Patrimônio Cultural e Propreidade Intelectual: a proteção do conhecimento e das expressões culturais tradicionais

May 28, 2017 | Autor: Moreira Eliane | Categoria: Patrimonio cultural inmaterial, Direitos de Povos e Comunidades Tradicionais
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Descrição do Produto

Propriedade Intelectual e Patrimônio Cultural: proteção do conhecimento e das expressões culturais tradicionais

Organizadores:

Eliane Moreira Carla Arouca Belas Benedita Barros Antônio Pinheiro 13- 15 de outubro de 2004 Belém-Pará

Petrobrás, Lei de Incentivo à Cultura Realização: Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) Co-Realização: Amigos do Museu, Governo do Estado/Fundação Tancredo Neves, UNESCO, IPHAN. Apoio: MCT, MinC.

Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP) Biblioteca do CESUPA-Belém - Pará - Brasil

S471a

Seminário Patrimônio Cultural e Propriedade Intelectual: proteção do conhecimento e das expressões culturais tradicionais (2004: Belém / Pa). ISBN 85-7098-122-8

Anais do Seminário Patrimônio Cultural e Propriedade Intelectual: proteção do conhecimento e das expressões culturais tradicionais, realizado em Belém no período de 13-15 de out. 2004, organizador por: Eliane Moreira, Carla Arouca Belas, Benedita Barros, Antônio Pinheiro. - Belém: CESUPA /MPEG, 2005. 1. Propriedade intelectual. 2. Patrimônio Cultural. I. Moreira, Eliane, org. II. Belas, Carla Arouca, org. III. Barros, Benedita, org. IV. Pinheiro, Antônio, org. V. Título. C.D.D. 20. ed. 342.2298

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Patrocinadores:



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Coordenação Geral: Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) Carla Arouca Belas & Benedita da Silva Barros Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) Eliane Moreira & Gysele Amanajás Organização: Carla Arouca Belas Eliane Moreira Benedita Barros Antônio Pinheiro Equipe: Antônio Pinheiro Neila Cristina Barboso da Silva Alyne Marcely Fernandes de Souza Wiliams Barbosa Cordovil Bruno Mileo Cíntia Reis Costa Gisele Amanajás Projeto Gráfico, Editoração e capa: Wiliams B. Cordovil Capa: Imagens: Ns. Sra. de Nazaré Gravura rupestre da região da Prainha-PA, provável representação da gravidez - Edithe Pereira / Livro: Arte da Terra, 1999



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Normalização: Hilma Celeste Alves Melo Revisão: Maria das Graças da Silva Pena Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA)

Uma característica marcante da pós-modernidade, segundo Gonçalves (2002), é a "utilização livre e indiscriminada de elementos culturais diversificados". O maior problema desse movimento, que o autor classifica como "apologia ao sincretismo cultural", é que, na maioria das vezes, os contextos que dão origem e legitimam tais expressões culturais são ignorados. Dessa forma, assistimos hoje a produção em série de cópias de artefatos de populações tradicionais. Descontextualizados muitos desses artefatos, sobretudo os utilizados em rituais sagrados, tendem a assumir contornos inadequados aos parâmetros culturais de origem. Além dos artefatos, músicas e danças tradicionais, o próprio conhecimento tradicional, sobretudo o conhecimento associado à biodiversidade, que serve de subsídio à descoberta de novos fármacos e composições cosméticas, é hoje muito cobiçado pelas indústrias e tem sido apropriado sem que as comunidades recebam qualquer benefício pelo seu uso comercial. O conhecimento tradicional associado à biodiversidade foi objeto de um outro seminário organizado pelo Museu Goeldi em parceria com o Centro Universitário do Pará (CESUPA) em setembro do ano passado. O seminário "Saber Local / Interesse Global: Propriedade Intelectual, Biodiversidade e Conhecimento Tradicional na Amazônia", com 170 inscritos, reuniu representantes de instituições de pesquisa da região, empresários, dirigentes públicos, representantes de ONGs e de comunidades indígenas. Na época, uma reivindicação das instituições e comunidades presentes consistia em evitar que as discussões sobre proteção do conhecimento tradicional se restringissem ao uso da biodiversidade. Apontou-se a importância de se tratar o conhecimento tradicional em toda a sua amplitude, incluindo às discussões a questão da proteção das expressões culturais tradicionais, uma vez que para muitos desses povos "natureza" e "cultura" não constituem categorias diferenciadas. Ou seja, a utilização de uma planta para fins medicinais muito raramente encontra-se nesses contextos dissociada de rituais místicos, espirituais. A proteção e valorização dos conhecimentos e expressões culturais envoltos na sociobiodiversidade amazônica é um desafio às instituições da região. Neste sentido, foi proposta a realização do Seminário "Patrimônio Cultural e Propriedade Intelectual: proteção do conhecimento e das expressões culturais tradicionais" ocorrido entre os dias 13 a 15 de outubro de 2004, para o qual foi fundamental o patrocínio da PETROBRAS. Vale lembrar que a data foi escolhida em função da proximidade com as celebrações do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, manifestação religiosa de significativa expressão cultural da região amazônica com repercussão nacional e

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APRESENTAÇÃO



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internacional, documentada pelo IPHAN para registro no Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC). Desta forma, pretendia-se contribuir para o incentivo das discussões acerca da proteção dos conhecimentos tradicionais relacionados ao patrimônio imaterial do País.

Peter Mann de Toledo

João Paulo do Valle Mendes

Diretor MCT/Museu Paraense Emílio Goeldi

Reitor Centro Universitário do Estado do Pará

Coica Y el Consentimiento Fundamento Previo ....................................................... 15 Iza Roná Dos Santos Tapuia

Salvaguarda do Patrimônio Cultural: bases para constituição de direitos .............................................................................................. 27 Ana Gita de Oliveira

O INRC e a Proteção dos Bens Culturais ................................................................. 33 Carlas Arouca Belas

Bem Imaterial - Seminário ........................................................................................ 49 Mario Sérgio Sobral Costa

Círio de Nossa Senhora de Nazaré em Belém/PA: inventário e registro como patrimônio cultural brasileiro .............................................................. 55 Maria Dorotéa Lima

Objeto etnográfico, coleções e museus....................................................................... 71 Lucia Hussak

Patrimonio Indígena. Derrotero Hacia Su Regulación Legal en la Argentina................................................................................................. 79 Teodora Zamudio

Museus e Patrimônios Indígenas ............................................................................... 103 Eliane Potiguara

Gravações e acervos a partir da pesquisa lingüística e cultural como um passo para revitalização, fortalecimento e resgate cultural ........................ 109 Ana Vilacy Galucio

O Jogo de Espelhos: reflexões sobre a questão da reintegração de gravações históricas do candomblé baiano nas comunidades atuais .......................... 117 Angela Lühning

Audio And Audiovisual Archives, Intellectual Property, And Cultural Heritage: some comparative considerations......................................... 127 Anthony Seeger

Patrimônio Magüta: artefatos como meios de comunicação entre diferentes contextos sócio- culturais.................................................................. 141 Priscila Faulhaber.

Educação Patrimonial em Comunidades Quilombolas: o resgate do saber e do saber fazer louça de barro das artesãs da região de Porto Trombetas-PA............................................................................. 155 Luiz Guilherme Campos Reis

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SUMÁRIO



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Indicações Geográficas como Instrumento de Proteção do Patrimônio Cultural Imaterial ................................................................................... 165



Rita de Cássia Domingues-Lopes.

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Moisés de Oliveira Wanghon e Cíntia Reis Costa.

A Cultura Tradicional e o Direito Autoral ................................................................ 177 Bruno Alberto P. Mileo e Gysele A. Soares.

Reminiscências das Guerras: estudo das armas das coleções etnográficas dos povos indígenas das guianas............................................... 195 Carlos Eduardo Chaves

Propriedade Intelectual e Patrimônio Cultural Imaterial: uma visão jurídica ........... 211 Silvia Regina Dain Gandelman

O Conhecimento Tradicional como Estratégia para a Conservação: a participação das comunidades do entorno do Parque Estadual de Monte Alegre/PA para a criação da unidade de conservação ....................................................................................... 223 Regina Oliveira, Benedita Barros, Ruth Almeida, Juliana Magalhães, Carlos Lira.

Patrimônio Material Indígena em Contextos Díspares: análise da cerâmica figurativa Karajá.......................................................................... 239 Anna Maria Alves Linhares.

O Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi e suas Múltiplas Facetas no Universo Amazônico............................................................... 257 Carlos Eduardo Lira Silva, Regina Oliveira Da Silva, Vera Bastos, André Costa, Kleber Perotes e Amir Lima.

Instrumentos Musicais e de Sinalização: Coleções Etnográficas da Universidade Federal do Pará................................................................................ 269 Rita de Cássia Domingues-Lopes e Gilmar Matta da Silva.

Artefatos do Cotidiano das Aldeias Xikrín: Contextualizando Uma Coleção Etnográfica............................................................................................. 283 O Patrimônio Cultural Indígena: Valorização Nacional e Repatriamento de Acervos Etnográficos.................................................................... 303 Alyne Marcely Fernandes de Souza, Antônio do S. F. Pinheiro Benedita da Silva Barros, Gustavo Lynch, Neila Cristina dos Santos Barbosa.

ANENOS MOÇÃO DE APOIO

Mario Quintana, poeta da simplicidade, no seu poema “Das Utopias” nos fala. Se as coisas são inatingíveis... ora! Não é motivo para não querê-las... Que tristes os caminhos, se não fora A presença distante das estrelas! Nos últimos três anos, a parceria entre o Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG) e o Centro Universitário do Pará (CESUPA), têm proporcionado discutir o Acesso à Biodiversidade, ao Conhecimento Tradicional e a sua interface com a Proteção do Conhecimento (a propriedade intelectual). O Seminário Propriedade Intelectual e Patrimônio Cultural: Proteção dos Conhecimentos e das Expressões Culturais Tradicionais, se configura em mais uma forma de abordar um prisma desse cenário a partir do Patrimônio Cultural e suas formas de Proteção. Nossa intenção é aproximar pesquisadores e comunidades tradicionais de forma que possam dialogar e construir entendimentos, uma vez que o espaço de trabalho de um é o espaço de existência do outro e ambos estão dependentes de ações para execução de suas atividades e manutenção de sua existência. Nossa Utopia é buscar construir a ponte entre o sonho e a realidade. Na construção de um cenário que crie possibilidades de realização do almejado, contamos com a conjugação de esforços de uma equipe, a partir da qual se tem conseguido pensar e executar os trabalhos. Os textos reunidos nessa publicação são representativos do profícuo, debate ocorrido durante o Seminário de Propriedade Intelectual e Patrimônio Cultural, cuja realização cabe nos agradecer, a Cláudia Lopez, Gisele Amanjás e Nelson Sanjad, que avaliaram e selecionaram os trabalhos apresentados na forma de Painéis e a Lúcia Hussak, por ter aceitado compor o grupo de trabalho, a Lilian Barros pelas excelentes contribuições na elaboração do projeto e sugestão de palestrantes. Institucionalmente agradecemos a Petrobrás pelo Patrocínio, aos Amigos do Museu Goeldi, a Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves, a Unesco e IPHAN, pela parceria na Co-realização, ao Ministério da Cultura e Ministério da Ciência e Tecnologia pelo Apoio.

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Nota dos Organizadores



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Ana Gita de Oliveira (IPHAN) – Doutora em Antropologia SocialUniversidade de Brasília, com participação na equipe que elaborou o Decreto 3.551/2000 que trata do Registro do Patrimônio Imaterial. Coordenadora do Patrimônio Imaterial – MinC e Gerente de Identificação - Departamento de Patrimônio Imaterial/IPHAN. Ana Vilacy Moreira Galucio (MPEG) - Doutorado em Lingüística, University of Chicago/EUA. Pesquisadora adjunta do Museu Paraense Emílio Goeldi. Angela Elisabeth Lühning (UFBA) - PhD, Etnomusicóloga, vice-coordenadora da pós-graduação em música da Universidade Federal da Bahia. Anthony Seeger (UCLA/USA) - Etnomusicologo, pesquisador da Universidade da Califórnia, especialista em Propriedade Intelectual em música. Carlos Sandroni (UFPE) - Músico e doutor em musicologia. Professor do Departamento de Música. Autor do livro “Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933)” Jorge Zahar Editor, 2001. Coordenador do Projeto “Refazendo os caminhos de Mário de Andrade”. Carla Arouca Belas - Mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília, coordenou o setor de Propriedade Intelectual do Museu Paraense Emílio Goeldi. Atualmente é professora do Departamento de Direito do Centro Universitário do Pará (CESUPA) ministrando disciplina de introdução à propriedade intelectual. É também coordenadora do Inventário de Bens Culturais da ilha do Marajó, como colaboradora da 2a.SR do IPHAN. Claudia Márcia Ferreira (CNFCP) – Museóloga. Coordenadora do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Daniel Munduruku (INBRAPI) - Filósofo especialista em Antropologia Social. Diretor Presidente do Instituto Indígena Brasileiro de Propriedade Intelectual Indígena. Escritor premiado nacional e internacionalmente. Coordenador da coleção de livros que narram histórias tradicionais de diversos povos, ajuda na formação e preparação de autores indígenas. Dominique Tilkin Gallois (USP) - Antropóloga do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP, trabalha com os Wajãpi há 25 anos participando do processo que resultou no dossiê e registro pela Unesco, das “Expressões gráficas e orais dos Wajãpi do Amapá”.

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Relação de Palestrantes e Coordenadores de Mesa



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Domingos Conceição – Sociólogo. Líder do Grupo Negro Mocambo, membro do Conselho Municipal do Negro do Município de Belém.



Maria Dorotéa de Lima (IPHAN) - Arquiteta Urbanista, Coordenadora pelo IPHAN do Inventário do Círio de Nazaré.

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Eliane Moreira (CESUPA) - Advogada, Mestra em Direito PUC/SP. Coordenadora do Núcleo de Propriedade Intelectual do CESUPA, articula a Rede Norte de Propriedade Intelectual, Biodiversidade e Conhecimentos Tradicionais. Eliane Potiguara – Escritora indígena. Professora em Letras (Português-Literaturas) e Educação. Autora do Livro “METADE CARA, METADE MÁSCARA”, Editora Global/Palavra de Índio. Remanescente da etnia Potyguara. Fundou o Grumin, hoje Rede de comunicação Indígena Conselheira do Inbrapi (Instituto Indígena Brasileiro para a Propriedade Intelectual) João Paulo Mendes (CESUPA) - Reitor do Centro Universitário do Estado do Pará. José Carlos Levino – Antropólogo, Diretor do Museu do Índio, com 49 anos de tradição na preservação e divulgação de acervos museológicos, bibliográfico e arquivístico referentes aos povos indígenas brasileiros. Reúne um importante acervo etnográfico, textual, fotográfico e fílmico em bases de dados à disposição do publico em geral e, particularmente, dos povos indígenas cujas referências etnográficas se encontram nelas reunidas. Lourdes Furtado (MPEG) – Pós-Doutora em Antropologia, Pesquisadora Titular do Centro de Ciências Humanas do Museu Paraense Emílio Goeldi. Desde 1990 Coordena o Grupo de Pesquisa RENAS – Estudo de Populações Haliêuticas. Lúcia Hussak (MPEG) - Doutora em Antropologia Social, Curadora do Acervo Etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi. Marco André - Coordenador da Associação Brasil Mestiço e do Grupo Cultural Jongo da Serrinha.

Mario Sérgio Sobral Costa – Gerente de Patrimônio e Artesanato da Fundação de Cultura do Estado do Mato Grosso do Sul. Márcio Meira – Pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi/CCH, atualmente ocupa o cargo de Secretario de Articulação Institucional e de Difusão Cultural do Ministério da Cultura MinC. Mozart Dietrich – Advogado. Assessor do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Programa de Ações Afirmativas.

Priscila Faulhaber Barbosa (MPEG) - Doutora em Antropologia social, pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi, Autora do CD-Rom multimídia Magüta Arü Inü. Jogo de memória: pensamento Magüta. Roná dos Santos (COICA) - Antropóloga Mestre em Estudos Étnicos por FLACSAO Ecuador e atua no Programa de Sustentabilidade Humana da Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA) Quito-Equador. Teodora Zamudio (UBA) – Doutora em Direito. Professora da Universidade de Buenos Aires. Professora e Pesquisadora UBACyT 1998-2007 da Universidade de Buenos Aires. Professora Visitante da Universidad de Caxias do Sul (Brasil) e da Universitá degli Studi di Siena (Italia). Coordena o Programa Panamericano de Defensa y Desarrollo de la Diversidad biológica, cultural y social, Zélia Amador de Deus (UFPA) - Professora do Centro de Letras, foi vice-reitora da Universidade Federal do Pará. Diretora teatral, Fundadora e Líder do Centro de Defesa do Negro no Pará (CEDENPA). Assessorou, em Brasília, o Programa de Ações Afirmativas do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA).

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Peter Man de Toledo (MPEG) - Doutor em Geologia pela Universidade de Bouder-Colorado/USA , Diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi.



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Iza Roná dos Santos Tapuia Esta ponencia trata de un tema fundamental que es nuestra participación efectiva en los procesos y tomas de decisión sobre el uso de los recursos existentes en nuestros territorios por terceros, y el establecimiento y la efectividad de la aplicación del mecanismo desarrollado para eso fin. La emergencia actual en garantir una participación firme de nosotros como pueblos ancestrales, preexistente antes a la formación de los Estados Nacionales, se vuelve crítica en la era de la biopirataria. El Consentimiento Fundamentado Previo – CFP surge en el Convenio de la Diversidad Biológica – CDB, aun mas claro en las directrices de BONN, de las que hacen parte también la Repartición Equitativa de Beneficios, como mecanismos para la protección de la Propiedad Intelectual de los Conocimientos Tradicionales. Durante todos estos años de encuentros y desencuentros, nuestros esfuerzos siempre tuvieron en el sentido de defender aquello que nosotros definimos como la razón primordial de nuestra existencia, el TERRITORIO, sin lo cual la vida en su plenitud no existe. Así que un régimen de protección debe contemplar el conjunto de elementos, práctica, tecnología y ciencias que tienen nuestros pueblos y que fueron heredadas y desarrolladas a lo largo de miles de anos y hasta siglos. El debate a cerca del CFP y la Repartición Equitativa de Beneficio, todavía se esta empezando, aunque ya se han formulados algunas directrices generales como las de BONN, falta mucho para se llegar a acuerdos mínimo entre lo que anhela los gobiernos y los pueblos indígenas, detentarías de las informaciones milenaria de uso y manejo de los recursos que hoy se llaman genéticos. Nuestro desafío desde que llegaron los invasores y se dijeron dueños de nuestras tierras, fue defenderla de la voracidad con la que saqueaban sus recursos, los así denominados “nuevos dueños”, y por eso nos hemos declarado en guerra permanente. En silencio nuestra estrategia principal fue no abandonar nuestros territorios ancestrales, hacer es como abandonar nuestra vida. En los ultimos 500 años estuvimos entre los invasores y compartimos de su universo socio cultural, pero lo que jamás sospechaban ellos, es que lo que hemos hecho y seguiremos haciendo, es seguir resguardando de cerca, lo que ellos pensaban que nos habían quitado. La globalización económica, consecuencia de políticas neoliberales que se extienden por el planeta, han impuesto y continúa a imponer procesos crueles de

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Coica Y el Consentimiento Fundamentado Previo



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explotación ambiental y humana, cuyas consecuencias son la inequidad progresiva, la violencia y la guerra. Los gobiernos latinoamericanos justifican la introducción de medidas de inspiración neoliberal en áreas sociales, políticas y económicas, con el argumento de que son absolutamente necesarias para alcanzar el desarrollo y la democracia. Los cambios estructurales resultado de este proceso, nos preocupan, sobretodo, cuando constatamos que la soberanía de los Estados es cada vez más débil sobre los territorios y la economía, y por la desaparición de valores y principios tanto humanos como espirituales, que garantizaron el equilibrio y respeto a la naturaleza. El uso y manejo de los recursos naturales son saberes experimentados y extraídos de las enseñanzas que están en mitos, cuentos, nombres, canciones, cerámicas y en todos los objetos de la arte de nuestros ancestros. Es a través de esas formas de enseñanza que sustentamos nuestro vivir, nuestro caminar y devenir histórico. Son prácticas de vida que generan vida, y ganan fuerza en cada nacimiento de un ser, sea humano o no. La convicción de nuestro papel dice que afirmamos y seguiremos afirmando: nosotros no somos pobres y muchos menos miserables, lo que vivimos hoy es las descapitalización de nuestro acerbo socio ambiental y por eso no estamos dispuestos a quedar esperando el colapso total de nuestros recursos y de nosotros mismos a nombre de un desarrollo que todavía esta puesto para responder necesidades ajenas. La defensa de nuestros conocimientos colectivos y sabidurías ancestrales son la piedra angular de nuestra pervivencia como pueblos Indígenas. En ellas están la memoria colectiva que nos ha permitido interactuar con la naturaleza que nos rodea formando una sola unidad. Y en ella están las sabidurías, los conocimientos, recursos biogenéticos, las manifestaciones culturales, que nos permiten tener la oportunidad de lograr la sostenibilidad humana y ambiental por siglo hasta estos días. Nuestra riqueza material y espiritual son herramientas fundamentales en el mantenimiento y mejoramiento de las condiciones de vida y bienestar de nuestros pueblos, aunque estas este afectadas por otros intereses. Como pueblos, tenemos conciencia de que la Amazonía es mirada como respuesta a las carencias planetarias, y en su curso de apropiación histórica fue vista como “vació demográfico” después como “pulmón” y en la actualidad la “bodega del mundo”. La sociobiodiversidad existente puede, se mantenida sus patrones biológicos y ecológicos dar respuestas a algunas de las enfermedades que asola el planeta –incluso la espiritual- sin embargo, lo que esta pasando dentro de la selva, tanto con el ambiente natural como con su pueblo, va en el sentido contrario. Los proyectos de desarrollo “sostenibles” y las actividades de explotación económicas están pondo en riesgos y promoviendo el desaparecimiento de pueblos enteros. El desaparecimiento del ser humano, guardianes de los bosques y de sus ciencias, es la eliminación del conocimiento sobre los animales; las plantas, la universidad en la Amazonía somos nosotros los pueblos, nuestros libros los mayores y sus sabidurías de vida colectiva desarrollada milenariamente.

Intentando comprender nuestros pensar y dar nombre a lo que sabemos, el mundo occidental con ayuda de algunos “expertos indígenas” han desarrollado concepciones y formulaciones teóricas, que segundo sus ideólogos, son las definiciones sobre nuestro pensar y existir, una de esas concepciones encontramos en la Convención de la Diversidad Biológica - CDB, en el literal 8j: “el termino conocimientos tradicionales, se emplea en el sentido de conocimientos, innovaciones y practicas de las comunidades indígenas y locales que entrañen estilos tradicionales de vida que interesan para la conservación y utilización sostenible de la diversidad biológica”. Pero, para nosotros nuestras sabidurías ancestrales colectivos, son sapiencias materiales y espirituales que servirán para enfrentar las situaciones concretas de las necesidades humanas, es decir todo lo que involucran, las tecnologías y ciencias relacionados a la caza, pesca, recolección, agricultura, artes, metalurgia, crianza de los hijos, la salud física y mental, ocupación del tiempo libre, música, danza, pintura, preparación de los alimentos y su conservación, desarrolladas y conservados por generaciones a lo largo de nuestra existencia como pueblos. Es imprescindible que el marco legal internacional contemple nuestra visión a cerca de lo que viene a ser nuestros informaciones científicas y tecnológicas, las cuales por la enseñanza oral hemos solamente practicado, y no nos preocupamos hasta este entonces en conceptuar con alguna palabra nuestra practicas y estilos de vida. Las mismas son acciones que se desarrollan de manera explayada por el colectivo, así los miembros de un grupo indígena tienen las informaciones que les sirve para atender sus necesidades y las demandas materiales y psicológicas de sus grupos familiares y de manera general generan beneficio al colectivo, por medio de las redes de reciprocidad. Nuestras ciencias medicinales y alimenticias, desarrollada y transferida en forma de conocimiento a las generaciones hemos cuidado para que las misma no caían en manos erradas y milenariamente desarrollamos cuidadosamente los mecanismos de escoja de aquellos a quien los pueblos depositan su confianza y

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Así podemos afirmar que, nuestras prácticas milenarias, desde hace siglos concilian desarrollo socio-cultural y económico, con respeto a los procesos biológicos de la naturaleza. La Amazonía para nosotros, no es algo abstracto, ni un vacío demográfico, tampoco una mercancía. La misma es un espacio donde convivimos seres como los árboles, los animales, los humanos, el micro y macro organismos, el agua, las montañas, las aves, los espíritus. Dicho de otro modo, la Amazonía es un conjunto de relaciones que envuelve los seres que la habitan. Utilizar de forma racional los recursos ahí existentes, no es resultado del pensamiento del mundo de la academia, ni de los ecologistas; son prácticas milenarias de nuestros pueblos sustentadas en toda una praxis social propia, compartidas entre varios saberes, son dinámicas de realidades diversas que se mantiene en el tiempo mucho mas allá de lo que propone la arqueología.



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designan para recibir las informaciones especializadas, a esas personas llamamos los guardianes de las sabidurías ancestrales, esta sabidurías son complexas porque entrecruzan sistemas de relaciones, en que se involucran seres humanos, ambientes naturales y construidos, en profunda sincronía con el mundo espiritual, en el cual se alimenta la vida diaria del individuo y de la colectividad. En esto sentido, hay mucho cuidado en el trato de las informaciones científicas privilegiadas de los sabios y sabias, debido a que las mismas están en función del equilibrio psicológico del grupo en ultima instancia Cuando ciertos sabios empiezan a usar sus informaciones en beneficio propio o de su grupo, el sistema empiezan a desequilibrarse y el síntoma de eso desequilibrio, es que las personas empiezan a enfermar y morir. Esa reacción informa al colectivo de que no se esta manejando adecuadamente las herramientas del saber espiritual e inmediatamente esas prácticas es rechazada por el colectivo y el transgresor recibe las sanciones, incluso hasta sentencia de muerte y en algunos grupos el delito se paga con la vida del sabio. Nuestra sabiduría ancestral no es de dominio público, son informaciones culturales e intelectuales colectivas, protegidas bajo nuestro derecho consuetudinario propio. El uso no autorizado y la apropiación son una usurpación al nuestro derecho sagrado”1. Ante los procesos de mercantilización de nuestras informaciones colectivas, nos oponemos frontalmente. Pues todo lo que somos y sabemos es fruto de nuestros experimentos y labor generacional. Por eso no pueden ser tratados y usados como bien de consumo privado y para la ganancia de pocos. Su utilización solamente hace sentido se esté en función de una colectividad. Esta es nuestra posición política e identitaria y es lo que queremos que sepan los Estados, las empresas de las diversas ramas que actúan en la Amazonía o viene de otras regiones, incluso las ONGs. Nosotros no nos oponemos al desarrollo, ni tampoco a la investigación y el descubrimiento de nuevas alternativas de supervivencia para la humanidad, pero si queremos que estas respeten nuestra forma de vida, nuestra diversidad sociocultural, nuestra sabiduría y nuestra existencia. En esto sentido, el concepto y las prácticas del llamado “desarrollo sostenible” no incluye adecuadamente la visión que ancestralmente hemos practicado material y espiritualmente en profunda sincronía con la naturaleza. El desarrollo tal como es manejado por el occidente no es sostenibilidad, es por ende un sistema mercantilista y de explotación humana y ambiental. La sostenibilidad humana y ambiental deberá ser el horizonte de las políticas y acciones de nuestros dirigentes, de los gobiernos, de las empresas, de las agencias de cooperación, de las iglesias y de las ONGS hacia a nosotros, teniendo 2 como fin, la eliminación de la pobreza y no solamente su reducción. 1 2

Declaración de Kimberly , 2003, p. Haji Yine: una visión Yine sobre el desarrollo sostenible:, 2003, p.1-2).

Como COICA hemos participado en las discusiones globales sobre temas ambientales durante los últimos 15 años, desde la misma Cumbre de la Tierra (Río/92). En los foros globales y regionales el que más se ha privilegiado son el Convenio sobre la Diversidad Biológica (CDB), una incidencia en la Organización Mundial de la Propiedad Intelectual (OMPI), en la Comisión de las Naciones Unidas sobre Comercio y Desarrollo (UNCTAD), en el Foro Intergubernamental de Bosques (FIB), en la Convención Marco de las Naciones Unidas sobre el Cambio Climático (CMNUCC), en el Protocolo de Kioto (PK), en la Cumbre Mundial sobre Desarrollo Sostenible (CMDS/PNUD), y en el Protocolo de Bioseguridad, de la Comunidad Andina de Naciones (CAN), entre los más destacados sobre el tema. La existencia de clausulas relativas a nuestros derechos como pueblos en el marco jurídico internacional, tiene sido alcanzada gracias a una labor colectivas de lideres indígenas y la presión social de las bases, porque al final y al cabo, son en los territorios que llegan las amenazas de mayor y menor grado. Lo que tenemos hoy reconocido como Derechos Internacional se debe a nuestra presencia organizada en el escenario nacional e internacional, esa participación indígena tanto técnica, como política ha presionado a los Estados y organismos internacionales a buscar mecanismos para responder a nuestras demandas, sobre todo, las que tiene que ver con la protección, garantía y ampliación de nuestros derechos: a la salud, educación, desarrollo y territorio. Vemos algunos avances en las normativas nacionales e internacionales, pero, no hemos logrado que estas se traduzcan en hechos concretos y lleguen hasta nosotros en forma de beneficios, es lo que ocurre con las constituciones nacionales que tiene artículos altamente avanzados en términos de derechos, pero que en la practica no se efectiva. Los tratados y convenciones a nivel internacional como es el caso del Convenio 169 ratificado por case todos los países de Suramérica, de igual manera no llegan a concretarse en la realidad, un ejemplo es que la totalidad de las tierras y territorios hay presencia arbitraria de terceros públicos y privados, en frontal irrespetó al Convenio 169, articulo 18, sobre las tierras: “la ley deberá prever sanciones apropiadas contra toda intrusión no autorizada en las tierras de los pueblos interesados a todo uso no autorizado de las

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Nuestro esfuerzo en hacernos entender, sobretodo por los gobiernos de los Estados Nacionales, tiene sido ardua y penosa, el escenario internacional de los derechos indígenas han logrado sacar algunos instrumentos internacionales, en foros y convenciones internacionales como al CDB y en Convenio 169, el derecho de nuestros pueblos sobre sus territorios, conocimientos colectivos y sabidurías ancestrales. Pero, no se ha resuelto la pobreza, marginalidad y aun desprecio que sufrimos por sermos indígenas. Y ahora enfrentamos nuevas agresiones con el interese en el patrimonio bio diverso de la cuenca amazónica y la invasión de nuestros territorios y riquezas.



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mismas por personas ajenas a ellos, y los gobiernos deberán tomar medidas para impedir tales infracciones”. Tener una ley no es todo, y nuestro esfuerzo esta en sentido de hacer valerla en la práctica, pero no hemos logrado y en la cuenca hay un cien números de reclamos en contra de invasores de toda naturaleza presentes en los territorios.



Las empresas aprovechan el proceso para hacer el ofrecimiento e incluso financian ciertos individuos para estimular que en las asambleas de consulta, los mismos aprueben la explotación. Y mucha veces la propia comunidad ya tiene dicho no, y la consulta sirve solamente para dejar en el seno de las comunidades el conflicto entre los que aceptan y los que no. Las directrices de la CDB, referentes al Consentimiento Fundamentado Previo, van en el mismo sentido, es decir, el mismo es un principio por medio del cual los solicitantes de un recurso genético pueden tener acceso, siempre y cuando cuenten con la autorización o la decisión de la Parte (gobierno), que es “propietaria” o tiene soberanía sobre los recursos genéticos solicitados, es decir, que el CFP es un requisito fundamental para otorgar acceso y sienta las bases para elaborar un contrato en condiciones mutuamente convenidas para una justa y equitativa distribución de los beneficios. Es decir es un mecanismo de respaldo a los gobiernos y no a los pueblos indígenas.

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Los textos constitucionales en general, garantizan el usufructo del patrimonio ambiental existente en nuestro territorio, pero resguarda para si la propiedad, determinando que “las tierras indígenas son de usufructo exclusivo, pero en el mismo texto se resalta que las misma son patrimonio de la unión”. La soberanía y el poder de definir el uso no esta sobre nuestro control y eso tiene sido una amenaza, pues en nuestro territorio se encuentran los minerales estratégicos y que ofrecen mayor ventaja comparativa en el mercado internacional. Como vemos la aplicación de las normas establecidas tanto por el Convenio 169 como por el CDB, en relación a las consultas. En el caso de recursos no renovables (minerales y petróleo) porque necesitan de una infraestructura básica y presentan serio riesgo de impacto inminente tanto al ambiente como a la población, se busca en cierta medida cumplir los Estados, en parte las normas de protección y aprobación en la forma de la ley, pero eso cumplimiento se debe fundamentalmente a la presión social tanto de grupos indígenas como de otros sectores sociales como los ecologistas, y en muchos de los caso solamente se da para espaciar las presiones. Para nosotros hacer la consulta no significa que se esta tonando en cuenta nuestras demandas, porque, al realizar la consulta, lo que anhela el gobierno y las empresas es obtener el visto bueno de los grupos indígenas afectados al emprendimiento a ser desarrollado. Es importante resaltar que las consultas son un derecho, que tiene que ver con la información previa y amplia de una determinada actividad a ser desarrollada en los lá territorios indígenas. Pero eso derecho se va convirtiendo en un negocio de toma daca que involucra Estado, Empresas e Indígenas.

El Convenio 169 de la OIT, piedra angular en el derecho internacional cuando se trata de nuestros derechos como afirma el Articulo 3: “No deberá emplearse ninguna forma de fuerza o de coerción que viole los derechos humanos y las libertades fundamentales de los pueblos interesados incluidos los derechos contenidos en el presente Convenio”. Abogamos por el derecho a decir no, y afirmamos que las consultas de la forma como están siendo desarrolladas, son mecanismos que solamente sirve para que empresas entren en los pueblos para destruir la organización y unidad del pueblo. Nuestro compromiso tiene sido en el sentido de garantizar que los procesos de consultas de acuerdo a que determina el, Articulo 6 del dicho Convenio, a lo cual alude los gobiernos a aplicar tales derechos con vistas a dotar a los pueblos indígenas de condiciones adecuadas con vista a tener una posición conciente sobre lo que estará sucediendo en su territorio: “a) consultar los pueblos interesados, mediante procedimiento apropiado y en particular a través de instituciones representativas, cada vez que se proveen medidas legislativas o administrativas susceptibles de afectarlas directamente; y añade que “Las consultas llevadas a cabo en aplicación de este Convenio deberán efectuarse de buena fe y de una manera apropiada a las circunstancia, con la finalidad de llegar a un acuerdo o lograr el consentimiento acerca de las medidas propuestas”; Somos actores activos en todos los Estados Nacionales, por medios de la actuación de nuestras organizaciones de representación, hemos estamos firmes en el proposito de hacer valer nuestros derechos y denunciando los actores, cuando estos pretenden desviarse de los procedimientos correctos, en búsqueda de lograr beneficio a los intereses mercantilista tanto del Estado, como de las empresas privadas. Nos preocupa mucho la explotación de alto impacto, pero nos preocupa mas todavía son la explotación de bajo impacto y eso tiene que ver con la explotación de los recursos de la biodiversidad, sobre eso nuestra propuesta es que el propio Estado ejerza un control mayor frente a esas actividades, porque las misma traen graves impactos a nuestra sabiduría ancestral, debido al robo das nuestras ciencias, tecnologías de manejo, mejoramiento y domesticación de espécimen forestales y animales. Todo eso acervo fue desarrollado con en proposito de ampliar el abanico de productos en beneficio del colectivo. Nuestro

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Frente a esta apropiación de nuestras sabidurías, hemos alertado y claro demandamos que el CFP cumpla su papel el de ser un mecanismo capaz de garantizar que se atienda a los detenedores de las informaciones y que para eso es fundamental que se informe previamente y se tenga la aceptación, o no, de lo que va negociar entre el Estado y las empresas y tengan origen en nuestros territorios, es decir como aboga el convenio 169, articulo 2 “los gobiernos deberán asumir la responsabilidad de desarrollar, con la participación de los pueblos interesados, una acción coordinada y sistemática con miras a proteger los derechos de esos pueblos y a garantizar el respeto de su integridad”.



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cuidado esta en el sentido de que cada día nuestros sabios amplían sus conocimientos a cerca del espacio y de los recursos existentes en el territorio, pero esa información tiene estado en la mira de los biopiratas. Contemplando en parta nuestra preocupación, pero no atendiendo nuestra petición, la Convención de la diversidad biológica - CDB, considerado el más importante instrumento jurídico internacional que busca contemplar nuestro anhelos, en relación a la defensa de nuestros derechos, sobre todo con relación a la conservación de la biodiversidad, el uso sostenible de sus recursos y la distribución equitativa de beneficios, tiene sus vacíos pues sus propuestas responden al intereses de los grupos del capital transnacional que operan en la explotación de los recursos biogenéticas, que están trabajando con miras a suplir la demanda de las industrias farmacéutica y de sus laboratorios, en esto contexto la información privilegiada de primera mano sobre la ciencia amazónica y su potencialidad y uso las tiene nuestros sabios indígenas. El articulo 8, literal “j” trata directamente del tema de la biodiversidad, pero eso recurso esta bajo la soberanía de los Estados, y como tal nosotros tenemos poca chance en términos de la legislación para hacer frente a los intereses de los Estado y de sus políticas. Sin embargo nosotros como colectivos de origen ancestral hemos concertados una posición que refleje nuestros anhelos, así planteamos que El libre consentimiento fundamentado previo está relacionado con nuestros derechos territoriales, sociales y culturales y forma parte del derecho a la libre determinación. El derecho al libre consentimiento fundamentado previo promueve la participación plena y efectiva y el respeto de los derechos de los Pueblos Indígenas. La adopción de disposiciones o directrices que pretendan limitarlo, restringirlo o someterlo a las legislaciones nacionales, es contraria al derecho internacional existente y emergente sobre los derechos de los Pueblos Indígenas. En la realidad, se ve un mayor número de productos siendo patentados por las grandes empresas transnacionales, si el menor controle de los Estados y mucho menos esfuerzos en el sentido de reverter las patentes ya otorgadas. Las empresas se han lanzado a patentar (se adueñar) de las informaciones sobre el uso de plantas medicinales y alimenticias. Informaciones desarrolladas milenariamente por los sabios y sabias indígenas, que en la era de la bíopiratería se han convertido en oro verde. Frente a todo eso la COICA, ha desarrollado una posición coherente con nuestros derechos y de acorde a nuestros intereses, porque entendemos que las sapiencias milenarias son informaciones desarrolladas en el colectivo de nuestros pueblos, bajo el sistema de protección mutuo sobre su usufructo. Estaríamos hablando de la responsabilidad compartida entre las generaciones y el compromiso de ampliar las informaciones científicas que a su vez son alimentadas por el sistema de reciprocidad, que envuelve tanto la distribución material, como simbólica del conjunto de los miembros de pueblo indígena. Dentro de esto contexto pensar en usar las

El establecimiento de un mecanismos de resguardo a los pueblos como es el Consentimiento Fundamentado Previo, en una lectura mas detallada, se convierte, mas bien, en dotar el Estado de un respaldo a lo se a definido como derecho del Estados: el control sobre los recursos de los bienes de la biodiversidad, de esa forma los beneficiarios de esta ley, aunque se diga, no son los pueblos indígenas. Mirando desde esta óptica, cuando los Estados no toman en cuanto nuestras preocupaciones y demandas, no lo hacen solamente de gana, lo hacen, porque entiende que deben seguir sus orientaciones y intereses, evidentemente que no son los nuestros. En eso sentido nuestra pelea en frontal con los Estados, porque no aceptamos la presencia como detentaría de recursos que no son de dominio publico y desde el FIIB hemos afirmado que nosotros tenemos y vamos nos esfuerzas para mantener el control de nuestra sabiduría y de ahí definir de que manera vamos ayudar a nosotros y a la humanidad. Muchas veces, procuramos posicionarnos como un colectivo mayor, pero muchas veces eso colectivo tiene sido débil y por veces aceptamos, mismo que no nos conviene a ciertos discursos y conceptos, es decir procuramos ubicar un lenguaje general a nuestros planteamiento, sin embargo, para la COICA tenemos muy claro la visión a cerca del termino “conocimiento tradicional”, como definición de nuestras sapiencias y así, desde el establecimiento de la Agenda Indígena Amazónica como el marco orientador de las políticas indígenas y de las políticas hacia nosotros, consideramos importante destacar y diferenciarnos de los demás grupos humanos amazónicos y denominar de “sabidurías ancestrales” toda la sapiencia sobre planta, animal, espiritualidad y todo lo que usamos para nuestra sostenibilidad a lo largo de años de vida en la amazonía, para nosotros el término ancestral remota una origen muy mas allá de la invasión colonial y preceptos occidentales. En eso sentido, nombramos como guardines de esas informaciones los sabios y sabias mayores de nuestros pueblos. En la onda de la protección de los “conocimientos tradicionales” entendido como “aquellos saberes que poseen los pueblos indígenas, afro americanos y comunidades locales transmitidos de generación en generación, habitualmente de manera oral y desarrollados al margen del sistema de educación formal”3. La definición es un marco que atrapa todo, es decir estamos de alguna forma incluyendo varios procesos de visión y apropiación de un sentido que tiene

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CRUZ, Rodrigo de la, “Protección a los Conocimientos Tradicionales, el Consentimiento Fundamentado Previo y la Distribución de Beneficios, 2004.

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informaciones sobre determinado especie de planta o animal solamente debe ser mediante el consentimiento del conjunto del Pueblo o de los pueblos, como es el caso de la Ayahuasca, orientadora espiritual de varios pueblos amazónicos y así muchos otros productos.



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mucho que ver con lo hemos viniendo construyendo a lo largo del nuestra existencia, mucho mas allá de lo abogan los arqueólogos. Embarcado en la lógica del sistema se ha avanzado en tener un marco legal de protección a lo que se ha denominado “conocimiento tradicional” lo cual hemos usado, pero que no expresa todo lo que sabemos, en este proceso se viene diseñando en el marco regional una Estrategia sobre Biodiversidad para los Países del Trópico Andino. La CAN, en Lima – Perú, julio 7 del 2002, Decisión 524, en donde se incorpora el tema de los conocimientos tradicionales y para tratar del tema especifico de los pueblos indígenas se crea la Mesa de Trabajo sobre Derechos de los Pueblos Indígenas. Se destaca en ella el derecho de propiedad colectiva de los conocimientos tradicionales, el consentimiento fundamentado previo y la distribución de beneficios. Y se acuerda también la elaboración del Régimen Común Andino para la Protección de los Conocimientos Tradicionales, en consulta y participación con los pueblos indígenas (CRUZ, 2004). Todavía en proceso de consolidación. Algunos países han se preocupado en elaborar legislación de protección a los recursos de la biodiversidad, es el caso do Brasil que ha iniciado en 1995 a elaborar una propuesta legislativa en el Senado, con el Proyecto de Ley nº 306/95 da Senadora Marina Silva, que fue de alguna forma atropellada por otra propuesta surgida del Grupo Interministerial de Acceso a los Recursos Genéticos del Gobierno Federal, y solamente genero desde la Presidencia de la República una Medida Provisoria 2,126-8, sin fuerza de ley como deseaban tanto los pueblos indígenas como la sociedad. Vale sin duda destacar también las iniciativas de los Estado en proteger su patrimonio ambiental, es el cado del estado de Acre, que aprobó la Ley Estadual nº 1,235 que dispone sobre los instrumentos de control del acceso a los recursos genéticos (1997) y el Estado de Amapa con la Ley Estadual nº 0388/97, sobre Acceso a los Recursos Genéticos (1997)”.4 Lo hemos planteado en general cuales son elementos fundamentales para un sistema Alternativo de Protección, con algunos argumentos traídos de la reflexión del conjunto de los pueblos indígenas, pero importante para el mundo indígena amazónico, porque tenemos apostata de decir que en nuestra manos colectivas se encuentran las informaciones imprescindibles para los llamados “descubrimientos científicos” dicho por el mundo occidental. Estos elementos son: El reconocimiento de los pueblos indígenas como pueblos con derecho a la libre determinación, inclusive en cuanto a decidir sobre el uso de sus sabidurías ancestrales y conocimientos intelectuales colectivos.

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Análisis de Jorge Caillaux y Manuel Ruiz de la Sociedad Peruana de Derechos del Medio Ambiente.

La innovación en los pueblos indígenas es un proceso acumulativo que incluye todas las manifestaciones de la creatividad indígena. Seguridad jurídica de las tierras y territorios de los pueblos indígenas, garantiza la continuidad de las sabidurías ancestrales y conocimientos colectivos. Respetar y garantizar a los pueblos indígenas sus propias instituciones organizativas incluyendo sus lenguas originarias. Establecimiento de un mecanismo de registro, diseñado y conducido por las propias organizaciones de pueblos indignas sobre sus sabidurías ancestrales, conocimientos colectivos, innovaciones y prácticas, de acuerdo a las prácticas consuetudinarias. Derecho a impulsar el intercambio no comercial de las sabidurías ancestrales, conocimientos colectivos, innovaciones y prácticas entre los pueblos indígenas. El derecho a veto, es decir, a cualquier investigación que vaya en contra del respeto y reconocimiento de los derechos de pueblos indígenas. La declaratoria de nulidad de cualquier transacción que tenga por objeto destruir o menoscabar la integridad de las sabidurías ancestrales y conocimientos colectivos, innovaciones y prácticas de los pueblos indígenas. Incluir estrategias de prevención de impactos contra la conservación de las sabidurías ancestrales y conocimientos colectivos, innovaciones y prácticas de los pueblos indígenas, especialmente por la ejecución de proyectos y megaproyectos en territorios indígenas. La custodia y administración de las sabidurías ancestrales y conocimientos colectivos corresponde a las propias organizaciones de los pueblos indígenas. Garantizar el principio del consentimiento fundamentado previo de los pueblos indígenas. Una forma sui generis debe regular que este consentimiento sea otorgado de manera colectiva a un pueblo indígena de acuerdo a sus prácticas consuetudinarias. Tener presente que un contrato de acceso a los recursos genéticos no garantiza necesariamente un permiso para utilizar las sabidurías ancestrales y conocimientos colectivos, sin consulta y consentimiento por las organizaciones de los pueblos indígenas Para la COICA y sus objetivos superiores, el establecimiento de un régimen de protección sui generis de las Sabidurías Ancestrales, solamente tiene validez se reconoce la propiedad intelectual colectiva e se incorpore elementos

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El reconocimiento al carácter colectivo de las sabidurías ancestrales, conocimientos, innovaciones y prácticas de los pueblos indígenas.



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básicos como las tierras y territorios, formas de organización tradicional, el derecho consuetudinario, el reconocimiento como pueblos, y la transmisión intergeneracional de las sapiencias, el consentimiento fundamentado previo y la distribución equitativa de beneficios, tiene que respetar los procesos y curso históricos de los pueblos y no deben ser usados para atender demandas externas y sobre todo del capital y no de al humanidad. Decimos frontalmente No a las patentes como sistema de protección de nuestras sapiencias. En conclusión, los procesos mercantiles de negociación de nuestras sapiencias van ser afectado en los tratados económicos como es el ALCA y la OMC, pues estos consideran que las Sabidurías Ancestrales están en el dominio público (libre acceso y comercialización), y nosotros tenemos reiteradas veces tenemos afirmados que el único sistema válido de protección son los nuestros y todos lo que viene a pensar en hacer debe ser conocidos pro nosotros, pues somos actores y sujetos de derecho y el fundamental de todo de la libre determinación sobre todos los aspecto de nuestra vida y de nuestros territorios.

Ana Gita de Oliveira

Antecedentes Para Mauss (1971) “Uma parte importante de nossa moral e de nossa vida estacionou em uma atmosfera mesclada de dons, obrigações e liberdade. Felizmente, nem tudo foi classificado em termos de compra e venda. As coisas têm ainda um valor sentimental, além de seu valor venal, caso houvesse apenas este tipo de classificação. Existem outras moralidades além daquelas estabelecidas pelo mercado; existem ainda pessoas e grupos sociais que conservam costumes de outros tempos, costumes aos quais todos nos submetemos, eventualmente, em algumas épocas ou ocasiões do ano (...) As coisas que se vendem têm também uma alma e são perseguidas por seus antigos donos, e as coisas a eles” (MAUSS, 1971, p. 246-247). Mauss (1971) se referia, desta forma, ao “mana” como uma espiritualidade contida nas expressões da cultura. Assim, tanto a produção material quanto suas expressões simbólicas constituem matéria-prima para a construção e manutenção de tradições, na modernidade. Os constantes novos sentidos, a permanente construção de novos sentidos e de novas referências culturais propõem um movimento de natureza política, articulador dos processos de construção de identificações contemporâneas. São, portanto, os suportes materiais e a imaterialidade que expressam, os elementos organizadores de políticas de referenciamento cultural. Aqui interessam ambos: as “coisas”, conforme expressou Mauss, ou os bens culturais classificados como importantes para o mercado – seja por seu valor venal, seja pelo valor simbólico como, por exemplo, prestígio – sendo o mercado, ele próprio, em razão de sua dinâmica, produtor e recriador de bens referenciais, como aqueles inseridos nos costumes, nas tradições, ainda sem visibilidade comercial, mas profundamente enraizados no cotidiano de indivíduos e de grupos sociais. Conforme afirmou Gonçalves “tais bens são, simultaneamente, de natureza econômica, moral, religiosa, mágica, política, jurídica, estética, psicológica e fisiológica. Constituem, de certo modo, extensões morais de seus proprietários e estes, por sua vez, são partes inseparáveis de totalidades sociais e cósmicas que transcendem sua condição de indivíduos.” (2003, p.23).

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Salvaguarda do Patrimônio Cultural: bases para constituição de direitos



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Segundo Bachelon e Castel (apud SANTOS, 2001) o sentido coletivo agregado à noção de patrimônio surge no século XVII no início da modernidade. Ainda mais, e segundo Cecília Londres, a idéia de nação garantiu o estatuto ideológico do patrimônio sendo o Estado Nacional o responsável pela garantia de sua preservação, através de práticas específicas. A noção de patrimônio se inseriu no projeto mais amplo de construção de uma identidade nacional e passou a servir ao processo de consolidação dos estados-nação. Para Cecília Rodrigues dos Santos, a abrangência conceitual da abordagem do patrimônio cultural está relacionada com a própria definição antropológica da cultura, como tudo o que caracteriza uma população humana ou como um conjunto de modos de ser, viver, pensar e falar de cada formação social. Todo conhecimento que uma sociedade tem de si mesma sobre as outras sociedades, sobre o meio material em que vive, sobre a própria existência, inclusive as formas de expressão simbólica desse conhecimento através das idéias, da construção de objetos e das práticas rituais e artísticas. No âmbito do Estado brasileiro, a preocupação com bens culturais e imateriais já estava presente na década de 30 quando das formulações iniciais de políticas de proteção ao patrimônio histórico e artístico nacional. Presente nas preocupações iniciais de Mário de Andrade, em 1936, e posteriormente, estabelecido como experiências pontuais, o patrimônio cultural-imaterial só foi objeto de reflexão mais detida a partir 1997, com a proposta da Carta de Fortaleza. A partir da promulgação da Constituição, em 1988, as noções de cultura, de bem cultural, dinâmica cultural, de referência cultural antes adotadas pelo Centro Nacional de Referências Culturais, pela Fundação Pró-Memória voltaram a ser objetos de reflexão e de experiências na área patrimonial. Mais recentemente, o reconhecimento de que bens protegidos pela União não expressavam a diversidade dos diferentes grupos formadores da nacionalidade, tornou premente a necessidade de organizar, no âmbito do Estado, instrumentos legais e institucionais que permitissem a identificação sistemática e a valorização de um conjunto de bens culturais não reconhecidos e para os quais o instrumento já existente para a sua proteção, o Decreto-Lei 25/1937, que organiza o tombamento, não se adequava. Vale dizer que, no contexto das questões postas pelo patrimônio cultural, indicava o não reconhecimento da diversidade cultural brasileira nos termos de políticas públicas voltadas à sua preservação também processos de exclusão social. Nesse sentido, o desenvolvimento do registro, o Decreto 3551/2000 e do Inventário Nacional de Referências Culturais, instrumento legal e técnico respectivamente, tiveram por objetivo estabelecer uma política de identificação sistemática e abrangente de bens culturais de natureza processual e dinâmica. Isso significa dizer que, com esses novos instrumentos, surgiram novas possibilidades

Dado que o patrimônio imaterial é, por definição, constituído por bens de natureza processual dinâmica e internamente muito diverso, nos conduz a pensar em políticas diferenciadas que respondam efetivamente por sua preservação. Os conhecimentos produzidos sobre esses bens culturais são organizadores das políticas voltadas a sua preservação. Vale ressaltar a importância do Inventário Nacional de Referências Culturais que possibilita a produção de conhecimentos específicos sobre esses bens, inclusive aqueles associados ou não à biodiversidade. Tem por presuposto que “a cultura acumulada de padrões não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma condição essencial para ela, principal base de sua especificidade” (GEERTZ , 1978, p.58). Assim, o inventário constitui instrumento organizador dos conhecimentos locais em nexos regionais e nacionais, realizando também a síntese da dicotomia, já superada, entre o material e o imaterial, referida na Constituição Federal de 1988. Vale lembrar, porém, que essa dicotomia traduziu-se, durante as décadas de 70 e 80, em uma tensão estruturante do campo patrimonial. O INRC propõe a sua superação. Ele permite ainda entender a abrangência dos processos culturais definidores desses bens, do poder transformador dos padrões culturais em curso, identificando as transformações nas tradições a que pertencem. Essa metodologia pode identificar não só os elementos externos, indutores de transformações como identificar as mudanças internas às tradições. Dessa forma, o inventário é a um só tempo universal e particular. Será tanto mais universal quanto melhor as categorias de apreensão destes contextos locais puderem dialogar entre si e serão tanto mais fidedignos quanto melhor expressarem esses contextos culturais locais. O inventário realiza esse duplo movimento, dialético, do geral ao particular, do universal ao específico, do global ao local. No limite, ele propõe, em seu conjunto, o que chamaria de uma epistemologia com base nas ontologias ou nos conhecimentos produzidos sobre cada um dos bens inventariados. Assim posta, a metodologia do inventário nos ajuda a evitar que se caia em um duplo ardil, o da informação pela informação desenraizada do seu contexto, da tradição que dá sentido ao bem cultural e da noção de que as tradições organizadoras dos modos de ser e estar no mundo não sejam passíveis de transformação. Tradições se transformam e se reiteram como condição necessária a sua permanência. Além disso, evita um outro ardil: o de olharmos o presente numa perspectiva passadista, muitas vezes melancólica baseada no sentimento de perda de algo que nos pertencia, por isso mesmo capaz de obscurecer a percepção do presente em transformação inexorável ao futuro.

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de retomada de políticas de identificação de bens culturais significativos para a nacionalidade e para os processos de construção de cidadania.



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Quero dizer com isso que, assim entendido, esse instrumento dá conta dos processos de construção de identidades datadas historicamente, e resultantes do manejo e do remanejamento dos elementos existentes no interior das tradições que lhe dão sentido. Como inventário cultural, ele pode ser instrumento importante no mapeamento dos conhecimentos tradicionais associados ou não à biodiversidade, incluindo-se, nesta vertente, os conhecimentos tradicionais associados à agrobiodiversidade, como aqueles realizados pelos chamados “melhoristas”. A metodologia propõe sínteses, entre estas, uma, reveladora dos contextos da biodiversidade e como eles são apropriados pelos grupos sociais a partir de suas configurações culturais. Ele realiza, na verdade, esta convergência sócio-ambiental.

Patrimônio Cultural e as Ações de Preservação O entendimento do patrimônio cultural como lugar passa, necessariamente, pelo exercício da cidadania e pelo reconhecimento da imprescritibilidade dos diferentes conhecimentos tradicionais organizadores de sistemas culturais. Mais ainda, os conhecimentos, as inovações e práticas orientadas por tradições estão intimamente relacionadas à existência de um povo sendo parte constitutiva de suas experiências culturais e, por esta razão, inalienáveis e irrenunciáveis. No contexto das ações de preservação do patrimônio cultural, alguns princípios merecem ser destacados, como por exemplo: a) o reconhecimento do valor intrínseco dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e à diversidade cultural. Existem conhecimentos produzidos fora dos parâmetros da ciência, “particularmente tipos de conhecimentos que estão em continuidade direta com formas tradicionais e locais (SHIVA, 2001, p. 9), que devem ter sua integridade, seus valores espirituais protegidos; b) as expressões da cultura devem ser compreendidas como partes, fragmentos de totalidades culturais que, sujeitas à dinâmica da história, estão em permanente transformação; c) síntese sócio-ambiental: a diversidade cultural e a diversidade biológica devem ser entendidas como categorias organizadoras na perspectiva das ações de preservação do patrimônio cultural; d) os detentores dos conhecimentos tradicionais devem anuir previamente o acesso aos bens culturais – leia-se conhecimentos tradicionais – que lhes são próprios, indicando, no processo de consentimento, os elementos que constituirão os planos de salvaguarda de tais bens;

REFERÊNCIAS Anteprojeto de Lei que regulamenta a coleta, o acesso e a remessa de material biológico, genético e seus produtos, a proteção e o acesso a conhecimentos tradicionais associados e a repartição de benefícios. BRASIL.Constituição (1988). BRASIL. Decreto-Lei n° 25/1937- IPHAN. BRASIL. Decreto 3.551/2000 - IPHAN. GEERTZ, Clifford . A Interpretação da Cultura . Rio de Janeiro: Zahar, 1978. GONÇALVES, José Reginaldo . O Patrimônio com Categoria de Pensamento. In : Memória e Patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro. DP&A Editores, 2003. Instituto do Patrimonio Historico e Artistico Nacional. Inventário Nacional de Referências Culturais. [20 —]. Londres, Maria Cecília . O Patrimônio em Processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/IPHAN, 1997. MAUSS, Marcel . Institucion y Culto : representaciones coletivas y diversidad de civilizaciones. Barcelona : Barral Editores, 1971. Obras II. SANTOS, Cecilia Rodríguez . Novas Fronteiras e Novos Pactos para o Patrimônio Cultural. São Paulo em Perspectiva , São Paulo, 2001. SHIVA, Vandana. Biopirataria : A pilhagem da natureza e do conhecimento . Petrópolis: Vozes, 2001.

