam alguns princípios basilares do Decreto e das políticas que vêm sendo adotadas pelo Brasil, a começar pelo reconhecimento da cultura tradicional e popular como manifestação viva e dinâmica. Além disso, ambos atribuem papel decisivo aos detentores dos saberes e práticas; reconhecem a responsabilidade da sociedade e do Estado na sua valorização e reconhecem o papel dos bens imateriais no processo de desenvolvimento. A Recomendação não se omite quanto ao reconhecimento da cultura tradicional como uma manifestação de criatividade intelectual individual ou coletiva e, portanto, merecedora da proteção que se outorga às produções intelectuais. Embora a Recomendação postule que uma proteção desse tipo é indispensável à salvaguarda desses bens, esse tema complexo não veio a comparecer na norma brasileira e nem mesmo na Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, finalmente aprovada pela Assembléia Geral da Unesco em 2003. O instrumento de Registro dos bens culturais imateriais instituído pelo Decreto brasileiro guarda também analogias importantes com a inscrição de bens na Lista das Obras Mestras do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade

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criada pela Unesco em 2001. A inscrição nessa lista, adotada

pela Unesco como uma estratégia temporária para difundir uma preocupação mundial com o tema, se fundamenta em rigorosa identificação e documentação do bem, pressupõe a participação das comunidades envolvidas no encaminhamento de candidaturas e exige a elaboração de planos de salvaguarda, todos princípios comuns à política e ao Registro brasileiros. Essa equivalência de conceitos já possibilitou ao Brasil inscrever dois bens na Lista do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade, quais sejam “A arte kusiwa dos Wajãpi do Amapá” e o “Samba de Roda do Recôncavo Baiano”. Este é um dos exemplos mais claros de simultaneidades e convergências que denotam o alinhamento do Brasil com as discussões desenvolvidas no âmbito da Unesco. Em 2002, a contribuição de especialistas brasileiros ao desenho da Convenção da Unesco iria completar essa trajetória de afinidades, reafirmada em abril de 2006, com a participação do Brasil do Comitê Intergovernamental que irá gerir a implementação da Convenção em todo o mundo.

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Para maiores informações consultar http://www.unesco.org/culture/masterpieces .

Combate à destruição e ao roubo de bens culturais – o protagonismo da Unesco 46. Em outros campos da proteção do patrimônio cultural fica evidente o protagonismo da Unesco, estimulando a adoção de políticas correspondentes nos países membros, em geral, e no Brasil, em particular. Um dos exemplos mais nítidos de um debate liderado mundialmente pela Unesco é o da proteção dos bens culturais contra a destruição e o roubo. Ainda sob o impacto da 2a Guerra Mundial, a primeira de todas as Convenções da Unesco foi a Convenção para Proteção da Propriedade Cultural em Caso de Conflito Armado, conhecida como Convenção de Haia, aprovada em 1954, seguida de dois protocolos, um em 1954 e outro em 1999. A Convenção de Haia visa prevenir a exportação ilegal de bens culturais em caso de guerra e comprometer os países envolvidos a preservar qualquer bem cultural apreendido até o final do conflito. As situações de conflito armado, além da destruição de bens, dão origem a saques e apropriações ilegítimas, as quais, mesmo os países não diretamente envolvidos, têm o papel de combater. O Brasil ratificou a Convenção de Haia em 1958. Em 1970, o tráfico ilícito de bens culturais foi objeto da Convenção sobre as medidas que devem ser adotadas para impedir e proibir a importação, a exportação e a transferência de propriedades ilícitas de bens culturais. Essa Convenção busca, além inibir a circulação de bens roubados por meio da regulação de sua exportação e importação, estimular os países a implantar medidas coercitivas internas e participar do intercâmbio internacional de informações de combate ao roubo. Nesse contexto, o inventário é uma ação crucial, a qual o Brasil vem implantando, se não totalmente a contento, de forma constante e crescente, especialmente a partir do programa INBMI - o Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados do IPHAN - em grande parte financiado pela Fundação Vitae, além de algumas iniciativas dos órgãos estaduais de preservação. Estimativas do próprio IPHAN indicam como horizonte a ser inventariado o de 350 mil peças, das quais cerca de um quarto já teriam sido contempladas. Os recentes roubos de museus, bibliotecas e arquivos no Brasil chamam a atenção para um acervo documental de grande magnitude, para cuja proteção as instituições brasileiras estariam ainda menos preparadas. Ressalte-se que, conforme as estatísticas internacionais, o Brasil não se caracteriza como um importador de bens culturais roubados, mas como um exportador relativamente “modesto”, o que vale dizer que a maioria dos furtos aqui ocorridos têm tido como destinatário o próprio mercado interno.

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Sobre este tópico, assim como sobre as demais instrumentos normativos da Unesco na área do patrimônio, ver BO (2003).

O Brasil ratificou a Convenção do combate ao tráfico lícito em 1973. Antes disso, a Lei 4.845 de 1965 já exigia a autorização do IPHAN para a saída de obras de arte e peças de interesse histórico, científico e etnográfico de mais de 100 anos. Em 1992, essa obrigatoriedade foi estendida para bens tombados, obras de arte e peças de interesse histórico e cultural produzidas no Brasil ou no exterior (desde que tenham aspectos brasileiros como tema) até o fim do período imperial. Gestões da Unesco levaram à aprovação, em 1995, da Convenção Unidroit sobre objetos culturais roubados ou ilegalmente exportados47, que estabelece, além da obrigatoriedade de devolução do bem roubado, a necessidade de que o detentor desse bem prove ter tomado, quando da aquisição, todas as medidas disponíveis para assegurar-se da sua origem. O Brasil ratificou essa Convenção em 1999, outros 26 países o fizeram até julho de 2006, embora dentre os mais ricos, considerados “importadores”, apenas a Itália, Espanha, Portugal, Finlândia e Holanda o tenham feito. Mais eficaz, no entanto, foi o estabelecimento, em 1977, de instrumento internacional de cooperação entre aduanas contra o tráfico de obras de arte, antiguidades e outras formas de propriedade cultural, assim como o intercâmbio de informações com a Organização Internacional de Polícia Criminal INTERPOL48, no Brasil ligada à Polícia Federal. A INTERPOL no Brasil trabalha com 8 mil terminais ligados ao sistema internacional I-24/7 (Interpol - 24 hours / 7 days a week), de comunicação de alta tecnologia, capaz de difundir imagens digitalizadas de bens roubados com enorme agilidade, além de contribuir com as chamadas “difusões brancas” necessárias para a recuperação de peças. No universo das prioridades iniciais da Unesco na área do patrimônio, a Arqueologia tem papel central, referida com destaque nas Convenções de Haia e do combate ao tráfico ilícito. A legislação brasileira é relativamente contemporânea a esses instrumentos: o principal dispositivo legal em vigor é de 1961, a Lei 3.924/61, que considera todos os sítios arqueológicos como protegidos e como bens patrimoniais da União. Em virtude dessa proteção geral, o tombamento pontual de bens arqueológicos é feito apenas excepcionalmente, por interesse científico ou ambiental.

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O UNIDROIT é um instituto intergovernamental independente, situado em Roma, e voltado para a para unificação das normas do direito privado. Seu objetivo é estudar necessidades e métodos de modernização, harmonização e coordenação, especialmente da legislação comercial entre paises ou conjuntos de paises. http://www.unidroit.org . 48 A INTERPOL é uma organização internacional integrada por 184 paises, voltada para facilitar a cooperação entre as polícias e combater o crime internacional. www.interpol.int .

A Unesco, o Brasil e o Patrimônio Mundial. A Convenção do Patrimônio Mundial de 1972 é certamente o instrumento de maior visibilidade dentre os concebidos pela Unesco. Desempenha um papel importante na proteção e valorização, não só dos bens classificados como de interesse da Humanidade, mas do patrimônio como um todo. Sua aprovação se deu em um contexto mundial de preocupação com os impactos da aceleração do desenvolvimento, da super-valorização da tecnologia e da modernização, origem de problemas urbanos e ambientais. Os documentos das Conferências das Nações Unidas da década de 1970 denotam clara preocupação em relativizar e adjetivar o desenvolvimento, o que se expressa por meio de afirmações de que o desenvolvimento econômico deveria atender a objetivos sociais e se articular com condições de paz, justiça e estabilidade. O processo de descolonização da África e da Ásia que se seguiu à 2ª Guerra Mundial havia escancarado um vazio cultural de difícil reversão, gerado pelo longo processo de ocidentalização e pela supressão das estruturas tradicionais que o antecedeu. Essa foi uma das evidências a influenciar, nas décadas seguintes, a decisão da ONU e da Unesco de adotar uma

ação mais incisiva sobre o patrimônio cultural. As motivações que levaram à

Convenção do Patrimônio Mundial são claramente dedutíveis desse quadro geral: o reconhecimento de que existem bens de valor universal, independente de sua localização geo-política; de que o Patrimônio é freqüentemente ameaçado pelo desenvolvimento econômico e de que muitos Estadosmembros não têm estruturas satisfatórias para sua proteção. Periférico ao mundo desenvolvido, no Brasil o desenvolvimento experimentado nas décadas de 1960 e 70 foi sinônimo de urbanização acelerada, metropolização, expansão de periferias e favelas, empobrecimento e degradação das áreas centrais das grandes cidades, com a perda do seu papel simbólico e funcional. Numa reação relativamente rápida, já no inicio dos anos 70 registram-se as primeiras tentativas de descentralização da gestão do patrimônio, até então estritamente concentrada no IPHAN. Por meio de uma estratégia expressa nos documentos Compromisso de Brasília, 1970 e Compromisso de Salvador, 1971, o governo federal não só orienta, mas induz a criação de órgãos estaduais de preservação ao implementar programas que tinham como pré-requisito a participação dos estados. A estratégia foi relativamente bem sucedida, resultando na criação ou ampliação de várias estruturas estaduais. A adesão do Brasil à Convenção do Patrimônio Mundial se deu 1977. A sua primeira fase de implementação caracterizou-se pela prioridade aos sítios culturais, mais especificamente às cidades e monumentos históricos representativos do período colonial. A primeira inscrição foi a de Ouro Preto, que, da mesma forma como foi feito o tombamento federal em 1938, teve como perímetro

proposto para proteção toda a cidade, até aonde a vista alcança. Em 1982, foi feita a inscrição de Olinda e, em 1983, as do Centro Histórico de Salvador e das ruínas de São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul, sendo que esta última, foi, em 1985, incorporada à das missões jesuíticas em território argentino. Seguiu-se, ainda em 1985, a inscrição do Santuário e o Conjunto Escultórico dos profetas de Aleijadinho em Congonhas. E finalmente, em 1986, o país cuja imagem frente ao mundo sempre foi associada ao paraíso tropical e à riqueza da biodiversidade, decidiu-se por apresentar sua primeira candidatura de um bem do patrimônio natural, elegendo para tanto um dos seus grandes emblemas, o Parque Nacional das Cataratas do Iguaçu. Em 1987, foi feita a inscrição de Brasília, atípica e polêmica sob diversos aspectos. Atípica porque antecedeu ao tombamento do IPHAN, contando, à época, apenas com proteção originária de uma lei federal específica. Polêmica por se tratar de uma cidade contemporânea, dinâmica e de grande extensão, especialmente se comparada com os demais sítios urbanos inscritos. As discussões iniciadas pela inscrição de Brasília irão prosseguir e se aprofundar nos anos seguintes. Em 1992, a Convenção completou vinte anos, o que motivou um processo de avaliação coordenado pelo consultor Léon Pressouyre. O relatório Pressouyre - La Convention du patrimoine mondial, vingt ans après, 1993 apontou, dentre outros, dois aspectos importantes ainda não superados. O primeiro, denominado por ele como Disfunção Política, e o segundo, Disfunção Científica da Convenção. A Disfunção Política diz respeito ao questionamento sobre soberania nacional que é frequentemente motivado pela aplicação da Convenção. A Disfunção Científica seria uma disfunção de critérios de inscrição. Nesse aspecto, as críticas à Lista da Unesco são rigorosamente simétricas àquelas que o próprio IPHAN se faz ao avaliar as políticas de tombamento: privilégio do monumental, a super-representação das culturas hegemônicas, de períodos históricos mais remotos e a ausência do patrimônio imaterial e das culturas vivas. É importante lembrar que o período que vai de meados da década de 1980 ao início dos anos 90 é também um marco da globalização da economia. Seu impacto sobre valores, práticas e identidades culturais faz com que, em 1988, a ONU lance a Década Mundial do Desenvolvimento Cultural, que resultou na publicação, em 1995, do relatório Nossa Diversidade Criadora (CUELLAR, 1997). Esse que é também conhecido como o Relatório Perez de Cuellar, aponta a preservação da diversidade como sendo o grande desafio da política cultural a partir de então, tema em que o patrimônio tem papel central.

Os reflexos tanto da preocupação com a diversidade, quanto da re-orientação adotada pela Unesco com base no relatório Pressouyre são visíveis na lista brasileira. Em 1991 o Brasil inscreveu o Parque Nacional da Serra da Capivara, no sudeste do Piauí, como bem cultural da humanidade representado pela maior concentração de sítios arqueológicos conhecidos nas Américas, com pinturas e gravuras rupestres que datam a presença humana, desde cerca de 50.000 anos a.C. Á essa inscrição seguiu-se um profundo silêncio do Brasil em relação à Convenção, até que, em 1997, foi feita a inscrição de São Luís do Maranhão, apoiada justamente nos resultados da autocrítica da Unesco sobre a Lista: não mais a monumentalidade como um valor, mas a solução de adequação ao sítio e ao meio ambiente, no caso, uma cidade equinocial, com uma relação muito particular com o mar. Diamantina, inscrita dois anos depois, também se vale dessa re-conceituação, da mesma forma que a cidade de Goiás, inscrita em 2001. O mais relevante nesse período, no entanto, foi a decisiva atuação do Ministério do Meio Ambiente que se empenhou em inscrever bens naturais na lista brasiliera, de forma a fazer jus à relevância do Brasil na preservação da biodiversidade do Planeta. Foi adotada a estratégia de apresentar candidaturas representativas dos grandes biomas brasileiros, coincidentes com parques nacionais e, sempre que possível, com as chamadas zonas-núcleo das Reservas de Biosfera, unidades definidas pelo programa da Unesco chamado MAB – Man and Biosphere. A estratégia, pela sua coerência e sustentabilidade, na medida em que ficava demonstrada a condição do país de garantir a preservação da área, foi muito bem sucedida. Em um período de apenas três anos foram inscritos seis novos sítios naturais: a Costa do Descobrimento e as Reservas de Mata Atlântica do Sudeste, em 1999; o Pantanal e a Amazônia em 2000; a Chapada dos Veadeiros e Emas e as Ilhas oceânicas: Fernando de Noronha e Atol das Rocas, em 2001. A Lista, que se concentrava maciçamente em sítios do Patrimônio Cultural, tornou-se então mais equilibrada: soma atualmente dez bens culturais e sete naturais. Passados cinco anos das últimas inscrições e tendo apresentado duas outras para as quais não foi dado seguimento aos questionamentos iniciais feitos pela Unesco, parece ter chegado outra vez a hora do país se perguntar que valor atribui a esse instrumento e como deve prosseguir na sua implementação. Trata-se de uma mera estratégia de visibilidade, promoção turística e ganhos políticos? Ou a lista é representativa e tem contribuído com a proteção efetiva? O primeiro aspecto a ser considerado é a necessidade de elaboração, pelo governo brasileiro, de uma nova Lista Indicativa, ou seja, uma lista de prioridades de inscrição, que contenha um conjunto de bens, culturais e naturais, capazes de responder por uma síntese do país. Isto porque, a partir de São

Luís, todas as inscrições de bens culturais resultaram da iniciativa de comunidades, governos locais e estaduais, tendo a adesão do governo federal ocorrido somente a posteriori. Mesmo reconhecendo aspectos positivos nessa estratégia, é fundamental que o governo brasileiro se paute por uma avaliação abrangente do patrimônio do país, de forma a estabelecer e tornar clara uma política de inscrições. Experiências de outros países mostram que a existência de uma Lista Indicativa atualizada e válida não inibe a mobilização local em favor de candidaturas, mas pode organizá-la e conferir-lhe maior consistência e sentido. As reflexões que vêm sendo motivadas pelos 70 anos do IPHAN podem ser uma oportunidade para se retomar a discussão sobre o Patrimônio Mundial no Brasil, refletindo sobre a sua contribuição para as estratégias de preservação, sobre a necessidade da Lista Indicativa, da sua diversificação com novas categorias de bens, seu enriquecimento com a presença de culturas vivas e de bens que exemplifiquem a relação do Brasil com os vizinhos sulamericanos, dentre outros. Outro aspecto fundamental é o papel dos órgãos responsáveis pelo controle e proteção dos sítios inscritos em cada país - no caso do Brasil, IPHAN e IBAMA – no monitoramento do seu estado de conservação. É importante que as ações de monitoramento adquiram caráter mais efetivo, indo além da resposta burocrática às consultas encaminhadas pelo Centro do Patrimônio Mundial da Unesco.

Novos critérios de seleção e gestão do Patrimônio – o Brasil e a discussão internacional. Se os anos 1980 e 1990 não foram ricos em documentos normativos produzidos pela Unesco, foram excepcionalmente férteis na produção de reflexões e referências teóricas sobre o patrimônio pelas diversas organizações e fóruns internacionais, assim como pelas instituições brasileiras, em especial, o IPHAN. No Brasil, a redemocratização e a mobilização que antecedeu a elaboração da Constituição Federal de 1988 foram também estimuladoras de revisões importantes nos critérios de preservação. Em sintonia com o pensamento mundial, uma das transformações mais significativas da gestão do patrimônio brasileiro nesse período foi o rompimento com o critério de seleção de bens a ser preservados estritamente centrado no juízo estilístico, estético e ideológico (FONSECA, 1977). Ao contrário, passam a ser valorizados bens capazes de representar processos, mais do que fatos isolados, como por exemplo, as frentes de ocupação do território, a evolução urbana, a presença de grupos étnicos ou a história da ciência e da tecnologia, o que implicou também em reafirmar as preocupações com os conjuntos urbanos. Os documentos internacionais enfocam insistentemente

esse tema, especialmente no período que vai do final dos anos 1960 ao final dos 80. É o caso da Carta de Quito - 1967, da Resolução de São Domingos - 1974, da Declaração de Amsterdã - 1975, da Declaração da Unesco em Nairobi - 1976, da Carta de Machu Picchu – 1977, da Carta de Burra – 1980, da Declaração Tlaxcala -1982, da Carta de Washington –1986 e da Carta de Petrópolis – 1987. Nos anos 1990, são produzidos dois documentos importantes sobre o conceito de autenticidade, introduzido pela Convenção do Patrimônio Mundial de 1972, mas até então bastante indefinido e complexo: a Conferência de Nara, 1994 seguida da Carta de Brasília, 1995, documento que discute o mesmo conceito frente à realidade cultural dos paises do cone sul. A questão ambiental, especialmente a partir da década de 1980, veio trazer importantes contribuições para a preservação do patrimônio cultural, seja pelo seu instrumental de leitura do espaço urbano, da paisagem e do território, seja pelas suas estratégias de gestão mais modernas e sua capacidade de mobilização de opiniões em favor da preservação. Dois marcos importantes desse período são a aprovação, em 1981, da Lei nº 6.938/81 que dispõe sobre a política nacional de meio ambiente, e a Rio 92, a II Conferencia Mundial de Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro, que deu origem à Carta da Terra e à Agenda 21, por sua vez, um seguimento dos trabalhos da Comissão Brundtland (1977/83), que recomendavam que ações em comum fossem tomadas até o início do Século XXI em prol do desenvolvimento sustentável. Exemplos de novos temas trazidos em paralelo com a questão ambiental são presentes na Carta de Florença sobre jardins históricos (ICOMOS, 1981) e na Recomendação da Europa sobre a conservação integrada das áreas de paisagens culturais como integrantes das políticas paisagísticas, adotada pelo Comitê de Ministros em 1995.

A nota dissonante: a proteção do patrimônio subaquático Re-inaugurando uma nova safra de instrumentos normativos da Unesco, cuja fertilidade foi retomada a partir dos anos 2000, registre-se a árdua discussão, e posterior aprovação, da Convenção para a Proteção do Patrimônio Subaquático, concluída em 2001. Esse instrumento procura intervir sobre o caótico e anti-ético “negócio”, misto de “caça ao tesouro” e esporte radical, que se tornou a exploração de naufrágios e outros conjuntos de interesse histórico e arqueológico hoje submersos, conferindo-lhe a prioridade científica e cultural que deveria ter.

Complexas questões de ordem jurídica, técnica, política, além de interesses econômicos, têm dificultado a aprovação desse instrumento, que, até julho de 2006, havia sido ratificado apenas pela Croácia, Líbia, Lituânia, México, Nigéria, Panamá e Espanha. No Brasil, que ainda não ratificou a Convenção, o tema é regulado pela Lei 10.166/2000, “que altera a Lei 7542/86, que dispõe sobre a pesquisa, exploração, remoção e demolição de coisas ou bens afundados, submersos, encalhados e perdidos em águas sob jurisdição nacional, em terreno da marinha e seus acrescidos e em terrenos marginais, em decorrência de sinistro, alijamento ou fortuna do mar”. Essa lei enfrenta sérias críticas da comunidade de arqueólogos, que consideram que ela não contém princípios e instrumentos capazes de garantir a abordagem científica dos naufrágios e outros bens submersos, além de possibilitar que um alto percentual do material resgatado possa ser comercializado pelo explorador. (RAMBELLI, 2002). Por contrariar os princípios da Convenção aprovada pela Unesco em 2001, o Brasil fica impedido de ratificar esse instrumento, a menos que se decida pela alteração da sua legislação.

O Patrimônio indissociável das Políticas Culturais Interropendo uma produção de debates exclusivos sobre o patrimônio, a Unesco trabalhou, nas décadas de 1980 e 90, na criação de um arcabouço que iria enriquecer e ampliar definitivamente a visão e o sentido da preservação: abriu um vasto campo de discussões sobre as relações entre cultura e desenvolvimento, sobre os direitos culturais e o multiculturalismo. Partindo de uma abordagem inicial da Cultura como expressão artística e simbólica das civilizações, a Unesco, ao deparar, nos seus próprios fóruns, com a manifestação de fortes tensões internacionais, de conflitos étnicos e de direitos das minorias, evoluiu para compreender e tratar a Cultura como constitutiva, e não apenas como expressiva, das identidades. Houve um progressivo reconhecimento da importância das diferenças culturais não só entre países, mas também internamente aos países, o que levou a Unesco a insistir na formulação, pelos paises e para os países, de políticas culturais. O marco inicial dessa trajetória foi certamente a já referida Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais, realizada pela ONU na cidade do México em 1982, seguida da Década Mundial para o Desenvolvimento da Cultura, 1988; do relatório Nossa Diversidade Criadora, 1995 e da Conferência Mundial de Políticas Culturais de Estocolmo, 1998. Esse processo alcançou seu ponto alto com a aprovação pela Unesco, em 2001, da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural e, finalmente, da Convenção para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões

Culturais, em outubro de 2005. Este instrumento pretende, em última instância, legitimar e defender o direito de cada Estado de estabelecer políticas culturais nacionais que apóiem a produção e a circulação dos bens culturais de forma equilibrada, absorvendo os benefícios das trocas culturais, mas não se deixando sucumbir pela onda avassaladora de homogeneização e pela perda de identidade impostas por uma indústria cultural de dimensão global. Além de propor um conjunto de princípios que funcionarão como uma espécie de padrão ético para a produção, a difusão e as trocas de bens e serviços culturais, essa nova Convenção, que ainda depende de ratificações para entrar em vigor, trata da diversidade como um direito cultural. A ampliação do conceito do patrimônio, que vinha se expressando por meio dos documentos internacionais das décadas de 1980 e 90, já havia impactado em muito, conforme visto, os critérios de seleção, proteção e promoção do patrimônio no Brasil. Esse conjunto mais recente de referências produzido no âmbito da Unesco reforça tendências já delineadas e insere definitivamente o patrimônio no bojo das políticas culturais, indicando que as etapas seguintes serão marcadas, cada vez mais, pela experimentação de projetos integrados de preservação e desenvolvimento local, envolvendo a geração de emprego e renda, o tratamento das questões multi-étnicas e multiculturais, a presença e a participação dos agentes locais, desde a seleção de bens até a sua conservação e apropriação. O patrimônio, que é o mais tradicional dos segmentos das políticas culturais, deixou, nas últimas décadas, especialmente no caso do Brasil, de ser o “filho único” da atuação governamental na área de cultura. O desafio hoje é conviver e se integrar às demais políticas públicas, que o aproximam, o fazem refletir e atuar como instrumento do desenvolvimento econômico, social e humano, dos direitos e da cidadania.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BO, João Batista Lanari, Proteção do patrimônio na Unesco: ações e significados. Unesco, 2003. Disponível em site: http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001297/129719por.pdf . CUELLAR, Javier Pérez de. Nossa diversidade criadora: relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento. Campinas: Unesco - Editora Papirus, 1997. FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/MinC/IPHAN, 1977. RAMBELLI, Gilson. Arqueologia até debaixo d’água. São Paulo: Editora Maranta, 2002.

O PREÂMBULO DA CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA: ORIGENS E HERANÇAS ALGUMAS CONSIDERAÇÕES EM TORNO DAS REIVINDICAÇÕES IDENTITÁRIAS Glaydson José da Silva

Questões de pertencimento Pela primeira vez em sua História, a Europa reunificada, a Europa dos 25 países membros da União Européia elegeu seu Parlamento. Aproximadamente 350 milhões de eleitores foram chamados às urnas, entre 10 e 13 de junho de 2004, para escolherem 732 “eurodeputados”. Criada pelo Conselho Europeu de Laeken – Bélgica (composto pelos então 15 países membros), em 14 e 15 de dezembro de 2001, a Convenção Européia Sobre o Futuro da Europa, presidida pelo ex-chefe de Estado francês (1974-1981) Valéry Giscard d’Estaing teve como principais funções estabelecer diretrizes para a ampliação da União e preparar-lhe um Projeto de Constituição. O ano de 2002 seguiu com discussões da Convenção a esse respeito e teve, em outubro, a apresentação de um Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa, uma espécie de pré-projeto constitucional. Meses após, reunidos em Tessalônica – Grécia, entre 19 e 20 de junho de 2003, os 25 chefes-de-Estado e de governo examinaram o referido projeto de Constituição que, após um ano de negociações, foi aprovado por unanimidade pelo Conselho Europeu de Bruxelas, de 17 e 18 de junho de 2004. A aprovação preliminar do Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa não se deu, contudo, sem se fazer acompanhar de um amplo debate nas sociedades civis dos diferentes países e entre os convencionais. A idéia de agrupar, sob um mesmo código, estruturas políticas, sociais, econômicas e culturais, constituindo um imenso matiz traz, em si mesma, grandes controvérsias, mas isso se conjuga bem com o lema que vai no próprio Preâmbulo a respeito da Europa, doravante Unida na diversidade. Muitos foram os aspectos discutidos até se chegar a essa versão preliminar da Constituição Européia - a mim aqui interessam aqueles que apontam para a definição de um certo éthos europeu, muitíssimo marcado no texto do Preâmbulo que abre o Tratado. Esse pequeno texto, de pouco mais de uma página, foi origem de disputas acirradas entre líderes de Estado, igrejas, grupos laicos, estudiosos das Ciências Humanas e outros diversos grupos. Alguns pontos estiveram no cerne desse debate, a saber: a citação II, 37 da História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides; a não referência a Deus e ao Cristianismo como fatores de união e formação na História da Europa

assim como, também, as discussões em torno das heranças culturais e humanistas advindas dos gregos, dos romanos e da filosofia das Luzes49. A idéia de um texto introdutório, definidor dos fundamentos de uma identidade européia, coloca em questão a complexidade política e ideológica das diferentes reivindicações e interesses em jogo; procura-se resumir, em algumas linhas, os motivos que agrupam todos os membros da União Européia em um mesmo bloco, na elaboração de um texto que visa constituir-se de importantes e comuns referências da História fundacional da Europa. À Convenção compete, nesse domínio (é essa sua pretensão), dar bases a uma identidade européia que não se assente somente em valores de caráter universal, mas que se afirme em valores comuns europeus partilhados, ligados à idéia de heranças culturais, humanistas e religiosas (a ela também compete garantir o respeito à diversidade cultural e lingüística dos diferentes países da União). Esse projeto se liga à própria idéia de Europa da Convenção, à idéia de uma construção européia em torno de princípios partilhados, oriundos de valores comuns, decorrentes de uma necessidade maior, imperiosa, de fundo econômico e político. Para os partidários de uma Europa integrada, um fundo cultural comum, necessário às idéias de reconhecimento e pertencimento constitui um dos mais sólidos argumentos. Levado ao seu limite, esse argumento não comportaria a existência de uma Europa unida, onde seus habitantes, marcada e amplamente diferentes, não se reconhecessem semelhantes, ao menos em alguns pontos, num contexto em que sentir-se europeu antecedesse todo e qualquer sentimento nacional. Isso não se daria sem a implementação de políticas de adesão populacional, tanto mais necessárias quando se observa uma indiferença generalizada de proporções não desprezíveis junto aos povos dos diferentes países da União. Para políticos e intelectuais, partidários de uma Europa unida, um fundo cultural comum é, então, o argumento de maior porte na justitficativa da constituição de uma certa “identidade européia” não criada, pois já existente50. Um passado comum, com referências comuns seria, nesse sentido, a base para uma nova Europa, cuja cultura sempre teria existido, sendo anterior

49

As referências a documentos da União Européia citados neste texto poderão ser obtidas, quando não explicitadas as fontes, no site oficial da União: http://www.europa.eu.int . As sessões plenárias referenciadas constam do documento Compte-rendu intégral de la session plénière du 5 juin 2003, disponível entre os documentos sobre os debates da Convenção em http://www.europarl.eu.int/europe2004/index_fr.htm . A exortação apostólica Ecclesia in Europa, de João Paulo II pode ser consultada no site oficial do Vaticano: www.vatican.va . 50

Em 1976, no Colóquio intitulado Lidentité culturelle de l’Europe, em Brest, o secretário geral do Conselho da Europa (Georg von Ackermann) precisava, em sua apresentação, aquilo que conduziria as discussões em torno da questão identitária européia, por parte dos adeptos da União, nos anos seguintes; para Ackermann, a construção da Europa repousava, desde suas origens, na conscientização de uma identidade cultural européia. Senão a noção, um tanto fluida, ao menos a idéia de identidade cultural, já esboçada anteriormente, permaneceria nos círculos oficias da União (Acte du colloque de Brest, L’identité culturelle de l’Europe, 1976, p.3).

