PATRIMÔNIO CULTURAL E IDENTIDADE SERTANEJA: UM ESTUDO SOBRE OS VALORES PATRIMONIAIS NO POVOADO DE CABOCLO

May 26, 2017 | Autor: A. Galdino Bacelar | Categoria: Urban Conservation, Integrated Conservation, História Da Arquitetura E Do Urbanismo
Share Embed


Descrição do Produto

centralidades periféricas l periferias centrais

PATRIMÔNIO CULTURAL E IDENTIDADE SERTANEJA UM ESTUDO SOBRE OS VALORES PATRIMONIAIS NO POVOADO DE CABOCLO Aline Galdino Bacelar LUP, Laboratório de Urbanismo e Patrimônio Cultural, UFPE Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, UFPE [email protected]

RESUMO: Este artigo apresenta um estudo sobre os valores patrimoniais do povoado de Caboclo, município de Afrânio, no estado de Pernambuco. Este estudo está focado no patrimônio material – os valores históricos, culturais, paisagísticos, urbanísticos e arquitetônicos, embora o povoado apresente um rico patrimônio imaterial. A identificação dos valores foi realizada através de levantamentos de campo, pesquisa em fontes primárias e secundárias e entrevistas. O risco da perda dos valores autênticos de Caboclo foi a motivação para realização desse estudo. O povoado vem sofrendo diversas intervenções, sem, contudo, haver nenhum instrumento normativo que as guiasse. O primeiro passo na direção da mudança é a realização de um levantamento conciso de seus valores patrimoniais que então possam subsidiar medidas de salvaguarda, mantenedoras da autenticidade do sítio histórico. Embora esteja localizado no sertão pernambucano, fora do eixo tradicional de concentração do interesse patrimonial pela preservação de sítios históricos, Caboclo apresenta um conjunto significativo de valores, que quando considerado e julgado no contexto cultural ao qual pertence, ganha valor e, portanto, merece ser preservado. Palavras-chave: Patrimônio cultural. Valores. Caboclo.

urbicentros V

08 a 11 de novembro de 2016 - joão pessoa - paraíba

ABSTRACT: This article presents a study about the heritage values of the village of Caboclo, municipality of Afranius, in the State of Pernambuco. This study is focused on the material heritage-historical, cultural values, architectural, urbanistic and, although the village presents a Rico intangible heritage. The identification of the values was performed through field surveys, research on primary and secondary sources and interviews. The risk of loss of the authentic values of Caboclo was the motivation for this study. The town has been suffering various interventions, without, however, any normative instrument to guide it. The first step toward the change is the realization of a concise survey of their asset values, which then can subsidize safeguard measures, supporters of the authenticity of the historic site. Although it is located in the pernambucan hinterland, outside the traditional axis of patrimonial interest for the preservation of historic sites, Caboclo presents a significant set of values, which when considered and judged in the cultural context to which it belongs, gains value and therefore deserves to be preserved. Keywords: Cultural heritage. Values. Caboclo.

centralidades periféricas l periferias centrais

1. INTRODUÇÃO Este artigo trata de um estudo que busca identificar os valores patrimoniais do pequeno povoado de Caboclo, município de Afrânio, sertão do São Francisco, no Estado de Pernambuco. Este território está localizado no extremo oeste do Estado de Pernambuco, no sertão nordestino, distante 829 km do Recife (Figuras 1 e 2). Despertou minha atenção o fato de Caboclo, embora esteja geográfica e economicamente distante dos grandes centros urbanos, onde os processos de urbanização ocorrem mais freneticamente, afetando inclusive os núcleos antigos, ter recebido diversas intervenções, sem, contudo, haver nenhum instrumento normativo que as guiasse. Falta a Caboclo um levantamento conciso de seus valores patrimoniais, valores históricos, paisagísticos, urbanísticos e arquitetônicos, que então possam subsidiar diretrizes de intervenção, mantenedoras da autenticidade do sítio histórico. Por esta razão, a necessidade de proteger um sítio histórico, com a significação cultural de Caboclo, representativo de parte da história do Nordeste e, por que não, do Brasil, exige medidas que garantam a proteção deste bem. Espera-se que o estudo acerca do sítio histórico de Caboclo possa contribuir para a conservação da memória do sertão nordestino e seu processo histórico de ocupação. O trabalho completo, aqui apresentado apenas parte dele, subsidiou a análise dos técnicos envolvidos no processo de tombamento estadual junto à Fundarpe – Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, que ainda encontra-se em processo de análise. Figuras 1 e 2 – À esquerda, região Nordeste com o estado de Pernambuco e o município de Afrânio em destaque e à direita, Região do São Francisco com o município de Afrânio e o povoado de Caboclo em destaque.