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e) o estabelecimento de políticas públicas adequadas de modo a garantir, aos detentores de conhecimentos tradicionais, a utilização sustentável da diversidade cultural e da biodiversidade.



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Carla Arouca Belas1 Em 4 anos de edição do Decreto 3.551/00, que instituiu o Registro dos bens culturais de natureza imaterial e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, foram realizados diversos inventários com vistas a reunir documentação para o registro de bens culturais em um dos quatro livros destinados para este fim. Esses inventários foram executados, na sua maioria, diretamente pelas regionais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) ou pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), uma unidade do mesmo instituto. Em vários casos, contou-se, ainda, com instituições parceiras no desenvolvimento das pesquisas. Entre as sub-regionais do IPHAN (SRs), temos concluídos o Inventário do Círio de Nazaré (PA), do Ofício das Paneleiras de Goiabeiras (ES) e do Samba de Roda do Recôncavo Baiano (BA). Há, ainda, uma grande quantidade de projetos em andamento, a exemplo do Inventário de Referências Culturais da Ilha de Marajó (PA); do Inventário do Bairro de Bom Retiro (SP), desenvolvido em parceria com o Departamento de Patrimônio Histórico do Município de São Paulo; do Inventário do Parque Nacional Grande Sertão Veredas (MG), em parceria com a Funatura; e do Inventário dos Povos Indígenas da Região do Rio Negro (AM), desenvolvido em parceria com a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FORIN) e com o Instituto Socioambiental (ISA). O Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP) iniciou o trabalho de inventários culturais em 1991, a partir do projeto Celebrações e Saberes da Cultura Popular. Desde então já realizou inventários como o do Bumba-Meu-Boi do Maranhão; o da Viola de Cocho Pantaneira; o do Jongo no sudeste; o do Acarajé da Bahia; o das Cuias de Santarém e o da Farinha no Pará; da Cerâmica do Rio Real em Minas Gerais; e o da Cerâmica Terena em Mato Grosso do Sul. Vários outros se encontram em andamento pelo Brasil.

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Mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília, coordenou o setor de Propriedade Intelectual do Museu Paraense Emílio Goeldi. Atualmente é professora do departamento de direito do Centro Universitário do Pará (CESUPA) ministrando disciplina de introdução à propriedade intelectual. É também coordenadora do a Inventário de Bens Culturais da ilha do Marajó, como colaboradora da 2 .SR do IPHAN.

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O INRC e a Proteção dos Bens Culturais



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Embora o uso da metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), sob supervisão do Departamento de Patrimônio Imaterial (DID/IPHAN), não constitua, de acordo com o regulamento do Conselho Consultivo do Patrimônio Imaterial, um requisito obrigatório ao registro de um bem cultural, a grande maioria dos inventários atuais tem utilizado a metodologia do INRC como base para o trabalho de pesquisa e documentação. A única exceção, até o presente, refere-se ao Inventário da Expressão Gráfica e Oralidade entre os Wajãpi do Amapá, realizado pelo Museu do Índio, Conselho das Aldeias Wajãpi e Núcleo de História Indígena e do Indigenismo/USP. O uso freqüente do INRC tem suscitado questionamentos de ordem metodológica e, em alguns casos, também filosófica. Tais questionamentos referem-se tanto à necessidade de reformulações e adequações no instrumental de identificação e documentação, quanto ao sentido do inventário para as comunidades pesquisadas, constatando-se a necessidade de associar a iniciativa a ações mais amplas de fomento e difusão dos bens culturais inventariados (VIANNA, 2004; CARVALHO, 2004). De outro modo, tendo em vista a discussão atual sobre a Proteção dos Conhecimentos Tradicionais, é importante também questionar em que medida os instrumentos do INRC garantem o respeito aos direitos referentes às criações intelectuais de comunidades e indivíduos envolvidos no processo de documentação. Sabe-se que a criação deste instrumento, e da própria legislação que rege o registro dos bens culturais, foi mais motivada pela intenção de favorecer ações no sentido de preservar do que propriamente proteger os bens culturais. Contudo, não se pode negar que a temática da proteção permeia todo o processo de documentação, aparecendo em maior ou menor intensidade em função da natureza do que se é documentado. Dessa forma, surgem indagações no que se refere às implicações da divulgação de práticas medicinais tradicionais ou produções artesanais (VIANNA, 2004). Os debates têm polemizado em torno de dois pontos de vista: de um lado, os que afirmam que a documentação poderia constituir uma prova da origem desse conhecimento, contribuindo, assim, para solucionar casos judiciais referentes a apropriações; e, de outro lado, num sentido inverso, a preocupação de que a ampla divulgação e o acesso indiscriminado ao banco de dados que abriga tais inventários possa, ao contrário, facilitar atos de apropriação e de uso indevido dos conhecimentos tradicionais. Essa aparente contradição e outras questões, referentes aos direitos de propriedade intelectual nos inventários realizados com a metodologia adotada pelo INRC, serão objeto de reflexão nesse texto. Pretende-se, a partir da experiência de campo do levantamento preliminar do Inventário da Ilha do Marajó, abordar possíveis pontos vulneráveis da metodologia do INRC quanto à proteção do saber tradicional.

A idéia de preservação do patrimônio imaterial é uma proposta antiga no país, que constava no Anteprojeto de Proteção do Patrimônio Artístico Nacional elaborado por Mário de Andrade, na década de 30, visando à criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional (SPAN), atual IPHAN2. O conceito de patrimônio cultural adotado por Mário de Andrade era bastante amplo e envolvia tanto os monumentos e bens históricos e arqueológicos quanto as manifestações da cultura popular e indígena, como: músicas, contos, lendas, medicina, culinária e outros. Inovador, tanto nacional quanto internacionalmente, serviu de referência à elaboração do Decreto-Lei no. 25/37, ainda responsável por organizar a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Embora tenha criado o instituto do tombamento, inclusive prevendo sanções administrativas, civis e penais ao descumprimento da lei, o Decreto-lei 25/37 não enfatizou a proteção das expressões da cultura popular e indígena na mesma medida que o texto do Anteprojeto escrito por Mário de Andrade3. A ênfase exclusiva no patrimônio material foi mantida pelo Instituto Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) até a década de 70, quando, segundo Márcia Sant’Anna (2003), a questão da proteção do patrimônio imaterial retorna por meio de iniciativas e ações experimentais de registros do Centro Nacional de Referência Cultural e pela Fundação Nacional Pró-Memória. Com o advento da Constituição Federal de 1988, que seguindo a tendência internacional identifica, formalmente, os bens culturais como parte do patrimônio cultural da nação, foi possível dar seguimento a tais discussões e realizar um trabalho mais efetivo e sistemático sobre o assunto. Dessa forma, de acordo com o art. 216 da CF/88, o patrimônio cultural brasileiro passa a ser constituído tanto de bens de natureza material quanto imaterial, incluindo as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, os objetos, os documentos, as edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; e os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arquitetônico, paleontológico, ecológico e científico. Dentre os meios de salvaguarda, proteção e incentivo à preservação e manutenção dos bens culturais, são citados os inventários e registros (art.216, §1o). Os formulários, a metodologia e o banco de dados utilizados atualmente no 2

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Andrade, M. de “Anteprojeto para a Criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional”. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, no.30, 2002. De acordo com Falcão “...a defesa de Mário de Andrade do patrimônio imaterial não granjeava o mesmo apoio político da classe média que o patrimônio material de pedra e cal obtinha de nossa elite. Era proposta restrita a um grupo de intelectuais avançados no tempo. Demanda de ninguém politicamente poderoso. Nem dos partidos de esquerda, nem dos de direita. Nem dos democratas, nem dos ditatoriais. A preservação da lenda ou da dança indígena não tinha a mesma legitimidade social de um altar barroco resplandecendo a ouro. Era quase uma extravagância intelectual. Ter razão antes do tempo, diz o ditado, é errado” (2001, p. 169-170)

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As Origens do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC)



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Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) foram definidos em 1999 a partir de trabalho coordenado pelo antropólogo Antônio Augusto Arantes, atual presidente do IPHAN, no sítio compreendido pelo Museu Aberto do Descobrimento (MADE), que abrange localidades na região de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, na Bahia. Esses e outros trabalhos serviram de subsídio à formulação do Decreto no. 3.551/00, por meio do qual foi criado o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial. Os registros podem ser solicitados pelo Ministro de Estado da Cultura; instituições vinculadas ao Ministério da Cultura; Secretarias de Estado, de Município e do Distrito Federal; sociedades ou associações civis. Depende, entretanto, de avaliação do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, que decidirá em última instância pela inscrição do bem e a sua titulação como Patrimônio Cultural do Brasil a partir de critérios estabelecidos na legislação, como o de relevância nacional. A partir do decreto 3551/00, com a implantação do Programa Nacional de Patrimônio Imaterial, a metodologia do INRC passou a ser utilizada como apoio à documentação de bens culturais4. Além de atender ao propósito da descrição pormenorizada do bem cultural a que se refere os requisitos de registro, a metodologia do INRC tem sido adotada pela perspectiva de padronização de procedimentos de coleta e tratamento de dados. A intenção é permitir o gerenciamento futuro das informações originárias de diferentes inventários numa única base de dados.

Banco de dados de saberes tradicionais O acesso a uma base de dados com informações referentes ao modo como comunidades tradicionais se valem de recursos naturais para produzir medicamentos, atrair ou afastar animais, construir habitações mais resistentes ou adequadas a determinados climas e outros constitui certamente uma das maiores preocupações dos seguimentos interessados em resguardar os conhecimentos tradicionais de apropriações indevidas. Pois, além de referências culturais, essas informações servem também como referência ao desenvolvimento de novas pesquisas. E, sobretudo, nos casos em que ainda não foram codificadas ou fixadas em qualquer meio, constituindo apenas objeto da história oral das comunidades, podem resultar em novos processos e produtos para a indústria farmacêutica, cosmética ou da construção civil.

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Os requisitos para o registro de um bem cultural de natureza imaterial encontram-se disponíveis no site do IPHAN: http://www.iphan.gov.br

No caso de conhecimentos tradicionais, que não constituem mais novidade, já amplamente codificados, documentados em artigos científicos e outros meios, pode-se trabalhar com a idéia da prevenção. O Comitê Intergovernamental da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) tem utilizado informações contidas nos bancos de dados de conhecimentos tradicionais na consulta prévia dos examinadores de patentes. Dessa forma, é possível não apenas anular patentes concedidas, como evitar a própria concessão, se encontrada referência das reivindicações solicitadas em conhecimentos já documentados. O banco de dados de conhecimento medicinais Ayurvédicos da Índia, por se constituir apenas de informações já documentadas e pertencentes ao domínio público, tem como base esse princípio preventivo (WIPO/GRTKF/IC/3/6). Decisões sobre o tipo e o grau de detalhamento das informações e as formas de permissão de acesso ao conteúdo dos bancos de dados costumam ser polêmicas, gerando muitas discordâncias entre os atores envolvidos. Alguns bancos trabalham com a idéia da criação de níveis de acesso, limitando o grau de detalhamento das informações disponíveis de acordo com a natureza do que se é documentado. O primeiro nível de acesso funcionaria como uma espécie de banco de índices, onde apenas se indica o tipo de conhecimento que uma dada comunidade possui sobre um determinado assunto, sem detalhá-lo o suficiente para iniciar qualquer pesquisa a partir da informação disponível. Dessa forma, a autoria da comunidade e também o seu conhecimento são resguardados, pois os interessados em obter mais informações devem necessariamente negociar e estabelecer um contrato com a comunidade detentora do saber. Contudo, mesmo os bancos de índices apresentam problemas quanto ao estabelecimento dos critérios e decisões sobre o que deve ser divulgado e de que forma deve ser divulgado. Em fins da década de 90, a Fundación para el Desarrollo de las Ciencia Físicas, Matemáticas y Naturales da Venezuela (FUDECI) iniciou um grande inventário nacional com o objetivo de documentar os conhecimentos tradicionais de povos pertencentes às 24 etnias e comunidades locais do território venezuelano, reunindo-os num banco de dados. Em três anos de pesquisa, a Base de Dados BIOZULUA contou com mais de 9.000 entradas referentes a conhecimentos sobre recursos naturais de interesse comercial e tecnologias

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Por outro lado, a documentação dessas fontes não codificadas pode também servir, numa outra situação, como meio de provar a autoria de comunidades em ações judiciais envolvendo processos de apropriação de conhecimento. Neste caso, entretanto, o acesso ao conteúdo deve ser controlado, mantendo-se sigilo, a exemplo do que ocorre com o registro de software, no qual as informações referentes ao programa são depositadas no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) em envelope lacrado, a ser aberto apenas por interesse do inventor a fim de comprovação da autoria.



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relacionadas à produção de medicamentos, utensílios e artigos para a construção civil. Em ação conjunta com o Ministério da Ciência e Tecnologia e o Ministério do Comércio da Venezuela, o Serviço Autônomo de Propriedade Intelectual deste país (SAPI) tem sido o responsável por gerenciar essa base de dados e intermediar os contratos feitos com instituições interessadas em aprofundar as informações como subsídio a pesquisas de produtos e processos potenciais de mercado. Como forma de repartição de benefícios, os recursos provenientes dos contratos serão reinvestidos em programas de saneamento e educação nas comunidades indígenas5. A BIOZULUA contém tanto informações codificadas, já amplamente documentadas em artigos científicos e outros meios, quanto informações não-codificadas. Ou seja, não documentadas em nenhum meio, apenas objeto de transmissão oral. Por esse motivo, o conteúdo da base de dados (fotografias, textos, vídeos e sons) não foi disponibilizado na íntegra ao público, com o fim de evitar a perda do requisito de novidade no caso de conhecimentos com potencial de patenteamento6. No Encontro Regional Preparatório para a 4a Sessão do Fórum das Nações Unidas sobre Florestas, ocorrido de 15 a 16 de abril de 2004 na cidade de Quito, Equador, foram dados alguns informes sobre o andamento do trabalho na Venezuela e as dificuldades de negociação com as comunidades que ainda não haviam concordado em participar do inventário. A pergunta feita nesse caso é, quem, dentro da comunidade, teria a legitimidade de dizer o tipo de conhecimento que poderia ou não ser divulgado num banco de dados e, mais, em não havendo a intermediação do órgão governamental, quem seria o titular do contrato no caso do interesse da parte de terceiros em aprofundar os conhecimentos citados no banco com fins de comercialização? Tendo como exemplo a experiência da Venezuela, o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual do Brasil (INPI) iniciou, a partir da organização do Encontro de Pajés em São Luis do Maranhão, de 4 a 6 de dezembro de 2001, um inventário similar, destinado à proteção dos conhecimentos tradicionais de povos indígenas brasileiros. O inventário, contudo, esbarrou nas dificuldades econômicas e administrativas pelas quais esse órgão têm passado e, ainda, em restrições por parte de algumas etnias quanto à intermediação governamental. Não havendo, dessa forma, previsões sobre a continuidade do projeto. A outra iniciativa brasileira nesse sentido também não chegou a funcionar. Trata-se da Portaria da Funai no 693/00 que delega ao Museu Nacional do Índio a incumbência do registro do patrimônio cultural indígena. A Portaria estipula que o 5 6

ver http://www.ictsd.org/dlogue/2001-02-22/eugui.doc ver referência WIPO/GRTKF/IC/3/6

Dessa forma, o Inventário Nacional de Referências Culturais constitui hoje, praticamente, a única iniciativa nacional na esfera governamental de resultados regulares quanto ao propósito de documentação sistemática dos saberes de comunidades tradicionais e da cultura popular em âmbito nacional. No entanto, embora a documentação já esteja avançada, a discussão sobre o acesso às informações produzidas só está em seu início. Enquanto isso avolumam-se demandas das comunidades, instituições de pesquisa e governos locais interessados em ter acesso ao material produzido. A discussão sobre o que divulgar, como divulgar e o estabelecimento de critérios de acesso, não pode mais ser adiada sob o risco de estarmos deixando as comunidades vulneráveis no que se refere às possibilidades de apropriação de seus saberes. Principalmente porque essa divulgação já vem acontecendo em publicações e outras mídias, como os CDs elaborados pelo CNFCP. A partir da experiência prática de realização do Inventário Nacional de Referências Culturais da Ilha do Marajó, apontaremos, no tópico seguinte, alguns tipos de informações e produtos inovadores que poderiam ser objeto de apropriação a partir do uso da metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais.

O INRC e os saberes tradicionais: a experiência do levantamento preliminar do Inventário Cultural da Ilha do Marajó (PA). A ilha do Marajó, com aproximadamente 59.308 km², estendendo-se por uma área equivalente em tamanho ao estado do Espírito Santo, se constitui no maior arquipélago fluvio-marítimo do planeta. É formada por 12 municípios distribuídos em 2 microrregiões: a Microrregião do Arari, composta pelos municípios de Cachoeira do Arari, Santa Cruz do Arari, Soure, Salvaterra, Muaná, Ponta de Pedras e Chaves; e a microrregião de Furos de Breves, composta pelos municípios de Breves, Curralinho, Afuá, Anajás e São Sebastião 7 da Boa Vista . (IPHAN, 2004) 7

A mesorregião do Marajó, além dessas duas microrregiões, inclui outras ilhas menores que compõem o arquipélago, como a ilha de Gurupá, e, ainda, uma parte de continente, onde localizam-se os municípios de Melgaço, Portel, Bagre e Oeiras do Pará. Como o inventário se restringe à ilha Grande, essas localidades não farão parte deste levantamento preliminar.

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cadastramento deve ser gratuito e pode ser solicitado por qualquer comunidade, sem que haja qualquer avaliação quanto a critérios de relevância para o registro. Além disso, o registro não constituiria condição obrigatória para atestar a titularidade do bem cultural indígena. Neste caso, também, não houve continuidade devido a dificuldades de infra-estrutura institucional.



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O Inventário de Referências Culturais da Ilha do Marajó teve início em 1 de julho de 2004. Num período aproximado de 6 meses de trabalho e uma equipe composta por três pesquisadores e dois assistentes de pesquisa8, foram visitados oito municípios e realizadas mais de 200 entrevistas. Nesse primeiro momento, trata-se apenas do levantamento preliminar, onde as informações obtidas não têm a mesma profundidade da etapa seguinte, que constitui o inventário propriamente dito. Contudo, ainda que de forma preliminar, foi possível ter idéia do tipo de informação que certamente constará na próxima etapa do inventário. Neste texto, a título de exemplo, serão registradas apenas 4 situações específicas que se referem a conhecimentos coletivos de origem difusa associados a biodiversidade, uma inovação de caráter individual, apropriação para uso comercial de expressão recorrente no imaginário coletivo local e, por fim, apropriação de direitos autorais no âmbito da música.

a) conhecimentos coletivos de origem difusa associados a biodiversidade O isolamento geográfico, a inexistência ou funcionamento precário de hospitais e postos de saúde, a existência de uma rica flora local e a herança cultural indígena são elementos que ajudam a explicar a manutenção de práticas de medicina tradicional na Ilha do Marajó. Os curandeiros ou curadores, como são chamados localmente, possuem um amplo conhecimento das plantas da região, mencionando-as vez por outra nas entrevistas. Os moradores do local têm muita confiança nos curadores que atendem também pela denominação de pajés, embora já não existam mais povos indígenas na ilha, dizimados ou evadidos, desde os tempos dos primeiros colonizadores no século XVII e XVIII. Os pajés e as parteiras, além de outros grupos organizados (como a Associação das Mulheres da Reserva Extrativista de Pesqueiro, em Soure, e a Cooperativa Ecológica das Mulheres Extrativistas do Marajó, em Ponta de Pedras) constituem, muitas vezes, o único tipo de socorro médico nas inúmeras localidades distantes das sedes dos municípios, onde normalmente se encontra um hospital ou posto médico. As entrevistas com os pajés, parteiras e outros membros da comunidade em geral trouxeram muitos elementos dessa medicina popular. Diante de relatos que evidenciavam práticas de uso dos recursos naturais locais com fins medicinais, a equipe de pesquisa se perguntava se deveria ou não documentar, pois, como ainda não havia uma definição clara sobre quem teria acesso a essa documentação, preocupávamo-nos que, ao invés de um benefício, pudéssemos, com o ato de divulgar, facilitar atos de apropriação indevida. 8

Além do meu envolvimento pessoal na coordenação do trabalho, fazem parte da equipe a etnomusicóloga Líliam Barros, o geógrafo Edgar Chaves, a estudante de turismo Karla Oliveira e o técnico em áudio-visual Paulo Carvalho.

Certa vez entrevistamos um rapaz membro de uma família de 10 irmãos. Ele havia aprendido com o pai o ofício da construção de barcos. Cada um de seus irmãos se especializou numa função específica: construir, calafetar, consertar o motor etc. Esse rapaz escolheu projetar os barcos, em virtude do seu gosto pelo desenho. A prática do desenho é coisa rara na região. Em geral, o mestre carpinteiro imagina o feitio do barco e começa a construi-lo e, em alguns casos, utiliza apenas as mãos como instrumento de medição. Como também é característico da região, nem ele, nem os irmãos fizeram qualquer curso de engenharia naval, utilizando apenas a experiência empírica. Empolgado com seu ofício, o rapaz mostrou-nos alguns desenhos, dentre os quais uma rabeta de madeira pequena embarcação a motor. Havia desenvolvido um sistema mecânico que, na sua explicação, proporcionaria maior estabilidade à embarcação, tornando-a tão rápida quanto as embarcações mais leves, feitas de alumínio. Ele já tinha ouvido falar, mas não possuía uma idéia muito clara do que seria uma patente ou que o seu invento pudesse despertar interesse junto a empresários do setor naval. Trata-se, nesse caso, não de um conhecimento coletivo de origem difusa, mas de uma invenção resultado de um ato de criatividade individual. Em situações como essa a documentação no inventário tende a prejudicar o inventor, inviabilizando o seu pedido de patente, pois, com a divulgação, o invento perde o requisito da novidade e passa a ser de domínio público. Assim, qualquer um poderia se apropriar da idéia e produzir comercialmente, sem a obrigação de pagar royalties ao inventor.

c) expressões culturais como forma de agregar valor a produtos industriais Além de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, que podem levar ao desenvolvimento de novos produtos e processos na indústria farmacêutica e inovações passíveis de patentes individuais, se pensarmos nas próprias manifestações culturais como objeto de interesse comercial, veremos que o INRC pode, ainda, abrir espaço para outros tipos de apropriações. O trabalho da fitoterapeuta Edna Costa, na ilha do Marajó, teve início em 2002, com o treinamento de mulheres, líderes comunitárias, nos municípios de Soure e, posteriormente, Ponta de Pedras, visando ao uso das plantas medicinais na produção de medicamentos e cosméticos. Atual presidente da Cooperativa Ecológica das Mulheres Extrativistas do Marajó, Edna nos procurou com uma reivindicação inusitada. Queixava-se que uma grande empresa do setor de

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b) inovações de caráter individual



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cosméticos havia se apropriado da lenda da priprioca , utilizando-a nas campanhas publicitárias da sua nova linha de perfumes, sem qualquer favorecimento das comunidades mantenedoras dessa expressão. Certamente esse é o tipo de questão que extrapola o âmbito de discussão e possibilidades de alcance do INRC, pois, pressupõe o estabelecimento de diretrizes mais globais em termos do uso de imagens ou de qualquer um dos componentes culturais das populações tradicionais, com o fim de agregar valor a produtos industrializados. Uma alternativa a essa situação, principalmente em se tratando de conhecimentos tão difusos como no caso da priprioca, seria o estabelecimento de um fundo no qual os recursos seriam revertidos para o desenvolvimento de projetos com comunidades em geral. O estabelecimento de um fundo visando à repartição de benefícios, nos casos de conhecimentos de origem difusa, tem constituído objeto de debate no âmbito do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) e outros fóruns de discussões sobre a criação de um regime sui generis de proteção. Não há, contudo, até o momento, qualquer perspectiva de consenso sobre o assunto.

d) direitos autorais no meio musical Outras formas de apropriação possíveis, que valem a pena ser mencionadas, embora ainda sem um exemplo prático no universo do inventário do Marajó, referem-se ao desrespeito dos direitos autorais no âmbito musical. A apropriação de autoria de letras e melodias criadas no âmbito de comunidades não constitui nenhuma novidade. Em alguns casos, essa apropriação ocorre na atribuição do título de domínio público a músicas de autores conhecidos. O isolamento desses músicos a universos muito restritos às comunidades onde vivem, dificulta a comprovação da autoria e, por conseguinte, a reivindicação dos benefícios aos quais lhe seriam de direito pela gravação, veiculação na mídia etc. Nessa mesma linha, encontramos também os grupos que reinventam tradições e criam novas formas de expressão a partir da cultura popular, como é o caso dos grupos parafoclóricos. Grupos desse tipo foram encontrados em praticamente todos os municípios visitados nessa primeira etapa do trabalho de levantamento preliminar como: o Cruzeirinho, de Soure, o Ananantuba, de Santa Cruz do Arari, o Raízes da Terra, de Salvaterra, o Nuaruaques, de Ponta de Pedras e outros. A Dança do Vaqueiro Marajoara constitui exemplo de criação de um desses grupos, utilizados inclusive em apresentações de grupos de Belém, sem que se saiba ao certo quem foi o autor. 9

A lenda conta a estória do índio Piri-Piri, que desapareceu com um encantamento, deixando em seu lugar uma nuvem de fumaça de aroma agradável. No mesmo lugar nasceu, posteriormente, uma grama de raízes que exalava o mesmo odor. As índias passaram então a utilizar a raiz para lavar os cabelos e o corpo, chamando-a de Piripirioca, hoje priprioca.

A partir dessas quatro experiências do trabalho de campo do levantamento preliminar do Inventário da ilha do Marajó, constatamos a existência de informações ainda não documentadas, que, como vimos, dizem respeito tanto a práticas e saberes coletivos transmitidos oralmente nas comunidades, quanto a inovações resultantes de atos individuais. Desse forma, é importante que se adotem procedimentos administrativos e operacionais visando a assegurar que a realização do inventário e, sobretudo, o acesso público aos resultados do mesmo não facilitem a apropriação dos conhecimentos tradicionais. Mas, num sentido oposto, constitua um instrumento de preservação dos direitos patrimoniais das comunidades sobre suas criações e saberes. Dentre esses procedimentos podemos destacar a necessidade de proteção autoral da base de dados do próprio inventário, o cuidado com o estabelecimento de contratos com instituições parceiras para o uso da metodologia, a necessidade de obtenção de consentimento prévio junto às comunidades para a realização da pesquisa e divulgação das informações, o alerta ao usuário do banco sobre as implicações legais de usos não-autorizados das informações e a necessidade da assinatura de termos de sigilo pela equipe contratada no que se refere a informações a serem definidas como de acesso restrito. Ações mais amplas, visando à parceira com outros órgãos e entidades como o CGEN, o INPI e instituições de fomento e geração de renda às comunidades, como SEBRAE, governos locais e outros, também devem ser pensadas. Assim, uma vez constatado que esse mecanismo pode servir como forma de proteção, ainda que indireta, aos conhecimentos tradicionais, faz-se importante a aproximação dos fóruns de discussão que tratam sobre esse assunto, mesmo que o viés destes até então tenha sido a proteção ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade. Neste aspecto, o CGEN tem liderado as discussões no país e, a partir da congregação dos atores interessados na temática, vem alcançando bons resultados e avanços quanto a legislações e outros mecanismos referentes ao acesso e à repartição de benefícios de produtos e processos originados de saberes tradicionais. Na mesma linha, o INPI constitui, também, um parceiro importante em várias frentes como treinamento dos pesquisadores, assessoria às comunidades e proteção preventiva a atos de apropriação. Dessa forma, a partir de um contrato de parceria com o INPI, poderiam ser treinados os pesquisadores contratados para a realização dos inventários em noções básicas de propriedade intelectual. Esse treinamento permitiria a identificação de saberes coletivos de interesse

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Nesse sentido, a documentação no inventário certamente pode favorecer a identificação dessas autorias, servindo de prova contra apropriações indevidas, desde que os pesquisadores estejam sensíveis a essas questões no momento de realização da pesquisa.



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comercial ou criações individuais com potencial de patenteabilidade. Uma vez identificado o potencial inovador de saberes e produtos, a partir da parceria poderia se oferecer assessoria às comunidades no que se refere à capacitação para a redação de patentes, solicitação de registros de marcas e indicações geográficas, cultivares ou qualquer outro mecanismo referente à proteção por propriedade intelectual. O INPI poderia, ainda, utilizar as informações da base de dados do inventário de forma preventiva, como subsídio às decisões dos examinadores das solicitações de patentes, evitando, dessa forma, a concessão de patentes ou marcas a partir da apropriação do conhecimento das comunidades. Outra questão de suma importância diz respeito à busca de parceria visando à manutenção e reprodução dos bens culturais. Na coordenação do Inventário Nacional de Referências Culturais da Ilha do Marajó (PA), presenciei inúmeras vezes o apelo dos atores locais no que se refere ao apoio monetário ou gerencial para a manutenção dos seus bens culturais. – O que o IPHAN pode oferecer pra gente? Ou, no que essa pesquisa vai me ajudar a vender o meu artesanato? Como afirma Letícia Vianna, “as informações levantadas nos inventários revelam técnicas e conhecimentos refinados e especiais, criados em comunidades excluídas dos processos de desenvolvimento social e distribuição de riqueza” (VIANNA, 2004, p. 19). Daí a importância de que esse instrumento seja visto não apenas como documentação, mas crie condições para a manutenção dessas manifestações, apresentando ações nesse sentido, como o vem fazendo o CNFCP. Assessorias de marketing, agregação de valor por meio de selos de qualidade ou pela proteção por indicação geográfica, capacitação para gestão e produção, programas para melhorar a embalagem, favorecer o transporte e a inserção no mercado interno e externo, e outros. Estes constituem, em alguns casos, formas mais efetivas de evitar a apropriação do que propriamente a criação de restrições de acesso às informações geradas. É claro que a exploração comercial também pode trazer conseqüências indesejáveis e, em alguns casos, a perda de referências, significados e elementos culturais em decorrência de modificações que visam, sobretudo, atender interesses de mercado. Contudo, se quisermos construir uma relação realmente dialógica com as comunidades, é preciso adotar não apenas um discurso, mas também uma prática menos intervencionista. Nesse sentido, é que enfatizamos que a decisão sobre a disponibilização pública dos resultados do inventário deve ser negociada com as comunidades pesquisadas. Assim, mais do que consentir ou participar do processo de pesquisa, elas devem ter o direito, sobretudo, de opinar sobre o resultado final do trabalho, de forma a negociar o tipo de informação que desejam que conste como acesso restrito ou não.

O crescente interesse comercial nos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade tem levado pesquisadores, comunidades, instituições governamentais e não-governamentais a discutirem a criação de um sistema legal que regulamente o acesso ao conhecimento tradicional e assegure a repartição de benefícios com comunidades detentoras de saberes locais. Esse esforço conjunto tem como base a concepção de que o conhecimento que essas comunidades possuem dos recursos naturais que as envolvem é resultado de um longo processo de pesquisa, experimentação, observação, raciocínio e intuição não apenas transmitido como reformulado por inúmeras gerações. E, como tal, nada mais justo que as populações detentoras de saberes tradicionais recebam benefícios pelo repasse desses conhecimentos, principalmente quando se destina ao uso comercial e ao lucro de terceiros. Esse tipo de preocupação tem sido associada com maior freqüência a conhecimentos relacionados à medicina tradicional, sobretudo pelo grande potencial de mercado que apresentam. Mas não se restringe a estes, como mostra o documento Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (UNESCO, 1989), quando aborda a possibilidade dos inventários servirem como fonte de consulta a facilitar cópias e, por conseguinte, reproduções de bens culturais sem autorização ou benefício das comunidades que os originaram. Numa pesquisa sobre conhecimentos tradicionais realizada pela OMPI (1998, 1999)10 com comunidades de vários países, a perda de significação e, por conseguinte, o desaparecimento da própria cultura foram apontados pelas comunidades como possíveis conseqüências indesejáveis da exploração comercial de suas expressões culturais. Por outro lado, algumas comunidades vêem o inventário e a divulgação posterior das informações nele reunidas como uma possibilidade de inserção dos seus produtos e bens culturais no mercado. A visibilidade, neste caso, é desejada por gerar interesse e demandas em relação aos bens culturais e, assim, novas perspectivas de aumento da renda dos grupos produtores desses bens. A perspectiva de inserção no mercado - a exemplo do trabalho que tem sido realizado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular com o apoio aos artesãos em inventários como os da Cuia de Santarém, do Bumba-meu-boi e outros – constitui uma forma de inclusão social e, em muitos casos, manutenção da cultura de comunidades historicamente alijadas dos processos de 10

As missões de enquetes foram realizadas entre 1998 e 1999 e o relatório final encontra-se disponível em: www.wipo.int/globalissues/tk/repor/final/index.

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Conclusão



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desenvolvimento social. Nesse aspecto, inúmeras instituições, tanto no âmbito local quanto federal, poderiam se constituir parceiras. As distintas expectativas quanto à inserção dos bens culturais no mercado reforçam a idéia de que é necessário que os membros das comunidades sejam convidados a participar de forma mais intensa nas decisões que envolvem as diferentes etapas de realização dos inventários. É importante que as comunidades sejam vistas não simplesmente como beneficiárias, mas, sobretudo, como parceiras na realização deste tipo de trabalho.

REFERÊNCIAS BELAS, C.A. A Propriedade Intelectual no Âmbito dos Direitos Difusos. In: TEIXEIRA, J.G.L.C. et al. (Org.). Patrimônio Imaterial, Performance Cultural e (Re)Tradicionalização. Brasília: ICS-UnB, 2004. CARVALHO, L. O desejo de Betinho e o decreto do presidente ou a questão da autoria no bumba-meu-boi do Maranhão e as políticas para o patrimônio imaterial no Brasil. In: LONDRES, Cecília et al. Celebrações e Saberes da Cultura Popular: pesquisa, inventário, crítica, perspectivas. Rio de Janeiro: Funarte, Iphan, CNFCP, 2004. (Encontros e Estudos, 5), 2004. _____.2004. Reflexões sobre a experiência de aplicação dos instrumentos do Inventário Nacional de Referências Culturais. In: LONDRES, Cecília et al. Celebrações e Saberes da Cultura Popular: pesquisa, inventário, crítica, perspectivas. Rio de Janeiro: Funarte, Iphan, CNFCP. (Encontros e Estudos, 5). CUNHA, D. F. S. Patrimônio Cultural: proteção legal e constitucional. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004. CUNHA, M. C. Mecanismos Existentes e Alternativas sobre o Consentimento Prévio e Informado e Repartição de Benefícios. In: LIMA, André; BENSUSAN, Nurit (Org.). Quem Cala Consente? subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais. São Paulo: Instituto Sócio ambiental. 2003. EUGI, D. V. El regimen legal y la experiencia venezolana en materia de acceso a los recursos geneticos, los conocimientos tradicionales y la propiedad intelectual. Disponível em: . 2001. GONÇALVES, N. O folclore e a Gestão Coletiva de Direitos. Revista da ABPI, São Paulo, n. 60, p. 53-55, set./out, 2002.

LIMA, A. et al. Direitos Intelectuais Coletivos e Conhecimentos Tradicionais. In: LIMA, André; BENSUSAN, Nurit (Org.). Quem Cala Consente? subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais. São Paulo: Instituto Sócio ambiental, 2003. PATRIMÔNIO Imaterial: o registro do patrimônio Imaterial. Brasília: MinC/IPHAN. Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial, 2003. SHIVA, V. 2001. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis: Vozes. VIANNA, L. 2004. Patrimônio Imaterial: legislação e inventários culturais. In: Londres, Cecília et al. Celebrações e Saberes da Cultura Popular: pesquisa, inventário, crítica, perspectivas. Rio de Janeiro: Funarte, Iphan, CNFCP. (Encontros e Estudos, 5), 2004. WIPO/GRTKF/IC/3/10 Rapport final sur l’expérience Acquise au Niveau National en ce qui concerne la Protection Juridique des Expressions du Folklore. Genéve: Troisième Session du Comitê Intergouvernamental de la Propriété Intelectuelle Relative aux Ressources Génétiques, aux Savoirs Traditionnels et au Folklore, 13 a 21 de juin, 2002. WIPO/GRTKF/IC/3/6 Inventario de Bases de Datos en Línea de Catalogación de Conocimientos Tradicionales. Ginebra: Comité Intergubernamental sobre Propiedad Intelectual y Recursos Genéticos, Conocimientos Tradicionales y Folclore, 13 a 21 de junio, 2002.

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IPHAN. Marajó: conhecer e preservar. [S.l.:s.n.]. Relatório de Atividades, 2004.



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Mario Sérgio Sobral Costa Mato Grosso do Sul possui a terceira maior população indígena do Brasil, constituída por nove (9) etnias, com estruturas organizacionais e padrões culturais variados: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9.

Guató; Kadiwéu; Terena; Ofaié; Guarani; Kaiowá; Kinikinaua; Camba; Atikum.

“OS TERENA” • Características: 1. Pertencentes ao tronco lingüístico Aruaque. 2. Primeiros relatos datados de 1845 (Francis de Castelnau). 3. População de, aproximadamente, 18.000 (dezoito) mil pessoas. 4. Habitam as reservas indígenas localizadas nos municípios de Anastácio, Aquidauana, Dois Irmãos do Buriti, Miranda, Nioaque, Rochedo e Sidrolândia, existindo outros grupos vivendo nas reservas dos Kadiwéu em Porto Murtinho, dos Guarani-Kaiowá em Dourados e na reserva dos Kaingang na região de Bauru – SP. 5. Fonte de renda: comercialização de gêneros alimentícios e produtos artesanais, além de empregar a sua mão-de-obra em destilarias e fazendas locais.

• Divisão Histórica: 1.“Tempos Antigos”: saída do Êxiva, no decorrer do século XVIII, passando pelo rio Paraguai e ocupando a região do atual estado de Mato Grosso do Sul. Ocuparam vasto território e realizaram importantes alianças com os Guaicuru e Portugueses.

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Bem Imaterial - SEMINÁRIO



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2.“Tempos de Servidão”: Guerra do Paraguai (1864 – 1870), envolvendo povos indígenas das regiões próximas ao rio Paraguai que se aliaram aos brasileiros para lutar pelo seu território. 3.“Tempos Atuais”: Corresponde à demarcação das reservas Terena e tem início com a chegada da Comissão Construtora das Linhas Telegráficas chefiadas por Rondon e continua até os dias atuais (não possui denominação).

• A Guerra do Paraguai: 1. A guerra pôs fim à autonomia dos Terena, que tiveram seu território ocupado pelos paraguaios. 2. Aliança com as tropas brasileiras para defesa da região. 3. O fim do conflito não significou o restabelecimento de suas terras. 4. O Governo Imperial intensifica a presença de brasileiros na região de fronteira e a doação de significativas extensões de terra aos oficiais participantes da guerra. 5. As áreas sofrem drástica redução, acarretando o desaparecimento de aldeias e a dispersão de parte da população indígena para fazendas e refúgios da região. 6. Modificação do relacionamento com a população local, antes baseada na troca recíproca e no comércio justo. 7. Perda das bases territoriais de origem, já ocupadas por terceiros que permaneceram na região após o conflito. 8. Reorganização das áreas afetadas pela guerra. 9. Regularização das áreas favorecendo aos novos ocupantes. 10. Reestruturação do território nacional, utilizando-se as terras indígenas e sua mão-de-obra.

“CERÂMICA TERENA” • Peculiaridades: 1. Queima das peças em 30 (trinta) minutos. 2. Seguem regras de evitação: - Não coletam barro (argila) durante o período de lua nova.

- Não efetuam nenhuma espécie de trabalho doméstico durante a fabricação das peças. - Não produzem peças durante o período em que estão menstruadas.

• Causas da redução da produção cerâmica: 1. Intenso contato com outras culturas. 2. Absorção de novas informações. 3. Mudanças de hábitos e padrões, desestimulando a prática de saberes antigos. 4. Substituição das peças utilitárias por novos artefatos introduzidos durante o período de contato com outros grupos sociais.

• Significado da produção cerâmica: 1. Objeto de troca com o homem branco. 2. Recipientes utilizados para o preparo de alimentos e armazenamento de sementes. 3. Alternativa de geração de renda. Realização do projeto “Fome Zero em Comunidades Indígenas de Mato Grosso do Sul” com recursos do Governo Federal:

• Principais Causas: 1. A pouca ou, em alguns casos, inexistente produção artesanal nas aldeias indígenas do estado, em conseqüência do contato com o homem branco que introduziu, em seu cotidiano, a utilização de novos artefatos. 2. A falta de incentivo e de políticas adequadas para tratamento da arte indígena. 3. Introdução de práticas artesanais estranhas à cultura tradicional que ocasionaram modificações substanciais em sua forma de expressão. 4. A alteração na forma de produção material dessas comunidades, antes revestida de caráter ritualístico e hoje caracterizada apenas como produto destinado ao mercado consumidor. 5. Implementação de mecanismos que permitam o reconhecimento dos valores tradicionais indígenas.

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- Não consomem alimentos (pães e alimentos com farinha) durante a produção das peças.



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6. Promover, simultaneamente, a geração de renda e a identificação cultural dessas comunidades.



8. Início e acompanhamento das oficinas de arte indígena.

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• Estratégias:

• Finalidades: 1. Levantamento do Patrimônio Cultural Terena. 2. Realização de oficinas para o repasse de saberes tradicionais. 3. Produção e comercialização da cerâmica. 4. Geração de renda para as famílias indígenas Terena. 5. Facilitar o escoamento da produção, tornando-a mais acessível ao público. 6. Melhorar a qualidade da produção. 7. Agregar valor cultural e étnico à produção.

• Etapas: 1. Pré-seleção das aldeias. 2. Reunião com a comunidade e seus representantes. 3. Trabalho de conscientização sobre a importância da retomada da produção cerâmica. 4. Identificação da iconografia Terena. 5. Verificação das matérias-primas nativas disponíveis. 6. Identificação das mestras artesãs para ministrarem os cursos de capacitação. 7. Identificação dos rituais que envolvem a produção da cerâmica Terena.

1. Compra de todas as peças produzidas durante o período em que foram realizados os cursos de capacitação – 2.000 (duas mil) peças. 2. Parceria com o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, para a realização de exposição e comercialização destas peças na Sala do Artista Popular, no Rio de Janeiro/RJ. 3. Divulgação dos produtos e expansão do mercado através de exposição itinerante. 4. Produção de catálogos etnográficos e etiquetas diferenciais.

• Conseqüências Indiretas: 1. Convites para realização de exposições e comercialização da produção Cerâmica em outros estados: • São Paulo - 27 de abril a 02 de maio. • Curitiba - 29 de abril a 09 de maio. • Brasília - mês de maio. • Circuito Cultural Banco do Brasil - 20 a 23 de maio • Porto Alegre - mês de junho. 2. Instrução do Processo de Tombamento Estadual da Cerâmica Terena, aberto durante a exposição realizada em Campo Grande no Museu de Arte Contemporânea. 3. Realização do “1º Encontro de Discussão sobre Direitos Culturais Difusos”, realizado nos dias 21 e 22 de junho no Museu de Arte Contemporânea - Campo Grande, onde foram discutidos: • Os elementos de amparo legal aos conhecimentos tradicionais, às culturas populares e indígenas. • Estabelecimento de condutas para as ações do Estado e da sociedade com relação a estas populações.

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5. Realização de exposição e comercialização das peças no Museu de Arte Contemporânea – MARCO, em Campo Grande/MS.



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Maria Dorotéa de Lima1 O Decreto nº 3551, de 04 de agosto de 2000, instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem o patrimônio cultural brasileiro e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial - PNPI. O registro é o instrumento legal de reconhecimento e valorização desses bens imateriais que, quando registrados, passam a ser inscritos em um dos quatro livros: Livro dos Saberes, Livro das Celebrações, Livro das Formas de Expressão e Livro dos Lugares2. O PNPI é um programa de fomento que permite o estabelecimento de parcerias, com instituições públicas e privadas (voltadas para a preservação, valorização e promoção do patrimônio cultural brasileiro), através da implementação de políticas de inventários, registro e salvaguarda de bens de natureza imaterial que promovam o fortalecimento dos grupos sociais que os produzem e transmitem, assim como assegurem as condições materiais 3 necessárias à sua continuidade . Além do registro e do PNPI, o IPHAN trabalha atualmente com mais dois instrumentos voltados para a preservação dos bens culturais imateriais: O Inventário Nacional de Referências Culturais - INRC e o Plano de Salvaguarda. O INRC é um conjunto de procedimentos metodológicos desenvolvido para a identificação e documentação de bens culturais, sejam eles de natureza material ou imaterial, de um dado território. Visa ao reconhecimento de bens representativos da diversidade e pluralidade culturais dos grupos formadores da sociedade, bem como a apreensão dos sentidos, significados, transformações e atualizações desse patrimônio do ponto de vista daqueles que o produzem, considerados intérpretes legítimos da cultura local e parceiros indispensáveis na

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Arquiteta e urbanista da 2ªSR/IPHAN. Coordenou, em Belém, o inventário e a instrução do processo de registro do Círio como patrimônio cultural brasileiro. É co-autora do Dossiê Círio de Nazaré. Livro dos Saberes, para o registro de modos de saber e fazer enraizados no cotidiano dos grupos sociais; Livro das Celebrações destinado à inscrição de festas, rituais e folguedos que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e outras práticas da vida social; Livro das Formas de Expressão para as manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; Livro dos Lugares para inscrição de espaços onde se concentram e reproduzem práticas sociais coletivas como mercados, feiras, praças e santuários (Decreto nº 3.551/2000, Art.1, § 1º) Para maiores informações sobre o Registro e o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial ver http://www.iphan.gov.br/patrimonioimaterial

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Círio de Nossa Senhora de Nazaré em Belém/PA: inventário e registro como patrimônio cultural brasileiro



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sua preservação . Trabalha com as mesmas categorias de bens criadas pelo 5 Decreto nº 3551/2000, acrescidas de edificações . O plano de salvaguarda pretende assegurar a permanência, de modo sustentável, daqueles bens cuja continuidade encontra-se ameaçada, conforme detectado pelo inventário. Sua elaboração e implementação devem propiciar a melhoria das condições materiais, ambientais e sociais necessárias à transmissão e reprodução das manifestações cuja existência se encontra sob risco de desaparecimento. É o conhecimento sobre o bem, resultante do inventário, que permitirá a identificação das medidas necessárias à sua preservação, que vão do simples apoio financeiro até a resolução de problemas de organização social, transposição de dificuldades para obtenção de matéria-prima ou transmissão dos conhecimentos para novas gerações. No momento em que se discute a legislação nacional de proteção da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais, com ênfase na questão do reconhecimento legal da propriedade intelectual coletiva, é pertinente observar, também, as possibilidades vislumbradas nesse sentido com os instrumentos acima referidos que, entretanto, considerados isoladamente, são insuficientes não só para assegurar a proteção desse patrimônio, mas também para garantir direitos legais de titularidade. Viana (2004, p. 21-24) reflete sobre essa questão, revelando preocupações com os possíveis desdobramentos que o registro de um bem de natureza imaterial como patrimônio nacional possa trazer para seus produtores do ponto de vista de seu reconhecimento como bem de interesse público: Sendo o patrimônio imaterial bem de interesse público, como se comporta frente ao direito de autoria, de propriedade, de usufruto? Quais os direitos e deveres dos cidadãos, do Estado, das unidades federativas e dos municípios em relação à proteção dos bens imateriais de interesse público nacional? Quais os limites que a lei impõe aos direitos privados e à evasão desse patrimônio? Quais as implicações para as comunidades do fato de terem sua cultura reconhecida como patrimônio nacional? É preciso muita clareza sobre as instâncias em que se estará legislando e os tipos de titularidades, direitos, deveres, limites, penalidades e prerrogativas que estarão envolvidos.



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Como se pode ver, nesse aspecto há inúmeras questões a espera de uma solução, inclusive, no plano internacional. No Brasil, o assunto vem sendo tratado, 4 5

IPHAN (2000, pp.i, ii, 2-5.) Estruturas edificadas associadas a determinados usos, a significações históricas e de memória ou a imagens que se tem de certos lugares. Representam bens de interesse diferenciado para determinado grupo social, nem sempre vinculado ao fator estético (IPHAN, 2000, p. 9).

Não é aleatoriamente, portanto, que este seminário - cujo enfoque é o patrimônio cultural e a propriedade intelectual - conta com a parceria do IPHAN na realização e de seus técnicos nas mesas redondas, trazendo relatos da experiência de aplicação do INRC. Os técnicos do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular – CNFCP apresentam os resultados da aplicação dessa metodologia, no bojo do projeto Celebrações e Saberes da Cultura Popular7, nos inventários do acarajé e da viola de cocho. A 2ª Superintendência Regional 2ªSR/IPHAN, de Belém, apresenta o inventário e o registro do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, dos quais trataremos com mais detalhes adiante. Conforme estabelecido pelo Decreto nº 3551/2000 e pela Portaria IPHAN nº 208, de 24 de julho de 20028, o registro de um bem cultural de natureza imaterial deve ser iniciado por solicitação dirigida ao presidente do 9 IPHAN , acompanhada, minimamente, da identificação completa do proponente; da descrição sumária do bem com informações culturais, históricas e sociais; de documentação iconográfica e referências documentais e bibliográficas. Recebida e conferida a documentação, o processo é encaminhado à Superintendência Regional em cuja jurisdição esteja localizado o bem, com as devidas orientações do Departamento de Patrimônio Imaterial - DPI para instrução técnica do processo e desenvolvimento dos estudos necessários, que são: inventário; descrição pormenorizada do bem, incluindo sua formação e evolução histórica; pesquisas detalhando os demais elementos culturalmente relevantes associados ao bem; documentação audiovisual. O resultado desses estudos será condensado em um dossiê que também integrará o processo.

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Belas (2004, p. 7-10) . Cf. Vianna (2004, p. 15-16), o projeto Celebrações e Saberes da Cultura Popular foi criado pelo CNCP no âmbito do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial com o objetivo de testar, refletir e avaliar sobre a aplicação e possibilidades dos novos instrumentos (Registro e INRC) de proteção e salvaguarda do patrimônio imaterial. Estabelece os procedimentos para instauração e instrução do processo administrativo e efetivo registro dos bens culturais de natureza imaterial. A solicitação de registro poderá ser apresentada pelo Ministro da Cultura; instituições vinculadas ao MinC; secretarias de Estado, Municípios e Distrito Federal; sociedades ou associações civis.

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no plano federal, pelo Conselho de Gestão do Patrimônio Genético – CGEN, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente – MMA. Formado por representantes de vários ministérios, dentre os quais o Ministério da Cultura - MinC, o CGEN conta, também, com a participação de entidades representativas da sociedade civil, inclusive das populações tradicionais, e, dentre outras coisas, está trabalhando na elaboração do Anteprojeto de Lei de Acesso ao Material Genético e seus Produtos, à proteção aos Conhecimentos Tradicionais Associados e à Repartição de Benefícios Derivados de seu Uso em substituição à Medida Provisória 2186 – 16/01, atualmente o principal instrumento legal de regulamentação do acesso aos recursos genéticos associados aos conhecimentos tradicionais6.



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Ressalta-se que o diferencial do registro com relação ao tombamento é a possibilidade de trabalhar com parcerias, pois as instituições públicas e privadas que detenham conhecimento sobre a matéria, devido às suas finalidades ou vinculações com o bem, poderão ser convidadas pelo IPHAN a contribuir ou até mesmo a assumir a instrução técnica do processo. Poderão, também, essas instituições, manifestar junto ao IPHAN qualquer interesse neste sentido, para o que será firmado Termo de Cooperação e Compromisso, a partir do qual as organizações credenciadas poderão pleitear recursos junto ao Ministério da Cultura - MinC10. A instrução do processo, em qualquer circunstância, será supervisionada pelo IPHAN. Concluído o inventário e elaborado o respectivo dossiê, a Superintendência Regional responsável, após a emissão de parecer fundamentado, restitui o processo ao DPI, que emite parecer conclusivo recomendando ou rejeitando a proposição de registro do bem. O processo, após avaliação da Procuradoria Jurídica- PROJUR, é encaminhado ao presidente do IPHAN, que determina a publicação do parecer na imprensa oficial para conhecimento e manifestação da sociedade pelo período de trinta dias. No caso de haver contestações, estas serão juntadas ao processo que será novamente enviado ao DPI para manifestação e posterior encaminhamento ao Conselho do Patrimônio. Este, finalmente, depois de ouvir o parecer de um relator designado pelo presidente, manifestará sua decisão. Sendo esta favorável ao registro, virá acompanhada da indicação do (s) Livro(s) em que o bem deverá ser inscrito. Em consonância com a legislação pertinente, o registro do Círio como patrimônio cultural nacional foi precedido de um extenso trabalho de pesquisa e documentação iniciado em 2000, por iniciativa do DPI e da 2ª SR/IPHAN, com a contratação dos levantamentos documental, iconográfico e bibliográfico e com a produção do vídeo Círio de Nazaré. A solicitação de registro da procissão do Círio de Nazaré, como patrimônio cultural brasileiro, foi apresentada ao IPHAN, em dezembro de 2001, pela Arquidiocese de Belém e Diretoria da Festividade de Nossa Senhora de Nazaré, com o apoio do Sindicato dos Arrumadores do Estado do Pará. No decorrer do ano de 2002, foi realizado o inventário do Círio, com aplicação da metodologia do INRC e, por fim, em 2004, com 211 anos de realização, a procissão do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, na cidade de Belém, no estado do Pará, recebeu o título de patrimônio cultural brasileiro através do registro. É justamente dos procedimentos de execução do inventário e do registro do Círio que trataremos neste artigo, trazendo ao leitor, nesta

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Através da Lei nº 8.313/91 que institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura – PRONAC e do Decreto nº 1.494/95 que regulamenta a aplicação desta lei e define os procedimentos de execução do PRONAC.

Pretende-se, ainda, nesta breve apresentação de nossa experiência com o Círio, divulgar a legislação, os procedimentos do registro e a própria metodologia do INRC, ampliando as possibilidades de novas parcerias na identificação e registro das referências nacionais da cultura imaterial brasileira, de modo que esta represente, de fato, os diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.

Breves considerações sobre o Círio de Nazaré Trata-se de festa popular que ocorre na cidade de Belém desde 1793, reproduzindo-se ao longo do ano pelos municípios do estado do Pará, por outros estados da Amazônia e também por outras regiões do país, como nas cidades de Brasília, Rio de Janeiro, São Luiz e Fortaleza, onde são organizados por iniciativa de grupos de paraenses. A celebração da festa em Belém é o auge dessas comemorações. Evento de grandes proporções, que se estende por todo o mês de outubro, o Círio envolve as mais diversas manifestações culturais, sagradas e profanas, incorporadas aos festejos ao longo dos anos. Mas conforme constatado pelas

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Belas (2004, p. 11-15)

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introdução, informações sobre a legislação e os procedimentos técnico-administrativos pertinentes ao inventário e ao registro dos bens culturais de natureza imaterial. Seguidamente, traçaremos algumas breves considerações sobre a festividade do Círio de Nazaré e, depois, abordaremos alguns aspectos que consideramos relevantes das etapas de execução do inventário e do registro desse bem, contribuindo, de certa forma, com uma discussão mais ampla já em curso, compartilhada por pesquisadores do IPHAN e de outras instituições que vem trabalhando com a metodologia do INRC. Além disso, pretendemos divulgar esses instrumentos de identificação e registro do patrimônio imaterial como uma alternativa viável para questões relacionadas à comprovação de autoria nos processos judiciais de apropriação de conhecimento, ou, ainda, como fonte de consulta prévia a concessões de patente. Experiências com banco de dados nesse sentido vêm sendo implementadas por países como Venezuela e Índia. No Brasil, a Fundação Nacional do Índio – FUNAI e o Instituto Nacional de Propriedade Industrial - INPI tiveram iniciativas com esse fim que, entretanto, não chegaram a se consolidar11. A questão precisa ser amadurecida e discutida com os principais interessados – as populações tradicionais. Há possibilidades e controvérsias, além de um longo caminho jurídico e institucional a ser percorrido.