à constituição política da própria Europa moderna. O que estaria por ser criado seria, então, a união em outros domínios, sejam eles políticos, econômicos ou militares. Se por um lado, para os partidários de uma Europa unida, a identidade européia constitui o grande leitmotive de uma União sem fronteiras, por outro, para aqueles que vêem nos particularismos nacionais as impossibilidades de uma união utópica, o foco argumentativo é outro. De culturas, identidades culturais e realidades múltiplas, os diferentes países europeus têm, na visão daqueles contrários à idéia de união, a sua individualidade diluída, o seu passado sacrificado e suas memórias apagadas nas tentativas de se criar um passado comum irreal, com vistas a um futuro utópico; a idéia de identidade cultural européia é, então, mais vista como fonte de desunião do que de união, de exclusão do que de inclusão. Para esses propugnadores, a noção de identidade cultural européia é totalizante, universalizante, e atenta contra as diferenças locais, étnicas e culturais, em postulando um modelo uniforme para toda União. Às diferentes Europas, do Norte, do Sul, do Leste e do Oeste se unem as próprias particularidades dos diferentes povos de cada uma delas, consistindo, então, a diversidade e sua manutenção nos argumentos contrários mais veementes à idéia de união. Instituída, à União Européia cabe, hoje, dar conta dos problemas intrínsecos à própria idéia que a origina. Os debates em torno da elaboração do Preâmbulo e a diversidade dos discursos a esse respeito mostram um pouco a complexidade dos problemas em questão e as inquietações que eles colocam. Não sem dificuldade pode-se perceber, no pequeno texto do Preâmbulo, ideologias similares àquelas que forjaram os ideais de identidade, continuidade e comunidade de destinos dos Estados-nações, só que nele o discurso atua no fabrico de uma identidade transnacional, porque de origem polimorfa, com sérios riscos de postular práticas e valores ideologicamente sectários para e pelos grupos envolvidos. Não constituindo valor jurídico, pode-se indagar sobre o porquê de tamanha discussão em torno de temas que não respondem a nenhuma finalidade prática, mas o problema está colocado em outro lugar. Em uma Europa que se quer unida e com uma cidadania comum em um mundo globalizado, o texto do Preâmbulo aparece como muito importante, visto estabelecer valores comuns que constituíram a Europa e continuarão a unir os europeus por uma espécie de cimento social. Desta maneira, o que figura no Preâmbulo poderá ser simbolicamente entendido como fonte de união ou de divisão (BACQ, 2003, p.23) em relação ao futuro político da Comunidade Européia. O Preâmbulo da Constituição, como o preâmbulo de muitas outras leis, pode, também, ser visto como importante pelo fato de poder propiciar uma interpretação mais rigorosa às leis, estando em conformidade com o todo jurídico apresentado.

Tucídides II, 37 Passo à análise do texto que, em sua primeira versão (elaborada pelo Praesidium da Convenção Européia e divulgada em 28 de maio de 2003), inicia tendo como epíteto a conhecida frase de Tucídides (II, 37)

A tradução oficial dessa frase, referente a União Européia para o português é a seguinte: “A nossa Constituição chama-se "democracia" porque o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas de todo o povo”51. Este trecho foi extraído da oração fúnebre de Péricles aos atenienses, e seu uso coloca algumas questões para os leitores do Preâmbulo52. A palavra politeia não corresponde, precisamente, ao termo constituição, tal qual o entendemos hoje; traduzir politeia por constituição dá a entender aos contemporâneos a visão equivocada de que os gregos tinham uma espécie de Carta Magna fundadora; democracia não tem hoje o mesmo sentido que tinha na Grécia antiga – para Tucídides e seus contemporâneos o poder não incluía a maioria dos habitantes da cidade: escravos, metecos e mulheres; tanto na Grécia antiga, como hoje, o oposto de minoria não significa totalidade. Ainda que consideradas as metamorfoses dos sentidos no uso das palavras, ao longo do tempo e da História, um tal uso de Tucídides não deixa de ser ‘anacrônico’. Após longo debate na Convenção, a tradução de Valéry Giscard d’Estaing foi mudada e, a partir de 10 de julho de 2003 passou a constar, no Tratado, a versão aprovada por consenso pela Convenção Européia de 13 de junho e 10 de julho de 2003, na qual constava: “A nossa Constituição chama-se "democracia" porque o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas do maior número de cidadãos53” (ver anexo da Convenção Européia de Bruxelas, de 18 de julho de 2003).

51

Os demais fragmentos do Preâmbulo citados foram extraídos de versões portuguesas oficiais do Tratado disponibilizadas pela União Européia. 52 Importante ressaltar que citação omite um fragmento no qual Péricles, pela boca de Tucídides, enuncia o regime político de Atenas como modelo para as demais cidades, dando continuidade nessa mesma perspectiva na seqüência do texto. Atenas é, aí, representada como a escola da Grécia. 53 A esse respeito, ver a proposta de alteração ao Preâmbulo feita pelo representante do parlamento italiano na Convenção – Lamberto Dini. O texto sugere a substituição da expressão “de todo o povo” pela “de maior número”,

Ainda que se possa considerar complexa a representação de politeia por constituição e as diferenças conotativas do uso da palavra democracia, a substituição de “o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas de todo o povo” por “o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas do maior número de cidadãos” parece ao menos mais condizente com as realidades contemporâneas e minimamente mais verossímil. Apesar de compreensível a idéia de dar a um texto de tamanha importância uma introdução à altura, a citação de Tucídides, mesmo revisada, apresenta, ainda, um grande número de problemas. Se por um lado, a primeira versão só podia ser condizente com a idéia de que povo, para os gregos, eram os cidadãos, e isso excluía um grande número, por outro, a idéia de que o poder está nas mãos não de uma minoria, mas do maior número de cidadãos parece absurdamente contrária aos princípios da democracia representativa hoje, onde o poder está nas mãos tanto de um maior número de cidadãos quanto de uma minoria. O poder nas democracias representativas pertence, assim, às maiorias que elegem seus representantes e às minorias que o exercem em cargos políticos eletivos; a mesma lógica se aplica, então, aos povos dos diversos países e à presidência e aos parlamentares da União. Postular o exercício do poder a um maior número pode dar, também, uma outra conotação, um tanto perversa, aquela liga, imediatamente, a idéia de democracia apenas à idéia de uma democracia de maiorias, que exclui o que é diverso, o que é diferente, o que destoa do homogêneo, fazendo eco às funestas memórias de exclusões da História européia. Na sessão plenária da Convenção de 5 de junho de 2003 (sessão 4-039) foi colocada para debate, pelo convencional Lamberto Dini (num contexto de discussão sobre representatividade), a citação grega de Tucídides e sua tradução; chamado a se pronunciar a esse respeito, Giscard D’Estaing dá a seguinte explicação: A citação em francês é uma citação do século XVI, ou seja, do Humanismo, quando traduzimos Tucídides. Pesquisamos o texto de origem de Tucídides que não diz de modo algum a mesma coisa. Na democracia grega, faz-se alusão à maioria, porque não era todo mundo. No texto humanista francês do século XVI, fala-se de maior número. Nós iremos – e eu me desculpo junto a nossos colegas helênicos -, retirar a versão helênica e guardar simplesmente a versão da Renascença.

Em relação a essa consideração Dini faz o seguinte comentário (Sessão 4-041):

razão pela qual o convencional explica: “A instruída citação com a qual se abre o preâmbulo deve ser corrigida em sua tradução, a fim de torná-la mais coerente com o texto e o espírito da afirmação de Péricles. A constituição européia, assim como aquela ateniense, será democrática se ela se funda sobre o princípio da maioria”.

(...) – Mas é justo a substituição das palavras “de todo o povo” pelas palavras “do maior número”, o que me leva à noção segundo a qual a Constituição européia – assim como aquela ateniense – seria democrática se ela é fundada sobre os princípios da maioria. Eis o princípio da maioria. Isso me conduz à emenda que propus ao artigo 39 onde, precisamente, quando se trata da questão da política exterior, sugerimos - e eu sugiro -, mudar unanimidade por maioria qualificada54. Seguindo em sua argumentação o convencional diz:

Ontem, durante a discussão que tivemos em vossa presença com os parlamentares nacionais, mencionamos a possibilidade de ter recorrido a uma supermaioria qualificada. Parece-nos, e me parece, que permitir a um único país impedir a decisão não é democrático. O preâmbulo que eu lembrei diz precisamente que a democracia é a maioria55. Há que se ressaltar que, para além do debate acerca das minorias e maiorias e tudo o que ele acarreta, uma questão maior, uma espécie de pano de fundo de toda essa discussão esteve na tentativa de se afirmar a democracia (política) como forma de governo tipicamente européia, fundando miticamente suas raízes na tradição. Após longo debate no seio da Convenção, a citação de Tucídides foi suprimida, sob as diversas acusações de ter sido mal traduzida, de ser equivocada, apócrifa e contrária à igualdade dos Estados. Para Alexandrine Bouilhet (2004, p.1), articulista do Le Figaro, Tucídides, pai da História, seria, na verdade, um personagem pouco recomendável, para não dizer politicamente incorreto, em virtude de sua explícita admiração por Péricles e pelos combates sangrentos por este levados a termo em nome da democracia. Por ocasião da disputa grega na copa Euro 2004, para parabenizar os jogadores gregos e se desculpar pela ausência de Tucídides no Preâmbulo, Giscard D’Estaing (2004, p.7) que tanto militou para a permanência da referida citação diria:

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A idéia de votações por maioria qualificada é a de buscar lidar melhor com a dificuldade de obtenção de unanimidades em uma Europa cada vez maior. O artigo 24 o do projeto constitucional estabelece maioria qualificada como uma maioria de Estados-Membros, que devem representar, no mínimo, três quintos da população da União. 55 Na sessão 4-050 Giscard D’Estaing diz: “A maioria qualificada só tem sentido se a minoria a respeita. Se dissermos que é uma maioria, mas que a maioria faz o que ela quer, ela não tem decisão coletiva. Então, nós trabalhamos sobre uma outra hipótese que é de elevar o limite da maioria para aí fazer uma maioria super qualificada e deixar possibilidades de não aplicação, mas que seriam muito reduzidas, já que elas não se aplicariam às pequenas lacunas que estariam entre a maioria super qualificada e a unanimidade.”

Eu não consigo compreender por que os infelizes Tucídides e Péricles foram retirados de nosso patrimônio histórico. (...) Há um orgulho para a Europa de afirmar que a primeira experiência de democracia teve lugar sobre seu território e que a quase totalidade do vocabulário democrático é tirada de uma língua européia. Em todo caso, asseguro a meus amigos helenos: por minha parte, eu lhes guardarei meu reconhecimento! E os jogadores de futebol gregos estão encarregados de reabilitar a memória de Tucídides (...). Para Bouilhet (2004, p.1.), a Europa do século XXI, não se reconhece mais no século de Péricles, berço da democracia moderna. Se por um lado, o mito da caverna ilustra com perfeição o funcionamento atual da União, por outro, os vinte e cinco recusam homenagear a Grécia de Sócrates e de Platão. Historiador do V século a.C., sofista e filósofo, o ateniense Tucídides não terá mais o direito de ser citado no Preâmbulo da Constituição. Assim decidiu a presidência irlandesa da União, aprovada por todos os chefes da diplomacia européia, reunida ontem, em Luxemburgo, à exceção notável dos ministros gregos e de Chipre, chocados pelo repúdio brutal das origens.

Valores europeus Feitas estas considerações, em relação à epigrafe da primeira e da segunda versões do Preâmbulo, o que resta é um pequeno e complexo texto que, de modo explícito, é bem representativo de uma certa ideologia ocidental positiva, que facilmente se pode ler logo no primeiro parágrafo do texto:

Conscientes de que a Europa é um continente portador de civilização; de que os seus habitantes, vindos em vagas sucessivas desde os primórdios da humanidade, aqui desenvolveram progressivamente os valores em que se funda o humanismo: igualdade dos seres, liberdade, respeito pela razão,[...].

Este parágrafo, que apareceu na primeira e segunda versão do Preâmbulo, foi eliminado da versão consolidada provisória do Tratado. O trecho citado coloca imediatamente para análise algumas questões, a começar pela complexidade do afirmar que a Europa é um continente “portador de civilização”. Portador é não só aquele que porta, que traz consigo ou em si, mas também aquele que conduz, que leva. Se o fragmento citado conduz, explicitamente, à primeira conotação, o seu contexto notoriamente alude à segunda. O que sucede neste mesmo parágrafo denota a concepção etapista e positiva de História e da História européia da Convenção, na qual se desenvolveram os valores fundacionais europeus contidos no Preâmbulo. Ora, postular a igualdade entre os seres,

nesse domínio, é reconhecer que são, devem ou podem ser iguais, em uma lógica cruel e excludente de toda e qualquer diferença - étnica, política, religiosa etc, e, com isso, estabelecer ou dar margens para que se estabeleçam ditames normativos que conformam indivíduos e práticas no reconhecimento ou busca de um igual. Um domínio que não dá ou que não abre margem para o diferente certamente não é um domínio de liberdade, pois nele o indivíduo não tem lugar. Quanto ao respeito pela razão, há que se indagar: o respeito a qual razão? Pode-se ser livre sem respeitar essa razão normativa, tida como correta?

Heranças comuns De ordem tão complexa como o parágrafo anterior, sucede a ele o trecho que causou maior polêmica quando da elaboração do Preâmbulo, o que trata das heranças comuns, e que em sua primeira versão (de 28 de maio de 2003) dizia:

Inspirando-se nas heranças culturais, religiosas e humanistas da Europa, que, alimentadas primeiro pelas civilizações helénica e romana, marcadas pelo elã espiritual que a percorreu e que continua a estar presente no seu património, e depois pelas correntes filosóficas do Século das Luzes, enraizaram na vida da sociedade a sua percepção do papel central da pessoa humana e dos seus direitos invioláveis e inalienáveis, bem como do respeito pelo direito, [...]. Civilizações antigas A idéia de herança ao longo da História ocidental sempre esteve ligada à idéia de patrimônio passado, transmitido, por pessoa ou grupo, por sucessão. Um patrimônio que é sempre reivindicado por herdeiros diretos ou por aqueles que julgam ter direitos de herança. No caso das civilizações antigas, cujo legado constitui o patrimônio cultural56, há que se ressaltar que esse é e sempre foi um objeto em litígio, cujos maiores embates sempre estão ligados a questões de um patrimônio tido como imaterial. Aos historiadores, arqueólogos e estudiosos do mundo antigo hoje talvez caiba uma problematização maior em torno da idéia de herança, de herança do mundo clássico. Talvez caiba, mesmo, recusar a herança inflingida às sociedades modernas e indagar, a esse propósito, quem são os beneficiários dessa herança clássica e o que eles reivindicaram e reivindicam. A herança clássica reivindicada não raro esteve associada ou mesmo fora utilizada para afirmar identidades, garantir 56

Os diferentes sentidos ligados ao próprio conceito de ‘patrimônio cultural’ guardam sempre uma referência à idéia de lembrança. Para uma exploração etimológica do termo patrimônio ver FUNARI, 2001, p. 23.

continuidades e solidificar uma espécie de comunidade de destinos; no Preâmbulo, tudo isso aparece de forma bem evidente; nele, como em todos os discursos que fazem uso da Antigüidade nesse domínio, reclama-se a herança mais conveniente. O que se problematiza e coloca em questão com essa discussão não é, então, a referência ou não à Antigüidade como fonte de uma herança transmitida, mas os usos da idéia de herança da Antigüidade, num contexto onde o mundo antigo comumente atende às mais diversas apropriações contemporâneas. Há que se observar que, nesse campo, apesar dos usos e significados da tradição clássica para o mundo contemporâneo, manipulada em muitos casos, esse seu aspecto não se deve a nenhuma característica intrínseca dessa própria tradição, que não é em si mesma nem positiva nem negativa, mas cujo uso na elaboração de uma identidade cultural européia é naturalmente artificial. O ‘patrimônio cultural’ dos antigos figura, no tempo presente, como a representação das possibilidades políticas dos grupos sociais, mediante suas constantes re-apropriações, sempre a atender imperativos circunscritos do mundo contemporâneo e a oferecer-lhe respostas que auxiliem no estabelecimento de compreensões de problemáticas atuais. Seja na reivindicação dos contributos da “civilização helênica” para o pensamento europeu, por meio da Filosofia, da História, das técnicas etc, ou seja, na reivindicação dos contributos da “civilização romana”, por meio da idéia de organização e potência, das ordens jurídicas, políticas, cívicas etc, a idéia de uma certa instrumentalidade do mundo antigo e da tradição clássica sempre esteve presente na constituição das identidades européias; de diferentes maneiras e em diferentes períodos. Discussões a esse respeito acompanharam a elaboração do Preâmbulo, mas, apesar das distintas colorações dadas ao mundo antigo, pelos diferentes reivindicadores de uma certa herança clássica, o reconhecimento a uma espécie de pertença às heranças das civilizações antigas se deu em bases e aspectos muito similares. Talvez por conta disso, a referência às civilizações helênica e romana, que nutriram “as heranças culturais, religiosas e humanistas da Europa”, salvo algumas poucas proposições de mudança formal – como a de Cristiana Muscardini (Doc. CONV 660/03, Contributo 293) - não foi objeto de grandes problematizações na elaboração do Preâmbulo.

Deus e o Cristianismo O foco principal das discussões em torno do parágrafo anteriormente citado centrou-se na ausência de uma referência explícita a Deus e ao Cristianismo como fatores essenciais na formação e união

da Europa57. De sua primeira versão até hoje (e crê-se até a homologação do Tratado pelos países constituintes da União Européia), esse parágrafo foi objeto de inúmeros debates entre políticos, religiosos, laicos, intelectuais e as sociedades civis dos respectivos países membros. De um lado, o Vaticano, as igrejas protestantes, a igreja ortodoxa grega, a Polônia, a Espanha, a Irlanda, a Alemanha, a Itália, a Lituânia, Portugal, Malta, a República Tcheca e a Eslováquia reivindicando uma referência explícita às raízes cristãs da Europa. De outro, os laicos, propugnando a separação entre o Estado e a Igreja e se batendo pela não referência a Deus, às religiões e ao Cristianismo no Preâmbulo da Constituição. Para os defensores das referências religiosas no texto, o principal argumento está na inegável herança religiosa da Europa, e, mesmo nesse ponto, as divergências também permanecem58. A referência à religião está presente em muitas constituições européias, como na polonesa e na irlandesa, que mencionam explicitamente sua herança cristã; na espanhola, que evoca a cooperação do Estado com a Igreja católica; na dinamarquesa, que lembra o suporte do Estado à Igreja evangélica luterana; na alemã que precisa que o povo é responsável diante de Deus; na grega, que faz referência a Deus e à Santa Trindade etc., ao passo que outras, como a constituição francesa, sublinham o caráter laico do Estado. Para os laicos, de modo geral, a questão não está na afirmação ou negação das heranças religiosas ou confessionais dos Estados, com suas histórias próprias e, por vezes, comuns com demais Estados, mas na pertinência dessas referências na Constituição (CONV 577/03, Contributo 256, do convencional Jacques Floch ). Para o presidente da Convenção, na primeira versão do Preâmbulo, de 26 de maio de 2003, no trecho em que se dizia que as heranças culturais, religiosas e humanistas da Europa foram “alimentadas pelo elã espiritual que a percorreu e que continua a estar presente no seu patrimônio”, era feita uma referência explícita ao Cristianismo e à sua herança. Em entrevista ao jornal italiano Corriere della Sera, em 31 de maio de 2003, Giscard d’Estaing afirmou que, quando, no Preâmbulo, referia-se ao élan espiritual que percorreu a Europa, 57

Para ilustrar esse último domínio, Christoph Schönborn, arcebispo de Viena, homem de confiança do João Paulo II e um dos favoritos quando de sua sucessão, esteve à frente de uma grande manifestação em favor de uma menção da herança cristã da Europa na Constituição Européia, entre 21 e 23 de maio de 2004, congregando 100.000 fiéis católicos da Áustria e de sete países da Europa Central ex-comunista. Para Schönborn, “A História mostrou como era urgente suplantar os nacionalismos e o fosso entre ideologias. A Europa, dividida durante decênios pela cortina de ferro, se reencontra face à caminhada histórica de sua reunificação” (TINCQ, 2004, p.6) 58 O porta-voz da Igreja Ortodoxa Grega (Haris Konidaris), por exemplo, manifestou-se veementemente contra a idéia de uma referência religiosa que envolva tradição cristã, judia e muçulmana, visto estas duas não terem tido o mesmo papel que a cristã na formação da cultura européia e da História da Europa. A esse respeito ver: Un héritage religieux calibre au millimétre pour la future constitution, disponibilizado no site http://www.fairelejour.org/breve.php3?id_breve=170 , em matéria de 30 de maio de 2003.

“era evidente que se tratava daquele da religião cristã (...) Mas nós não podíamos citá-lo mais explicitamente, senão deveríamos mencionar também as outras religiões presentes sobre o continente, do judaísmo ao Islam. E esta solução não teria sido aceita por todos”. A idéia de élan, sugerida por d’Estaing como uma referência geral na qual se englobariam todas as religiões cristãs foi muitíssimo criticada pelos católicos e representantes católicos. A menção à herança cristã como simples élan negligenciava, aos olhos dos representantes cristãos, dezeseis séculos de História, e simplesmente apagava o período da res publica christiana, em um contexto em que se reconhecia a importância da herança greco-romana e mesmo da filosofia das Luzes (esta última fortemente marcada pelos seus embates contra a religião). Para os convencionais cristãos ou seus representantes isso foi visto como uma espécie de tentativa de descristianização da União. A esse respeito o presidente polaco Alexander Kwasniewski teria afirmado:

“Sou ateu e todo mundo o sabe, mas não há desculpa para fazer referência à antiga Grécia e Roma, assim como ao Iluminismo, sem fazer referência aos valores cristãos que são tão importantes no desenvolvimento da Europa” (Evans-Pritchard, 2003).

Em 25 de janeiro de 2003, o Secretário-Geral da Convenção recebe, de Jacques Floch, membro suplente da Convenção, um Contributo intitulado “Por uma constituição européia que reconheça a laicidade (Doc. CONV 577/03, Contributo 256)”, elaborado em resposta às diversas contribuições que pleiteavam referências à herança religiosa da Europa. Para Floch e os convencionais laicos, “o elemento religioso não constitui um elemento identitário da União Européia e não há nenhuma razão de introduzi-lo no texto constitucional. É constante na História da Europa o fato de que as religiões foram elementos freqüentemente trágicos, de divisão da Europa” (Doc. CONV 577/03, Contributo 256)”. Segundo Floch, como a Costituição francesa, a Constituição européia deve reconhecer a laicidade como princípio fundamental da União. Em 31 de janeiro de 2003, Joachim Wuermeling, membro suplente da Convenção, apresentou Contributo assinado por 25 membros efetivos e suplentes demandando uma “Referência à religião no Tratado Constitucional (Doc. CONV 480/03, Contributo 185)”, tendo sido esta uma dentre as várias proposições de alteração que, com algumas variações estitlísticas ou textuais, tinham um mesmo fundo. É o caso do Contributo de Frantisek Kroupa (convencional suplente), que propunha a inserção no Preâmbulo de um trecho que fazia alusão às fontes espirituais da civilização européia e à herança da Bíblia (Doc. CONV 769/03, Contributo 346) e, também, o do Contributo de Edmund Wittbrodt (membro da Convenção) e de

Marta Fogler (convencional suplente), que demandavam a inserção de um trecho que explicitava a herança das civilizações greco-romanas, da Renascença e do século das Luzes, e que contemplava uma referência a Deus como fonte de verdade, justiça, bem e beleza, seguido de um complemento que aduz a necessidade do respeito a valores universais de origem diversa59. Vista pela Igreja como uma tentativa autoritária de reescrever a História, uma falsificação histórica, uma espécie de esquecimento do passado, a não referência à Deus e ao Cristianismo é motivo de disputas e exasperações por um bom número de católicos60. Entre novembro e dezembro de 2003 mais de um milhão de europeus assinaram uma petição enviada à Convenção pela presidência italiana do Conselho de Ministros da União Européia. Como essa, inúmeras outras manifestações de ONGs, sociedades e grupos católicos, grupamentos políticos e organizações civis de toda Europa também se manifestaram, assim como, também, muitos representantes políticos de seus respectivos países. Na sua exortação apostólica Ecclesia in Europa, João Paulo II irá afirmar que “A História do continente europeu está marcada pelo influxo vivificante do Evangelho. Se olharmos para os séculos passados, não podemos deixar de dar graças ao Senhor, porque o cristianismo foi, no nosso continente, um fator primário de unidade entre os povos e as culturas e de promoção integral do homem e dos seus direitos”. O papel desempenhado pelo Vaticano em toda essa celeuma de opiniões conflitantes não é de se desprezar, malgrado sua perda de poder, declínio da aceitação de sua política e falta de representatividade de fato, quando ele se pronuncia a respeito de qualquer assunto de caráter político ou moral, sua opinião tem um peso e um efeito consideráveis. Em interessante artigo, Michael de Semlyen e Richard Bennett, observam que: “quando o Papa ou sua Igreja empregam a palavra cristão, na verdade eles querem dizer “católico romano” (SEMLYEN & BENNETT 2004) e, nesse contexto, isso é algo importante a ter se em conta. O que não seria mais que uma ofensa a europeus ateus e humanistas (a ausência das referências a Deus e ao Cristianismo) assume, então, uma dimensão muito maior para a Igreja, pois, “quando o Vaticano faz referência a Deus, ele se considera o próprio Deus, como o vice-regente de Deus na Terra, o órgão principal pelo qual Deus se exprime”.

59

Doc. CONV 795/03, Contributo 360. Alguns Contributos, como o do convencional suplente Gabriel Cisneros Laborda propõem, simplesmente, um argumento decisivo. Para o convencional, a inserção do Cristianismo como herança européia é defendida argumentado que “as origens não se inventam; devem ser reconhecidas”. 60 A opinião de Janusz Zakrzewski, responsável pela Liga das Famílias Polonesas, uma organização ultracatólica de Varsóvia, é bem sintomática em relação ao pensamento católico, de maneira geral, a esse respeito. Para Zakrzewski, “Pode-se fazer referência às outras religiões, mas as cristãs devem ser colocadas em primeiro lugar. Não se pode esquecer o aporte da cultura cristã na Europa: é uma questão de verdade histórica” (CHÂTELOT, 2004, p. 6).