Fonte – Elaborado pela autora a partir de mapa da Agência CONDEPE/ FIDEM.

urbicentros V

08 a 11 de novembro de 2016 - joão pessoa - paraíba

2. CABOCLOS BRAVOS DO SERTÃO DE RODELAS A percepção do contexto geográfico em que o sítio histórico de Caboclo está inserido e dos processos históricos de sua construção constituem-se etapas importantes no processo de identificação de seus valores patrimoniais. Por localizar-se, estrategicamente, próximo aos estados do Piauí e Ceará, e ao mesmo tempo, no caminho para o sul da região nordeste – a Bahia, Caboclo tem uma grande importância histórica, pois foi um dos primeiros núcleos de povoamento da região, já que no final de século XVII e início do XVIII, fazia parte da ‘‘Travessia Velha’’ - os tropeiros que vinham das províncias do Piauí e Ceará, em demanda à Passagem do Juazeiro e Bahia. Como a construção da estrada de ferro – PT (Petrolina – Teresina), em 1926, foi deslocada 9 km de Caboclo, na fazenda Inveja, hoje Afrânio, o povoado parou no tempo, conservando suas principais características originais. O contingente populacional do povoado foi, gradativamente, sendo atraído para a nova povoação que estava sendo criada (FUNDARPE, 1985). Pode-se destacar como atrativos para a fixação da comunidade no local, os recursos necessários para a prática da pecuária, os pontos úmidos em meio à aridez do sertão. Caboclo possui diversas cacimbas e caldeirões, que se transformaram em ponto obrigatório de parada para os viajantes (tropeiros), que seguiam com o gado desde o Piauí e o Ceará em direção a Bahia. Cita Sebastião Galvão, em seu Dicionário Chorographico, que em virtude da Lei Provincial nº 601, de 13 de maio de 1864, Caboclo foi sede de Paróquia (GALVÃO, 1927). Apesar de ter sido sede de Paróquia, o povoado nunca prosperou e ainda hoje continua, praticamente, com sua primitiva feição. Até o começo do século XX, Caboclo atuava como ponto de entroncamento do principal caminho que interligava essa região à Petrolina, com o caminho que, vindo de Cachoeira do Roberto, se dirigia rumo a Ouricuri. Com o passar dos anos, cada vez mais, foi se consolidando o núcleo de Afrânio, em detrimento ao de Caboclo, que marginalizado em face da estrada de ferro, foi entrando em decadência. A restrita e permanente dimensão urbana de Caboclo denota a estagnação econômica e social do povoado. Os povos nativos A ocupação do território sertanejo, que foi efetuada, sobretudo, por meio dos rios transformados em caminhos de água, dava início à história da conquista de territórios através do povoamento com as fazendas de gado, da dominação dos indígenas reduzidos em missões religiosas catequizadoras e das “guerras justas” provocadas por vantagem do aprisionamento e posterior venda do índio, aproveitados como mão-de-obra escrava na criação de gado e outras benfeitorias (BARBOSA, 1991). No período pré-histórico, a região do povoado de Caboclo, bem como todo o sertão do São Francisco, era ocupada por tribos indígenas. Apesar