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pesquisas realizadas para o processo de registro o ápice dos rituais de celebração é 12 a procissão principal do Círio, no segundo domingo de outubro , que concentra milhares de romeiros da região e de todo o Brasil. Embora de origem católica, o Círio de Nazaré extrapola, de modo crescente, as barreiras religiosas, transformando-se num grande evento cultural e turístico, mas é, sobretudo para os paraenses, momento de congraçamento e comoção. Dadas as atuais proporções atingidas pela festividade e pela programação oficial da festa13, sua organização perdura o ano inteiro, mas os rituais de celebração do Círio têm início com a Missa do Mandato, cerimônia de bênção e distribuição de imagens de Nossa Senhora de Nazaré pela igreja católica. As réplicas são levadas em romarias e novenas domiciliares que antecedem à grande procissão e se disseminam por toda a cidade. O período em que se concentra o maior número de rituais de celebrações e demais eventos culturais vinculados às festividades em homenagem a N. S. de Nazaré é delimitado temporalmente pelas procissões da Trasladação e do Recírio. A procissão da Trasladação precede, no sábado à noite, a procissão do Círio e, juntamente com esta, rememora o mito do achado e das fugas da imagem original de Nossa Senhora de Nazaré14. A procissão do Recírio marca o fim do ciclo de comemorações, é quando a imagem Peregrina se despede dos devotos e retorna para a capela do Colégio Gentil Bittencourt, ao lado da Basílica de Nazaré, de onde saiu para a procissão da Trasladação. Além dessas procissões que, juntamente com a procissão principal do Círio, contam com maior participação popular, muitas outras foram sendo incorporadas à programação da festa ao longo dos anos, sobretudo a partir da década de oitenta do século XX. Assim, às procissões da Trasladação, do Círio e do Recírio agregaram-se o Traslado da imagem para Ananindeua, a Romaria Rodoviária, a Romaria Fluvial, a Romaria dos Motoqueiros e o Círio das Crianças. Também fazem parte da festividade o Festival da Canção Mariana e a Corrida do Círio. Outros eventos profanos acontecem paralelamente à programação dita oficial e integram o calendário turístico-cultural da cidade, 12

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O segundo domingo de outubro foi fixado como dia do círio apenas em 1901, pelo bispo Dom Francisco do Rego Maia. Antes disso, não havia uma data certa para a procissão que poderia ser em setembro, outubro ou novembro. (Para maiores informações ver Dossiê Círio de Nazaré (IPHAN, 2004, p. 25) A programação dita oficial é aquela estabelecida e divulgada pela igreja, através da Diretoria da Festividade de Nazaré, instituição, criada em 1910, constituída por representantes de vários segmentos da sociedade local e presidida pelo pároco de Nazaré. Foram registradas no inventário 2 imagens de N.S. de Nazaré, consideradas as mais importantes nos rituais de celebração do Círio e na devoção: a imagem dita “original”, que foi “achada” por Plácido, e aquela que é conhecida como “peregrina”, uma réplica, de feições caboclas e tez morena, confeccionada na cidade de Cortzen, na Itália, na década de sessenta do século XX, que passou a participar das procissões por questões de segurança da imagem “original” que, desde então, fica na glória do altar-mor da Basílica de Nazaré. Para maiores informações ver Inventário do Círio de Nazaré (2004: Formas de Expressão/Imagens de N.S. de Nazaré).

Alguns dos elementos que integram os rituais de celebração do Círio transformaram-se em símbolos sagrados deste: a santa, a berlinda, o manto, a basílica e a corda. Esta, de irrefutável importância, foi introduzida na procissão em 1855 para tirar o carro de boi que conduzia a santa de um atoleiro e acabou incorporada à romaria. Oficializada pela igreja, em 1868, a corda teve seus significados transformados pelos devotos, constituindo hoje um dos elementos sagrados da procissão e também um dos principais pontos de conflito entre a Diretoria da Festa e a população. Ponto polêmico da procissão, a corda é sempre responsabilizada pelos atrasos, pois, com seus 400 a 450 metros de extensão, reúne grande número de pessoas que, comprimidas umas contra as outras, acompanham a romaria segurando-a com grande sacrifício como pagamento de promessas. Assim, já foi objeto de várias tentativas infrutíferas de organização, pois a cada ano parece aumentar o número de participantes desse sacrifício compartilhado. No Círio de 2004 assistimos a mais uma tentativa da Diretoria da Festa para melhorar o desempenho da corda na procissão: ao invés de trazê-la envolvendo a berlinda, adotou a disposição retilínea, pois avaliou, conforme divulgado pelos meios de comunicação, que com esse novo formato as curvas do trajeto seriam vencidas com maior facilidade, reduzindo o tempo do cortejo. Na avaliação dos devotos, a modificação não apresentou o resultado esperado, pois, considerando o tempo do percurso, este foi o mais longo dos Círios na história da procissão, com nove horas e meia de duração. O período da quadra nazarena envolve também a chegada à Belém, pelos rios e estradas, dos romeiros e dos produtos naturais que serão utilizados na preparação do grande almoço do Círio, que acontece no domingo após a procissão. Caracterizado pelas comidas típicas da região, constitui outro ponto alto das comemorações. É um ritual vivenciado pelas famílias que se reúnem ao redor da mesa, constituindo um momento de congraçamento entre familiares, amigos e convidados. Conforme observado no parecer conclusivo do DPI, elaborado por Ana Cláudia Lima e Alves, gerente de registro, a devoção a N. S. de Nazaré permeia o cotidiano da cidade, está presente no dia-a-dia da população, pode ser percebida nos incontáveis altares que se espalham por todos os lugares públicos e privados como residências, mercados, lojas, bancos, instituições públicas etc. Ao mesmo tempo em que ocupa o lugar de símbolo do sagrado, a santa é também vista com 15

Descrições pormenorizadas dessas procissões e demais eventos podem ser encontradas no Inventário do Círio de Nazaré (IPHAN, 2004- A, Fichas de identificação dos bens culturais) e também no Dossiê Círio de Nazaré (IPHAN, 2004-B).

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como o Arraial, a Feira de Brinquedos de Miriti, a Festa da Chiquita, o Auto do Círio e, mais recentemente, o Arraial do Pavulagem15.



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certa intimidade pelos paraenses, que a tratam carinhosamente como Naza, Nazoca ou Nazinha, um semelhante que cultiva os mesmos hábitos e gostos, tem as mesmas preocupações quanto aos problemas locais e ao meio-ambiente. Está presente em letras de música e nos autos teatrais que são apresentados no período da festa questionando a ordem estabelecida16. Para concluir as considerações sobre o Círio, mencionamos mais uma observação do parecer conclusivo, esta relativa às transformações e atualizações identificadas no processo histórico da manifestação que são, muitas vezes, frutos do conflito permanente entre a devoção popular e as autoridades constituídas (Igreja e Estado). Sempre presentes em eventos semelhantes, pode-se dizer que é no embate entre essas duas visões que ocorrem as transformações da celebração, quando procissões e novos rituais são inventados ou suprimidos, quando novos símbolos são construídos ou ressignificados, como é o caso da corda17.

Inventário e registro: o caso do Círio de Nazaré Para melhor compreensão dos procedimentos apresentados em seguida, abordaremos, ainda que sucintamente, alguns dos conceitos utilizados pelo IPHAN nos inventários, procedimentos de registro e planos de salvaguarda que foram sendo definidos durante o processo de construção desses instrumentos. Em primeiro lugar, depois de muitas discussões com relação à expressão que melhor define o conjunto desses bens culturais optou-se por patrimônio imaterial em função do Artigo 216 da Constituição Federal, que define o patrimônio cultural brasileiro como o conjunto de bens culturais de natureza material e imaterial, portadores de referências à ação, à memória e à identidade dos grupos formadores da sociedade brasileira18. Sendo assim, bens de natureza imaterial passam a ser entendidos como criações culturais de caráter dinâmico e processual, fundadas na tradição e manifestadas por indivíduos ou grupos de indivíduos como expressão de sua identidade cultural e social, definição esta presente na Portaria IPHAN nº 208/2002, que considera tradição “no sentido etimológico de dizer através do tempo, significando práticas produtivas rituais e simbólicas que são constantemente reiteradas, transformadas e atualizadas, mantendo, para o grupo, um vínculo do presente com seu passado”.

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O parecer transcreve, como exemplo dessa relação dos paraenses com a santa, a letra da música Nazaré (zouk da Naza) de autoria de Almir Gabriel. Parecer conclusivo do DPI/IPHAN Para maiores informações sobre as discussões estabelecidas pelo Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial – GTPI para a escolha da expressão que melhor refletisse esse conjunto de bens culturais também denominados como “intangíveis”, “cultura popular e tradicional”, “patrimônio oral” etc. ver SANT’ANNA (2003, introdução, p. 16-18).

Elaborado pelo Departamento de Patrimônio Imaterial com a participação da 2ª SR/IPHAN, o projeto do inventário do Círio, estruturado a partir da metodologia do INRC, já apontava a necessidade de equipe multidisciplinar para realizar as pesquisas. Sendo assim, foi constituída equipe formada por um consultor na área de antropologia20, que ajudou a identificar os demais integrantes; supervisor para os trabalhos de campo; quatro pesquisadores de nível superior nas áreas de história, ciências sociais, filosofia e afins e duas assistentes21. O inventário foi coordenado pela 2ª SR/IPHAN22 e supervisionado 23 pelo DPI . A etapa de finalização do trabalho, que se deu nos anos de 2003 e 24 2004, foi executada diretamente pela 2ª SR/IPHAN , mas contou com a 25 participação de três dos pesquisadores (envolveu atividades como revisão das fichas, complementação dos dados, elaboração de mapas e croquis, codificação do material bibliográfico e audiovisual). O total de recursos aplicados na instrução do processo de registro foi da ordem de R$ 242.070,90 (duzentos e quarenta e dois mil, setenta reais e noventa centavos), provenientes dos recursos orçamentários do IPHAN e do Fundo Nacional de Cultura – FNC do MinC. Os trabalhos realizados envolveram a produção de vídeo, pesquisa iconográfica e bibliográfica, inventário e elaboração do dossiê e estenderam-se de dezembro de 2000 até setembro de 2004, quando o Círio foi inscrito no Livro das Celebrações26. No desenrolar da pesquisa, devido a seu caráter experimental, pois a metodologia utilizada foi aplicada de forma inaugural em bem da categoria celebrações, foram enfrentados problemas diversos, tanto de ordem conceitual 19 20 21

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IPHAN (2000, p. 7-8) Dr. Raymundo Heraldo Maués Supervisor- Msc. Josimar Azevedo; pesquisadores - Elielson Rodrigues da Silva, Gilmar Matta da Silva, Márcio Couto Henrique, Paulo Roberto Rodrigues Benjamin; assistentes de pesquisa - Altina Marques de Almeida e Joilma Alves de Castro. Maria Dorotéa de Lima Msc.Ana Cláudia de Lima e Alves e Dra. Ana Gita de Oliveira. Maria Dorotéa de Lima, Carmem Sílvia Viana Trindade, Isís Jesus Ribeiro, Nívia de Morais Brito Márcio Couto Henrique, Gilmar Matta da Silva, Paulo Roberto Rodrigues Benjamin O Decreto 3551, de 4 de agosto de 2000, institui o registro de bens culturais de natureza imaterial e cria 4 livros para inscrição dos bens: Livro de Registro dos Saberes, Livro dos Registros das Celebrações, Livro do Registro das Formas de Expressão e Livro do Registro dos Lugares. O INRC propõe trabalhar com essas categorias de bens e acrescenta Edificações, pela possibilidade de identificar bens passíveis de tombamento por sua relevância para os grupos sociais pesquisados.

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O conceito de referências culturais, muito utilizado pela metodologia do INRC, pode ser traduzido como fatos, atividades e objetos que mobilizam a gente mais próxima e que reaproximam os que estão longe, para que se reviva o sentimento de participar e de pertencer a um grupo, de possuir um lugar. Em suma, referências são objetos, práticas e lugares apropriados pela cultura na construção de sentidos de identidade.19



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como prática, suscitando dúvidas e discussões sempre direcionadas para a melhor compreensão e aperfeiçoamento dos procedimentos técnicos. A execução do inventário divide-se em três etapas básicas: levantamento preliminar, aplicação dos questionários e preenchimento das fichas de identificação. Cada uma destas etapas, relacionada ao inventário do Círio, será comentada em seguida, destacando-se sua relevância para o resultado do trabalho e, também, alguns dos respectivos problemas. Maiores informações sobre a metodologia do INRC podem ser obtidas no Manual de Aplicação do Inventário Nacional de Referências Culturais (IPHAN, 2000). A primeira etapa da pesquisa, correspondente ao Levantamento Preliminar, é fundamental ao bom desempenho da seqüência do trabalho. É quando se define e delimita o sítio físico e as localidades a serem pesquisadas. Corresponde, ainda, à pesquisa sobre o sítio e ao preenchimento de quatro anexos: bibliografia, registros audiovisuais, contatos e bens culturais. Quanto mais completos os resultados dessa fase, maiores as possibilidades de execução satisfatória das etapas subseqüentes, pois os dados permitem traçar um bom perfil da situação que será investigada. Delimitação do sítio físico – dadas à dimensão e complexidade do Círio de N.S. de Nazaré, este foi o primeiro problema a ser encarado pela equipe. Some-se a isto o fato de que a metodologia adotada foi concebida para ser aplicada a partir de um determinado território, mas tratando-se de solicitação de registro de um bem, o Círio de Nazaré, esta premissa foi modificada e o território passou a ser definido a partir da manifestação investigada. Como atualmente o Círio se reproduz em praticamente todos os municípios do Pará, no decorrer do ano, inclusive, como já mencionamos anteriormente, essas comemorações já extrapolam as fronteiras do estado, seria inviável trabalhar com uma dimensão territorial de tal ordem de grandeza, o que forçou a restrição da pesquisa apenas ao Círio de Belém. Para delimitação da área do município de Belém a ser tratada como sítio, foram considerados os trajetos de todas as procissões, ficando definida a área de estudo como a porção continental de Belém. Como uma das procissões (Translado para Ananindeua) estende-se até a sede do município vizinho de Ananindeua, este também foi incluído como localidade no entorno. Preenchimento dos anexos – o maior problema nesse item foi a identificação, seleção e classificação dos bens culturais associados à manifestação, que foi objeto de muitas divergências e discussões entre os membros da equipe. É freqüente nos inventários a possibilidade de enquadramento de determinados bens em mais de uma categoria. No caso do Círio, as igrejas, além de serem lugares onde acontecem determinados rituais, são também pontos focais e, às vezes, monumentos tombados, portanto, edificações. Há casos também em que não se consegue enquadrar o bem em nenhuma das categorias, como aconteceu com as

È na segunda etapa do inventário que ocorre a Aplicação dos questionários. Nesta fase são realizadas as entrevistas a partir dos contatos identificados no levantamento preliminar. É importante, para um bom resultado, a experiência do supervisor e dos pesquisadores com entrevistas. Como os questionários apresentam muitas questões relativas à produção do bem, é necessário que o informante participe realmente das atividades, de modo a descrevê-las a partir de sua vivência. No caso do Círio, onde a organização das atividades oficiais é competência exclusiva da Diretoria da Festa, seus membros foram, em muitos dos bens, os principais interlocutores. Este fato, aliado á aplicação inaugural do método, dificultou a apreensão, pelos pesquisadores, dos sentidos e transformações de alguns dos elementos que integram a procissão e a festa, pois, embora os responsáveis pelas comissões organizadoras detivessem o conhecimento sobre o bem, expressaram nos depoimentos poucas coisas acerca dos sentidos que lhes atribuem. Nessas situações a metodologia recomenda que sejam entrevistadas quantas pessoas seja necessário para o preenchimento dos campos correspondentes nas fichas de identificação. As lacunas deixadas nos questionários foram identificadas apenas durante a fase de revisão e complementação das fichas, de modo que para preenchê-las foi necessário retomar as gravações e também outras pesquisas sobre o Círio. Os conhecimentos da equipe sobre o bem também foram importantes na superação do problema, que foi contornado por meio desses recursos. Ainda que sejam apenas sugeridos como roteiros das entrevistas, a utilização dos questionários de identificação é fator fundamental à sistematização 27 28

Barcas e carros dos anjos e de ex-votos, carro de D. Fuas Roupinho e carro do Plácido. Maués e Lima (2005)

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alegorias da procissão principal do Círio, com as imagens de N. S. de Nazaré, com a berlinda e com a corda. Conforme já formulado em outro artigo por Maués e Lima (2005) “Seriam tais bens formas de expressão, modos de fazer, nenhum dos dois ou uma nova categoria? Trata-se de objetos únicos, alguns de valor artístico, outros não, mas todos repletos de significados” 28. Por decisão da coordenação do inventário, as alegorias não foram classificadas como bens, apenas ficaram descritas, sucintamente, na ficha da procissão. Com relação à berlinda, às imagens da santa e à corda, ícones sagrados e consagrados do Círio de Nazaré, decidiu-se por suas inserções como bem, com preenchimento do formulário específico, de modo a registrá-los mais detalhadamente. Com relação à categoria escolhida houve algumas divergências, pois tais bens ficaram classificados como formas de expressão, ainda que alguns deles não se enquadrem exatamente no conceito atribuído pelo inventário a essa categoria (IPHAN, 2000, p. 11), mas no entendimento da coordenação há maior proximidade com ela do que com as outras.



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dos dados, bem como à comparação destes entre estados e regiões. São, porém, muito longos e detalhados, logo, exigem disponibilidade de tempo e boa vontade dos informantes para serem preenchidos. Como pontos positivos dos questionários apontamos, além da possibilidade de sistematização e comparação dos dados, os campos direcionados à descrição minuciosa do processo de produção dos bens. Sem esquecer da facilidade de conexão, através do banco de dados, entre os bens culturais inventariados a partir dos códigos atribuídos a cada ficha. Permite também que sejam formuladas nas fichas de identificação, indicações para tombamentos e registros considerados pertinentes, além de permitir identificar bens ameaçados de desaparecimento com indicação de medidas de salvaguarda que assegurem a continuidade daquelas manifestações ameaçadas. A terceira e última etapa corresponde ao preenchimento das Fichas de identificação, onde são revelados os resultados finais da pesquisa. Aqui se coadunam todas as etapas da investigação. É a partir das informações coletadas em todas as etapas da pesquisa que será descrito o que é o bem: sua história, forma de produção, sentidos e transformações, lugares, objetos, rituais, canções, instrumentos, danças e vestiários associados etc. Tarefa esta que deve ser empreendida pelo supervisor com acompanhamento do consultor e dos técnicos do IPHAN. Os resultados do Inventário do Círio estão disponibilizados nos dois volumes impressos do Relatório do INRC Círio de Nazaré ou no banco de dados do IPHAN. Encontram-se sintetizados, em forma de texto, no Dossiê Círio de Nazaré. Podem ser resumidos nos seguintes números: 784 itens de bibliografia, que incluem publicações, trabalhos acadêmicos e periódicos; 848 registros audiovisuais (incluindo vídeos, gravações sonoras, imagens fotográficas, mapas, caricaturas, anúncios publicitários, cartazes e programas da festa); 45 bens culturais associados às festividades nazarenas, dentre os quais encontram-se 14 celebrações, 5 edificações, 15 formas de expressão, 6 lugares e 5 modos de fazer.

66 O dossiê O papel do dossiê no processo de registro de um bem cultural é sintetizar, na medida do possível, as informações levantadas pelo inventário; reconstituir o processo de produção do bem investigado ao longo do tempo, identificando origem, transformações, atualizações e continuidade histórica e reunir subsídios para as análises técnicas relativas ao mérito do bem quanto ao registro solicitado A solicitação de registro do Círio encaminhada ao IPHAN foi especificamente para a procissão do segundo domingo de outubro, mas o

Durante a elaboração do dossiê a necessidade de ampliação do objeto de registro tornou-se imperiosa ante, a amplitude e complexidade do Círio. Também a amplitude e a dinâmica da manifestação levaram à decisão de circunscrever o objeto de registro. Observou-se que a introdução da procissão fluvial, em 1986, iniciou um processo crescente de agregação de novos rituais de celebração da festa que, desde então, passou a contar, a cada ano, com novas romarias e eventos culturais que não param mais de crescer. Como exemplo dessa dinâmica, podemos citar a peregrinação da imagem pela sede das empresas patrocinadoras e também o Círio dos Ciclistas, ambos introduzidos na programação oficial da festa depois do inventário de 2002. Assim, achou-se por bem estabelecer, na descrição da manifestação, uma distinção entre os bens que acompanham o Círio desde seus primórdios e encontram-se plenamente assimilados pelos devotos daqueles incorporados mais recentemente, tratados no processo como elementos contemporâneos. É pertinente lembrar que a legislação do patrimônio imaterial é voltada, sobretudo, para a identificação, registro e valorização desses bens. Mediante as características desse patrimônio, sua preservação não requer medidas de proteção e conservação semelhantes àquelas aplicadas ao patrimônio material (bens móveis e imóveis) tombado. Além disso, tendo em vista a dinâmica própria de transformação dos bens culturais de natureza imaterial, o decreto nº 3.551/2000 prevê o acompanhamento periódico dos bens registrados para avaliação da permanência do título conferido e para identificação e documentação das transformações e interferências na sua trajetória. Considerando, portanto, que a revisão do processo de registro do Círio será realizada a cada dez anos e, ainda, diante das atribuições do IPHAN perante os bens registrados, ficaram identificados e destacados no registro os elementos estruturantes da festa – aqueles sem os quais o Círio não existiria - das expressões contemporâneas a ela associadas29. Excetuando-se a Igreja e a diretoria da festa, que revelaram insatisfação pelo fato do inventário documentar também as manifestações profanas, principalmente a Festa da Chiquita30, para os paraenses, de modo geral, essa distinção não fez a menor diferença. Todos, inclusive os responsáveis pela organização dos demais bens associados à festividade, sentiram-se contemplados pelo título nacional conferido ao Círio de N. S. de Nazaré, manifestando publicamente, através de faixas ou de discurso, durante a realização dos eventos em 2004, a nova condição de patrimônio cultural brasileiro. 29 30

Forma apresentada na Certidão de Registro do Círio Celebração em que grupos homossexuais homenageiam a santa e aproveitam o momento para promover suas causas

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conhecimento detalhado do bem produzido pelo inventário levou à ampliação e delimitação do objeto inicial.



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Por fim, deixo para reflexão algumas preocupações decorrentes dos problemas enfrentados durante o inventário e registro do Círio, algumas das quais já foram postas por outros inventários e, provavelmente, já estão sendo avaliadas pelo IPHAN no sentido do aperfeiçoamento dos processos de inventário e registro que se encontram em execução pela instituição ou sob a supervisão desta: • Esse extenso trabalho de pesquisa só atingirá plenamente seus objetivos se seus resultados forem revertidos em benefício dos grupos sociais envolvidos e resultarem na preservação e promoção do bem. Para tanto, o conhecimento produzido deve ser difundido e disponibilizado através de exposições, publicações, multimídia etc. • É imprescindível o acompanhamento sistemático, dentro do processo de revisão do registro previsto pela legislação, dos possíveis reflexos deste e do inventário sobre os bens registrados e agraciados com o título de patrimônio cultural brasileiro (preocupação manifestada no Manual de Aplicação do INRC e também pelo Conselho do Patrimônio). • Na execução dos inventários é preciso amadurecer e avançar na questão das autorizações prévias dos informantes para divulgação dos dados levantados nas entrevistas, bem como para utilização das imagens produzidas, resguardando a instituição e, também, tranqüilizando os grupos sociais envolvidos com relação à identificação das fontes e autorias. • Devem ficar bem esclarecidas, através de instrumento específico, as condições de trabalho com os pesquisadores contratados, principalmente com relação à utilização do material produzido pela pesquisa, cuja propriedade será sempre do IPHAN, respeitados os direitos de autoria. • É importante, também, que os resultados da pesquisa sejam sempre apresentados aos grupos sociais envolvidos, não frustrando suas expectativas geradas durante a pesquisa. Em complementação, acrescentamos que não apenas devem ser estimuladas parcerias nos procedimentos de instrução dos processos de registro, mas é também fundamental que o IPHAN promova esses instrumentos, de modo que venham a ser utilizados por outras instituições, potenciais aliadas na preservação e valorização do patrimônio cultural brasileiro, bem como na identificação, registro e promoção dos bens culturais imateriais do vasto território nacional.

BELAS. C. A. 2004. O INRC e a proteção dos bens culturais. Brasília: IPHAN, Mimeo. IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Dossiê Círio de Nazaré: 2ª Superintendência Regional. Belém, 2004. Mimeo. IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 2000. Inventário Nacional de Referências Culturais: manual de aplicação. Brasília: Mimeo. IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Inventário do Círio de Nazaré: 2ª Superintendência Regional. Belém, 2004. Mimeo. 2 v. MAUÉS, H.; LIMA, M.D. Reflexões a propósito do registro do Círio de Nazaré com patrimônio da cultura imaterial. [s.l.:s.n.], 2005. No prelo. SANT’ANNA, Márcia G. Introdução. In: O REGISTRO do patrimônio imaterial. Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília, DF: MinC, IPHAN, FUNARTE, 2003. VIANNA, Letícia C. R. Patrimônio imaterial: legislação e inventários culturais. A experiência do Projeto Celebrações e Saberes da Cultura Popular. In: CELEBRAÇÕES e Saberes da Cultura Popular: Pesquisa, Inventário, Crítica, Perspectivas. Rio de Janeiro: FUNARTE, IPHAN, CNFCP, 2004. (Série Encontros e Estudos, 5).

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REFERÊNCIAS



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Lucia Hussak van Velthem Abrigadas em instituições museais, públicas ou privadas, encontramos uma categoria de acervo, específica, que foi referida em princípios do século XIX como sendo a dos “espécimes etnográficos” e posteriormente como a dos “objetos etnográficos”. Essas coleções, impulsionadas com a descoberta do Novo Mundo, se desenvolveram com a consolidação dos museus na Europa e nas Américas (Degli, Mauzé, 2000). No Brasil, coleções e igualmente um grande número de objetos esparsos, referidos como etnográficos estão invariavelmente associados à instituição 1 museu. Os museus etnográficos e de ciências ou de historia natural estão instalados em São Paulo, Rio de Janeiro, Belém, Recife, Curitiba, Goiânia e os museus missionários, em Campo Grande e Manaus Essas coleções são, sobretudo de procedência indígena, mas alguns museus como o Museu Nacional e Goeldi possuem coleções de origem africana e tão somente o primeiro abriga objetos oriundos da Oceania. A composição dessas coleções é variável, e raramente inserem-se na classificação dual proposta por Damy e Hartmann (1986) em que “coleções sistemáticas” representariam as que cobrem todo ou quase todo o sistema de objetos de uma determinada cultura e as “temáticas” são as que enfatizam o repertório de variações de uma ou mais categorias de uma cultura específica. Conseqüentemente, chegamos a constatação óbvia que uma coleção constitui o resultado de uma coleta, cujos objetivos, entretanto, não são tão óbvios assim. A constituição de uma coleção pressupõe, portanto, uma atividade de coleta e vários desígnios a regem, visto constituir um recolhimento dotado de princípios, mas sem hierarquias sobre o que deve ser coletado. Espera-se que nos museus, os acervos etnográficos representem o resultado de pesquisas de campo tanto da ciência antropológica como de outras ciências. Mas, quando isso ocorre, estas coleções refletem a formação, as idiossincrasias, às mudanças de objetivos, 1

As mais amplas coleções, históricas e modernas, encontram-se depositadas em quatro museus: Museu Nacional/ UFRJ e Museu do Indio/ FUNAI situados no Rio de Janeiro; Museu de Arqueologia e Etnologia/USP em São Paulo e Museu Paraense Emílio Goeldi/MCT em Belém. Uma listagem não exaustiva assinala que coleções de procedência indígena podem ser encontradas no Museu do Estado de Pernambuco, Recife; no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, Maceió; no Museu do Indio/UFUb, Uberlândia; no Museu Regional “Dom Bosco”, Campo Grande; no Museu Antropológico/UFG, Goiânia; na Comissão Demarcadora de Limites/MRE e no Laboratório de Antropologia do CFCH/UFPa em Belém, no Museu de Arqueologia e Etnologia/UFBA, Salvador; no Museu Histórico Nacional/MinC, Rio de Janeiro.

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OBJETO ETNOGRÁFICO, COLEÇÕES E MUSEUS



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as condições da viagem e da estadia e, sobretudo a percepção e abordagem do mundo material por parte dos cientistas coletores. Há os que só percebem os objetos impactantes, de cores fortes e formas complexas como é o caso dos objetos rituais e os que se interessam por uma única categoria artesanal e, neste caso a cerâmica é geralmente privilegiada, em detrimento das demais, ou então pelos artefatos que estão diretamente conectados à pesquisa que é desenvolvida no momento pelo coletor. As coleções dos museus brasileiros originaram-se igualmente de doações de viajantes, de militares, de comerciantes, do clero, de sertanistas, os principais agentes de penetração às áreas indígenas. Nestes casos as coleções patenteiam uma visível manifestação de estruturas ideológicas e suposições que embasaram a reunião dos objetos. Como enfatiza Cannizzo (1998), as coleções etnográficas constituem formas de visualização ideológica e os acervos nacionais estão repletos de exemplos que revelam por sua constituição mesma o caráter dessas coletas e contatos e onde pontificam as coleções missionárias como o mais acabado exemplo de uma desesperada busca de alteração ou mesmo aniquilamento cultural. Paralelamente, nas instituições museais nacionais, as coleções submeteram-se muitas vezes aos modelos museográficos concebidos a partir das teorias antropológicas (GONÇALVES, 1995) e muito menos à critérios museológicos. Tal aspecto ocorreu no Museu Goeldi no final da década de 50, pois o critério de ordenação das coleções se apoiava em um sistema classificatório referido como “Áreas Culturais Indígenas”, desenvolvido pelo antropólogo Eduardo Galvão e apresentado à comunidade acadêmica em 1959, tendo como argumentação principal o fato de que: para a resolução de problemas de ordem comparativa, no estudo de sociedades indígenas, fazia-se necessário classificações culturais em perspectivas mais amplas e mais exatas (GALVÃO, 1979: 193). O que se observa é que, ao serem recolhidos e posteriormente integrados ao acervo de um museu os artefatos indígenas, sofrem como que uma ruptura, um apagamento patrimonial específico. São então inseridos em um arcabouço patrimonial abrangente – patrimônio indígena – como tornam-se patrimônio de uma outra cultura, a nossa. Os artefatos de procedência indígena inserem-se no Patrimônio histórico e artístico nacional e, mais precisamente em um grupo de valor cultural específico que é o “Patrimônio arqueológico, etnográfico e paisagístico”. As coleções etnográfica e arqueológica do MPEG foram inscritas em 1938, junto com outros 235 bens culturais no livro de Tombo do recém criado SPHAN. O Livro do Tombo desse patrimônio específico é referente às “coisas pertencentes às categorias da arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular” ao passo que o Livro do Tombo das Belas-Artes trata das “coisas de arte erudita nacional ou estrangeira” (GIRÃO, 2001).

O objeto etnográfico: estudos e perspectivas A complexidade e a riqueza das informações que estão agregadas aos objetos criados pelo homem requerem dos museus o desenvolvimento de sistemas de documentação igualmente complexos, tanto do ponto de vista técnico como conceitual. Uma análise clássica do objeto etnográfico considera quatro aspectos principais: matéria-prima, técnicas de confecção, aspecto formal e função. As matérias-primas e as técnicas de confecção são o ponto de partida do estudo de um objeto etnográfico porque são esses os meios que o concretizam e assim expressam o modo de vida de determinada sociedade. O conhecimento da matéria-prima de confecção é fundamental, pois a sua escolha pode refletir um conjunto de critérios de ordem simbólica, técnica, ambiental, funcional e estética. Uma outra etapa importante no estudo de um objeto etnográfico é a busca de sua significação através de sua forma e de sua ou suas funções. Para muitos artefatos a forma revela, de modo inequívoco, como é o caso do tipiti, a função geral do objeto, recolocando-o no seu contexto de utilização. Entretanto devemos ter em mente que essa trajetória analítica nem sempre é aplicável a outros tipos de objetos, como as máscaras, formalmente mais complexos ou suscetíveis de exercer várias funções. Esses aspectos muitas vezes, não podem ser apreendidos pelo raciocínio lógico ocidental, os quais não preenchem todas as necessidades de análise que o objeto suscita. Essas necessidades deverão ser, forçosamente preenchidas através da pesquisa de campo e da literatura etnográfica pertinente. . A documentação de coleções etnográficas pressupõe contribuições de várias disciplinas, sobretudo as das ciências humanas e biológicas. A história, evidentemente, é essencial para a compreensão e documentação dessas coleções. Mas, é preciso de início ter-se cautela para que não haja uma hiperhistorização da coleta e do coletor em detrimento da própria história dos produtores. Uma máscara coletada por Karl von den Steinen, em princípios do século XIX anula quase que por completo, e por esse motivo mesmo, a sua procedência cultural Aweti do alto Xingu.

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Assim, foram estabelecidos, pelo próprio Estado, valores que enfatizam uma distinção entre arte erudita/arte ameríndia/popular que se desdobra na dicotomia arte/artesanato, estabelecendo hierarquia de valores na apreciação da produção material indígena, revelando assim quais são os mecanismos de apreensão do Outro e de incorporação institucional de sua produção cultural. As justificativas para esta apreciação, deriva do fato dos artefatos indígenas serem considerados como desprovidos de autoria individual e porque estaria ligado à tradição, a um modo de vida pretérito, aspecto invariavelmente associado às culturas indígenas (BARBOSA, 1995).



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Paralelamente é necessário definir-se que tipo de história e quais de historiadores são capazes de uma mais significativa contribuição a esses estudos. Sobretudo devem ser considerados aqueles que acentuam as interações que ligam os mundos desde os tempos mais recuados. Segundo Gruzinski (2003) seria o caso de se trilhar o caminho das histórias conectadas e as ponderações dos historiadores que sistematicamente acentuam a urgência do estudo dos contatos entre as diferentes culturas. Entretanto, a história não deverá estar sozinha nesta empreitada pois o aporte fornecido pela antropologia e sobretudo pela etnologia é fundamental.Contudo é necessário considerar-se a reviravolta de perspectiva operada nos últimos anos em alguns setores da disciplina antropologica (GRUZINSKI, 2003). Essa renovação é decorrente sobretudo de desafios que consideram o caráter construído das práticas, das crenças, das identidades, da necessidade de mostrar de que forma o processo de dominação colonial marcou, nas sociedades indígenas, os afastamentos, fabricando diferenças, para enfim conceder um lugar central aos contatos entre indivíduos e entre sociedades. As pesquisas etnológicas recentes questionam as identidades fechadas e rígidas, preferindo acentuar a flexibilidade de formas sociais e a plasticidade dos mecanismos de definição identitária que se revelam em diferentes regimes expressivos, uns ligados a oralidade, outros à materialidade. Enfim é necessário considerar-se efetivamente as demandas indígenas, pois está em jogo uma nova modalidade de inserção das sociedades indígenas na nação brasileira a qual se processaria através de mecanismos que garantiriam sua autonomia e especificidade, uma vez que os direitos territoriais não estão mais sozinhos no horizonte das lutas indígenas atuais (SANTILLI, 2000). Neste caso, trata-se de garantir aos índios o pleno direito à diferença, sobretudo nas áreas da saúde, educação e de projetos de etno desenvolvimento e, ainda, naquilo que envolve a dinâmica da produção cultural e do patrimônio. Esses direitos dependem em grande parte de serem reconhecidos como descendentes da população autóctone pelo Estado e a sociedade brasileira, assumindo plenamente sua identidade étnica. Em seu conjunto, constituem “mecanismos compensatórios”, a saber a adoção de providências que procuram compensar os índios ou os povos indígenas em decorrência da desigualdade com que, desde a chegada dos europeus, foram estabelecidas as relações com os não-índios e que se materializaram na expropriação territorial, no extermínio de inúmeros povos e na perda de uma significativa parcela de seus conhecimentos e do seu patrimônio cultural (OLIVEIRA, 1996, 1999; SANTILLI, 2000). Os museus etnográficos possuem um importante papel a desempenhar nesta política ampliando e fortalecendo o diálogo inter-cultural; não se limitando à preservação material, mas se abrindo para a consideração das dimensões socio-políticas dessa preservação como referido por Gallois, (1989). As coleções,

A documentação de coleções etnográficas chegou a uma encruzilhada em que não lhe é mais facultado repousar exclusivamente nos métodos e na metodologia até então adotada. Esta documentação deve antes visar e se embasar nos propósitos dos produtores das coleções que estão em jogo, fazendo-o através de uma abordagem integrada, cruzando em um quadro coerente as dimensões históricas, políticas, estéticas e simbólicas. Devemos ter em mente que os artefatos possuem, uma presença complexa e significativa nos museus e que a mesma está sujeita a uma interpretação e uma utilização múltipla e igualmente complexa (SMITH, 1989). O diferencial que se deseja introduzir no estudo de coleções é derivado da percepção que os objetos etnográficos possuem uma relação de continuidade com as culturas de origem, Consequentemente, é necessário estabelecer-se uma redescoberta dos objetos etnográficos ou melhor, devemos descobrir outra coisa que não seja o seu caráter de objeto científico, documental e, por esta via, que representa de alguma forma uma ruptura, é possível conferir-lhes um outro status, o que abre a porta para um novo olhar sobre esses objetos. A reflexão que se desenvolverá à partir desses pressupostos, investirá antes em uma tomada de consciência da “presença do outro” nas instituições museais, do que “tornar o outro presente” – nas mesmas instituições - através de seus bens materiais. A documentação de coleções e objetos etnográficos, tal como definido, permite que um museu se torne o lugar onde as sociedades indígenas, assim como as caboclas e negras possam ligar-se a estas significações, a saber com a sua própria história e de seus antepassados, com sua capacidade de produção artística e tecnológica, com tudo aquilo que representa as raízes e a cultura destas sociedades. O papel político dos acervos se encontraria justamente nesta possibilidade de representar a sociedade através dos sentidos que impregnam suas coleções e, portanto, quanto mais forte é a significação atribuída ao patrimônio dos objetos conservados, tanto maior é a capacidade de identificação e de atuação como elemento de coesão social e cultural (GALLOIS, 1991; PINNA, 1999). Ademais, ao se considerar o papel social dos museus, que se revela quando os seus conteúdos e suas atividades correspondem às aspirações da sociedade onde está inserido e igualmente dos produtores de seus acervos no caso dos museus etnográficos, verifica-se que o mesmo se reproduz somente se o museu possui a capacidade de atribuir uma significação aos objetos que fazem parte de suas coleções, a qual decorre diretamente dos estudos e da documentação dos mesmos.

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revestidas de um novo papel, contribuiriam efetivamente para as demandas indígenas nesta área, as quais incluem a valorização e a preservação do patrimônio cultural, permitindo reiterar, frente à sociedade brasileira, a existência dessas sociedades, reservando-lhes um lugar no futuro do Brasil.



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Essa comunicação procurou levantar algumas questões acerca dos objetos etnográficos, visando chamar a atenção para a sua característica de patrimônio dos Outros, os índios. Alguns passos já foram feitos nesta direção, mas deve-se avançar mais para buscar o estabelecimento de elos de ligação com os produtores através de parcerias as quais precisam gerar mecanismos que considerem entre outros, a oralidade que caracteriza essas sociedades, que se voltem para o compartilhamento curatorial dessas coleções, compreendendo, inclusive no seu uso político. A partir desse movimento, o museu etnográfico se tornará então um local favorável a uma renovação de perspectivas permitindo superar barreiras e seqüelas de um passado positivista que ainda o ronda, passado este que é compartilhado com outros museus, como os históricos (MENEZES, 1999).

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Teodora Zamudio

Introduccion Si bien el término “patrimonio” en su acepción actual se refiere al conjunto de bienes pertenecientes a alguna persona (física o jurídica), independientemente de su origen, su raíz es latina y originalmente se refería al conjunto de bienes que alguien había adquirido por herencia familiar; eran los bienes que provenían del pater (padre). La terminología en inglés para bienes patrimoniales emplea, hasta el día de hoy, el término “heritage”, que hace referencia directa al concepto de preservar lo que se ha heredado de generaciones anteriores. El patrimonio cultural de un pueblo comprende todos aquellos bienes que son expresiones y testimonios de la creación humana propios de ese pueblo. Es el conjunto de obras, arte, sitios y restos arqueológicos, colecciones (zoológicas, botánicas o geológicas), libros, manuscritos, documentos, música, fotografías, producción cinematográfica y objetos culturales en general que dan cuenta de la manera de ser y hacer de un pueblo, de su conocimiento tradicional, de su cultivo humano y social. Dicho patrimonio es todo aquello que le confiere una identidad determinada a un pueblo; y como propiedad lo es: comunitaria. Estos bienes son preservados porque tiene un significado especial, ya sea estético, documental, histórico, educativo o científico. Los museos, las bibliotecas y los archivos son quienes conservan el patrimonio mueble. Frecuentemente se distingue entre el valor económico que tienen los bienes culturales de su valor social o cultural. Si bien, en muchos casos, el valor económico de un objeto patrimonial es un antecedente relevante para determinar la importancia de su preservación, el principal motivo para conservar bienes culturales radica en el valor social o cultural que estos bienes tienen para un individuo, comunidad, nación y, en algunos casos, para la humanidad. A partir del reconocimiento de la existencia de una brecha significativa entre las nociones de valor cultural y de valor económico del patrimonio cultural –debido en buena parte a la inexistencia de precios de mercado de gran parte del patrimonio cultural– lo cual no significa que no tenga ese valor (el económico) y que no pueda ser disponible y debidamente retribuido.

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Patrimonio Indígena. Derrotero Hacia Su Regulación Legal en la Argentina



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EL PATRIMONIO INDÍGENA EN LA ARGENTINA. El cumplimiento (operativo y no solo programático) del compromiso asumido por la Constitución de la Nación Argentina en el artículo 75, inciso 17 frente a los pueblos o naciones indígenas1, no puede ser ya soslayado aunque haya sido demorado por más de diez años. La política y la estrategia de la propuesta que se ha presentado2 parte de la convicción de que el fortalecimiento de la democracia y el desarrollo económico sostenible depende de la cooperación de todas las culturas que se desenvuelven dentro de la estructura del Estado. Por ello, la reglamentación que se ha propugnado se funda no sólo en la preexistencia de los pueblos indígenas, sino en su derecho a vivir y desenvolverse como tales, de aprovechar y prosperar sobre la base de sus propios recursos. La Argentina promulgó otras normas que alcanzan a la materia y a los sujetos de derecho referidos3. Nació así un nuevo y novedoso sistema de convivencia que necesita ajustes del ordenamiento jurídico para ser verdaderamente efectivo; en esa empresa los derechos de propiedad (patrimonio) son un centro focal determinante. Ello es así porque la base de la organización occidental ha sido la propiedad que, en este nuevo milenio, tiene como eje relevante los conocimientos, la información, las ideas. Tal y como ocurrió en el pasado, los Estados estimulan su desarrollo económico con la protección de los bienes que lo posibilitan, no es extraño entonces que esos nuevos aires normativos hallen en el sistema de la propiedad -y con mayor especificidad en la propiedad industrial- un escenario básico y fundamental de expresión. Los pueblos indígenas son ricos en conocimientos muy valiosos no sólo por el testimonio histórico y cultural que nos traen sino por su trascendencia comercial. El conocimiento tradicional como el saber culturalmente compartido y común a todos los miembros que pertenecen a un mismo pueblo, y que permite la aplicación de los recursos del entorno natural de modo directo, compuesto, combinado, derivado o refinado, para la satisfacción de necesidades humanas, 1

2

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Asumido también en los textos constitucionales provinciales: Buenos Aires, artículo 36 inciso 9; Chaco, artículo 37; Chubut, artículos 34 y 95; Formosa, artículo 79; Jujuy, artículo 50; La Pampa, artículo 6, 2° párrafo; Neuquen, artículo 23 inciso d); Río Negro, artículo 42 y Salta, artículo 5 Anteproyectos: Ley marco de la identidad de los pueblos indígenas (presentado ante el Ministerio de Justicia y Derechos Humanos; mayo 2001) y Decreto reglamentario del artículo 8 inciso j) de la ley 24375 (presentado ante el Ministerio de Economía, marzo 2003) En octubre de 1994, ratificó –por ley 24.375- el Convenio de Diversidad biológica (conocido como Convenio de Río de Janeiro ‘92); en diciembre de ese mismo año hizo lo propio con el Acta final que incorpora la Ronda Uruguay de Negociaciones Comerciales Multilaterales -Declaraciones y entendimientos ministeriales y el Acuerdo de Marrakech (A.D.P.I.C.)-; más tarde –en julio de 2000- hizo el correspondiente depósito del Convenio 169 de la Organización Internacional del Trabajo que había ratificado por ley 24.071.

OBJETO: CONOCIMIENTOS TRADICIONALES COMO BIENES INTANGIBLES Muchos son los ejemplos con los que ilustran la categorización que la propuesta otorga a estos conocimientos: la belleza que agrega el diseño de una guarda a una tapicería, vestido o porcelana; el efecto que sobre nuestro ánimo tiene una melodía milenaria; la salud que podemos recuperar o conservar con la ingesta de una tisana. Los pueblos conocen desde tiempo inmemorial el poder de los elementos naturales, no sólo los que se desarrollan en su entorno y que, depurados, vienen usando para facilitar su modo de vida; ese conocimiento es un modo de “leer” la naturaleza. El conocimiento tradicional no es sólo pasado remoto, es aptitud viva y actual reeditada en cada generación. Entre muchas otras cosas, ese saber permite individualizar rápidamente las sustancias que luego -sintetizadas químicamente- pueden ser empleadas por todas las sociedades del planeta. Sin desmerecer la inversión y desarrollo empresarial tenemos la sensación clara de la importancia del aporte indígena, de la necesidad de protección jurídica de la propiedad de ese aporte y de la consecuente y justa retribución que merecen. Episodios que involucran estos saberes son hoy innumerables pues las modernas biotecnologías posibilitan a los científicos occidentales estar en posición de comprender y aprovechar esos conocimientos tradicionales para una distribución más amplia. De lo brevemente reseñado se desprende el fundamento de la incorporación del conocimiento tradicional al elenco de categorías de los sistemas de propiedad, como elemento de pleno derecho, pero obviamente con características propias. Sabemos que tales sistemas fueron construyendo clases diferenciadas adaptadas a cada bien inmaterial (tierras, crédito, marcas, inventos, diseños, obras musicales, creaciones vegetales, etc.), cada una de esas categorías tiene sus requisitos, alcances y formalidades típicas dictadas por sus caracteres manifiestos, lo propio ha de ser edificado para los conocimientos tradicionales. Estos

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animales, vegetales y / o ambientales, tanto de orden material como espiritual, es un ingrediente importante en los procesos económicos, muchas veces insustituible y por eso ha de ser retribuido con justicia como el resultado de la maduración de una nueva posición teórica y práctica respecto de la importancia y valor de la diversidad cultural para el desarrollo de toda la sociedad; de una participación que necesita de un claro y expreso pronunciamiento legal sobre la identidad de los pueblos indígenas y de su organización interna; de su patrimonio y de la disposición de él de modo seguro, cierto y vinculante.



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conocimientos no pueden ser desguasados para hacerlos encajar en las clasificaciones existentes que, por otra parte, no son más que indicadores; ha de hacerse el esfuerzo por no borrar (una vez más) la diversidad, antes bien comprenderla y respetarla, darle su lugar distinto y propio. Es justo y es posible; es valioso y es enriquecedor.

REGISTRO El registro de conocimientos tradicionales –propuesto para la Argentina y abierto a todos los pueblos tradicionales de la Tierra- garantiza a los interesados la presunción de buena fe sobre el contenido de las inscripciones, en aras de la seguridad jurídica de quienes pudieran tener un interés legítimo sobre la propiedad y gestión de los recursos involucrados. La autoridad de aplicación será responsable del registro que constituirá jurídicamente la propiedad sobre los conocimientos tradicionales y donde se volcarán las más importantes contingencias referidas a su gestión y disposición. Esto permitirá, más allá de la publicidad y oponibilidad de los contenidos inscriptos, la posibilidad de mantener actualizada la información económica referida a los intereses en juego, con el mayor detalle para su eficaz protección. Justamente, ese objetivo ha de concretarse por expreso mandato de la Constitución de la Nación Argentina. Ha de serlo no sólo porque es una reivindicación histórica, sino por la específica importancia económica que ese conocimiento tradicional tiene para el progreso de la técnica y de la ciencia en general dada su fuerza inspiradora de adelantos y su aplicación demostrativa de nuevos rumbos para la investigación. La inscripción es pues de interés no sólo de sus creadores sino de la sociedad y por ello se propone que la misma esté exenta de aranceles, cuando la inscripción la haga un pueblo indígena a su nombre (dejando fuera de tal exención a miembros individuales o colectivos). Tiene dicho la doctrina más prominente que el constituyente argentino, en la reforma de 1994, ha contemplado explícitamente en el art. 75, inc.17 a los pueblos indígenas estableciendo mandatos para el legislador ordinario (Del Dictamen del Dr. Esteban Urresti). La especial consideración que ha de tener con respecto a lo pueblos indígenas surge de la propia Constitución como una forma de integrarlos a la comunidad, por lo cual, el trato que se les brinde tiene sustento constitucional, siendo el tributo una de las tantas herramientas al alcance del legislador para la consecución de los objetivos de nuestra ley fundamental. La igualdad en materia tributaria como igualdad relativa, lleva implícita la facultad del legislador de crear categorías de contribuyentes. En este sentido, cabe

Dicho lo cual proponemos la exención impositiva para la inscripción del conocimiento tradicional en el registro específico a crearse. Pero ocurrida la negociación, sí se impone -al licenciatario o cesionario interesado en la comercialización e industrialización extensiva- el pago de la inscripción del contrato de transferencia y el de las anualidades que pudieren corresponder para mantener el derecho de exclusiva concedido o licenciado por el pueblo titular de registro.

TITULARIDAD: PUEBLOS INDÍGENAS Sin perjuicio de que la norma constitucional introduce -tal como lo afirma el doctor Germán Bidart Campos- el reconocimiento directo y automático de la preexistencia étnica y cultural de los pueblos aborígenes argentinos; o sea que es operativa, con el sentido de que el congreso no podría negar ese reconocimiento. (Se trata de lo que en doctrina constitucional se denomina el contenido esencial que, como mínimo, debe darse por aplicable siempre, aun a falta de desarrollo legislativo. (Del Dictamen del Dr. Germán Bidart Campos), el alcance de lo que importa ese acogimiento no puede dejar de ser legislado so pena de quedar en mera frase, sin contenido, sin cabalidad jurídica o. lo que es peor aún, sujeta a interpretaciones y aplicaciones diversas y contradictorias. Hasta hoy la adopción de figuras civiles (bajo las cuales se constituyen las “comunidades”) no ha logrado el propósito de acomodar las formas asociativas a la idiosincrasia de las culturas aborígenes. En este sentido, considero prioritario que, para su debido respeto tal como lo exige la constitución, se sustituyan y/o supriman cuantas inscripciones se hayan efectuado bajo la máscara de estructuras asociacionales ajenas a la misma tradición y cultura indígenas, debiendo simplificarse las exigencias y formalidades que les son incompatibles (Del Dictamen del Dr. Germán Bidart Campos). Por ello han de adoptarse las denominaciones que representen más fielmente la realidad de estos grupos. Alcanzando incluso en la medida de lo posible, [...] a las comunidades de cuya existencia, aunque no estuvieran inscriptas o registradas, se tuviera noticia fidedigna. (Del Dictamen del Dr. Germán Bidart Campos) El término “comunidad” –usado hasta el presente- es ambiguo. Durante décadas los investigadores no han podido ponerse de acuerdo sobre lo que es una comunidad. Han confundido (y fundido) campos semánticos inconciliables en su definición, haciendo de la “comunidad” un concepto inoperante. Según el contexto, la “comunidad” se refiere a un territorio amplio que incluye “comunidades” más pequeñas, a veces a una sola hacienda, o un grupo de ellas, y son indistintamente aplicables a realidades como la comunidad, el territorio, el grupo familiar o de parentesco ampliado, de

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analizar la razonabilidad selectiva, para juzgar si las distinciones, clasificaciones o categorías obedecen a motivaciones sustantivas o si, por el contrario, establecen distinciones con el fin de hostilizar o favorecer arbitrariamente a determinadas personas o clases. (Del Dictamen del Dr. Esteban Urresti)



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amigos, de involucrados actuales o potenciales. Todas ellas teniendo estatuto legal y funciones superpuestas entre sí, frente al Estado. Los vocablos tales como el “ayllu” aymara, el “lof” mapuche, el “mir” ruso o el “buth” nuer, son recursos cognitivos que en el discurso aborigen admiten con gran flexibilidad la acumulación de campos semánticos, sin mayores incomodidades por las incoherencias teóricas. En tanto “placas tectónicas” de lo social, [su análisis ha de pasar por] la identificación de los criterios específicos que gobiernan su composición y la evolución de su desenvolvimiento político. Los investigadores (y los gobiernos) han utilizado la noción de comunidad irresponsablemente, con la vaguedad del lenguaje vulgar, en lugar de definirla de forma rigorosa con un enfoque emergente del análisis sociológico, económico y político. Se ha intentado obviar el sentido que tiene para los propios protagonistas, que es el sentimiento de pertenencia y de identidad (cultural y colectiva) a la vez que un arraigamiento jurídico a la tierra (propiedad). (Del Dictamen de la Dra. Catherine Lussier) El colectivo se manifiesta como el resultado o signo de un “ethos” de intercambio positivo, una predisposición a la solidaridad, a la reciprocidad y a la cooperación (Del Dictamen de la Dra. Catherine Lussier) una forma de sociabilidad espontánea cuya organización se desarrolla en lo interno y que infiere en las nociones de pueblo y de nación. Por esta razón se prevé que los pueblos indígenas utilicen esta denominación jurídica4 e incluyan en su explicitación legal ese aspecto organizativo íntimo que también conservan y a cuyo rescate se dirigen precisamente las exigencias impuestas en el artículo 2° del proyecto de reglamentación. Ese aspecto estructural de los primeros pueblos o pueblos preexistentes es hoy fundamental para garantizar su auténtica y definitiva incorporación al sistema jurídico global y rebasar la división entre lo urbano y lo rural. Así, esta personificación les permitirá inscribir los bienes intangibles referidos en el proyecto que se acompaña y establecer a su respecto las relaciones económicas que posibiliten y faciliten su desarrollo -y su control del mismodentro de los esquemas legales del Estado, integrándolos a través de una dinámica respetuosa y vigorizante de las estructuras jurídico-políticas. A pesar de que en los últimos años se han dado pasos reivindicatorios es necesario que cada pueblo sea recuperado a partir de una identidad cierta, real, concreta. La historia muestra que estos pueblos poseen una gran capacidad para vivir bajo condiciones transformadas, sin que se produzca una pérdida de su identidad y que se desenvuelven de una manera mucho más dinámica de lo que se cree habitualmente. 4

Como un antecedente de sana y respetuosa convivencia, se destaca la legislación canadiense (la First Nations Act) en la que el término “first nations” alude a los primeros pueblos y civilizaciones del continente con relación a los que llegaron de una manera más tardía, desplazándolos. Se exterioriza así una comprensión socio-política que se corresponde con el presente estadio de la civilización, la ciencia política y del desarrollo de los derechos humanos.

Esas bases culturales se ha revelado como guías insoslayables hacia un “Dorado” aún más rico y valioso que todos los tesoros conocidos: la biodiversidad. Un recurso huidizo y esquivo a las definiciones teóricas: oculto, por evidente; obvio, sólo a los ojos de quienes comprende su idioma no lingüístico. Esa guía cultural cuyo valor ha sido comprendido por las sociedades occidentales no es la mera erudición o información, sino el modo fundamental de relacionarse -pensar, vivenciar, actuar- con la realidad total, que tiene un determinado grupo de personas o pueblo, sujeta a la evolución histórica. La continua confrontación -sobre todo a través de la imposición de estructuras jurídico-socio-económicas ajenas- ha destruido en gran parte las formas de vida tradicionales, con ciertos grados de diferencia. Es este proceso destructivo es el que se intenta revertir buscando una solución intercultural para que a la vez de operarse la recuperación de esos valores culturales de significación económica incontrastable, se construyan espacios válidos de negociación de los bienes comprendidos. La sazón social de nuestra República no admite eufemismos o burlas dolorosas. Se desea y se busca la más alta jerarquía para los derechos a la identidad, a la propiedad, a la libertad de determinación contractual.