Numa Europa que incorpora cada vez mais para si o papel de nação e que se representa como Império – que tem moeda única, hino, bandeira etc., revive-se, concomitantemente, em um discurso quase personificado, a idéia de um novo Império Romano, para o qual o Vaticano toma para si o papel de conferir uma alma a toda essa organização (SEMLYEN & BENNETT 2004). Na exortação “Ecclesia in Europa” (parágrafo 116 do capítulo A vocação espiritual da Europa), o João Paulo II faz a seguinte declaração:

Una e universal, embora presente na multiplicidade das Igrejas particulares, a Igreja Católica pode dar um contributo único para a edificação de uma Europa aberta ao mundo. É que, da Igreja Católica, deriva um modelo de unidade essencial na diversidade das expressões culturais, a consciência de pertencer a uma comunidade universal que se radica, mas não se esgota nas comunidades locais, a sensação daquilo que une separa o que diferencia. Toda essa ampla discussão, que antecedeu e sucedeu a primeira versão de texto do Preâmbulo, com grandes repercussões nos diferentes setores da imprensa européia culminou com o segundo projeto do texto, divulgado em 18 de julho de 2003 (Ver anexo). Nessa versão, a referência II,37 de Tucídides constou com a nova tradução proposta (“o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas do maior número de cidadãos”), o primeiro parágrafo (Conscientes...) permaneceu sem alterações e o segundo, motivo de tanta discussão, passou a ter a seguinte redação:

“Inspirando-se nas heranças culturais, religiosas e humanistas da Europa, cujos valores, ainda presentes no seu património, enraizaram na vida da sociedade o papel central da pessoa humana e dos seus direitos invioláveis e inalienáveis, bem como o respeito pelo direito61 [...]. Como se pode observar, o trecho em que se dizia “que alimentadas primeiro pelas civilizações helénica e romana, marcadas pelo elã espiritual que a percorreu e que continua a estar presente no seu património e depois pelas correntes filosóficas do Século das Luzes”foi substituído pela referência acima em destaque: cujos valores, ainda e sempre presentes no seu patrimônio [..] Para os defensores da referência a Deus e ao Cristianismo no texto, se por um lado, na primeira versão, ignorava-se toda a Idade Média e o Cristianismo (esse como manifestação cultural dominante), objeto de inúmeras contestações à época, por outro, na versão atual, que se pretendia mais aglutinadora, esse “equívoco histórico” ainda permanecia. Para eles, se na primeira versão, o 61

As alterações da 3a e 4a versões do Preâmbulo em relação a esse parágrafo podem ser vistas nos textos em anexo.

Cristianismo entrava no conjunto das heranças religiosas e se insinuava por uma espécie de élan espiritual, que não privilegiava sua importância, no segundo texto essa ausência de uma alusão explícita e, aí, mais sutil, foi, ainda, mais afrontosa. O teor dos debates a esse respeito e sua amplitude, ainda que com as mesmas argumentações por representantes laicos e cristãos, permaneceu e ainda hoje está presente na grande imprensa européia.

União de valores e interesses comuns Na seqüência, o texto continua idêntico à primeira versão; em ambas pode-se ler:

Convencidos de que a Europa, agora reunida, tenciona progredir na via da civilização, do progresso e da prosperidade a bem de todos os seus habitantes, incluindo os mais frágeis e os mais desprotegidos, quer continuar a ser um continente aberto à cultura, ao saber e ao progresso social, e deseja aprofundar o carácter democrático e transparente da sua vida pública e actuar em prol da paz, da justiça e da solidariedade no mundo62[...]

Como no conjunto do texto, neste fragmento, a complexidade está nos embates entre as unidades e a totalidade e se encontra, principalmente, explicitada na idéia de um caminho comum a prosseguir, o da trajetória de civilização, de progresso e de prosperidade, palavras essas cujo caráter conotativo é de ordem eminentemente subjetiva. Para além das possíveis divergências nacionais a propósito das interpretações do que venha a ser a civilização, o progresso e a prosperidade concretizadas na análise de problemas comuns à União, cuidados devem ser observados no sentido de que esses termos não sejam representativos de uma concepção histórica etapista, progressista e binária, em que diametralmente o que se entenda por civilizado se oponha a não civilizado, o que se entenda por progresso se oponha ao atraso e o que se entenda por prosperidade pela desventura e pelo fracasso. Na seqüência do parágrafo anteriormente citado, dois outros que, como os anteriores permaneceram inalterados na segunda versão do Preâmbulo dizem:

62

Este parágrafo permaneceu, em sua essência, inalterado nas versões seguintes do Preâmbulo, salvo os acréscimos de sua primeira linha com a frase: “de novo unida após amargas experiências” – 3a versão, que foi substituída na 4a versão pela frase “agora reunida após dolorosas experiências”, ambas em referência à união da Europa.

Persuadidos que os povos da Europa, continuando orgulhosos de sua identidade e de sua história nacional, estão decididos a ultrapassar suas antigas discórdias e, unidos por laços cada vez mais estreitos, a forjar o seu destino comum63 [...]. Certos de que, “unida na diversidade”, a Europa lhes oferece as melhores possibilidades de, respeitando os direitos de cada um e estando cientes das suas responsabilidades para com as gerações futuras e para com a Terra, prosseguir a grande aventura que faz dela um espaço privilegiado de esperança humana64[...]. No que concerne às questões identitárias, ultrapassar as divisões de identidade fundadas nas diferentes culturas e ao mesmo tempo respeitar as identidades singulares se constitui num dos maiores problemas da União. Dar mostras de que é possível uma dita “identidade européia” que conviva com a diversidade cultural é, nesse campo, o maior problema a ser considerado. O grande desafio da União estará em mostrar que é possível articular origens e histórias “divergentes” e complexas na constituição de um destino comum, ao passo que deverá suscitar, em milhões de europeus, a idéia de que pertencem a uma grande entidade meta-nacional e de nela se reconhecem. Se orgulhosos de suas identidades e histórias nacionais no quarto parágrafo unem-se por laços cada vez mais estreitos, no quinto apregoam o adágio “Unida na diversidade”, em clara oposição ao parágrafo anterior, pois a idéia de evolução e etapa incutida naquele parágrafo alude a um futuro onde a integração dos povos terá sido um objetivo atingido, norteado pela fundamentação de um destino comum, em contraposição à idéia de que se permanece unido na diversidade. Contudo, os argumentos acima, levados ao limite na interpretação, talvez não correspondam às proposições da União, que almeja não uma “comunidade de destinos” fundada na uniformidade das nações, mas, sim, na uniformidade dos objetivos comuns, aqueles mesmo de civilização, progresso e prosperidade.

Considerações finais Os fragmentos citados, assim como os debates que acompanharam a elaboração do Preâmbulo são bem representativos da atualidade das questões identitárias na Europa e das inquietações que elas colocam. A busca dos países europeus da criação de uma espécie de unidade de seus povos conjuga-se com um grande número de discursos sobre as identidades nacionais, calcados em bases 63

Este parágrafo permaneceu inalterado na 3a versão do Preâmbulo; na quarta, onde se lia da sua identidade, passou a constar da respectiva identidade. 64 Este parágrafo permaneceu inalterado na 3a e 4a versões.

diversas. Esse universo de diferentes questões identitárias plasma ao observador, hoje, um grande número de problemas, alguns dos quais aqui mencionados. A imigração, mesmo, é um dos grandes problemas ao qual os países europeus têm sido chamados a se pronunciarem; num contexto de uma Europa cada vez mais ampla, caberá à União lidar com os diferentes discursos nacionais a respeito dessa questão, muitíssimo presentes nas discussões em torno das identidades nacionais. Apesar do fundo comum que está no fato de ser imigrante nos diferentes países europeus, esse exemplo dá conta da diversidade que isso representa nos mesmos. Imigrantes votam em alguns lugares, em outros não, obtém cidadania em alguns locais, em outross não, são rigidamente submetidos a códigos e normatizações sobre imigração em alguns países, na medida que gozam de larga tolerância legislativa em outros etc. As estratégias ‘nacionais’ a esse respeito são, também, muito variadas, do multiculturalismo britânico à uniformidade nacional francesa, bem representada na diversidade de abordagens da questão do véu islâmico. É importante ressaltar que as discussões atuais a respeito de cidadania, imigração, territórios e heranças comuns, identidades, enfim, como no caso das discussões em torno do Preâmbulo da Constituição Européia colocam em pauta e evidenciam uma espécie de agitação no que tange às identidades nacionais, num mundo submetido à globalização e ao triunfo das democracias liberais, onde a multiplicidade de indivíduos, grupos e práticas estão em constante risco do império dos ideais homogeneizadores e totalizantes. A formação da Europa unida terá como objetivo talvez suplantar a Europa das nações ou, em alguma medida, propor uma identidade que não seja calcada num passado mítico, que não emirja de um passado comum, mas, sim, de um projeto comum de futuro. Natural a todos processos de construção de identidades sociais, onde a propósito do si e do outro a definição identitária se constrói necessariamente em torno de diferenças, a idéia de uma Europa unida (que reproduz, em maior medida, processos de identidade e exclusão que já estavam implícitos – e talvez com maior força – nos estados-nacionais que a constituem) deve assumir o compromisso de ser mais includente que excludente, e, nesse sentido, a União Européia o é. Mais que um conceito histórico e geográfico mutável a Europa é, hoje, um conceito político, cuja definição e projeto não se encontram em nenhum lugar que não dê ou que não procure dar conta da multiplicidade e da diversidade das culturas regionais e nacionais na elaboração de uma identidade comum, mas plural. Enfim, uma identidade que dê conta do próprio lema da União, Unida na diversidade.

Agradecimentos: Agradeço a Pedro Paulo Abreu Funari (Unicamp), Norberto Luís Guarinello (USP), Laurent Olivier (Université de Paris I – Sorbonne) e Jair Batista da Silva (Unicamp) as importantes considerações a respeito deste texto. A responsabilidade pelas idéias é, contudo, exclusivamente minha. Referências Bibliograficas ACTES DU COLLOQUE DE BREST, L’identité culturelle de l’Europe, mai, 1976. BACQ, Philippe. Nommer Dieu? Quelles valeurs fondatrices pour la constitution européenne? Revue Nouvelle, n. 1-2, t. 116, janvier-février, 2003, pp. 23-35. BOUILHET, Alexandrine. Thucydide banni d’ Europe, Le Figaro, le 16 juin 2004, p. 1. CHÂTELOT, Christophe. Un quasi-consesnsus dans les partis polonais, des ultracatholiques aux anciens communistes, Le Monde, le 22 mai 2004, p. 6 EVANS-PRITCHARD, Ambrose. Atheist premier attacks lack of Christianity in EU constitution. Matéria do jornal eletrônico Telegraph.com, de 04/06/2003, disponível no site http://www.telegraph.co.uk/news/main.jhtml?xml=/news/2003/06/04/wkwas04.xml ,acessado em 24/09/2007 FUNARI, Pedro Paulo A. Os desafios da destruição e conservação do patrimônio cultural no Brasil, Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 41, 2001, pp.23-32 GISCARD D’ESTAING, Valéry. Vite, la Constitution de l’Europe! Le Monde, le 10 juillet 2004, p. 7 (Texto extraído de um pronunciamento oficial de Valéry Giscard d’ Estaing nas Jornadas de Estudos do Grupo PPE-DE do Parlamento Europeu em 05/07/2004, em Budapest). Il Cristianesimo? Non potevo dire di più. Giscard risponde alle critiche rivoltegli dall' arcivescovo Tauran: Ci sono altre religioni, Corriere della Será, 31 maggio, 2003, p.1. SEMLYEN, Michael de, BENNETT, RICHARD. Rome et l’Union Européenne. Artigo do periódico eletrônico Source de vie, de 02/08/2004, disponível no site http://www.sourcedevie.com/html/A043-rome-europe.htm, acessado em 24/09/2007. TINCQ, Henri. Cent Mille catholiques d’Europe centrale en Autriche, Le Monde, le 22 mai 2004, p. 6.

Parte III ESTATUTO JURÍDICO E A PROTEÇÃO AOS BENS NATURAIS

O PATRIMÔNIO NATURAL NO BRASIL

Carlos Fernando de Moura Delphim

A cultura é o agente, a natureza o meio. A paisagem cultural é o resultado. Carl Sauer, 1929.

A Legislação do Patrimônio Natural A legislação de proteção do patrimônio cultural no Brasil surgiu na década de 1930, com a promulgação de um decreto-lei organizando o patrimônio histórico e artístico brasileiro e criando o conselho consultivo que delibera sobre esse patrimônio. Nessa mesma década surgiram as primeiras leis de proteção à natureza brasileira, expressas em códigos pioneiros como os códigos florestal, de Águas, de Minas e de proteção aos animais. Data da mesma década a criação dos três primeiros parques nacionais brasileiros, fortemente inspirada nos moldes norte-americanos do Parque Nacional de Yellowstone, procurando privilegiar critérios de excepcional beleza cênica e paisagística. Modernamente os parques nacionais brasileiros, sem excluir valores cênicos, enfatizam a preservação de processos ecológicos, de espécies vegetais ou animais ou de ecossistemas. A legislação estabelece que o patrimônio histórico e artístico nacional é constituído pelo conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país, cuja conservação seja de interesse público, por sua vinculação a fatos históricos memoráveis ou por apresentarem excepcional valor arqueológico, etnográfico, bibliográfico ou artístico. De forma análoga a esses bens, aos quais são equiparados, são considerados os monumentos naturais, os sítios e as paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que foram dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana. Para efetivar essa proteção, adota-se como instrumento protetor, o tombamento, que resulta de rigoroso processo técnico, legal e administrativo que culmina na inscrição do bem em quatro livros de tombo, segundo a categoria da obra: Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, Histórico, de Belas Artes e de Artes Aplicadas, podendo um bem ser inscritos em mais de um desses livros. Foi somente a Constituição Federal da República Federativa de 1988 que efiniu, de forma ampla e pormenorizada, o interesse pelo patrimônio natural e cultural do Brasil, em dois diferentes capítulos. O Capítulo sobre o Meio Ambiente trata da conservação da natureza sob um ponto de vista biológico, sendo a responsabilidade legal e administrativa pelo meio ambiente ecologicamente

equilibrado, pela preservação e restauração de processos ecológicos essenciais, pela biodiversidade e pela integridade do patrimônio genético, bem por unidades de conservação como parques nacionais e reservas ecológicas conferida a órgãos ambientais. O Capítulo da Cultura declara como patrimônio cultural brasileiro alguns conjuntos urbanos e sítios naturais, sendo a gestão atribuída a órgãos culturais. Segundo a definição de patrimônio cultural da Constituição da República Federativa do Brasil, uma das mais perfeitas e abrangentes em todo o mundo: “constituem o patrimônio cultural brasileiro, os bens, de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”. No início dos anos oitenta é sancionada uma lei criando a Política Nacional do Meio Ambiente, lei que orienta todas as formas subseqüentes de dispositivos legais que tratam da questão ambiental que, de modo geral passarão a apresentar dispositivos específicos para a preservação do patrimônio natural, muitos dos quais ainda mais rigorosos do que a proteção conferida pelas leis culturais. Infelizmente, o mesmo não ocorreu com a legislação cultural que até hoje não dispõe uma de Política Nacional do Patrimônio Cultural nem de um respectivo Sistema Nacional do Patrimônio Cultural visando à implantação efetiva dos deveres constitucionais de proteção e promoção do patrimônio cultural brasileiro. É imprescindível uma política pública claramente voltada para a promoção e defesa do patrimônio cultural brasileiro, incluindo a regulamentação, mediante instrumentos específicos para gestão do patrimônio.

O Patrimônio Natural Duas posturas justificam as ações de preservação do patrimônio natural. A primeira, de cunho ético, fundamenta-se em um imprescindível valor humano, o respeito e a solidariedade que o homem, única criatura capaz de conhecer e compreender os fenômenos materiais e imateriais do universo, deve a todos os seres que o rodeiam, sobretudo às diferentes formas de vida com as quais compartilha o espaço e o tempo. A segunda, de cunho pragmático, origina-se do interesse e dependência do homem pelos recursos da natureza sem os quais não pode subsistir. A preservação dos recursos naturais assegura ao homem a possível fruição desses bens, mesmo que ainda não conheça suas possíveis formas de utilização.

Ambas as posturas se fundamentam em questões culturais. Os organismos e instituições da área ambiental dedicam-se prioritariamente a aspectos físicos e biológicos da natureza. Os órgãos culturais defendem o que é característico de cada grupo social. A pluralidade cultural constitui um patrimônio tão rico quanto a diversidade genética. A luta contra a uniformização cultural é tão importante quanto a proteção de paisagens ou de espécies vegetais e animais. A preservação do patrimônio natural propicia excelente exercício de integração entre os elementos físicos e biológicos da natureza, os sistemas que estabelecem entre si e com as ações humanas. Fornece chaves para a proteção sinérgica de sítios e formações naturais significativas, em conjunto e harmonia com comunidades de plantas, animais e seres humanos, sobretudo com a cultura que cada grupo estabelece em relação à natureza, aos significados religiosos, míticos, legendários, históricos, artísticos, simbólicos, afetivos e tantos outros que podem ser conferidos pelo homem. É na natureza que se encontram todas as fontes materiais e imateriais da produção cultural. É a natureza que fornece a matéria prima e a inspiração para a arte, literatura, música e outras formas de expressão cultural. Operações de preservação do patrimônio cultural como a restauração dependem também de recursos da natureza que devem ser também protegidos. Bens móveis e edificados não podem ser restaurados ou conservados sem a disponibilidade de materiais como pedras, madeiras, pigmentos naturais. No caso de certos bens, como por exemplo, a arte plumária, o desaparecimento de espécies animais impedirá, no futuro, que possam ser restaurados. A valorização do patrimônio cultural depende necessariamente do grau de conhecimento que se tem de suas inúmeras e diversificadas formas de utilização. Sua preservação, da consciência e do orgulho com que os grupos sociais o amparam e guardam como elemento da própria identidade.

A Paisagem O conceito de paisagem é um conceito sintético. Resulta de um somatório de diferentes elementos, das formas como se inter-relacionam, de informações complexas, de inúmeras formas de percepção isoladas, de visões analíticas que resultam em uma configuração maior, que é a paisagem. Envolve questões físicas, atuais ou pretéritas, a gênese de aspectos como a formação geológica e geomorfológica, a diversidade de formas de relevo, a compartimentação geográfica e hidrológica, registros de acontecimentos paleoclimáticos e vegetacionais de capital importância para o conhecimento da história do planeta, marcas deixadas por povos pré-históricos, as formas atuais de

relevo, hidrografia, flora e fauna e, em maior ou menor grau, os efeitos provocados pelas ações do homem moderno. Na paisagem cultural, o constante processo de envolvimento do meio físico e biológico com o homem tornam o conceito ainda mais complexo do que em uma paisagem em estágio primitivo, selvagem. Na consideração constitucional do patrimônio cultural em duas dimensões, a material e a imaterial, a dimensão imaterial avalia as formas de utilização de recursos, formas de expressão, modos de criar, fazer e viver que distinguem cada grupo social e que também constituem a singularidade da paisagem cultural. Questões humanas peculiares, determinam ou condicionam a paisagem, constituindo uma unidade singular e infinitamente mais rica, sendo tão dignas de registro e proteção quanto a flora, a fauna, o patrimônio edificado. A cultura brasileira apresenta grande pluralidade de fatores em sua formação. Desde tempos préhistóricos, os diferentes povos que ocuparam esses territórios legaram uma infinidade de testemunhos, preservados em sítios arqueológicos. Até os tempos modernos, os mais diversos grupos étnicos continuam transformando a face do país. A questão étnica, de fundamental importância na análise da paisagem é também reconhecida pela Constituição que determina a preservação de sítios detentores de referências históricas da cultura negra, entre os quais se incluem os remanescentes de assentamentos chamados “quilombos”, as rotas da escravidão e os cemitérios de escravos. O valor de uma paisagem cultural decorre de sua função e da capacidade de reter marcas e registros antrópicos, inclusive de atividades pretéritas. O homem é um dos elementos de valor na paisagem, muitas vezes o principal. Sob a ótica cultural, a leitura e a compreensão da paisagem não se limita ao espaço. É também temporal. A paisagem testemunha e preserva dados de épocas passadas, sob os pontos de vista geológico, paleontológico e arqueológico. A observação da paisagem informa sobre processos de formação do planeta, da vida, da humanidade. Testemunha a aventura do homem pelo planeta, suas atividades e esforços para sobreviver e habitar este mundo, as diferentes formas como logra adaptar-se ao ambiente, impondo-lhe suas necessidades e exigências. Qualquer marca que o homem introduza na paisagem significa uma modificação para sempre, um novo significado, um diferente valor cultural. Às transformações da cultura correspondem outras recíprocas alterações. Técnicas materiais, crenças religiosas e ideológicas perpassam cada paisagem. Mesmo quando desconhecidas pelo homem, mesmo nas que nunca pisou, a marca indireta de suas ações já se fazem sentir. A paisagem é uma chave para a compreensão do mundo, de seu passado, presente e futuro.

A paisagem cultural testemunha diferentes fases de uma indissociável relação da história humana. Antes da vinda do europeu, o homem pré-cabralino que habitava o Brasil tinha, de forma geral, ocupado os mesmos sítios eleitos pelo europeu para instalação de suas cidades. Os critérios que levam o homem atual a eleger um sítio para viver são os mesmos que conduziram os grupos préhistóricos que aí se instalaram. Disponibilidade de recursos materiais como água, solos, alimentos e clima e valores imateriais como a beleza, o significado mítico e sagrado de um lugar. Os limites entre a paisagem natural e a paisagem resultante da ação humana tornam-se cada dia menos evidentes. Paisagens tidas como produto da natureza, após acurados estudos, revelam-se conseqüência de ações antrópicas. É o caso de monoculturas de algumas árvores frutíferas nascidas ao longo de vales e rios de forma aparentemente espontânea mas que, após estudos mais aprofundados, verifica-se tratar de sementes utilizadas na alimentação de povos nômades préhistóricos, dispersas ao longo de suas rotas migratórias. Na Amazônia, solos de enorme fertilidade chamados de “terra preta”, são importantes sítios arqueológicos. No Pará, ilhas de vegetação irrompem no ecossistema dos cerrados e foram, durante muito tempo, tidas como formações florestais naturais. O inventário botânico desses bosques revelou a sutil existência de índices constantes e similares, em cada ilha, de diferentes plantas com diferentes formas de utilização. Em cada ilha verificava-se a mesma percentagem de diferentes plantas com finalidades mágicas, ritualísticas e com utilidades econômicas, utilizadas pela tribo indígena que habitava a região. Tratava-se de plantios intencionais e organizados de forma muito bem planejada pelas tribos aparentando, contudo, serem espécimes nativos. Em todas belas paisagens há evidências arqueológicas de sítios onde o homem viveu, morou e erigiu sua cultura. Por vezes, a paisagem é a única forma, único testemunho e meio de transmissão de uma cultura, sobretudo de culturas desaparecidas. O homem pré-histórico sentia a mesma emoção estética diante de um quadro natural excepcional experimentada pelo homem moderno, estabelecendo valores que constituem a herança de uma sociedade. Valores físicos e materiais como o clima, água, solos, fauna, flora ou imateriais, como a fruição da beleza, o respeito e a adoração pelos elementos naturais, são permanentes.

Paisagens Arqueológicas Um sítio arqueológico é uma abstração apenas compreendida pelos arqueólogos e especialistas. Para um leigo é incompreensível que uma quadra reticulada seja objeto de proteção por leis tão rigorosas

enquanto a paisagem circundante, onde existem todos os elementos que permitiram a ereção daquela cultura, fiquem à mercê de ações desfiguradoras e destruidoras. A gestão do patrimônio arqueológico deve estender-se ao ambiente circundante e contar, para isto, com legislação de entorno de sítio arqueológico semelhante a que existe para monumentos e sítios urbanos, dispensando-se às paisagens arqueológicas expressivas a mesma atenção que que a lei confere aos sítios e peças arqueológicas. A arqueologia possui duas vertentes, uma material e outra imaterial. A primeira, constituída pelo sítio e pelos artefatos arqueológicos. A segunda pelas informações históricas e científicas que o sítio pode fornecer. A técnica tradicional de pesquisa e prospeção de sítios arqueológicos é de tal forma rudimentar que acaba por resultar na destruição de todo o terreno pesquisado. Já que a informação extraída de um sítio arqueológico destrói e substitui o elemento material, deve-se exigir que uma pesquisa seja feita da forma mais completa possível. Sendo o sítio é exaurido materialmente, a esta exaustão deve corresponder o maior, mais vasto e completo número de informações possível. Por isto a pesquisa nunca deveria ser atribuição exclusiva de um só arqueólogo mas incluir, na medida do possível outros profissionais, uma equipe que conte com antropólogos, zoólogos, botânicos, paisagistas e outras disciplinas que permitam um trabalho multidisciplinar por excelência. A necessidade de escavações do terreno, destrói todos os testemunhos materiais que ela contém. Por isto, as pesquisas que tratam terra como a geologia, a paleontologia e a arqueologia são comparadas a um livro cujas páginas vão sendo destruídas à medida em que são lidas. Quando uma camada de terra é retirada, tudo o que não foi transcrito está irremediavelmente perdido e o rico patrimônio material é comumente substituído por parcas e insuficientes informações. Muitas vezes, um único leitor tem acesso às páginas originais, um só profissional encarrega-se de sua leitura. Mesmo que, no caso da arqueologia, seja exigida a preservação de uma certa percentagem do sítio, sob a denominação de bloco-testemunho, as autorizações para pesquisa em sítios de excepcional potencial de informações só deveriam ser concedidas em casos extremos. A cada dia evoluem novas formas tecnológicas de leitura e prospeção de sítios, sem intervenções físicas tão drásticas como a escavação. Cada sítio arqueológico é, de certa forma, um patrimônio de toda a humanidade.

A Proteção da Paisagem Paisagens protegidas como patrimônio cultural, aparentemente estáveis, congregam múltiplos e dinâmicos processos, dimensões e valores materiais e imateriais que, a cada instante, se apresentam

e se reorganizam em novas e diferentes configurações. Nos intricados meandros de um sítio de valor natural e cultural, o conceito de patrimônio apresenta uma móvel e coalescente pluralidade que, para ser entendida em profundidade, não pode ser percebida sob um só ponto de vista. A visão de especialistas em patrimônio cultural como museólogos, restauradores de bens móveis e integrados, arquitetos, arqueólogos, por convergir no bem no qual intervêm, deve ser ampliada e a tarefa de preservar complementada por disciplinas e profissionais de percepção do mundo físico mais ampla e abrangente, como geógrafos, antropólogos, paisagistas e outros especialistas em paisagem natural e cultural. O Brasil, como signatário da Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural de 1972, tem o compromisso ético de preservar os bens inscritos na lista do Patrimônio Mundial. No caso de paisagens culturais, ressente-se da inexistência de uma legislação específica que, inclusive, corresponda aos critérios da Unesco. À falta dessa legislação, utilizam-se duas formas de instrumento legal. Paisagens com funções preponderantemente ecológicas são protegidas pela legislação de conservação da natureza, sob atribuição de órgãos ambientais. Paisagens de predominante valor histórico e cultural adotam a mesma legislação utilizada na proteção de bens móveis, edificados e centros históricos urbanos. Com isto, a Unesco tem dois tipos de responsabilidade institucional no Brasil ao tratar do Patrimônio Mundial, o órgão ambiental e o órgão culturais federal, havendo sítios mistos nos quais os dois devem ser ouvidos.