centralidades periféricas l periferias centrais de não ter identificado com exatidão qual a tribo que ali habitava, sabe-se que eles cercavam as lagoas formadas com água da chuva, até hoje existentes nas proximidades de Caboclo, com pedras empilhadas formando uma muralha. Por se tratar de uma região bastante seca, com apenas afluentes sazonais durante o verão, os índios não se fixaram ali, procurando lugares mais propícios para se estabelecer, tais como às margens de rios de águas perenes, uma vez que a água constituía-se num elemento de difícil obtenção em toda a região do sertão pernambucano (BARBOSA, 1991). A presença de religiosos missionários em Caboclo se deu de forma esporádica, através das chamadas “Santas Missões”, que era a visita de missionários por várias povoações, realizando diversos atos religiosos, tais como a realização de casamentos, batizados, procissões, bem como reformas e construções nas igrejas. Neste período, Caboclo já era ocupado por famílias brancas e ricas, proprietários de terras e criadores de gado (caprinos). Portanto, os índios que um dia habitaram em Caboclo, há muito, haviam sido expulsos de lá, sendo ocupado pela Fazenda Caboclo, que deu origem àquela povoação composta das famílias mais tradicionais da região. O processo de expulsão dos índios pelos grupos colonialistas, em especial os fazendeiros e vaqueiros, deixou marcas no povoado de Caboclo e em toda a região do vale do rio São Francisco. Fazendas de gado A ocupação do sertão pernambucano, bem como da Bahia e Piauí, deveu-se principalmente ao pastoreio (pecuária), empurrado pela monocultura do açúcar que, nos séculos XVII e XVIII era a atividade mais lucrativa e por isso protegida pela metrópole. Num primeiro momento, a cana limitou a ocupação colonizadora ao litoral, faixa estreita, mas fértil (PORTO, 1959). Porém, com a crise do açúcar, no século XVIII, o exclusivismo primitivo se perdeu, o que possibilitou o surgimento de uma nova força – a civilização do “sertão da terra” – partilhando a liderança da vida econômica e social do nordeste. São duas realidades que se complementam: canavial e pastoreio, litoral e interior, senhor-de-engenho e vaqueiro, casas grandes e currais. Portanto, foi o ciclo do pastoreio, ou pecuária, a principal fonte de espraiamento no trecho que vai do médio São Francisco à bacia do Parnaíba, nos limites do Piauí com o Maranhão. Vários fatores foram favoráveis para que isso acontecesse, um deles era a caatinga, que servia de incentivo para a prática da pecuária. Ao contrário das matas, mais próximas ao litoral, que dificultavam a fixação do gado, o sertão possuía vastas extensões livres, ou com vegetação rasteira. Por outro lado, do ponto de vista da penetração povoadora, a caatinga representava um entrave (PORTO, 1959).

urbicentros V

08 a 11 de novembro de 2016 - joão pessoa - paraíba

A penetração do território pernambucano se deu tanto por colonizadores pernambucanos como pelos baianos. Os pernambucanos se concentraram mais no avanço ao norte, pelo próprio litoral, e ao sul, também pelo litoral, até alcançar a foz do Rio São Francisco e subindo por ele, no atual estado de Alagoas. Enquanto isso, os baianos foram responsáveis pelas entradas em direção ao sertão, tanto baiano como pernambucano, bem como pela margem esquerda do São Francisco, até ultrapassá-lo, penetrando em território pernambucano, indo até o Piauí. Portanto, a penetração do território pernambucano se deu pelas margens de rios, transformados em caminhos de água (BARBOSA, 1991) (Figura 3). Figura 3 – Região Nordeste com os caminhos da penetração baiana e pernambucana.

Fonte – Elaborado pela autora a partir de dados do Inventário do Patrimônio Cultural de Pernambuco – IPAC, 1985.