DISPOSICIÓN DE LOS RECURSOS. CONSENTIMIENTO INFORMADO PREVIO. DISTRIBUCIÓN DE BENEFICIOS. Al contrario de lo que ocurre en las más complejas sociedades de clases, en las cuales las relaciones sociales están determinadas por la posición del individuo en el proceso de producción, las relaciones entre los miembros de las sociedades indígenas se caracterizan por el parentesco y las obligaciones recíprocas que dimanan de este parentesco. La distribución de los bienes en los pueblos indígenas se diferencia según el grado de parentesco, la edad, el sexo, la necesidad y la contribución productiva. Por lo tanto, para las relaciones sociales, la distribución de bienes ya obtenidos posee una importancia mucho mayor que la apropiación por sí misma. Esta forma de distribución impide que se produzca una acumulación de bienes. Y es aquí donde radica otro punto fundamental para la comprensión de todo un sistema de solidaridad y reciprocidad tan distinto al de otras sociedades,

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También es cierto que la historia registra hechos que tocaron, en mayor o menor medida, las bases culturales como la tierra, la naturaleza, la religión o la lengua. Sin embargo, sin subestimar los peligros de destrucción que amenazan la supervivencia de los pueblos, lo fundamental es que existe la confianza en la capacidad de sus miembros de retener su cosmovisión aún bajo las condiciones transformadas inherentes a una sociedad impregnada de colonialismos.



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que no constituyen una virtud en el sentido occidental sino una natural integración al pueblo. El prestigio de un sujeto indígena -dentro de su grupo- no se mide por lo que él tiene, sino que depende de lo que él da. Un buen cazador resulta admirado y apreciado, por supuesto, por los éxitos de sus cacerías. Sin embargo, no sólo el conocimiento de los secretos de la caza es lo que le da prestigio, sino el hecho de que gracias a sus éxitos como cazador puede darles de comer a los demás miembros del grupo. Si este cazador se quedara con todo el producto de sus cacerías, sin compartirlo, sería socialmente evitado por los demás miembros del grupo. Este ejemplo quizás ancestral es fácilmente asimilable a situaciones actuales que poco o nada varían de la descripta. Las cualidades de líder se convierten en relevantes sólo en la relación del grupo hacia afuera. Los “grandes” líderes de los pueblos fueron siempre líderes guerreros o espirituales. Esto significa que su autoridad se determinó atendiendo a su capacidad para mantener a salvo a su grupo frente a amenazas (o necesidades) externas, situaciones que creaban inestabilidad en el seno del grupo. Con mayor o menor arraigo, esas instituciones existen hoy, pues la negociación intercultural no ha concluido, más aún se reaviva bajo los nuevos planteos descriptos. Por ello esas estructuras son fundamentales y deben ser integradas a los esquemas jurídicos de disposición de los bienes en comercio y comprendidas por aquellos que pretendan concretar una negociación sobre tales bienes con sus titulares, alcanzándose -en el celoso respeto por la información que debe ser puesta a disposición en forma clara y comprensible- una herramienta de control para limitar los contrastes económicas y culturales desequilibrantes. Los derechos reconocidos –de toda índole, pero más aún en los patrimoniales- lo han sido en razón de la pertenencia a un pueblo -preexistente al Estado argentino- en el sentido que viene dándosele a estos términos en estas líneas. Su gestión y control son cuestiones que han de ser decididas por el pueblo a través de institutos propios explícitos que, a la vez que otorgan seguridad jurídica a quien contrate sobre los recursos valiosos de natural e intrínseca propiedad del pueblo, no rompen la armonía y la seguridad jurídica de quienes poseen el valioso bien. Por ello. la gestión de esos derechos y la disposición de los bienes comunes, plantea no sólo la necesidad de identificar al legitimado para ello sino también al que lo está para recibir el pago o contraprestación, en beneficio del conjunto. Y si bien esta decisión corresponde al sujeto colectivo: pueblo -dentro del pueblo- su determinación legal permitirá que la ley proteja los intereses de todos los ciudadanos (también los de identidad no indígena), que pueden ser burlados por quienes han recibido o explotan sus bienes sin la participación equitativa de todos los miembros y el control de las instituciones propias, bajo el amparo de la ausencia de normas claras y explícitas.

ANTEPROYECTO DE LEY DE REGISTRO DE CONOCIMIENTOS TRADICIONALES INDÍGENAS DE LOS CONOCIMIENTOS TRADICIONALES INDÍGENAS Objeto Todo Pueblo o Nación aborigen puede registrar como conocimiento tradicional aborigen: símbolos, emblemas, alegorías, signos o diseños gráficos, las formas arquitectónicas; los procesos y métodos para producir expresiones tangibles del folclore (por ejemplo, instrumentos musicales, canciones entonadas con ocasión de los nacimientos, defunciones, partidas de caza y pesca, etcétera); el alfabeto propio; los procesos ceremoniales y los juegos; las medicinas, las prácticas médicas, la asistencia sanitaria y los métodos de curación tradicionales; las recetas y los procesos culinarios; los proverbios, los mitos y las gestas épicas; prácticas culturales y tecnológicas tradicionales y los productos logrados por su aplicación; y todo otro saber del origen señalado con actual o posible aplicación comercial o industrial. No se consideran conocimientos tradicionales y no son registrables a) los nombres, palabras y signos que constituyan la designación necesaria o habitual del producto o servicio a distinguir, o que sean meramente descriptivos de su naturaleza, función, cualidades u otras características; b) los nombres; palabras, signos y frases que hayan surgido del uso generalizado por la convivencia con otros Pueblos o Naciones o Comunidades antes de su solicitud de registro; No pueden ser registrados a) los conocimientos o tecnologías anteriormente registrados por otro Pueblo o Nación aborigen, en estos casos se deberá someter la inscripción al procedimiento señalado en esta ley; b) las denominaciones de origen nacionales o extranjeras. Se entiende por denominación de origen el nombre de un país, de una región, de un lugar o área geográfica determinados que sirve para designar un producto originario de ellos, y cuyas cualidades y características se deben exclusivamente al medio geográfico.

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Un orden jurídico maduro es social y, por ende, eficiente para todos los alcanzados por sus normas. No es independiente de la equidad y de la economía, ni de los compromisos asumidos comunitariamente, tampoco han de estar ausente de sus criterios la diversidad humana y cultural que cohabita en cada contexto espiritual, geográfico y temporal al que alcanza con sus reglas.



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c) las letras, palabras, nombres, distintivos, símbolos, que usen o deban usar la Nación, las provincias, las municipalidades. Titularidad Para ser titular de la propiedad sobre los conocimientos tradicionales se requiere estar registrado como Pueblo o Nación Aborigen de la República Argentina, de acuerdo con la regulación pertinente. Duración El término de duración de la inscripción en este Registro no tiene caducidad y su vigencia se mantiene indefinidamente mientras esté vigente la inscripción en el Registro de Pueblos o Naciones Aborígenes de la República Argentina. Licencia La licencia de los conocimientos tradicionales aborígenes registrados es válida respecto de terceros, una vez inscripta en la Dirección Nacional de Conocimientos Tradicionales Aborígenes. Registro conjunto Un conocimiento tradicional aborigen puede ser registrado conjuntamente por dos (2) o más Pueblos o Naciones aborígenes. Los titulares deben actuar en forma conjunta para licenciar; cualquiera de ellos podrá iniciar las acciones previstas en esta ley en su defensa frente a terceros.

Formalidades y trámite de registro Solicitud El Pueblo o Nación Aborigen que desee obtener la inscripción de sus conocimientos tradicionales en el Registro pertinente debe presentar una solicitud por cada uno de ellos en la que se incluya su nombre, su domicilio legal, la indicación del uso que va a distinguir el conocimiento de acuerdo con su aplicación o propiedades o efectos. También se incluirá la descripción del conocimiento o proceso que podrá ser entregado en sobre cerrado o como mensaje de datos encriptado, según la reglamentación de esta ley. Domicilio El domicilio a que se refiere el artículo anterior es válido para todas las notificaciones con relación al trámite del registro, establece la jurisdicción y la competencia judicial y para notificar las demandas judiciales por nulidad, reivindicación o concurrencia.

Presentada la solicitud de registro, la autoridad de aplicación si encontrare cumplidas las formalidades legales, efectuará su publicación por un (1) día en el boletín de registro pertinente. Oposiciones Toda persona con interés legítimo puede oponerse a la inscripción en los registros que esta ley crea. Las oposiciones deben efectuarse ante la autoridad de aplicación dentro de los treinta (30) días corridos contados desde la publicación de la solicitud de inscripción. Las oposiciones deben deducirse por escrito, con indicación del nombre y domicilio real del oponente y los fundamentos de la oposición, los que no podrán ser ampliados en sede judicial. En dicho escrito debe constituirse domicilio especial, que será válido para todas las notificaciones. La autoridad de aplicación notificará al solicitante las oposiciones deducidas y las observaciones que correspondan. Conciliación En la misma notificación al solicitante, la autoridad fijará la fecha y lugar donde se celebrará la audiencia de conciliación entre las partes en conflicto, la cual será establecida entre los dos (2) y seis (6) meses contados a partir de la notificación cursada. La autoridad de aplicación es responsable de la realización de la audiencia y determina agotada la instancia de acuerdo con los resultados concretos. Las negociaciones no podrán exceder el límite de un (1) año desde la primera publicación. Si la parte oponente no se concurriese a la audiencia dispuesta, se tendrá por desistida la oposición formulada y continuará el trámite de la solicitud de registro. Si el ausente fuera el solicitante se tendrá por abandonada su solicitud de inscripción y se ordenará el archivo de las actuaciones. Acción judicial Cuando las partes no arribasen a un acuerdo en las negociaciones aludidas en al artículo anterior, la autoridad de aplicación girará las actuaciones al tribunal competente según el artículo 19 de esta ley. El juez interviniente informará a la autoridad de aplicación sobre el resultado del juicio iniciado a los fines que correspondiere. Extinción del derecho El derecho de propiedad sobre un conocimiento tradicional se extingue :

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a) por renuncia del Pueblo o Nación titular; b) por declaración judicial de nulidad o caducidad del registro. c) por la total desaparición del Pueblo o Nación. Nulidad del derecho Son nulas las inscripciones los conocimientos tradicionales aborígenes registrados: a) en contravención a lo dispuesto en esta ley; b) por quien, al solicitar el registro, conocía o debía conocer que ellas pertenecían a un tercero; c) por quien no esté inscripto como Pueblo o Nación en el Registro pertinente, o invoque su nombre sin ser su autoridad de acuerdo con su código de costumbres. Prescripción La acción de nulidad no prescribe. Actos punibles y acciones Penas Será reprimido con prisión de tres (3) meses a dos (2) años pudiendo aplicarse además una multa de un millón de pesos ($ 1.000.000) a ciento cincuenta millones de pesos ($ 150.000.000): a) el que falsifique o imite fraudulentamente un conocimiento tradicional registrado; b) el que use un conocimiento tradicional registrado, fraudulentamente imitado o perteneciente a un tercero sin su autorización; c) el que ponga en venta o venda un conocimiento tradicional registrado, fraudulentamente imitado o perteneciente a un tercero sin su autorización; d) el que ponga en venta, venda o de otra manera comercialice productos o servicios con un conocimiento tradicional registrado. El Poder Ejecutivo Nacional actualizará anualmente el monto de la multa prevista sobre la base de la variación registrada en el índice de precios al4 por mayor nivel general, publicado oficialmente por el Instituto Nacional de Estadística y Censos.

La acción penal es pública y las disposiciones generales del Libro 1 del Código Penal son aplicables en cuanto sean compatibles con la presente ley. Competencia judicial La Justicia Federal en lo Criminal y Correccional es competente para entender en las acciones penales, que tendrán el trámite del juicio correccional; y la Justicia Federal en lo Civil y Comercial lo es para las acciones civiles, que seguirán el trámite del juicio ordinario. Medidas accesorias El damnificado, cualquiera sea la vía elegida, puede solicitar : a) el decomiso y venta de las mercaderías y otros elementos en infracción, b) la destrucción de los bienes producidos en infracción y de todos los elementos que los lleven, si no se pueden separar de éstos. El Juez, a pedido de parte, deberá ordenar la publicación de la sentencia a costa del infractor si éste fuera condenado o vencido en juicio. Juicio civil En los juicios civiles que se inicien para obtener la cesación del uso de un conocimiento tradicional registrado, el demandante puede exigir al demandado caución real, en caso de que éste no interrumpa el uso cuestionado. El Juez fijará esta caución de acuerdo con el derecho aparente de las partes. Si no se presta caución real, el demandante podrá exigir la suspensión de la explotación y el embargo de los objetos en infracción, otorgando si fuera solicitada, caución suficiente.

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Acción penal

El derecho a todo reclamo por vía civil no prescribe.



Destino de las multas y remates

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El producido de las multas previstas en este Capítulo será destinado a los programas de ayuda y desarrollo social aborigen. Medidas precautorias Todo Pueblo o Nación Aborigen propietario de un conocimiento tradicional registrado a cuyo conocimiento llegue la noticia de la existencia de objetos producto de un conocimiento tradicional en infracción conforme a lo establecido en esta ley, puede solicitar al juez competente: a) el embargo de los objetos;

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b) su inventario y descripción; c) el secuestro de uno de los objetos en infracción. Sin perjuicio de la facultad del juez de ordenar estas medidas de oficio, podrá requerir caución suficiente al peticionario cuando estime que éste carezca de responsabilidad patrimonial para responder en el supuesto de haberse pedido el embargo sin derecho. Responsabilidad solidaria Aquél en cuyo poder se encuentran objetos en infracción, debe acreditar e informar sobre: a) el nombre y dirección de quién se los vendió o procuró y la fecha en que ello ocurrió, con exhibición de la factura o boleta de compra respectiva; b) la cantidad de unidades fabricadas o vendidas y su precio con exhibición de la factura o boleta de venta respectiva, c) la identidad de las personas a quienes les vendió o entregó los objetos en infracción. Todo ello deberá constar en el acta que se levantará al realizarse las medidas en esta ley. La negativa a suministrar los informes previstos en este artículo, así como también la carencia de la documentación que sirva de respaldo comercial a los objetos en infracción, autorizará a presumir que su tenedor es partícipe en la infracción. Esos informes podrán ampliarse o completarse en sede judicial tanto a iniciativa del propio interesado como por solicitud del juez, que podrá intimar a este efecto por un plazo determinado. Legitimación El licenciatario de un conocimiento tradicional registrado podrá solicitar las medidas cautelares previstas en esta ley, aun cuando no mediare acción por parte del Pueblo o Nación licenciante. Si no dedujera la acción correspondiente dentro de los quince (15) días hábiles de practicado el embargo o secuestro, éste podrá dejarse sin efecto a petición del dueño de los objetos embargados o secuestrados. De la autoridad de aplicación Creación de la Dirección Nacional de los Conocimientos Tradicionales La autoridad de aplicación de esta ley es la Dirección Nacional de los Conocimientos Tradicionales, dependiente del Ministerio de Economía, la que resolverá respecto de la concesión de los títulos pertinentes.

La Dirección Nacional de los Conocimientos Tradicionales, anotará las solicitudes de registro en el orden que le sean presentadas. A tal efecto, llevará un Libro rubricado y foliado por el Ministerio de Economía. En este libro se volcarán la fecha y hora de presentación, su número, los indicadores solicitados de acuerdo con los efectos, propiedades o prácticas aplicables del conocimiento tradicional, el nombre y domicilio del Pueblo o Nación solicitante y los contratos de concurrencia y licencia que se notifiquen. Certificado de Registro El certificado de registro consistirá en un testimonio de la resolución de reconocimiento de la titularidad, acompañado del duplicado de su descripción por indicadores y llevará la firma del responsable de la Dirección Nacional de los Conocimientos Tradicionales. Tasas y anualidades Las inscripciones de conocimientos tradicionales aborígenes que se realicen ante la Dirección Nacional de los Conocimientos Tradicionales no están sujetos al pago de tasas Las anualidades que correspondan ser abonadas por los licenciatarios durante el período de vigencia de la licencia será fijada por la reglamentación. Dichos montos serán actualizados según lo previsto para las multas. Disposiciones transitorias y derogatorias Inscripciones anteriores Los títulos de propiedad intelectual o industrial concedidos con anterioridad a la entrada en vigencia de esta ley y cuya eficacia no sea atacada por interesado legítimo dentro del año de entrada en vigencia de esta ley quedarán firmes hasta su caducidad de acuerdo con las reglamentaciones que, en cada caso, le sean aplicables. Entrada en vigencia La presente ley entrará en vigencia a los treinta (30) días de su publicación en el Boletín Oficial. Reglamentación La presente ley deberá ser reglamentada dentro de los Sesenta (60) días de su sanción.

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Registro de Conocimientos Tradicionales Aborígenes



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De forma Comuníquese, publíquese. Dése a la Dirección Nacional del Registro Oficial y archívese.

ANTEPROYECTO DE LEY DE TRANSFERENCIA DE CONOCIMIENTOS Y TECNOLOGÍA TRADICIONAL INDÍGENA Fundamentos Ley de Transferencia de Conocimientos y Tecnología Tradicional Aborigen Artículo 1. Actos comprendidos Artículo 2. Requisitos sustanciales Artículo 3. Consentimiento informado previo Artículo 4. Requisitos formales Artículo 5. Aprobación Artículo 6. Recursos Artículo 7. Efectos de la no aprobación o no presentación Artículo 8. Obligaciones fiscales del licenciatario Artículo 9. Explotación conjunta. Aporte social Artículo 10. Inscripción Artículo 11. De forma

94 FUNDAMENTOS Ante el inminente avance de la globalización, el libre comercio y de la integración de las economías, uno de los aspectos medulares que es necesario considerar es la trasferencia de tecnología tradicional: la regulación de la protección, cesión, licencia, de la explotación de los conocimientos técnicos tradicionales. Ante todo este conjunto de fenómenos que se desarrollan actualmente, el Derecho juega un papel trascendental, a efecto de dar una solución a las necesidades económico-socio-culturales, y para el caso, la figura jurídica medular es el Contrato de Transferencia de Tecnología.

En lo pertinente a la transferencia de tecnología y conocimientos tradicionales la legislación de los países proveedores han de regular teniendo especial resguardo de la brecha cultural –aunque no sea ella intelectual- entre los Pueblos que suministran y las empresas que solicitan esta particular tecnología. Cuidar que este tipo de contratos no sea de libre adhesión, tal como afirma Jorge Otamendi, que la debilidad del contratante local, los efectos de las pautas contractuales y agregamos: el drenaje de [conocimiento]. Además, la estipulación de confidencia al receptor, en virtud de la cual éste no puede divulgar los conocimientos adquiridos a raíz del contrato por su proveedor. El modelo de autonomía –para estas transferencias- considera los valores y creencias de los operadores de una relación como el punto de partida moral insoslayable en la determinación de las responsabilidades de las partes de una relación social y jurídica en cualquier ámbito. Cuando los valores de ambos actores se enfrentan directamente, la responsabilidad fundamental consiste en respetar y facilitar la autodeterminación en la toma de decisiones. La obligaciones y virtudes de cada una brotan por lo tanto del principio de autonomía5. El respeto a la autonomía de los actores es un deber y por lo tanto puede ser superado por otros principios morales. El principio de autonomía es la base moral de la doctrina del consentimiento informado y por lo tanto: fundamentado. Una definición de autonomía podría esbozarse diciendo que la decisión de una determinada persona es autónoma si procede de los valores y creencias propias de dicha persona, se basa en una información y comprensión adecuadas y no viene impuestas por coacciones internas o externas; debiendo prevalecer en tanto no dañen a terceros6.

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6

BEAUCHAMP, Tom; Mc CULLOGH, Laurence. Ética Médica, Madrid: Labor Universitaria. pág 31 y ss., 1984. BEAUCHAMP, Tom; CHILDRESS, James . Principles of Bioethics, fourth edition, Oxford University Press, 1994

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La tecnología es la información, métodos e instrumentos por medio de los cuales se utiliza los recursos materiales del ambiente para satisfacer diversas necesidades y deseos. A su tiempo, su transferencia involucra la transmisión del uso o se autoriza la explotación de tales conocimientos técnicos. Es decir, en este contrato una de las partes aporta un conjunto de conocimientos, asistencia técnica y elementos materiales para la producción industrial, mientras que la otra aporta en contraprestación una remuneración económica.



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Se distingue la capacidad para actuar autónomamente de la acción autónoma, ya que poseer la capacidad para decidir autónomamente no garantiza que se realizará una decisión autónoma7.Una acción será sustancialmente autónoma cuando sea realizada por un sujeto que actúa intencionalmente, con comprensión y libre de control o influencias (estas dos últimas susceptibles de gradación y admitiendo la presencia de zonas grises). • una acción intencional es aquella (deseada) de conformidad con un plan. La intencionalidad requiere la presencia de un plan de acción, hay una relación directa entre ambos, ya que ésta implica la integración de la cognición en un detallado proyecto de acción. Para que una acción sea intencional debe corresponder a la concepción del plan de acción del acto en cuestión. • una acción no será autónoma si el sujeto falla en la comprensión de su acción, esta condición es de especial importancia para la teoría del consentimiento informado, ya que la ‘calidad’ del proceso de decisión autónoma diferirá dramáticamente según que tanto la persona comprenda8. Hay una noción de ‘comprensión’ propia de las visiones clásicas de la epistemología (LOCKE, HUME) que refieren a la inteligencia o las facultades de conocer y juzgar, enfocados en las ideas, creencias, percepciones , conceptos mentales y procesos de conocimientos9. Sin embargo, otros problemas deben enfrentarse primero, tales como los usos o acepciones de la palabra “comprensión” como requisito de este especial contrato, con sujetos y objeto específico que le dan una relevancia determinante. 1.- Comprender como el tener una competencia práctica o comprender-cómo (hacer algo). 2.- En contraste con esta acepción, hay un comprender- eso/aquello (una proposición que es verdad); aquí el análisis de comprensión se reduce al análisis de conocimiento, como una creencia justificadamente cierta; por ej: “entiendo que el sol es el centro del universo.” 3.- Un tercer uso tiene que ver con la comunicación humana , aquí no es necesario creer en la información en orden a entenderla, sino solo aprehender lo que se dijo. Es un comprender-que ; por ej : “comprendo lo que estas diciendo” o “te comprendo.” La compresión de la propia acción debe derivarse de una precisa interpretación de los dichos e intenciones del otro, debe haber una correlación

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8 9

FADEN, Ruth ;BEAUCHAMP, Tom. A history and theory of informed consent . New York: Oxfor|d University Press, 1986, p. 237 y ss. Ibid. p. 248. Desde la sicología, la pregunta central es cómo se comprende, poniendo énfasis en los procesos neurofisiológicos o cognoscitivos ; por su parte, la filosofía referiría a una teoría de la comprensión . Ibid. p. 249.

En una pretensión de máxima, se considerará que una persona tiene total comprensión de su acción si: hay una aprehensión completa y adecuada de todas las proposiciones relevantes (aquellas que contribuyen a obtener una apreciación de la situación)que describen correctamente 1) la naturaleza de la acción y 2) las consecuencias previsibles y posibles resultados que pudieran seguirse de con motivo de llevarse a cabo o no una determinada acción10. Las ideas de correspondencia, precisa interpretación, y efectiva comunicación son básicas. • una acción autónoma que ésta esté libre de influencias por parte de otras personas; es decir que sea ejecutada libre de coerción11, persuasión o 12 manipulación . Se requiere la libertad necesaria para que las partes, responsables de dar su consentimiento y concurrir a la formación del contrato, deliberen, formen sus juicios de valor y luego decidan u ejecute su decisión (conceptos de deliberación, decisión y ejecución). El proceso de consentimiento informado, que tiene por protagonistas a las partes del contrato, es un proceso de comunicación continua, donde ambas ponen a disposición recíproca, en términos simples, adaptados a los niveles culturales diversos de cada una, aquella información relevante acerca del objeto, proceso y finalidad, los riesgos, alternativas y consecuencias, mediando en lo posible un plazo razonable de reflexión; proceso que culmina con una declaración de voluntad que plasma la autorización para proceder donde quedará asimismo acreditado el proceso de información previa al consentimiento. El consentimiento informado, integra indudablemente, el marco contractual de la transferencia de tecnología y conocimiento tradicional, en tanto puede individualizarse con un doble carácter: a) en sentido estricto, como ‘prestación’13 de la que son deudores la partes y de la que derivan sus derechos a la más competa y veraz información y además, b) en un sentido amplio, como

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entre lo que una persona interpreta, la representación mental de una situación y lo que el otro quiso decir ; es imprescindible una efectiva comunicación.



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FADEN, Ruth ; BEAUCHAMP, Tom. A history and theory of informed consent ; New York, Oxford, : Oxfor|d University Press, 1986, p. 252. La coerción ocurre si una de las partes, intencional y exitosamente influencia a otra mediante una amenaza creíble de un daño evitable tan severo que la persona es incapaz de resistir o actuar de modo de evitarlo. La manipulación se caracteriza por lograr que una persona haga aquello que el manipulador desea, sin recurrir a la coerción o la persuasión sino alterando la percepción de las opciones que se ofrecen a quien debe tomar una decisión. La persuasión refiere a la influencia mediante la apelación a la razón; es el intento exitoso de inducir a alguien apelando al raciocinio para que ‘libremente’ acepte como propias, creencias, actitudes, valores o acciones impulsadas por otro. FADEN, Ruth e BEAUCHAMP, Tom ob.cit. p.262-3. Por este motivo es fundamental, el entender que el cómo se brinda la información es una obligación elemental, derivada -además del actuar ético y por tanto conforme a la reglas de la buena fe de los contratantes- , por lo que la violación de este precepto entraña, además de una falta ética susceptible de ser evaluada en un procedimiento disciplinario, un grave incumplimiento contractual

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elemento aglutinante de las voluntades, esto es, legitimante de la voluntad contractual de ambas partes de la relación. Hasta ahora la transferencia de tecnología tradicional, se sostenía sobre un modelo prevaleciente de adhesión unilateral, que reposaba fundamentalmente en la desigual posición cultural en que las parte quedaban situadas en el contrato, una posición asimétrica propia de la relación jurídica positiva. Ausente así la libertad de configurar el contenido del contrato: más que consentimiento, el proveedor de conocimiento tradicional otorgaba el ‘asentimiento’. Aún los estándares intentados por organizaciones intermedias y organismo internacionales no superan el ‘simple consentimiento contractual’, con los elementos clásicos de discernimiento, intención y libertad juzgados y aplicados según reglas culturalmente unilaterales, centradas en el contenido del acto propuesto. Por el contrario, la norma obliga a centrarnos en el marco, la estructura de la relación, la cual, conforme exigencias constitucionales y morales, (básicamente la consideración del Pueblo Aborigen como sujeto moral autónomo, el resguardo de su dignidad y la esfera de las conductas autorreferentes) será construida y acordada por ambos. Garantizar –mediante la norma propuesta la protección que el orden público brinda a la parte más débil de la relación, ya que no puede soslayarse la asimetría jurídica, psicológica y científica de los ‘contratantes’ en la relación de transferencia de tecnología o conocimiento tradicional. Tener en cuenta estos factores es fundamental para resguardar principalmente el derecho de poder ejercer opciones informadas y participar activamente del proceso de toma de decisiones y posteriormente valorar la eficacia jurídica del consentimiento. Como señalábamos, en el modelo de autonomía, una de sus características supone el cambio estructural de la relación, el modelo contractual no significa un modelo paternalista, sino que ambas partes deben mantener la libertad de control sobre sus propios intereses cuando ellos están sometidos a decisiones significativas. Vemos como, en el marco de esta relación contractual, el estándar del simple consentimiento contractual no es suficiente, ya que el ordenamiento ha previsto una calificación más severa: “informado” “fundamentado”, atendiendo a la asimetría cultural de las partes de la relación; será preciso acreditar una efectiva comunicación, para poder tomar una serie de decisiones sustancialmente autónomas.

Actos comprendidos Quedan comprendidos en la presente ley los actos jurídicos que tengan por objeto principal o accesorio la transferencia, cesión o licencia de tecnologías o conocimientos tradicionales aborígenes registrados ante la Dirección Nacional de los Conocimientos Tradicionales a favor de personas físicas o jurídicas, públicas o privadas domiciliadas o no en el país. Requisitos sustanciales Los actos jurídicos contemplados en el artículo 1° serán aprobados, si del examen de los mismos resulta que: a) sus condiciones han sido consentidas previa suficientemente comprendida por las partes contratantes;

información

b) se prevé el procedimiento de la rendición de cuentas correspondiente cuando la estipulación de contraprestaciones a favor del proveedor del conocimiento o tecnología tradicional dependa de porcentaje sobre ganancias del receptor de la tecnología o conocimiento; c) el uso que se hará del conocimiento tradicional que es objeto del contrato será sustentable; d) la jurisdicción aplicable para el caso de diferencias emergentes del contrato no podrá ser diferida a jueces extranjeros, ni a árbitros o amigables componedores extranjeros. Consentimiento informado previo A los efectos del inciso a) del artículo anterior, se entiende como consentimiento informado cualquier y todo tipo de información materialmente importante para tomar la decisión de consentir, ella incluye, entre otras cosas, información sobre el propósito y naturaleza de la aplicación que se dará del conocimiento tradicional que se transfiere, el alcance de la licencia, transferencia o cesión respecto del conocimiento o de su uso, los beneficios que las partes esperan compartir o el carácter de las contraprestaciones que se pretendan pactar, así como los aspectos del procedimiento a que será sometido o empleado el conocimiento tradicional que se licencia, transfiere o cede. La parte receptora deberá comprender la trascendencia del conocimiento tradicional para la parte proveedora y la cosmovisión en la que esta integrado, y de que el uso que dará al mismo no la ofende o contradice.

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LEY DE TRANSFERENCIA DE CONOCIMIENTOS Y TECNOLOGÍA TRADICIONAL ABORIGEN



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Requisitos formales Junto con los instrumentos de los actos jurídicos que se presenten ante la Dirección Nacional de los Conocimientos Tradicionales deberán consignarse con carácter de declaración jurada, los siguientes datos: a) nombre y domicilio de las partes, b) indicación de la tecnología o conocimiento cuya licencia o transferencia es objeto del acto; c) de tales instrumentos se presentarán copias en –por lo menosidioma castellano y en el del Pueblo aborigen que provee el conocimiento o tecnología tradicional Aprobación Los actos jurídicos contemplados en el artículo 1º serán sometidos a la aprobación de la Dirección Nacional de los Conocimientos Tradicionales. A los efectos de lo establecido en el párrafo anterior, la Dirección Nacional de los Conocimientos Tradicionales tendrá un plazo de NOVENTA (90) días corridos para expedirse respecto de la aprobación. La falta de resolución en dicho término no significará la aprobación del contrato de transferencia. Recursos La resolución denegatoria o falta de la aprobación será apelable ante el Ministro de Economía dentro de los TREINTA (30) días corridos de notificada la denegatoria o de transcurrido el plazo establecido en el párrafo anterior, según el caso. Esta resolución en caso de confirmar la denegatoria de la Dirección Nacional de los Conocimientos Tradicionales será apelable judicialmente de acuerdo a lo establecido en la Ley 19.549 sobre Procedimientos Administrativos ante la Cámara de Apelaciones en lo Federal y Contencioso Administrativo. Efectos de la no aprobación o no presentación La falta de aprobación de los actos jurídicos a los que se refiere esta ley o su falta de presentación podrá ser declarados nulos a petición del proveedor del conocimiento o tecnología tradicional. Dicha declaración no afectarán la validez de las prestaciones ya realizadas a favor del proveedor del conocimiento tradicional, no podrán ser deducidas a los fines impositivos como gastos por el receptor y la totalidad de los montos pagados como consecuencia de tales actos será considerada ganancia neta del proveedor.

El plazo dentro del cual el licenciatario deberá cumplir las cargas fiscales que correspondan comenzará a correr a partir de la entrega a las partes del instrumento aprobado. Explotación conjunta. Aporte social El conocimiento o la tecnología tradicional aborigen registrado podrá constituir aporte de capital cuando lo permita la ley de Sociedades Comerciales. En tales casos la valuación de los aportes también deberá ser aprobada por la Dirección Nacional de los Conocimientos Tradicionales. Inscripción De los contratos que de acuerdo con esta ley sean aprobados, la Dirección Nacional de los Conocimientos Tradicionales inscribirá en el Registro pertinente los datos enumerados en el artículo 4° y se hará depositario de un ejemplar firmado por las partes del contrato. Los datos mencionado en el artículo 4° estarán disponibles al público a través del banco de datos a cargo de la Dirección Nacional de los Conocimientos Tradicionales, el que deberá mantenerse actualizado y será de acceso libre. De forma Comuníquese, publíquese. Dése a la Dirección Nacional del Registro Oficial y archívese.

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Obligaciones fiscales del licenciatario



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Eliane Potiguara O que são Direitos Humanos, Princípios Coletivos e Propriedade Intelectual atrelados à biodiversidade? Vou responder com o texto a seguir para que sintamos esses conceitos de uma forma mais humana, menos teórica e mais compreensível. Nossa Casa Ancestral Em que corpo estás?/Estás no ar, no sol, na luz/ Estás no infinito/Estás nos séculos/Tão poucos séculos, diante da nossa eternidade/E quando nos veremos?/Te sinto sempre/Na música, no sol, nas águas/No calor, no frio, nos ventos/Em cada Estado, país ou continente/Te sinto sempre meu amor/Apesar do que fizeram conosco!/ Mostra-me o caminho/Mostra-me em sonhos/Em cânticos, a nossa libertação./ Intocável é a nossa Casa/Nossos filhos cresceram, morreram e renasceram. /Tornaram a morrer/ Nossos filhos indígenas/Quase estão cegos pelo que aconteceu naquele dia/Muitos não reconhecem mais a sua mãe/Até as costas lhe deram/Pouco restou das cerimônias/Somente a dança com fé./ E não reconhecem mais a filha do pajé/ Lembra-te das cerimônias sagradas/Quando banhávamos nus?/E que nossos corpos penetravam as profundezas do Planeta Terra?/Mergulhávamos e trazíamos /Dezenas de crianças/Filhas Dela !/ Mas meu amor/Dá—me tuas fortes mãos/Leva-me em tuas grandes asas sagradas/E dá-me força e poder/Porque o implacável Criador/Manda-me voltar séculos e séculos/E a ele levar a sagrada Raiz da Lagoa Akujutibiró./ A sagrada Raiz?/ Está coberta de lama endurecida

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Patrimônio Indígena



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Pelo peso da opressão dos séculos/E minhas mãos indígenas de mulher/Ainda estão frágeis e sangram/E se ferem nos espinhos dos pântanos!/ Tento me esconder na barriga da Mãe-Terra/E esquecer nossos filhos/Mas vejo Nhendiru chorar/ Vejo nossos filhos sofrerem/Então... o espírito do mar/ Uma grande névoa azulada/Envolve-me, seduz-me, encanta-me/E levanta-me na chama guerreira/E faz-me falar, cantar e gritar.../ Até que um dia/Os nossos filhos mortos, nascidos, e renascidos Possam relembrar do olhar, docemente,/Da luz envolvente/E da tinta de jenipapo/ Cravada pelo Grande Espírito em nossa cara. (Texto de Eliane Potiguara em “METADE CARA, METADE MÁSCARA”, Global Editora. Os direitos fundamentais dos Povos Indígenas são protegidos pelo Direito Internacional, da mesma forma que os direitos de todos os outros cidadãos do mundo. Esses Direitos falam sobre o direito à vida, o direito de não ser submetido a pressões, maus-tratos, punições cruéis e desumanas, penas-de-morte, o direito ao pensamento, à consciência e religião. Tudo isso destrói os conhecimentos tradicionais e, conseqüentemente, sua propriedade intelectual. Os governos estão obrigados a defender os direitos humanos e a compensar as vítimas e seus parentes de abusos, exploração e desrespeito à integridade moral e física do cidadão e cidadã, mesmo que as violações tenham ocorrido durante governos, até muitas décadas passadas. O Direito Internacional prevê que os governos futuros herdem essa obrigação. Esse princípio foi reafirmado em 1988 pelo Tribunal Interamericano de Direitos Humanos. Em 1971, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos considerou que “a proteção especial dos povos indígenas constitui um compromisso sagrado dos Estados”[membros] e recomendou que os Estados tomassem providências para proteger os povos indígenas contra abusos cometidos por seus agentes, salientando que “ os índios... não devem ser objeto de nenhuma espécie de discriminação social, nem racial (fonte: Anistia Internacional)

Povos Indígenas estão entre as dezenas de milhares de pessoas que “desaparecem” no continente americano nas últimas décadas, antes e depois dos golpes militares ocorridos no Chile (1973); Argentina (1976); Brasil (1968); Guatemala; Colômbia; Peru; Equador. Enfim.... O desaparecimento de muitos homens indígenas em todo o mundo tem resultado em depoimentos de viúvas, como esse: “ Durante todos esses anos convivi com a fome, a miséria, a exploração e acima de tudo com medo, desorientação, confusão, dúvidas, desconfianças, perdas e solidão.” Os filhos, netos, bisnetos e tataranetos desse processo de violência, normalmente continuam vivendo em situações de risco, em disputas pela propriedade da terra e território, pelo uso dos recursos naturais, na defesa de seus costumes, tradições e cosmovisão. Há indígenas que vivem em áreas isoladas e são desalojados pela rota do tráfico de drogas e outros projetos sócio-econômicos. Os princípios coletivos, os conhecimentos ancestrais de nossos povos estão sendo roubados há muito tempo; as maiores vítimas são as crianças, mulheres e idosos. A atual situação dos P.I. tem raízes no passado colonial, quando indígenas foram transformados em escravos, mesmo no período da catequese, em que, por exemplo, em um ano, 2000 toneladas de algodão foram produzidas e, implantada um milhão de cabeças de gado, só na região do Guaíra, no Sul do Brasil, como resultado da mão-de-obra escrava indígena! Foram 87 etnias indígenas extintas entre 1900 e 1957, vítimas da exploração mineral e comercial. Centenas de casos de violação aos Direitos Humanos dos PI vêm ocorrendo nos últimos anos. Milhares de famílias deslocadas, divididas. Não se tem noção desses casos. Eles são totalmente invisíveis no Brasil!!!! Necessita-se de um estudo antropológico para tornar-se visível e se iniciar o resgate dos Direitos Humanos desse contingente, para que a história de muitos bisavós e avós não desapareçam na poeira e possamos construir sobre essas histórias os princípios básicos de uma legislação específica que defenda Direitos Indígenas. Os princípios coletivos, a ética, a essência cultural, a cosmologia, os conhecimentos tradicionais, a alma indígena não podem ser catalogados como acervos para museus ou dados para a Internet, para que se amoldem teoricamente ao significado de “propriedade intelectual”, mas, valorizados, reconhecidos através de uma legislação altamente específica que beneficie P.I. É preciso compreender que não basta apenas garantir peças, indumentárias, penas, cerâmicas e outros objetos manufaturados, línguas, histórias, lendas porque esses elementos e objetos são apenas a concretização material da alma indígena. Se

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No entanto qual é a nossa realidade?



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a essência indígena é destruída não pode haver peças em museu. “Vejam como viviam os índios!”, diz o guia turístico. Que hipocresia! O mesmo acontece com a defesa do meio-ambiente. Não se pode defender meio-ambiente sem, em primeiro lugar, defender as vidas humanas daquele espaço físico destruído ou em vias de extinção. Há que educar e salvar a população daquele espaço para que ela mesma sobreviva aos resultados da destruição ambiental. Não se coloca a carroça à frente do boi! Atitudes como essas são xenófobas, discriminatórias, paternalistas: Mata-se e homenageia-se! Não aludimos às pessoas, mas às políticas conservadoras do passado que continuam as mesmas. Sim, as peças e elementos culturais podem ser exaltadas num Museu ou numa Exposição no Shopping pela história de vida que aquele povo construiu, beneficiou-se, honrou-se pela sua existência. E não pela sua destruição vitimada pela colonização, neo-colonização e exploração contemporânea. O que se reporta aqui é que se quer contribuir com dados éticos para o futuro, porque se sabe que hoje os museus estão cheios de obras indígenas, inclusive no exterior, e agora não se pode fazer mais nada. Sabe-se de vários povos que se têm reportado aos museus para resgate cultural de um povo que foi muito esfacelado em suas tradições e culturas. Outro aspecto é que se a história do povo é real e existente e se o mesmo povo permite as exposições, porque a ela interessa divulgar sua cultura, é válida a exposição em museus e entidades afins. Enfim, propriedade intelectual, conhecimentos tradicionais, seres humanos devem estar inseridos no contexto de uma biodiversidade para que garanta seus direitos. No entanto, há povos que preferem manter o segredo de sua cultura como foi mencionado há 10 anos atrás no texto a seguir e depois confirmado pelos pajés nas futuras Conferência sobre Conhecimentos Tradicionais, direitos sagrados.

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No passado nossas avós falavam forte Elas também lutavam Aí, chegou o homem branco mau Matador de índio E fez nossa avó calar E nosso pai e nosso avô abaixarem a cabeça. Um dia eles entenderam Que deviam se unir e ficarem fortes E a partir daí eles lutaram Para defender sua terra e cultura. Durante séculos As avós e mães esconderam na barriga As histórias, as músicas, as crianças, As tradições da casa, O sentimento da terra onde nasceram, as histórias dos velhos Que se reuniram pra fumar cachimbo. Foi o maior segredo das avós e das mães. Os homens ao saberem do segredo Ficaram mais forte para o amor, lutaram E protegeram as mulheres. Por isso, homens e mulheres juntos São fortes E fazem fortes os seus filhos Para defenderem o segredo das mulheres. Pra que nunca mais aquele homem branco Mate a história do índio!

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O Segredo das Mulheres



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Texto publicado na cartilha de apoio, um “complemento político” à alfabetização potyguara e a todos os índios do Brasil de autoria de Eliane Potiguara/1994/apoio Unesco e UERJ.

Ana Vilacy Galucio

INTRODUÇÃO Este artigo discute necessidades e possibilidades da documentação lingüística e cultural envolvendo os povos indígenas no Brasil e o papel desempenhado pela utilização de gravações e de acervos lingüístico-culturais, em processos de revitalização, fortalecimento e resgate cultural. A abordagem será feita a partir de um estudo de caso, apresentando alguns aspectos da experiência de trabalhos com documentação lingüística e cultural junto aos grupos indígenas desenvolvidos pela Área de Lingüística do Museu Emílio Goeldi. Esse tipo de trabalho, hoje, inclui, necessariamente, gravações, especialmente de aspectos da cultura expressos através da língua. SITUAÇÃO ATUAL: O que precisa e pode ser feito em termos de documentação A situação atual das línguas e culturas indígenas no Brasil é crítica, uma vez que várias das cerca de 160 línguas indígenas ainda faladas hoje no país são línguas que vivem a ameaça de desaparecer em um futuro não muito distante. Essa situação ocorre por vários fatores, entre os quais se pode listar, por exemplo, o número reduzido de falantes de várias dessas línguas e a ruptura na linha de transmissão para as novas gerações. É o caso da língua Xipáya, no Pará, que tem apenas duas falantes idosas e da língua Puruborá, de Rondônia, também com apenas dois falantes idosos. Um outro fator que precisa ser considerado é o impacto causado pela expansão econômica desregrada, o que envolve, entre outras coisas, a atuação não-autorizada de madeireiros e garimpeiros em áreas indígenas. Essa atuação implica ameaça não somente ao meio-ambiente e à biodiversidade, mas também à sócio-diversidade, uma vez que afeta diretamente as populações nativas da região, com suas línguas e culturas. Essa realidade não é exclusiva do Brasil, existe um quadro mundial, em que se reporta a perda da diversidade lingüística e cultural, evidenciada, principalmente, pelo desaparecimento das línguas faladas por povos minoritários. De um modo geral, uma língua torna-se ameaçada em situações em que os contextos de uso dessa língua diminuem, o que pode ocorrer, embora

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Gravações e acervos a partir da pesquisa lingüística e cultural como um passo para revitalização, fortalecimento e resgate cultural.



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não seja, necessariamente, o caso, em situações que envolvem redução demográfica, casamentos inter-étnicos, pressão sócio-econômica, (des) prestígio social, entre outros. Por outro lado, a língua se torna mais forte se aumentam os seus contextos de uso. Considerando-se esse aspecto é que existe hoje um movimento mundial com o interesse de manter e revitalizar as línguas ameaçadas. No nosso momento atual, cresce no mundo todo, inclusive no Brasil, como não poderia deixar de ser, a preocupação com a valorização dos povos indígenas, dos povos tradicionais e, conseqüentemente, a valorização também dos seus conhecimentos tradicionais. Essa preocupação faz surgir também a questão de reconhecer esse conhecimento como patrimônio cultural imaterial. A língua, como traço marcante e determinante da cultura de um povo, forma o conjunto de seu patrimônio imaterial. Nesse sentido, evidencia-se a preocupação em documentar/registrar e salvaguardar esse conhecimento. É importante ressaltar que essa preocupação não é somente uma preocupação da comunidade acadêmica ou das ONGs, mas é, sobretudo, uma preocupação e uma demanda dos grupos indígenas. Em geral, há um grande interesse das comunidades indígenas em documentar e preservar suas culturas e línguas para as novas gerações. Na experiência da Área de Lingüística do Museu Goeldi, todos os grupos indígenas com os quais trabalhamos e/ou mantemos contato gostariam de ter uma coletânea completa gravada de suas músicas e narrativas tradicionais, assim como, gravações de eventos culturais e informações sobre outros tópicos de sua cultura. Embora sem ter todas as informações, arriscaríamos dizer que esse interesse é compartilhado pelos grupos indígenas em todo o Brasil. Realizar essa documentação é uma tarefa urgente, mas também enorme. Somente no Estado do Pará existem 34 povos indígenas, os quais falam um total de 25 línguas diferentes. Alguns desses 34 grupos representam casos que requerem ações urgentes. Por exemplo, há somente duas falantes idosas da língua Xipáya, somente dois falantes idosos da língua Anambé e três falantes idosos da língua Kuruáya. Para citar ainda um outro exemplo, há o povo Tembé do Guamá que já não fala sua língua e está tentando revivê-la com a ajuda dos seus parentes Tembé do Gurupi. Além desses casos, é comum acontecer que em várias comunidades indígenas, apenas um pequeno grupo de pessoas idosas detêm o conhecimento tradicional de sua língua e cultura ou de certos aspectos específicos da cultura, como determinado estilo de canções ou a narrativa de mitos tradicionais. Entretanto, apesar da grande demanda e do interesse das próprias comunidades indígenas, em especial da Amazônia, área com a qual temos mais familiaridade, faz-se necessária uma atuação mais ativa dos profissionais e instituições qualificadas para documentar as línguas e culturas nativas da região.

Uma documentação científica dos aspectos lingüísticos e culturais dos grupos indígenas deve ter por meta a realização de uma cobertura ampla do que está sendo documentado e a reunião de informação cuidadosa sobre o material que está sendo gravado. Ou seja, não é suficiente realizar as gravações, mas é preciso que essas gravações sejam acompanhadas da sistematização do material coletado e acondicionamento correto desse material, inclusive da escolha da mídia de armazenamento que possibilite a manutenção do acervo, em uma larga escala de tempo1. Para atingir esse objetivo é necessário ainda um programa sistemático e organizado no país para realizar essa documentação da forma indicada. Hoje, existem projetos individuais, como por exemplo, os projetos de documentação ampla das línguas e culturas dos Aweti, dos Kuikuro e dos Trumai, no Parque Indígena do Xingu, o projeto de documentação da língua Apurinã e o projeto de documentação da língua Kadiwéu. A urgência de se realizar a documentação sistemática e o interesse dos grupos indígenas para que isso seja feito pedem uma atuação mais efetiva dos atores envolvidos nesse tipo de trabalho. Por outro lado, a documentação cultural (línguas e culturas) tornou-se mais viável nos últimos anos, inclusive do ponto de vista econômico, devido ao avanço da tecnologia em gravação de áudio e vídeo digital, edição não-linear e mídia de armazenamento digital (CDs e DVDs). Avanços tecnológicos possibilitam melhor documentação, bem como, maior otimização de tempo e do material coletado, por exemplo, novos gravadores Hi-Md permitem transferir arquivos de áudio em alta velocidade ao microcomputador, para posterior edição e gravação do conteúdo, em mídias como CD e DVD. ESTUDO DE CASO: Utilização da documentação lingüístico-cultural na revitalização, fortalecimento e resgate cultural das línguas e culturas indígenas O Museu Emílio Goeldi (MPEG), por meio de sua Área de Lingüística, tem estado atento aos problemas e soluções possíveis envolvendo a questão da documentação cultural e vem investindo, já há alguns anos, na aquisição de equipamento eletrônico necessário para realizar a documentação, assim como na aquisição do conhecimento adequado para atuar nessa área. A sua Reserva 1

Para maiores detalhes sobre essa questão da composição e manutenção de acervos e arquivos ver Anthony Seeger, neste volume.

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Nesse sentido, há várias lacunas que precisam ser supridas para que se possa realizar a contento essa tarefa. Embora tenha havido uma melhora significativa nos últimos anos, ainda falta pessoal interessado e qualificado para realizar o trabalho, faltam recursos e faltam iniciativas que aliem o poder público às comunidades e as instituições de pesquisa/ensino em torno dessa questão.



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Técnica de Lingüística possui uma coleção de áudio que inclui material, ainda não totalmente sistematizado, de mais de cinqüenta línguas indígenas brasileiras. A gravação dos registros lingüísticos e culturais é realizada já há alguns anos, utilizando gravadores DAT e câmeras de vídeo Hi-8 e, mais recentemente, gravadores de mini-disco e câmeras mini-DV, microfone profissionais, editores lineares e não-lineares de vídeo. Atualmente, três projetos efetivos de documentação lingüístico-cultural estão sendo desenvolvidos no MPEG – “Documentação de Cinco Línguas Tupi Urgentemente Ameaçadas”, “Documentação e Descrição do Karo, Brasil” e “Documentação da Língua e Cultura Aweti”2, este último em parceria com a Universidade Livre de Berlim. No âmbito de um desses projetos, que inclui a documentação da língua Sakurabiat, também conhecida como Mekens, de Rondônia, recentemente, realizamos a compilação de um CD de áudio de músicas do povo Sakurabiat, reunindo as músicas representativas dos três dialetos da língua ainda falados hoje. Estamos também trabalhando junto com os Sakurabiat na organização de uma 3 coletânea bilíngüe de algumas de suas narrativas mitológicas tradicionais . O registro dessas narrativas mitológicas é uma demanda antiga do grupo, uma vez que apenas quatro pessoas idosas ainda detêm o conhecimento de como contar esses mitos na língua Sakurabiat. Os Sakurabiat estão conscientes da urgência de se realizar esse trabalho de documentação, fazem questão absoluta de gravar e explicar todos os detalhes e querem ter tudo documentado e escrito para que esse conhecimento não desapareça com os mais velhos, como eles mesmos nos dizem. Precisamos entender que, com as mudanças estruturais, econômicas e sociais que afetaram e afetam os grupos indígenas até hoje, a forma tradicional de transmitir o conhecimento ancestral antes repassado oralmente de geração a geração também foi afetada. Os grupos indígenas têm plena consciência dessa realidade e têm buscado, sistematicamente, o apoio de pesquisadores, como lingüistas e antropólogos para ajudar nesse registro. É claro que o registro escrito e sonoro per si não garante a manutenção da língua e cultura, mas, por outro lado, esse registro pode ser usado em projetos de revitalização e mesmo de fortalecimento das culturas representadas, além de ajudar a comprovar a origem do material e os direitos de propriedade intelectual. O MPEG vem realizando ações experimentais ao lado de outras mais elaboradas na área de documentação eletrônica de línguas indígenas e eventos culturais, em conjunto com as comunidades indígenas. Vamos nos reportar a alguns exemplos desses trabalhos e na resposta provocada nas comunidades envolvidas. 2

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Os dois primeiros projetos têm o apoio do Programa de Documentação de Línguas Ameaçadas, da Escola para Estudos Orientais e Asiáticos da Universidade de Londres, e o terceiro é apoiado pelo Programa DoBes de Documentação, da Fundação Volkswagen. A edição dessa coletânea tem o apoio da Petrobrás, através da Lei Rouanet de Incentivo à Cultura.

O caso da língua Ayuru também ilustra a utilização de gravações e das novas tecnologias disponíveis como instrumento de fortalecimento e resgate cultural. Fitas gravadas com o pajé Ayuru em 1990, por um pesquisador do MPEG, foram recentemente transferidas para CD e retornadas à comunidade. Essas gravações continham informações sobre a aprendizagem do pajé Ayuru, casamento e festas tradicionais, entre outras. A partir do estímulo com o retorno das gravações, os Ayuru estão interessados em retomar o uso da língua e os conhecimentos tradicionais. A cerimônia Kwarup realizada pelo povo Aweti, no parque indígena do Xingu, foi documentada em vídeo, desde os preparativos da pesca em grande escala para alimentar os visitantes envolvendo todo o ritual que dura alguns dias, e terminando no esporte tradicional de lutas entre os homens. Essa documentação foi feita através do projeto de documentação ampla da língua e cultura Aweti, já mencionado anteriormente. Quando esse vídeo foi filmado, os Aweti estavam realizando a cerimônia do Kwarup pela primeira vez depois de 30 anos. A documentação completa da cerimônia, em todas as suas fases, é uma das primeiras, se não for a única, documentação extensiva dessa cerimônia, realizada por vários povos indígenas que vivem no parque indígena do Xingu. Todas essas experiências têm recebido uma reação muito favorável das comunidades envolvidas e os resultados produzidos são extremamente populares não somente entre estas comunidades, mas também, junto a outros grupos indígenas da região. Por enquanto, estamos realizando experiências de documentação cultural com grupos indígenas com os quais já trabalhamos na pesquisa e documentação lingüística e estamos procurando estabelecer diretrizes metodológicas básicas. Vejamos o caso da gravação de músicas. Para que se produza uma documentação adequada é necessário investigar a significação cultural da música na comunidade envolvida e associá-la ao contexto de uso, ou seja, realizar minimamente um pequeno estudo etnomusicológico, além da transcrição na língua original e tradução, se possível, das letras. Não é suficientemente satisfatório, em termos de documentação, efetuar somente a gravação dissociada das informações e representações pertinentes. Em outras palavras, é necessário mais que um microfone e um gravador de mini-disco para se realizar documentação musicológica.

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Em 2003, gravamos um vídeo no festival de músicas Makurap, realizado na Área Indígena Guaporé, em Rondônia. Esse trabalho constou de filmagem e edição, sendo que no trabalho de edição se incluiu legenda e a letra das músicas. Ao retornar essa gravação para comunidade, observamos que ela gerou estímulo no interesse na cultura tradicional, entre os Makurap. O comentário do grupo é que eles gostariam de realizar mais gravações, desta vez com mais cuidado e atenção para manter o estilo tradicional de ornamentar-se, cantar e dançar em Makurap. Esse exemplo ilustra como a documentação lingüística e cultural pode funcionar como estímulo à revitalização, fortalecimento e resgate das culturas tradicionais.



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Nesse contexto, surge a questão da transcrição das letras. Por exemplo, existem línguas cuja ortografia não funciona adequadamente na sua representação. Nesses casos, qual deve ser a postura do pesquisador? Como transcrever as letras das músicas ou textos nos documentos? Essas são algumas das questões de ordem metodológica e implementacional que surgem quando o pesquisador não possui um conhecimento mais profundo do grupo. Em todos os casos, a comunidade envolvida precisa ser informada de todas as variáveis em questão. Outra questão de suma importância para o sucesso de projetos de documentação diz respeito ao consentimento prévio e informado das comunidades envolvidas, para isso é necessário que as mesmas tenham todas as informações pertinentes. No caso dos trabalhos realizados pelo MPEG, as gravações são feitas com a autorização das comunidades. É explicitado previamente que as gravações não possuem fins comerciais e que todos os direitos autorais pertencem à comunidade em questão. O material gravado fica arquivado na Reserva Técnica da Área de Lingüística do MPEG e as comunidades envolvidas têm assegurado seu direito de propriedade sobre o conteúdo documentado. Fica definido também que, em caso de surgir a questão ou a possibilidade de divulgação comercial de qualquer material gravado e arquivado na Reserva Técnica, somente a comunidade envolvida pode dar a autorização para essa veiculação e todo e qualquer lucro proveniente dessa veiculação, se autorizada, será da comunidade. Finalizando, gostaria de mencionar um Programa Piloto para Documentação Eletrônica de Línguas e Culturas Indígenas que o Museu Goeldi e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia estão implementando, em cooperação com comunidades e organizações indígenas e Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Através desse programa, pretendemos possibilitar aos grupos indígenas da região a possibilidade de realizarem um serviço de documentação lingüístico-cultural, para os quais, freqüentemente, eles têm interesse, mas não possuem os recursos ou a tecnologia necessários. Este Programa Piloto está em fase inicial de atividades e esperamos poder apresentar os resultados alcançados e a metodologia utilizada, em breve, de forma a colaborar na construção de um programa mais amplo de documentação lingüística e cultural, nos moldes necessários para suprir a demanda existente hoje. Alguns desafios de um programa dessa natureza na região Amazônica dizem respeito à necessidade de otimizar a tarefa a ser executada, de forma a atender o maior número de comunidades e, ao mesmo tempo, aprofundar o conhecimento dos aspectos documentados. Outro desafio está relacionado à necessidade de conseguir treinamento técnico adequado para os agentes envolvidos, uma vez que é necessário, não somente, competência técnica em informática e vídeo, mas também, o entendimento das dimensões envolvidas ao se trabalhar com as diferentes culturas nativas da região.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A questão da documentação de aspectos específicos do patrimônio cultural imaterial dos povos indígenas no Brasil vem ocupando um espaço legítimo nas discussões envolvendo patrimônio cultural, através da participação de representantes do governo, ONGs, pesquisadores e representantes dos povos indígenas. A utilização desse espaço por todos esses agentes ajuda a realçar o papel que essa questão representa no atual contexto científico e sócio-econômico. Existem dois grandes fatores a se considerar quando se discute documentação: a demanda urgente por parte dos povos indígenas e a disponibilidade de pessoas e de instituições capacitadas e empenhadas em desenvolver esse trabalho. Enquanto, por um lado, os povos indígenas estão, cada vez mais, buscando ter aspectos como língua e cultura (incluindo danças, cantos e mitos) documentados, por outro lado, ainda não há disponibilidade de pessoas tecnicamente, qualificadas, para atender a toda essa demanda, na região. Resolver esse desafio deve ser uma das principais preocupações dos agentes envolvidos. A documentação lingüística e cultural pode funcionar como um passo importante na revitalização, fortalecimento e resgate do patrimônio cultural dos povos indígenas. As gravações presentes em acervos científicos têm sido usadas como instrumento para tal, em várias partes do mundo. As experiências relatadas acima ilustram bem como pequenas iniciativas, bem pensadas e estruturadas, podem desempenhar papel essencial no momento em que vários dos povos indígenas no Brasil despertam, independentemente, para a necessidade de ter suas línguas e outros aspectos da cultura documentados e salvaguardados na forma de registros escritos e áudios-visuais. Na nossa experiência no MPEG, o consentimento prévio e informado da comunidade envolvida, bem como, a anuência do órgão governamental relevante, a FUNAI, no caso dos povos indígenas, são necessários para o bom desempenho de projetos de documentação, em concordância com os princípios éticos e legais que regem essas relações e para garantir que os povos indígenas detentores desse conhecimento tenham seus direitos respeitados. Nesse aspecto, a documentação cultural e o registro desse material em instituições científicas podem ajudar a salvaguardar os direitos de propriedade intelectual dos povos indígenas, uma vez que, assim, o grupo pode comprovar a origem do material.