Paisagens Brasileiras A magnitude e a ausência de compartimentação do espaço territorial brasileiro favorecem uma infinidade de feições paisagísticas e elimina fronteiras políticas entre os estados brasileiros e também entre os países americanos. O Brasil compartilha, com os países limítrofes muitas paisagens comuns e constitui com todos os países americanos, um só continente. As paisagens notáveis do Brasil distribuem-se por grandes domínios paisagísticos que incluem regiões florestadas da Amazônia, chapadões do Brasil central, o semi-árido do Nordeste, morros florestados ao longo do litoral e, no Sul, planaltos onde ocorrem matas de araucárias e grandes pradarias. Cada um desses domínios é rico em sítios e panoramas peculiares, do mais elevado valor estético e cultural, segundo a relevância dos diferentes componentes físicos e biológicos que apresentam. Embora não resultem da ação do homem sobre o ambiente natural, há paisagens de enorme interesse

estético e científico, repositórios de informações e significados que apenas o ser humano pode decifrar. Dessas, apenas uma pequena fração é conhecida ou protegida. A preservação desse patrimônio comumente esbarra em interesses econômicos. A descoberta de muitos sítios de valor ocorre em jazidas minerais, quando já se encontram em adiantado processo de exploração. Há sítios de importância geológica, geomorfológica, sedimentológica, ígnea, terrestre, ou marinha. Panoramas fantásticos como um planalto entremeado por gigantescos monólitos com as mais variadas formas de animais ou de complexas edificações. Relevos ruiniformes com formações de objetos e outras figuras, vistas oníricas, como um vale de cachoeiras petrificadas ao longo de rios de águas perfeitamente puras e hialinas. Monumentos naturais como rios de água quente, picos. canyons, pseudo-fjords, gargantas pluviais, escarpamentos e furnas, muitos com testemunhos de processos erosionais e registros do arcabouço litoestratigráfico do planeta. Organizações públicas e privadas promovem a identificação e inventário desses sítios, sobretudo os de valor espeleológicos. Em um país onde predominam grutas e cavernas de formação cárstica, há exceções como a maior caverna quartzítica do mundo ou uma rara caverna de arenito. No profundo silêncio das entranhas do planeta é possível vislumbrar paisagens de indescritível beleza. Rios e lagos subterrâneos de águas cristalinas, de cor profundamente azul. Praias, canyons, abismos e abóbadas com domos e clarabóias naturais que iluminam e permitem a contemplação de precipícios com mais de cem metros de altura e largura. Em alguns desses cenários grandiosos já se registra a ocupação humana com datações de até doze mil anos. Mudanças pretéritas no clima terrestre foram preservadas em testemunhos existentes em sítios paleoambientais. A gênese e a evolução da vida planetária, em sítios paleobiológicos. Inusitados sítios paleontológicos contêm registros paleobotânicos como algumas das mais importantes florestas petrificadas do planeta, depósitos e afloramentos de fósseis vegetais e animais ou mesmo aspectos de suas vidas cotidianas como pegadas petrificadas de megafósseis. Há também sítios de importância interplanetária como as estruturas resultantes do impacto de asteróides com a superfície da Terra, ocorridas em fases iniciais da história geológica. São os astroblemas, processo dominante e comum a corpos planetários de todo o sistema solar, inclusive a Terra. Dos onze astroblemas existentes na América Latina, oito estão em território brasileiro. O maior e mais antigo da América do Sul, resulta de um corpo celeste que no Cretáceo penetrou a crosta terrestre a uma profundidade de 2.400m, soerguendo o núcleo central da cratera que resultou do impacto e criando, no Brasil Central, uma bacia de 40km de diâmetro, uma paisagem peculiar, de

origem extraterrestre, com forma elíptica, com cristas e elevações anelares circuncêntricas contendo vales, colinas, faixas de depressões e até mesmo uma cidade.

A História da Paisagem Além da leitura geológica, paleontológica e arqueológica da paisagem brasileira, sua compreensão exige constantes consultas ao rico material bibliográfico e iconográfico constituído por livros, textos, desenhos, gravuras e pinturas sobre o Brasil. Antes do século XIX predominam poucos relatos que nem sempre se referem à natureza e à paisagem, predominando testemunhos de fatos históricos e questões antropológicas. As cartas de Américo Vespúcio são o documento oficial que inaugura a série de relatos de cronistas e viajantes que enriquecer o registro de informações sobre o Brasil. Américo Vespúcio teria antecedido a presença dos portugueses no Brasil. Em uma de suas viagens à América, o florentino teria conhecido o litoral do Nordeste, cujas praias comparou ao próprio paraíso terrestre. A esquadra do descobridor do Brasil, Pedro Álvares Cabral, produziu o primeiro e um dos mais valiosos textos que chegaram até nossos dias, a Carta de Pero Vaz de Caminha, que descreve o exato momento do desembarque em um mundo ainda perfeitamente virgem e casto. “Neste mesmo dia, à hora de véspera, avistamos terra! Primeiramente um grande monte, muito alto e redondo; depois, outras serras mais baixas, da parte sul em relação ao monte e, mais, terra chã. Com grandes arvoredos. Ao monte alto o Capitão deu o nome de Monte Pascoal; e à terra, Terra de Santa Cruz.” O desembarque consolidou o intercâmbio entre os dois mundos e as duas culturas. O português espanta-se com o “arvoredo que é tanto e tamanho, e tão basto e tanta quantidade de folhagem que não se pôde calcular”. O índio, que desconhecia a propriedade privada, vivendo da extração imediata de recursos da natureza, revela-se puro e indefeso como uma criança. A chegada do branco é comparável à penetração de um vírus maléfico em um organismo sadio e equilibrado cujo sistema imunológico não se acha provido de anticorpos para enfrentar os efeitos da contaminação. Se bem que, inicialmente, os portugueses se mostrem gentis com o nativo, a relação só irá revelar os sintomas mais graves mais tarde, vindo a culminar emtempos modernos, culminando na destruição de quase todo o revestimento vegetal do país, na extinção de espécies da flora e fauna, no extermínio de nações inteiras do habitante original do Brasil. A suposta população de 1 a 5 milhões de indígenas em 1500, foi reduzida a uns 200 a 300 mil, com direitos legais mas não efetivos a apenas um décimo do território que outrora ocuparam.

Muitos relatos dos viajantes dos dois primeiros séculos da História do Brasil eram de padres jesuítas descrevendo a luta pela catequese de um povo inculto, sem maiores referências à natureza. Alguns autores portugueses falam deste paraíso, como Tomé de Sousa, Pero Lopes de Sousa, Gabriel Soares de Sousa, Pero de Magalhães Gandavo. O padre Fernão Cardim foi o autor de um tratado a respeito “Do clima e terra do Brasil e de algumas coisas notáveis que se acham assim na terra como no mar”. Em 1650, Simão de Vasconcelos afirmou: “tem a verdura das ervas e arvoredos do Brasil engraçadamente as bondades seguintes. Enfeita a terra, alegra a vista, recreia o cheiro, sustenta o gado, cura os homens, engrandece os edifícios, farta os famintos, enriquece os pobres: não sei mais bondade houvesse nas da primeira criação”. Ao conquistador português não bastava o conhecimento dos mares e do litoral iniciado no século XVI e materializado em cartas representando o contorno dos continentes e rotas marítimas. Era necessário aprofundar-se pelo interior, afirmar a conquista das novas terras, colonizá-las, impedir que outras nações tomassem conhecimento de riquezas que, com certeza, iriam despertar seu interesse. Coube a brasileiros como Alexandre Rodrigues Ferreira e Frei Veloso a tarefa inicial de estudar a riqueza da nossa flora e fauna. O primeiro, naturalista baiano doutorado pela Universidade de Coimbra e membro da Real Academia de Ciências de Lisboa, foi nomeado, em princípios de 1783, no reinado de Dona Maria I, para empreender a Viagem Filosófica pelas Capitanias do GrãoPará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, título de sua avantajada obra. Recebeu a missão de embrenhar-se pelo interior do país, recolher e aprontar todos os produtos dos três reinos da natureza que pudesse encontrar, remetendo-os, junto com suas próprias observações filosóficas e políticas, ao Real Museu de Lisboa. Muitas informações são de grande interesse como, por exemplo a existência de um arroz selvagem que vicejava espontaneamente e era cultivado na região de Vila Bela, em Mato Grosso. Frei José Mariano da Conceição Veloso, mineiro de São João del Rei não teve oportunidade de estudar em Lisboa nem de aventurar-se a outras províncias brasileiras. Trazido de uma aldeia indígena São Paulo para o Rio de Janeiro, comprovou ao perspicaz vice-rei habilidade em procurar e descobrir novas espécies de “plantas virtuosas para a História Natural,”. Foi encarregado de atender à Metrópole que solicitava o envio do maior número possível de ervas da Colônia e de informações sobre suas virtudes, dedicando-se com o maior afinco às ciências naturais do que à teologia. Empreendeu uma Expedição Botânica simultânea à de Alexandre Rodrigues Ferreira, conquanto dentro de limites muito mais estreitos, que não ultrapassavam o estado do Rio de Janeiro. Durante cinco anos realizou o importante trabalho de elaborar uma Flora Fluminensis, com mais de

3.000 originais de pranchas ilustradas, que o Imperador. D. Pedro I, convicto da importância do trabalho, fez enviar a Paris para serem impressos. Frei Veloso escreveu também sobre plantas, pássaros e horticultura. Malgrado o impedimento que Portugal impunha à entrada de estrangeiros no país, o que só cessou após a vinda de D. João VI e a conseqüente abertura dos portos a outras nações, o Brasil quinhentista e seiscentista foi também visitado por alguns estrangeiros que registraram importantes testemunhos sobre a aurora de nossa história. Dentre esses poucos visitantes citem-se os nomes de Hans Staden, André Thevet, Jean de Léry, Ulrich Schmidel, Yves d’Evreux, Claude d’Abbeville e um padre toscano, Giovanni Antonio Andreoni que, camuflado sob o criptônimo de Antonil, publicou Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas. Dentre esses primeiros cronistas não portugueses destaca-se a figura quase lendária de um arcabuzeiro alemão, Hans Staden, autor de Duas Viagens ao Brasil que inclui, além de pequeno e encantador relatório ilustrado sobre a vida e os costumes antropológicos do Brasil no século XVI, breves e rudimentares descrições de espécies zoológicas e botânicas. André Thevet, cosmógrafo do rei francês, autor da obra Singularidades da França Antártica, tratou de costumes, doenças, bestas raras e diferentes. A descrição e ilustração dos animais obedeciam a critérios fantásticos e pouco realistas. A ilustração privilegiava o aspecto fantástico, fazendo lembrar os bestiários, obras da iconografia medieval nos quais o ilustrador retratava um animal, segundo informações orais de quem o descrevia, sem definir os limites entre o animal existente ou um monstro irreal. O sapateiro e estudioso de teologia calvinista Jean de Léry publicou em 1580 uma narrativa de uma viagem feita à terra do Brasil ilustrada com gravuras em madeira. O texto original foi logo traduzido para o alemão, holandês e latim, idioma oficial no mundo ocidental quinhentista. Outro francês, Jean de Léry cita o comentário de um índio sobre a ganância dos franceses pelo paubrasil, logo que se apercebe da estranha voracidade dos brancos pelos recursos da natureza, argumentos muito semelhantes aos dos peles-vermelhas norte-americanos cujas cartas tiveram ampla divulgação no mundo:

“vós outros sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos como dizeis quando aqui chegais e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos

certos de que, depois de nossa morte, a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isto descansamos sem maiores cuidados”.

As atividades de investigação científica no Brasil intensificam-se no século XIX. O país é oficialmente inaugurado pela Corte Portuguesa e passa da condição de colônia para Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarve. Intensifica-se o vaivém de um número crescente de viajantes que, financiados pela realeza européia, cumpriam, por um lado, atribuições acadêmicas e papéis de cientistas e, por outro, eram informalmente encarregados de funções políticas bastante sutis, como representantes diplomáticos dos futuros interesses comerciais que seriam despertados por suas descobertas. Novos relatos de viagens vão sendo produzidos, na sua maior parte, assinados por naturalistas atraídos pela imagem de paraíso tropical de um país com a natureza ainda virgem e intacta. Os nomes mais conhecidos e de leitura mais fácil e agradável são Spitz e Martius; Auguste Saint-Hilaire; Maximiliano, príncipe de Wied-Neuwied; Johann Emanuel Pohl; Friedrich Sellow, o Dr. Lund; Warming; George Gardner; Langsdorff; o mineralogista Eschwege; Thomas Ewbank; Carl Seidler; Louis e Elizabeth Cary Agassis; Charles James Fox Bunbury; Richard Burton; Charles Ribeirolles; Hermann Burmeister; Mary Graham, Ferdinand Denis. A obra de Spitz e Martius assume a mesma importância em relação ao Brasil que a de Humbolt para a América Central e Meridional pelo valor dos estudos e registros efetuados e pela forma como repercutiu na Europa, atraindo o interesse e a atenção do mundo para a natureza tropical. Como resultado das viagens desses dois naturalistas, o Brasil pôde identificar e conhecer o verdadeiro valor de seus recursos naturais e culturais. A expedição do zoólogo Spitz e do botânico Martius foi organizada por motivos políticos pelo rei Maximiliano da Áustria que resolveu anexar à comitiva real encarregada de trazer ao Brasil a arquiduquesa Leopoldina, futura consorte de D. Pedro I, uma comissão com o propósito de estudar a História Natural do país. Ao chegar, extasiam-se com o panorama tropical descortinado da Baía da Guanabara.

À direita e à esquerda, elevam-se como portões da baía, escarpados rochedos, banhados pelas vagas do mar; o que domina ao sul, o Pão de Açúcar, é um conhecido marco para os navios afastados. Depois do meio dia alcançamos, aproximando-nos cada vez mais do mágico panorama, os colossais portões de rocha, e finalmente por eles entramos no vasto anfiteatro, onde o espelho do mar reluzia como sossegado lago; onde espalhadas em labirinto, ilhas olorosas verdejavam, limitadas no fundo por uma serra coberta de matas, como jardim paradisíaco de exuberância e magnificência.

É exatamente a exuberância e a magnificência que irão deslumbrá-los, quando se adentrarem nas matas e montanhas, por mais inacessíveis que sejam, coletando, descrevendo e desenhando as mais diferentes e espetaculares espécies. As condições dessas viagens, sobretudo para jovens europeus recém formados e acostumados ao conforto de grandes cidades tornam seus feitos ainda mais heróicos. Viajando sobre o lombo de animais ou em canoas, dormindo em barracas, passando até pela falta de água e alimentos, sendo picados por insetos, atingidos por febres que quase lhes levam a vida, sem mobiliário para dormir, herborizar, taxidermizar, escrever e desenhar, produziram uma obra ciclópica, a Flora Brasiliensis, com 46 volumes in folio. Base de toda a botânica sistemática brasileira, a Flora Brasiliensis levou 66 anos para ser concluída. São 1.100 desenhos, tratando de umas 10.000 descrições de espécies vegetais, das quais 5.939 até então desconhecidas pela ciência. Spitz e Martius produziram o primeiro mapa fitogeográfico brasileiro. Coletaram milhares de plantas das quais prepararam exsicatas para os herbários reais de Viena. Além disso, organizaram coleções etnográficas, mineralógicas, e zoológicas, esta com 85 mamíferos, 350 aves, 130 anfíbios, 116 peixes, 2.700 insetos, com indicações precisas sobre os locais onde foram coletadas. Outro viajante de agradável leitura é Maximiliano, príncipe de Wied-Neuwied que constatou que “até agora a natureza realizou mais pelo Brasil do que o homem”. Paisagens descritas por Maximiliano, como as luxuriantes florestas do Rio Doce, de árvores colossais e povoadas por uma infinidade de animais, foram quase totalmente destruídas, a vegetação transformada em carvão, a fauna dizimada e muitas espécies extintas. O médico, mineralogista e botânico Johann Emanuel Pohl compunha a Missão Austríaca que veio ao Brasil para o casamento de D. Pedro I com a Princesa Leopoldina. Seu diário de viagem é um dos mais valiosos documentos sobre a fase que antecedeu a independência nacional. O dinamarquês Dr. Peter Wilhelm Lund, desde 1835 até sua morte em 1880, pesquisou e explorou de forma científica e exaustiva, grutas e cavernas da região de Lagoa Santa. O abundante material paleontológico e arqueológico coletado trouxe muitas revelações sobre a biologia e a antropologia de tempos pretéritos. Estudos sobre fósseis e sobre o chamado Homem de Lagoa Santa vieram enriquecer as parcas informações sobre a geologia e a pré-história brasileira. Atraído pelos aspectos peculiares da vegetação de cerrado dos campos rupestres, Lund desejou aprofundar seus conhecimentos, convidando Eugene Warming para trabalhar a seu lado, complementando seus estudos. O livro Lagoa Santa de Warming é considerado obra pioneira de ecologia. De forma

diferente da visão analítica de outros botânicos estudava todas os diferentes componentes dos meios físico, biológico e humano e as relações entre cada um, em vanguardista concepção sistêmica. Warming, pela primeira vez, chamou a atenção para a importância e singularidade do cerrado, até então considerado sem nenhuma importância. O inglês George Gardner identificou muitas espécies novas de animais No Ceará ainda se pode encontrar, quase intactos e como foram descritos, lugares descritos por Gardner. Dentre os importantes investigadores da natureza brasileira, destaca-se o barão Grigory Ivanovitch von Langsdorff, de nacionalidade alemã, médico, botânico, zoólogo, antropólogo, filólogo, navegador, membro da Imperial Academia de Ciências da Rússia e cônsul-geral daquele país no Rio de Janeiro. Organizou uma expedição pelo Brasil, cujo percurso iria atingir lugares que ainda não haviam sido visitados por outros estudiosos. O roteiro de viagem de Langsdorff deve ter sido definido levando em conta lugares as mais remotas e desconhecidas regiões. Abrange os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, o Centro-Oeste e a Amazônia. Enfrentando as mais adversas condições, a expedição percorreu mais de 16.000 quilômetros, tendo recolhido coleções etnográficas com mais de 100 peças de arte indígena, vasto material botânico, reunido em um herbário com mais de 100 mil exemplares de nossa flora e uma coleção de animais composta por mamíferos, répteis, peixes e pássaros empalhados. Foram produzidas centenas de cartas geográficas do território brasileiro e um arquivo com mais de mil páginas, com toda sorte de manuscritos contendo informações sobre geografia física e econômica, geobotânica, geozoologia, economia, estatística, história, lingüística, mineralogia, toponímia e outros ramos da ciência, além de dados sobre mais de 500 localidades, incluindo grandes cidades, povoações, fazendas, postos alfandegários e minas, tratando de suas formas de produção e comércio e das diferentes composições étnicas. Auguste de Saint-Hilaire foi designado para vir ao Brasil integrando a comitiva do Conde de Luxemburgo, incumbido de efetuar estudos sobre a natureza do país. Aqui permaneceu por seis anos, cumprindo o objetivo de estudar produtos vegetais e registrar todos os fatos que presenciava pelas mais longínquas paragens. Viajando no lombo de burros, dormia em barracas e cabanas, enfrentava picadas de insetos e contraiu febres. Visitou vasta extensão do Império do Brasil, cerca de 2.500 léguas, a partir do Rio de Janeiro de onde prosseguiu para as províncias de Minas Gerais, Espírito Santo, Goiás, Paraná Santa Catarina e Rio Grande do Sul, aventurando-se até a República Cisplatina, onde testemunhou o que ainda restava das missões jesuíticas à margem esquerda do Rio Uruguai. Sob o ponto de vista literário Saint-Hilaire legou uma das mais envolventes e deliciosas leituras sobre assuntos brasileiros na qual registrava as experiências em um diário que incorpora

informações históricas, geográficas e estatísticas de outros autores. Chamando a atenção para a forma como se conduziam os moradores do país, denunciaram erros cometidos contra a Natureza, alertando para resultados que acabaram por acontecer, o que confere a sua obra importância quase profética. O zoólogo suíço Louis Agassis, chefiou a expedição científica norte-americana que percorreu o Brasil desde o Rio de Janeiro até as fronteiras com o Peru. Sua obra descreve a mata amazônica, a recordação de cenas que provavelmente nunca mais veremos. A floresta está muito mais rica em flores do que quando a percorri pela primeira vez seus pitorescos caminhos. As passifloras são, sobretudo abundantes. Há uma espécie cujo perfume lembra o do jasmim-do-cabo; esconde-se na sombra, mas é traída pelo perfume e, afastando-se os galhos, encontram-se, por certo suas grandes flores purpúreas e brancas, as folhas espessas e o caule escuro serpenteando sobre um tronco vizinho.

Maria Graham, senhora inglesa de apurada educação e com pendores artísticos para o desenho, opina, de forma não erudita, mas nem por isto menos rica, sobre peculiaridades da paisagem, da vida, dos costumes e da história brasileira da qual testemunhou momentos conflituosos. Ao chegar ao Rio, surpreende-se com a beleza da paisagem da Guanabara:

(...) nada do que vi até agora é comparável em beleza à baía. Nápoles, o Firth of Forth, o porto de Bombaim e Tricomalee, cada um dos quais julgava perfeito em seu gênero de beleza, todos lhe devem render preito porque esta baía excede em cada uma das outras em seus vários aspectos. Altas montanhas, rochedos como colunas superpostas, florestas luxuriantes, ilhas de flores brilhantes, margens de verdura, tudo misturado com construções brancas, cada pequena eminência coroada com sua igreja ou fortaleza, navios ancorados, ou em movimento, e inúmeros barcos movimentando-se em tão delicioso clima, tudo isso se reúne para tornar o Rio de Janeiro a cena mais encantadora que a imaginação pode conceber.

Tão importantes quanto esses escritos são as imagens produzidas por artistas europeus que visitaram o Brasil no século XIX e que legaram uma obra gráfica registrando os lugares que percorriam. João Maurício, o Conde de Nassau, patrocinou a obra cartográfica de Barlaeus e telas da melhor qualidade artística registrando os tipos humanos, a flora, a fauna e a paisagem nordestina, de autoria de Franz Post e Albert Eckout. Legou-nos também textos científicos que despertaram enorme interesse na Europa como uma História Natural do Brasil Ilustrada “na qual se descrevem, não só as plantas e os animais, mas também as doenças, engenhos e costumes dos indígenas e ilustrado com mais de quinhentas figuras ” de Guilherme Piso, e uma História das coisas naturais do Brasil, obra

na qual, “durante suas excursões pelo Brasil, compôs com grande esforço, descreveu detalhadamente, com figuras por ele próprio desenhadas ao vivo, os nomes usados pelos indígenas, ou por ele impostos consoante as conveniências, o estudo das propriedades, na medida do possível, tudo reunido nesta história, para uso dos estudiosos e admiradores da Ciência Natural”, de autoria de Jorge Marcgrave de Liebstad. O século XIX foi retratado por artistas europeus como Johann Moritz Rugendas, Thomas Ender, Eduard Hildebrandt, Charles Landseer Jean Baptiste Debret, Johann Moritz Rugendas, Hercules Florence e Amadeu Adrian Taunay. Os textos dos viajantes detêm-se na descrição de plantas e de animais, nem sempre descrevendo as paisagens em seu aspecto mais amplo. A obra dos artistas plásticos encarrega-se de corrigir esta lacuna já que o registro dos panoramas foi feito com grande cuidado e precisão. Alguns fixaram cenários gigantescos em uma série de estampas que, juntadas em seqüência, reconstituíam um quadro natural de grandiosidade cênica, em uma extensão de 360º. O melhor exemplos são os desenhos de todo o conjunto da Baía de Guanabara feitos em uma série de oito vistas tomadas do alto do antigo Morro do Castelo, de autoria de William John Burchell, inglês que aportou no Rio de Janeiro em meados do ano de 1825, consideradas os mais belos panoramas circulares. Burchell desenhou de forma minuciosa e realista as paisagens brasileiras, os habitantes do país, as cidades que percorreu, interiores e fachadas de edificações, das quais reproduz os menores detalhes arquitetônicos, em um total de 257 pequenas obras primas da arte do desenho. Naturalista dotado de talento artístico sente-se tentado a trocar o estudo analítico da botânica pela visão de síntese da arte e só dedicar-se à pintura, única forma de perceber de forma sintética tamanha diversidade. Assim como a obra de Alexandre Rodrigues Ferreira, seu trabalho gráfico permaneceu ignoto dos brasileiros durante 150 anos, até ser localizado em uma biblioteca na África do Sul. O imperador D. Pedro II já era, desde menino, fotógrafo amador. Fascinado com a nova arte, acolhia e protegia fotógrafos estrangeiros que, desde a segunda metade do século XIX chegavam ao Brasil. Propiciando-lhe condições de retratar o que o país tinha de mais interessante, ensejou a formação de inigualável acervo de imagens da melhor qualidade sobre a vida e a natureza, referência obrigatória para qualquer pesquisa sobre a paisagem brasileira.

Rumos do Patrimônio Natural Parques nacionais brasileiros, atribuição de órgãos ambientais, costumam ter dimensões maiores do que as de certos países europeus. Todavia, apesar da enorme diversidade de feições naturais e a pluralidade cultural do país, é ainda pequeno o número de paisagens protegidas pela legislação cultural. Malgrado a diversidade de feições paisagísticas decorrentes das relações homem e natureza no Brasil, é pouco expressiva a ação protetora da paisagem por órgãos culturais. Uma consulta ao Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, no qual se registram os monumentos naturais, os sítios e paisagens declarados como patrimônio, revela exíguo número de bens naturais tombados. Isto não significa desinteresse órgãos por esses bens mas explica-se por uma limitação da a legislação de tombamento só contempla bens considerados excepcionais. No entanto, muitos bens que hoje são tidos como corriqueiros, amanhã serão excepcionais. A Constituição Federal recomenda que a legislação cultural busque novas formas de acautelamento e preservação do patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação. A preservação do patrimônio cultural se ressente da falta de alguns dispositivos legais para acautelamento o patrimônio natural, de forma análoga aos que vigem na legislação ambiental. Dentre as possíveis formas de legislação, seria oportuna uma lei que exigisse a adoção obrigatória de relatórios de impacto como instrumento para avaliação de propostas que afetem o patrimônio cultural. As próprias ações protetoras, como o tombamento, deveriam ser conduzidas por relatórios que avaliassem os efeitos gerais do tombamento de sítios complexos como paisagens e centros históricos urbanos. Após o tombamento, esses sítios passam a sofrer modificações que podem culminar em sua descaracterização, a maioria gerada pelo impacto do turismo. Sendo o índio tratado de forma especial por um órgão federal, é recomendável que o patrimônio de sua cultura fosse objeto de uma atenção mais concentrada por parte de órgãos culturais. O patrimônio paleontológico requer instrumentos legais e atos efetivos de defesa e salvaguarda, da mesma forma que as paisagens e o entorno de sítios arqueológicos. A preservação de paisagens culturais deve ser atribuição de órgãos culturais. Para definir o conceito e as condições de preservação da paisagem cultural, é necessário uma forma de acautelamento que corresponda aos critérios da Unesco. Iniciativas particulares de proteção a bens culturais devem ser incentivadas. A exemplo da legislação ambiental, que dispõe de uma lei na qual a vontade de

proteger do proprietário cultural é que decide criar reservas particulares de patrimônio natural, deveriam existir formas legais que permitissem a proprietários de terras com sítios de valor cultural, declará-las uma reserva cultural privada. Enquanto a legislação cultural não dispõe desse aparato legal capaz de definir condições mais precisas para a preservação do patrimônio natural sob a ótica cultural, devem ser fomentadas e postas em prática, formas de gestão compartilhada, que integrem e articulem órgãos do poder público e a coletividade. A prática de assinatura de acordos internacionais para defesa de grandes territórios com valores culturais contínuos deveria ser também empreendida por países contíguos. Da mesma forma outros países da América Latina deveriam buscar instrumentos de preservação conjunta e integrada dos valores naturais e culturais de seu patrimônio.

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“MINHA TERRA TEM PALMEIRAS”: PAISAGEM, PATRIMÔNIO E IDENTIDADE NACIONAL Gilmar Arruda

O verso de Gonçalves Dias, faz parte do famoso poema “Canção do Exílio”, foi escrito no início de sua vida de poeta no exterior, quando estudava direito em Portugal e está inserida no movimento romântico brasileiro de meados do século XIX que retomava uma tendência ufanista, de inspiração européia, a glorificação da nação através de sua natureza. Algumas das poesias produzidas nesse espírito permaneceram entre as mais populares até hoje, como a “Canção do exílio”, sempre presente nos eventos de celebração patrióticos das escolas. Em “Canção do Exílio”, a terra brasileira é exaltada sobre todas as outras por ter palmeiras, aves mais canoras, mas estrelas, mais flores, mais vida, mais amores”(CARVALHO, 1998, p.245). Esse poema fala-nos também de saudades, palmeiras, sabias, etc. Essas aves, da grande família Turdidae, com mais de 300 espécies, de origem oriental, mas que se encontram nas América há longo tempo, são encontradas até no extremo sul, a Terra do Fogo (SICK, 1984, p. 629). Sick diz que “O canto do Sabiá é exaltado em todas as regiões da terra, cada país apontando, com orgulho, a espécie mais canora de sua área, alegando ser ela superior a todas as outras. Há certa semelhança no canto dos sabiás do mundo inteiro”(idem, p. 630), que parecem ter a simpatia de todos, como Gonçalves Dias que escreveu os versos “...onde canta o sabiá”, um dos mais conhecidos no Brasil. Mas Helmut Sick, para muitos o maior ornitólogo brasileiro, afirma que “É possível, todavia que o poeta nem tenha se referido a um sabiá do gênero Turdus, mas um sabiá-da-praia, Mimus, pássaro encontrado no litoral maranhense e que pousa com freqüência sobre coqueiros”(idem, p. 631). Os sabiás sejam Turdus ou Mimus, realmente gozam de popularidade no Brasil e é considerado por muitos, especialmente o sabiá-laranjeira, Turdus rufiventris, como a “Ave Nacional”, um símbolo de identidade. Outros países, como a Suécia e Malta, possuem o sabiá como ave nacional. (idem, p. 630/631). Porém, Helmut Sick discorda dessa preferência e sugere como ave nacional o guaruba, Aratinga guarouba, pois “É evidente que, tendo esse símbolo forte cunho nacional, seria mais adequada uma espécie endêmica, exclusivamente brasileira, como é a guaruba que está entre uma das aves mais belas do Mundo, possuindo até mesmo as cores da bandeira brasileira” (idem, p. 631/632).