Teve início a ocupação do Sertão dos Rodelas1, pelas entradas de reconhecimento organizadas por volta de 1560 e pelas bandeiras de preamento, sucedidas por expedições militares, nos primeiros anos do século XVII. Essas expedições eram organizadas pelo poder público ou privado ou ainda pelo consórcio de ambos.

centralidades periféricas l periferias centrais Quando um colono realizava uma bandeira às suas custas, ele poderia posteriormente requerer benefícios em troca do empreendimento, o que significava, muitas vezes, doações de sesmarias. Portanto, a existência de uma população nativa na região do sertão pernambucano levou à Coroa Portuguesa a criar e autorizar uma sucessiva publicação de leis e decretos com o propósito de manter o controle político-econômico da colonização. Estas leis e decretos reais nomeavam, distribuíam poderes, doavam terras (sesmarias), cobravam impostos entre outros meios de manter o controle e domínio sobre a terra, a população em geral e a produção (BARBOSA, 1991). Apesar das entradas de reconhecimento já em andamento desde o século XVI, a ocupação realmente ocorreu, entretanto, através das sesmarias, tendo sido o São Francisco ocupado parte pela Casa da Torre de Garcia d'Ávila2 e parte pela Casa da Ponte, de Antonio Guedes de Brito. O primeiro Garcia D’Ávila, precursor dos sertões pernambucanos, chega com a comitiva do Governador Geral Tomé de Souza e apossa-se das terras em 1573, sendo mais de 70 léguas entre o rio São Francisco e o Parnaíba no Piauí. Pouco a pouco o gado trazido pelas caravelas foi introduzido nos sertões através das doações de grandes sesmarias. Garcia d’ávila e seus sucessores montaram em fins do século XVI e por todo o século XVII os currais pelas margens do São Francisco e seus afluentes, inclusive na região onde hoje está o povoado de Caboclo. Ao contrário dos engenhos de açúcar, que demandavam muitos equipamentos e mão-de-obra, o que requer muitos recursos, a pecuária não tinha tantas exigências. Aos poucos, os povos nativos foram sendo expulsos para dar lugar as extensas fazendas de gado, grande parte delas, pertencentes à Casa da Torre dos Garcia d’Ávila. Ora, a forma como Garcia d’Ávila ocupou o sertão foi, portanto abusiva. Ocorreu então a sobreposição de contextos culturais – o dos grupos colonialistas, vaqueiros e missionários, sobre o das populações indígenas. Similarmente, a povoação de Caboclo surgiu a partir de uma fazenda de gado, Fazenda Caboclo, pertencente ao Capitão Valério Coelho Rodrigues, que vindo de Portugal, instalou-se no Piauí, tornando-se grande fazendeiro, pois já em 1789 possuía mais 14 fazendas, espalhadas tanto no Piauí como em Pernambuco. O capitão Valério Coelho Rodrigues e sua esposa Domiciana Vieira de Carvalho domiciliaramse na Fazenda Paulista, origem da atual cidade de Paulistana - PI. Valério Coelho Rodrigues teve 16 filhos, entre eles Valério Coelho Rodrigues Filho, que passou a morar na Fazenda São João, atual cidade de Afrânio (BARBALHO, 1982). Um dos primeiros habitantes de Caboclo foi Inácio Rodrigues de Santana, filho de José Rodrigues Coelho e neto do Capitão Valério Coelho Rodrigues. Inácio casou-se com Cristina Maria Fernandes e seus descendentes habitaram em Caboclo e constituíram uma das famílias mais tradicionais da região. Por volta de meados do século XIX, a povoação de Caboclo alcançou certo desenvolvimento e destaque, chegando a ser sede de paróquia. Cita Serejo (1979), que pela Lei Provincial nº 601 de 13 de maio

urbicentros V

08 a 11 de novembro de 2016 - joão pessoa - paraíba

de 1864, a sede da freguesia de Santa Maria Rainha dos Anjos, que corresponde a Petrolina, passou “a denominar-se freguesia do Senhor Bom Jesus da Igreja Nova, ficando elevada à categoria de Matriz a capela que sob a invocação do Senhor existe na povoação de Caboclo”. Assim os termos desta lei determinavam a transferência da sede da matriz para Caboclo e, consequentemente, o rebaixamento de Petrolina à categoria de povoação.