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Um terceiro aspecto importante envolve a questão das ortografias para as línguas indígenas, uma vez que várias línguas da região ainda não possuem uma ortografia adequada. O consentimento prévio e informado também é imprescindível para programas dessa natureza. Neste caso, outra preocupação é garantir legalmente os direitos autorais dos grupos envolvidos, do ponto de vista legal.



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Angela Lühning Imaginemos uma comunidade de candomblé, um grupo de índios brasileiros ou um músico profissional que hoje, subitamente, tomam conhecimento de objetos sagrados, fotos ou gravações musicais que foram realizados com a participação de seus antepassados, disponibilizados e até alienados na geração de seus avós ou bisavós. Como exemplo, podemos mencionar o manto sagrado de penas vermelhas dos Tupinambá de Olivença. Os remanescentes deste grupo, ao verem, pessoalmente, o manto na famosa exposição dos 500 anos do Brasil2 juntaram os relatos dos mais velhos com aquilo que estava na sua frente, para fazerem uma guinada na compreensão de seu passado e iniciarem um movimento de retomada de sua identidade, apesar de supostamente extintos há muito tempo. Lembramos, também, do caso de um músico popular baiano, Walter Levita, que, após anos de carreira no Rio de Janeiro como cantor de rádio nos anos 50, tinha ficado sem nenhum dos discos gravados na época e somente, recentemente, conseguiu estes documentos que fizeram com que ele assumisse a sua carreira artística de forma diferente. Citamos o caso de casas de candomblé atuais que nunca souberam ou nunca tiveram acesso a gravações que foram realizadas 60 anos atrás e que querem definir novas formas de relação com a sociedade, frente aos confrontos constantes com igrejas evangélicas, precisando entender-se como comunidades com importância histórica. Estas, hoje, requerem sempre mais comprovações escritas (documentos, jornais) e não somente relatos orais que para a sociedade circunvizinha, cunhada no poder da escrita mesmo que não tenha valor, pensemos na burocracia da firma reconhecida em cartório, nem sempre são suficientes.

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Trata-se de uma referência ao projeto de minha autoria, atualmente em fase de andamento, com o título: O jogo de espelhos: as gravações históricas de Melville Herskovits na percepção e recepção do candomblé baiano hoje. (Pesquisa apoiada pelo CNPq e pelo PIBIC/UFBA). Exposição “Brasil 500 anos” organizada em São Paulo em 2000. O manto mostrado nesta exposição é originário do acervo do Museu Nacional da Dinamarca, Copenhagen. É uma capa de penas vermelhas de Guará, coletado no Brasil entre os séculos XVI e XVII (com 127 x 54 x 25cm). Ver o catálogo da exposição Brazil Soul and Body, organizado pelo Museum Guggenheim em 2002, p.77.

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O Jogo de Espelhos: reflexões sobre a questão da reintegração de gravações históricas do candomblé baiano nas 1 comunidades atuais



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Nestes encontros com objetos, documentos e gravações, e um passado por vezes bastante distante, as pessoas podem encontrar sua identidade, permitindo abrir janelas sobre o passado, mesmo que às vezes limitadas, ou então bastante promissoras em relação à possibilidade de compreensão de si mesmo ou de uma época. Em geral, existem poucos documentos do passado destas comunidades, já que estas tradições ou contextos culturais, baseiam-se na transmissão oral, dificilmente tivemos acesso a outras formas de documentação, a não ser recentemente. Mas a alegria imediata pela possibilidade de aproximação ao passado, às vezes se desfaz rapidamente, ou ao menos é exposta a dúvidas e questionamentos que podem dificultar o acesso ou a reintegração pretendidos. Questões de poder político e formas de submissão, de perseguição e aceitação ficam visíveis e se tornam urgentes na sua discussão, nem sempre capaz de abolir o círculo vicioso estabelecido entre os agentes/instituições culturais envolvidas e seu contato com pessoas, tanto na época da gravação, quanto na da reintegração. Imediatamente, surgem também questões relativas a arquivos, direitos e à disponibilização de materiais. Quais os papéis que os diversos grupos tiveram historicamente e no momento atual? Quais os representantes dos grupos originalmente envolvidos? Por vezes estes contatos acontecem através de terceiros, necessitando de uma imediata apresentação e definição dos papéis dos envolvidos. Quais as políticas atuais em relação a gravações históricas e sua reintegração nas comunidades de origem ou de seus prováveis descendentes? Enquanto em diversos países já houve iniciativas em relação à reintegração de materiais históricos, no Brasil, em especial em relação a gravações arquivadas fora do país, ainda pouco foi feito. São estas as questões a serem abordadas em seguida. De um lado, sabemos que uma das ferramentas mais importantes da Etnomusicologia, quase como condição sine qua non, tem sido a gravação musical como documentação e única forma da materialização do som, desta forma permitindo a sua posterior análise científica. Todas estas etapas, tradicionalmente e durante muitas décadas, foram realizadas do ponto de vista do pesquisador externo às comunidades documentadas, mas hoje, pode ser observada uma busca por realizá-la da forma mais transparente e positiva para os envolvidos, prevendo as necessidades de compartilhar as discussões sobre usos e arquivamento, acessos por terceiros e royalties. Por outro lado, sabemos de diversos esforços em trabalhar com gravações históricas sob o ponto de vista da transformação cultural e musical, levando em conta processos de modernização, dicotomicamente expressos nos termos tradição e modernidade, ou designado como “re-studies”. Muitas vezes estes trabalhos observam apenas as questões concernentes a um estudo supostamente comprometido com as questões científicas e comensuráveis das transformações ocorridas, sem que os participantes das gravações originais ou de “re-studies”, detentores das

Acreditamos que este tipo de discussão se torna mais imperativo em países, onde: 1) ocorre uma discussão na busca de uma redefinição de antigas relações de centro e periferia, que se tornam visíveis nas estruturas políticas, econômicas, culturais e educacionais, assumindo um papel ativo na proposta de inverter as antigas relações hierárquicas de poder imposto e submissão a estruturas vindas de fora; 2) ocorre, atualmente, uma discussão política buscando redefinições de papéis sociais e culturais de grupos minoritários, até então dizimados e/ou subjugados, mas hoje conscientes da necessidade de serem interlocutores ativos no processo da definição de seu futuro, reivindicando novos papéis, inclusive com representação política, direitos a uma educação diferenciada com o objetivo de desfazer processos históricos de exclusão; 3) existe, historicamente, situação de um país com passado colonial, sobre o qual representantes de outros países pesquisaram (em todas as áreas, flora, fauna, diversidade étnica, culturas exóticas e supostamente próximas a sua extinção) por de deduzir que, supostamente, não teriam tido capacidade de fazer este tipo levantamento por conta própria, mantendo-se nesta situação por muito tempo; 4) existem, hoje, estruturas de ensino/pesquisa compatíveis com as de outros países do chamado primeiro mundo, compatíveis, não, necessariamente, em relação à proporção do número de instituições/distribuição demográfica, em relação a recursos, acesso à informação e acervos já estabelecidos (que são o resultado e reflexo das etapas anteriormente mencionadas), mas, sim, em criatividade, vontade, potencial e necessidade de entender a inclusão de sua própria história, cultura e/ou espaço físico-geográfico com seu potencial de forma concreta como possibilidade de uma poderosa ferramenta política, dentro de seu país e para fora dele. Resumindo podemos dizer que no caso concreto da etnomusicologia brasileira - como uma sub-área das Artes e das Ciências Humanas na busca pela aceitação/ integração respeitosa da diversidade cultural de seres humanos em um país chamado Brasil - as antigas estruturas de centro/periferia, colonizador/colonizado, poder/submissão, ativo/passivo, são desmontadas e substituídas pelos primeiros resultados de buscas locais em torno do reconhecimento da diversidade cultural. Buscas que tanto invertem as estruturas existentes, quanto necessitam propor outras novas, mais adequadas para a realidade em questão. Portanto, é preciso examinar algumas questões concretas que surgiram a partir da existência da própria etnomusicologia e do postulado da

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respectivas tradições, tivessem assumido um papel mais ativo, ou teriam sido os possíveis proponentes ou participantes ativos no processo da discussão e possível reintegração do conhecimento a ser observado a partir das gravações em questão.



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documentação, através de gravações com a dissociação geográfica destas gravações dos contextos de origem e das dificuldades de acesso às mesmas pelas culturas documentadas. Parte importante dos estudos etnomusicológicos atuais e da definição de ferramentas da etnomusicologia têm sido as assim chamadas gravações históricas, materializando e, supostamente, objetivando, os sons musicais de gerações e tradições anteriores. Infelizmente, muitas delas, nunca ou somente muito tardiamente, tiveram um contato posterior à gravação com o contexto do qual se originaram, pois, raramente, cópias foram disponibilizadas para os participantes ou então para instituições nos respectivos países. Partindo desta premissa, estas reflexões pretendem discutir questões surgidas na busca de uma re-contextualização de uma das famosas coleções de gravações históricas oriunda do mundo da cultura afro-brasileira. Trata-se das gravações do antropólogo americano Melville Herskovits (1895-1963) e das pouco conhecidas de Pierre Verger (1902-1996), fotógrafo e antropólogo francês radicado na Bahia desde 1946. Herskovits passou pela Bahia entre novembro de 1941 e fevereiro de 1942, dando origem a uma coletânea que, predominantemente, documenta a música de diversas casas de candomblé da época, nem todas identificadas nominalmente. De difícil acesso - no arquivo da Library of Congress em Washington, D.C. nos EUA - estas gravações, pelo que nos consta, nunca foram reintegradas na memória do povo de candomblé e, tampouco, avaliadas em relação a sua validade e representatividade, pois, em última instância, foram o resultado de acordos individuais de pessoas da época que se dispuseram a participar da pesquisa. A gravação de Verger, realizada em 1958/1959, desde o início teve como objetivo a realização de um disco, que, por razões ainda não elucidadas, nunca foi concluído, embora quase tivesse sido prensado. Embora os participantes a tivessem ouvido na época, e até hoje se referem à gravação, não parece ter ficado com os integrantes, talvez na expectativa da rápida finalização. Esta gravação recentemente foi reencontrada na Fundação Pierre Verger. A intenção de trabalhar com estes materiais é antiga, embora não tivesse sido muito fácil. Durante a última década foram levantados materiais relativos a esta temática, incluindo a aquisição de cópias das gravações musicais de 1941/42, localização de contemporâneos desta pesquisa no contexto local de Salvador, levantamentos preliminares sobre materiais complementares como as pesquisas de Camargo Guarnieri em 1937, fotografias de Pierre Verger dos anos 40 e 50 e outras gravações, também dos anos 50. Desta forma tentou-se preparar uma base para desvendar o percurso das pesquisas de 1941/42, já tendo possibilitado diversos resultados preliminares (LÜHNING 1996 e 1997), embora não tivesse sido possível chegar a resultados conclusivos. Somente, recentemente, surgiu a oportunidade de ter acesso a documentações originais inequivocadas em relação à possível identificação de uma parte dos lugares da pesquisa e seus participantes

Neste momento, somente podemos apresentar questionamentos diversos em relação ao projeto em andamento que ganhou uma dimensão antes não imaginada ao começar a delimitar as ações, incluindo uma participação ativa de representantes das casas envolvidas. Estes fatos incentivaram a elaboração do presente trabalho, coincidindo, por sua vez, com questionamentos recentes em relação a definições operacionais de conceitos como propriedade intelectual, incluindo o direito de acesso a materiais arquivados distantes da origem, e discussões de possíveis propostas para uma nova política de arquivos, especialmente, se tratando de conhecimentos alienados do contexto original há muito tempo. São questionamentos que, em última instância, convergem para uma discussão de possíveis reajustes na definição de novos campos de atuação etnomusicológica, incluindo questões como responsabilidade social e ética de pesquisas e seus resultados materiais, necessitando delinear novas parcerias e novos papeis entre os coadjuvantes do contexto de pesquisa de campo e de documentação. Ao formatar o nosso projeto em fase de execução, uma premissa importante foi a necessidade de democratizar o acesso ao material a ser trabalhado, invertendo o fato de não acesso e de pensar em formas de envolver as pessoas de forma ativa, não somente como figurantes dentro de um projeto acadêmico, mas como agentes participativos na reconstrução de sua história. Parte fundamental é a inclusão de pessoas das respectivas comunidades para assumirem o papel de representantes, porta-vozes, e até de participantes/ pesquisadores no processo de desvendar a sua história, documentada nas gravações, desta forma também invertendo os papéis de pesquisador/pesquisado, trazendo à tona novas formas daquilo que poderíamos denominar como uma “etnomusicologia participativa”. Voltemos mais uma vez para a questão dos arquivos para explicitar as preocupações:

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(acesso ao material do Schomburg Center em Nova York, no seu sucesso regido por uma imensa sorte, e encontro com a filha de Melville Herskovits em fevereiro de 2003), além de ter localizado, no acervo da Fundação Pierre Verger, o material da gravação feita por Verger em 1958/1959. Devido a uma intensificação de contatos com casa de candomblé e preocupações com o percurso e as obrigações da etnomusicologia brasileira que, ao meu ver, está apresentando características e potencial de uma “etnomusicologia participativa” (LÜHNING 2003), o atual projeto foi elaborado no sentido de ir além de uma proposta de identificação de materiais históricos ou de um re-estudo. Neste sentido foram feitos contatos com a Library of Congress, propondo uma parceria na troca de informações sobre as identificações, incluindo possíveis restrições feitas pelas comunidades, pela disponibilização de cópias oficias para os descendentes dos participantes da época.



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Ocorrem sempre mais casos em que instituições detentoras de material histórico de interesse e/ou importância são procuradas por comunidades ou representações governamentais para conseguirem reintegrar gravações (ou outros documentos) na memória coletiva ou específica de comunidades representativas por certas tradições. Infelizmente, estas nem sempre têm sucesso nas suas buscas por atendimento nas peregrinações da reconstituição de um passado que se rescinde de documentos escritos que na “sociedade de papel”3 ganham uma importância enorme.4 Ao mesmo tempo museus e arquivos do hemisfério norte, detentoras de objetos, documentos e gravações do tempo colonial estão sendo questionados sempre mais pelos representantes de culturas e comunidades que na história ficaram a margem das grandes decisões políticas, muitas vezes tendo ficado sem voz, representação ou visibilidade, a não ser através de documentações que lhe renderam o papel de seres exóticos em posição subalterna ou supostamente em risco de extinção. Lembremos apenas as justificativas, a princípio bem intencionadas, dadas no início do séc. XX para realizar o trabalho de registro, entendendo que a materialização de sons nas gravações teria uma importância maior do que a cultura viva em constante processo de transformação. Mesmo assim percebe-se que, apesar de primeiras tentativas na busca por reintegração de informações na história destes grupos ou nações, parece que os dois lados ainda não acharam as formas adequadas para negociarem ou executarem estas trocas. Elas também representariam, de certo modo, uma forma de reparação de acontecimentos históricos pelos quais as partes atualmente envolvidas não têm culpa individual, mas que representam tendências a serem refletidas com mais atenção no momento atual em que países periféricos e excluídos clamam por seus direitos e novas formas de integração no cenário político internacional. Se um lado ainda não apreendeu a se abrir e entender a dimensão política, social e cultural de seus acervos, que deveriam ficar acima de questões de acesso, o outro, interessado muitas vezes, ainda não aprendeu a se colocar de forma construtiva e a sintonizar as suas reivindicações justas. Entendemos, portanto, que se afere às gravações históricas não somente importância nas dimensões afetivas, culturais ou étnicas, mas também extremamente políticas, pois elas representam estruturas de negociação de conhecimentos e acesso a bens culturais e seus valores simbólicos. Infelizmente, muitas vezes seria simples demais achar que a discussão destas questões resolveria a dimensão de novas posições e campos: há fatores complementares que tornam a discussão ainda mais complexa. 3

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Metáfora para a sociedade demais crente na importância dos documentos escritos, em alusão ao termo «cidadão de papel», cunhado por Gilberto Dimenstein. Infelizmente o contato com arquivos não é muito fácil, sei de diversos casos em que o acesso foi impossível, nem tanto pelo impedimento da parte de arquivistas, mas sim de regras burocráticas.

Já nas culturas de origem podem existir outras formas de organização do conhecimento e do acesso ao mesmo, com uma noção do individual e de posse individual muito menos explícita. Isso leva a outros questionamentos que complicam o contato entre os detentores de direitos sobre gravações e os descendentes dos protagonistas destas mesmas gravações. Quem são hoje os representantes de quem? Quem são hoje os responsáveis por quem ou o quê? Quem são os possíveis interlocutores entre os lados envolvidos? Quais as instâncias representativas destas comunidades, nem sempre tão democráticas, mas cunhadas em outros princípios hierárquicos que tornam uma simples transposição de experiências e materiais mais complicada do que imaginado? Como diferenciar um interesse pela reconstrução da história, algo nem sempre existente, de outros possíveis interesses? Como trabalhar com a outra dimensão de tempo e com a outra dimensão de representação que os meios de fixação do som apresentam para os envolvidos? Para que as reintegrações possam acontecer, não é suficiente decidir reintegrar, mas, torna-se importante pensar quais pessoas ou estruturas seriam as mais adequadas para serem depositárias destes conhecimentos ou acervos antigos, que, em geral, são representações de um coletivo cultural, mesmo que na voz de um ou de outro que expressa saberes transmitidos oralmente. Com outras palavras: onde e com quem serão deixadas/arquivadas as cópias de gravações históricas ou objetos devolvidos, sem repetir simplesmente os formatos experimentados até então pela história? No caso das casas de candomblé, muitas delas hoje estão criando memoriais de sua história, visando algo parecido com pequenos museus. Mas o que acontecerá de fato com as possíveis cópias das gravações de Herskovits que de fato pertencem à história das casas? Ficarão tão intocáveis como nos acervos que cuidaram durante muito tempo pelo fato de sua situação legal não ter sido resolvida? Será que por este motivo não caberia aos arquivos ou outras instituições “devolver” os respectivos materiais (mediante uma efetiva identificação que servirá também para os arquivos de origem) já no

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A idéia do acervo museológico é cunhado em noções de pertencimento e posse que se baseiam na existência da ação de um colecionador/pesquisador, responsável pela aquisição de objetos e/ou gravações que por sua vez as entregou às instituições, em geral européias, nas quais se tornam posse inalienável de estruturas institucionais, regidas pelo excesso de burocracia, gerando dificuldades de acesso. Reconhece-se que, sem dúvida, trata-se de materiais bem cuidados, porém distante de suas raízes, no máximo tentando ganhar funções de representação simbólica de mundos e culturas desconhecidas, porém, sem, em geral, conseguir deixar de espelhar laços de dominação cultural/política ainda não superados. Embora os museus/arquivos tivessem na sua base diversos colaboradores, em geral, seguem políticas que expressam um pensamento monolítico que representa algo individual na posse de uma soma de coleções.



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formato de Cd´s prontos para uso, evitando cópias e multiplicações indevidas, movidas por interesses pessoais e até ganância? Como fechar o hiato entre a informação musical/ cultural em si e a possível e desejada absorção de sua representação simbólica por pessoas das respectivas culturas? As formas de identificação/aproximação/inclusão de documentos históricos até a presente data espelham o despreparo e a incapacidade dos pesquisadores e dos arquivos em lidar com estas questões5, pois em geral, foram pensados a partir do lado que detêm os objetos, sem que tivessem ocorridos comunicações entre as partes envolvidas. Acredito que se torna indispensável repensar estas estruturas para que de fato haja uma reintegração de conhecimentos e suas materializações (gravações ou outros objetos), portanto, estas reflexões precisam ser incluídas, aos poucos, na administração e projeção política de instituições (museus ou arquivos), na preparação de funcionários e técnicos, bem como, na preparação de membros de instituições de ensino e pesquisa. Entendemos, que o aspecto mais importante é a disponibilização integral dos materiais para que possam servir às comunidades de descendentes dos participantes das gravações originais ou outras instâncias representativas dos países em questão. Assim o círculo se fecharia, realizando ações concretas no diálogo entre culturas em pé de igualdade, vislumbrando a possibilidade da partilha de bens: tanto devolvendo conhecimentos alienados às comunidades, quanto permitindo que, nos países dos arquivos, primeiros os documentos, devidamente identificados pelas comunidades dos descendentes dos participantes, serviriam como exemplos para um constante conviver com a diversidade cultural, entendida como cultura viva, e não somente como museológica. Espera-se que as reflexões sobre a questão da reintegração de gravações históricas possa trazer subsídios para a discussão sobre propriedade intelectual de uma forma geral, além de conseguir trazer estímulos para a reintegração efetiva das gravações de Melville Herskovits e Pierre Verger com resultados satisfatórios para todos os envolvidos. Também espera-se conseguir propor respostas, ao menos em parte, para as perguntas aqui levantadas e traçar novos caminhos possíveis na preservação respeitosa da propriedade intelectual de gerações anteriores e sua inclusão na construção de novos conceitos de patrimônio cultural no presente.

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Lembramos de alguns exemplos de tentativas bem sucedidas, como as relatadas no volume Music Archiving in the World, apresentando trabalhos por ocasião dos 100 anos de existência do arquivo de Fonogramas de Berlim em 2002, mencionando em especial os trabalhos de Seeger e Gray.

GRAY, Judith.. “Performers, recordist, and audiences”. In: BERLIN,Gabriele; SIMON, Artur (edit.), Music Archiving in the World. Berlin, : VWB -Verlag für Wissenschaft und Bildung, 2002. p. 48 -53. (Papers presented at the th Conference on the Occasion of the 100 Anniversary of the Berlin Phonogramm-Archiv). HERSKOVITS, Melville J. Tambores e tamborileiros no culto afro-brasileiro. Boletin Latino Americano de Música, Ano VI, p. 99-113, 1946. HERSKOVITS, Melville J; Waterman, Richard A. Música de culto afrobaiano. Revista de Estudios Musicales, ano 1, n. 2, p.65-127, 1949. LÜHNING, Ângela. O compositor Mozart Camargo Guarnieri e o 2º Congresso afro-brasileiro em Salvador, 1937. In: SANSONE, Lívio ; SANTOS Jocélio Teles dos (Orgs.). Ritmos em trânsito.: sócio-antropologia da música baiana. São Paulo: Dynamis Editorial, 1997, p. 59-72. ETNOMUSICOLOGIA participativa: derrubando portas abertas? Das novas vozes nativas e dos ainda velhos discursos dos pesquisadores». In: ENCONTRO DA ANPPOM, 14. ,2003, Porto Alegre. Anais ... Porto Alegre, 2003. 1CD-ROM. OS PRIMEIROS registros sonoros da música do candomblé ou as armadilhas da pesquisa histórica na etnomusicologia». In: ABA,1996, Salvador. Manuscrito GT19...Salvador, 1996. SEEGER, Anthony. Ethnomusicologists, Archives, Profissional Organization and the Shifting Ethics of Intelectual Property». Yearbook for Traditional Music, v. 28, p. 87- 105, 1996. ARCHIVES as Part of Community Traditions. In: BERLIN, Gabriele; th SIMON, Artur (edit.). Music Archiving in the World. Occasion of the 100 Anniversary of the Berlin Phonogramm-Archiv). Berlin: VWB -Verlag für Wissenschaft und Bildung, 2002. p. 41 -47 (Papers presented at the Conference th on the Occasion of the 100 Anniversary of the Berlin Phonogramm-Archiv). Sullivan, Edward J. (Edit). Brazil: Body and Soul. New York: Guggenheim Museum, 2002.

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REFERÊNCIAS



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Anthony Seeger2

Introduction These are exciting times for the preservation of cultural heritage. Many of us who have been working in audiovisual archiving for decades are suddenly encountering large and highly motivated audiences and growing national and international concern about the safeguarding of the diversity of languages, music, dance and other local traditions. Archives in many countries are inventing creative solutions to common problems that face institutions and local communities (SEEGER and CHAUDHURI, 2004). At the same time, the member states of UNESCO are in the process of evaluating and possibly ratifying a new convention on the safeguarding of oral and intangible heritage. In Brazil, the Museu Paraense Emilio Goeldi and the University of Para organized this event on intellectual property and cultural patrimony, at which these remarks were delivered. We have probably not been as busily involved in these issues since the 1950s. UNESCO conventions for the preservation of natural and tangible cultural heritage, such as the Australian barrier reef, the buildings of Ouro Preto, and other natural areas and important historical sites were passed decades ago. The new document is intended to safeguard what human beings carry in their minds—their intellectual activities, the languages they speak, and other knowledge passed orally rather than represented in physical objects. A great deal of human knowledge is 1

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Trabalho apresentado no Seminário “Propriedade Intelectual e Patrimônio Cultural: protecçao do conhecimento e das expressões culturais tradicionais,” Belem de Pará, Brasil, 15 de Outubro de 2004. O trabalho foi escrito em Inglês, mas foi apresentada em Português com a distribuição de uma folha de pontos centrais, apresentada em Apêndice A. Anthony Seeger is an ethnomusicologist, anthropologist, archivist and musician. He was Professor Adjunto of the Programa de Pós-graduação em Antropologia Social (PPGAS) at the Museu Nacional in Rio de Janeiro (1975-82), Director of the Indiana University Archives of Traditional Music (1982-1988), Curator and Director of Smithsonian Folkways Recordings of the Smithsonian Institution in Washington DC (1988-2000), and is currently Professor of Ethnomusicology at the University of California at Los Angeles. He is the author of a number of articles on archiving, on intellectual property related to music and archives, and related subjects, among them Seeger 1992, 2001, 2002 and 2004 as well as Seeger & Chaudhuri 2004.

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Audio And Audiovisual Archives, Intellectual Property, And Cultural Heritage: some1comparative considerations



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intangible, both in the past and today. But great deals of our oral traditions are passed through media: they are being transmitted by technologically mediated oral/aural transmission. Culture bearers are making recordings and those recordings are eventually employed in the transmission of traditions to younger generations. Archives can play an important role in this process because they collect, organize, and store the recordings until they are needed. Archivists are beginning to see themselves as part of local and national cultural processes. The theme of the 2003 annual meeting of the International Association of Sound and Audiovisual Archives (IASA)3, held in South Africa, was “Archives and Society.” This was the first time IASA, known for its attention to technical issues, had devoted a conference to the relationship between archives and the social, political, and cultural processes of local communities and nation states. What are the roles of archives in countries that have suffered the kinds of conflict and division created by Apartheid in South Africa or the huge inequality in income and education found in Brazil? What does it mean for people who could not even enter the door of archives under previous régimes to be able to walk in, read the documents, and listen to the voices of both their oppressors and their own people? What are the structures and roles of archives in the process of peace and reconciliation? These topics were new to many IASA delegates, but of urgent importance to citizens of many nations, including Brazil. Archives can be disputed resources as well. The deliberate bombing of the library and archives in Bosnia and the looting and destruction of museums and other cultural institutions in Iraq have called our attention to the danger of storing unique information in a single place. These disasters make a decentralized approach to preserve human wisdom ever more urgent. Decentralized archives, perhaps using multiple Internet sites for backup, could also encourage the kind of large-scale sharing and new collaborations, possible today and essential for access by a broad sector of the population.

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3

The International Association of Sound and Audiovisual Archives (IASA) is the most important organization for issues relating to the technical aspects of audio preservation and many facets of the organization and procedures of audiovisual archives. In addition, IASA has a Research Archive Section, chaired by Anthony Seeger ([email protected]), with Vice Chair Shubha Chaudhuri ([email protected]) and Secretary Grace Koch ([email protected]). Research archives have their own challenges and requirements, some of which have been highlighted by publications of members of this group, and also in Seeger & Chaudhuri 2004, which is available for free download on the Internet, as well as in the form of a book.

As I will discuss below, people are using the audiovisual materials found in old collections in unexpected new ways. At the same time, thousands of new collections are being made around the world, either by specialists in documentation from outside many communities, or by members of communities documenting themselves without the help of a researcher, documentarian, or government agency. An unstated problem with these new uses and new collections is that the contents of many archives will not survive to become accessible and useful for future generations. While paper and good ink have a fairly long life, photographs, audio recordings, video recordings, and electronic files are far less stable. Either they are fragile themselves—as in the case of wax cylinders, audiotape, CD-Rs and video images, or the carriers (both hardware and software) are changing so profoundly that abandoned formats are unplayable. There is another irony here: many local communities are documenting their own lives and arts for the first time—but on media that cannot be expected to survive more than a few years. They are being encouraged to document themselves but there is no similar movement to enable them to preserve for future generations the documents they generate. It is much easier to document than to ensure preservation and access over the long term. Long-term preservation isn’t much fun to think about—it is difficult, expensive, and requires long-range planning and investment. Even though we are in the grips of a fascination with the past, and a desire to capture our cultural diversity as it appears to disappear before our eyes, archives around the world are suffering from lack of funds, bureaucratic indifference, and attractive new media projects that governments and NGOs tend to prefer (new projects give prestige to the donors; ongoing expenses are only a burden). Even the famous Berlin Phongramm-Archiv, founded in 1900, has lost much of its staff and funding. The Archive of the Instituto de Cultura Popular in Rio de Janeiro contains many fine collections, but struggles to maintain them and to enlarge its collection. I am certain the same is true about most of the rest of Brazil’s audiovisual repositories. Around the world, archives struggle to maintain adequate space and staff to deal with increased expectations of access and use. This is a very strange situation: just when we recognize the significance of our intangible cultural heritage many of the institutions, whose work has helped to preserve part of this heritage, are threatened with loss of funds or closure. Many audiovisual documents from the late 19th and early 20th century have simply disappeared—lost to floods, fires, disinterest, and temporary lack of relevance. Those collections fortunate enough to find their way into professional archives have suffered a variety of fates—many survive precariously as I have

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New Audiences for Old Collections and New Collections from Old and New Communities



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described above. But aside from their fragility, one of the most important things about these archived materials is that their potential audiences have changed. A previously unimaginable audience now finds the materials important and useful: the members of the communities recorded by documentarians (scholars and others) in the past (this is more fully described in A. (SEEGER, 2001). Members of communities are consulting archives for a variety of reasons—not only to revive their past traditions. Here are some examples:



5. The speed with which local languages are being lost (dying out in the literal sense that their last speakers are dying) is alarming. If language is a major carrier of our diverse intangible heritage, the loss of languages needs to be recognized for the problem it is. In a number of countries archives are being consulted for the purposes of language strengthening and revival. The linguists are ahead of the rest of us in their creation of on-line digital repositories for community access. One of the reasons they are ahead of people in other fields is precisely the challenge of intellectual property—everyday speech is not usually copyrightable under national legislation.

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1. The songs of the indigenous peoples in Australia are intimately associated with geographic space. Many such sacred songs became admissible in court as evidence for land claims. The “old stories and songs” recorded by anthropologists suddenly had a new and topical use that profoundly benefited the communities they recorded. (See, among others, KOCH, 1997) 2. In Cape Town and Durban, South Africa, members of certain communities that were removed by the Apartheid government in the interest of ethnic separation are using archives to establish claims to indemnization for their former homes and belongings. 3. In the USA native communities are using archives to recover forgotten songs and ceremonies for the purpose of using the songs again in both traditional and new contexts. But this trend is not restricted to indigenous communities—many people are discovering the artistry of previous generations by consulting the collections of audiovisual archives. 4. Also in the USA, communities are using archives to assemble materials they know will disappear if they are not properly organized and preserved for the future. The UCLA Department of Ethnomusicology Archive has projects in several urban communities that are assembling and documenting their own materials with the assistance of the archive, which has undertaken to assist in the preservation and “forward migration” of the resulting digital files.

6. In Brazil, the rights of indigenous peoples to their cultural heritage may someday rest on its presence in an archive.

Archives and Intellectual Property: The Challenge of Shifting Ethics and New Legislation Most archives face difficult challenges in making their collections accessible because of changing ethical expectations and changing legal restrictions regarding access to materials in their collections. When audiences were limited to scholars and local communities were presumed to be too distant to use archives, and when recording equipment was too large and cumbersome to be used secretly, it was assumed that the recordist had the rights to anything he or she recorded. This position was supported both by copyright legislation in some countries and by a document of the International Council for Traditional Music in 1956 (ICTM 1956). Most archival databases did not even include categories of access, restriction by members of communities, intellectual property control, and the like. Changing attitudes toward intangible heritage of all kinds, changing political power, the discontent of artists around the world with the way their heritage is being exploited by others, the concern of some nations about their cultural heritage, and the work of UNESCO and WIPO (World Intellectual Property Organization), are all leading to profound changes in the way we must think about archived materials. New legislation and new ethics require new forms of archival organization, and a considerable rethinking of all aspects of archives, from their acquisition policies to the organization and storage of collections and to dissemination and access practices. I briefly discuss each one below: 1. Acquisition. Increasingly, collections are the result of collaborative work undertaken jointly by researchers and members of local communities. The expectations and conditions regarding access are usually made clear to those being recorded from the very start. These practices can be improved, but new collections should reflect current legislation and attitudes of respect toward the rights of those being recorded and their preferences regarding access and use. We know current technology: rights need to be established for access at all, for non-profit use, for-profit use, Internet distribution, and the like. Two major

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I could go on at some length about the possible uses of the materials in audiovisual archives that were never imagined by their founders. This should be enough, however, to demonstrate that archives are no longer deserted places where old stuff of no use is deposited to molder in forgotten corners. Archives can be lively places, filled eager discovery, where individuals and communities can come not only to use the materials but also to help the archives staff in their tasks, and assist in growing new collections.



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problems remain: older collections for which such access rights were never clarified and future access by people and for purposes we cannot imagine today. a. Older collections are valuable because old recordings often document traditions that are no longer actively performed. The intellectual property issues for many of them prevent their wide distribution, even to the communities where they would be most useful. Legislation should include some kind of provision for dealing with older recordings—both commercial and non-commercial—since they represent an important facet of today’s cultural heritage. b. The second problem is imagining future accessibility. None of us knows the technology and needs of future generations, but we must assume they will be different. We need to create legislation that includes some flexibility for the long term. Who, for example, should have the rights to the intangible heritage of people for whom there are no known descendents—it could be a clan, a community, or a society? What if access to such information could save millions of lives, or improve the livelihood of people in other groups? It is very important not to assume we have asked all the right questions and know how things are to be used in the future. Very intelligent people, a hundred years ago, could not have imagined the roles their collections would play today in Australia, Brazil, and elsewhere; thirty years ago most of us could not have imagined the importance of the Internet in information exchange. 2. Organization. The cataloguing of collections today must include important fields related to tracing rights—composition or origination rights, performance rights, and many other kinds of rights that pertain to specific pieces and collections. This has to be more subtle and extensive than has been established for commercial recordings in Europe and North America (beware the limitations of commercial models of metadata). Archives always face much more complicated issues in cataloguing than libraries of commercial recordings. There are many kinds of rights in the world’s societies, and we need to figure out ways to reflect and respect them in the organization and the cataloguing of our collections. 3. Preservation. Who can and should preserve secret materials? There is no question that some communities have been very happy to find sacred materials in museums—but should the recordings remain in the archive, or should they be returned? What should happen to copies? An archive in one Vanuatu has a special room called the “Taboo Room,” where sacred knowledge and items can be deposited, but not consulted except by those who have rights to it. Rights holders take great pleasure to see the room, and to know the knowledge is there, but not consultable (AMMAN, 2001). 4. Dissemination. Dissemination used to mean circulation in limited edition LP recordings to a small number of scholars and specialists or

5. Funding. Many funding agencies will only fund archival projects that have an Internet or mass distributed end. But if the use of the materials is limited by national legislation or ethical considerations, archives cannot apply for these sources of funding and the original materials may not be preserved at all. There has been a lot of emphasis on self-supporting projects for archives, such as CD recordings of music, but attention must also be given to their noncommercial, limited distribution holdings as well. I am not arguing here that intellectual property issues should be ignored—far from it. But if they are going to be applied broadly to archival collections, special consideration needs to be given to existing materials whose status is unclear, and to the difficulty of predicting future uses and needs.

Some Benefits of Obtaining Rights for Dissemination: The Smithsonian Global Sound Project and the ARCE Archive in New Delhi, India As the archivist involved in the Smithsonian Institution’s Global Sound Project, I was very concerned about creating a means of distributing parts of archival collections in a way that benefited artists, archives, and users alike. The idea was to create a network of archives that would clear rights to parts of their collections, digitize them, and make the music and contextual information available on the Internet for a fee through a Smithsonian Institution Internet portal. The income from each download or license is to be divided equally (50%/50%) between the Smithsonian Institution and the archive that provided the sound (the Smithsonian for creating and maintaining and expanding the site, the archive for providing the material). Of the archive payment, 50% is supposed to be paid to the artists (or their communities) and 50% kept by the archive for its work in acquiring, housing, and protecting the materials. The idea here was partly symbolic: to ensure that artists received money for their art (and also the prestige associated with money) and that archives received some funding for their work (and thus the prestige associated with money from outside sources).

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publication in specialized books. Today, however, forms of dissemination include CDs, CD-ROMs, and the Internet. Some “traditional” music has been sampled and used by popular artists to make extraordinary amounts of money while denying to the original artists any part of the success and fame. Even when nothing in an archive has ever been used that way, the suspicion that it COULD be so used makes work very difficult today. Archives are often criticized because users find it difficult to access their materials. One of the reasons it is difficult is because of intellectual property and ethical concerns that archives must deal with every day.



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One of the first archives selected to participate in the Global Sound project was the Archives and Research Centre for Ethnomusicology (ARCE) in New Delhi, India. It is a well-organized audiovisual archive that holds over 140 collections of recordings of music from many parts of India. Most of these were recorded by researchers and deposited in ARCE with a carefully constructed (but pre-Internet) contract indicating the limitations of access and usage of the materials. The only real challenge for ARCE participation in the project was in the area of intellectual property rights. Indian law had changed since many of its collections had been made. Under current Indian copyright legislation the performers control the rights to their performances, not the person who records them. Thus, written permissions needed to be obtained from artists before their performances could be uploaded onto the site and made available for download or license4. After some discussion, the Smithsonian Institution supplied funds to ARCE to pay for an employee dedicated to clearances. First ARCE consulted all the living depositors of field-recorded collections, and asked whether they would agree to make parts of their collections available on the Internet—both by the Smithsonian Global Sound project and by ARCE on its own site. If so, they were then asked whether they could contact any of their artists in order for ARCE to obtain the artists’ consent for such use. This would require each artist signing a contract. The result of that first step was that most of the collectors agreed to allow their collections to be used on the Internet if the artists agreed. Many of them had suggestions of musicians to contact and knew where to find them. ARCE then contacted as many of the musicians as it was able to reach. Since Indian Classical music is considered high status and is most jealously protected by its performers, the ARCE started with musicians of non-classical genres—brilliant musicians, but of less popular genres. The artists were offered a contract granting their permission to make their materials available on the Internet for paid uses, and stipulating their percentage of the receipts. Every artist received an advance on each track amounting to the estimated income from the first 125 downloads. This had two effects: artists received some money immediately and ARCE would only need to contact them again after quite a few downloads—some of them perhaps never again. The results should be interesting for archives everywhere, regardless of whether they are part of Global Sound:

4

The objective was to have all materials on the site available, not only for download by the general public, but cleared for synchronization with commercial films and other projects. The latter are a lucrative source of money when they can be arranged.

2. Many musicians supplemented the original information collected about the tracks authorized with full translations, artist photographs, and names of accompanists that may not have been gathered originally. 3. Several artists donated entirely new materials of their own to the Archives, whose collections were thus enriched—this time by members of the community rather than research scholars. The conclusions to be drawn from this experiment in obtaining intellectual property rights for archived parts of the cultural patrimony of India is that it is possible to obtain the contracts necessary for paid use of the materials if the following criteria are met: 1. The archive is given the resources and personnel to track down the rights holders for parts of its collection. 2. The archive can locate the collectors of the materials (or has the rights from them already to disseminate the recording). 3. The archive can locate some of the artists or their heirs to ask permission. This may require travel and patience. Heirs are particularly difficult to negotiate with, as they are often only interested in money; artists often appreciate the opportunity for wide dissemination of their art. 4. The contract is clearly written and includes all the rights required under national legislation (as well as those anticipated by international legislation being drafted). This contract not only liberates the materials agreed upon, but also protects the artists’ rights to all the other materials in the archive. The new contract provides a good chance to review the artists’ recordings and clarify rights issues. 5. The archive can provide a payment for signing the contract. ARCE wanted a total of 500 tracks from its collections for Internet use, to display a good array of different traditions. At US$25.00/track advance, this was US$12,500, provided by the Smithsonian Institution as an advance. ARCE selected about 6 tracks per artist or group, thus giving them the equivalent of US$150.00—a lot of money for performers in many parts of India. While a payment may not be necessary, it certainly facilitated the contract process. 6. The archive has a way to receive and redirect to the artists future payments for paid use of the materials, and reports on other uses. Emerging ethical concerns and changing intellectual property legislation need to be taken into account when planning the collection, archiving, and dissemination of the intangible cultural heritage. Archives face many challenges

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1. Every musician contacted agreed to participate.



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as they try to respond to new uses for their materials and the demands of users for increased access on the one hand and of the artists for more restricted access on the other. It is very important that agencies planning documentary projects work closely with archives to ensure that the appropriate permissions are obtained, and that the necessary rights can be transferred to archives to ensure access to the collections (or at least to parts of the collections, as appropriate) in the future. New legislation regarding IP and cultural patrimony should attend to the problems of older collections for which no rights were originally obtained, as well as to the impossibility of predicting the future uses of archived materials. Archives fall in the middle between the artist and the eventual users of the materials. They have become parts of what can be called the “technologically mediated oral/aural tradition” today: a great deal of human knowledge is passed through recordings to new generations of users. They are required to preserve the originals, follow existing intellectual property legislation, and to serve new communities. Yet they are far too often under funded and their potential uses ignored. The fragility of audiovisual archives, and their significance for the safeguarding of the intangible heritage must be recognized in all plans to safeguard the cultural heritage of Brazil. Safeguarding cultural heritage also requires safeguarding the repositories of the media on which so many communities are documenting their heritage. These documents will not last unless a plan is put in place for their preservation and systematic migration to new formats. Anything less is a cruel deception of the aspirations of the artists and communities seeking to safeguard their future by documenting their traditions today.

REFERENCES AMMAN, Using ethnomusicology to assist in the maintenance of Kastom, with special reference to New Caledonia and Vanuatu” In: Lawrence, H. R. (editor) Traditionalism and Modternity in the Music and Dance of Oceania, Essays in Honor of Barbara Smith. Sydney : University of Sydney, 2001. p. 151-163. KOCH, Grace . Music and Land Rights. In : Anthony Seeger (Guest Editor) Traditional Music in Community Life: Aspects of Performance, Recordings and Preservation. Cultural Survival Quarterly winter. [s.l. : s.n.] ,1997. SEEGER, Anthony . Ethnomusicology and Music Law. Ethnomusicology .v. 36 n. 3, p. 345-360, 1992.

Folha distribuída ao público no seminário “Propriedade Intelectual:

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proteção do conhecimento das expressões culturais tradicionais” Belém 13-15 2004



SEEGER, Anthony. Intellectual Property and Audio Visual Archives and Collections. In: Folk Heritage Collections in Crisis. Washington D.C.: Council on Library and Information Resources., 2001. Free download at: . SEEGER, Anthony . Archives as Part of Community Traditions. In: BERLIN, Gabriele ; SIMON, Artur (Editors). Music Archiving in the World. Berlin: Verlag Fur Wissenschaft und Bildung, 2002 .p. 41-47. (Papers Presented at the Conference on the Occasion of the 100th Anniversary of the Berlin Phonogramm-Archiv). SEEGER, Anthony . “Traditional Music Ownership in a Commodified World” In : SIMON Frith; LEE Marshal (eds.) Music and Copyright. Edinburgh: Edinburgh University Press, ,2004. p. 157-171. SEEGER, Anthony ; SHUBHA Chaudhury (eds.) 2004. Archives for the Future: Global Perspectives on Audiovisual Archives in the 21st Century. Kolkatta, India: Seagull Books, 2004. Available for free download at: http://clir.org/pubs/reports/pub96/rights.html.

Appendix: The following document was copied and distributed to the participants of the Symposium, and serves as a kind of summary in Portuguese of the important points in the paper: Fonotecas, videotecas, propriedade intelectual e o patrimônio cultural: algumas considerações comparatives Anthony Seeger, University of California Los Angeles, .

Esta folha reúne alguns dos pontos que trato no meu trabalho escrito e outras considerações que surgiram durante o seminário: 1. Uma grande parte do patrimônio cultural imaterial é transmitida hoje através de uma mediação tecnológica. Em vez de passar de boca para ouvido, passa de boca para microfone e depois para ouvido. Este processo possibilita um espaço de tempo entre o ensino e a aprendizagem—anos, décadas, e talvez séculos. Mas se não houver uma atenção aos materiais, eles desaparecerão antes do momento propício para seu uso. 2. Há um grande equivoco no movimento de documentar, nas comunidades seu patrimônio cultural.

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a. Quase tudo que está sendo colhido vai desaparecer por falta de arquivamento cuidadoso, constante, e sério. Os meios são frágeis, os softwares estão sempre mudando e fazendo com que documentos mais antigos sejam impossíveis de usar. As máquinas e softwares hoje rapidamente ficam obsoletos e dependem de uma tecnologia difícil de reproduzir (chips especializados). b. Até certo ponto, a falta de atenção aos arquivos e a migração para novas tecnologias no arquivamento de registros do patrimônio cultural das comunidades é uma traição, e é um novo ataque à viabilidade dessas comunidades e nações. Sem investir em arquivos e tecnologias de preservação de documentação os netos, bisnetos, e até os filhos das pessoas documentadas não vão poder usar os documentos colhidos com tanto cuidado. 3. Legislação sobre propriedade intelectual é uma parte significativa da economia de várias nações, incluindo os EUA. Por isto o campo é tão cheio de conflito e de mudanças rápidas de legislação. Estes conflitos atingem expressões culturais tradicionais, arquivos, o grande publico, e a independência de nações como o Brasil. 4. Em muitos campos de conhecimento—incluindo museus, música e plantas, há uma “busca ao ouro” dos direitos sobre propriedade intelectual. Quem administra instituições ou áreas de conhecimento (como nações indígenas ou comunidades locais), tem que tomar um atitude defensiva por um lado e agressiva de outro lado. 5. O assunto é importante demais para ser deixado somente aos advogados e os políticos precisam ser vigiados. 6. A legislação hoje está sendo modificada como parte de tratados de comércio, e há uma grande pressão em todos os países para adotar o modelo padrão da Europa. Isto torna difícil a criação de legislação sui generis ou fora do padrão internacional do GATT. 7. A legislação de propriedade internacional já foi chamada de racista — mas é fundamentalmente classista — afeta todas as etnias. Historicamente os legisladores são do meio urbano, letrados e burgueses e ignoram os direitos das populações rurais, não letradas, pobres e de nações não Européias. Expressões tradicionais e de folclore muitas vezes ficam fora de cogitação. 8. Um movimento contra a nova legislação internacional está crescendo, mas confronta os interesses econômicos de paises poderosos. 9. O que é “tradicional” fica difícil definir. Em muitos casos, nas comunidades da região norte, o tradicional de hoje já foi o novo e radical de cem anos atrás. Valsas, “mazurka” e “polka” já foram novidades a agora viraram tradição. Há inovação em nações indígenas também. Não existe um momento tradicional, um jardim do éden, onde houve a inovação pecadora.

11. Hoje é imperativo não somente documentar um evento, mas também documentar a transferência dos direitos necessários para os usos cogitados desse material —arquivamento, acesso, difusão. Sem os direitos, o material e impossível de usar. 12. Não precisamos esperar mudanças de legislação para transformar nossa ética, e a maneira como agimos a respeito do conhecimento de todos os tipos. A lei pode seguir a ação de todos nós. 13. Arquivos no Brasil e no mundo todo estão cheios de gravações sem os devidos direitos para usá-las. A legislação deve admitir o uso de material antigo cujos direitos não estejam claros e definidos. 14. Um exemplo de busca de direitos para uso de materiais na Internet na Índia, o Global Sound do Smithsonian Institution, mostra que é possível obter direitos e criar novas colaborações com artistas em certas situações. 15. Há um grande equivoco no atual movimento de documentar, junto às comunidades, seu patrimônio cultural. a. Quase tudo que está sendo colhido vai desaparecer por falta de arquivamento cuidadoso, constante, e sério. Os meios são frágeis, o software esta sempre mudando e fazendo documentos impossíveis de usar. As maquinas rapidamente ficam obsoletas e dependem de uma tecnologia difícil de reproduzir (chips especializados). b. Até certo ponto, a falta de atenção aos arquivos e a migração para novas tecnologias no arquivamento de registros do patrimônio cultural das comunidades é uma traição, e é um novo ataque à viabilidade dessas comunidades e nações. Sem investir em arquivos e tecnologias de preservação de documentação os netos, bisnetos, e até os filhos das pessoas documentadas não vão poder usar os documentos colhidos com tanto cuidado.

Ver entre outros: SEEGER, Anthony 1992. Ethnomusicology and Music Law. Ethnomusicology v.36 ,n. 3,p. 345-360, 1992. SEEGER, Anthony . Intellectual Property and Audio Visual Archives and Collections In: Folk Heritage Collections in Crisis. Washington D.C.: Council on Library and Information Resource., 2001. Free download at: .

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10. As mudanças na legislação estão atingindo arquivos no mundo todo, e dificultando a sua operação em todos os seus aspectos—aquisição, organização e difusão.



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SEEGER, Anthony. Archives as Part of Community Traditions. In: BERLIN, Gabriele Artur SIMON, (Editors), Music Archiving in the World. Berlin: Verlag Fur Wissenschaft und Bildung, 2002. p. 41-47.( Papers Presented at the th Conference on the Occasion of the 100 Anniversary of the Berlin Phonogramm Archiv). Anthony SEEGER, Anthony; SHUBHA Chudhuri (editors), 2004. Global st Perspectives on Audiovisual Archives in the 21 Century. Kolkatta [Calcutta], India: Seagull Books. Available for free download as PDF files at: .

Priscila Faulhaber1 Resultado de pesquisa antropológica entre os índios Ticuna/AM, que vivem na fronteira do Brasil, da Colômbia e do Peru. Parte-se de uma concepção dinâmica de patrimônio cultural que redimensiona os artefatos etnográficos, coletados por Curt Nimuendaju em 1941 e 1942, para o Museu Goeldi, em função da análise histórica. A coleta etnográfica de objetos rituais produz o deslocamento dos contextos sociais e culturais da sua produção, em termos de uma fragmentação social que constitui a autonomia dos objetos coletados como artefatos etnográficos. Uma vez que Nimuendaju estabeleceu meticulosos registros sobre a mitologia e o ritual de puberdade Ticuna, é possível, todavia, estabelecer reflexões com base na correlação entre esses registros e interpretações de representantes deste povo sobre os artefatos e informações de anciãos que já estavam vivos na ocasião da coleta, nos anos 40. A análise do simbolismo ritual permite correlacionar os artefatos coletados por Curt Nimuendaju para o Museu Goeldi com os artefatos Ticuna em outros museus, depositados por outros coletores. A transposição do pensamento indígena para os meios digitais permite a passagem para outros terrenos, dentro de um processo de comunicação planetária.

PATRIMÔNIO CULTURAL, ARTEFATOS RITUAIS E MEMÓRIA SOCIAL Não se pretende aqui recair em dicotomias referentes ao uso dos termos (i) material – por oposição a edificado – ou (in) tangível – versus palpável ou concreto. Trata-se, no contexto deste trabalho, de considerar, dentro de uma abordagem histórico-antropológica, patrimônio cultural em termos da

1

Pesquisadora Titular. Museu Paraense Emílio Goeldi/MCT. Trabalho elaborado a partir de paper apresentado na Reunião da Anpocs-2004. Seminário Temático “Memória, Patrimônio e sociedade: desafios contemporâneos” Coordenadores: Regina Abreu, Reginaldo Gonçalves e Manuel Lima Filho

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Patrimônio Magüta: artefatos como meios de comunicação entre diferentes contextos sócio-culturais



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significação – de bens de interesse público – que depende da interpretação daqueles que os usam. Partindo-se do suposto que artefatos etnográficos coletados foram deslocados de seus contextos rituais, tornando-se relativamente autônomos com relação a estes contextos, é possível – dentro dos limites impostos pelas descontinuidades históricas – interpretar esses artefatos com base em uma re-contextualização, no que se refere à informação etnográfica, exposta como visão de mundo, valores e atitudes políticas, compreendendo ritual, relatos, histórias contadas e performance de todos os tipos. Ainda que estas representações culturais não possam ser transportadas materialmente, elas podem ser inscritas em cadernos de campo, gravações, fotografias, filmes ou desenhos, que constituem deste modo documentos etnográficos que são artefatos de etnografia (KIRSHENBLATT-GIMBLETT, 1998). Considera-se a significação atribuída pelos Ticuna aos artefatos dentro de uma perspectiva de correlação entre a iconografia e a historicidade das narrativas de representantes deste povo que examinaram, primeiramente, em pesquisa de campo, as fotos e desenhos técnicos dos artefatos coletados por Curt Nimuendaju e, em um segundo momento, os próprios artefatos, em oficina realizada no Museu Goeldi Estabelece-se, deste modo, uma correlação de narrativas gráficas, orais e daquelas registradas no conhecimento antropológico acumulado sobre os Ticuna, no sentido da atualização histórica de narrativas de representantes deste povo2, em termos de uma re-efetuação do passado por meio da interpretação (RICOEUR, 2000, p. 179). Considera-se, portanto, a historicidade do conhecimento do que é pensado pelos humanos (COLLINWOOD, 1994, p. 219, SAHLINS, 1981), em termos da análise de “estruturações performativas”, ou seja: modelos simbólicos que formam relações “a partir das práticas” e das vivências sociais (SAHLINS, 1990, p.47-49), a partir das quais derivam os “enredos recorrentes” que permitem a “construção textual da realidade” (BURKE, 2002, p.143). Para explicar a iconografia dos artefatos, os representantes Ticuna recorrem aos anciãos, cujos relatos consistem em uma “volta atrás” 3 no tempo histórico em que foram coletadas as peças, bem como ao contexto mítico das narrativas fundadoras. Entende-se a memória social enquanto construída coletivamente, e analisável dentro de uma preocupação de veracidade histórica, 2

3

Em outro trabalho, recuperei o conceito de atualização de Walter Benjamin (2001), dentro da perspectiva da tradução cultural em Antropologia (FAULHABER, 2004) A idéia de escrever a história para trás, virando o passado para trás, como a bobina de uma película cinematográfica remonta a Marc Boch, citado por Ginzburg (2002:, p. 15).