Quanto as palmeiras, árvore da família Arecaceae representada pelos coqueiros e palmeiras - são cerca de 205 gêneros e 2.500 espécies. É conhecida também como Palmae. Encontram-se distribuídas por quase todo o mundo, especialmente as áreas tropicais e neotropicais. No Brasil, muitas das espécies encontradas foram introduzidas, como a Livistona australis, de origem australiana, utilizada para fins ornamentais em todo o Brasil e, atualmente, tem se tornado invasora em áreas florestais. Assim como o esforço do poeta em singularizar a sua pátria, através de um sábia cantando pousado em uma palmeira que não seriam encontrados em nenhum outro lugar, a natureza têm sido usada para a construção de singularidades e identidades regionais ou nacionais em larga medida. Os exemplos são muitos e podemos citar o Estados Unidos da América com o seu wilderness, imortalizado na construção do Parque de Yosemite e através dos quadros de Albert Bierstadt (PRADO, 1999) na Argentina com os Pampas, (PASQUARE, 1996; TOURN, 2001 e 2005) ou mesmo na Catalunha entre os séculos XVI E XVII quando diversos intelectuais, através de suas leituras do entorno, acabaram por produzir uma noção de identidade para o território a partir dos elementos naturais como montanhas, vegetação ou hidrografia.(ESCAYOL, 2005). A natureza foi importante também nos processo de definição das fronteiras dos estados-nação:

A produção do imaginário territorial da nação não pode prescindir de uma fonte de legitimação poderosa: a natureza. O recurso à características e qualidades físicogeográficas do território ancora o espaço da pátria no tempo mítico, libertando-o da pesada carga de contingência e acaso do tempo histórico. A doutrina das fronteiras naturais representa o mais significativo esforço nessa direção e, também, o ponto de encontro das duas funções desempenhadas pela geografia na elaboração das identidades territoriais: a logística e cartográfica, associada ao estabelecimento material dos limites sobre o terreno, e a ideológica, associada à “fundação” imaginária do território.(MAGNOLI, 1997, p.40) Do ponto de vista da ciência, nem o sabiá nem as palmeiras, ou qualquer parque ou montanha, poderiam ser consideradas exclusividades de um determinado território nacional, porquê as nações são fenômenos recentes sobrepostos sobre a natureza. Mas a medida que são estabelecidas passam a fingir que são muito antigas, incorporando o passado remoto das eras geológicas para definir ou defender os seus limites territoriais. (HOBSBAWM, 1996, p. 285). Esse passado remoto, passado geológico, a natureza, tornou-se nos tempos contemporâneos, tempos de “ecologização” da sociedade, em patrimônio natural, patrimônio natural nacional.

A idéia de patrimônio remete, nas suas definições, a um “ bem de herança que é transmitido, segundo as leis, dos pais e das mães ao filhos(...) Esta bela e antiga palavra estava, na origem, ligada às estruturas familiares, econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no espaço e no tempo”(CHOAY, 2001, p. 11). Pode-se pensar o patrimônio, também, como define Sandra PELLEGRINI:

O patrimônio cultural se constitui de bens móveis ou imóveis e de representações assentadas em conceitos históricos, etnográficos, paisagísticos ou ambientais, que de algum modo corroboraram para a formação das identidades de etnias ou grupos sociais. Trata-se de bens que conjugam dados cognitivos, estilísticos e afetivos com os quais as comunidades se identificam (2006).

Trata-se, portanto, do artifício humano, construído pelas mãos humanas, em uma palavra, da cultura. Conforme nos ensina Hannah ARENDT:

A cultura, palavra e o conceito - são de origem romana. A palavra “cultura” origina-se de colere - cultivar, habitar, tomar conta, criar e preservar - e relaciona-se essencialmente com o trato do homem com a natureza, no sentido do amanho e da preservação da natureza até que ela se torne adequada à habitação humana. Como tal, a palavra indica uma atitude de carinhoso cuidado e se coloca em aguda oposição a todo esforço de sujeitar a natureza à dominação do homem.”(1972, p. 265) O patrimônio, a herança deixada pelas gerações anteriores, é o esforço humano para construir sua morada no mundo da natureza, o artifício que separa os homens dos animais, a sua morada no sentido atribuído por Arendt. Mas, na medida em que vivemos em um tempo da “tecnoesfera”, há muito que não mais podemos falar em uma “natureza natural”, um lugar onde o homem ainda não tenha tocado. Um mundo onde as coisas, produtos da natureza, mais e mais se transformam em objetos- artefatos, como afirma Milton SANTOS:

Voltemos, porém, à classificação mais intuitiva entre objetos e coisas, para lembrar que, hoje, e cada vez mais, os objetos tomam o lugar das coisas. No princípio, tudo eram coisas, enquanto hoje tudo tende a ser objeto, já que as próprias coisas, dádivas da natureza, quando utilizadas pelos homens a partir de um conjunto de intenções sociais, passam, também, a ser objetos. Assim a natureza se transforma em um verdadeiro sistema de objetos e não mais de coisas e, ironicamente, é o próprio movimento

ecológico que completa o processo de desnaturalização da natureza, dando a esta última um valor.”(1997, p. 52).

Nesse sentido, a existência de uma ‘paisagem natural”, suporte de um patrimônio natural, precisa ser reconsiderada, superar determinadas formas de pensamento que separava completamente os dois campos e, inclusive, alguns aspectos da perspectiva marxista: “ Na verdade, porém, a antiga distinção de um certo marxismo entre primeira natureza e segunda natureza deve, hoje, ser enxergada de modo menos rígido: a natureza já modificada pelo homem também é primeira natureza.”(SANTOS, 1997, p. 203). O espaço atual é um espaço híbrido, o que significa que devemos, para a “supremacia da evidência”, dispensar a possibilidade de uma ‘paisagem natural”. As paisagens são construções, são cultura, são artifício humano. Além disso, as noções de cultura e patrimônio encontram-se associadas à memória social, uma das formas de transmissão da cultura, e à identidade, inerente a identificação. O patrimônio, a memória, a cultura e a identidade sempre remetem a um coletivo - todos os termos envolvem o problema do “nosso”, a nossa história, a nossa memória, a nossa identidade, o nosso patrimônio. Sendo o “nosso” um atributo inerente a idéia de patrimônio, conseqüentemente faz-se necessário inquirir sobre o “de quem?” que está implícito no “nosso” patrimônio ( independentemente do adjetivo associado: cultural, arquitetônico, imaterial, natural, etc). Isto é, a qual coletivo é pertencente, a qual identidade coletiva, passada ou presente, refere-se? Dos coletivos que podemos mencionar o mais conhecido, o mais importante, o mais atuante no crescimento e ampliação dos patrimônios nos tempos contemporâneos (séc XIX e XX) é o “estado nacional moderno”, com sua história, sua geografia ( território soberano) sua soberania, sua identidade cultural, etc. O estado-nação moderno estabeleceu na sua origem, especialmente a partir do século XIX, uma ligação muito forte entre a natureza e a identidade, ou entre o território soberano e a nação. Embora tanto o Estado como a nação sejam anteriores, enquanto realidade, será o Estado Contemporâneo que delimita o território e impõe uma “ordem jurídica soberana”. A junção dessa delimitação com a idéia de nação – “consciência da unidade cultural e destino de um povo”, cuja base de distinção está na comparação e separação entre o ‘natural e o estrangeiro”, foi obra do estado-nação moderno:“Apenas o Estado-nação associou definitivamente os conceitos de povo e nação ao território, estabelecendo os vínculos de natureza abstrata - ou seja: ideológicos - entre eles”(MAGNOLI, 1997, p. 15).

A natureza, assimilada enquanto uma paisagem nacional passou a ser um elemento de distinção entre os estados soberanos modernos. Em alguns momentos, quando ela foi considerada inadequada, deveria ser reconstruída para permitir a identificação. Esse foi o caso, por exemplo, da política nazista para a paisagem, na qual a paisagem assumiu a perspectiva de raça pura, ou de “paisagem pura ariana”. Dessa forma aparece na afirmação de um dos apologistas do conceito nacionalsocialista de paisagem, Erhard Mäding, em seu livro intitulado Landespflege, (Cultivo da terra), publicado em Berlim em 1942: a configuração da paisagem torna-se uma missão cultural de importância vital na atualidade. A atividade de dar forma à paisagem ultrapassa em muito as condições de vida físicas e orgânicas. Os alemães serão o primeiro povo ocidental a imprimir na paisagem também a sua alma e assim, pela primeira vez na história da humanidade, será alcançada uma forma de vida em que um povo conscientemente autodetermina, de maneira abrangente, as condições locais de seu bem-estar físico e psíquico. (citado por GRÖNING, 2004; p.13).

Podemos ver, no exemplo extremo citado acima, como a natureza vêm sendo incorporada ao mundo da cultura, transformando-se em uma dada paisagem, em um território nacional, suporte de identificação coletiva, uma das bases do sentimento nacionalista moderno. O ‘patrimônio natural e nacional’ é uma construção datada, não está demarcado a priori: “A produção do território é o resultado do processo de configuração espacial, ou seja, é uma organização espacial determinada e sustentada por processo social que lhe reforça e conserva. Isso significa que tem característica de processo, porque possui seqüência de ciclo recorrente, repetições, regularidade e reprodução” (ESPINDOLA, 2006, p.2). Um dos aspectos que merece ser considerado na discussão sobre o patrimônio natural nacional é exatamente essa complexa relação que foi estabelecida entre o surgimento dos estados-nações modernos, do território nacional e do sentimento de pertencimento a uma dada “terra”. Essa questão é particularmente importante para os países do novo mundo que receberam milhões de migrantes entre o século XIX e o XX tendo suas ‘paisagens” nacionais reinventadas através da memória coletiva do território originário dos homens do velho continente. Para Habermas, o estado nação é uma realidade absolutamente bem sucedida no mundo contemporâneo, e a razão do sucesso desse fenômeno foi a criação de novas formas de integração social em uma conjuntura de mudança social; o período da expansão da sociedade capitalista que desmontou antigos laços de solidariedade. O sucesso dessa nova forma de integração social teria sido resultado da ativação política do povo, transformando o Estado autoritário em uma república

democrática. Mas a motivação política não ocorreu em função de princípios genéricos de direitos universais:

Para essa mobilização política, fazia-se necessária uma idéia que, para os corações e mentes das pessoas, pudesse ter um apelo mais forte do que as idéias um tanto abstratas sobre direitos humanos e soberania popular. Essa lacuna foi preenchida pela idéia moderna de nação, que foi a primeira a inspirar nos habitantes de um território comum o sentimento de pertencer a uma mesma república.(...) somente a consciência de pertencer a uma mesma nação, faz com que pessoas distantes, espalhadas por vastos territórios, sintam-se politicamente responsáveis umas pelas outras (HABERMAS, 2000, p. 301/302). A construção do sentimento de pertencimento a “mesma república” foi resultado de uma ação conjunta entre delimitação do território físico, soberano, com a construção da “paisagem nacional”, sentimento expresso, por exemplo, no verso “na minha terra tem palmeiras..” O Estado moderno, quanto a suas fronteiras físicas, teria sido uma criação de militares e diplomatas, a identidade nacional foi uma criação de jornalistas, intelectuais, literatos, historiadores e geógrafos.(idem, p. 301). Nesse processo a memória, os lugares da memória, a nossa história, o nosso patrimônio assumiu as características que conhecemos, o de legitimação de uma identidade coletiva nacional. O território nacional, uma construção de singularidade, um recorte na natureza por processos sociais, isto significa dizer históricos, torna-se assim um elemento de patrimônio, uma herança que deve ser preservada, deixada para as gerações futuras, um ponto de identificação, de identidade. Porém, devemos considerar que os processos de construção de identidades culturais, em particular, as identidades nacionais, são sempre resultantes de conflitos, de disputas por hegemonia; “Uma cultura nacional nunca foi um simples ponto de lealdade, união e identificação simbólica. Ela é também uma estrutura de poder cultural.”(HALL, 1997, p. 64). As territorialidades, os patrimônios, vistos como homogeneidades e singularidades, escondem, portanto, as disputas em torno da memória, em torno de outros “nós” suprimidos no processo de estabelecimento da identidade coletiva nacional. Existem, então, territorialidades, e não território, patrimônios e não patrimônio. As relações entre o surgimento do estado-nação e os patrimônios torna necessário discutir quais as relações estabelecidas entre a natureza e o sentimento de identidade na formação do estado-nação moderno no Brasil, no processo da construção do território nacional brasileiro e suas implicações para a identificação do “nós’ a que remete a noção de patrimônio. Quanto a “paisagem natural” como patrimônio nacional, deve-se afastar a possibilidade de considerá-l, quaisquer que sejam,

como natural, pois a própria paisagem já é um efeito do olhar, da interferência do homem (SCHAMA, 1996, p.22-23) . Habermas considera que o estabelecimento da identidade nacional foi acompanhada de uma expansão da cidadania, da participação do povo nos negócios públicos, com a ativação política do povo: “ ...com a instituição da cidadania igualitária, o Estado nacional não só proporcionou a legitimação democrática, como também criou, através da participação política generalizada, um novo nível de integração social. Mas, para exercer essa função integradora, a cidadania democrática tem que ser mais do que uma simples condição jurídica; tem que se converter no foco de um cultura política comum.”(2000, p. 305). No Brasil, o sentimento de pertencimento a um território ( natureza) e de identificação com os habitantes desse mesmo território (os patrícios) associado à idéia de participação nos negócios públicos do estado-nação através da representação popular, não ocorreu. Em primeiro, devido as relações sempre predatórias da elite portuguesa, e sua herdeira nativa, com a natureza (HOLANDA, 1979 e PÁDUA, 2002); em segundo, pela rejeição aos ‘nativos’ do território, quer fossem indígenas ou descendentes dos migrantes forçados (BARREIRO, 1988; PAZ, 1996; ARRUDA, 2000). Uma anedota sugere que temos (nós brasileiros) uma relação de oposição entre a natureza do território nacional e a idéia do povo, enquanto conjunto de cidadãos: Deus estava criando o mundo, separou a terra da água e do ar, depois começou a distribuir as belezas naturais pelos países futuros. Chegando ao Brasil, colocou a Amazônia, as Cataratas do Iguaçu, o Pantanal, um imenso litoral. Neste momento, seu assessor imediato, Lúcifer antes da queda, comentou que o mestre estava sendo injusto em sua distribuição, mas Deus não se preocupou. Continuou sua distribuição: Chapada dos Guimarães, Chapada Diamantina, e culminou com a antiga Baia de Guanabara. Seu imediato sentido-se contrariado, exclamou, protestando contra a possível injustiça com os outros países. Deus, na sua imensa sabedoria, ponderou calmamente: Espere, meu caro, e verás o povo que irei colocar no Brasil. Essa anedota permite-nos inferir as relações antagônicas possivelmente existentes entre os homens e a natureza na sociedade brasileira, em particular, da natureza tomada como símbolo de identidade. A população local e o território foram, os homens sem “eira nem beira” e a floresta ou natureza “tropical”, no surgimento da formação do estado-nação moderno, fenômeno que estabeleceu a relação de pertencimento e identidade entre território e povo, processo no qual o povo que seria candidato a ser mobilizado, ativado politicamente e a terra carinhosamente cultivada, como diria

Habermas, nesses quase dois séculos de independência colocados como entraves na formação da nação. A não ativação política do povo na formação do estado-nação no Brasil, é um dos nós górdios, do problema da identidade e sentimento de pertencimento entre os brasileiros, repercutindo diretamente nas definições de patrimônio e de patrimônio natural. Pode-se considerar algumas diferenças entre o processo de constituição dos estados-nações na Europa e no Brasil. Em primeiro lugar, no continente europeu os estados nacionais foram constituídos por sobre um território já esquadrinhado pelo menos desde o período romano. Embora, ainda restassem regiões ‘ignotas’ em nada se comparava com a realidade do espaço físico que serviria de suporte territorial para o estado-nação Brasil a partir de 1822. É por demais conhecida a expressão de que os “brasileiros pareciam caranguejos a arranhar as costas.”. De fato, do ponto de vista do reconhecimento geográfico, estratégia importante para o domínio soberano do Estado sobre um território, a imensa área interna do país era absolutamente desconhecida. Era desconhecida e aparecia como sertão, um lugar a ser devassado e incorporado a civilização.(ARRUDA, 2000). Não que fosse vazio, era ocupado por inúmeros povos e populações “difíceis” de serem “administradas”, as quais passaram também a ser desconsideradas como candidatas a ‘cidadania’. Essas ‘gentes’ do interior, candidatos bastardos ao título de cidadãos do país que nascia em 07 de setembro sempre tiveram suas existências, suas memórias, seus direitos de cidadanias negados. O que importava era o território, mas o território já “pacificado” e limpo de empecilhos. A consolidação do território era a própria política de afirmação do Estado no Brasil,(MAGNOLI, 1997) Após, quem sabe, os cidadãos, ou seja a nação, daí a idéia recorrente de que a nação teria sido uma criação do Estado. Essa relação com o território talvez seja uma herança do sistema colonial. Antonio Carlos Robert Moraes afirma que devido ao caráter de passado colonial do Brasil, a “dimensão espacial adquire singular relevo na explicação dos processos sociais e da vida política particular”; influenciando de forma preponderante na ação do Estado e de suas políticas. Para Moraes: “A determinação colonial se inscreve nos padrões de organização do espaço, na conformação da estrutura territorial, nos modos de apropriação da natureza e de usos dos seus recursos naturais, na fixação de valor ao solo e nas formas de relacionamento entre os lugares” (2004, p.79). A espacialidade predominante na formação social e histórica dos países de passado colonial, fez com que a ocupação do território se transformasse em um forte recurso de coesão social ou,

poderíamos dizer, de formação compulsórias de identidades coletivas nacionais. Ocupar o território, “povoadora no sentido do colonizador” e “despovoadora na perspectiva dos índios” é o lema, que pode ser traduzido em “governar é construir estradas”: Nesse quadro, a natureza brasileira é vista como pura riqueza a ser apropriada, e o espaço e os recursos naturais são tomados como inesgotáveis. Daí a idéia do país como celeiro de riquezas, o “gigante deitado em berço esplêndido” ou, em certo momento, “ vaquinha-de-leite de Portugal. Um óptica espoliativa domina a relação da sociedade com o meio no Brasil, a qual se expressa com clareza no ritmo e na forma com que avança as “frentes pioneiras” na história do país, deixando ambientes degradados em suas retaguardas. O bom governo, nesse sentido, é o que propicia, antes de tudo, o acesso aos lugares e aos seus recursos. Por isso, “governa é construir estradas.(MORAES, 2004, p. 80-81). A natureza foi um apanágio para o processo de conquista do seu território, característica que não se restringiu ao período colonial. Na primeira metade do século XX, dezenas de projetos de colonização moderna destacavam a “fertilidade” do solo apontando para as gigantescas árvores da Mata Atlântica. Uma vez iniciado o processo de “abertura”, a floresta deveria ser eliminada para que o tesouro escondido, a fertilidade do solo, os famosos solos roxos do norte do Estado do Paraná, pudesse produzir toda a riqueza e progresso esperado, ou desejado. (ARRUDA, 2005). A natureza produz agora a armadilha do “ouro” dos tempos da globalização, a riqueza da biodiversidade: “A nova plataforma hegemônica introduz uma revalorização da natureza e, notadamente, da “originalidade natural”: o “mito moderno da natureza intocada”, como definiu com precisão Antonio Carlos Diegues. Tal fato, em parte, requalifica o Brasil na divisão internacional do trabalho, por ser o país dotado ainda de vastos fundo territoriais. O espaço inculto (o sertão) torna-se uma vantagem comparativa no novo contexto global.” (MORAES: 2004:84). Novamente o que importa é o território, ou a natureza. O povo não aparece como algo importante na formação da política de Estado, o que interessa é o território. A preocupação com o território também explicaria a verdadeira “neurose” da unidade territorial. Herdada dos projetos portugueses para a colônia americana, foi assumida pelo Império, como forma de justificar a sua singularidade e de manter o sistema escravista.(MAGNOLI, 1997 e 2003) A unidade teria sido uma estratégia, um pacto entre as elites, os proprietários de escravos, para manter o sistema: “Para os interesses escravistas, a manutenção da unidade podia ser, a curto prazo, benéfica, de vez que evitava possíveis medidas abolicionistas em regiões de pequena população escrava e preservava a ordem social.”(CARVALHO, 1998, p.236).

O povo, especialmente, as “gentes’ do interior, sempre foi visto com desconfiança, com asco, pela “elite’ portadora da idéia de modernidade que, ironicamente, na Europa e Estados Unidos, conforme Habermas, havia permitido a expansão da cidadania e a identificação do povo com seu território e Estado. Acompanhemos um pouco o imaginário dessa elite no início do século XX. Engenheiros como Cornélio Schmidt, formado na Escola de Minas de Ouro Preto, que havia trabalhado com seu pai Andre Schmidt, também engenheiro ferroviário, na Rio Claro Railway. Ele fez, em 1904, uma viagem de aproximadamente 1800 quilômetros pelo interior do Estado de São Paulo. Acompanhava, a pedido do governo do Estado, um norte-americano de nome Tomas Canty, que segundo dizia pretendia procurar terras para colonização. Sobre esta viagem escreveu um diário,. “Diário de uma viagem pelo sertão de São Paulo”, realizada em 1904, publicado em 1961. É um relato cotidiano da viagem com anotações sobre as terras, vegetais, minerais, locais por onde passou, sua opinião com relação ao norte-americano que o acompanhava e, também, diversos comentários sobre os moradores e seus costumes. As regiões visitadas eram denominadas de sertões, mas são lugares bem distante da região que após a obra de Euclides da Cunha ficaria marcada indelevelmente como sendo "os sertões". No diário, Schmidt traça um mapa narrado dos sertões, pois existiriam dois: um ligado à idéia de interior, de cultura caipira, de fraco desenvolvimento, contrário à modernidade etc e, o outro, os territórios desconhecidos, selvagens, não mapeados, território dos indígenas, etc. O primeiro causava indignação sobre a cultura e hábitos dos seus moradores, o segundo provocava medo, solidão, tristeza, diante do mistério. O primeiro precisava que a cultura caipira fosse erradicada para que se desenvolvesse, o segundo precisava ser mapeado e os seus ocupantes catequisados ou eliminados. Embora a todo momento dissesse que não encontravam viva alma na região da foz do rio Turvo no rio Grande, divisa de São Paulo e Minas Gerais, onde se encontravam no final do mês de julho de 1904, menciona, dia após dia, uma série de moradores por onde passavam, comiam, dormiam ou simplesmente paravam para tomar café. Mas assim mesmo, toda a região oeste de S.Paulo, a partir de Barretos até Porto do Taboado no rio Paraná e até o Salto do Avanhandava no rio Tietê seria sertão, sertão de caipiras, com um tipo específico de ocupação e cultura dos habitantes. Assim o engenheiro Cornélio considerava o povo que encontrava:

vi-me obrigado a tratar um vadio por 6$000 por dia para nos guiar e mais adiante completou seu comentário, O tal João que ajustei no Porto Velho para guia, sabe tanto

do caminho como eu; é sujeito sem pressa e tipo do caipira vadio. (SCHIMIDT, 1961, p. 373-374). As casas dos moradores, como a de José Fidelis: “caçador e último morador no extremo Oeste de São Paulo”, era um rancho descoberto, com uma porção de filhos; “seu rancho fedia muito a carniça de tanto couro de anta e cabeças de onças! Parece bom creoul”o.( idem, p. 376/378). Em uma outra casa, de Hypólito Martins:

A velha nos recebeu com desconfiança, mas amável. Mais tarde veio o velho, que tem aparência de bicho, cabeludo e feio e além de tudo feio e abrutalhado. Causou muito má impressão ao Canty, principalmente a porcaria. A casa fede a carniça, é uma porcaria nunca vista. Tem grande criação, e não tira leite nem para beber! Olhou-nos com maus modos.(idem, p. 384-385). No relato do dia seguinte completou sua opinião sobre o morador e generalizou os comentários:

Enfim paguei, e dei graças de sair deste pouso que foi o pior de todos. Tudo porco, homens e casas. A casa do Hypólito é um chiqueiro. (...) O pior nestas viagens, (...) é a promiscuidade em que vivem homens e animais. A caneca para água é só uma, prato, talheres, etc. (...) Neste lugar conhecem-se de longe as moradas, pelos corvos nas árvores, tal a imundice que tem perto das casas! E depois queixam-se de maleitas. (Idem, ibidem, p. 384-385). Mas o que mais parece indignar o portador da modernidade, seria a "vadiagem" dos moradores. Comentários que apontam na direção de uma mentalidade moderna, onde tempo, propriedade privada e trabalho são princípios norteadores de vida. Mas parecia não ser nada para os moradores daqueles sertões do oeste do Estado de São Paulo. No Salto de Avanhandava, no Rio Tiête e na localidade de Fartura observou a maneira dos moradores utilizarem-se da natureza sem preocupação com a produção sistemática ou acumulação:

No Salto [de Avanhandava] o povo cuida em pescar. No tempo da piracema em setembro ou outubro, depois das primeiras chuvas, finda a subida dos peixes, eles nada fazem. Passam sentados todo o tempo durante o dia, ou deitados. Plantam, os mais trabalhadores, meio ou ¾ de alqueire de milho, feijão ou arroz; engordam 2 ou 3 porcos; com algum peixe que pescam compram rapaduras ( o doce) e algum sal e passam o resto do ano mais felizes e ricos que o Czar ou o Sultão. Aqui na Fartura é mais ou menos a mesma cousa, mas como não tem o peixe para vender, são obrigados a criar mais algum porco. Depois de engordados 10 ou 15 porcos, o resto do ano passam é

trabalhando só um dia ou dois por semana no tempo de roça. Aos sábados caçam veados, domingo cozinham a bebedeira da véspera, e na 2ª feira recomeçam . (grifos nossos) (Idem, ibidem, p.400).

Com praticamente todo o interior do Estado de São Paulo ocupado por esse tipo de gente, o território precisava ser reocupado por outro tipo de população para poder ser considerado civilizado, ou seja, moderno. Essa é a proposta em 1904 de Washington Luiz, então deputado, que seria depois prefeito, governador e presidente:

Que território é esse ? Apesar de se achar a dia de distância desta capital por estrada de ferro, esse território, segundo o dizer comum que já a ninguém susceptibiliza; é desconhecido, pouco explorado e habitado por indígenas; é mais do que isso, é uma zona mysteriosa, e envolve lendas, algumas pavorosas(...). É indispensável, pois fazer o reconhecimento geographico dessa região, civilizar o indígena, arrotear a terra, para apagar do nosso progresso esse borrão que o enfeia(...)/. É a auctorização para que uma grande parte do Estado de São Paulo seja extrahida da barbaria e entregue á civilização." – grifos nossos (apud SANTOS, 1992, p. 75).

Os espaços pouco explorados, desconhecidos apareciam como uma mancha na mentalidade e visão da elite paulista. Aqueles territórios eram os sertões descritos por Cornélio Schmidt. Os espaços tidos como “pouco explorados” eram considerados como 'barbárie vergonhosa' e a ação para reconhecê-los como parte de um conflito, uma luta entre a "civilização" e o "progresso" contra o "atraso" e a "barbárie". Esse território seria ocupado pelos milhões de migrantes europeus e asiáticos no processo de expansão da produção cafeeira para o oeste do Estado de São Paulo. Esses novos moradores traziam uma identificação com um território que não era aquele, de florestas, era o da Europa. Essa relação, ou concepção, com o povo por parte da elite não era específica do período republicano ou do início do século XX mas parece atravessar a história brasileira desde o surgimento do estado independente em 1822:

Desde 1822, data da independência, até 1945, ponto final da grande transformação iniciada em 1930, pelo menos três imagens da nação foram construídas pelas elites políticas e intelectuais. A primeira poderia ser caracterizada pela ausência de povo, a segunda pela visão negativa do povo, a terceira pela visão paternalista do povo. Em nenhuma o povo fez parte da construção da imagem nacional. Eram noções apenas imaginadas.”(CARVALHO, 1998, p.233).