3. VALORES PATRIMONIAIS DE CABOCLO Numa época de emergência de uma nova obsessão pela memória, é importante uma análise crítica sobre o que preservar e distinguir nos objetos, edifícios e monumentos os valores que justificam sua salvaguarda. Os valores não são absolutos, mas cada caso deve ser analisado levando em consideração o estado do monumento e o contexto social e cultural em que se insere (CHOAY, 2001). O conjunto dos bens patrimoniais materiais compreende a paisagem de Caboclo, com seus elementos naturais e culturais, e o povoado de Caboclo. Nesse estudo de identificação dos valores patrimoniais de Caboclo, utilizou-se como referencial teórico a análise crítica do historiador de arte Alois Riegl, em seu livro “O culto moderno dos monumentos históricos: sua essência e gênese”. Nele, Riegl (1999) elucida os critérios e objetivos da preservação a partir dos valores que são atribuídos aos monumentos históricos no curso da história. Primeiro, proceder-se-á a identificação e avaliação dos valores patrimoniais materiais autênticos de Caboclo, que são: os valores paisagísticos, urbanísticos e arquitetônicos. Valores paisagísticos Caboclo está localizado numa região bastante árida do sertão nordestino, bem próximo do Estado do Piauí. Não há nenhum rio perene que abasteça a região, pois o Rio São Francisco passa muito distante dali, por isso a região é bastante seca. Por estar estabelecido em uma planície, o cenário urbano de Caboclo é logo percebido, desde a estrada (PE 635), como o conjunto de elementos naturais e construídos, estando estes dois, muito pouco modificados ao longo do tempo. A paisagem natural é composta pela vegetação da caatinga, as lagoas magnesianas, a Serra de Dois Irmãos ao fundo e a Serra do Caboclo em frente ao povoado. Da Serra do Caboclo, onde está colocado o cruzeiro dos Freis Capuchinhos, tem-se uma vista geral do conjunto magnífica, alcançando até as maiores lagoas mais afastadas do conjunto urbano. Verificase o valor da paisagem de Caboclo, também através das visadas e cenários possíveis logo na entrada do povoado. O acesso, que é feito através de uma rua tortuosa, ladeada pelo casario do início do século XX, parece conduzir-nos ao espaço mais marcante do povoado, o largo com casario ao redor e a Igreja de N. Sr. do Bonfim. O valor desta paisagem está no fato de o povoado de Caboclo ter preservado o mesmo ambiente

centralidades periféricas l periferias centrais do século XIX. As pequenas casas, de arquitetura vernacular, sem nenhum elemento excepcional, compõem um cenário harmonioso e, até certo ponto, grandioso, devido às proporções do largo, que se transforma no principal elemento urbano do povoado (Figuras 4 e 5). Figuras 4 e 5 – À esquerda, vista do alto da Serra do Caboclo, onde se pode admirar o começo do chapadão da Serra de Dois Irmãos ao fundo e, à direita, lagoa nos arredores do povoado.

Fonte – À esquerda, acervo autoral, 2005. À direita, acesso em 20 ago.2006.

Valores urbanísticos Os valores urbanísticos são dois, o histórico e o artístico. O primeiro é o mais importante, no caso de Caboclo, por ter preservado o traçado urbano original. Segundo o Inventário do Patrimônio Cultural do Estado de Pernambuco – IPAC, seu traçado é típico de muitas povoações que surgiram no nordeste brasileiro no século XVIII e XIX. Essas povoações se formaram a partir de uma capela que abre espaço a um amplo largo em torno do qual surgem os primeiros casarios, que continuam a se espraiar pelos caminhos de acesso (FUNDARPE, 1985) (Figuras 6 e 7). Segundo Antônio Padilha, a Igreja do Senhor Bom Jesus do Bonfim foi construída em 1817 por Roberto Ramos da Silva, que identificou Caboclo como um dos poucos povoamentos no interior da região de Petrolina no início do século XIX (PADILHA, 1982). A Igreja atuou como centro polarizador do povoado e foi em torno dela que surgiram as edificações, formando um grande largo, do seu lado direito. Em frente à Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, voltada para oeste, abre-se a principal e quieta rua do povoado. É uma via tortuosa, de chão batido, que franqueia acesso a uma série de pequenas ruas, becos e travessas que