Entende-se artefato ritual como produto de uma relação do sujeito com seu objeto, em termos de uma incessante criação simbólica inserida na vida cotidiana, e dela dissociada quando as peças são coletadas e transformadas em artefatos etnológicos em coleções museais, que passam, assim, dissociados do contexto social no qual foram produzidos pelos artesãos Ticuna, a ser vistos dentro de critérios estéticos ocidentais. Estes critérios estéticos são passíveis de crítica (EAGLETON, 1993, p. 113), no sentido de visualizar formas outras, não hegemônicas, de saber e conhecer o mundo, dentro de uma concepção dinâmica de “esfera pública”, considerando as possibilidades da “razão comunicativa” “implicitamente antecipada em uma situação real de diálogo, na qual haveria para todos os participantes uma distribuição simétrica de oportunidades para escolher e realizar suas falas” (EAGLETON, 1993, p. 291). Tal razão comunicativa formula-se como um vetor oposto ao daquela que opera para ratificar a dominação. Nesta perspectiva, uma coleção consiste em um patrimônio cultural que, deste modo, constitui a identidade cultural. Torna-se, assim, significativa para a identificação étnica de integrantes de um determinado povo, imaginado como territorialmente e historicamente delimitado. A eles compete colocá-los em seu contexto apropriado (HANDLER, 1985, p.193). Tal coleção reúne um conjunto de artefatos etnográficos cujo valor não se reduz ao valor de troca, convertido em mercadoria no mercado capitalista, devendo ser resguardados os significados e os usos para os integrantes do povo pelo qual foi concebido, dentro do qual esses significados são transmitidos, de geração a geração, através de rituais e práticas sociais. A contemplação dos artefatos etnográficos implica a reativação de traços de memória, em sintonia com o testemunho dos “sobreviventes” de catástrofes sociais, em termos da recriação do mito em processos histórico-identitários, em atos de rememoração criativa que permitem juntar os “cacos” do passado revivido e do presente vivenciado, dentro de uma nova constelação, que não necessariamente corresponde àquilo que seja esperado pela estética ocidental convencionada.

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no sentido da adequação dos conteúdos significativos das narrativas aos contextos rituais que conferem significados identitários à iconografia inscrita nos artefatos etnográficos. Nesta perspectiva, não se norteia por uma tentativa de “fidelidade” a um sentido afirmativo de “memórias individuais”, mas de uma reflexão sobre aspectos nem sempre conscientes do inconsciente cultural – que aparecem enquanto “acontecimentos vividos pela coletividade à qual a pessoa sente pertencer”, e envolvem projeções ou identificações de uma vivência identitária (POLLAK, 1992, p.201), que pode ser disputada por diferentes facções ou organizações indígenas.



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CONTEXTUALIZAÇÃO 4

No CD-Rom Magüta Arü Inü Jogo de Memória: Pensamento Magüta. são contextualizados os artefatos etnográficos Ticuna, considerados como documentos estreitamente relacionados com a vida ritual e posicionados um em relação aos outros no sentido de mostrar a teia de significados imbricada em tais relações. Eles não são examinados como criações singulares, mas referidos a um conjunto. A ordem das interpretações dos motivos é estabelecida dentro de um processo mais amplo de associação entre as observações dos Ticuna e as representações sociais. Isto é estabelecido dentro de um esforço para compreender as complexas conexões que estruturam o pensamento Magüta.

Os índios Ticuna afirmam que os desenhos das máscaras são concebidos em sonhos, quando abrem suas mentes ao pensamento Magüta – o povo pescado 5 no local mítico Eware pelo herói cultural Yoi’i . Trata-se de pensar como imagens, representadas pela mente durante o sono, devaneio ou estados de extrema fadiga, servem como base de elaboração da iconografia indígena. À parte explicações neurológicas, o que interessa reter aqui é que tais imagens são parte do contexto simbólico, cuja análise permite mostrar como representantes de povo indígena determinado concebem o Universo e explicam a relação dos humanos uns com os outros e com a natureza. A trama narrativa que remete a “enredos recorrentes” é recortada, no presente trabalho, a partir da performance da Máscara Tchowicu, na festa da moça Tueguna, do clã arara vermelha, registrada no vídeo etnográfico intitulado Enepüwa i yüü Tchiga. Festa da Moça no Enepü, filmado em final de julho de 2002. Segundo relato do artesão, tal performance está relacionada às peripécias de dois irmãos para vingar a morte da irmã assassinada. Este enunciado relaciona-se com a narrativa mítica sobre três irmãos, filhos da ligação incestuosa de Lua (masculino) e Sol (feminino). Após ser abandonada por seu irmão, a mãe dos três irmãos foi violada por uma onça feroz e a avó criou os irmãos que depois se transformaram em estrelas. Para evitar o eclipse da Lua gerador de catástrofe, o dia e a noite foram separados, para que Lua e Sol não pudessem mais se encontrar, e não transgredir, assim, a proibição do incesto. Como os Ticuna vivem numa situação de contato, são centrais nas suas narrativas figuras fronteiriças, como o Cobra Norato, que se relaciona ao colonizador, mas também se refere a identificações primordiais, com os heróis culturais, e o povo Magüta, bem como, a lugares de ocupação identitária relacionados com os lugares míticos onde vivem os imortais. 4

5

Produzido pelo Museu Paraense Emílio Goedli (org.: Priscila Faulhaber). Prêmio Rodrigo de Melo Franco de Andrade (IPHAN, 2003) A relação entre o simbolismo de desenhos Ticuna e a mitologia deste povo foi considerada em Grüber (1992).

PROCEDIMENTOS O inventário dos artefatos, com base em pesquisa etnográfica, partiu de uma contextualização dos artefatos Ticuna, no sentido de avaliar a informação etnográfica dentro de uma perspectiva comparativa, examinando os artefatos Ticuna em relação aos seus rituais, suas práticas identitárias sócio-históricas e ao conhecimento antropológico acumulado sobre este povo, desde a monografia de Curt Nimuendaju (1952) aos estudos mais recentes (OLIVEIRA FILHO, 1988, CAMACHO, 1995,1996, FAULHABER, 2002). Em 1998, iniciou-se o levantamento das peças do Museu Goeldi, com a participação de estudantes de iniciação científica com bolsa do CNPq, dentro de projeto intitulado “Os Índios Ticuna e a Coleção Nimuendaju do Museu Goeldi”. A perspectiva de análise histórica das condições da coleta etnográfica permitiu que os artefatos assim coletados fossem comparáveis com os artefatos coletados há mais de 60 anos, dentro de uma perspectiva de reflexão sobre a obra de Curt Nimuendaju6. Conjugaram-se, dentro da perspectiva da etnografia do saber, atividades de pesquisa de campo, de pesquisa documental e de interação com os contextos sociais locais, bem como, o uso de técnicas de difusão científica e documentação videográfica. Relacionaram-se os objetos etnográficos coletados entre os Ticuna com a sua estrutura social, ritualizada na “festa da moça nova”. Correlacionaram-se os registros do livro de tombo da coleção Ticuna do Museu Goeldi com os artefatos rituais e com o contexto cultural em que eles foram produzidos, a partir da identificação dos instrumentos pelos próprios índios Ticuna. Esta identificação foi concretizada na Oficina “Os índios Ticuna e a

6

A finalização do inventário foi possível com a aprovação, em 2001, do projeto intitulado “Artefatos rituais e transformações ambientais da fronteira amazônica” pelo Edital “Conteúdos Digitais” do CNPq. Este projeto propôs a produção de um CD-Rom para disponibilizar o banco de dados com o acervo Ticuna do Museu Goeldi a partir da identificação das peças pelos próprios índios Ticuna. Foram identificadas ao todo 96 peças, compreendidas por indumentárias e instrumentos rituais. Esta identificação contou com a colaboração de comunidades Ticuna do Brasil e da Colômbia, que foi a base para a elaboração do CD-Rom.

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A situação vivida é simbolizada com referência a esses enunciados míticos, correlacionáveis à iconografia inscrita nos artefatos e depoimentos Ticuna, que expressam como os representantes deste povo interpretam o universo em termos de sua cultura, de sua organização social e da identidade étnica. Considera-se que as imagens inscritas na cultura material integram um arquivo imaginário, concebido aqui como reinterpretável por seus eventuais leitores.



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Coleção Nimuendaju do Museu Goeldi”, realizada de 26 de novembro a 16 de dezembro de 2002, no Museu Goeldi, com a participação de seis especialistas indígenas. Após o exame das peças pelos índios e da verificação e da correção das descrições museográficas, os próprios índios redesenharam as peças. O vídeo foi legendado em português com a participação do Ticuna Pedro Inácio Pinheiro7 e da lingüista Marília Facó Soares. Os índios desenharam em cartas celestes impressas com o uso do Software Starry Night o movimento das constelações Ticuna ao longo do ano. O movimento destas constelações, que são registradas na iconografia das peças Ticuna da Coleção Nimuendaju do Museu Goeldi, foi disponibilizado por meio de uma simulação do giro do céu com as constelações Ticuna. Consta ainda no CD-Rom um inventário lexical elaborado pela lingüista Marília Facó Soares, dentro de uma metodologia de contextualização discursiva.

O ritual de puberdade e os artefatos rituais A interpretação pelos especialistas Ticuna da iconografia do ritual de puberdade é uma chave para a análise do simbolismo ritual. Essa interpretação é considerada dentro do referencial da correlação entre a teoria nativa apresentada pelos especialistas Ticuna e a análise antropológica, dentro da perspectiva da compreensão do imaginário deste povo. O enfoque dos símbolos que emergem no ritual de puberdade da “moça nova” é delimitado, predominantemente, do ponto de vista feminino, ainda que sempre com referência às relações com o sexo oposto. As representações sobre o culto à fertilidade são consideradas no que diz respeito às expectativas referentes à continuidade cultural que promove a fertilidade da terra, o que não pode ser reduzido, do ponto de vista reprodutivo, a expectativas que dizem respeito às possibilidades biológicas da fecundação, do ponto de vista da descendência. Neste sentido, as anciãs, que já participaram ativamente da promoção de rituais de puberdade de gerações consecutivas, após a sua própria iniciação ritual, são consideradas personalidades importantes na transmissão do patrimônio cultural Magüta. Os instrumentos rituais consistem em formas de prolongamento do corpo humano de modo a lhe conferir poderes mágicos, sendo, assim, um meio de comunicação utilizado no sentido de agir sobre as forças naturais e sociais. Os bastões cerimoniais são relacionados a antigas armas de guerra, usados em ocasiões de ataques inimigos. Muitos destes bastões evocam animais míticos, como o Yucurutchi, pássaro encantado que se transforma em macaco e serve como um ajudante para os humanos e para os heróis culturais em suas peripécias contra seus opositores e inimigos em diferentes escalas de interação. Entre outros 7

Escolhido como narrador pelos outros cinco Ticunas que participaram da oficina no Museu Goeldi.

As máscaras consistem em “disfarces” através dos quais se encena a relação entre os homens e com os “donos” de coisa e dos acontecimentos naturais e sobrenaturais. Estas máscaras utilizam-se dos instrumentos de sopro que servem como catalisadores de fenômenos climáticos, provocando a disrupção de catástrofes. Utilizam-se também de símbolos de poder e violência que atuam sobre o meio ambiente e sobre as relações sociais, como o “pau multiplicador”, uma analogia do “pênis”, que não é apenas um órgão de reprodução, mas também uma forma de gerar desordem e destruição. Na iconografia das indumentárias e das rodas ou escudos estão representadas em múltiplas formas, estas antigas armas, bem como jogos de “treinamento de guerra”. Existe uma palavra em Ticuna, (o termo empregado não é transcrito aqui por uma questão de inexistência, no editor de texto corrente, do acento apropriado para identificar a oclusiva glotal) que significa “instrumento ou algo que serve para o treinamento de guerra, para o conhecimento, para o saber, para a ciência”, utilizado como parte da aprendizagem da criança, para treinar a pontaria com arco para lançar objetos pontiagudos, envenenados ou não, a distância. Este termo torna-se relevante para definir os artefatos como “instrumentos rituais” que aparecem enquanto partes de um jogo de memória e pensamento utilizado para a transmissão do sistema cultural Ticuna e para continuidade dos seus processos de identificação. Esta identificação consiste em uma projeção, no plano mental Ticuna, para lugares de identidade que não correspondem, necessariamente, aos lugares míticos. A performance da máscara Tchowicu é um exemplo de como as peripécias dos heróis culturais se transformam para outros locais, como a “casa da festa” do inimigo, na qual eles entram por um caminho subterrâneo, para vingar a morte da irmã assassinada. A iconografia desta máscara contém os símbolos da oposição entre os clãs, através dos desenhos da arara (clã da moça) e da onça (clã do mascarado). Contém, igualmente a simbolização dos artifícios, que permitem ao seu portador manifestar sua condição identitária, como a lacraia, que enuncia a vontade de envenenar seus opositores, e o ícone, que lhe permite, após matar o assassino de sua irmã, lograr entrar pelo caminho subterrâneo que lhe possibilita voltar ao seu próprio lugar, socialmente constituído. A ocupação de novos contextos culturais e sociais também é uma forma de expressão identitária. De acordo com Sullivan, a cultura é um processo de conformação a limites físicos ou simbólicos. Em Wright (1998, apud SULLIVAN, 1988, p.317), a simbologia da vida é sintetizada como uma sucessão de compartimentos e recipientes. Esta simbologia aplica-se para o ritual de puberdade Ticuna, uma vez que o recinto de reclusão da moça, assim como o seu útero, sua vagina, seus canais

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animais míticos apresentados pelos bastões esculpidos em madeira, a figura do peixe flecheiro, esculpido como finalização de um artefato no qual estão entalhados ombro, braço e mão, semelhantes aos humanos.



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e dobras internas, seus seios, os paneiros de carregar mandioca ou pertences pessoais, os recipientes de bebida, as urnas funerárias, as tumbas e as próprias máscaras são recipientes nos quais são guardadas as emoções e as expectativas face ao sucesso ou não da realização do ritual. Após a menarca, a moça é encerrada dentro do quarto de sua casa paterna, para tecer trançados e receber os primeiros ensinamentos dos ancestrais, enquanto são realizados os preparativos para a festa, coordenados por seu pai: o plantio da mandioca para a preparação da farinha e da bebida, a caça para reunir alimentação para os convidados. Estas atividades são realizadas no exterior da casa: o plantio fica nas áreas contíguas às aldeias, transformadas pela ação humana e a caça é realizada no interior da floresta, quando o caçador expõe-se aos perigos do mundo natural e também entra em contato com o sobrenatural. Também, antes da realização da festa, é construído o compartimento no qual serão guardados os principais instrumentos rituais: O To’cü (Uaricana macho) e o Buburi (Uaricana fêmea). No passado era proibido ver estes instrumentos, cuja visão fazia enlouquecer os não iniciados. Este isolamento dos instrumentos é característico do ritual do Jurupari, mais freqüentemente relacionado à iniciação masculina no Noroeste da Amazônia (HUGH-JOHNES, 1979), que não é, ao menos atualmente, realizado pelos Ticuna. Permanece, no entanto, a demarcação de um lugar ritual específico para estes instrumentos, que mapeia simbolicamente o universo e a importância, durante a iniciação feminina, da passagem de instrumentos e máscaras para os domínios separados. Dentro do recinto de reclusão durante a festa, a moça está submissa aos ensinamentos dos anciãos e anciãs, que representam os espíritos dos ancestrais e lhe colocam em contato com o pensamento dos heróis culturais, que lhes ensinam como respeitar as forças invisíveis que controlam o universo. Ainda dentro do recinto, durante a noite, lhe contam os mitos de origem e lhes falam sobre os deveres da mulher. Nos primeiros momentos do dia, atrás desse recinto, na parte externa à casa da festa, pintam seu corpo para fechá-lo à instalação do mal, e cortam as pontas do seu cabelo, em uma antecipação da depilação. Ainda no início da manhã, ela é reconduzida de novo à reclusão, quando é preparada para ser apresentada à vida pública. Seu irmão tampa seus olhos para prevenir das ameaças externas. Cobrem seu corpo colando-lhe penas de garça real e cantam a história de To’oena, que foi esquartejada pelos instrumentos por não respeitar as proibições rituais. O estudo da iniciação feminina ajuda a esclarecer como o corpo humano serve como um instrumento para agir não apenas sobre a personalidade humana, estendendo-se este poder para transformar a própria humanidade. De fato, o tempo e os mitos de origem ocupam importante lugar na iniciação feminina e

Apesar da reclusão, o confinamento não é completo, porém a quebra da reclusão será motivo de censura, como no mito de Tetchiarinui, mulher de Yoi’i, que a guardara dentro de uma flauta antes de sair para uma caçada. Como a moça ficou grávida, a suspeita de que talvez não fosse, levou o pai a duvidar dela. Na pessoa da jovem em estado iniciatório, a cultura provê de sentido o seu crescimento: encerra itens simbólicos como os cantos rituais reservados ao interior do recinto de reclusão, fecha as portas ao contato com o sexo masculino, impede a entrada de comida e bebidas proibidas, à medida que ela deve comer apenas água e bolacha.O confinamento da moça por meio da reclusão, ao mesmo tempo em que visa prevenir, simbolicamente, a perda dos fluidos vitais para resguardar a moça e garantir o sucesso da sua metamorfose em uma nova mulher, consiste em um processo homólogo à fermentação da mandioca para preparação da caiçuma (bebida fermentada doce) e pajuaru (bebida fermentada azeda), através do ato de reservar a pasta e manipular o processo de liquefação, que produz uma nova forma de bebida para regenerar a vida, fertilizá-la (SULLIVAN, 1988, p.322). A reclusão visa, deste modo, à criação de um casulo, como metáfora de um ambiente propício para a transformação da menina em estado iniciatório e sua emergência na forma de uma nova mulher. A iniciação da moça a impele em uma viagem, por uma topografia mítica do universo, semelhante às viagens de iniciação realizadas por aqueles que adquirem um conhecimento especializado sobre o “mundo de lá”", os pajés (curandeiros ou xamãs) e os anciãos que conhecem as passagens entre os diferentes mundos e dominam o conhecimento do pensamento Magüta. Essas viagens são feitas pelo eixo do Universo, que atravessa os mundos e conduz a luz solar a cada um deles, no qual está enroscada a serpente Yewae’, uma grande cobra marinha. Tais passagens entre os mundos são representadas pelas máscaras que entram em cena logo que a moça sai da reclusão. O principal tema de sua representação é a chegada da chuva, que pode irrigar a terra e acarretar sucesso nas atividades de sobrevivência, mas também pode destruir tudo: casas, colheitas, árvores. Está em jogo, deste modo, a luta dos contrários, a ordem e a desordem. Tal luta entre os contrários é o motor mesmo da organização social Ticuna, uma

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dramatizam como o corpo feminino maduro, como uma manifestação da personalidade primordial, governa poderosas forças cósmicas. Durante a destruição mítica induzida por uma troca efetuada através das aberturas do seu corpo (fluxo menstrual, jorro, transa, alimentação), uma divindade ou heroína sobrenatural encerra-se a si mesma em um recipiente: controlando as aberturas de seus olhos, torna seu próprio corpo em boca, orelhas e vagina, ou na própria fertilidade da terra que se abre para o plantio e para a colheita agrícola. Ela assim estabelece um lugar gerador de vida nova, ou seja, ela instala cultura na imagem vazia do espaço (cf. SULLIVAN, 1988, p. 315).



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vez que os representantes deste povo dividem-se em metades exogâmicas. A festa, como um rito iniciatório que tem por objetivo a preparação da moça para a vida social, consiste deste modo em uma apresentação dos conteúdos significativos da simbologia do pensamento Magüta, que estão inscritos na iconografia dos objetos rituais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Por meio da prática etnográfica, identificam-se os artefatos Ticuna no que diz respeito à contextualização dos seus usos rituais. Considerando-se que os artefatos rituais estudados foram coletados há mais de 60 anos, recorre-se ao estudo do passado histórico e etnológico e aos contextos vividos pelos Ticuna nos dias de hoje. Dentro desta abordagem, entende-se patrimônio cultural como algo produzido culturalmente através de significados culturais inscritos – iconograficamente – em artefatos etnológicos. A interpretação indígena deste patrimônio cultural envolve projeções identitárias, com implicações políticas para os movimentos Ticuna observáveis nas diferentes situações nacionais em que os representantes deste povo interagem. Como meios de comunicação, os artefatos rituais são instrumentos de extensão das funções físicas e mentais. Como artefatos etnográficos, no entanto, apresentam-se em sua autonomia relativa aos contextos específicos, o que implica a possibilidade de associação ao conjunto dos artefatos Ticuna em diferentes museus, bem como a inserção em novos contextos de acordo com critérios antropológicos, estéticos ou museais – em uma rede de comunicação virtual, com as possibilidades abertas pela reprodutibilidade de tal informação cultural por meios editoriais e eletrônicos, o que permite sua utilização pelos próprios artesãos e professores Ticuna, bem como para programas de disseminação científica ou exibição pública de patrimônios étnicos ou das formas de expressão próprias ao povo indígena em questão. A transposição do pensamento indígena para os meios eletrônicos permite, deste modo, a propagação comunicativa de seus conteúdos significativos para audiências diferentes das previstas nos rituais originais, transmitindo seu patrimônio para outros contextos. Os conteúdos culturais assim veiculados são definidos como formas de conhecimento que se deslocam, deslizam e circulam por diferentes canais comunicantes e distintos itinerários.

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Luiz Guilherme Campos Reis

Resumo Discute, essencialmente, sobre a Educação Patrimonial e o uso da cultura no processo educativo das comunidades de Porto Trombetas, assim como a sua responsabilidade na reconstrução da identidade cultural dessas populações. O Museu Goeldi, como espaço para pesquisa, preservação e conservação da cultura material e imaterial, cumpre sua função educacional, mesmo que não formal. Algumas atividades desenvolvidas junto a estas comunidades onde a (re)construção do conhecimento foi feita por meio da valorização do saber e do saber fazer, demonstra que, tanto os jovens quanto os idosos, estão sensíveis quanto a necessidade da manutenção de sua cultura. Palavras Chave: Arqueologia, Populações tradicionais e Educação patrimonial.

O QUE É O PROJETO E QUEM SÃO OS PARCEIROS? O Projeto Educação Ambiental e Patrimonial para a área de entorno da Mineração Rio do Norte tem por objetivo desenvolver ações educativas não formais junto a duas comunidades quilombolas (Boa Vista e Moura) e uma ribeirinha (Batata), visando esclarecer sobre a importância da preservação do patrimônio ambiental e cultural da região, com ênfase em arqueologia. Desenvolve também, atividades educativas na vila de Porto Trombetas para os moradores, funcionários da MRN e empresas terceirizadas. A Mineração Rio do Norte-MRN, está localizada no distrito administrativo de Porto Trombetas, no município de Oriximiná, no Estado do Pará, criada em outubro de 1972, fruto de um modelo de desenvolvimento econômico pensado para a Amazônia pelo regime militar a partir da década de 1970, onde o lema era “integrar para não entregar”. Hoje a MRN é uma

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Educação Patrimonial em Comunidades Quilombolas: o resgate do saber e do saber fazer louça de barro das artesãs da região de Porto Trombetas-PA



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Joint-Venture (associação de empresas nacionais e estrangeiras), entre seus principais acionistas estão a Companhia Vale do Rio Doce-CVRD que detém 40% do controle acionário, seguido da inglesa BHP-BILLITON METAIS, com 14,80% e da Alumínio do Brasil Ltda- ALCAN, com 12%. “Segundo a MRN, sua capacidade de produção atualmente é de 11 milhões de toneladas/ano de minério de bauxita, podendo chegar a 16,3 milhões de toneladas com a conclusão dos investimentos que estão sendo feitos para a expansão de sua produção”. (Disponível em: . Acesso em 07 ago. 2002). Este “grande projeto”, assim como outros, possuem uma trajetória histórica cheia de erros e acertos, uma vez que, na época de sua implantação ainda não existia no Brasil e quiçá na América do Sul, a preocupação com o meio ambiente tal como hoje o conhecemos. Face ao avanço das pesquisas em diversas áreas e às exigências por um desenvolvimento menos predatório, esses projetos vêm adotando ações que visam minimizar o impacto de suas atividades, no caso da MRN, com a recuperação das áreas mineradas mediante o reflorestamento das áreas desmatadas, recuperação do lago Batata, controle da água e do ar entre outros. Para isso tem celebrado parceira com diversos institutos de pesquisas entre eles o Museu Goeldi. O Museu Paraense Emílio Goeldi-MPEG, vem ao longo de seus 137 anos de existência, desenvolvendo pesquisas sobre o homem, a flora, a fauna e a evolução dos ecossistemas amazônicos, através das quatro áreas de pesquisas existentes na Instituição: Ciências Humanas, Ciências da Terra, Botânica e Zoologia. O setor de arqueologia, ligado à área de Ciências Humanas do Museu Paraense Emílio Goeldi, trabalha, na Amazônia, tanto com a arqueologia pré-histórica, quanto com a histórica. Entende-se por arqueologia pré-histórica o estudo feito sobre os vestígios materiais deixados pelos grupos humanos que habitaram a região e que são anteriores a 1.500. Por sua vez, na arqueologia histórica, os arqueólogos, além do resultado das escavações, recorrem a outros documentos como os relatos dos viajantes entre outros, para a formulação de suas teorias. A parceria entre o MPEG e a MRN, no que tange a arqueologia de salvamento, existe desde 1985, visando o salvamento dos sítios ameaçados de destruição pela atividade de exploração de bauxita. Em decorrência do Estudo de Impacto Ambiental – EIA, que detectou a presença de vestígios materiais pré-históricos na área onde iria ser construída uma correia transportadora, a Mineração Rio do Norte solicitou ao MPEG a apresentação de um projeto de salvamento arqueológico para o resgate desses vestígios. E, em 2001, foi firmado um novo convênio para a execução do projeto ‘Salvamento Arqueológico em Porto Trombetas’, semelhante a atual legislação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-IPHAN, respaldada pelas legislações

Sobre a Amazônia e sua biodiversidade muito se tem estudado e publicado, no entanto, pouco se tem discutido sobre a sóciodiversidade. Que projeção hoje pode ser feita acerca das populações tradicionais na Amazônia? Quais os impactos culturais sofridos por elas com a implantação dos diversos projetos ao longo dos últimos 40 anos de exploração dos recursos naturais da região? O que se tem feito a respeito do conhecimento tradicional que estas populações têm sobre os recursos naturais? Inicialmente, o termo populações tradicionais foi usado para referendar duas categorias: a dos seringueiros e a dos castanheiros da Amazônia. Em 1992, o Centro Nacional do Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais, com sede em Brasília, definiu populações tradicionais como “todas as comunidades que tradicional e culturalmente têm sua subsistência baseada no extrativismo de bens naturais renováveis”, (MURRIETA,1995 apud BENTTI, 2001,p.292), esta definição permite-nos identificar e quantificar os povos que ainda hoje usam técnicas milenares de sobrevivência, o que expressa não só a diversidade cultural existente, como também, compreender quais os principais problemas enfrentados pelas comunidades rurais no Brasil na manutenção de suas práticas culturais. Por meio desta conceituação, hoje podemos incluir diversas categorias neste conceito, com exceção a indígena. Segundo o Projeto “Mapeamento de Comunidades Negras Rurais: ocupação do território e uso de recursos, descendência e modo de vida”, desenvolvido pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (NAEA-UFPA), existem “cerca de 229 comunidades remanescentes de quilombos em diferentes municípios paraenses” (Bentti, 2001, p. 295), sendo que dessas, 27 estão sob a representação da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Município de Oriximiná – ARQMO, fundada em 1989, com os seguintes objetivos: • lutar pela defesa e titulação das terras de quilombo; • promover e apoiar iniciativas visando à melhoria da qualidade de vida das comunidades;

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internacionais e recomenda que, juntamente com o trabalho de salvamento, seja desenvolvido outro de educação patrimonial, objetivando educar quanto à necessidade de preservação dos bens culturais dessas comunidades. Outra questão que preocupa quem trabalha a educação patrimonial é a retomada da velha discussão sobre o patrimônio material: o que merece ser preservado e o que pode ser destruído? Na arqueologia isto não é diferente, quais os sítios arqueológicos que serão estudados de forma intensiva e quais os que não serão? Estes questionamentos ainda não encontraram respostas definitivas, principalmente, porque o que está em cheque é a preservação de um patrimônio para estudos posteriores.



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• defender e promover a conservação do meio ambiente e o desenvolvimento sustentado; • incentivar as manifestações culturais dos quilombolas. • combater todas as formas de preconceito, discriminação e racismo. (Disponível em: . Acesso em 05mai. 2002). Dentre estas comunidades destaca-se a de Boa Vista, que já entrou para a história, em 1995, como a primeira comunidade quilombola no Brasil e quiçá no mundo, a receber o “Título de Reconhecimento de Domínio”, a chamada posse “agroecológica”, o que, posteriormente, também veio a acontecer com a comunidade do Lago do Moura. Porém, deve-se ressaltar que as populações tradicionais possuem um apossamento da terra muito peculiar, que as legislações civilistas e agraristas não conseguem abarcar em sua plenitude. (...) A visão ainda existente sobre posse consiste em resumi-la a um ‘quadrilátero’ (BENATTI, 2001, p.294). O que se quer dizer é que a compreensão, por necessidade de espaço físico, para as populações tradicionais não é a mesma para as populações urbanas, pois “a posse agroecológica, como espaço ecológico e social, distintos e interligados, materializando-se num conjunto de três elementos: casa, roça e mata” (BENATTI, 2001, p.294). São nestes espaços que se produzem e reproduzem atividades domésticas, atividades produtivas agrícolas de subsistência, extrativismo e caça de subsistência, ou seja, toda a prática cultural que os identifica e qualifica como populações tradicionais. Outra comunidade que se enquadra neste conceito é a ribeirinha do Lago Batata, que viu seu ambiente ser impactado, de 1979 a 1989, pelo lançamento do rejeito da lavagem da bauxita (argila), o que provocou o assoreamento de aproximadamente 30% do lago, que comprometeu um espaço usado pela comunidade para a pesca de subsistência e outras atividades culturais coletivas. Na expectativa de desenvolver ações educativas iniciou-se, em maio de 2001, o Projeto de Educação Ambiental e Patrimonial, para a área de entorno da Mineração Rio do Norte, como Projeto piloto, em Boa Vista. A primeira medida tomada foi reunir com os representantes da comunidade (diretoria da associação dos moradores, diretoria e professores da escola e pais de alunos), para definição de um cronograma de atividades que seriam desencadeadas nos meses seguintes, mas que respeitasse os diversos calendários (escolar, da castanha, de festas) da comunidade. A comunidade de Boa Vista foi escolhida como “experiência piloto” por diversas razões: apresentar o maior grau de descaracterização cultural pela

Dentre as ações pensadas como instrumentos para uma educação patrimonial eficaz destaca-se o Clube do Pesquisador Mirim-CPM, projeto existente no MPEG desde 1988, cujo objetivo é despertar nas crianças o interesse pela iniciação científica dentro das áreas de pesquisas do MPEG, as oficinas e exposições com dinamização de jogos, por envolver grande parte da comunidade. Enumera-se estes elementos pedagógicos de abordagem, uma vez que, desenvolver ações de educação patrimonial é, ao mesmo tempo, angustiante, pela falta de eventos que discutam e socializem informações sobre a temática e, gratificante, por oferecer aos envolvidos a oportunidade de (re)discutir, (re)construir e (re)valorizar a produção material e imaterial de sua comunidade que, por algum motivo, vem passando por um processo de descaracterização ou mesmo aculturação.

OFICINAS DE CERÂMICA: RESGATANDO MEMÓRIAS, SOCIALIZANDO CONHECIMENTOS O primeiro trabalho desenvolvido nas comunidades foi a implantação do Clube do Pesquisador Mirim nas escolas rurais de Boa Vista e do Moura, por entendermos que a criança é um agente multiplicador mais eficiente e sincero que o adulto. Os resultados conseguidos com os alunos das escolas envolvidas podem ser verificados na elaboração de publicações, jogos e kits educativos1 que são usados como instrumento para a solidificação do sentido de preservação de suas culturas, bem como, na difusão dos resultados do Projeto. Em 1983, o Instituto da Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, lança o programa de educação patrimonial que tem por objetivo “envolver a comunidade na gestão do Patrimônio, pelo qual ela também é responsável, levando-a a apropriar-se e a usufruir os bens e valores que o constituem” (Disponível em: http://www.quilombo.org.br/html/arqmo.html. Acesso em 28 de abril de 2001), mas o que fazer quando a peça principal desta engrenagem - o homem – se encontra desmotivado, desacreditado, com baixa 1

Os trabalhos já desenvolvidos pelos alunos foram: “O Museu da Pessoa”, relatos sobre a história de 12 moradores da Comunidade de Boa Vista; “Arvore Genealógica”, folheto com linha do tempo dos integrantes do Clube do Pesquisador Mirim e o casal de escravos que fundaram a comunidade; “Uma manhã diferente”, relato sobre a visita ao orquidário e Horto da MRN; “arqueologia da Amazônia: aprenda brincando”, kit educativo com um jogo de trilha e informações sobre arqueologia e meio ambiente; “Nossas primeira palavras no mundo da cerâmica”, mini-dicionário com os termos mais usados pelas ceramistas da região; “Plantas úteis de Trombetas, cartilha com informações sobre alguns exemplares da flora da região e seu uso pelos moradores”; “Os caquinhos de cerâmica da comunidade de Boa Vista”, folheto com historinha sobre os vestígios arqueológicos encontrados na comunidade; “Passa ou Repassa: Conhecendo a Amazônia”, kit educativo com informações diversas da Amazônia.

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proximidade da Vila de Porto Trombetas e receptividade por parte da diretoria da associação e da escola.



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estima ou usurpado em seus direitos básicos enquanto cidadão? Esta foi a situação em que encontramos a maioria destas comunidades que se ressentiam da falta de apoio para aquisição do direito de usufruir água encanada e energia elétrica em suas casas. Toda esta situação, muitas vezes, contribuiu para o descrédito e fracasso das iniciativas anteriores a implantação do Projeto. Outro grande problema foi reverter a baixa estima que grande parte dos moradores possuíam por acreditar que nunca poderiam reverter o atual quadro de penúria em que se encontravam. As ações desenvolvidas no Projeto alcançaram pleno êxito, à medida em que eram confrontados os avanços obtidos com a conclusão de cada etapa de trabalho, a partir do momento em que, nas atividades oportunizamos a (re)construção do conhecimento pautado em situações de observação, discussão e análise crítica, desenvolvimento do uso de linguagens múltiplas, incentivo ao uso do conhecimento prévio e da criatividade de cada participante.



O primeiro contato com as artesãs destas comunidades foi realizado através do Clube do Pesquisador Mirim na expectativa de reverter, primeiro entre os jovens, o sentimento de indiferença e até mesmo de discriminação por este tipo de arte. Assim, diversas visitas foram agendadas, várias delas aconteceram nas residências destas senhoras que, logo no início, se mostraram reticentes e até, algumas vezes, envergonhadas ao demonstrar seus conhecimentos sobre o saber fazer cerâmica. Paulatinamente, durante os encontros, alguns jovens passaram, também, a fabricar louças de barro e apresentar nas atividades do Clube.

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Se tomarmos como exemplo as oficinas para as comunidades, no caso a de cerâmica, identificamos que as técnicas de “fazer louça de barro”, termo usado pelos próprios comunitários, encontrava-se esquecida e/ou restrita a duas ou três artesãs da Comunidade do Lago do Moura que, por motivos diversos, paulatinamente, estavam deixando de confeccioná-las. Para grande parte dos moradores destas comunidades a confecção de louça de barro não tinha caráter de bem cultural, mas sim de “coisa de índio”, entenda-se a expressão como algo ultrapassado, antigo, por isso, sem valor, assim, fabricar louças de barro como peça utilitária caiu em desuso. Outro fator importante nesta análise do processo de esquecimento é como competir com as facilidades proporcionadas pela panela de alumínio. É muito comum nas casas da região dispor nas paredes das cozinhas as panelas, impecavelmente, areadas e bem arrumadas, isto é motivo de orgulho e de limpeza. Desta forma as artesãs que ainda praticavam a arte da cerâmica foram “atropeladas pela modernidade”, com a introdução de novas tecnologias e costumes condenando, assim, ao esquecimento, este saber tradicional.

A produção de cerâmica na região de Oriximiná, oeste do estado do Pará, caracteriza-se por apresentar técnicas bastante antigas de fabricação e queima. Na confecção de uma peça as artesãs usam uma argila que, quando queimada, dá uma tonalidade cinza esbranquiçada diferente da cor ocre das cerâmicas de

O processo de fabricação da louça de barro abaixo descrito foi reconstruído por meio de conversas informais com algumas ceramistas das comunidades do Moura e Boa Vista. Segundo D. Filica, moradora do Lago do Moura, para tecer uma peça “tudo começa com o preparo da base”, geralmente em forma circular e, sobre ela, são dispostos os morrões, nome dado pelas artesãs da região aos rolos de barro feitos a mão, de tamanho e diâmetro de acordo com a altura final que se deseja a peça. Para unir os morrões usa-se o cuiapé, uma espécie de espátula feita do fruto da cuieira. Os detalhes adicionados às peças são, geralmente, feitos no gargalo de potes e bilhas, borda e/ou corpo de panelas, feitos com o auxílio da unha produzindo um efeito de franja bordada na cerâmica. Após o tecimento da peça, esta é colocada à sombra para secar. Posteriormente, passa-se a etapa do polimento e, para isto, usa-se a semente do inajá4 ou outra semente ou ainda, um seixo lavado, comumente encontrado nas margens dos rios e lagos da região. Uma técnica curiosa é a pintura com sal realizada pela moradora do Lago do Moura, D. Nazaré, o que foi socializada aos outros comunitários no decorrer das oficinas. A técnica consiste em produzir desenhos usando água salgada aplicada na peça com o dedo. O desenho só irá aparecer, posteriormente, ao processo de queima. Porém não se deve usar água muito salgada ou com grãos de sal, caso isto venha a acontecer, ela irá provocar o estouro da peça na hora da queima, alerta D. Nazaré. O cozimento ou queima das peças é feito de forma rudimentar a céu aberto usando a técnica da coivara. Primeiramente, faz-se um pequeno fogo e próximo a ele são dispostas às peças para que comecem a esquentar. Com a extinção do fogo e sobre as brasas são dispostas as cerâmicas agora aquecidas e, sobre estas, o que elas chamam de pau-a-tôa, geralmente, folhas e palhas de palmeira, gravetos e cascas de árvores, elementos de rápida combustão. Outra característica muito peculiar da cerâmica da região é o seu possível uso para cozer alimentos, caso a peça tenha esta finalidade, acrescenta-se mais uma etapa no processo de fabricação: o de impermeabilização com a resina da jutaicica5, e isto acontece com a peça logo que sai do fogo. Para D. Nazaré, o 2 3

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O cariapé ou Licania apetalata (E.Mey)Fritsch. Depois de queimada e pilada é adicionada como antiplástico no barro. espongiário (animais constituídos de muitas células) de água doce que depois de pilado é também adicionado como antiplástico no barro. Inajá (Maximiliana maripa (Aubl.) Drude Jutaicica: resina retirada da árvore do jutaí (Hymenaea courbaril) L., que é empregada na peça de cerâmica para impermeabilizá-la.

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Icoaraci, região metropolitana de Belém. Outra característica peculiar e muito antiga é o uso de antiplástico na argila o que não ocorre na cerâmica de Icoaraci. Isto é determinado pelo próprio processo de queima que é diferente, enquanto em Icoaraci usa-se o forno, na região de Oriximiná, não. Dentre os antiplásticos mais usuais na região encontram–se o cariapé2 e/ou cauixi3 ou os dois juntos.



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melhor horário de fazer a queima é nas primeiras horas da manhã, quando a maioria das pessoas está dormindo e não poderá fazer barulho ou colocar “olho gordo”, o que provocaria a quebra das peças, acredita ela. Na realidade, o que se observa é que todo o processo se da em área aberta, pela manhã sopra uma leve brisa permitindo a queima de forma constante sem mudanças bruscas de temperatura. Em outros horários, quando o vento está forte e, geralmente, soprando em uma só direção, as chances das peças estourarem são grandes em virtude do aumento de calor em apenas um lado das cerâmicas. Quanto ao repertório de peças as artesãs possuem poucas variações e obedecem sempre aos modelos tradicionais de uso local. Dentre os mais recorrentes destacamos as panelas propriamente ditas, pratos, potes, bilhas, moringas, alguidás, entre outros. Porém, com relação a superstições e crendices, cada artesã possui a sua e a elas recorrem sempre que necessitam, isto pode ser observado com a prática de uma espécie de ritual para extração do barro que começa com um pedido em forma de oração à “mãe do barro”6. Após a retirada do barro, cada artesã tece e deixa no local pequenas vasilhas ou bonecos de barro como oferendas à “mãe do barro”. Também, cada artesã possui a sua oração. Esta foi conduzida pela D. Azuleide, moradora de Boa Vista, em um dia de retirada do barro: “Eh! Minha avó!, Meu avô! Eu vim aqui tirar umas bolas de barro! Para fazer umas louças, para dar de comida aos meus filhos.” As crendices e superstições são levadas da floresta aos locais ou espaços onde acontecem às atividades das ceramistas, segundo D. Filica, a artesã, quando estiver “fazendo a louça” deve ter a mente livre de “maus pensamentos”, caso isto não aconteça, a cerâmica pode quebrar durante a queima, pois toda a “ruindade”, passará para a peça. Atualmente, o ritmo de produção e os horários para a fabricação das louças de barro podem variar de acordo com a dinâmica de trabalho e atividades diárias de cada um, o que, geralmente, é realizado nas horas em que não estão nas roças, serviço doméstico ou de coleta da castanha. O “atelier”, muitas vezes, se confunde com o espaço da própria casa ou cozinha, porém, existem artesãs que exercem o seu ofício em barracões onde é realizado o fabrico da farinha de mandioca. Às proximidades sempre existem árvores frutíferas cujos galhos, folhas e espinhos são transformados em

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Existe a crença de que quando a ceramista não pede licença para extrair o barro ou não deixa oferendas, todas as louças produzidas com aquela argila se quebrarão durante o processo de queima.

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Todo este universo é entremeado com crianças, cachorros, galinhas e patos que dividem o quintal onde a artesã põe para secar, dá polimento e queima as peças. Assim, não existe local específico de trabalho. Em decorrência das crescentes encomendas capitaneadas pela MRN, urge a necessidade de organizá-las socialmente, com local apropriado onde serão reunidos todos os elementos necessários para o exercício pleno desta arte. Ocasionalmente, a pedidos, são produzidas encomendas de outros tipos de peças, o que tem despertado o desejo de ampliar o repertório, aumentando assim as oportunidades de venda. Atualmente, discute-se criação de uma cooperativa com espaço físico em uma das comunidades para a exposição dos produtos. Outra alternativa é a comercialização da produção destas comunidades em dois espaços, sendo um no aeroporto e outro no Centro Comercial de Porto Trombetas, ambos cedidos pela MRN.

CONCLUSÕES ARTICULADAS Sobre os argumentos acima apresentados e levando em consideração o término do projeto previsto para outubro de 2005, chegaram-se as seguintes conclusões: a) a educação patrimonial é um instrumento imprescindível na (re)construção da memória e resgate da cidadania, porém, faz-se necessário, também, que esta educação seja conduzida observando as reais necessidades da comunidade, onde a educação respeite as diferenças, estabeleça o diálogo e proporcione a participação de todos os atores envolvidos, como vem acontecendo nas oficinas de cerâmica; b) o mercado irá determinar, limitar e até mesmo eliminar a produção de determinados modelos de cerâmicas em virtude das próprias transformações e diversificação de uso dos produtos que, via de regra, deixarão de ser utilitários para tornarem-se um elemento decorativo. Neste sentido, nossa preocupação é alertá-los quanto a esta possibilidade, ressaltando a importância da preservação do modo tradicional de se fazer cerâmica e do repertório de peças que lhes são característicos, sendo este o diferencial que permitirá a sobrevivência deste aspecto de sua cultura e do próprio comércio da cerâmica como alternativa de geração de renda. 7

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Incisão: “técnica de decoração da cerâmica que consiste em apertar um instrumento contra a superfície e deslizá-lo sobre a peça ainda plástica(não queimada), produzindo linhas ou desenhos em baixo relevo” (MPEG, 1999). excisão: “técnica de decoração feita antes ou depois da queima, que consiste em remover, com a ajuda de um instrumento, áreas da superfície de acordo com certa forma, tamanho e profundidade” (MPEG, 1999).

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ferramentas para aplicação das técnicas de incisão e excisão nas peças. Não pode faltar, também, o cultivo de ervas usadas na medicina caseira.



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REFERÊNCIAS BENATTI, J.H. Formas de acesso à terra e a preservação da floresta amazônica: uma análise jurídica da regularização fundiária das terras quilombolas e seringueiras. In: CAPOBIANCO, J.P.R et.al.(org.). Biodiversidade na Amazônia brasileira: avaliação, uso sustentável e repartição de benefícios. São Paulo: Estação Liberdade: Instituto Socioambiental, 2001. CUNHA, M.C da.; ALMEIDA, M.W.B. Populações tradicionais e conservação ambiental. In: CAPOBIANCO, J.P.R et.al.(org.). Biodiversidade na Amazônia brasileira: avaliação, uso sustentável e repartição de benefícios. – São Paulo: Estação Liberdade: Instituto Socioambiental, 2001. MINERAÇÃO Rio do Norte. Disponível em: http://www.mrn.com.br>. Acesso em: 07 ago.2002. MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. Relatório Anual: Projeto de Educação Ambiental e Patrimonial, 2001. MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. Relatório Anual: Projeto de Educação Ambiental e Patrimonial, 2002. MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. Relatório Anual: Projeto de Educação Ambiental e Patrimonial, 2003. MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. Arte da Terra: Resgate da Cultura Material e Iconográfica do Pará. Belém: Edição SEBRAE, 1999. PROGRAMA Educação Patrimonial. Disponível em:. Acesso em: 28 de abr. 2001. PROJETO Manejo dos Territórios Quilombolas. . Acesso em: 5mai.2002.

Disponível

em:

REIS, L.G.C; HENRIQUES,H.B.G.C (org). Nossas primeiras palavras no mundo da cerâmica. Porto Trombetas-Pa: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2002.

Moisés de Oliveira Wanghon2 Cíntia Reis Costa3

PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL A Propriedade, afirma Cristiane Derani (DERANI, 2002), possui algumas características que lhe são inerentes: a sua individualidade, seu valor monetário e objeto de satisfação individual. Essa supervalorização à propriedade, protegida como direito fundamental na Constituição Federal, é fruto da proliferação da concepção individualista advinda dos seios da Revolução Francesa. Quando se fala em Patrimônio deve-se ter uma visão mais ampla. Seria ele a totalidade de direitos e bens dos indivíduos (MARÉS, 1996). Sintetiza Derani: De fato, patrimônio representa um conjunto de propriedades como objetos exteriores aos sujeitos aptos a contribuir com a formação de sua existência. Patrimônios são (sic) objetividades necessárias para formar a individualidade e a identidade social. Nesta palavra não está impregnado o sentido individualista, mercantilista ou utilitarista dado à propriedade privada na sociedade moderna. (DERANI, 2002, p. 148) Durante muitos anos dividiu-se o patrimônio material do imaterial, acreditava-se que a cultura estava restrita aos sítios históricos, às igrejas seculares, e tudo aquilo visualmente percebido. Deu-se grande importância aos bens materiais, àquilo que era palpável em detrimento dos conhecimentos e expressões orais, tradicionais. Era a cultura monumentalista, nas palavras de Laurent Lévi-Strauss (2003). Atualmente, diz esse autor, “patrimônio material e imaterial (omissis) aparecem como um conjunto único e coerente de manifestações 1 2

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Trabalho publicado na Revista da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual, no mês de novembro. Acadêmico concluinte do curso de Direito do Centro Universitário do Pará. Bolsista do Núcleo de Propriedade Intelectual e do projeto de pesquisa “Patentes Biotecnológicas” desta Instituição. Acadêmica do 6º semestre do curso de Direito do Centro Universitário do Pará. Bolsista do Núcleo de Propriedade Intelectual e do projeto de pesquisa “Patentes Biotecnológicas” desta Instituição.

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Indicações Geográficas como Instrumento de Proteção do 1 Patrimônio Cultural Imaterial



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múltiplas(omissis)” (STRAUSS, 2003, p. 77). Entende-se que é sem sentido a separação desses institutos, uma vez que ganham mais força e reconhecimento sócio-cultural quando estão agregados, já que se protege de uma só vez a fonte de identidade do povo – que são os conhecimentos e expressões – através de instrumentos palpáveis – qualquer meio que possa salvaguardar o bem imaterial. Segundo o artigo 2.1 da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial: Se entiende por ‘patrimonio cultural inmaterial’ los usos, representaciones, expresiones, conocimientos y técnicas -junto con los instrumentos, objetos, artefactos y espacios culturales que les son inherentes- que las comunidades, los grupos y en algunos casos los individuos reconozcan como parte integrante de su patrimonio cultural. Este patrimonio cultural inmaterial, que se transmite de generación en generación, es recreado constantemente por las comunidades y grupos en función de su entorno, su interacción con la naturaleza y su historia, infundiéndoles un sentimiento de identidad y continuidad y contribuyendo así a promover el respeto de la diversidad cultural y la creatividad humana. A los efectos de la presente Convención, se tendrá en cuenta únicamente el patrimonio cultural inmaterial que sea compatible con los instrumentos internacionales de derechos humanos existentes y con los imperativos de respeto mutuo entre comunidades, grupos e individuos y de desarrollo sostenible. (UNESCO, 2003) Entra-se numa nova era onde o despertar para as bases e saberes culturais começa a ganhar força, sendo de grande valia a preservação de modo racional e ética das riquezas imateriais amazônicas.

PROPRIEDADE INTELECTUAL O Patrimônio Imaterial pode ser considerado um bem, corpóreo ou incorpóreo, que contribuindo direta ou indiretamente, venha propiciar ao homem o bom desempenho de suas atividades, que tenha valor econômico e que seja passível de apropriação pelo homem (DI BLASI, 2002). É nessa perspectiva que, almejando proteção jurídica ao patrimônio cultural imaterial, passa-se ao estudo do sistema de Propriedade Intelectual. Assim, a Propriedade Intelectual é o instrumento de proteção da criação humana, por meio da implementação de direito de apropriação ao homem sobre suas criações, obras e produções do intelecto, talento e engenho. O Sistema de Propriedade Intelectual tem como principal objetivo garantir aos inventores ou responsáveis por qualquer produção do intelecto (seja

A propriedade, no seu sentido lato, como já foi dito, é o poder de uma pessoa sobre um bem no sentido de usar, fruir e de dispor do bem, recaindo em bens materiais e bens imateriais. A propriedade dos bens imateriais é regida por regras específicas constituindo, particularmente, o direito de propriedade intelectual. No que diz respeito à propriedade intelectual, esta pode ser conceituada como direito de uma pessoa sobre um bem imaterial. Tal propriedade é concedida por um período de tempo vindo a cair, posteriormente, em domínio público, em regra. Divide-se a Propriedade Intelectual em dois grandes ramos: direitos autorais e a propriedade industrial. O Direito do autor ou Copyright refere-se aos trabalhos literários, cinematográficos, fotográficos e aos softwares. Em contrapartida, a Propriedade Industrial abrange o nome coletivo para conjunto de direitos relacionados com as atividades industriais ou comerciais do indivíduo ou companhia. Tratam de assuntos como as invenções; os modelos de utilidade; os desenhos industriais; as marcas de produto ou de serviço; de certificação e coletivas; a repressão às falsas indicações geográficas e demais indicações; e a repressão à concorrência desleal. Este artigo propõe a utilização do sistema de Propriedade Intelectual como um dos meios de proteção do conhecimento e das expressões culturais, especialmente, por meio das Indicações Geográficas, que de muito prestam ao resguardo aos bens imateriais.

INDICAÇÕES GEOGRÁFICAS As indicações geográficas são fortes instrumentos de fomento ao comércio, pois informam ao consumidor a procedência do produto e, normalmente, são vistas como sinônimo de qualidade. Constitui a forma de indicação da procedência dos produtos e serviços com a finalidade de agregar valor e credibilidade ao produto ou a serviço, conferindo-lhes diferencial de mercado em função das características de seu local de origem. (HAMES, 1998) As indicações geográficas são divididas pela doutrina em duas modalidades: Indicação de procedência - nome geográfico de um país, cidade, região ou uma localidade de seu território que se tornou conhecido como centro de produção, fabricação ou extração de determinado produto ou prestação de determinado serviço; e Denominação de origem - nome geográfico de país, cidade, região ou localidade de seu território, que designe, produto ou serviço

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nos domínios industrial, científico, literário e/ou artístico) o direito de auferir, ao menos por um determinado período de tempo, recompensa pela própria criação.



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cujas qualidades ou características se devam exclusiva, ou essencialmente, ao meio geográfico, incluídos fatores naturais e humanos. A lei brasileira sobre Propriedade Industrial, Lei 9.279/96, trata das indicações geográficas entre os artigos 176 a 182, chegando a conceituar as modalidades de indicação geográfica além de dar incumbência ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) a responsabilidade pelo registro e pela gestão das Indicações Geográficas, entre outras particularidades que serão analisadas. É importante relatar que a abrangência da proteção desta modalidade de Propriedade Industrial abraça também a representação gráfica e figurativa da indicação geográfica e a representação geográfica da localidade (art. 179, Lei 9.279/96). Destaque-se que, internacionalmente, as Indicações Geográficas são dispostas desde a Convenção de Paris em 1883, que, no seu item 1.2, aborda as modalidades das indicações geográficas4. Não obstante, foi com o Acordo de Lisboa, que o registro internacional das indicações geográficas entrou em pauta, todavia, tal registro internacional fica dificultado em razão de serem apenas 20 (vinte) os países signatários. Tal acordo acaba por conceituar denominações de origem de uma forma já vista em nossa legislação, assim, pode-se concluir que a lei brasileira pautou-se neste acordo internacional para auferir o conceito legal das modalidades de indicações geográficas5. Este acordo trabalha com o registro internacional das indicações geográficas da seguinte forma: o país que possui um sistema nacional de proteção às denominações pode requerer ao estado que ratificou o acordo a proteção. Outro diploma internacional de destaque no cenário de estudo das indicações geográficas, certamente, é o Acordo de Madri que reprime as falsas indicações de procedência. Além deste, tem-se ainda que citar o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs) que exige de todos os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) a proteção contra o uso não autorizado das indicações geográficas, por ser ato característico de concorrência desleal. Estes diplomas foram assinados e ratificados pelo Estado Democrático de Direito brasileiro, devendo, portanto, serem cumpridos. É importante evidenciar que no cenário internacional pode ser realizado o estudo das indicações geográficas no contexto multilateral que é, justamente, 4

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A proteção da propriedade industrial tem por objeto as patentes de invenção, os modelos de utilidade, os desenhos ou modelos industriais, as marcas de fábrica ou de comércio, as marcas de serviço, o nome comercial e as indicações de proveniência ou denominações de origem, bem como a repressão da concorrência desleal (in verbis). Denominação geográfica é a denominação geográfica de um país, de uma região ou de uma localidade que sirva para designar um produto originário do mesmo e cuja qualidade ou características se devem exclusivamente ao ambiente geográfico, compreendidos os fatores naturais e os fatores humanos. ( in verbis)

Outro aspecto a ser levantado é a necessidade de realizar algumas distinções para que se entenda a indicação geográfica em sua plenitude. Neste sentido, vislumbra-se ser a marca-sinal utilizado por pessoa física ou jurídica, para distinguir os seus próprios produtos ou serviços dos produtos e serviços dos seus concorrentes, enquanto a indicação geográfica é utilizada para indicar que certos produtos são provenientes de uma certa região. Ademais, ao contrário das marcas e patentes, as indicações geográficas podem ser protegidas por legislação sui generis ou decretos (é o caso da França e de Portugal), por intermédio da lei contra concorrência desleal (quando, por exemplo, é indicado produto como de uma região da qual não lhe é proveniente), protegidas também pelo registro de marcas coletivas ou marcas de certificação. (WIPO, 2003) O caso brasileiro acaba por regular as indicações geográficas utilizando três vias: a proteção pelo próprio sistema de indicação geográfica; a utilização subsidiária da proteção por marca, quando se torna comum à exploração do bem; e o combate por meio da tutela penal de combate a concorrência desleal. Destarte, o ideal de proteção ao bem imaterial em nosso estudo é a proteção pela indicação geográfica, denominação de origem ou indicação de procedência, entretanto, mesmo não sendo possível a utilização deste instituto, como no caso da ampla utilização do produto ou serviço por regiões fora de sua origem, a legislação no art. 181, nos dá o caminho da proteção por marca. E nesta particularidade, sobretudo as marcas classificadas como coletivas ou de certificação. Cumpre, então, ressaltar que as marcas coletivas servem “para identificar produtos ou serviços provindos de membros de uma determinada entidade,” enquanto as marcas de certificação são usadas para “identificar a conformidade de um produto ou serviço com determinada normas ou especificações técnicas, notadamente quanto à qualidade, natureza, material utilizado e metodologia empregada” (DI BLASI, 2002). A proteção das indicações geográficas atua, também, através da tutela penal disposta nos artigos 192 a 194, em todos os tipos penais de menor potencial ofensivo, sujeitos à competência dos Juizados Especiais, sendo cabíveis, também, a transação penal.6 6

Art. 192. Fabricar, importar, exportar, vender, expor ou oferecer à venda ou ter em estoque produto que apresente falsa indicação geográfica. Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) meses, ou multa. Art. 193. Usar, em produto, recipiente, invólucro, cinta, rótulo, fatura, circular, cartaz ou em outro meio de divulgação ou propaganda, termos retificativos, tais como “tipo”, “espécie”, “gênero”, “sistema”, “semelhante”, “sucedâneo”, idêntico", ou equivalente, não ressalvando a verdadeira procedência do produto. Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) meses, ou multa. Art. 194. Usar marca, nome comercial, título de estabelecimento, insígnia, expressão ou sinal de propaganda ou qualquer outra forma que indique procedência que não a verdadeira, ou vender ou expor à venda produto com esses sinais.