Essa talvez seja uma herança do próprio sistema de colonização criado por Portugal em espaços muito maiores que poderia administrar dependendo, assim, do privado para constituir e ocupar os territórios. De qualquer forma, ao início da nação independente não havia uma nação, quando muito territórios provinciais fracamente interligados. Nem mesmo o Brasil era referência para ninguém, nem mesmo para os revoltosos. (CARVALHO, 1998, p. 234;235). Mas a idéia de Brasil estava na cabeça dos que promoveram a independência. Havia pouco que pudesse alicerçar uma nação, havia muito pouco que pudesse construir uma identidade nacional: “Grande parte da população de 7,5 milhões continuava fora dos canais de participação política seja pos ser escrava (em torno de 30%), seja por não gozar das garantias dos direitos civis indispensáveis para a construção do cidadão. Tratava-se de uma população quase que exclusivamente rural e analfabeta, isolada na imensa extensão territorial do País.”(...) “A face interna estava longe de corresponder a essa imagem externa. A nação brasileira ainda era uma ficção.”(idem, p. 237). Havendo dificuldade de encontrar entre a população algo positivo que pudesse produzir um sentimento de pertencimento lançou-se mão da natureza, ou em outras palavras, do território, como uma forma de escapar dos conflitos do social: “Se havia consenso em exaltar a natureza, o tamanho do território e sua diversidade, o mesmo não se dava em relação à população.(...) enquanto sobreviveu a escravidão predominou a hesitação.(...) Os românticos passaram ao largo do tema”(CARVALHO, 1998, p. 245). Em alguns poucos momentos, conforme José Murilo de Carvalho, durante o Império, como durante a Guerra do Paraguai, teria começado a surgir um sentimento de pertencimento ao Brasil, um legitimo sentimento patriótico. Mas isso não teria sido suficiente, para ter criado um sentimento de ‘nação imaginada” extensiva a toda a população. Teríamos que esperar o século XX para, talvez, ver a primeira vez na qual o povo aparece de forma positiva nas “nações imaginadas”. Teria sido durante o período do Estado Novo. Em uma grande mudança em relação ao Império e à Primeira República, ideólogos do novo regime promoveram positivamente a população e as tradições do País, o homem comum tornava-se o centro identidade nacional. Embora visto positivamente o povo continuava sem ser considerado como ator ativo no processo: “... permaneceu o fato de que este povo não falava por si mesmo, não tinha voz própria, era ventríloquo, sua identidade e a identidade da nação eram outorgadas pelo regime.(...) o regime de 1937, ao mesmo tempo que interpelava o povo, calava-lhe a voz ao fechar os partidos e movimentos políticos de esquerda e de direita, ao

fechar o Congresso Nacional(...) Calava-se a nação para se falar em seu nome”(CARVALHO, 1998, p.264). José Murilo de Carvalho conclui, laconicamente, que em todas as “nações imaginadas’ desde o tempo da proclamação da independência, era apenas imaginada, em não imaginária: “Nem mesmo era imaginária, se dermos o sentido de uma construção simbólica ancorada numa comunidade de sentido, possível somente na presença de experiências coletivas concreta”(idem). Faltava povo, sobrava território. O peso do território continuou, podemos dizer, com a construção de Brasília, e chegou ao período da Ditadura militar, com a “conquista’ da Amazônia e das 200 milhas do águas territorias.(CERRI, 2000) Neste processo de definição de uma imagem para a nação tornou-se importantíssimo o estabelecimento do tipo de população que se queria para o seu futuro. Se o negro representava para os viajantes e autoridades, nas regiões de passado colonial, um impedimento para o progresso da nação, nas províncias meridionais, o indígena e o isolamento do antigo morador também foi visto como impedimento para a criação de uma população “civilizada”. Num lugar o passado condenava, noutro a natureza tragava e impedia o desenvolvimento. A solução almejada e esperada seria a introdução em grande escala de europeus. Francisco PAZ em pesquisa sobre o discurso dos viajantes e sua influência no “nacionalismo” do século XIX afirma sobre o desejo das autoridades brasileiras em “mapear” a população: “O discurso das autoridades guarda em si essas perversões. Desautoriza a população local e propõe outra. Logo, combina-se com a narrativa dos viajantes europeus que vêem nas terras meridionais a possibilidade de reconstrução de um pedaço da Europa.” (1996, p. 261) Assim, voltando ao problema do patrimônio natural como instrumento de legitimação dos Estadosnação modernos, o entendimento do processo da montagem desse fenômeno no Brasil pode ser a chave responder o “para quem?” do início da discussão. Talvez possa responder como foi construído o significado que possui o “nós” que remete a “brasileiros’ e ao “nosso”, o que pertecente aos “brasileiros”, os coletivos por trás dos patrimônios; também, ajudar nos desafios vindouros, a superação do suporte nacional, suporte de direito para os patrimônios por uma cidadania terráquea (patrimônio da humanidade)(PEIXOTO, 2000). No caso do Brasil, com o estado-nação construído por cima da desconfiança sobre a população existente, qual identidade essa população poderia ter com o Estado que

surgiu? se não um

sentimento de opressão, exílio e exclusão? No momento que o povo, o homem livre pobre, poderia ter sido mobilizado politicamente para dar sentido a essa nova nação, ele foi renegado. Não só

renegado, mas combatido. Lembremos a expressão de José Murilo de Carvalho, a ‘acumulação primitiva do poder’ foi conseguida a ferro e fogo, eliminando as ameaças de desintegração do território herdado da coroa portuguesa (CARVALHO, 1988). Posteriormente, quando no Brasil começou o “intenso processo de mudança social” representado pelo esgotamento da exploração da mão de obra escrava duas alternativas forma colocadas pelos “proprietários”; uma, a utilização da mão de obra nacional (através do aumento da repressão), a outra, a imigração em massa de europeus. As duas propostas desconfiavam dos homens livres pobres brasileiros, considerados incapazes, indolentes, incivilizados e, também, não brancos (BARREIRO, 1988; SALLES, 1985; STOLCKE, 1986). O que na Europa teria provocado o surgimento das repúblicas democráticas modernas, ou as sociedades democráticas modernas (com a produção de novas formas de integração social e a construção do sentimento de pertencimento de um Estado e nação), causou no Brasil um processo de ‘perversão da memória’, instaurando entre nós, o nós novamente, a partilha radical existente entre Estado e o sentimento de pertencimento da nação, pois na acepção popular, quem governa é sempre eles. (BARREIRO, 1988; STOLCKE, 1986). E quanto ao território, a outra parte da idéia de nação, do estado-nação moderno, externamente seguiu-se um projeto da coroa portuguesa para as sua colônia na América, o mito da ilha-brasil e, internamente, o conhecimento do Estado limitava-se ao litoral e a poucas vias de penetração. O interior era um grande sertão e o sertão era considerado arcaico, atrasado, pelas razões apontadas acima. Porém, o sertão não é só uma palavra que designava áreas do interior ou fracamente povoadas, etc mas era, talvez ainda seja, um instrumento ideológico de esvaziamento do conteúdo realmente existente nessas paragens, das formas de ocupação e de seu povo, um instrumento ideológico de conquista.(CORREA, 1997) Além disso, o amanho e trato cuidadoso com a terra, uma das origens do conceito de cultura, no sentido estabelecido por Hannah Arendt, que poderia ter produzido um sentimento de identificação com a paisagem construída, ou mesmo a “preservada’, não encontrou entre “nós”, com raras exceções, nenhuma receptividade. Sempre valeu, e continua valendo, a lógica de ‘predação’ da natureza. Atualmente, fala-se em preservar a “Amazônia’ mas ao mesmo tempo enaltece-se as “conquistas’ do agro-bussiness, que pressiona pelo desparecimento da floresta para abrir espaço para a soja. O discurso que sustenta nesse momento a preservação da natureza não remete a uma evocação do sentimento pertencimento e identidade nacional, mas sim pela importância do meio ambiente para sobrevivência da humanidade. Em outra perspectiva de proteção, o ‘patrimônio

natural” aparece como forma de produzir riquezas através do turismo “ecológico”, criando lugares acessíveis apenas aos que podem pagar (LUCHIARI, 2001) A memória social construída sobre a população local e a natureza do espaço físico onde foi construído o estado-nação Brasil; a introdução de cerca de 3,5 milhões de homens de outros lugares, com culturas distintas, memórias de territorialidades diferentes, sentimentos de pertencimento a outras formas de integração social, produziu, entre outras coisas, formas de identificação com a territorialidade marcadamente regionais, como a do Estado de Santa Catarina que usa na sua publicidade para turistas o seguinte lema – “Um estado europeu no Brasil”, o que também é uma das bases do movimento separatista denominado de “O Sul é o meu país”(CASTRO, 1997). Concluindo, estado-nação moderno no Brasil foi construído a partir de uma total rejeição ao espaço natural, a população, ao passado e a cultura. Forjou-se de forma autoritária um território, uma legitimidade política sem participação e ativação política da população, uma história cheia de mitos e heróis não reconhecidos pelos “cidadãos”, uma memória social pervertida. Um século após a proclamação da República; da abolição da escravidão, do início do processo de imigração em massa; do grande processo de devastação do bioma mata atlântica; quase cem anos da “domesticação” dos últimos e mais resistentes grupos indígenas, os kainkangs; da destruição de Canudos; do desaparecimento dos sertões, está colocado no cenário a preservação do “patrimônio natural brasileiro”. Se o nosso ofício serve para alguma coisa, eu desconfio que serve para pouca coisa, está em desfazer mitos. Um desses mitos mais consistentes é o da idéia de cultura nacional, de identidade nacional, de um suporte nacional para uma idéia de patrimônio. A destruição do mito só será feita se elucidarmos o processo pelo qual diversas memórias e culturas que davam sustentação a territorialidades e identidades foram soterradas, ou sobrepostas, pelo processo de montagem do estado nação moderno no Brasil. Qualquer idéia de patrimônio, de memória social, soará como autoritária e não contribuirá para, quem sabe, 100 anos depois, construir novos “laços de integração social’ na Terra Brasilis. Em síntese: o patrimônio é de quem e para quem? De quem são as palmeiras e os sabiás?

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AS NORMATIVAS REFERENTES AO MEIO AMBIENTE E OS CAMPOS DE AÇÃO DA ARQUEOLOGIA.

Aline Vieira de Carvalho

Perspectivas Teóricas: Ambientes e Arqueologias. Na “Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano", realizada pela ONU, em Estocolmo, no ano de 1972, afirmou-se que o crescimento econômico acelerado de algumas nações resultaria na escassez de recursos naturais o que determinaria a insustentabilidade do planeta Terra. Mais de três décadas se passaram, e, infelizmente, as previsões para o futuro desse “ambiente humano” não são animadoras. Enfrentamos a fome, desigualdade social, violências, desertificação dos solos, aquecimento global, poluição dos rios, desmatamento, entre outros problemas divulgados e, algumas vezes analisados, pelos meios de comunicações nacionais e internacionais. Para as páginas que se seguem, não proponho a análise dos problemas ambientais, ao contrário, almejo investigar algumas definições acerca do termo ambiente e das possibilidades da Arqueologia em relação a esse ambiente. Durante a década de 1970 se fazia necessário diferenciar o “ambiente humano” de um “ambiente natural”, como fez a ONU ao nomear sua conferência. Isso ocorria devido a existência de um imaginário que definia o ambiente como sendo apenas recursos naturais ou aquilo relativo à outros seres vivos que não o seres humanos. Dentro dessa perspectiva, o Homem era percebido como “superior”, já que dotado de “racionalidade”, e, por isso, capaz de dominar e controlar outros seres vivos “menores”. Homem e ambiente formavam duas esferas diferenciadas que se relacionavam de forma hierárquica: a humanidade podia ter o controle sobre o ambiente. É importante ressaltar que esse imaginário não era a única visão sobre o ambiente. Representando um outro olhar sobre o tema, a pesquisadora norte-americana Rachel Carson, em seu livro Primavera Silenciosa, publicado em 1962, alertava para o problema do uso de produtos quimícos para alterar o rendimento da produção agrícola. Em sua obra, Carson demonstrou como o uso do DDT penetrava na cadeia alimentar e se acumulava nos tecidos gordurosos dos animais, o que incluía o ser humano. O acúmulo de DDT nesses tecidos gerava riscos de câncer e danos genéticos graves tanto ao ser humano como a qualquer outro ser vivo. Carson reforçava um novo caminho para se compreender o ambiente ao enfatizar que os homens e animais estão em constante interação

com o meio em que vivem. Nessa mesma vertente, a ONU, na conferência de 1972, destacava o ambiente humano como interligado ao ambiente natural. Décadas se passaram após a publicação do livro Primavera Silenciosa e da “Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano", e as duas visões sobre o ambiente continuam a coexistir. No Brasil, de acordo com a advogada Elida Séguin, o Direito Ambiental, entendido como "um conjunto de regras, princípios e políticas públicas que busca a harmonização do homem com o Meio Ambiente" (SÉGUIN, 2006, p.19), aborda o ambiente a partir de quatro perspectivas: os aspectos naturais, culturais, artificiais e do trabalho. Esses aspectos formariam uma tipologia ambiental que, como divulgado pela ONU em 1972, comporiam o Meio Ambiente Natural e Meio Ambiente Humano, sendo que neste último estaria compreendido o ambiente Cultural, o Artificial e o do Trabalho. Legalmente os quatro tipos de ambiente - Natural, Artificial, Cultural e do Trabalho – possuiriam, nas palavras de Séguin, “regulamentação própria, com institutos jurídicos diferentes, e que topograficamente a Constituição Federal os situou em oportunidades diferentes (artigos 225; 215/216; 182/183 e 200, respectivamente)” (SÉGUIN, 2006, p.19). O Ambiente Construído seria composto pelos espaços ocupados e transformado pelos Homens. Abarcaria, também, as relações sociais tecidas nesses espaços. Seria, para Séguin, resultado da “interação do homem com o Meio Ambiente Natural” (SÉGUIN, 2006, p.21). Os patrimônios artísticos, históricos, turísticos, paisagísticos, arqueológisos, espeleológicos e culturais, sendo materiais ou imaterias, tidos como referência para as construções de memórias e, como consequência, de grupos identitários, constituiriam o Ambiente Cultural (art. 215 da Constituição Federal). Por último, o Ambiente do Trabalho caracterizaria os espaços e as relações traçadas pelos Homens para a transformação e produção de algo que, a princípio, não existia na natureza. A partir dessas quatro definições de ambiente, que formam categorias analitícas e não visam defender o ser humano como superior a outras formas de vidas ou como “dominante” nas relações existentes nos diversos ambientes, proponho uma Arqueologia do Ambiente que almeja analisar como esses ambientes podem ser usados como expressões de poderes e elemento gerador de identidades individuais e coletivas. Para essa análise, torna-se imprescindível investigar o próprio objeto da ciência arqueológica; a cultura material. A cultura material é aqui compreendida como tudo aquilo que é produzido ou modificado pelas sociedades humanas, independentes do tempo e do espaço. São produções e

modificações, material ou imaterial, geradas dentro de determinadas culturas (FUNARI, 1988, p.11) e que expressam relações de poderes. Nessa perspectiva, as quatro categorias de ambiente são definidas, neste capítulo, como cultura material e, por isso, como elementos que podem ser usados em jogos de poderes ou mesmo como bases para a construção de memórias e identidades.

Ambientes: Memórias e Poderes. O objetivo dessa Arqueologia do Ambiente, que poderia ser configurada como uma vertente dentro da Arqueologia Histórica por conjugar diferentes categorias documentais, é analisar como o ambiente é representado e, a partir da investigação dessas representações, entender as identidades criadas. De acordo com a estudiosa Kaathryn Woodward, representação e identidades são conceitos interligados. Para Woodward, a representação pode ser compreendida como um processo cultural que “estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornece possíveis respostas às questões: quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser? Os discursos e os sistemas de representações constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar” (WOODWARD, 2000, p.17). Dessa forma, analisar as representações do ambiente nos permite a compreensão dos lugares construídos por essas representações e, conseqüentemente, das identidades criadas. Segundo a arquiteta Maria da Glória Lanci da Silva, os espaços urbanos têm sofrido, desde meados do século XX, um processo de cenarização planejada que visa atender às expectativas do mercado (LANCI, 2004, p.15). A cenarização seria um fenômeno global, no qual cidades que visam atrair um determinado número de visitantes investem na composição de uma auto-imagem que poderia ser facilmente identificada pelo turista. Cria-se, dessa forma, “uma espécie de ´arquitetura de fachada´ que pode ser verificada no espaço urbano, identificada por edifícios semelhantes em forma, dimensão e partido projetual, mas diferenciado por ornamentos que podem ser modificados ao sabor da moda ou segundo temas específicos” (LANCI, 2004, p.22-3). Nesse jogo de cenários, o contexto ambiental-paisagístico realçaria a auto-imagem das cidades. No caso específico do Brasil, teríamos sete categorias de cenários: cenários europeus, cidades históricas, praia urbanizada, praias rústica, cidades do interior, complexos turísticos e centros metropolitanos (LANCI, 2004, p 64). Como exemplos de cada uma dessas categorias poderíamos citar, respectivamente: Campos de Jordão, Estado de São Paulo; Ouro Preto, Estado de Minas Gerais; Santos, Estado São Paulo; Jericoacoara, Estado do Ceára; Aparecida, Estado de São Paulo; Costão

do Santinho, Estado de Santa Catarina e, por último, a cidade de São Paulo. Apesar dessas categorias apresentarem características bem definidas, seria possível uma mesma cidade diversificar a sua cenarização, como o município de Parati, no Estado do Rio de Janeiro, que se apresenta como Cidade Histórica se destaca no turismo por suas praias rústicas. Para a composição dos objetos de estudos da Arqueologia do Ambiente, acredita-se que não apenas os espaços urbanos passam por um processo de cenarização, como defende Lanci, mas também as representações do que denominamos de Ambiente Natural. Os ambientes, compostos por inúmeros fatores, são transformados “segundo critérios formais e estéticos direcionados a compor cenários elaborados ou não sobre as qualidades culturais e culturais intrínsecas das cidades e do seu território” (LANCI, 2004, p. 22/23). A cenarização dos ambientes torna-se crucial para o estabelecimento de novas identidades que, de acordo com a arqueóloga Lisa Kealhofer, não são formadas apenas a partir da mudança de lugares ou nomes, mas através da transformação daquilo que envolve os homens para autenticar essa nova identidade. Para Kealhofer, amplas paisagens, ou mesmo pequenos jardins, não apenas lembram como as novas identidades foram criadas, mas fazem parte do processo ativo e incessante da criação dessas identidades, sejam elas individuais ou coletivas (KEALHOFER, p. 55). A Arqueologia do Ambiente, portanto, almeja analisar como as representações sobre o ambiente se constituem em importantes elementos na construção de identidades, individuais e coletivas, e sustentam determinadas relações de poderes. Como estudo de caso para a Arqueologia do Ambiente optamos por analisar os municípios de Angra dos Reis e Parati no estado do Rio de Janeiro. As cidades foram escolhidas por serem turísticas e apresentarem composições de cenários diferenciados. No caso de Parati há uma valorização de sua área turística (centro da cidade) e de suas praias rústicas (por exemplo, região de Trindade), e em Angra dos Reis, há uma valorização das praias rústicas (Ilha dos Porcos) e de seus complexos turísticos (por exemplo, Blue Tree Park). As fontes para os estudos de caso constituem-se nas produções materiais das Secretarias de Turismo de cada um dos municípios, já que essas instituições almejam consolidar determinadas imagens sobre suas cidades. O recorte cronológico centra-se nos discursos sobre as regiões constituídos após a década de 1970 (construção da Rodovia Rio Santos). Os municípios de Parati e Angra dos Reis foram tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como sítios urbanos e, em ambos os casos, o turismo configurou-se como a principal atividade econômica a partir da década de 1970.

Angra dos Reis e o Ambiente Natural: A natureza em destaque. A história de Angra dos Reis estaria intimamente ligada à história da chegada dos portugueses ao Brasil no final do século XV. De acordo com folhetos de divulgação sobre o município, em 6 de Janeiro de 1502, a esquadra do navegador Gonçalo Coelho teria aportado na baía de Ilha Grande. Como era dia de Reis, a região teria sido nomeada como Angra dos Reis. No período, indígenas goianases habitavam a área. Após aportarem, os portugueses teriam fundado o núcleo urbano de Angra dos Reis, atualmente conhecido como Vila Velha. Durante o período colonial da história do Brasil, as atividades de pesca, caça e pequenas lavouras eram o destaque da região. Por sua posição estratégica no litoral brasileiro, Angra dos Reis também se configurava como um importante porto para contrabandos e um atrativo aos navios piratas que buscavam novas oportunidades para saques. Durante o século XIX e início do século XX, Império e República, a região teria se tornado um porto crucial para o escoamento de ouro e café e para entrada de mão de obra africana escrava no país. Além disso, a área contava com uma pequena produção de cana de açúcar. Com a abolição da escravatura e desvalorização do café brasileiro, Angra dos Reis caiu no ostracismo. A tentativa falida de instalar uma estrada de ferro que ligasse Rio a São Paulo, passando pelo porto de Angra dos Reis, acabou por determinar o isolamento econômico da região. Apesar das tentativas de retomada do crescimento financeiro, no início do século XX, com a plantação de bananas e o escoamento de bobinas de aço para a Companhia Siderúrgica Nacional, Angra dos Reis voltou a se destacar no cenário econômico brasileiro a partir da década de 1950, com a construção do Estaleiro Verolme e com a instalação de um terminal de desembarque pela Petrobrás. A ascensão da região consolidou-se com o Regime Militar que determinou a construção das usinas nucleares de Angra I e II, além da construção da estrada Rio-Santos que facilitou a acesso à área. Desde então, o tímido número de turistas que visitavam a região, tomou corpo e a atividade do turismo, pós anos de 1980, tornou-se a principal atividade econômica da região. Após tantos encontros e mudanças culturais, quais as representações vinculadas à Angra dos Reis? De acordo com o Guia Quatro Rodas (Editora Abril, 2005) e as páginas da Internet relativas ao turismo da região (www.angra-dos-reis.com), Angra dos Reis conta com 365 ilhas (uma para cada dia do ano!) e 2000 praias. Divulga-se que estar em Angra provoca as mesmas sensações que um dia o navegador europeu Américo Vespúcio teria sentido: “Algumas vezes me extasiei com os odores

das árvores e das flores e com os sabores dessas frutas e raízes, tanto que pensava comigo estar perto do Paraíso Terrestre (...)"( www.angra-dos-reis.com). Por esse caminho, Angra dos Reis é descrita como um local mágico, “daqueles onde a imaginação vai longe e nos convida a conhecer como tudo começou” (www.angradosreis.com.br). Angra dos Reis configura-se como um resquício do paraíso, disponível aos turistas que podem pagar por ele. Após a consolidação da região como uma área destinada ao turismo, as especulações mobiliárias sobre as “áreas verdes”, bem como a desvalorização financeira e afetiva da área urbana de Angra dos Reis, tornaram-se mais pulsantes. Ao mesmo tempo, políticas públicas que visam desenvolver o turismo na região esforçaram-se para tornar o cenário de paraíso ainda mais autêntico. Nesse cenário, não há espaços para a divulgação da memória dos goianases, negros escravos e outras identidades que poderiam ser vinculadas à formação de Angra dos Reis. No caso de Angra dos Reis, poderíamos afirmar que as representações sobre o seu Ambiente Natural e Humano geraram poderes que delimitam os espaços e criam identidades: Angra parece se constituir apenas pelos ambientes destinados aos “VIPS” (www.angra-dos-reis.com). E, no interior dessa auto-imagem que a cidade propaga, na cenarização de Angra dos Reis, tudo aquilo que está longe do paraíso é excluído.

Parati e o Ambiente Humano e Natural: História e Ecologia Angra dos Reis e Parati estiveram unidas até o ano de 1660. Sete anos após a separação, Parati foi elevada à categoria de Vila, tornando-se a Vila de Nossa Senhora dos Remédios. De acordo com as publicações de divulgação sobre a cidade, Parati se destacou durante o período colonial do Brasil por sua grande produção de água ardente. Esse ciclo econômico só teria sido alterado no século XVIII, quando a cidade tornou-se rota para o escoamento de ouro da colônia para Portugal. Assim como Angra dos Reis, a cidade teria sido alvo constante de piratas e contrabandistas, principalmente na região de Trindade (atual área rural de Parati). A existência da pirataria constante teria forçado uma alteração na rota do ouro, o que teria levado Parati ao completo esquecimento. Apenas na década de 1970, com a construção da rodovia Rio Santos, a cidade retornou ao cenário cultural do Brasil com atividades turísticas. Atualmente, a Secretaria de Turismo de Parati apresenta como programas interessantes para se conhecer o município: as visitações ao Parque Nacional da Serra da Bocaina, onde se situa a Vila da Trindade e a Reserva da Joatinga, o Caminho do Ouro (ou caminho dos Guaianás), uma série de

ilhas, cachoeiras e trilhas próximas na região do município, além do centro histórico e festivais como a Feira Literária Internacional de Parati (FLIP). Na cidade, tida como tesouro do período colonial brasileiro, o turista poderia escolher o cenário que mais lhe apetece: desde as praias rústicas e distantes do centro urbano, passando pelo o cenário do que teria sido o caminho do ouro (trilha usada pela nação dos Guaianás ou Guaiamimins para ligar a região do Vale do Rio Paraíba à Paraty), desfrutando até do cenário da variedade cultural, representado pela FLIP e pelos restaurantes da região. Na cidade, também é possível encontrar uma significativa quantidade de falantes de variações da língua tupi-guarani envolvidos, principalmente, com a venda de artesanatos. É importante destacar que Parati não é constituída apenas por esses cenários e identidades, isto porque as identidades são subjetivas e fluídas não podendo ser delimitadas por categorias fixas (JONES, 1995). No entanto, é preciso notar que Parati quer se auto-reconhece, e deseja ser reconhecida, por essas memórias: a cidade colonial, que mescla elementos culturais europeus e indígenas, e que apresenta a possibilidade da aventura e da descoberta do novo. Ao valorizar esses cenários, o município de Parati busca para si determinadas categorias de turistas, que podem ser identificados por interesses específicos.Deve-se ressaltar que seria impossível representar todas as identidades e memórias existentes em Parati, mas a maior diversidade dessas memórias acaba por permitir a um número maior de pessoas a identificação com o local. Os ambientes de Parati e Angra dos Reis são construídos, usados e modificados com intencionalidades específicas. Geram uma série de relações de poderes entre os turistas, os moradores locais e o próprio ambiente e, por essas características, podemos analisar o ambiente como cultura material. Mas qual a importância de fazê-lo?