urbicentros V

08 a 11 de novembro de 2016 - joão pessoa - paraíba

desembocam no largo da Igreja. O segundo valor citado está no conjunto urbano primitivo, em torno do largo. O casario data, predominantemente, do século XIX e início do XX, com apenas duas edificações do século XVIII preservadas. Isto mostra que, assim como muitas outras povoações do sertão nordestino, a existência de um pólo atrativo, como a Igreja, impulsionou a povoação de Caboclo. Figura 6 – Povoado de Caboclo, demonstrando seu traçado urbano do século XIX.

Largo maior é formado por conjunto urbano mais antigo

Escala Gráfica Largo menor ocupado por construções em seu meio.

Fonte – Elaborado pela autora a partir de base cedida pela CODEVASF

Destaca-se também o conjunto urbano a esquerda da Igreja, que antes da construção das casas que formam uma pequena quadra, constituía o segundo largo do povoado, menor que o principal, mas bastante interessante, pois dava maior destaque ao monumento principal do povoado, a Igreja de Nosso Senhor do Bonfim. Este conjunto é predominantemente do início do século XIX, apesar de alguns vazios ou descontinuidade ao longo daquele século. O conjunto é bastante harmonioso, devido à unidade do gabarito, a técnica construtiva empregada, os elementos decorativos (ou a ausência deles) e o volume dos telhados. Porém, algumas casas possuem elementos decorativos e a própria largura da edificação/ lote que as diferenciam do restante do conjunto. Outra característica das casas que pertenceram às famílias mais importantes da região é que estas eram as únicas que possuíam calçada na frente, feita de ladrilho. São exemplos disso a Casa da família Cavalcanti Ramos e a antiga residência e loja do Capitão Jubilino Coelho de Macedo (Capitão Idobe).

centralidades periféricas l periferias centrais Figura 7 – Parte do casario em torno do largo maior

Fonte – Acervo autoral, 2003.

Atualmente, o povoado de Caboclo, se destaca por configurar, basicamente, o traçado urbano que lhe deu origem, guardando também a sua escala original e a feição quase integral do casario que o compõe. Uma das principais características do sítio histórico de Caboclo é a sua unidade, isto é, “cada elemento do conjunto adquire valor somente quando relacionado aos outros elementos. Em geral, não existem elementos individuais de valor excepcional, a não ser algumas exceções. O valor do conjunto dos bens está na estrutura que ele forma. O que rege é o valor da relação e não o valor das características dos bens” (FURTADO et all, 2003). Embora o povoado não tenha passado por um processo forte de desenvolvimento, percebe-se uma expansão urbana, especialmente a partir da década de 90 do século XX, com a construção de novas casas no sentido noroeste, nordeste e ao longo da PE 635. Essa expansão alterou a configuração urbana tradicional, casario em volta do largo e via tortuosa, dando espaço para novas ruas, ainda em processo de transformação/ consolidação. Valores arquitetônicos O casario datado do século XVIII, XIX e XX, cujo material empregado era o adobe3, é exemplo da arquitetura vernacular4. Foi possível identificar a época de construção das edificações a partir do levantamento feito pela FUNDARPE. É possível perceber, portanto, que a maior parte das edificações mais antigas do povoado é do século XIX e início XX. O valor desta arquitetura está na unidade plástica e construtiva, contribuindo para a ambiência do povoado (Figura 8). A edificação, em geral, está em um lote longo e estreito. A fachada principal está alinhada com o limite do lote e o telhado em duas águas com cumeeira paralela ao menor lado da edificação. A maioria das casas tem portas e janelas com verga reta. A planta das edificações desenvolve-se em sentido longitudinal, sem recuos laterais, podendo apresentar recuo de fundos.

urbicentros V

08 a 11 de novembro de 2016 - joão pessoa - paraíba Figura 8 – Vista de parte do conjunto urbano tradicional, em torno do largo.