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pelo Acordo de Lisboa, ou no plano bilateral, por meio de acordos assinados bilateralmente entre países.



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Enfoque essencial da regulamentação de indicações geográficas é o imperativo do art. 180 da Lei de Propriedade Industrial que excetua a proteção por indicação geográfica ao produto ou serviço de uso comum, um exemplo claro é o queijo Minas, que transpassou a fabricação do Estado de Minas Gerais e não foi protegido como indicação geográfica e, hoje, nem pode mais ser efetivada tal medida por já ser de uso comum. Fica, então, a lição para a sociedade amazônica que, morando, numa região rica em produtos que podem ser albergados pelas indicações geográficas até o momento não o foram e, podem, com o decorrer do tempo, perder esta condição por serem de uso comum. Sob o peso desta advertência é que se deve melhorar o procedimento para concessão do título de indicação geográfica, a fim de que os estudiosos do tema se tornem meio de divulgação de tal instituto. Passa-se, então, a analisar este procedimento pautado na atuação do órgão gestor – INPI. Primeiramente, para se conseguir o uso da indicação geográfica, deve o produtor ou prestador de serviço ser do local proveniente do produto ou do serviço e, no que diz respeito às denominações de origem, devem ainda preencher determinados requisitos de qualidade (art.182, Lei 9.279/96). Como o INPI é o responsável pela gestão do sistema de indicações geográficas torna-se imprescindível o estudo dos Atos Normativos e Resolução do INPI sobre o tema em tela. E de acordo com Ato Normativo 134, de 15.04.1997, ao requerimento de registro de indicações geográficas ao INPI devem constar os seguintes formulários: pedido de registro de indicação geográfica; folha de petição; e ficha para busca figurativa. Mas, o instrumento institucional do INPI de maior importância ao estudo proposto é a Resolução 75. Ao iniciar-se a análise, dizendo quem pode ser o requerente de tal pedido, consoante ao artigo 5°, desta presente Resolução, podem como substitutos processuais, requerer: as associações, os institutos e as pessoas jurídicas representativas da coletividade, exceto se o produtor ou prestador de serviço tiver uso exclusivo, podendo neste caso requerer em nome próprio. Cada pedido de indicação geográfica deve ser individual e constar como documentação: o nome geográfico, a descrição do produto ou serviço, as características do produto ou serviço, dentre outras formalidades. Para obtenção de indicação como denominação de origem necessita-se, ainda, descrever as qualidades e características do produto ou do serviço, as quais existem, exclusiva ou essencialmente, em decorrência do meio geográfico, incluindo os fatores naturais e humanos, bem como, relatar o processo ou método de obtenção do produto ou do serviço, que devem ser locais, leais e constantes; elencar, ainda, os elementos que comprovem a existência de uma estrutura de controle sobre os produtores ou prestadores de serviços que tenham o direito ao uso

A importância de tudo que se mostrou nesta seção encontra-se na possibilidade de agregar valor aos produtos, sobretudo quando se pensa em exportá-los, como bem relata Hammes: A produção local tem condições de estender-se aos mercados internacionais. Além disso, a região tem interesse em criar sua própria indicação geográfica. Para tanto é necessário uma limpeza na própria casa. É mister substituir o nome de certos produtos amplamente conhecidos. (HAMMES, 2000, p. 300) Destarte, devemos pensar em produtos ou serviços regionais que apesar de não levarem o nome expresso de nossa região, são certamente típicos e próprios de nossa cultura, tal como o bombom de cupuaçu. Poderíamos, então, utilizá-lo como bombom da Amazônia, por exemplo. Este é um exemplo de inúmeros, bastar olhar em frente e ver-se-á a riqueza cultural que existe e as características peculiares de determinados produtos da região. È hora de abrir os olhos para isso, uma vez que a agregação de valores aos nossos produtos e serviços poderá trazer benefícios econômicos e valorização da cultura Amazônica.

PROTEÇÃO DO CONHECIMENTO E DAS EXPRESSÕES CULTURAIS TRADICIONAIS A proteção dos conhecimentos e expressões culturais através das indicações geográficas aqui proposta leva em consideração, primeiramente, uma forma de estímulo a sua conservação pois, como já foi dito, o patrimônio é um legado que passa de geração à geração, correndo o risco de desaparecer. Narra Lévi-Strauss: A literatura oral, os conhecimentos tradicionais, os saberes, os sistemas de valores, as artes de representar e as línguas constituem estas diversas formas de expressão que são fontes fundamentais da identidade cultural dos povos. Preservá-las constitui um dos meios susceptíveis de conter o risco crescente de empobrecimento cultural decorrente da revolução tecnológica nas áreas da informação e da comunicação (LEVÍ-STRAUSS, 2003, p.78)

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Requisitos constantes na Resolução 75 do INPI

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exclusivo da denominação de origem e, finalmente, comprovar a existência de produtores ou prestadores de serviços estabelecidos na área geográfica demarcada e exercendo, efetivamente, as atividades de produção ou de prestação do serviço. 7



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Em segundo lugar, há um caráter pecuniário, ou seja, ao agregar valor ao conhecimento proporciona-se aos seus detentores a possibilidade de novas atividades econômicas a partir desses conhecimentos, uma vez que há uma grande valoração social sobre produtos e serviços que possuem bases culturais. Segundo Robert Sherwood: Existe uma forte correlação entre o grau de desenvolvimento de um país e as leis e mecanismos de proteção à propriedade intelectual. Esses instrumentos de proteção, longe de serem apenas formalidades legais, constituem parte efetiva e indispensável da infra-estrutura necessária ao desenvolvimento, da mesma forma que escolas, redes de abastecimento, sistemas elétricos e escolas. (SHERWOOD, 1992) Os países em desenvolvimento devem se conscientizar da importância de uma política de propriedade intelectual dentro de suas entidades, instituições, universidades e todo e qualquer estabelecimento que incentive a criação e a cultura. A Amazônia é uma grande fonte de conhecimentos e expressões culturais. Esse potencial deve ser explorado de forma jurídica e eticamente correta. O uso das indicações geográficas traria bons resultados em termos de desenvolvimento socioeconômicos para a região, atraindo empresas e também estimulando as já existentes e, conseqüentemente, haveria a criação empregos e infra-estrutura básica. Pode-se pensar em proteção pela modalidade denominação de origem em alguns casos, em razão, não de particularidades naturais, mas sim, em razão das riquezas humanas, notadamente culturais. Note-se que no conceito apresentado de denominações de origem, existe a expressão “fatores humanos” e, nesta expressão, que deve ser apoiada à defesa do conhecimento e das expressões culturais tradicionais, está o caso dos Brinquedos de Miriti e da Arte Marajoara. Além do mais, aplica-se, também, a essa proposta a modalidade indicação de procedência, que está mais fácil de ser alcançada por não ter requisitos específicos de demonstração na requisição do INPI, como ocorre nas denominações de origem, bastando, tão somente, comprovar ser a localidade um centro de extração, produção ou fabricação de determinado produto ou serviço.

HORIZONTES DE PROTEÇÃO A região amazônica é conhecida, mundialmente, pela sua riqueza natural. Cristiane Fontes, (ISA, 2004), relata que a Amazônia é a maior floresta tropical do mundo, possuindo de 10% a 20% de 1,5 milhões de seres vivos catalogados, além de ter “a maior diversidade de primatas, anfíbios, peixes de água doce e insetos e a terceira maior de aves”. O meio científico mundial venera esses

Porém, faz-se necessário perceber que, assim como as riquezas naturais, a Amazônia também apresenta um acervo cultural vasto, o qual deve ser protegido e valorizado pela sua população. É indispensável que os detentores dessa riqueza cultural comecem a perceber o tamanho do impacto da palavra Amazônia e de tudo que deriva dessa região, e o quanto podem ser beneficiados com o simples uso deste nome associado ao produto ou serviço. Um grande exemplo a ser dado é o Artesanato de Miriti, que surgiu em 1793, durante a realização do primeiro Círio de Nazaré e perdura até os dias atuais como um dos símbolos desta festa religiosa. A palmeira do miritizeiro possui o nome científico “Maurita Flexuosa L.” (site VER-O-PARÁ) e tem uma vasta utilização, além, é claro, da fabricação do artesanato. Essa cultura vem passando de geração em geração durante muitos anos e é o grande orgulho para seu povo. Todos os anos, durante o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, a cidade de Belém fica encantada com a arte dos artesões-miritizeiros. Estes são provenientes, principalmente, de Abaetetuba, município a 70 quilômetros da capital. Há algum tempo, a profissão de artesão de miriti e, assim, o uso desse conhecimento cultural era decorrente de problemas econômicos, associado a outros trabalhos. Porém, em 2000, o Sebrae-Pará, iniciou o incentivo dessa cultura com o programa Miriti de Design, dando apoio tecnológico aos artesãos e, em 2003, surgiu a Asamab (Associação dos Artesões de Brinquedo e Artesanato de Miriti de Abaetetuba). Atualmente, muitos vivem somente da fabricação do artesanato de miriti, acarretando grande desenvolvimento comercial na região, além de preservar e repassar um patrimônio cultural imaterial que há anos faz parte da vida dessas comunidades. Agregar a história à fé que circunda esse povo e a região de origem (Amazônia) aos produtos por eles feitos (artesanato de Miriti), traz como conseqüência sua valoração, desenvolvendo mais, ainda, a sua cultura e região. Outro exemplo é a Arte Marajoara, em especial, a sua cerâmica. Esses bens marajoaras são conhecidos e valorizados tanto pelo povo brasileiro, como por antropólogos, arqueólogos e outros estudiosos do mundo inteiro. Afirmam os historiadores que essa cultura tem suas raízes aproximadamente no ano 400, depois de Cristo. Os pajés promoviam rituais de onde surgiam símbolos e imagens que deram origem às formas marajoaras. Seu estilo estético (linguagem), como explica Denise Pahl Schaan, aparece na

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números, procurando de todas as maneiras enriquecer e ganhar status com o conhecimento dos povos amazônicos.



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forma naturalista e na forma icônica (grafismos), onde cada símbolo tem seu próprio significado, sua própria mitologia, trazendo a cada objeto uma característica peculiar. Acrescentar a todas as cerâmicas marajoaras essa cultura mitológica, protegendo-a com os instrumentos da Propriedade Intelectual, seria uma forma honrosa de preservar a arte local e incentivar o povo que vive nesse lugar.

CONCLUSÕES 1. O patrimônio imaterial é a herança de toda uma evolução histórica. Sua proteção é imprescindível para a conservação e manutenção dos conhecimentos e expressões culturais tradicionais. Toda a comunidade, nação ou estado deve preservar (no presente) seu legado para garantir às futuras gerações a oportunidade de conhecer os valores e manifestações que deram existência a sua origem. 2. O sistema de propriedade intelectual, cujo escopo principal é a proteção e incentivo a toda e qualquer atividade proveniente da criatividade humana, vem resguardar também o patrimônio cultural imaterial. 3. O estudo deste artigo pauta-se na defesa do sistema de indicações geográficas como meio de preservação dos bens culturais imateriais. 4. O artesanato de miriti e a arte marajoara são patrimônios imateriais paraenses, devendo ser protegidos a fim de que essa cultura permaneça na convivência das gerações futuras. 5. O caso concreto indicará de forma mais clara qual das modalidades, indicação de procedência ou denominação de origem, servirá para a tutela deste patrimônio, uma vez que ambas servem para esta proteção. 6. Outra alternativa de salvaguardar a identidade e diversidade cultural seria a utilização do instituto sui generis das marcas coletivas. Aconselhamos que, primeiramente, busque-se a proteção pelo sistema de indicações geográficas para, depois, almejar a tutela da propriedade intelectual pelo sistema de marca coletiva, pois, acreditamos que as indicações geográficas são reguladas de forma mais clara e acabam por agregar valor aos produtos e serviços prestados por meio do uso das peculiaridades da região. 7. A proteção do patrimônio imaterial por meio das indicações geográficas resultaria na agregação de valor pecuniário aos produtos e serviços da região, impulsionando o crescimento comercial local.

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Carlos Eduardo Chaves1 Levi-Strauss (1975a), recorre às estruturas do pensamento e, portanto, a psicologia para a defesa de seu trabalho ao comparar a arte e tecnologia de povos em épocas diferentes e geograficamente distintos, que, historicamente, não seria possível realizar tais comparações. Ao analisar as armas de guerra Carib, tendo como referência os Tiriyó e os Kaxuyana, percebemos que as comparações são cabíveis, posto que esses grupos vivem na mesma área e conjugam uma afinidade cultural, por serem ambos povos de língua Carib. O estudo das armas se mostra necessário, em virtude das mesmas constituírem a base material da guerra, são os instrumentos materiais de combate, os artefatos por cujo intermédio os grupos de guerreiros antagônicos em luta decidem de fato o curso militar da guerra. Fernandes (1953), ao analisar os Tupinambá, faz diferenciações2 entre a “guerra” e os instrumentos de “guerra”, sendo impossível compreender claramente a primeira sem conhecer as armas de combate. Neste caso Frikel (1973), e seu trabalho sobre cultura material Tiriyó e Kaxuyana, descreve as armas de guerra desses grupos. Para efeito de análise, os artefatos da reserva técnica “Curt Nimuendajú” do Museu Paraense Emílio Goeldi foram as “amostras” estudadas. Na análise dos artefatos de guerra apoiamo-nos em Berta Ribeiro, (1988), Chiara, (1986) e Frikel, (1973) na identificação, classificação e descrição. As armas indígenas que serão estudadas neste trabalho estão integradas em uma categoria complexa subdividindo-se em vários grupos e, conforme Ribeiro (1988), essas categorias são: arremesso complexa, contundente de choque e apetrecho de defesa. Tais categorias têm como finalidade a formação de uma documentação padronizada, permitindo assim uma informatização das coleções e peças enquanto fontes de conhecimento sobre o acervo etnográfico, podendo ser analisadas sob uma perspectiva histórica e antropológica.

1

2

Bacharel em História pela Universidade Federal do Pará, bolsista do Programa de Capacitação Intitucional (PCI/MPEG/DTI/CNPq) do Museu Paraense Emílio Goeldi da Coordenação de Ciências Humanas. Fernandes (1953), considera as armas como artefatos que servem como instrumentos entre a inteligência dos seus guerreiros e seus objetivos.

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Reminiscências das Guerras: estudo das armas das coleções etnográficas dos povos indígenas das guianas



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Entre as flechas Tiriyó, podemos nos referir a punkato e oipantakãn-iye. As flechas pukato que segundo Frikel (1973), é um tipo raro de flecha de guerra, também usada para a caça. A ponta de taquara é profundamente recortada e, em alguns tipos o entalhe entre a extremidade da ponta e a amarração com a haste, serve para enfraquecê-la e quebrá-la pelo choque do impacto com o corpo. Na metodologia de Berta Ribeiro (1988), as flechas são classificadas a partir da tipologia da ponta. As flechas a baixo são classificadas como lanceoladas e lanceoladas arqueadas (Ver fotos 1, 2, 3). Flechas de Guerra Tiriyó

Foto 01: Carlos Chaves Flecha Laceolada

Foto 02: Carlos Chaves Flecha Laceolada

Foto 03: Carlos Chaves Flecha Laceolada

Entre as flechas de pontas farpadas fabricadas pelos Tiriyó são produzidas no total de 9 variantes, a única de finalidade guerreira é a oipantakãn-iye. Nela as farpas formam pares paralelos e, em seguida, mudam para pares intercalados, estando sempre a primeira voltada para cima e a outra para baixo. Na classificação de Ribeiro (1988), esta flecha designa-se espeque farpada bilateralmente (Ver foto 4).

Foto 04: Carlos Chaves Flecha Espeque Farpada Bilatelamente

As flechas Kaxuyana não fogem do padrão Carib de confecção e, portanto, do estilo Tiriyó. Foram verificadas na Reserva Curt Nimuendajú flechas farpadas e lanceoladas idênticas ao estilo Tiriyó (Ver fotos 5 e 6 ). Flechas Kaxuyana

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Flecha de Guerra Tiriyó



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Foto 05: Carlos Chaves Flecha Lanceolada

Foto 06: Carlos Chaves Flecha Lanceolada

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Os arcos são usados tanto na guerra quanto na caça e, entre os Tiriyó e os Kaxuyana, não há distinção entre o uso. Segundo a metodologia de Ribeiro (1988), são classificados a partir de seu corte transversal, podendo ser entre os dois povos côncavo-convexos, plano-convexos e triangulares, sendo que a diferenciação dos cortes transversas depende das flechas fabricadas por cada povo. Na língua Tiriyó o termo geral para arcos é Warápa (FRIKEL, 1973) e, geralmente, são fabricados de pau d’arco (ver fotos 7 e 8). Nos Tiriyó há um certo tipo de arco em particular, são arcos oriundos de relações comerciais com os Xaruma. O arco possui corte transversal triangular de base convexa, o que Frikel (1973), chama de arco tipo Xaruma, decorado com um trançado de algodão na empunhadura (ver foto 9). Arcos Tiriyó

Foto 07: Carlos Chaves Arco Côncavo-Convexo

Foto 08: Carlos Chaves Arco Plano-Côncavo

Foto 09: Carlos Chaves Arco Triangular “Tipo Xaruma”



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Os arcos Kaxuyana são descritos em sua mitologia, fazendo parte de um de seus mitos de origem. Para Frikel (1970), tal relato pode ser considerado histórico, embora sem datas fixas, a partir da interpretação indígena que explica a origem dos Kaxuyana no Rio Trombetas: “Purá e Mu?rá3 muitas vezes fizeram gente, mas em outra parte do mundo. Estas deram origem a outras tribos que vivem por aí. Quando Purá 4 esteve nas cabeceiras do Rio Kaxúru, ele fez a nossa gente. Panano morava lá 3

4

Purá e Mu?rá são dois heróis culturais dos Kaxuyana. Purá é o chefe e Um?rá e o seu ajudante, sendo que Purá é o seu “ser supremo.” (Frikel, 1970, p. 12). Segundo Frikel (1970), “panano” é um termo Kaxuyana para designar os ancestrais.

Neste mito de origem, os Kaxuyana descendem de arcos feitos pelos seus deuses Purá e Mu?rá, porém além de relatar a origem desses povo o mito também refere-se a ocupação do Rio Cachorro, afluente do Rio Trombetas. Os arcos Kaxuyana são feitos geralmente de pau d’arco, como o próprio mito relata, e os estudados na Reserva Técnica são todos côncavo-convexos6 (ver fotos 10 e 11). Arcos Kaxuyana

Foto 10: Carlos Chaves Arco Côncavo-Convexo

Foto 11: Carlos Chaves Arco Côncavo-Convexo

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para as serras das cabeceiras do Kaxúru e Txôrôwáhô. E lá fabricavam gente de pau d’arco. Purá fez ali uma casa bem cercada. Depois foi tirar pau d’arco daquele bonito pintado, fez os arcos e quando estavam bons, enconstou-os num canto da casa para ali virarem gente. Depois de dois dias Purá foi ver. Os arcos já tinha virado gente. Fez então uma canoa grande e mandou os homens baixar o rio para morar aqui em baixo.



199 As bordunas são classificadas museologicamente como armas contundentes de choque (RIBEIRO, 1988). Porém existem várias sub categorias de acordo com a tipologia da ponta. Conforme o uso que certos grupos indígenas lhe dão, podem acumular outras funções, tais como, arados agrícolas na preparação de terras para semear, bengalas em terrenos acidentados, para matar pequenos animais, além de possuir função ritual (MUSEU NACIONAL DE

5 6

Rios Cachorro e Cachorrinho (Frikel, 1970, p. 12). Existem quatro arcos Kaxuyana na Reserva Técnica.

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ETNOLOGIA, 2000), porém sua principal finalidade era como arma de guerra indígena. Esta arma ainda podia cumprir a função de desviar flechas do alvo que pretendiam atingir, como será verificado em um mito Kaxuyana mais adiante. Firkel (1973), afirma que os Tiriyó possuem dois tipos de bordunas, uma semelhante a um “cacete” (borduna circular lisa) e outra de forma espatulada (clava côncavo-convexa ampulhetada). As bordunas tem o nome genérico de xiwárapa, tendo um nome específico apenas para a espatulada tupanaken. O autor afirma que ambos os tipos tem a função de “golpear e furar o adversário” (1973,p. 92). As bordunas xiwárapa (circulares lisas) são paus pesados, lisos, geralmente feitos de pau d’arco. Os Tiriyó gostam de levar esta borduna em suas “marchas” pela mata e pelos campos para matar animais, cobras, ratos, onças e, ocasionalmente, defender-se de seus inimigos e em regiões acidentadas servem de bengala (ver foto 12). Borduna Xiwárapa



Foto 12: Carlos Chaves Borduna Circular Lisa

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Há um tipo de borduna circular lisa entre os Tiriyó chamada xarúman xiwárapa (cacete dos Xaruma) que distingui-se do simples cacete Tiriyó pelo cabo que mostra a cabeça do urubu-rei,7 altamente estilizado, e por uma argola de algodão com franjas. Embora não fabricado pelos Tiriyó, é encontrado com relativa freqüência, constituindo artigo de trocas intertribais (FRIKEL, 1973). Ver fotos 13 e 14. 7

Elemento representativo da guerra. Adiante farei mais referências sobre este elemento.

Foto 14: Carlos Chaves Borduna Circular Lisa

Foto 13: Carlos Chaves Borduna Circular Lisa

As bordunas chamadas tupanaken (clava côncavo-convexa ampulhetada) têm como característica a parte superior alargada em forma de espátula recortada, formando um losângulo, geralmente, decorado por desenhos ou incisões. Conforme as indicações Tiriyó relatadas por Frikel (1973), é esta a clava que representa o antigo instrumento de guerra, talvez pelo fato de possuir elementos decorativos que possibilitem a identificação étnica. Hoje em dia são utilizadas para festas e danças, fabricadas com o formato menor e de madeira mais leve, enquanto as de guerra eram maiores e de madeiras de lei pesadas (Ver fotos 15 e 16). Clavas Tupanaken

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Bordunas Xarúman Xiwárapa



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Foto 15: Carlos Chaves Clava Côncavo-Convexa Ampulhetada

Foto 16: Carlos Chaves Clava Côncavo-Convexa Ampulhetada

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Os dois tipos de bordunas (xiwárapa e tupanaken) eram, antigamente, empregadas na guerra e são, segundo a explicação Tiriyó, a sua arma “primitiva.” O próprio nome do grupo remete a isto, pois, etimologicamente, Tiriyó “matar a cacete” na língua Carib Türürü deriva de Watürü que traduzindo significa cacete e yó significa gente ou povo. Os ancestrais dos Tiriyó já possuiam bordunas antes de conhecerem o arco e a flecha e, segundo a tradição oral, o golpe típico de borduna era entre os olhos dos inimigos (FRIKEL, 1973). Não há muita informação sobre as bordunas Kaxuyana, somente três exemplares coletados por Frikel, em 1969, na Reserva Técnica Curt Nimuendajú. Fabricadas em madeira leve, possui 50 cm de comprimento, apresentando na parte superior várias farpas. Presumo que esta borduna seja usada em cerimônias e festas, não sendo usada para fins guerreiros (Ver fotos 17 e 18). Bordunas Kaxuyana

Foto 17: Carlos Chaves Borduna Circular Lisa

Foto 18: Carlos Chaves Borduna Circular Lisa

202 Na mitologia Kaxuyana é possível encontrar outras informações sobre as bordunas. No mito transcrito abaixo, além das descrições das bordunas, há um mito de guerra que coloca em cena os Kahyana que, segundo Frikel (1955), são dois povos “aparentados” com os Kaxuyana pela língua, religião e costumes, portanto, possuem ancestrais em comum, haja vista que, no decorrer de sua história, se ligariam por matrimônios o que ocasionaria a mesclagem do grupo: “Kumi-yumu era o maior guerreiro dos Kahyana. Sua arma predileta era o waiba, o cacete duto feito de âmago de pau. Ninguém o manejava como ele não usava de arco e flecha nos combates. Só com ele atacava e se defendia. E nunca foi

O autor ressalta, a partir dos Kaxuyana, a fama dos Kahyana como “brigões” baseado nas tradições dos primeiros, houve muita divergências entre eles, sendo que os Kahyana eram sempre culpados. Nos mitos os Kahyana deixaram vestígios por sua valentia que, segundo o autor, foi um dos motivos de sua extinção. Vale ressaltar que nos mitos é dado como referência de guerreiro o índio Kahyana Kayari Kumi-yumu. Na mitologia desses dois povos os índios distinguem duas qualidades de guerreiros: os Kayari que lutavam e matavam com uma borduna grande e comprida chamada awap. A outra distinção de guerreiro é o Waiha.tchawa, cuja arma de predileção era uma borduna curta chamada waiba, sendo que tais qualidades são tidas como más e ruins. A guerra entre os Kaxuyana e Kahyana não foge dos padrões Carib, de vinganças e raptos de mulheres. Claro que as versões são Kaxuyana e preferenciam uma versão da história, pois, como Lévi-Strauss (1975a), afirma “não existe versão verdadeira, da qual todas as outras seriam cópias ou ecos deformados. Todas as versões pertencem ao mito” (1975a, p.252). Também podemos fazer referência ao Morí, a festa do rapé entre os índios Kachuyana. Frikel (1961), afirma que Morí possui dois significados. O primeiro está relacionado ao rapé ao paricá e o segundo a festa do rapé. A festa tem finalidade religiosa, tendo como aspecto principal à cura contra epidemias e moléstias contagiosas, porém não é uma cura qualquer, não se limita apenas ao combate do efeito do mal, isto é, a doença e, sim, aos causadores, que são a má influência irradiada pelas forças espirituais, especialmente, os espíritos animais worókiemá (FRIKEL, 1961, p. 3). Na festa do Morí não é permitido musicas alegres, danças, presença de mulheres ou gritaria. O Morí deve espantar os espíritos animais, quebrar ou diminuir as suas forças nocivas, interromper e afastar as suas más influências, produtores do mal que são a doença e a própria morte e, portanto, deve pacificar os worókiemá, “abrandando sua coléra e estimular as suas forças benfazejas” (FRIKEl, 1961), aumentando assim as influencias boas para o individuo e a comunidade indígena, eliminando as conseqüências nocivas dos worókiemá ou prevenir-se contra elas, fortificando as próprias forças e capacidades individuais para assim vencer, ou, pelo menos, neutralizar as más influências dos worókiemá.

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vencido até que os Kachuyana o mataram. Era tão ágil e destro no manejo de seu waiba que com ele aparava as flechas, batendo-as para o lado e quebrando-as pelo golpe. Matava todos, também crianças, mulheres e velhos. Procurava brigas à toa e provocava vinganças. Matava por necessidade, por prazer e mau extinto” (FRIKEL 1955, p. 209).



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Cabe esclarecer que o Morí, rapé de paricá ou tabaco, é apenas o veículo material entre o mundo dos vivos e dos espíritos. O mediador entre os dois mundos, o responsável pelos “bons efeitos” está centrada em Uhhtarére. Esta figura mítico-religiosa é um dos poucos espíritos considerados “bons” e não pertence, diretamente, a classe dos worókiemá. Frikel (1961), afirma que Uhhtarére é piádzpore, isto é, “chefe dos pajés”, com força suprema sobre os seres, especialmente, os worókiemá. A Cerimônia do Morí inicia com o pajé “aprisionando” por meio de encantamentos toda a parte material de doenças em um “montinho” de morí. Este rapé, mais tarde, é jogado na mata. O resto do rapé existente, o pajé aspira “prendendo por meio de encantamentos” as forças boas, purificadoras e fortificantes para o indivíduo que vem de Uhhtarére, que são as forças que abrandam e pacificam os worókiemá. Porém o Morí, já possuiu outro significado. O autor argumenta que na mitologia Kaxuyana os objetos da cerimônia eram usados para fins guerreiros. Baseado em Roth (1921, p. 244), Frikel afirma que o Morí tinha por finalidade quebrar a força e a resistência de seu inimigo, encarnação de espíritos adversos e para aumentar a força própria e afastar o individuo dos males, ferimentos e a morte. O iawrawá,o instrumento de aplicação do rapé, tinha essa finalidade guerreira. O instrumento consiste em duas peças o yará-kukúru e o kurúm-kukúru, sendo ambas esculpidas em madeira. O yará-kukúru tem a forma de uma pá. O cabo se compõe de duas esculturas de onças mitológicas, os yará. Essas duas onças são um casal, colocados um contra o outro, e tem a boca amarrada para não morder. Cabe lembrar que a onça ou jaguar é uma figura simboliza guerra indígena. yará-kukúru



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Figura 01 (FRIKEL, 1961)

kurúm-kukúru

Figura 02 (FRIKEL, 1961)

Tanto o kurúm-kukúru e o yará-kukúru não servem diretamente para tomar rapé ou paricá, mas são parte integrante do estojo para o cerimonial, junto com as danças, cantigas e invocações e juramentos, haja vista, que as representações mitológicas têm que enfrentar e quebrar as más influências dos worokiemá, pois são usados somente pelos pajés durante o cerimonial e constituem uma arma de defesa contra os espíritos animais dos worokiemá. É importante ressaltar que iawrawá pertenceu a coleção particular de Frikel, não havendo similar na Reserva Técnica Curt Nimuendaju. Outro instrumento de guerra a ser analisado são as armaduras e, segundo Ribeiro (1988), essas peças são classificadas como apetrechos de defesa. Frikel (1973), distingue os tipos de armadura Tiriyó como Kwama e Nopó. Hoje não estão mais em uso, porém foram fabricadas em “tempos idos” por seus antepassados e, portanto, são classificados como objetos arqueológicos (FRIKEL, 1973). Tinham como finalidade a proteção do corpo contra flechas inimigas. O autor cita os Wayana como principal inimigo com os quais os Tiriyó freqüentemente entraram em luta.

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A segunda peça do iawrawá é o kurúm-kukúru, isto é, figura ou imagem do Kurúmu, o urubu-rei. No cabo desta peça encontra-se uma cobra mitológica toda pintada por desenhos e logo na cabeça o urubu-rei. Nas representações de guerra mitológicas o urubu-rei significa os inimigos mortos (VAN VELTHEM, 1995).



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Kwama e Nopó eram feitas de taquaraçu e taquara. Os antepassados dos Tiriyó, conforme a tradição oral, foram os que plantaram o taquaraçu em suas terras, hoje, encontra-se quase extinto. Esta matéria-prima era a base do Kwama, onde este era cortado em talas largas e chatas, semelhantes a pequenas chapas, as quais se furavam várias vezes para serem amarrados com cipós bem resistentes. A amarração era feita de uma maneira que as beiras se cobriam perfeitamente, mas, mesmo assim, permitia os movimentos necessários aos membros superiores e inferiores do guerreiro (FRIKEL, 1973). A armadura consiste em peças isoladas para perna, joelhos, braços e corpo, assim como para o pescoço e cabeça. Somente a parte central do rosto ficava descoberta: os olhos, nariz e boca. Entretanto, as peças de proteção feitas de taquaraçu destinava-se apenas ao corpo e pernas. Os outros componentes para os braços eram feitos de taquara comum e denominava-se Nopó (FRIKEL, 1973). A tradição oral Tiriyó ainda fala do uso do couro de anta e de onça como armaduras. Segundo Frikel (1973), os seus antepassados vestiam-se de pele de onça quando iam atacar aldeias inimigas. O couro ainda servia para cobrir as armaduras kwama e nopó, servindo assim de revestimento de segurança e defesa. Cabe ressaltar que Rauschert (1981), em seu trabalho sobre os padrões guerreiros Carib, também através das tradições orais, faz menção das armaduras Tiriyó e relata que não era usada por índios isoladamente. Destacamentos militares inteiros envergavam-nas por ocasião dos ataques causando um “barulho medonho” que tinha um efeito psicológico assustador. Durante a pesquisa na Reserva técnica “Curt Nimuendajú” , fui alertado pela presença no acervo8 das armaduras Kwama e Nopó, presente na coleção Prótásio Frikel, 1965. Sabendo que, mediante o trabalho de Frikel (1973), é um objeto arqueológico e não há nenhuma citação de sua existência no referido trabalho, presumo9 que esta armadura seja um modelo fabricado por um Tiriyó baseado nas tradições orais que serviu de expiração para as descrições minuciosas do autor a respeito da armadura (Ver capacete foto 19 e as armaduras Kwama e Nopó que se encontram amarradas na foto 20).

8 9

Pela técnica da Reserva Curt Numuendaju Ruth Cortez. Com o respaldo da técnica Ruth Cortez que conviveu com o autor.

Foto 19: Alegria Benchimol

Foto 20: Alegria Benchimol

Devemos compreender que a atividade guerreira não está fundada apenas no ato de guerrear. Segundo van Velthem (1995), a indumentária guerreira representa um conjunto que compreende as armas, a ornamentação corporal, a aplicação de medicinas e outros elementos que propiciam o incremento do desempenho do guerreiro e da identificação étnica. Portanto as armas Tiriyó e Kaxuyana que foram analisadas são o que os caracterizam e os transformam em guerreiros únicos, pois permitem a sua identificação pelo inimigo e também por seus companheiros de mesma etnia, dando-lhe uma identidade e autenticidade próprias. A cultura material, segundo Ribeiro (1985), tratada neste artigo, são estudadas fora do contexto, isto é, nas reservas técnicas dos museus. Conforme a autora, os artefatos não podem ser tidos em uma esfera residual ou independente da cultura que os concebeu, pois devem ser estudados a proporcionarem evidências sobre os domínios cognitivos da cultura, devendo ser feito por meio de métodos comparativos, desde que os temas e os objetos sejam compatíveis. Então podemos sublinhar a importância das Reservas Técnicas, locus pesquisado, como prolongamento do campo “...a comunicação com o meio indígena...a diversidade das manifestações do gênio humano...experiência de uma riqueza e de uma diversidade que não teríamos razão de subestimar...” (LÉVI-STRAUSS, 1975b, p. 419). Segundo a afirmação deste antropólogo, as reservas técnicas constituem laboratórios ou conservatórios de objetos onde é possível a realização de estudos que vão além do aspecto visível do artefato, como por exemplo: línguas, crenças, atitudes e personalidades. A análise de coleções etnográficas constitui, então, um importante campo na coleta de dados para os estudos de cultura material e, sob este ponto de vista, as reservas técnicas podem ser compreendidas como um local onde se efetua a pesquisa de campo.

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Armaduras Kwama e Nopó



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Sendo assim, o estudo de coleções etnográficas, localizadas em museus, é pertinente na medida que organiza informações museológicas, antropológicas e históricas, em virtude do desenvolvimento das análises da cultura material indígena. Cada artefato é passível de análises das propriedades físicas como a composição matéria, técnicas manufatura e de análises contextuais, como usos, funções e outros significados contidos nas peças, posto que as mesmas agregam informações extremamente ricas e complexas, de diferentes ordens, sobre a sociedades que as produziram (CHAVES, 2002).

CONCLUSÕES ARTICULADAS 1. Coleções Etnográficas como fontes históricas. 2. Análise do contexto guerreiro através da cultura material. 3. Estudos do patrimônio material Tiriyó e Kaxuyana. 4. Estudos museológicos nas coleções Tiriyó e Kaxuyana. 5. Análise do patrimônio imaterial das sociedades em questão, como a mitologia. 6. Estudo do patrimônio material das sociedades em questão através do trabalho de coleções dispostas em reserva técnica.

REFERÊNCIAS CHAVES, Carlos Eduardo. Arco e Flecha Tiriyó: levantamento e pesquisa nas Coleções Etnográficas do Museu Paraense Emílio Goeldi. Relatório de Pesquisa. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2002. CHAVES, Carlos Eduardo. Guerra entre os Carib: estudo de armas nas coleções etnográficas dos povos indígenas nas Guianas. Trabalho de Conclusão de Curso/Relatório de Pesquisa. Belém: Universidade Federal do Pará/ Museu Paraense Emílio Goeldi, 2003. CHIARA, Vilma. Armas: bases para uma classificação. In: RIBEIRO, Darcy (Ed.). Suma Antropológica Brasileira. Edição Atualizada do Handbook of South American Indians. Tecnologia Indígena. Petrópolis: FINEP: Vozes, 1986. V. 2. FERNANDES, Florestan. A função social da guerra na sociedade Tupinambá. Revista do Museu Paulista, n. 6, 1953.

FRIKEL, Protásio. Morí – A Festa do Rapé: índios Kaxuyana; rio Trombetas. Boletim do Museu Emílio Goeldi, n. 12, 1961. FRIKEL, Protásio. Os Kaxuyána: notas etno-históricas. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi. Publicações Avulsas n. 14, 1970. FRIKEL, Protásio. Os Tiriyó: Mustermam-Druck, 1973.

Seu

sistema

adaptativo.

Hannover:

LÉVI-STRAUSS, Claude. “O desdobramento da representação nas artes da Ásia e da América.” In: Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro, 1975a. ______ “Lugar da Antropologia nas Ciências Sociais e problemas colocados por seu ensino.” In: Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975 b. RAUSCHERT, Ulrike. “Armas de guerra e padrões guerreiros das tribos Karib.” Revista do Museu Paulista, N. 23, 1981. RIBEIRO, Berta. “Os estudos de cultura material: propósitos e métodos.” . Revista do Museu Paulista, N. 30, 1985. RIBEIRO, Berta. Dicionário do artesanato indígena. Belo Horizonte: Itatiaia: São Paulo: EDUSP, 1988. ROTH, Walter. The arts, grafts and custom of the Guiana indians. New York: Johnson Reprint, 1921. VAN VELTHEM, Lúcia. O belo é a fera: a estética da produção e da predação entre os Wayana. Tese (Doutorado.) - São Paulo, USP, 1995.

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FRIKEL, Protásio. Tradições histórico-lendárias dos Kaxuyána/Kayhána do rio Trombetas”. Revista do Museu Paulista, n. 9, 1955.



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Silvia Regina Dain Gandelman1

JUSTIFICATIVA Conceitos já cristalizados de propriedade intelectual em oposição aos novos conceitos de patrimônio cultural imaterial e sua recentíssima construção jurídica, apontar as semelhanças e caracterizar as diferenças pode ser benéfico para a discussão que apenas se inicia.

INTRODUÇÃO A publicação do Decreto nº 3551, de 4 de agosto de 2000, criando o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial Que Constituem Patrimônio Cultural Brasileiro vem suscitando inúmeros debates e provocou a publicação de diversos artigos sobre o tema, a maior parte, trazendo à baila as perguntas de sempre: a) o que vem a ser “patrimônio cultural brasileiro”; e b) como conceituar “bem cultural de natureza imaterial”. Verificamos em textos escritos por vários doutrinadores, antropólogos, historiadores e especialistas em patrimônio que os conceitos básicos para as definições que se fazem necessárias estão causando alguma perplexidade, especialmente, se analisadas despidas dos significados jurídicos aplicáveis. Trataremos, a seguir, porque julgamos oportuno, de analisar tais expressões sob a ótica das informações trazidas pelas normas da propriedade intelectual que talvez possam colaborar para facilitar a compreensão de algumas noções, atualmente, eivadas de um certo ceticismo e, porque não acrescentar, de uma grande confusão.

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Advogada, especializada em propriedade intelectual com ênfase em direitos autorais, mestranda do CPDOC/FGV em Produção de Bens Culturais e Projetos Sociais.

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Propriedade Intelectual e Patrimônio Cultural Imaterial uma Visão Jurídica



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DA ORIGEM DOS CONCEITOS — PROPRIEDADE INDUSTRIAL (MARCAS E PATENTES) E DIREITOS AUTORAIS. Herdamos da antigüidade grega, dos hebreus e dos romanos quase todas as diretrizes jurídicas que norteiam a sociedade moderna, em especial, certos institutos que foram altamente desenvolvidos ao longo de todo o Império Romano. Entretanto, os romanos, que tão aplicadamente legislaram sobre as questões de direitos de propriedade e patrimônio, não conheceram a propriedade intelectual, ou para melhor dizer, não a reconheceram. Este povo que, contribuiu enormemente para o desenvolvimento das artes e das ciências, não foi capaz de separar o criador da criatura, em termos jurídicos, noção fundamental para reconhecer tal propriedade. Nas artes, os pintores, escultores e escritores eram considerados prestadores de serviços, por vezes até escravos dos nobres e governantes. Nos ofícios, as invenções e suas marcas características eram utilizadas em benefício dos patrões e proprietários, portanto, indissolúveis de seus demais bens. Coube ao Renascimento e às Corporações de Ofício o crédito de reconhecer as primeiras invenções que favoreceram as indústrias de tecidos (teares ou técnicas novas de tingimento), surgindo então na Europa, mais particularmente, em Bordeaux e Veneza, os primeiros privilégios concedidos aos cidadãos pelos príncipes e governantes para a exploração de seus inventos por um período de tempo determinado. Uma certa invenção, na época dos descobrimentos, permitiu ao alemão Gutemberg, em 1554, o privilégio de exploração da prensa móvel. Além da revolução causada pela nova invenção no campo do ensino e disseminação da cultura e da religião (permitiu que a leitura da Bíblia saísse dos mosteiros, provocando os movimentos da Reforma) separou-se, pela primeira vez, o conteúdo de uma obra literária (do autor) do direito e da capacidade de reproduzi-la (do editor), surgindo a noção de direito autoral. Para que exista obra passível de proteção pelo direito autoral é preciso que o “corpus mysticum” ou seja, a criação intelectual, esteja fixado sobre um suporte físico, o “corpus mechanicum”. Entretanto, na época de Gutemberg, a legislação protegeu apenas o privilégio do inventor, passando-se quase 2 (dois) séculos até que os autores tivessem seus direitos reconhecidos. Em 1710, na Inglaterra, através dos Estatutos de Anne, a rainha reconheceu e concedeu aos autores de peças teatrais, obras musicais e literárias de seu reino, o direito de perceber remuneração sobre a renda auferida por estas obras, quando impressas ou apresentadas ao público. A este direito, concedido por decreto real e válido por um período de 7 (sete) anos, prorrogável por outro período igual, contado à partir da primeira utilização ou publicação da obra, deu-se o nome de “copyright” e os pagamentos dele originários foram chamados de “royalties” ou regalias, nome que prevalece até esta data. Do outro lado do

DAS CONVENÇÕES INTERNACIONAIS SOBRE PROPRIEDADE INTELECTUAL AOS DIREITOS LOCAIS — LEGISLAÇÃO BRASILEIRA Na época da Revolução Industrial, com a invenção e a utilização do trem que provocou maior contato entre as jovens nações européias, valorizaram-se as invenções e as criações literárias e musicais e a proteção dos bens intangíveis, que não respeitam as fronteiras físicas, tornaram-se alvo do direito internacional. Assim, mais de 20 (vinte) países firmaram em 1883 a mais antiga convenção internacional, a Convenção de Paris, estabelecendo os princípios de reciprocidade da proteção à propriedade industrial (marcas e patentes), além de estabelecer as regras mínimas uniformes para tal proteção. Em 1886, em Berna, foi a vez da Convenção de Berna, para a proteção do direito autoral, estabelecendo, também, o princípio da reciprocidade entre os países-membros, além de consagrar a proteção através do “droit d’auteur”. Os Estados Unidos, Inglaterra e demais países que outorgavam proteção pelo instituto do “copyright” assinaram em Genebra, a Convenção Universal de Direitos. No Brasil, desde a Constituição Republicana de 1891, encontramos a proteção, tanto à propriedade industrial quanto ao direito autoral, no art. 72 Item 25, “Os inventos industriais pertencerão aos seus autores, aos quais ficará garantido por lei um privilégio temporário ou será concedido pelo Congresso um prazo razoável, quando haja conveniência de vulgarizar o invento.” Item 26 “Aos autores de obras literárias e artísticas é garantido o direito exclusivo de reproduzí-las pela imprensa ou qualquer outro processo mecânico. Os herdeiros dos autores gozarão desse direito pelo tempo que a lei determinar.” Item 27 “A lei assegurará também a propriedade das marcas de fábrica.” Os mesmos princípios e dispositivos foram sendo repetidos nas diversas Constituições Federais e hoje estão consagrados no art. 5º, itens XXVII (direitos autorais) XXVIII (direitos artísticos) e XXIX (propriedade industrial – marcas e patentes) da atual Constituição.

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Canal da Mancha, os iluministas inspiraram a Constituição Francesa de 1791, que consagrou, dentre os direitos individuais, o “droit d’auteur, princípio semelhante ao inglês com uma diferença fundamental: como era considerado uma extensão da personalidade do autor, perduraria por toda a sua vida e por um período adicional após a sua morte, beneficiando seus herdeiros. Estas concepções jurídicas espalharam-se no rastro das idéias liberais francesas e logo todas as constituições do mundo ocidental protegiam os privilégios dos inventores, as marcas e os direitos autorais, umas se pautando pelo princípio do direito inglês (copyright), outras seguindo a orientação do “droit d’auteur”.



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Durante anos, as convenções internacionais e a legislação local trataram, separadamente, os direitos autorais, vinculados à personalidade do autor, de caráter cultural ou de entretenimento e os direitos de propriedade industrial (marcas e patentes), associados a um caráter comercial e utilitário. Porém, à partir do advento da informática, as convenções internacionais passaram a ser administradas em conjunto pela OMPI (Organização Mundial de Propriedade Intelectual) que uniu os dois institutos sob o chapéu da “propriedade intelectual”, que abrange ainda os programas de computador, as topografias de circuitos integrados (chips, maskworks) e os nomes de domínio na Internet. O arcabouço jurídico de proteção da propriedade intelectual, atualmente, no Brasil, além das normas constitucionais já mencionadas, é formado por: Lei 6533/78 (direitos artísticos), Lei 9279/96 (propriedade industrial), Lei 9609/98 (Lei do software), Lei 9610/98 (direitos autorais).

DA NATUREZA DOS REGISTROS — DIREITOS AUTORAIS E PROPRIEDADE INDUSTRIAL — DEFINIÇÕES — CONCEITO DE DOMÍNIO PÚBLICO. Já discorremos sobre as diferenças entre direitos autorais e propriedade industrial. “A Lei de Propriedade Industrial, como o nome indica, trata exclusivamente das invenções de caráter industrial. O conceito de indústria se entende no seu sentido mais amplo, englobando toda e qualquer atividade humana de produção de bens e serviços, incluindo, dentre outras, a agricultura... A Lei consagra quatro formas de proteção para criações e invenções, de acordo com as várias modalidades da propriedade industrial:   a patente de invenção;   a patente de modelo de utilidade;   o registro de desenho industrial; e   o registro de marca. ( In : SIEMSEN, Bigler ; IPANEMA MOREIRA. Lei da Propriedade Industrial : Comentários. Editora Renovar , 2001). As patentes e os registros concedidos com base na Lei 9279/96 têm caráter de privilégio e outorgam a exclusividade na exploração e no uso, pelo prazo de concessão. Já a legislação autoral estende sua proteção às criações intelectuais, expressas sob qualquer forma. O texto legal é amplo, pois define que estas criações podem ser expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, seja este tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro. Os

Resumindo, as patentes e os registros previstos na Lei de Propriedade Industrial tem caráter atributivo de direitos (grifo nosso), enquanto que o registro previsto na legislação autoral é facultativo e tem caráter meramente declaratório. (grifo nosso). Já mencionamos neste estudo que os direitos conferidos pela Lei da Propriedade Industrial e pela Lei de Direitos Autorais são temporários. Uma vez esgotados os prazos estabelecidos pela legislação ordinária, a obra intelectual cai em domínio público, ou seja passa a ser patrimônio comum, industrial ou autoral, em proveito de toda a sociedade.

DO CONCEITO DE PATRIMÔNIO CULTURAL — TRATAMENTO CONSTITUCIONAL — ANTECEDENTES — ANTE-PROJETO DE MÁRIO DE ANDRADE (1936) — DECRETO-LEI 25 DE 30/11/37. Analisando as constituições federais, à partir de 1934, encontramos normas ressaltando a responsabilidade do Governo Federal, Estados e Municípios, sobre patrimônio e cultura. em 1934, o Capítulo II (Da Educação e da Cultura) estabelece: “Art. 148 – Cabe à União, aos Estados e aos Municípios favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do país, bem como prestar assistência ao trabalhador intelectual”. Em 1937, no Capítulo Educação e Cultural, diz textualmente o artigo 134 “Os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou os locais particularmente dotados pela natureza gozam da proteção e dos cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos Municípios”. Em 1946, diz o art. 175: “As obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as paisagens e os locais dotados de particular beleza ficam sob a proteção do poder público”.

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programas de computador também são protegidos pelo instituto de direito do autor, mas sob a égide de legislação própria (Lei 9609/98). Os bancos de dados também merecem proteção como obras passíveis de direito de autor, desde que a compilação ali existente constitua uma obra original. Ao titular do direito é conferido o direito exclusivo de usar, publicar e reproduzir a obra, sob qualquer forma. A proteção é conferida, independentemente. de registro, que é opcional no Brasil — o que está em conformidade com algumas das convenções internacionais das quais é signatário nosso país. (In SIEMSEN, Bigler ; IPANEMA MOREIRA. Lei da Propriedade Industrial : Comentários. Editora Renovar, 2001).



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A Constituição Federal do Governo Militar dizia, em 1967, artigo 172: “O amparo à cultura é dever do Estado. § único: Ficam sob a proteção especial do Poder Público os documentos, as obras e os locais de valor histórico ou artístico, os monumentos e as paisagens naturais notáveis, bem como as jazidas arqueológicas”. Este artigo foi repetido na íntegra na Emenda Constitucional nº 1 de 1969. Finalmente, na Constituição Federal de 1988 aparecem dispositivos sobre patrimônio imaterial, como abaixo: “Art. 216 – Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial (grifos nossos) tomadas individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I . as formas de expressão; II. os modos de criar, fazer e viver; III. as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV. as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manipulações artístico-culturais; V. os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. § 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventário, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”. ................................................................................................................. Depreendemos dos textos constitucionais que até 1988, o patrimônio era definido como monumentos e obras de valor artístico, alcançando os bens de natureza imaterial apenas a C.F. de 1988, atualmente em vigor. No passado, a legislação federal mais importante no cumprimento do dispositivo constitucional foi o Decreto-lei 25 de 30 de novembro de 1937, publicado no início do Estado Novo e que já vinha sendo discutido, por iniciativa de Gustavo Capanema, durante o Governo Constitucional de Getúlio Vargas (1934 a 1937). Mário de Andrade, por sugestão de Capanema, então Ministro da Educação e Saúde, elaborou ante-projeto para o Serviço do Patrimônio Artístico Nacional, e considerava arte como “habilidade com que o engenho humano se utiliza da ciência, das coisas e dos fatos”, pois para Mário, arte equivalia a cultura (MEC/SPHAN/FNPM 1980 p. 97). Ao descrever, nesse projeto, a categoria das artes arqueológica e ameríndia, o poeta explicou que ela compreendia não apenas artefatos colecionáveis, mas também as paisagens e o folclore (id., ib. m p. 92). Assim, ao lado das jazidas funerais, dos sambaquis, das cidades lacustres, dos

O ante-projeto, no entanto, sofreu radicais modificações, deixando de incorporar o pensamento visionário de Mário de Andrade sobre patrimônio, prevalecendo a corrente monumentalista de Rodrigo Melo Franco de Andrade. Publicado o Decreto-Lei 25 de 30/11/37, criando o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, percebe-se já no texto do diploma legal e a seguir na atuação do SPHAN a opção por uma corrente elitista, à partir das definições. De acordo com o artigo 1º do mencionado decreto: “Constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. “§ 1º Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional, depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o art. 4º desta lei.” O pensamento que originou a criação do SPHAN e o Decreto-Lei 25 é o mesmo que fundamentou a criação do Estado Novo — o nacionalismo autoritário que preconiza a necessidade de um estado forte, capaz de educar sua população livre de influências exógenas, unido em torno de um passado glorioso, coeso em relação aos princípios morais e religiosos, sob marca da influência da religião católica. De acordo com Joaquim Falcão, em sua obra Política Cultural e Democracia, a preservação do patrimônio histórico e artístico nacional — Miceli (org) Estado e Cultura no Brasil, Dijel 1984, “a política federal de preservação do patrimônio histórico e artístico se reduziu praticamente à política de preservação arquitetônica do monumento de pedra e cal. O levantamento sobre a origem social do monumento tombado indica tratar-se de a) monumento vinculado à experiência vitoriosa da etnia branca; b) monumento vinculado à experiência da religião católica; c) monumento vinculado à experiência vitoriosa do Estado (palácios, fortes, fóruns, etc.) e na sociedade (sede de grandes fazendas, sobrados urbanos, etc.) da elite política e econômica do país (1984 p. 28)”. Teoricamente, em seu capítulo II, artigo 4º, o Dec.lei 25, prevê a possibilidade de inscrição no “Livro de tombo arqueológico, etnográfico e paisagístico de bens culturais de origem amerindia e popular”, entretanto, a

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mocambos, da arquitetura popular, estavam no rol patrimonial de Mário de Andrade, os vocabulários, os cantos, as lendas, a medicina e culinária indígenas, a música, os contos, os provérbios e outras manifestações da cultura popular.” (SANT’ANNA, Márcia. A Face Imaterial do Patrimônio Cultural. In : Abreu, Regina ; Chagas, Mário. Memória e Patrimônio : Ensaios Contemporâneos. Rio de Janeiro. Ed. DP & A, 2003).



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política do SPHAN, até os anos 60, foi a de utilizar unicamente o instituto do tombamento para os monumentos da elite.

PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL — ANTECEDENTES — CENTRO NACIONAL DE REFERÊNCIA CULTURAL (CNRC) — FUNDAÇÃO NACIONAL PRÓ-MEMÓRIA — ALOÍSIO MAGALHÃES — BENS DE NATUREZA IMATERIAL — CONCEITO — FORMAS CONSTITUCIONAIS DE ACAUTELAMENTO E PRESERVAÇÃO INTELECTUAL — O DECRETO Nº 3551 DE 4/8/2000. O conceito de patrimônio cultural evoluiu muito nas décadas de 70 e 80, também por influência da política cultural da UNESCO, de 1972, que foi ratificada no Brasil pelo Presidente Geisel. À partir desta época, o IPHAN concordou em tombar bens como o Terreiro de Candomblé Casa Branca, em Salvador, cujo processo data de 1982. No entender de Aloísio Magalhães, o Brasil é um país de cultura nova, ainda não completamente consolidada como a cultura européia. É preciso, portanto, preocupar-se também com as manifestações dinâmicas da cultura, identificá-las, registrá-las para que se possam classificá-las, indexá-las e depois devolvê-las à comunidade para então agir como for mais adequado em cada caso. As primeiras reações ao conceito monumentalista de “pedra e cal” do SPHAN e à sua arte elitista partiram, na década de 70, do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), criado como uma secretaria do MEC em 1975, que foi absorvido em 1980, pela Fundação Nacional Pró-Memória. A iniciativa coube à Aloísio Magalhães, artista plástico e designer que, como secretário de cultura do MEC, criou e inspirou a Fundação Pró-Memória, comandando o reordenamento das instituições federais de cultura, sob uma visão da integração dos saberes populares no conceito geral da nacionalidade. Segundo Aloísio Magalhães, entre os bens imóveis e móveis preservados pelo valor histórico e os bens culturais particulares de criação espontânea individual que compõem nosso acervo artístico, existem bens e manifestações populares que não são reconhecidos, nem pela primeira nem pela segunda categoria que, no entanto, é a alma viva que faz pulsar a nação. Graças aos seus esforços, retomou-se no Brasil a linha do pensamento de Mário de Andrade, de 1936, e que era, segundo Joaquim Falcão, avançada demais para a época em que foi concebida. Como conseqüência, movimentaram-se as organizações culturais em torno da Constituinte de 1988, tendo sido alterado, pela primeira vez no Brasil, o dispositivo constitucional que permeou as diversas constituições anteriores, como já ficou demonstrado no Capítulo 5. Surgiu, como conseqüência da Constituição Federal de 1988, pela primeira vez na legislação brasileira o conceito de

Vários doutrinadores pátrios escreveram sobre o conceito de bem cultural imaterial, procurando classificá-lo no meio de definições culturais e antropológicas. Não lograram êxito porque a noção de bens passa pelo Código Civil e pela legislação de propriedade intelectual, a compreensão do termo deve, necessariamente, ultrapassar a dualidade do “corpus mysticum” e do “corpus mechanicum” já demonstrada ao Capítulo 3. Senão vejamos: a definição na Lei 9610/98 — Artigo 7º “São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: ................” E na mesma lei, no art. 3º “Os direitos autorais, reputam-se, para os efeitos legais, bens móveis. Consequentemente, bens imateriais são as criações do espírito exteriorizadas em qualquer suporte, classificados de bens móveis para os efeitos legais. Ultrapassada a primeira dificuldade, a do conceito, verificaremos, à luz das leis que regulam a propriedade intelectual, qual o tipo de proteção possível para os bens elencados na Constituição Federal. Temos assim: a) formas de expressão — passíveis de proteção autoral desde que exteriorizadas em qualquer suporte (Art. 7º Lei 9610/98); b) os modos de criar, fazer e viver — excluídos da proteção autoral consoante art. 8º da Lei 9610/98 “Não são objeto de proteção como direitos autorais de que trata esta Lei: “as idéias, procedimentos normativos, sistemas inéditos, projetos ou conceitos matemáticos como tais...”; e c) as criações artísticas, científicas e tecnológicas. Se tiverem aplicabilidade industrial, podem ser protegidas como patente, modelo de utilidade de desenho industrial, se gerarem obras de arte, livros, projetos arquitetônicos ou programas de computador, são protegíveis pelo direito de autor. Devemos lembrar, por oportuno, que a proteção autoral e a da propriedade industrial duram apenas por um prazo determinado, caindo depois em domínio público. Nesta hipótese, a responsabilidade também é do Estado, conforme art. 24 § 2º da Lei autoral: “Compete ao Estado a defesa da integridade e autoria da obra caída em domínio público”., A lei autoral prevê ainda “Art. 45. Além das obras em relação às quais decorreu o prazo de proteção aos direitos patrimoniais, pertencem ao domínio público: I. As de autores falecidos que não tenham deixado sucessores; e II. As de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal aos conhecimentos étnicos e tradicionais.” Qual seria esta proteção legal outorgada aos conhecimentos étnicos e tradicionais, fora do texto constitucional do artigo 216, já analisado?