Representações, Identidades e Arqueologia Pública. Qual a importância das representações do ambiente e das conseqüentes identidades formadas? De acordo com o antropólogo norte-americano Richard Handler, as identidades coletivas, assim como quaisquer outros processos culturais, não aparecem ao pesquisador de forma objetiva. Isto porque elas existem apenas nos processos de interação semiótica; ou seja, são construídas em atos específicos de interpretação social. Cada indivíduo interage com o mundo que o cerca de forma bastante específica, ligada diretamente à sua formação. Ao longo deste processo de construção de identidades, os museus configuram-se como elementos cruciais. A instituição tem como prática escolher grupos sociais que seriam dignos de uma memória

pública e, como resultado, acaba por escolher os grupos que não seriam dignos dessa memória. De acordo com o autor, essas opções dependem, sempre, de determinadas concepções/ modelos que estão em voga (HANDLER, 2003, p.359). Através das indicações de Handler, é possível traçar paralelos entre as representações do ambiente, analisadas no caso de Parati e Angra dos Reis através de publicações ligadas às secretarias de turismo, e os museus. Ambos lidam diretamente com memórias de determinados grupos sociais. Possuem regras próprias de funcionamento: a escolha da linguagem, a ordem da disposição das idéias, imagens e objetos, o público alvo, o tema escolhido e o objetivo de divulgar um determinado conhecimento. Dentro desta perspectiva, a representação do ambiente, realizada pelas secretarias de turismo, pode ser interpretado, de forma semelhante ao museu, como um instrumento de escolha de determinadas memórias orientadas por relações de poderes. Para Julian Thomas, arqueólogo inglês, é com o poder da exclusão e da inclusão que o arqueólogo deve ter cautela: esses profissionais teriam a responsabilidade de fazer escolhas que podem agravar determinadas inclusões e discriminações sociais (THOMAS, 1995, p.33). Cabe ressaltar que estas memórias escolhidas pelo museu ou pelas secretarias de turismo não necessariamente determinam a formação de identidades coletivas ou individuais, mas contribuem para suas construções. Desta forma, ao se vincular uma única representação do ambiente à determinada cidade, extingui-se com a possibilidade de diversos indivíduos, com suas múltiplas identidades, se encontrarem nessas representações. No caso de Angra dos Reis, a representação do paraíso excluiu as memórias sobre os goianases, escravos, traficantes, militares e outras infindáveis identidades que poderiam existir na região. O cenário de Angra dos Reis elege um único patrimônio como digno de celebração; é a natureza intocada que foi admirada pelos europeus. No caso de Parati, há uma maior variedade de cenários celebrados: desde o caminho indígena que foi re-lido pelos colonos para o escoamento do ouro, passando pelas praias, cachoeiras, ilhas e trilhas rústicas chegando ao centro histórico. A maior variedade de leituras sobre o ambiente de Parati, acaba por nos permitir entender diversidade de sujeitos históricos. E, mesmo dentro dessa diversidade, muito se excluí. É claro que as secretarias de turismo divulgam seus ambientes de acordo com as demandas culturais e, dentre elas, as exigências do mercado. Mas a Arqueologia do Ambiente tem a obrigação de entender a construção dessas representações, tendo a clareza de que elas estão incluindo e excluindo

identidades. Um caminho interessante para a prática da Arqueologia do Ambiente é sua vinculação à Arqueologia Pública. Essa é uma área recente, instaurada junto à fundação do Congresso Mundial de Arqueologia, em 1986, e seus objetivos centram-se nas discussões acerca da importância pública e social da disciplina, legislação de preservação patrimonial, participação de setores sociais na gestão social do patrimônio, Arqueologia como política e uso político da Arqueologia. No Brasil as investigações ligadas à Arqueologia Pública vêm crescendo vertiginosamente, resultado, segundo Jorge Eremites de Oliveira, da sede dos jovens arqueólogos. E jovens, neste texto, não se refere à idade biológica: “parafraseando Acuto & Zarankin (1999, p. 13), avalio que é por tudo isso e por muito mais que jovens arqueólogos continuam seguindo sedentos, pois a sede faz parte da efetiva construção do saber científico e do comportamento de alguns cientistas, sem a qual não haveria mudanças de nuances ou transformações epistemológicas” (OLIVEIRA, 2002, p.25-52). O crescimento da Arqueologia Pública configura-se como necessário para a ampliação da ação arqueológica na sociedade. Com a divulgação da possibilidade de múltiplas representações sobre o ambiente abre-se espaço para a liberdade: os leitores dos trabalhos arqueológicos podem construir suas próprias identidades sem se sentirem cerceados ou excluídos. A abertura das representações sobre o ambiente poderá resultar na construção de novas concepções entre as relações entre o Ambiente Natural e o Ambiente Humano e, quem sabe, essas novas concepções não sejam mais tolerantes as diferenças e dêem sentido à Lei Federal Lei Federal 6.938. de 31.08.1981, que determina que “o meio ambiente é patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo (art. 2.o, 1)”. (MILARÉ, 2005, p.73.) A Arqueologia do Ambiente nasce com a responsabilidade, no sentido de capacidade de assumir as conseqüências dos atos ou das omissões, de analisar as representações ambientais para torná-las mais democráticas.

Conclusões Partindo da premissa que “o meio ambiente é patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo (Lei Federal 6.938. de 31.08.1981, art. 2.o, 1)”, esse capítulo almeja traçar algumas definições de ambiente relacionando-as com as possibilidades de investigação a partir de perspectivas arqueológicas. Assim como realizado por algumas correntes teóricas do Direito Ambiental, aqui tomamos com categoria analítica o ambiente como sendo composto pelo Meio Ambiente Natural e Meio Ambiente Humano, sendo que neste último estaria compreendido o ambiente Cultural, o Artificial e o do Trabalho. Todas essas instâncias estariam em

constante interação e são consideradas como cultura material e, por isso, como elementos que podem ser usados em jogos de poderes ou mesmo como bases para a construção de memórias e identidades individuais e coletivas. Tendo como pressuposto que as representações sobre o ambiente servem como referencial cultural para que indivíduos encontrem repostas para questões como “quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser?” e , a partir da análise dos discursos oficiais produzidos pelas Secretárias de Turismo de Angra dos Reis e Parati, Rio de Janeiro, defendemos que quanto mais democráticas e plurais forem as representações sobre os ambientes maior será o número de indivíduos que poderão construir suas próprias identidades sem se sentirem cerceados ou excluídos. A abertura das representações sobre o ambiente, portanto, poderá resultar em novas relações entre os Ambientes Naturais e os Ambientes Humanos gerando possíveis soluções paras nossa atuais “crises ambientais”.

Agradecimentos: Agradeço aos professores Pedro Paulo Abreu Funari e Sandra Pellegrini pelo convite para escrever esse texto e aos professores do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais, Carlos Alfredo Joly, Leila da Costa Ferreira, Lúcia da Costa Ferreira e Thomas Michael Lewinsohn pelas orientações dadas à minha pesquisa. Aos colegas Antonio Carlos Carneiro de Albuquerque, Renata Fase, Cláudia Kahwage, Cristiane Sanches e Ailton Pinto Alves Filho pelas discussões conceituais sobre os caminhos a seguir. Ao Gilson Rambelli pelo estímulo à busca de apoios e parcerias com instituições públicas e privadas para o desenvolvimento da pesquisa e ao Luiz Estevam Fernandes pela ajuda contínua. Devo mencionar o apoio institucional do NEPAM e do Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP. As idéias expostas são de minha responsabilidade.

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O PATRIMÔNIO NATURAL SOB PROTEÇÃO. A CONSTRUÇÃO DE UM ORDENAMENTO JURÍDICO. Wagner Costa Ribeiro Silvia Helena Zanirato

A proteção ambiental é mais do que uma exigência romântica para manter ambientes naturais aprazíveis à contemplação. Ela envolve riqueza potencial e desenvolvimento econômico sobre novas bases. Por isso, um país como o Brasil, dotado da maior reserva de informação genética do mundo, deve difundir ao público a importância que a conservação ambiental adquire em nossos tempos. Para contribuir nesse debate, organizamos este texto. Ele inicia com uma inquietação acadêmica: como definir o patrimônio? A seguir, discute a proteção do patrimônio natural na escala internacional, que influenciou e muito as normas jurídicas desenvolvidas e aplicadas no Brasil. Por fim, aponta casos estaduais que criaram uma normativa importante que salvaguarda parte relevante do patrimônio natural brasileiro.

Patrimônio natural: em busca de uma definição A proteção de uma área natural é um processo longo, que passa por diversas etapas, todas embasadas em valores que se expressam na esfera da cultura. Podemos dizer que há uma relação entre patrimônio e herança. Segundo a acepção da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o patrimônio é um legado que recebemos do passado, que vivemos no presente e que o transmitimos às gerações futuras; uma fonte insubstituível de vida e inspiração, nosso ponto de referência, nossa identidade (UNESCO, 2005, p. 3). O patrimônio cultural se refere às manifestações materiais e imateriais, tangíveis e intangíveis que afirmam e promovem a identidade cultural de um povo e que são transmitidas de geração a geração. Uma definição como esta implica em compreender que os seres humanos são produtores de cultura e que a identidade cultural de um povo é forjada no meio em que ele vive. Por isso, o ambiente também é patrimônio.

O patrimônio natural tem sido entendido como as formações físicas, biológicas e geológicas excepcionais, habitats de espécies animais e vegetais ameaçadas e zonas que tenham valor científico, de conservação ou estético (UNESCO, 2005, p. 3). Tal sentido também traduz um outro entendimento a respeito da natureza. Se durante séculos esta foi considerada hostil aos propósitos civilizatórios, algo a ser domado pela espécie humana uma vez que era admitida como antagônica à cultura, a degradação ambiental ocorrida ao longo do século XX fez emergir um outro olhar. Já não se podia consumi-la infinitamente; havia que preservar o ambiente natural para buscar qualidade de vida no presente e no futuro, além de procurar manter áreas naturais protegidas com fins de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico. Nesse contexto, natureza e cultura passaram a ser vistas em conjunto e a salvaguarda de ambas tornou-se objeto das políticas patrimoniais.

A proteção do patrimônio natural no âmbito internacional Desde os primeiros enunciados a respeito da incorporação da natureza como patrimônio, gradativamente também se constituiu um campo legal que instituiu normas necessárias para sua preservação. O princípio era o de resguardar o que não se pode reconstituir e manter áreas para conhecer a dinâmica natural do planeta. Paralelamente, percebeu-se que a preservação de áreas naturais implicava em ultrapassar o campo de alcance das normas jurídicas dos países, uma vez que os sistemas naturais, como por exemplo, a Amazônia, ultrapassam os limites dos Estados. Além disso, os impactos causados pela degradação do ambiente também não coincidem necessariamente com as fronteiras. Passou-se assim a buscar medidas internacionais de proteção e de controle do uso do ambiente natural. Uma primeira alusão nesse campo pode ser encontrada no Tratado Constitutivo da Unesco, de 1945, que em seu preâmbulo fez menção “à existência de um patrimônio universal no âmbito da cultura” (SILVA, 2003, p. 34). A Unesco tornou-se a organização responsável pela proteção do patrimônio cultural em escala mundial. Também promoveu encontros da comunidade internacional para a criação, promoção e divulgação de instrumentos normativos, celebrados por meio de convenções e recomendações destinadas à salvaguarda de elementos significativos da presença humana na Terra. Teve início, a partir de então, uma ordem internacional para a proteção do patrimônio cultural.

Dentre os instrumentos de cooperação elaborados em conjunto pela comunidade internacional encontram-se as recomendações, resoluções e convenções. As recomendações têm um caráter pontual e sugerem medidas, sem um valor vinculativo. As resoluções levam os Estados-membros à adoção de medidas concretas. Elas, assim como as convenções, constituem o aparato jurídico que normatiza as relações entre países. As convenções são tratados multilaterais aprovados pelos Estados; são normas que impõem obrigações recíprocas aos países contratantes e que devem ser ratificadas pelos governos signatários que assumem obrigações de executarem suas disposições em seu estrito termo (SILVA, 2003, p. 57). Até 1972, além da responsabilidade de conduzir as discussões no âmbito da cultura, a Unesco também respondia pelo comando das discussões ambientais no interior da ONU. Assim, ao mesmo tempo em que coordenava os encontros internacionais para a preservação do patrimônio cultural, executava programas de educação ambiental e promovia conferências internacionais envolvendo a temática do ambiente. Uma primeira ação da Unesco no que se refere à questão ambiental ocorreu em 1949, por ocasião da realização da Conferência das Nações Unidas para a Conservação e Utilização dos Recursos. O resultado desse encontro foi um diagnóstico da situação ambiental mundial (Ribeiro, 2001, p. 63). Depois disso, outro evento de destaque foi a Conferência realizada em Paris, em 1962, da qual foi aprovada a Recomendação relativa à salvaguarda da beleza e do caráter das paisagens e sítios. Nesse documento estavam indicadas as medidas para a proteção das paisagens naturais e das transformadas pela espécie humana, sua inclusão no planejamento urbano e regional e a criação de parques e reservas naturais. Além disso, constavam medidas para a proteção legal por zonas e proteção de sítios isolados (Recomendación, 1962). Essas medidas em muito se aproximavam do instrumento legal de preservação e influenciaram a criação de outros tipos de unidades de conservação, como as Áreas de Proteção Ambiental- APAs que temos no Brasil, que não implicavam na desapropriação de terras. Distinguem-se naquele período os seguintes elementos para a preservação ambiental: a preocupação com a perda de vida selvagem, em função de sua importância científica; a manutenção de áreas necessárias à vida humana (como elemento regenerador físico e espiritual); e, também, áreas de potencial econômico detentoras de recursos que possam vir a ser utilizados no futuro. Também se vê expresso pela primeira vez o estímulo à criação de áreas protegidas e a inclusão desta estratégia nos sistemas de planejamento territorial como um princípio norteador de políticas públicas. Não obstante

a importância dessas Recomendações, elas tiveram apenas um conteúdo normativo, “expressando dificuldades de se estabelecer regras e exigências internacionais” (SCIFIONI, 2003, p. 83). Divisa-se, no decorrer dos anos 1960, o crescimento do que pode ser considerado o despertar dos governos com a situação ambiental (Nazo e Mukai, 2003, p. 109). Ao longo dessa década foram elaboradas séries de leis por diversos países interessados em tentar controlar a poluição das águas continentais, do mar, do ar e em salvaguardar zonas específicas. É o caso da Carta Européia das Águas, de 1968, que estabeleceu o princípio de que as águas não conhecem fronteiras e, portanto, os cuidados em seu trato precisavam ser supranacionais; ou da Convenção Africana para a Conservação da Natureza e de seus Recursos Naturais, também de 1968, que estendeu aos Estados africanos o compromisso para a criação de reservas, regulamentação da caça, da pesca e da proteção a espécies da fauna e da flora (idem, p.110). Talvez o maior destaque dentre as preocupações ambientais dessa década possa ser a Conferência Intergovenamental de Especialistas sobre Bases Científicas para o Uso e Conservação Racionais dos Recursos da Biosfera, reunião realizada em Paris, em 1968, quando se discutiram os impactos ambientais causados pela ação humana. Dessa Conferência resultou um programa interdisciplinar O Homem e a Biosfera, que reuniu estudiosos dos sistemas naturais para estudarem as conseqüências das demandas econômicas em tais ambientes (RIBEIRO, 2003, p. 605-606). A década seguinte ampliou a inquietação com a problemática ambiental de tal forma que resultou na aprovação da Resolução 2749 (XXV) de 1970, pela Assembléia Geral das Nações Unidas sobre os Princípios que Regulam os Fundos Marinhos e Oceânicos e seu Subsolo Fora dos Limites da Jurisdição Nacional. Segundo a Declaração assinada pelos Estados participantes, os fundos oceânicos constituíam um patrimônio comum da humanidade. Sendo assim, seus recursos deveriam ser explorados sob a gestão de uma organização internacional, cuja atuação deveria se pautar “pelos princípios da não apropriação, da utilização pacífica da exploração e explotação da zona e seus recursos no interesse de toda a humanidade e priorizar os países em desenvolvimento, dentro dos propósitos da Carta das Nações Unidas” (SILVA, 2003, p. 35). Isso tudo corrobora a construção de uma ordem ambiental internacional, ou seja, um conjunto de convenções internacionais que busca regular as ações humanas sobre o ambiente em escala internacional (Ribeiro, 2001), na qual a Unesco teve um papel destacado até a década de 1970. Porém, esse cenário se alterou a partir de 1972 quando ela passou a dividir as ações no campo da conservação ambiental com outros organismos multilaterais. Em julho daquele ano, ocorreu em

Estocolmo a Conferência sobre o Meio Ambiente Humano, primeira grande conferência convocada pela ONU para tratar de princípios básicos para a proteção ambiental. A Declaração final da Conferência de Estocolmo pode ser considerada o esteio do atual direito internacional do meio ambiente. Nela ficaram definidos que os Estados têm o direito soberano de explorar seus recursos de acordo com sua política ambiental, e a responsabilidade de garantir que sua ação não venha a prejudicar áreas além dos limites de sua jurisdição (NAZO & MUKAY, 2003, p. 111). Nos termos da Declaração “os recursos naturais da Terra e especialmente, parcelas representativas dos ecossistemas naturais devem ser preservados em benefício das gerações atuais e futuras”. Do mesmo modo, “o homem tem a responsabilidade especial de preservar e administrar judiciosamente o patrimônio representado pela flora e pela fauna silvestres, bem como o seu habitat" (Declaración, 1972). Outra decisão da Conferência de Estocolmo foi a criação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), uma organização que passou a centralizar as ações ambientais no interior da ONU, bem como o Fundo Mundial para o Meio Ambiente. O PNUMA passou a funcionar em 1973, porém sua sede foi inaugurada em Nairóbi, no Quênia, apenas em 1986. Por meio do PNUMA a temática ambiental passou a ser abordada cada vez mais em escala internacional. Ele organizou várias convenções que tratam do ambiente, entre elas a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção, 1973; a Convenção sobre Poluição Transfronteriça de Longo Alcance, 1979; a Convenção da Basiléia sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito, 1979; a Convenção de Viena para a Proteção da Camada de Ozônio, 1985 e o Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio, 1987 (RIBEIRO, 2003, p. 608). Enquanto o PNUMA ganhava corpo institucional, a Unesco organizou a Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, celebrada em Paris em 1972. Sua convocação se deu em face do reconhecimento da necessidade de proteger os elementos valorados no campo cultural e as áreas naturais. Também influenciou essa reunião internacional a constatação da intensa degradação ambiental gerada pelas transformações da vida social e econômica. Nessa ocasião a Unesco expressou a compreensão de que a proteção de uma área não poderia se efetuar unicamente em escala nacional, devido à magnitude dos meios necessários para esse procedimento, que não raras vezes extrapolavam os recursos econômicos, científicos e tecnológicos de que os países que abrigavam os elementos patrimoniais eram detentores. A proteção deveria ser

de toda a humanidade. Com essa avaliação, a Unesco elaborava o conceito de patrimônio mundial, constituído por obras e expressões de processos naturais de interesse excepcional, por vezes testemunhos únicos que deveriam ser considerados pertencentes não apenas aos Estados em que se encontravam, mas a toda a humanidade. Esta deveria se envolver em sua defesa e salvaguarda, de modo a assegurar a sua transmissão às gerações futuras (CONVENCIÓN, 1972). Ficaram então definidos no artigo 1º. da Convenção, que o como patrimônio cultural englobava os monumentos, o grupo de edifícios e os lugares dotados de “um valor universal excepcional”, do ponto de vista da história, da arte, da ciência, ou, do ponto de vista estético, etnológico ou antropológico. Os elementos culturais que se encontrassem dentro desses critérios seriam inscritos na Lista Mundial de Patrimônio da Humanidade. Segundo o entendimento dos convencionais de 1972, para que uma paisagem cultural fosse inserida na referida lista deveria expressar formas específicas de interação entre a cultura e o meio físico. As paisagens produzidas intencionalmente, como jardins; paisagens que apresentassem provas manifestas da sua dinâmica natural ao longo do tempo, e, paisagens associativas definidas pela associação de significado simbólicos não imediatamente tangíveis à natureza. A UNESCO também definiu no artigo 2º. que o patrimônio natural seria composto por bens 65 igualmente dotados de um valor excepcional do ponto de vista estético e/ou científico. Estes bens englobavam os monumentos naturais constituídos por formações físicas e biológicas ou por grupos dessas formações; as formações geológicas e fisiográficas das zonas estritamente delimitadas que

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O conceito de bem cultural foi empregado pela primeira vez pela Unesco em 1954, na “Convenção para a proteção dos bens culturais em caso de conflito armado”. Segundo o artigo 1 o da Convenção, os “bens culturais, qualquer que seja sua origem e propriedade” compreendem: a. Os bens, móveis ou imóveis, que tenham uma grande importância para o patrimônio cultural dos povos, tais como os monumentos de arquitetura, de arte ou de historia, religiosos ou seculares, os campos arqueológicos, os grupos de construções que por seu conjunto ofereçam um grande interesse histórico ou artístico, as obras de arte, manuscritos, livros e outros objetos de interesse histórico, artístico ou arqueológico, assim como as coleções científicas e as coleções importantes de livros, de arquivos ou de reproduções dos bens antes definidos; b. Os edifícios cujo destino principal e efetivo seja o de conservar ou expor os bens culturais móveis definidos no item a. tais como os museus, as grandes bibliotecas, os depósitos de arquivos, assim como os refúgios destinados a proteger em caso de conflito armado os bens culturais móveis definidos no item a.; c. Os centros que compreendam um número considerável de bens culturais definidos nos itens a. e b., que se denominarão «centros monumentais» (Convencion, 1954). A partir dos anos 1950 o bem cultural passou a ser adotado em distintas convenções e documentos internacionais, e sua definição conceitual foi melhor precisada em 1966 pela Comissão Franceschini, instituída pelo Parlamento italiano para estudos sobre a tutela e valorização do patrimônio histórico, artístico e paisagístico italiano. Segundo a Declaração de Princípios da referida Comissão, um bem cultural correspondia a “todo bem que constitua um testemunho material dotado de valor de civilização”. Essa Comissão também estabeleceu um vasto elenco do que integraria os bens culturais, entre estes os bens arqueológicos, os bens artísticos e históricos, os bens ambientais paisagísticos e urbanísticos, os bens arquivísticos e os bens bibliográficos.

constituam o habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas; e os lugares ou as zonas naturais estritamente delimitadas dotados de beleza natural. Para concretizar os propósitos da proteção foram constituídos o Comitê do Patrimônio Mundial e o Fundo do Patrimônio Mundial. O primeiro, um órgão intergovernamental, constituído por representantes de 21 Estados-parte na Convenção, eleitos periodicamente66. Este Comitê ficou responsável por identificar o referido patrimônio e inscrevê-lo na Lista Mundial; zelar por esses “bens” em conjunto com o Estado onde eles se encontram; decidir aqueles que se encontram em situação de perigo e determinar as condições e os meios apropriados para que um Estado possa aceder ao Fundo do Patrimônio Mundial. Os recursos do Fundo têm como fonte contribuições obrigatórias e voluntárias dos Estados-parte, contribuição da Unesco, doações de outras agências da ONU, principalmente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e de organismos públicos e privados, bem como de receitas de manifestações organizadas em prol do Fundo. Como pode ser percebido, a Convenção definiu que os bens deveriam expressar um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte, da ciência, da conservação e da beleza natural; um critério vago e difícil de aplicar, segundo Françoise Choay (2001, p. 207). Certamente por isso mesmo, em 1977, em suas Diretrizes Operacionais, a Unesco procurou precisar melhor os critérios que norteariam o significado de que os bens deveriam ser portadores para que pudessem ser merecedores da proteção: valor estético, ecológico e científico. A beleza cênica, como aquela que se expressa nas paisagens notáveis e de extraordinária beleza natural ou em condição de exceção como o Parque Nacional de Iguaçu, no Brasil e Los Glaciares, na Argentina. A importância ecológica se aplica ao habitat de espécies em risco de extinção ou detentoras de processos ecológicos e biológicos importantes, como as remanescentes da Mata Atlântica na Costa do Descobrimento, situados em território brasileiro. Por fim, a relevância científica de áreas que contenham formações ou fenômenos naturais relevantes para o conhecimento científico da história natural do planeta, como as Montanhas Rochosas nos EUA e Canadá (SCIFONI, 2006, p. 143). Esse momento corresponde ao crescimento da mobilização dos ambientalistas, que passaram a ter uma influência crescente na formulação e implementação de políticas e na promoção de estratégias para a conservação ambiental. Na década de 1980, associações ambientalistas e os movimentos

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Depois da aprovação do Comitê, ele passou a contar com 40 representantes de países-parte.

sociais de diversas partes do mundo passaram a discutir alternativas de desenvolvimento e a acompanhar as reuniões das Nações Unidas, exercendo um papel indutivo em diversas iniciativas de formulação e elaboração de políticas ambientais (RIBEIRO, 2003, p. 532). Os anos de 1990 confirmaram que a preocupação com a conservação dos recursos naturais tornarase internacional. Logo no início da década ocorreu a Conferência das Nações Unidas para o MeioAmbiente e Desenvolvimento, a Conferência do Rio, em 1992, que teve o objetivo de regular a ação humana em relação à emissão de gases que afetam o efeito-estufa e o acesso à informação genética. Nela foram celebradas as Convenções sobre Mudanças Climáticas e sobre Diversidade Biológica e assinados documentos que contem um conjunto de princípios a respeito dos recursos genéticos e da soberania de cada país sobre o patrimônio existente em seu território. Um ponto alto da Convenção sobre a Diversidade Biológica ocorreu quando se buscaram políticas destinadas a garantir os direitos dos povos indígenas e das populações tradicionais sobre os recursos genéticos, haja vista a estreita relação entre a preservação desses recursos e os conhecimentos, costumes e tradições dessas populações (ZANIRATO & RIBEIRO, 2006). A relação estabelecida entre a preservação dos recursos e os conhecimentos tradicionais expressa a importância da diversidade cultural da humanidade. As comunidades e a cultura, em seus distintos gêneros de vida, são vistas como “ingredientes básicos da humanidade que dão sentidos e conteúdos ao princípio abstrato da igualdade” (Jelin, 1996, p. 21). A diversidade converteu-se assim num elemento constitutivo da universalidade. O reconhecimento de que a diversidade cultural é intrínseca à humanidade deu-se em 2005, quando foi aprovada a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. Nessa ocasião, ficou estabelecida pelos Estados-parte que a diversidade cultural é uma característica essencial da humanidade constituindo, em si, um patrimônio que deve ser valorado e preservado. Destacou-se, nesse momento a necessidade de incorporar a cultura como um elemento estratégico das políticas de desenvolvimento nacional e internacional e a importância dos conhecimentos tradicionais como fonte de riqueza material e imaterial que podem servir para o polêmico desenvolvimento sustentável67 (CONVENCIÓN, 2005). 67

O desenvolvimento sustentável é talvez o mais polêmico tema discutido na ordem ambiental internacional. Ele procura associar uma matriz econômica, o desenvolvimento, à outra de origem biológica, a sustentabilidade. Inúmeros pesquisadores desqualificaram essa associação, como Martinez-Alier (1992 e 1998) e Gonçalves (1989). Entretanto, outros afirmam que se trata de uma nova possibilidade de reprodução da vida, como defendem Leff (2000, 2001 e 2001a) e Sachs (1993). Por seu turno, Ribeiro et. al. (1996) e Ribeiro (2001) indicam que a sustentabilidade pode ser uma alternativa desde que envolva uma nova ética que desconsidere como fim a acumulação capitalista e passe a ponderar os diversos ritmos da natureza no uso dos recursos naturais.

Os signatários proclamaram também a importância dos direitos de propriedade intelectual para sustentar os que participam da criatividade cultural. Uma questão bastante controversa, posto que nela se insere a propriedade coletiva dos conhecimentos tradicionais. Esta Convenção ainda não entrou em vigor, mas sua existência reforça a necessidade da construção de uma sociedade multicultural no século XXI. Ainda que o conhecimento tradicional, como uma forma específica de saber, tenha sido afirmado como um bem na Convenção da Diversidade Biológica, ainda permanece em aberto a questão de como preservar sem congelar esse saber e como remunerá-lo uma vez, que ele é produto de uma coletividade (CUNHA, 1999, p. 160). Estas questões permanecem polêmicas até a presente data, como pôde se perceber na Oitava Conferência das Partes da Convenção de Diversidade Biológica, ocorrida em Curitiba, em maio de 2006, quando milhares de delegados discutiram o papel do conhecimento das comunidades tradicionais e sua apropriação e uso pelo Ocidente. As dificuldades em chegar a um consenso quanto a esse assunto postergaram sua discussão para 2010, na Décima Conferência das Partes. Enquanto isso se assiste à realização de contratos entre empresas transnacionais - em especial do setor de fármacos, e comunidades tradicionais sem regulamentação internacional. Esses aspectos atinentes à preservação do patrimônio natural, indicam a premência de articular interesses diversos que muitas vezes extrapolam territórios. Estes se expressam nos debates em torno das conferências temáticas e normativas. Devido a esse jogo político, nem sempre a aplicação de uma convenção ocorre em deliberada e estreita articulação com as convenções afins. Ao mesmo tempo, revela quão candentes têm sido as discussões a respeito da ampliação do conceito de patrimônio e as implicações daí decorrentes.

A proteção do patrimônio natural no âmbito brasileiro Apesar de o conceito de patrimônio natural propriamente dito somente ter se consolidado mundialmente a partir da Convenção do Patrimônio de 1972, a idéia e os instrumentos para a instituição da proteção desse tipo de patrimônio manifestaram-se bem antes no Brasil. É o que pode ser constatado no artigo 10º da Constituição de 1934, que empregou pela primeira vez como dever do Estado, tanto no âmbito federal como no estadual, “a proteção das belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico” (Constituição, 1934).