Fonte – Acervo autoral, 2005.

Embora, desde 1990, novos conjuntos edificados começaram a surgir como resultado da expansão urbana, eles empregam um sistema construtivo similar, tijolos de adobe, a estrutura da coberta é simples, pois as linhas de madeira estão apoiadas diretamente na alvenaria e telhas de barro do tipo capa e canal. Uma das diferenças está no tipo de reboco utilizado, nas casas mais antigas ele é de cal, areia e barro, mas nas novas construções e mesmo aquelas do conjunto mais antigo que tiveram suas fachadas rebocadas na década de 90 do século XX, têm-se empregado reboco feito com cimento e areia. O valor histórico se destaca na Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, construída em 1817 (PADILHA, 1982), chegando a ser sede de paróquia, embora por um curto período, de 1864 a 1867, em virtude das Leis Provinciais nº 601, de 13 de maio de 1864 e nº 758, de 5 de julho de 1867 (LEAL, 1979). A Igreja é uma edificação isolada em uma das extremidades do largo, estando voltada para a entrada do povoado, como uma guardiã do conjunto de pequenas casas (Figura 9). Figura 9 – Fachada da Igreja com calçada e cruzeiro à frente.

Fonte – Acervo autoral, 2005.

centralidades periféricas l periferias centrais A Igreja possui nave única com coro acima da entrada, capela-mor e sacristias laterais abertas para o altarmor através de arcos. As paredes laterais da nave apresentam pilares alternados por quatro espaços que poderiam caracterizar a intenção de aberturas, e futura ampliação da Igreja, através de naves laterais. O acesso atual do coro, que foi construído em 1908, é feito por escada externa. Apresenta altares laterais na nave e altar-mor em massa, com tratamento da época (FUNDARPE, 1985). A fachada é composta por uma superfície quadrada, com cinco aberturas, três portas de acesso e duas janelas, na altura do coro. O frontão ondulado e com óculo está acima de uma linha de cimalha que contorna toda a edificação. A Igreja é toda rodeada por calçada, construída em 1908 juntamente com o coro e escada de acesso. Além do valor histórico e artístico, a Igreja possui valor de uso, pois continua sendo amplamente freqüentada, especialmente pelos mais velhos da comunidade, que todas as noites se reúnem nela para rezar. Devido ao valor de uso, a Igreja passou por várias intervenções, como troca do piso e da cobertura, para que continuasse tendo condições materiais de utilização. Há uns poucos metros da Igreja, havia as ruínas do cemitério que foi erigido em 1833 e possivelmente, com a Igreja, formavam as edificações mais antigas do povoado. Porém, o cemitério foi transformado no Memorial do Caboclo, contribuindo para perda de valores históricos. Através de levantamento de campo, pode-se verificar que a totalidade das edificações é térrea, dando ainda mais destaque a Igreja e ao grande largo. Predomina o uso habitacional, embora muitas casas permaneçam, o ano inteiro, fechadas.

4. CONCLUSÃO A identificação dos valores patrimoniais de Caboclo, sejam eles paisagísticos, urbanísticos e arquitetônicos demonstrou a importância da preservação deste sítio histórico, através de um suporte legal e normativo, tal como o tombamento. Mas, sabemos que tal medida, sem a devida conscientização da comunidade, não será válida. Portanto, conjuntamente com o tombamento, deve haver a preocupação com a educação patrimonial da comunidade de Caboclo. A escola municipal existente ali pode servir de apoio para esta iniciativa. É possível que este estudo tenha trazido à tona a questão da valorização patrimonial de territórios que estão localizados fora do eixo tradicional de interesse de conservação pelos órgãos competentes – litoral e mata. Mais além, trouxe à atenção a importância de sítios históricos como Caboclo, que apesar de sua restrita dimensão territorial, quando considerado e julgado no contexto cultural ao qual pertence, ganha valor e, portanto, merece ser preservado.