Esse documento também trouxe um dispositivo essencial para a proteção do patrimônio no Brasil: a determinação, conforme o artigo 113º, de que o direito de propriedade não poderia ser exercido “contra o interesse social e coletivo”. Essa outra forma de entender a propriedade possibilitou a alienação do bem e a efetiva proteção legal do patrimônio. Em se tratando dos bens naturais, foram promulgados nesse momento o Código de Minas e o Código de Águas, que deram as bases para a nacionalização das riquezas do subsolo. A Constituição de 1937 reafirmou a sujeição do instituto de propriedade ao interesse coletivo. Apesar de ter permanecido como um direito individual, sujeitava-se à ingerência do Estado para cumprir sua função social. Essa Constituição, bem como o Decreto lei N.º 25/1937 mantiveram a atribuição do Estado para com o patrimônio, substituindo, entretanto, o termo “belezas naturais” por “monumentos naturais” e por “paisagens ou lugares dotados pela natureza”. É o que pode ser observado no artigo 134 quando estabeleceu que “os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou locais particularmente dotados pela natureza gozam de proteção e dos cuidados especiais da nação, dos Estados e dos Municípios”. Esse mesmo artigo também definiu que os atentados cometidos contra os monumentos e as paisagens “serão equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional” (Constituição, 1937). Encerram-se nesse dispositivo o entendimento de que a natureza e a cultura devem estar sob a tutela do Estado, haja vista o interesse social de que ambas podem ser dotadas. A mesma associação se encontra no Decreto-lei N.º 25/1937, quando definiu como patrimônio histórico e artístico nacional os “monumentos naturais, sítios e paisagens de feição notável dotada pela natureza ou agenciados pela indústria humana”. Esse Decreto normatizou a atividade de preservação dos bens e definiu o tombamento como “o instituto jurídico através do qual o poder público determina que os bens culturais sejam objetos de proteção”. Ele ainda fixou o modo como deve ocorrer essa proteção. O tombamento é assim um procedimento jurídico pelo qual se faz a proteção do monumento que se efetiva ao ser inscrito no livro do tombo. Ele é tanto o ato administrativo quanto a operação de inscrição do objeto em um dos livros de tombo: arqueológico, etnográfico e paisagístico, histórico, das belas artes e das artes aplicadas. Os efeitos jurídicos sobre o patrimônio tombado restringem a alienação, a alteração da paisagem da vizinhança e a modificação do bem. Por fim, obriga o proprietário a conservá-lo (Silva, 2003, p. 139).

Nesses primeiros anos após o Decreto 25, apesar da ênfase dada à preservação de monumentos arquitetônicos, na área do patrimônio natural foram tombados alguns morros no município do Rio de Janeiro em função da ameaça de construção, no topo do Pão de Açúcar, de um restaurante e uma nova estação de bondes (FONSECA, 1996, p. 59). A Constituição de 1946 manteve a proteção patrimonial do Estado e estendeu a salvaguarda aos documentos históricos, mas deixou de equiparar os atentados aos bens tombados aos atentados cometidos contra o patrimônio nacional (Constituição, 1946). A Carta de 1967 também manteve esses dispositivos e ampliou o conceito de patrimônio ao incluir jazidas arqueológicas (Constituição, 1967). Nos anos 1960, a legislação em defesa do patrimônio nacional foi reforçada com a criação de leis que regulamentaram o patrimônio natural. Entre elas a Lei dos Sambaquis - Lei 3924/1961, que regulamentou os achados arqueológicos e pré-históricos; o Código Florestal - Lei 4771/1965, que considerou a floresta como de interesse comum a todos os habitantes do país e fixou áreas de preservação permanente, e a Lei de Proteção à Fauna - Lei 5197/1967. Também nessa década foi criado, pelo Decreto No. 289/1967, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), encarregado de gerenciar o setor florestal brasileiro por meio de incentivos ao reflorestamento. Como desdobramento da Conferência de Estocolmo de 1972, foi criada, em 1973 por meio do Decreto nº 73.030, no âmbito do Ministério do Interior, a Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA). Esta recebeu a incumbência de administrar os recursos ambientais e controlar as estações ecológicas e as áreas de proteção ambiental. Em agosto de 1981 foi sancionada a Lei 6938 relativa à Política Nacional do Meio Ambiente, que definiu o papel do poder público e as responsabilidades do setor privado no que tange à proteção ambiental. Esta Lei permitiu a criação do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), em 1986, com poder deliberativo e competências para estabelecer normas, critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente, com vistas ao uso racional dos recursos ambientais. Uma das características marcantes do CONAMA desde o início foi a participação da sociedade civil por meio de representações de movimentos ambientalistas e sociais. Uma vez que a SEMA e o IBDF muitas vezes tinham atribuições paralelas e conflitantes, foram fundidos, em 1989, a outros dois órgãos: a Superintendência da Borracha – SUDHEVEA e a Superintendência da Pesca – SUDEPE. Disso resultou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), criado por meio da Lei nº 7.735, de 22 de fevereiro de

1989. Este órgão ficou responsável pelo licenciamento ambiental, gestão das unidades de conservação federais e pela execução da Política Nacional do Meio Ambiente. Desde 1977 o Brasil havia se tornado signatário da Convenção do Patrimônio Mundial de 1972. Como conseqüência disso, em 1980 a cidade de Ouro Preto foi alçada à condição de Patrimônio da Humanidade pela Unesco, o que veio a inaugurar a presença brasileira na Lista Mundial. Em 1986, o país inscreveu seu primeiro patrimônio natural, o Parque Nacional de Iguaçu nessa mesma Lista68. A década de 1980 também pode ser entendida como bastante positiva para a salvaguarda dos bens naturais, pois nela deu-se ainda a promulgação da Constituição de 1988, que estabeleceu um conceito mais amplo de patrimônio cultural ao incluir o patrimônio natural e o imaterial como foco da ação das políticas patrimoniais. Nela o patrimônio natural aparece como “sítios de valor paisagístico e ecológico”, o que indica, por um lado, a valorização dos aspectos estéticos, herança do conceito de monumento natural e, por outro, o reconhecimento de um aspecto até então não considerado: o ecológico, ou seja, a importância dos fatores, das relações e dos processos estabelecidos na dinâmica da natureza. De acordo com o artigo 216 da Constituição, o patrimônio cultural brasileiro é constituído por “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Entre os bens inserem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (Constituição, 1988). Em conformidade com esse dispositivo, compete ao Governo Federal, por meio do Ministério da Cultura, formular e operacionalizar a política patrimonial, ou seja, criar instrumentos e mecanismos que possibilitem a proteção, a preservação e a difusão do patrimônio cultural brasileiro. Entre os instrumentos estão: o inventário, o registro, a vigilância, o tombamento, a desapropriação e outras formas de acautelamento e preservação.

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Em 2006, a presença brasileira na Lista Mundial do Patrimônio da Humanidade incluía os itens a seguir: Parque Nacional do Jaú, Ouro Preto, Olinda, São Miguel das Missões, Salvador, Congonhas do Campo, Parque Nacional do Iguaçu, Brasília, Parque Nacional Serra da Capivara, Centro Histórico de São Luís, Diamantina, Pantanal Matogrossense, Costa do Descobrimento, Reserva Mata Atlântica, Reservas do Cerrado, Centro Histórico de Goiás e Ilhas Atlânticas. Fonte: www.iphan.gov.br . Acesso em agosto de 2006.

Até a presente data o governo federal, por meio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, tombou 38 itens como patrimônio natural (tabela 1).

Tabela 1 - Patrimônio natural tombado pelo Iphan até 2005. TIPOLOGIA

BEM TOMBADO

LOCAL

ANO TOMBAMENTO

Serras, Morros,

Serra do Monte Santo

Monte Santo/BA

1983

Montes e Picos

Monte Pascoal Serra da Barriga

Porto Seguro/BA União dos Palmares/AL

1974 1986

Serra do Curral Pico do Itabirito*

Belo Horizonte/MG Itabirito/MG

1960 1962

Penhasco do Corcovado

Rio de Janeiro/RJ

1973

Morro Cara de Cão Morro da Babilônia

Rio de Janeiro/RJ Rio de Janeiro/RJ

1973 1973

Morro da Urca Penhasco dos Dois Irmãos

Rio de Janeiro/RJ Rio de Janeiro/RJ

1973 1973

Morro do Pão de Açúcar

Rio de Janeiro/RJ

1973

Penhasco da Pedra da Gávea Morros do Distrito Federal

Rio de Janeiro/RJ Rio de Janeiro/RJ

1973 1938

Morro do Valongo Morro do Pai Inácio e rio

Rio de Janeiro/RJ Palmeiras/Bahia

1938 2000

Mucujezinho Dedo de Deus

Guapimirim/RJ

s/data

Grutas

Da Mangabeira De Bonito, Grutas do Lago Azul

Ituaçu/BA Bonito/MS

1962 1978

Parques Nacionais

Parque Nac. Serra da Capivara

São Raimundo Nonato,

1993

Brejo do Piauí, Coronel José Dias e João Costa/PI Parque Nacional Florestas da

Rio de Janeiro/RJ

1967

Tijuca Parque Histórico Nacional dos

Joboatão dos Guararapes/PE

1961

Guararapes Parque Nacional dos Serrotes do

Quixadá/CE

s/data

Parque e Fonte do Queimado Jardim Botânico

Salvador/BA Rio de Janeiro/RJ

1997 1938

Horto Florestal Parque da cidade/Jd. São Clemente

Rio de Janeiro/RJ Nova Friburgo/RJ

1973 1957

Quixadá Parques e áreas verdes urbanas

Outros

Parque do Palácio Imperial

Petrópolis/RJ

1938

Parque da Independência e Museu

São Paulo/SP

1998

Paulista Jd. Zoobotânico do Museu Emílio

Belém/PA

1994

Goeldi Parque Rua Marechal Deodoro Parque Henrique Lage

Joinville/SC Rio de Janeiro/RJ

1965 1957

Passeio Público Sítio Burle Marx

Rio de Janeiro/RJ Rio de Janeiro/RJ

1938 2003

Passeio Público

Fortaleza/CE

1965

Ilha da Boa Viagem

Niterói/RJ

1938

Praias de Paquetá Município de Parati

Rio de Janeiro/RJ Parati/RJ

1938 1974

Cj. Paisagístico da Lagoa Rodrigo

Rio de Janeiro/RJ

2000

de Freitas Fonte: www.iphan.gov.br/bancodedados/guiadosbenstombados. Acesso em 29/11/2005. Adap. de Scifoni, 2006.

Entre os bens tombados constata-se a valorização de aspectos geomorfológicos, o que representa 42% do total, áreas verdes urbanas, o que corresponde a 32%. Também se percebe que há uma classificação do patrimônio natural “a partir de seus significados reconhecidos por meio do tombamento: ou como testemunhos da natureza senso estrito ou como um complemento de outros atributos que se deseja preservar” (SCIFONI, 2006 p. ) Quanto aos aspectos geomorfológicos, percebe-se que há um critério estético-paisagístico, mas que evidencia uma relevância do ponto de vista de processos naturais, como o Pico do Itabirito, um maciço de hematita compacta69; da Serra do Curral, considerada um marco geográfico de beleza paisagística, da Pedra da Gávea e do Pão de Açúcar, enormes blocos graníticos; da Gruta do Lago Azul, que se destaca pela forma atípica de seus espeleotemas e por conter material paleontológico (ossadas de mamíferos pleistocenos). Nas áreas verdes urbanas tem-se o Parque e Fonte do Queimado, uma área de mananciais coberta com vegetação abundante; o Parque e Museu Emílio Goeldi, que conta com uma das mais representativas coleções de flora e fauna amazônica; a Gruta da Mangabeira, na qual se incluem grandes jazidas de fósseis, e que se destaca principalmente pelo seu papel simbólico-religioso ligado às procissões de romeiros que anualmente se direcionam ao local; a Serra da Barriga, tombada a partir da pressão do movimento negro, local no qual se

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Que teve seu tombamento anulado por decisão do presidente da República em 1965 para viabilizar a exploração de minério de ferro pela Companhia Siderúrgica Nacional.

constituiu o mais importante quilombo da história brasileira, Palmares, entre outros (SCIFONI, 2006). Confirmando a preocupação em consolidar uma normativa destinada à preservação do patrimônio natural brasileiro foi instituída, por meio da Lei 9433, em 1997, a Política Nacional de Recursos Hídricos, que permitiu a criação do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos. Este Sistema visa garantir a utilização racional e integrada desses recursos e permitir a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos de origem natural ou decorrente do uso indiscriminado dos recursos naturais. Outro órgão criado por aquela mesma lei foi o Conselho Nacional dos Recursos Hídricos, que, infelizmente, não contempla todos os estados da Federação em sua composição por razões jamais expostas ao debate público, e a Agência Nacional da Água, criada pela Lei 9984 de 2000, responsável pela operacionalização do Plano Nacional dos Recursos Hídricos. Além disso, também integram a gestão dos recursos hídricos os Comitês de Bacia, que contam com representantes da sociedade que vive na bacia hidrográfica e que elaboram um plano de gestão da água com participação popular. Do mesmo modo pode ser entendida a Lei 9985, de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que define o conjunto de áreas a serem protegidas seja no âmbito federal, estadual ou municipal. A proteção visa a manutenção da diversidade biológica e dos recursos genéticos no território nacional e nas águas jurisdicionais. Conforme o tipo de manejo e de uso, as Unidades de Conservação podem ser de proteção integral ou de uso sustentável. No segundo caso, a população que vive nas áreas protegidas pode desenvolver atividades produtivas, desde que aprovadas no Plano de Manejo, e que sejam consideradas de baixo impacto ambiental e não coloquem em risco a manutenção dos ritmos naturais do ecossistema. Há que se considerar também a existência de outros instrumentos que se destinam a aperfeiçoar a política de proteção ao patrimônio natural brasileiro, entre eles a Lei de Crimes Ambientais, Lei 9605 de fevereiro de 1998, que dispõe acerca das sansões penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. A produção sistemática de documentos legais destinados a salvaguardar o patrimônio natural brasileiro traduz o esforço que tem havido nessa direção. A criação, em 1992 depois da Conferência do Rio, do Ministério do Meio Ambiente, que passou a coordenar a conservação e a preservação de ambientes naturais em escala Federal, reforçou esse movimento dos dirigentes brasileiros. Também se constata uma crescente conscientização da sociedade brasileira que se mobilizou para a realização

de duas Conferências Nacionais de Meio Ambiente, respectivamente em 2003 e 2005, da qual participaram milhares de representantes de empresários, universidades, movimentos sociais e ambientais, entre outros segmentos. No entanto, ainda persiste o desafio de aplicar os dispositivos firmados de forma a impedir a devastação da natureza brasileira, detentora da maior diversidade biológica do mundo e a permitir que a geração atual e as gerações futuras possam usufruir as vantagens que essa riqueza propicia.

A proteção na esfera estadual. Alguns exemplos. A proteção do patrimônio natural já era objeto de experiências levadas a cabo em alguns estados da federação, décadas antes da edição da Constituição de 1988. É o caso do Estado do Paraná que criou, em 1948, dentro da Secretaria de Educação e Cultura, a Divisão do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Paraná para a “defesa e restauração dos monumentos e conservação das paisagens e formações naturais características do Estado” (KERSTEN, 2000, p.132). Em 1953 foi editada a Lei No. 1211, relativa à proteção do patrimônio histórico, artístico e natural do Paraná. Apesar de ser a primeira referência no país a respeito do patrimônio natural, definido como “os monumentos naturais, os sítios e paisagens que importa conservar e proteger pela feição notável com que tenha sido dotado pela natureza ou agenciado pela indústria humana”, essa Lei só entrou em vigor na década de 1960, quando foram tombados os primeiros monumentos do Estado (idem, p. 138-139). Pode-se dizer que o Paraná “foi pioneiro também em ações de maior magnitude” no que tange ao patrimônio natural, uma vez que seus tombamentos entre as décadas de 1960 e 1980 (Tabela 2) foram de maior extensão e complexidade, como se deu ao tombar a Ilha do Mel, a paisagem da orla, o Parque de Vila Velha e a Serra do Mar (SCIFONI, 2006).

Tabela 2 - Patrimônio Natural tombado no Paraná, até 2005 Ano de tombamento

Bem

Município

1966

Parque de Vila Velha, Furnas e

Ponta Grossa

Lagoa Dourada

1970

Paisagem da orla marítima

Matinhos

1974

Árvore – Paineira

Campina Grande do Sul

Árvore – Angico branco Árvore – Corticeira

Curitiba Curitiba

Árvore – Tipuana Passeio Público

Curitiba Curitiba

1975

Ilha do mel

Paranaguá

1976

Árvores da Praça Santos

Curitiba

Dumont 1982

Sambaquis

Paranaguá

1983

Capão da Imbuia

Curitiba

1985

Ilha de Superagui

Guaraqueçaba

1986

Serra do Mar

Antonina, Guaraqueçaba, Guaratuba,Piraquara, Quatro Barras, São José dos Pinhais, Tijucas do Sul, Campina Grande do Sul

1988

Gruta da Lancinha

Rio Branco do Sul

1990

Árvore – Ceboleira

Curitiba

Árvore – Palmeira Árvore – Carvalho

Morretes São Matheus do Sul

Fonte: www.pr.gov.br/cpc-benstombados.html. Acesso em 15/02/2005 Organizado por Scifoni, 2006.

Minas Gerais também desenvolveu ações de preservação da natureza antes da Constituição de 1988. A estratégia do Estado para esse fim foi a de priorizar paisagens que expressavam formas de relevo em destaque no contexto regional, tais como serras e altos picos rochosos. Mas o grande impulso deu-se nos anos 1980, com a Constituição de 1989 do Estado, que instituiu patrimônios naturais reconhecidos. Na Tabela 3 encontra-se a lista de bens tombados em Minas Gerais.

Tabela 3 - Patrimônio Natural tombado em Minas Gerais, até 2005.

Ano do tombamento

Bem

Município

1977

Lagoa e Lapa do Sumidouro

Lagoa Santa e Pedro Leopoldo

1978

Serra de Ouro Branco

Ouro Branco

1989

Serra da Piedade Serra do Caraça

Caeté Catas Altas

Bacia Hidrográfica do

Diversos

Jequitinhonha Pico do Ibituruna

Governador Valadares

Pico do Itabirito

Itabirito

Serra da Ibitipoca Serra de São Domingos

Lima Duarte Poços de Caldas

Conjunto arqueológico e

Matozinhos

1996

paisagístico Poções 1999

Cachoeiras do Tombo da

Salto da Divisa

Fumaça 2000

Serra dos Cristais

Diamantina

Fonte: www.iepha.mg.gov.br/bens.htm. Acesso em 15/02/2005Organizado por Scifoni, 2006.

O Rio de Janeiro foi outro Estado que iniciou o tombamento de seu patrimônio natural antes de 1988. A partir de 1965 uma grande parte desse patrimônio já havia sido tombado, como indica a Tabela 4. Nessas ações observam-se a diversidade de tipologias, que vai desde áreas verdes urbanas à serras, morfologias costeiras, praias e ilhas.

Tabela 4 - Patrimônio Natural tombado no Rio de Janeiro, até 2005. Ano de tombamento

Bem

Município

1965

Parque Henrique Lage Parque da Gávea/Pq da Cidade

Rio de Janeiro Rio de Janeiro

Ilha do Brocoió

Rio de Janeiro

1967

Árvores em Paquetá

Rio de Janeiro

1968

Figueira gigante

Rio de Janeiro

1975

Morro do Urubu

Rio de Janeiro

1983

Pontal de Sernambetiba

Rio de Janeiro

Morro do Amorim

Rio de Janeiro

Morro do Cantagalo

Rio de Janeiro

Morro do Portela Pedra da Baleia

Rio de Janeiro Rio de Janeiro

1985

Praia do Grumari

Rio de Janeiro

1987

Litoral fluminense- foz do Rio

São Francisco de Itapoana, São

Paraíba do Sul Ilha Grande

João da Barra Angra dos Reis

Litoral fluminense: canto sul da

Niterói

Praia Itaipu e Ilhas da Menina, da Mãe e do Pai Litoral fluminense Pedra do Sal

Paraty Rio de Janeiro

1988

Dunas Dunas

Arraial do cabo Cabo Frio

2003

Bens naturais do litoral de

Armação de Búzios

Armação de Búzios Fonte: www.inepac.rj.gov.br/ Guia dos bens tombados. Organizado por Scifoni, 2006.

No Estado de São Paulo, as primeiras iniciativas ocorreram logo nos primeiros anos de fundação do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico - Condephaat, que se deu em 1968. A partir de meados da década de 1970 o Condephaat realizou uma série de tombamentos de áreas naturais no Estado, como a nascente do Rio Tietê, a Reserva Estadual da Cantareira, as serras do Japi e a do Mar, além de áreas urbanas, como os bairros dos Jardins e do Pacaembu, ou os parques da Aclimação, Siqueira Campos e Ibirapuera. A prática preservacionista em São Paulo foi bastante marcada por conflitos que envolvem a questão da propriedade; basta lembrar a iniciativa do Condephaat de preservar os casarões da Avenida Paulista, que resultou na destruição de grande parte daqueles imóveis, pois os proprietários não aceitaram as decisões do poder público (RODRIGUES, 1996, p. 198). Na Tabela 5, a seguir, encontram-se os bens tombados no Estado de São Paulo.

Tabela 5 – Patrimônio Natural tombado em São Paulo, até 2005. BEM TOMBADO

ANO DO PEDIDO

TOMBAMENTO

1. Bosque dos Jequitibás

1969

1970

2. Parque das Monções

1969

1972

3. Caminho do Mar

1972

1972

4. Pedreira de Varvitos

1969

1974

5. Parque da Independência

1969

1975

6. Horto Florestal de Rio Claro

1974

1977

7. Maciço da Juréia

1973

1979

8. Reserva Florestal do Morro Grande

1978

1981

9. Jardim da Luz

1977

1981

10. Parque Siqueira Campos

1978

1982

11. Mata Santa Genebra

1982

1983

12. Vila de Picinguaba

1983

1983

13. Parque Estadual do Jaraguá

1978

1983

14. Serras do Japi, Guaxinduva e Jaguacoara

1974

1983

15. Serra de Atibaia

1982

1983

16. Serra do Voturuna

1983

1983

17. Reserva Est. Cantareira e Horto Florestal

1978

1983

18. Morro do Botelho

1983

1984

19. Serra do Mar

1976

1985

20. Morros do Icanhema, do Pinto e do Monduba

1978

1985

21. Parque da Aclimação

1983

1986

22. Jd. América, Europa, Paulista e Paulistano

1985

1986

23.Casa Modernista

1983

1986

24. Vila de Paranapiacaba

1983

1987

25. Vale do Quilombo

1986

1988

26. Haras São Bernardo

1986

1990

27. Nascentes do Tietê

1974

1990

28. Pacaembu

1985

1991

29. Serra do Guararu

1988

1992

30. Parque do Ibirapuera

1983

1992

31. Rocha Moutonnée

1975

1992

32.Chácara Tangará

1989

1994

33. Parque do Povo

1988

1994

34.Ilhas do Litoral Paulista

1989

1994

35. Parque da Água Branca

1983

1996

36. Cratera de Colônia

1994

2003

37. Morro Juquery (Pico Olho D’Água)

1983

2004

Fonte: Condephaat. Adap. de Scifoni, 2006.

Destaca-se nas ações paulistas, a diversidade de patrimônios naturais reconhecidos: manchas de vegetação nativa remanescente, áreas verdes urbanas constituídas por uma vegetação não nativa e implantada, extensas áreas constituídas por maciços serranos e morros e estruturas geológicas peculiares. A diversidade é explicada, segundo Scifoni (2006), pela presença do Conselheiro e geógrafo Aziz Ab’Saber no corpo do Condephaat. Ab’Saber se propôs a orientar uma política de ação dentro do Condephaat, “que deveria ocupar-se em identificar e proteger um importante patrimônio natural constantemente ameaçado diante da expansão do processo de urbanização do território”. Somado a isso, havia “um movimento de renovação do próprio conceito de patrimônio”, que se voltava para os bens ambientais urbanos, num entendimento de que “patrimônio natural não se referia somente a testemunhos de uma beleza natural excepcional”, mas que reconhecia o valor “de uma natureza

transformada e apropriada socialmente”, presente nos parques e áreas verdes urbanas (SCIFONI, 2006). Há que salientar que em São Paulo, parte significativa das áreas naturais tombadas, ou seja, 44%, resultou de pedidos que partiram da sociedade civil. Ainda assim, persiste o desafio de fazer que a legislação existente seja cumprida e aperfeiçoada ainda mais, de forma a proteger o patrimônio para a geração atual e para as futuras gerações, em que pesem os interesses particulares.

Conclusão A formulação de uma normativa jurídica voltada à proteção do patrimônio natural e a organização de uma estrutura administrativa especializada nesse propósito demonstram o reconhecimento da necessidade de salvaguardar nosso legado. Também demonstram a responsabilidade do Estado e da sociedade no que tange à conservação dos bens naturais. No entanto, há que se ter em conta as dificuldades que se colocam para deter o nível atual de devastação da natureza. Interesses diversos, como os de madeireiros, povos indígenas, fazendeiros, trabalhadores rurais sem terra, apensas para listar alguns dos mais importantes atores sociais do Brasil contemporâneo, indicam que a sociedade deve refletir sobre ao menos dois aspectos, quando o assunto é a preservação ambiental: quem ganha e quem perde com a manutenção da diversidade biológica e demais feições naturais? Quais os objetivos da manutenção desse patrimônio? Apenas quando estas perguntas forem respondidas teremos perspectivas de gestão do ambiente natural de forma mais democrática e igualitária, distribuindo os benefícios que ela pode e deve gerar às gerações presentes e futuras. É preciso enfrentar criticamente os interesses que se contrapõem à salvaguarda do patrimônio natural, sob pena de nos depararmos, em curto prazo, com a perda da biodiversidade, a desertificação do solo e os efeitos do aquecimento do planeta. Esse enfrentamento será político. A normativa jurídica aqui exposta prevê em muitos foros a participação popular e poderá servir para o debate. Ou, poderá apenas legitimar interesses ocultos à população brasileira. A mobilização permanente e qualificada pode evitar que a segunda alternativa impere.

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SOBRE OS AUTORES ORGANIZADORES DA OBRA: Pedro Paulo A Funari - Livre-Docência em História da UNICAMP, Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas, Mestre em Antropologia Social e Doutor em Arqueologia pela USP, pesquisador associado da Illinois State University (Estados Unidos), da Universitat de Barcelona (Espanha), Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam/Unicamp), docente do curso de doutorado em Ambiente e Sociedade/UNICAMP. Coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos NEE/UNICAMP, Bolsista produtividade do CNPq. Sandra de Cássia Araújo Pelegrini – Pós-Doutora em Patrimônio Cultural pelo Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas (NEE/UNICAMP), Doutora em História pela USP, Mestre em História e Sociedade pela UNESP; pesquisadora do NEE/UNICAMP; Docente do Programa de Mestrado da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Coordenadora do Laboratório de Estudos das Artes e do Patrimônio Cultural/UEM, consultora do Organismo Nacional de Ciencia y Tecnología - Programa Iberoamericano de Ciencia e Tecnología para o Desarollo – Madri , Espanha (CYTED). Gilson Rambelli - Pós-Doutor em Arqueologia pelo Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas (NEE/UNICAMP); Doutor e Mestre em Arqueologia pela USP; Diretor do Centro de Estudos de Arqueologia Náutica e Subaquática (CEANS) e do NEPAM/UNICAMP; Membro efetivo do International Committee on Underwater Cultural Heritage (ICUCH/ ICOMOS).

COLABORADORES: Aline Vieira de Carvalho - Mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas. Carlos Fernando de Moura Delphim - Arquiteto especializado em paisagens culturais e jardins históricos, atua no Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, consultor da Unesco, membro-associado do Comitê Brasileiro do ICOMOS. Lourdes Domingues – Arqueóloga e pesquisadora da Oficina do Historiador de Cuba e do Núcleo de Estudos Estratégicos NEE/UNICAMP. Lúcio Menezes Ferreira – Doutor em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas. Jurema Machado - Coordenadora de Cultura da UNESCO, Brasília – Brasil. Glaydson José da Silva - Pós-doutorando do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas. Bolsista FAPESP; Diretor associado do CPA – Centro de Estudos e Documentação sobre o Pensamento Antigo Clássico, Helenístico e de sua Posteridade Histórica, Professor da Universidade Estadual de Londrina.

Gilmar Arruda - Doutor em História pela Unesp. Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina. Bolsista produtividade do CNPq. Pilar Luna Erreguerena - Departamento de Arqueologia Subaquática do Instituto Nacional de Antropologia e História – INAH – México, Membro efetivo do International Committee on Underwater Cultural Heritage (ICUCH/ ICOMOS). Robert K. Paterson – Professor Catedrático de Direito – Faculdade de Direito – University of British Columbia – Vancouver, Canadá . Silvia Helena Zanirato - Pós-doutora em Geografia Política – pela Universidade de São Paulo/USP, Doutora História pela Unesp e Docente do Departamento de História – UEM. Suzanna Sampaio - Licenciada em História e Geografia –Instituto SEDES SAPIENTIAE - PUC São Paulo; Pósgraduada em História Moderna pela Universidade de Edinburgh-Escocia-UK; Advogada pela OAB/SP76 614; Especialista em Criminologia e Direito Penal pela USP; Conselheira do IPHAN; membro eleito da Academia Nacional de Belas Artes de Lisboa – Portugal; Presidente de Honra do ICOMOS/BRASIL desde 2002. Wagner Costa Ribeiro – Pós-doutor em Geografia e Doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo/USP; docente do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-graduação em Geografia da USP, Bolsista produtividade do CNPq.

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