urbicentros V

08 a 11 de novembro de 2016 - joão pessoa - paraíba

REFERÊNCIAS BARBALHO, Nelson. Cronologia pernambucana: subsídios para a história do Agreste e do Sertão. Recife: Centro de estudos de história municipal/ FIAM, vol. 4, 1982. BARBOSA, Bartira Ferraz. Colonização e meio ambiente no sertão pernambucano. In: Revista Clio histórica. Recife, n. 17, p. 7-17, 1998. _________. Índios e Missões: A colonização do médio São Francisco pernambucano nos séculos XVII e XVIII. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1991. CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Unesp, 2001. FUNDAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO DA REGIÃO METROPOLITANA DO RECIFE/ FIDEM. Plano de preservação dos sítios históricos do interior/ PPSHI – Primeira parte. Recife: Governo do Estado de Pernambuco, 1982. FUNDAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO MUNICIPAL DO INTERIOR DE PERNAMBUCO/ FIAM. Calendário oficial de datas históricas dos municípios do interior de Pernambuco. Recife: FIAM/ CEHM, 1994. FUNDAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE PERNAMBUCO/ FUNDARPE. Inventário do patrimônio cultural do Estado de Pernambuco – Sertão do São Francisco/ IPAC. Recife: Governo do Estado de Pernambuco, 1985. FURTADO, Ricardo Cavalcanti e ZANCHETI, Sílvio Mendes (coordenadores), PONTUAL, Virgínia, CARNEIRO, Ana Rita Sá, MOREIRA DA SILVA, Álvaro Antônio, Piranhas: proposta de tombamento e plano de gestão. Recife: L. Dantas da Silva/ CHESF, 2003. GALVÃO, Sebastião de Vasconcellos. Diccionário Chorographico, Histórico e Estatístico de Pernambuco. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1908. Vol. 1. MELLO, José Antônio Gonçalves de. Três roteiros de penetração do território pernambucano (1738 a 1802). Recife: UFPE, 1958. PADILHA, Antônio de Santana. Petrolina no tempo, no espaço, na vez. Recife: FIAM/ CEHM, 1977. PORTO, José da Costa. O pastoreio na formação do nordeste. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1959.

centralidades periféricas l periferias centrais RIEGL, Aloïs. El culto moderno a los monumentos. Madrid: Visor, 1999. SEREJO, Tereza Cristina Leal. Coronéis sem patente: A modernização conservadora no sertão pernambucano. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1979. SILVA, Jacionira Coêlho. Arqueologia no médio São Francisco: indígenas, vaqueiros e missionários. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003. Notas [1]

Sertão dos Rodelas foi como a região do médio São Francisco, inicialmente, depois metade do Nordeste, ficou conhecida até metade do século XVIII. O étimo Rodelas, segundo a versão mais aceita, provinha de uma cachoeira existente nas proximidades da confluência do Pajeú e designaria um prestigiado chefe de tribo situada na margem baiana do São Francisco, denominação que se estendeu à própria tribo. À medida que se estendia territorialmente, o sertão dos Rodelas foi perdendo a ligação com a identidade dos grupos nativos da região, sendo reduzido para sertão de Rodelas, um lugar somente, não o sertão dos nativos Rodelas. [2]

Garcia d'Ávila, patriarca da família, chegou à Colônia com o primeiro governador-geral, Tomé de Sousa, de quem recebeu sesmaria, iniciando sua criação com duzentas cabeças de gado. Os d'Ávila tornaram-se grandes proprietários de terra e ficaram conhecidos como os senhores da Casa da Torre, por habitarem uma construção imponente em forma de castelo, cujas ruínas ainda demonstram a sua grandiosidade. [3]

[4]

Adobe é um bloco de barro, maciço, seco ao sol, um pouco maior que o tijolo comum, usado na construção de casas rústicas.

O vernáculo é entendido como a construção elaborada segundo uma tradição secular, de origem colonial, que se transformou segundo uma regra tipológica relativamente constante. É a arquitetura de origem popular, cujo tipo foi mantido pelos mestres construtores ao longo dos séculos. (FURTADO et all, 2003).

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.