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“patrimônio cultural imaterial”, que seriam: as forma de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas.



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Provavelmente, sua regulamentação, que veio através do Decreto nº 3551/00 que passamos a analisar. Da leitura do Decreto, que institui o registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o programa nacional do patrimônio imaterial, verificamos que, ampliando a noção de patrimônio cultural nos termos do art. 216 da C.F., foi criado um registro próprio, na esfera organizacional do IPHAN, para a inscrição dos bens culturais imateriais julgados relevantes. Assim, foram estabelecidos 4 (quatro) tipos de registro, conforme a natureza do bem, ou seja: I. Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; II. Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; III. Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; IV. Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas. Verifica-se, porém, que o “Programa Nacional do Patrimônio Imaterial”, visando à implementação de política específica de inventário, referenciamento e valorização desse patrimônio, que deveria ser implantado em 90 (noventa) dias, no âmbito do MINC, até a presente data não foi regulamentado. Ainda assim, o Decreto já colheu seus primeiros frutos, tendo sido registrado, o Kusiwa, arte gráfica Wajãpi, por iniciativa do Museu do Índio. O registro foi o de número hum, no Livro de Registro de Formas de Expressão e tem a data de 20 de dezembro de 2002. Entendemos que ainda falta regulamentar os vários dos tipos de proteção previstos no art. 216 da C.F., porém o registro mencionado é um bom começo.

OS TRATADOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS FIRMADOS PELO BRASIL. A OMPI E A UNESCO — O TRIPS. O Brasil é signatário de diversas convenções internacionais no âmbito da propriedade intelectual. A OMPI é administradora das Convenções de Paris (marcas e patentes, Berna – direitos autorais), além do tratado sobre a Interpretação ou Execução de Fonogramas.

Ultimamente, no âmbito da Organização Mundial de Comércio, a OMC, percebeu-se que a propriedade intelectual era um item valioso de comércio exterior, tendo sido firmado o TRIPS (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights), a que o Brasil aderiu em 1995. Este tratado, com 135 países membros, impõe a cooperação internacional para a proteção contra violações aos direitos intelectuais, como a pirataria. É dentro deste cenário que a proteção ao patrimônio cultural imaterial deve se inserir, para que a legislação nacional de proteção possa ser cumprida, uma vez que tal propriedade, como se sabe, não respeita fronteiras físicas.

CONCLUSÕES Estabelecidos os conceitos jurídicos, as formas de proteção disponíveis na legislação brasileira e internacional e a franca evolução do estabelecimento do patrimônio cultural brasileiro à partir dos anos 70, concluímos que: 1. a legislação sobre propriedade intelectual atualmente existente somente protege a obra nova por um período de tempo, não sendo portanto adequada para a proteção de manifestações culturais que se repetem há longos anos; 2. os registros de propriedade intelectual têm a finalidade de proteger as obras para fins de utilização econômica; o registro proposto para o bem cultural imaterial tem por finalidade a permanência e preservação de usos e costumes, que costumam ser fontes da criação intelectual; 3. o conceito de patrimônio cultural imaterial surgiu, oficialmente, com a publicação da Constituição Federal de 1988 (art. 216) e foi regulamentado através do Decreto 3551/2000, que criou o respectivo registro, no entanto, normas para o desenvolvimento do “Programa Nacional do Patrimônio Imaterial”, visando à implementação de política específica de inventário, referenciamento e valorização desse patrimônio não foram editadas até a presente data; 4. as convenções internacionais que administram e regulam a propriedade intelectual e os bens culturais não prevêem, em regime de reciprocidade, a proteção desejada para os bens culturais imateriais, apesar das inúmeras iniciativas que vêm sendo tomadas no âmbito da OMPI e da UNESCO;

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A UNESCO, por sua vez, administra a Convenção Universal sobre Direito do Autor, celebrada em 1952, para normalizar as relações com os Estados Unidos, que só aderiram a Berna, com reassalvas, em 1988. E em conjunto com a OIT, e com a OMPI, administra a Convenção de Roma para a Proteção dos Artistas, Intérpretes ou Executantes, dos Produtores de Fonogramas e dos Organismos de Radiodifusão de 1961.



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5. É necessário e URGENTE, portanto, considerando a rápida propagação do tema e dos interesses envolvidos que a proteção e a valorização do patrimônio cultural imaterial venham através de normas jurídicas próprias, tanto no âmbito nacional quanto no âmbito internacional, uma vez que as normas criadas até aqui são tímidas e insuficientes, meros preceitos sem sanções adequadas. Imperiosa ainda, a organização neste sentido das sociedades e associações civis, uma vez que estas, ao lado das instituições governamentais, podem provocar a instauração dos processos de registro.

BIBLIOGRAFIA ABREU, Regina; CHAGAS Mário. Memória e Patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Ed. DP & A. 2003. BASSO, Maristela. O Direito Internacional da Propriedade Intelectual. [ s.l.]: Ed. Livraria do Advogado. 2000. DANNEMANN, SIEMSEN, BIGLER; IPANEMA MOREIRA. Comentários à Lei da Propriedade Industrial e Correlatos. [ s.l.]: Ed. Renovar. 2001. TEXTOS ABREU, Martha. Cultura Popular: Um Conceito e Várias Histórias. In: ABREU, Marta .; SOIHET, Rachel (orgs.) Ensino de História. Rio de Janeiro: Ed. Casa da Palavra, 2003. FONSECA, Maria Cecília Londres Fonseca. Da Modernização à Participação: A Política Federal de Preservação nos anos 70 e 80. Revista do Patrimônio, n. 24, 1996. GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Monumentalidade e Cotidiano: Os Patrimônios Culturais como Gênero de Discurso. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi (org.). Cidade: História e Desafios. Rio de Janeiro : FGV, 2002. GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O Jogo da Autenticidade: Nação e Patrimônio Cultural do Brasil. MAGALHÃES, Aloísio. Bens Culturais — Instrumento Para um Desenvolvimento Harmonioso. VELHO, Gilberto. Antropologia e Patrimônio Cultural. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional n 20, p. 37-39, 1984.

Regina Oliveira1 Benedita Barros2 Ruth Almeida3 Juliana Magalhães4 Carlos Lira5

1 APRESENTAÇÃO Monte Alegre foi uma das primeiras regiões da Amazônia Oriental a despertar o interesse dos colonizadores europeus. Alguns dos mais importantes naturalistas do Velho Mundo que visitaram a Amazônia nos séculos XVIII e XIX citaram a região de Monte Alegre em seus relatos. O Município de Monte Alegre está situado a noroeste do Estado do Pará, na região do Médio-Amazonas, representa uma das mais antigas fundações urbanas da Amazônia além de possuir significativa representatividade da diversidade biológica da região e do patrimônio cultural local, representado pelas valiosas inscrições rupestres que podem ser encontradas na área. Segundo Pereira (2003), Monte Alegre é a segunda maior área em número de sítios com arte rupestre no Pará, 25 no total. Constituído de três serras (Ererê, Paituna e Bode) o local destaca-se por ser o único que apresenta, em quantidade expressiva, sítio com pintura, gravura e as duas técnicas associadas. (PEREIRA, 2003) Desde os primórdios do século XVI, a ação humana caracterizada principalmente pela exploração das riquezas naturais da região, vem interferindo 1 2 3 4 5

Museu Paraense Emilio Goeldi, Pesquisadora CPPG Museu Paraense Emilio Goeldi, Assessoria Jurídica Universidade Federal do Pará, Mestranda em Sociologia. Museu Paraense Emilio Goeldi, Bolsista de Iniciação Científica/PIBIC Universidade Federal do Pará, Graduando em Licenciatura em Biologia

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O Conhecimento Tradicional como Estratégia para a Conservação: a participação das comunidades do entorno do parque estadual de Monte Alegre/PA para a criação da unidade de conservação.



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no equilíbrio ecológico local, fazendo com que diversas áreas apresentem impactos que descaracterizam tanto o ecossistema original quanto os sítios arqueológicos, podendo, inclusive, impedir novos estudo sobre a pré-história Amazônica.

2 AS COMUNIDADES DO ENTORNO DO PARQUE ESTADUAL DE MONTE ALEGRE Com uma população de aproximadamente de 1.300 pessoas distribuída em cerca de 228 famílias, as quatro comunidades, em sua maioria, desenvolvem 6 atividades agrícolas e pastoris em terras próprias, de família ou emprestadas por parentes. A exceção ocorre na comunidade do Ererê, onde mais de 50% das 7 famílias residentes exercem suas atividades agrícolas em terras públicas , 8 conhecida, na região, como “área patrimonial” . Por localizarem-se na área há gerações, as comunidades do entorno do Parque mantêm uma relação de troca com o ambiente e seus recursos naturais, pautada pelo conhecimento acumulado durante todos os anos de convívio e interação com o meio, como população tradicional, através de um relacionamento dialógico com a natureza (FORLINE e FURTADO, 2002). Em uma classificação socioambiental proposta por Lima e Pozzobon (2001), para as populações da Amazônia, os moradores das quatro comunidades trabalhadas se assemelhariam a pequenos produtores “tradicionais”, pois, embora sua orientação econômica esteja voltada para o consumo do grupo doméstico, buscam no mercado itens que o grupo considera indispensáveis para sua reprodução.

2.1 ORIGEM E LOCALIZAÇÃO As quatro comunidades estão localizadas no entorno do Parque Estadual de Monte Alegre e na Área de Proteção Ambiental Paituna. Imagem 1.

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Filhos dos moradores locais que se casam e continuam trabalhando nas terras dos pais. Originalmente todas as terras no Brasil pertenciam à Nação Portuguesa, por direito de conquista, portanto públicas. Depois, passaram ao Império da República, sempre como domínio Público. A legislação sobre terras surgiu esparsa e sem sistematização até a lei Imperial nº 601, de 18.09.1850, denominada Lei das Terras. Essa Lei dentre outros assuntos dispôs sobre a legitimação de posses (in Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 24., Edição, 1999). Extensão territorial de 28.813 ha, 89 a e 24,50 ca, cujo título de legitimação de posse de nº 14 expedido em favor do Município de Monte Alegre, em 1887, foi registrado do pelo Instituto de Terras do Estado do Pará.

Comunidade de Ererê O nome da comunidade tem origem indígena e significa adeus, até logo. Esta comunidade vive basicamente da agricultura, pecuária e extrativismo. O padroeiro da comunidade é Santo Antônio e são 13 dias de festas, do dia 1º à 13 de junho. Ocorre também na comunidade o festival do buriti que já é uma festividade importante, em que são produzidos doces, bolos, cremes, sucos e artesanatos, em geral, do buriti. As coordenadas foram tiradas em frente ao barracão local: 2º0’6"S x 54º10’49"W. A Comunidade é formada por cerca de 60 famílias. As principais atividades desenvolvidas concentram-se na produção agrícola e pecuária, mas também utilizam o extrativismo como meio de subsistência. Em entrevistas realizadas com 50% das famílias, constatou-se que apenas 1% reside na comunidade há menos de 10 anos, o restante vive na área entre 10 e 40 anos. A disponibilidade de terras para trabalhar (36,60%) e o fato dos pais residirem na comunidade (26,60 %) foram os principais motivos para a escolha do local onde as famílias fixaram suas residências, o que leva a concluir que a disponibilidade de terras, seja da área do patrimônio ou dos pais, facilita e/ou encoraja a permanência dos moradores na comunidade.

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Imagem 1 - Localização das comunidades e área do Parque Estadual e Área de Proteção Ambiental



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Esse fato é confirmado quando se constata que 73% dos moradores utilizam a “área patrimonial” do Município para a execução das atividades agrícolas e pastoris, e 27% desenvolvem essas atividades em terras próprias. Tal situação demonstra que a maioria da população residente na comunidade não dispõe de terras para as sua atividades de subsistência, vindo a depender de terras do Município para esse objetivo. Visando facilitar o uso da terra compreendida pela “área patrimonial”, a Prefeitura Municipal edificou uma cerca para dividir a área pública da privada. Na área pública somente é permitida a produção agrícola e toda a atividade de pecuária é realizada apenas em terrenos próprios. Comunidade de Maxirá A origem e o nome da comunidade de Maxirá remete ao nome do proprietário da área, Miguel Maxirá, que era dono de uma grande extensão de terra. Esta comunidade também vive da agricultura e criação de gado. As coordenadas foram registradas em frente à igreja e são: 2º0’27"Sx54º13’25"W. O acesso a essas comunidades é feito por transporte terrestre ou fluvial. As comunidades de Maxirá e Ererê distam 80 km e 60km, respectivamente, da cidade de Monte Alegre. As mais distantes são Lajes e Paituna com aproximadamente 120 km de distância, com acesso por via terrestre e fluvial. Aproximadamente 66 famílias residem na comunidade, exercendo suas atividades principais na agricultura e pecuária. Dos levantamentos realizados em 50% das famílias, menos de 1% tem até 10 anos de residência na comunidade, os demais vivem na região em períodos que variam entre 11 e 90 anos. Os que residem há menos tempo são justamente as famílias mais jovens, na maioria, filhos dos moradores locais, o que se justifica pelo fato dos pais residirem na comunidade e, portanto, disporem de terras para trabalhar. Este é o motivo para 50% das famílias entrevistadas terem escolhido o local para fixar suas moradias. Tanto isso é verdade que, pelos levantamentos realizados, constatou-se que 36% das famílias executam suas atividades agrícolas e pastoris em terras próprias (tituladas pelo INCRA ou com escritura pública) e 61% em terras não tituladas, das quais detêm somente a posse9, mas, que atualmente, se encontram em processo de titulação pelo INCRA10. Esses moradores passarão de 9

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Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de alguns dos poderes inerentes ao domínio ou propriedade (Art. 485 do Código Civil Brasileiro). O processo de titulação teve inicio em Janeiro de 2002, sendo beneficiadas 38 famílias, cujos lotes possuem área variável entre 0,3967 ha a 25,7793 ha.

Comunidade das Lajes A comunidade possui este nome devido a um lajeiro que havia próximo à área. Com 34 famílias residentes, está localizada na Área de Proteção Ambiental (APA) Paituna, que fica no entorno do Parque Estadual de Monte Alegre, nas coordenadas aproximadas de 2º4’15"S x 54º11’09"W. Vivem basicamente da agricultura, pecuária e pesca e têm como padroeiro Santo Antônio das Lajes. Essa comunidade é formada por cerca de 34 famílias, tendo como principais atividades agricultura, pecuária e pesca. O tempo de residência na comunidade varia entre 10 e 50 anos para 64% das famílias entrevistadas, os demais vivem na área há menos de 10 anos, demonstrando ser uma comunidade, ainda, jovem. Pelos relatos, as primeiras 12 famílias foram morar naquela localidade há pelo menos 60 anos , vindo de comunidades vizinhas. No início do povoamento a maioria das terras eram 13 devolutas , pertenciam ao poder público, mas não tinham destinação específica. Os novos moradores que não dispunham de terras para trabalhar, apossavam-se de determinadas áreas para utilizar na lavoura, sendo, posteriormente, as posses reconhecidas e tituladas em favor de seus possuidores. No que se refere à utilização da terra para as atividades agrícolas e pastoris, 82% dispõem de terras próprias (com escritura pública) e 18% executam essas atividades em terras emprestadas pelas próprias famílias. Esse procedimento é rotineiro na comunidade, tendo em vista a ocorrência de casamentos entre filhos dos moradores da própria comunidade, justificando, assim, o fato de mais de 50% das famílias entrevistadas, atribuirem a escolha do local para morar devido aos pais residirem na comunidade. Comunidade de Paituna Paituna significa Lago Negro, a origem da comunidade é lendária. Pahy-tunaré era um índio guerreiro que foi amaldiçoado por uma bruxa que o transformou em uma cobra grande que habita no Rio Amazonas. A comunidade, 11

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Adquire-se a propriedade imóvel pela transcrição do titulo no registro do imóvel (Art. 530, I do Código Civil Brasileiro) Uma das primeiras moradoras, atualmente com 80 anos, ainda reside na comunidade. Essa moradora com os filhos e netos ajudou a povoar a comunidade que atualmente conta com 34 famílias São aquelas que, pertencentes ao domínio público de qualquer das entidades estatais, não se acham utilizadas pelo poder Público, nem destinadas a fins administrativos específicos. Essas terras, até a proclamação da República, pertenciam à Nação; pela Constituição de 1891 foram transferidas aos Estados membros e alguns destes as traspassaram, em parte, aos Municípios (In : MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24 Ed., 1999).

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possuidores a legítimos proprietários no momento em que procederem à 11 transcrição do titulo da terra no Cartório de Registro de Imóveis .



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segundo relatos, iniciou com quatro famílias. Hoje, vive, basicamente, da pesca e da agricultura familiar, o padroeiro local é São Roque. As coordenadas desta comunidade foram registradas na frente da escola e são: 2º03’23"Sx54º11’36"W. Aproximadamente 68 famílias residem nessa comunidade, tendo como atividade principal a pesca e em seguida a agricultura. Os levantamentos realizados junto a 50% das famílias demonstram que apenas 1,76% dos moradores residem na área há menos de 10 anos, os demais vivem na comunidade em períodos que variam entre 11 a 60 anos. As famílias com menos tempo de residência são, principalmente, as recém-constituídas, geralmente, filhos da própria comunidade. A escolha do local para fixar moradia é apontada por 45,45% dos moradores pelo fato de os pais residirem na comunidade e 30,30% em razão da disponibilidade de terras para trabalhar. A disponibilidade de terra decorre de os pais serem os proprietários e poderem dividir com os filhos ou de herança deixada por parentes. Para a execução das atividades agrícolas e pastoril, 68% das famílias dispõem de terras próprias (com escritura pública ou recibo de compra e venda), 32 % utilizam terras cedidas por parentes ou amigos. Como foi dito anteriormente essas comunidades encontram-se em Área de Proteção Ambiental (APA) e no entorno de um parque. O debate sobre a presença de populações humanas em unidades de conservação, seja ela integral ou sustentável, costuma despertar, segundo Araújo (2001), muitas discussões calorosas, pois, pelo menos, duas correntes costumas ser verificadas. A primeira, de cunho antropocêntrica, defende a possibilidade de equilíbrio entre os homens e o ecossistema. A segunda linha, já não acredita que nessa relação os ecossistemas não saiam prejudicados. Esse debate diz respeito e determina a forma como o poder público, pesquisadores ou outros atores sociais irão manter suas relações e ações com esses povos.

3 A CRIAÇÃO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

228 Foi a partir do exemplo originário dos EUA, com a criação do Yellowstone National Park, embora criticado pelo modelo preservacionista adotado, que outras áreas protegidas foram criadas em várias partes do mundo, como, o Kruger National Park , criado na África do Sul em 1898. No Brasil, a preocupação com a proteção de áreas ambientais surge no século XVIII, com a criação dos Jardins Botânicos. Dessa época, pode-se citar o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, em 1811; da Bahia, em 1825; e de São Luiz, em 1830. No século XX, foram criados alguns dos Hortos Florestais, como o da Gávea, no Rio de Janeiro; Ubajura, no Ceará; Ibura, em Sergipe e Lorena, em São Paulo. Outras áreas protegidas foram criadas na década de 30 como o Parque

Vê-se que, inicialmente, a preocupação com proteção de áreas ambientais limitava-se à preservação de certos atributos da natureza para fins de contemplação. Inclusive o Brasil, ao aderir a essa iniciativa protetiva, também adotou o mesmo modelo com a criação dos Parques. Esse fato deveu-se, na época, à valorização de espaços naturais dotados de determinados aspectos que lhe atribuíam uma característica de exuberância, beleza cênica. Posteriormente, uma nova concepção foi adotada na proteção desses espaços, tendo como pressuposto fundamental, além da proteção da rara beleza que determinadas áreas ostentam, a garantia da manutenção das espécies e ecossistemas ou bancos genéticos que sistematizam a legislação ambiental de, praticamente, todos os países (BENJAMIN, 2001). No Brasil, como afirma Benjamin (2001), tanto antes como depois da promulgação da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, em 1981, outras modalidades de áreas protegidas foram estabelecidas em adição aos Parques, então disciplinados pelo art. 5º do Código Florestal de 1965, dentre as quais podem-se citar as Reservas Biológica e Ecológica, Reservas Extrativistas, Área de Proteção Ambiental. Todavia, a criação de áreas protegidos no Brasil não estava vinculada a nenhuma política de proteção que lhe assegurasse sistematização quanto à forma ou aos modelos a serem adotados. Até a década de 60 tiveram início as primeiras idéias sobre um Sistema de Unidades de Conservação: ... a criação de unidades de conservação - UCs, no Brasil (Parques Nacionais,Florestas Nacionais e Reservas Florestais) não obedeceu a nenhum planejamento mais abrangente. As UCs foram estabelecidas por razões estéticas e em função de circunstâncias políticas favoráveis. Não havia, até então, uma política de criação de UC com a finalidade, por exemplo, de assegurar a conservação de amostras representativas dos ecossistemas brasileiros (...). A preocupação em planejar a criação de UCs, com o propósito de tornar o processo mais abrangente e eficaz, começa a amadurecer e produzir os primeiros resultados na década de 1970 (MERCADANTE , 2001). 14

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1992.

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Nacional de Itatiaia, em 1937; o Parque Nacional de Iguaçu e o Parque Nacional da Serra dos Órgãos, em 1939, todos de caráter nacional. Também foram criados Parques Municipais como o de Amarante, no Piauí; Crato, no Ceará; Boa Nova, Alcobaça e Chique-Chique, na Bahia14 .



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Foi, então, a Constituição de 1988 que, ao estabelecer em seu art. 225 o direito do povo brasileiro “... ao meio ambiente ecologicamente equilibrado ....”, também incumbiu o Poder Público de “definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos...”15 As questões suscitadas com relação à confusão conceitual que se travou, inicialmente, sobre unidades de conservação e espaços territoriais, parecem ter-se solucionado com a edição da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC. Segundo a Lei do SNUC, todos os espaços territoriais, especialmente protegidos, passaram a ser considerados Unidades de Conservação, respeitadas nas suas espécies o regime jurídico a que se sujeitam, conforme previstos em lei (LOUREIRO, 2002). Embora a expressão Unidades de Conservação não seja a mais adequada para definir o termo espaços territoriais especialmente protegidos, utilizado na Constituição, seja este o gênero e aquele a espécie (BENJAMIN, 2001). A lei do SNUC inseriu, no ordenamento jurídico brasileiro, um sistema de proteção especial ao meio ambiente capaz de acolher, face às definições que traz em seu bojo, a intenção da Constituição Federal em proteger os espaços territoriais definidos no art. 225, §1º inciso III. Todavia, há de se ressaltar que, como bem advertiu José Afonso da SILVA,16 nem todo espaço territorial especialmente protegido se confunde com Unidades de Conservação, mas estas são, também, espaços territoriais especialmente protegidos” e que estes “se convertem em Unidades de Conservação quando declarados expressamente, para lhes atribuir um regime jurídico mais restritivo e mais determinado”. Dentre outros, o conceito de Unidade de Conservação encontra-se definido no art. 2º, I da Lei nº 9.985/2000, como sendo o ... o espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC é definido como um conjunto organizado de áreas naturais protegidas (unidades de conservação

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67 Cf. art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. §1º- Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; SILVA, op. cit..

Para atingir os objetivos a que se propõe, o SNUC dividiu as Unidades de Conservação em dois grupos: i) Unidades de Proteção Integral e ii) Unidades de 17 Uso Sustentado . Unidades de Proteção Integral são aquelas que têm por objetivo básico preservar a natureza, sendo admitido, apenas, o uso indireto dos seus recursos naturais, com exceção dos casos previstos em lei. São elas: Estação Ecológica; Reserva Biológica; Parque Nacional; Monumento Natural; Refúgio de Vida Silvestre. Essas categorias admitem o mínimo de influência humana, destinam-se, basicamente, para fins de pesquisas científicas, preservação da beleza cênica, desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico e proteção de ambientes naturais onde se assegurem condições para a existência ou reprodução de espécies ou comunidades da flora local e da fauna residente ou migratória. Unidades de Uso Sustentável têm como objetivo compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável da parcela dos seus recursos naturais. São elas: área de proteção ambiental; área de relevante interesse ecológico; floresta nacional; reserva extrativista; reserva de fauna; reserva de desenvolvimento sustentável e reserva particular do patrimônio natural. São categorias mais flexíveis, principalmente, as que permitem a presença humana em seu interior. O estado do Pará, com uma superfície de 1.253.164,5 quilômetros quadrados, possui 43 Unidades de Conservação. Dentre as Unidades de Conservação estaduais encontra-se o Parque Estadual Monte Alegre. Essa UC foi criada através da lei estadual nº 6.412, de 09 de novembro de 2001, a partir do incentivo do Programa de Desenvolvimento do Ecoturismo na Amazônia Legal - PROECOTUR, coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente - MMA, através da Secretaria de Coordenação da Amazônia - SCA e desenvolvido, no Estado do Pará, pela Secretaria Executiva de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente - SECTAM. A região onde está localizado o Parque destaca-se em importância ambiental, tanto pelo fato de possuir uma rica diversidade biológica, quanto por ser uma área de ocupação humana na história das populações ancestrais. São inúmeros sítios arqueológicos e cavernas existentes, os quais foram indicados como os mais importantes já encontrados18. 17 18

Art. 7º da Lei do SNUC. A indicação da área para a criação de uma Unidade de Conservação foi concebida durante eventos realizados especificamente com a finalidade de avaliar áreas para serem protegidas nos Workshops “Ações Prioritárias para Conservação da Biodiversidade do Cerrado e do Pantanal”, “Áreas para Uso Sustentável e Conservação da Biodiversidade na Amazônia Legal” e “Prioridades Biológicas para a Conservação da Amazônia- Workshop 90”.

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federais, estaduais e municipais) que, planejado, manejado e gerenciado como um todo, será capaz de viabilizar os objetivos nacionais de conservação.



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A concepção do que seja uma Unidade de Conservação só foi inserida na realidade do cotidiano das comunidades do entorno do Parque Estadual Monte Alegre, durante o Seminário para a discussão da proposta do Governo do Estado do Pará, para a criação de UC na região. Essa proposta, embora já concebida desde 1990, somente foi concretizada por ter sido uma das escolhidas para a implantação de pólos de ecoturismo favorecendo, assim, sua inclusão em programas de investimentos do Governo do Estado, com apoio de Organismos Internacionais (BID). As comunidades não só tiveram a oportunidade de participar de forma efetiva do processo de criação das Unidades de Conservação, como este exercício participativo abriu “janelas” para novas perspectivas de ação comunitária visando ao desenvolvimento e à melhoria da qualidade vida pela repartição justa e eqüitativa dos benefícios advindo dessa ação coletiva. O desafio do desenvolvimento ambientalmente sustentável, socialmente justo e culturalmente aceito, capaz de assegurar a sustentabilidade dos recursos naturais para as presentes e futuras gerações, foi definitivamente incorporado à agenda jurídica, política e social do Poder Público e dos mais diferentes segmentos da sociedade civil (SANTILLI e SANTILLI, 2002). A participação dos atores sociais e a formação de parcerias, nesse processo, assume especial relevância à medida que as abordagens mais recentes tendem a enfatizar, de forma crescente, a importância da mobilização da sociedade para a tomada de decisões na gestão ambiental, a partir da inclusão e divisão de benefícios, transparência de ações, estabelecimento de limites de ação e valores humanos éticos, ambientais, sociais e monetários. Visando propiciar a efetiva participação social na tomada de decisões para uma gestão ambiental eficaz, têm-se instituído normas disciplinadoras segundo as quais os representantes da sociedade civil têm participação assegurada, por exemplo: nos Comitês de Bacia Hidrográfica, nos Conselhos Gestores das Unidades de Conservação, órgãos colegiados que arbitram conflitos relacionados ao uso dos recursos hídricos e promovem a criação e a gestão participativa das áreas protegidas. De igual forma, no processo de planejamento das ações que visem ao desenvolvimento econômico, político e social, seja em nível local, regional ou nacional, a participação da sociedade ou dos atores envolvidos deve ser induzida. É claro que, dependendo do nível do planejamento, a participação dos cidadãos no processo de elaboração e implementação do plano se torna mais ou menos efetiva. Todavia, Haddad, afirma que,

A despeito dos avanços na esfera legislativa e a consagração formal de diplomas legais que asseguram a participação da sociedade civil na gestão e na defesa do meio ambiente, da ênfase política voltada para participação social na formulação e implementação de políticas públicas para o desenvolvimento, esse é um processo ainda em construção, considerando que muito ainda há de se fazer no sentido de conscientizar, capacitar, mobilizar a sociedade para que seja motivada a participar desse processo de forma mais eficaz, culminando, assim, na vivência e cidadania. Todavia, devido à conotação política que esse processo participativo vem ganhando nos últimos tempos, o interesse da sociedade civil pela participação na formulação das políticas públicas, tem aumentado muito ao longo das últimas décadas. Segundo Bandeira (2000), múltiplos argumentos têm sido apresentados na literatura sobre o desenvolvimento e sobre políticas públicas para defender a necessidade de uma participação ampla e efetiva da sociedade civil na formulação e implementação das ações de governo, não apenas para produzir melhores programas e projetos, mas também, como instrumento para construção de uma sociedade mais dinâmica, mais justa e mais democrática. Para o citado autor, o principal argumento é a preocupação com o “aumento da eficácia das ações governamentais”. A falta de participação da sociedade civil na formulação das políticas voltadas para o desenvolvimento tem sido apontada como uma das principais causas para o fracasso de alguns programas e projetos nas diferentes áreas. As ações formuladas e implementadas sem a efetiva participação da população afetada (que sabe das suas reais necessidades) tendem a não alcançar, integralmente, os objetivos inicialmente propostos, haja vista que, em não tendo participado do processo de concepção e planejamento dessas iniciativas, não se identificam com elas e, conseqüentemente, não acreditam nos resultados, aumentando, assim, o risco de tornarem-se efêmeras. Em conseqüência, por não

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... quanto mais o processo de planejamento facilitar a participação dos cidadãos, mais a comunidade considerará a função de planejamento como uma forma democrática. Se planejar significasse, simplesmente, a produção de um documento em linguagem técnica e especializada, teríamos, inevitavelmente, um divórcio no relacionamento genuíno entre cidadãos e planejadores. Não podemos assumir, contudo, uma atitude ingênua em face do planejamento participativo. Existem inúmeras dificuldades para estabelecer esse tipo de participação: como o conceito pode ser operacionalizado, que recursos são necessários, como definir a legitimidade das representações, bem como o seu nível de responsabilidade etc. (HADDAD, 1980).



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se sustentarem politicamente, essas ações são substituídas por outras igualmente efêmeras, já que o processo de concepção continua sem participação da sociedade interessada, o que só contribui para aumentar o descrédito da população em relação à efetividade das ações públicas. É verdade que a incorporação de práticas participativas às ações do governo federal exige um esforço maior no que diz respeito aos aspectos metodológicos a serem adotados, tendo em vista que tais ações refletem uma abrangência territorial de longo alcance, dificultando, assim, uma participação mais direta e efetiva dos vários segmentos da sociedade. Mas, na hipótese de ações que visem ao desenvolvimento focalizado em espaços territoriais mais limitados, como é o caso das ações planejadas para a área do entorno do Parque Estadual Monte Alegre, a incorporação de procedimentos participativos à sua concepção e implementação certamente será facilitada. Não há dúvida de que as políticas de promoção ao desenvolvimento que estimulem a incorporação e implementação de práticas que envolvam a efetiva participação da sociedade, especialmente do setor direta ou indiretamente interessado no processo, tenderá a resultados mais satisfatórios, senão, plenamente satisfatórios, tendo em vista a real perspectiva de atendimento das demandas/necessidades diretamente identificadas e propostas pela parte interessada.

4 A PARTICIPAÇÃO DA COMUNIDADE NO PLANO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DO PARQUE Dessa ação participativa das comunidades iniciada a quando da criação das Unidades de Conservação existentes na região, foi elaborado e aprovado, pelo Fundo Nacional do Meio Ambiente, o Plano de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades do Entorno do Parque Estadual Monte Alegre. Esse Plano de Desenvolvimento procurou proporcionar às comunidades as oportunidades de treinamento e capacitação, de modo a conscientizá-las da necessidade de se fortalecerem como organizações comunitárias, visando a torná-las autônomas e independentes para a execução de suas atividades de subsistência em bases sustentáveis, cujos benefícios sejam partilhados de forma coletiva para a melhoria da qualidade de vida dessas populações. Contribuir para minimizar os prejuízos da degradação ambiental causados, principalmente, pelo uso intensivo de recursos da flora (madeira, instalação de pastos) e fauna (caça), é também um dos objetivos que se pretendeu alcançar com a implementação desse projeto. O Plano de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades que residem na área de Proteção Ambiental “Paituna”, localizada no entorno do “Parque Estadual Monte Alegre”, tem por objetivo buscar novas alternativas de diálogo

A proposta está, também, enquadrada no esforço conjunto dos governos estadual e federal para a preservação de áreas onde a ação humana contribuiu para a degradação ambiental. Esse processo de degradação deve-se ao fato de a Amazônia conviver com grandes problemas sociais decorrentes de uma política de desenvolvimento inadequada para a região. A incomensurável riqueza natural existente tem estimulado a implantação de grandes projetos industriais com resultados mais voltados ao crescimento econômico sem, contudo, atentar para os aspectos ambientais e sociais que envolvem as populações locais (LOPES, 2000). Com esse propósito foi elaborado o Plano de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades que residem no entorno do Parque Estadual “Monte Alegre”. Uma nova forma de pensar o desenvolvimento vem sendo debatida entre os mais variados segmentos sociais. Pelo seu extraordinário potencial de auto-sustentabilidade, com base no uso sustentável dos recursos renováveis e excepcional biodiversidade, além da sua função macrorreguladora de climas e regimes hídricos, a Amazônia tem sido utilizada como instrumento na construção de um modelo alternativo na busca de soluções para os problemas da pobreza que atingem a região. As atividades levaram em consideração, além do conhecimento tradicional, o modo de produção e a expectativa de vida futura das populações. Sua implementação, segundo as práticas metodológicas estabelecidas, objetiva melhorar a qualidade de vida das comunidades, compartilhar os benefícios gerados e fortalecer a organização comunitárias por meio de capacitação, visando à proteção da biodiversidade e à reconstituição das áreas degradadas no entorno do Parque.

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com o mercado tradicional (capitalista por excelência) que permita às comunidades, segundo os parâmetros do desenvolvimento sustentável, adequar-se à qualidade de vida digna vivenciado pela satisfação dos direitos constitucionais socioambientais. Essa proposta foi concebida com a efetiva participação dos seus moradores no processo, bem como, levou-se em consideração o conhecimento tradicional relativamente às práticas agrícolas e extrativistas e o modo de vida associado aos ciclos de desenvolvimento dos ecossistemas da região. Ressalte-se que as comunidades do entorno da UC caracterizam-se pelas populações tradicionais de colonos (pessoas que vivem na terra firme e têm como atividades principais a agricultura e a pecuária) e pescadores (pessoas que vivem nas margens dos grandes rios e lagos e têm como principal atividade a pesca e a pecuária) (LOPES, 2000).



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5 A CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO BIOLÓGICO E CULTURAL DO PARQUE Sem dúvidas, a criação de áreas territoriais especialmente protegidas é uma das principais estratégias para a conservação da biodiversidade e do patrimônio cultural local, e entre essas áreas, as Unidades de Conservação de Proteção Integral são as que apresentam maior potencial de proteção. Contudo, para garantir a proteção aos processos ecológicos que determinaram a criação dessas UCs, torna-se imprescindível o desenvolvimento socioeconômico das populações vizinhas, sobretudo em bases sustentáveis. Nesse contexto podemos destacar as comunidades citadas anteriormente que, independente da criação do Parque ou da APA, já mantinham uma relação de uso com os recursos naturais locais e, sobretudo, de forma que esses recursos, como eles próprios costumam dizer, “continuem a existir, já que vivemos disso”. As estratégias de conservação adotadas variam entre as comunidades. São, geralmente, acordos formais, criados internamente, sobre os limites de uso dos produtos de que cada pessoa ou grupo familiar pode usufruir. Ou seja, as comunidades criam estratégias de manutenção dos recursos naturais, reconhecendo-se como grupos que vivem e precisam deles. Vale ressaltar que essas regras, que são pautadas no conhecimento tradicional dessas comunidades, são convergentes com a conservação do ambiente local. Assim, é preciso perceber que as estratégias para a conservação, adotadas internamente pelas comunidades, não são somente de cunho econômico, mas social e político. E se é de grande valor o reconhecimento em grupo, de que os recursos locais podem um dia já não estar mais disponíveis, a decisão de gerir, também em comunidade, a utilização desses recursos é ainda mais salutar. A criação de duas Unidades de Conservação (Parque Estadual Monte Alegre e Área de Proteção Ambiental Paituna), de forma participativa com as comunidades, vem sendo um instrumento que contribui para a manutenção do patrimônio biológico e cultural da região, justamente porque essas populações lidam com o ambiente local, ao desempenharem suas atividades tradicionais de uso dos recursos naturais, dos quais depende diretamente a sua sobrevivência. Neste sentido, as comunidades do entorno do Parque desempenham um papel importantíssimo como agentes para a conservação do patrimônio que lhes é tão caro, já que é ao usufruir dele que as populações garantem sua permanência local.

1. A criação de Unidades de Conservação mostra-se importante para a proteção e conservação da biodiversidade na Amazônia; 2. A participação das populações locais é imprescindível dentro do processo de criação das Unidades de Conservação; 3. Independente da existência de Unidades de Conservação, muitas populações tradicionais ou não, vivem e desenvolvem suas estratégias de uso de recursos naturais, de acordo com o conhecimento que detêm sobre o ambiente onde se inserem; 4. A valorização dos conhecimentos tradicionais das populações locais é um elemento fundamental na garantia de que o processo de criação de Unidades de Conservação, bem como sua manutenção futura, venha a ter êxito.

REFERÊNCIAS BANDEIRA, P.S. Construção das Políticas de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional. In: Competitividade com eqüidade e sustentabilidade. Brasília, Ministério da Integração Nacional, 2000. BENJAMIN, A. H. Introdução à Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. In: Direito ambiental das áreas protegidas: o regime jurídico das unidades de conservação. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. FORLINE, L.; FURTADO, L.G. Novas Reflexões para o Estudo das Populações tradicionais na Amazônia: Por uma revisão de conceitos e Agendas Estratégicas. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Belém: MPEG , 2002. HADDAD, P.R. Participação, justiça social e planejamento. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. LIMA, D.; POZOBBON, J. In: VIEIRA et al. Diversidade Biológica e Cultural da Amazônia. Belém: MPEG, 2001. LOUREIRO, E.C. Comentários SECTAM/PGA. PA, 2002.

à

legislação

ambiental.

Belém:

LOPES, S.R.M. Desenvolvimento Sustentável na Amazônia: conceito, discurso e ação. Cadernos de Pós-graduação em Direito UFPA, Belém, v.4., n.12., p. 198, jan./jun.2000.

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6 CONCLUSÕES



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MERCADANTE, M. Uma década de debate e negociação: a história da lei do SNUC. In: Direito ambiental das áreas protegidas: o regime jurídico das unidades de conservação. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24 ed., [s.l: s.n], 1999. PEREIRA, E. Arte Rupestre na Amazônia : Pará. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi; São Paulo: UNESP, 2003. SANTILLI, J. ; SANTILLI, M. Meio Ambiente e Democracia: participação social na gestão ambiental. In: FABRIS, Sergio Antonio (Ed.). O direito para o Brasil socioambiental. Porto Alegre : Instituto Sociomabiental, 2002. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1992.

Anna Maria Alves Linhares1

Resumo Resultado da pesquisa correspondente ao término da monografia defendida em 2004, que demonstrou uma análise a respeito dos múltiplos contextos que se encontra a produção material indígena, especificamente a cerâmica dos índios Karajá, pertencentes ao tronco lingüístico Macro-Jê, e que habitam o estado de Goiás, divisa com Mato Grosso, situados no Parque Nacional do Araguaia. Os contextos analisados na pesquisa foram: (a) a aldeia, através de uma reconstituição etnográfica; (b) o museu etnográfico, através da elaboração de um catálogo descritivo de uma coleção desses índios; e, (c) e lojas de artesanato que comercializam essa produção específica, no caso da cidade de Belém. Procuro através desse artigo fazer sucinta demonstração da forma como cada um desses espaços utiliza e contextualiza esse patrimônio material indígena. Palavras-Chave: índios Karajá; cultura material; cerâmica; museu etnográfico; artesanato indígena; patrimônio material.

INTRODUÇÃO Se entendermos a cultura como um código simbólico compartilhado pelos membros de um grupo social específico que permite atribuir significados ao universo e expressar um modo de entender a vida e suas concepções, quanto à maneira como ela deve ser vivida, percebemos que a cultura permeia toda a experiência humana, intermediando as relações dos seres humanos entre si, e deles com a natureza e o mundo sobrenatural (VIDAL ; SILVA, 1995). Com essa definição, é possível compreender que a cultura se compõe de idéias, concepções, significados, sempre reelaborados, ao longo do tempo e através do espaço e que seu dinamismo acompanha o da própria vida. Além disso, compreende-se, também, que esses significados e concepções se expressam 1

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/PPGCS, na universidade federal do Pará-UFPa e Bolsista da Reserva Técnica de Etnografia “Curt Nimuendajú” do Museu Paraense Emílio Goeldi, sob a orientação da Dra. Lucia Hussak van Velthem - e-mail: [email protected], [email protected].

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Patrimônio Material Indígena em Contextos Díspares: análise da cerâmica figurativa karajá



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concretamente, seja através das práticas sociais, seja através do discurso, da fala, das manifestações artísticas de um povo, ou ainda, através da criação dos objetos que são incorporados à sua vivência (ibidem). Esses objetos, necessários à vida dos grupos sociais, são referidos como cultura material, sendo esta a modalidade que interessa ao presente artigo e que constitui um campo de estudo da ciência antropológica também denominado de antropologia material (NEWTON, 1986). Ribeiro (1992, 1988), designou os objetos incorporados à vivência cotidiana dos grupos sociais de “artes da vida”, estando eles distribuídos em diversas categorias, tais como: cerâmica, trançados, cordões e tecidos, adornos plumários, adornos de materiais ecléticos, indumentária e toucador, instrumentos musicais e de sinalização, armas, utensílios e implementos de madeira e objetos rituais, mágicos e lúdicos. Para Vidal e Silva (1995), o estudo da cultura material constitui uma estratégia produtiva para desvendar questões relativas à vida cotidiana, ritual e artística entre diferentes povos, já que os objetos perpassam todas estas dimensões da vida social. Por meio dessas análises pode-se fazer uma idéia do leque de opções possíveis e, assim, conhecermos mais de perto a grande diversidade material existente entre os povos indígenas que vivem atualmente no Brasil. Dessa forma, entende-se que o estudo antropológico da produção material indígena busca o significado e a significância dos objetos para os membros da sociedade estudada, uma vez que o objeto produzido pelo indígena não possui significado se fracionado de seu contexto social, ou seja, de suas referências culturais, mas apenas como totalidade ( van VELTHEM, 1992). Com isso, destaca-se a importância da contextualização da cultura material, pois esta permitirá a percepção, nas culturas indígenas, da grande variedade de objetos com técnicas, formas, motivos e concepções estéticas extremamente diversificadas. Esses estudos revelam muito sobre o modo de vida nessas sociedades e permitem o conhecimento não apenas de suas singularidades, mas também daquilo que compartilham umas com as outras e que as distinguem da sociedade ocidental (VIDAL ; SILVA, 1995). Dessa forma será demonstrada, sucintamente, como espaços díspares contextualizam de formas diversas essa cultura material, tormando perceptível a forma como múltiplos espaços contextualizam esse patrimônio material pertencente a uma cultura indígena, no caso da cerâmica temático-figurativa dos índios Karajá. Esse artigo foi escrito a partir da condução de um trabalho que vinha sendo elaborado e desenvolvido acerca de documentação de coleções etnográficas no Museu Paraense Emílio Goeldi, dentro do projeto Coleções Etnográficas: formação e pesquisa documental, coordenado pela Dra. Lúcia Hussak van Velthem,

O trabalho realizado foi uma documentação através da análise, descrição, tiragem de fotografias das peças, e confecção de desenhos das cerâmicas Karajá. Esses últimos procedimentos foram interessantes pois, além de terem contribuído para os cuidados museológicos necessários a preservação das coleções etnográficas, na medida em que evitou longo contato com as mesmas, puderam oportunizar uma melhor visualização de motivos e pinturas corporais das peças, assim como outros detalhes imprescindíveis à descrição e uma melhor catalogação das figuras cerâmicas. A partir disso foram iniciadas as observações e descrições das mesmas, em que foram analisadas as temáticas de cada peça, matéria prima, o significado dos motivos e pinturas corporais e dos adornos contidos nas mesmas, assim como analisado seu estado de conservação e retirada suas medidas. Finalizado o levantamento e a descrição da coleção se iniciou a montagem do catálogo descritivo a partir da classificação de Ribeiro B. (1988). No que tange a reconstituição etnográfica dessa produção em específico, foram utilizadas as seguintes bibliografias: Faria, 1959; Fénelon-Costa, 1978; Lima, 1986; Neto, 1986; Ribeiro B., 1992; Simões, 1992; Taveira, 1982; Toral, 1992 e Vidal e Silva, 1995; O outro procedimento adotado para a construção deste trabalho, constituiu-se na realização de pesquisa de campo efetivada nas lojas de artesanato que comercializam, em menor ou maior quantidade, a produção indígena na cidade de Belém2. Como método de investigação e obtenção de informações na pesquisa de campo nos estabelecimentos comerciais, foram realizadas observações das peças Karajá e dos espaços em que eram comercializadas, assim como, entrevistas aos vendedores e a uma gerente. Essas entrevistas tomaram como base um roteiro que continha perguntas a respeito do perfil do vendedor, de sua afinidade com as peças indígenas, de seus conhecimentos a respeito das mesmas (material utilizado, de onde vinham e etc.), como também, preços que eram pedidos pelas peças e formas de comercialização.

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Neste campo, o universo da pesquisa restringiu-se às lojas “Marajó” que se encontram no Aeroporto Internacional de Val de Cães, na loja “Regional” da Avenida Presidente Vargas, e nos estabelecimentos da “Artíndia”, um localizado na Avenida Presidente Vargas, instalada na Galeria da Assembléia Paraense e na sucursal da mesma loja encontrada na Estação das Docas, que fica na avenida Boulevard Castilho França, no centro da cidade.

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acervo este atrelado à Coordenação de Ciências Humanas, “Curt Nimuendajú”. A coleção analisada nesse projeto diz respeito à coleção “Natalie Petesch” de 1986, composta de objetos de cerâmica Karajá.



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Como não foi possível ter um contato maior com os compradores de peças indígenas foi procurado obter, o máximo possível, de informações por meio dos próprios vendedores acerca dos compradores que procuravam as peças e qual o destino que os mesmos davam a elas, tanto no que tange o lugar para onde eram levadas, assim como a forma de as utilizarem e para quê compravam as mesmas. Foi realizado também o registro fotográfico em todos os espaços pesquisados, para que, por esse meio, pudesse ser demonstrada a forma como os objetos Karajá são apreendidos nesse contexto específico, no caso do contexto mercadológico. Dessa forma foi desenvolvida a reflexão a respeito da utilização e contextualização desse patrimônio em espaços díspares, no qual serão demonstrados os resultados de forma sucinta à frente.

PATRIMÔNIO MATERIAL KARAJÁ NA ALDEIA Inicialmente, tentou-se contextualizar a categoria artesanal em seus diversos aspectos na aldeia, sendo apenas demonstrado o processo de fabricação das bonecas e não de outros utensílios cerâmicos, e o significados específicos das bonecas para o grupo. Antes de tudo, este povo indígena Karajá vive no Brasil Central, em uma das reservas indígenas mais conhecidas do país, a da ilha do Bananal, no estado de Goiás, divisa com o Mato Grosso, situada hoje no Parque Nacional do Araguaia, às margens do rio Araguaia, designação que vem da língua Tupi e que significa Rio das Araras, mas na língua nativa o rio chama-se “Bêerokan” (FÉNELON-COSTA, 1978; NETO, 1986). Este povo divide-se em três subgrupos, os Karajá propriamente ditos, os Javaé e Karajá do Norte, os antigos Xambioá. Os primeiros, com uma população aproximada de 1.400 pessoas, distribuem-se por treze aldeias ou grupos locais. Os Javaé, 400 pessoas, vivem em três aldeias, e os Karajá do Norte, 102 pessoas, vivem em duas (TORAL, 1992). No que tange a cerâmica figurativa, através da pesquisa, pôde ser detectado que a técnica empregada para a fabricação dessa cerâmica temático-figurativa é o modelado, pois essa técnica é utilizada apenas na confecção de peças pequenas (LIMA, 1986). Por meio da pesquisa dessa tecnologia específica, pode-se ressaltar as particularidades sociais desse grupo indígena. A primeira diz respeito a divisão do trabalho no processo de confecção que é atribuída a cada gênero, em que o homem e a mulher ficam encarregados da execução de trabalhos distintos. O homem deve proceder a coleta da matéria-prima para a confecção do objeto, a saber, a busca do barro, e a mulher fica encarregada da manipulação, modelagem e decoração das bonecas como um todo (SIMÕES, 1992).

Esses índios possuem dois tipos específicos de barro que podem ser manipulados para a confecção das bonecas, o branco ou o acinzentado. Eles também utilizam uma grande variedade de implementos e instrumentos no momento da manipulação e modelagem das peças, estando entre eles materiais naturais ou artificiais como cápsulas vazias de rifle 22, alfinetes, assim como, pedaços de bambu ou de madeira pau-d’arco (ibidem). Na pintura das peças, as oleiras utilizam às vezes a própria argila, o urucum misturado ao óleo babaçu, uma casca denominada ixarurina e o jenipapo (LIMA, 1986; SIMÕES, 1992). É interessante notar que tintas artificiais passaram a ser introduzidas nessa técnica, em específico, para que as peças se tornassem mais atrativas à venda (NETO, 1986). Uma outra particularidade dessa reconstituição etnográfica está relacionada à modificação utilitária do material, pois, antes eram brinquedos de criança e passaram a se tornar, basicamente, objetos de venda, ou seja, bens comerciáveis. A partir dessas modificações formais pôde-se verificar que tais representações passaram pelas fases, antiga e moderna, sendo a “fase antiga” (até o ano de 1940), um período produtivo em que as peças possuíam pouca expressividade e dinamismo, não representavam cenas do cotidiano, nem animais e seres mitológicos, diferentemente da “fase moderna” (após o ano de 1940) , que surgiu com muitas introduções temáticas e formais e o dinamismo criador se intensificou ainda mais, tudo em detrimento de um mercado para tais peças que começava a surgir (FARIA, 1959; FÉNELON-COSTA, 1978; NETO, 1986; LIMA, 1986). Outro aspecto levantado notado nas peças está relacionado à significação das pinturas, motivos e adornos corporais representados, todos atrelados a aspectos únicos do grupo, haja visto que, todas as pinturas e motivos corporais, assim como os atavios representados nessa cerâmica são utilizados pelo homem e mulher Karajá no cotidiano e em ritos e festas tradicionais (TORAL, 1992). Foi interessante notar através da reconstituição etnográfica da produção que cada grupo humano parece imprimir em sua arte uma “personalidade cultural” (RIBEIRO B., 1983), pois a cerâmica encontrada entre os Karajá, no caso das bonecas, longe de constituírem apenas brinquedos de criança, espelha

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Mediante a descrição do processo de fabricação das bonecas, foi possível obter informações a respeito da matéria-prima utilizada na fabricação e ornamentação das peças, assim como, o significado das representações, sem contar que foram detectados adornos corporais acrescentados às representações de barro. Essa foi uma segunda particularidade detectada do grupo, pois, além dos aspectos relacionados a divisão do trabalho por gênero, pôde-se notar toda uma sistematização própria no processo de confecção e de escolha da matéria-prima a ser utilizada.



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admiravelmente os aspectos sociais do grupo, isso porque nelas a figura humana é identificada pelos traços culturais que lhe são apostos, como a pintura corporal, as tatuagens, os itens do vestuário e os adornos representados (LIMA, 1986). Através desses traços, segundo Lima (ibidem), transcende-se à mera representação humana individual, passando-se à sua inserção dentro do contexto social Karajá, em categorias mais amplas de classes ou grupos. Também foi interessante notar que o estudo específico do contexto aldeia, pôde demonstrar que o artefato inserido neste é em si um signo de comunicação cujas potencialidades só podem ser descobertas por meio de contextualizações específicas e que elas ultrapassam o âmbito do levantamento bibliográfico exigindo pesquisa de campo, onde poderiam permitir o aprofundamento de outros aspectos a respeito da temática, até porque apenas uma reconstituição social de base bibliográfica, como esta, não consegue dar conta da complexidade e das modificações que ocorrem a cada instante em um grupo social, mesmo em se falando de patrimônio cultural. Baseado na ênfase desse material, nas relações sociais ou mesmo nas relações simbólicas que norteiam a cultura em si, ou seja, por não se encontrarem inseridos apenas na noção de patrimônio tangível, mas sim, em algo mais amplo, em uma noção de patrimônio intangível, enquanto categoria de pensamento, como afirmou Gonçalves (2003), torna-se necessário uma recontextualização dos fatos culturais do grupo específico. Dessa forma, o que pareceu mais evidente a partir dessa análise, foi à necessidade de sempre inserir a temática da cultura material num contexto mais amplo que a simples descrição do artefato. Isso precisa ser feito buscando-se sempre uma contextualização do material, pois esses estudos acabam colocando como pano de fundo o ambiente ecológico, a organização sócio-econômica, e os enriquecem com os conteúdos estéticos e simbólicos que os objetos trazem embutidos, pois assim, como salientou Ribeiro B. e Van Velthem (1992, p.111), “mesmo aquele solitário artefato ganha vida e significado” Assim, além do estudo que permite contextualizar esses objetos no âmbito de seu local de origem, no caso a aldeia, outros contextos se fazem pertinentes para análise, porque os objetos indígenas, ou seja, o patrimônio material do grupo, pode ser encontrado na atualidade em diversos locais dos centros urbanos em que são utilizados e apreciados de formas diversas daquela de seus locais de origem, como por exemplo, nos acervos etnográficos dos museus.

PATRIMÔNIO MATERIAL KARAJÁ NO ACERVO ETNOGRÁFICO Para serem inseridos nas coleções dos museus etnográficos, os objetos produzidos por diferentes povos indígenas são retirados de seu contexto original. Nesse processo, os objetos são descontextualizados, ou seja, sofrem uma ruptura com

Dessa forma, as coleções de objetos etnográficos constituem cada vez mais, para os próprios criadores e produtores, um meio de entender e se relacionar com o passado, coletivo e individual, e com o poder de sua influência no presente e no futuro. Esse novo significado, ou seja, essa nova função atribuída aos objetos agregados às coleções, quando colocados em museus etnográficos, permitiu que alguns exemplares se tornassem, especificamente, um “objeto de memória”, um ponto de convergência que promove inusitados encontros com o passado, porque asseguram a presença continuada dos que os produziram (Van VELTHEM, 2003, p.3). No que tange a essa nova significação atribuída aos artefatos etnográficos nesse contexto específico, o que se observa é que, ao serem recolhidos e posteriormente integrados ao acervo de um museu, estes sofrem uma ruptura, um apagamento patrimonial específico, ao serem inseridos em um arcabouço patrimonial abrangente - patrimônio indígena – e se tornam patrimônio de uma outra cultura, a nossa. (Ibidem, p.4). Então, dessa forma, estudados dentro dessa ótica, os artefatos tornam-se documentos “não verbais”, que conferem evidências de natureza semelhante aos “textos escritos (documentos verbais)” mas, nesse caso, o estudioso deve assenhorear-se do “vocabulário do material, construção, desenho, função e como tudo isso se combina” (RIBEIRO B., 1994). Por isso, torna-se pertinente à contextualização nos acervos etnográficos, até porque, recolher aqui e ali, objetos e “coisas”, seria como recolher pedaços de um mundo que se quer compreender e do qual se quer fazer parte ou então dominar, ou seja, retratar a realidade e a história e uma parte deste mundo (SUANO, 1986). No que tange tal contextualização, foi confeccionado um catálogo referente a coleção “Natalie Petesch” (1986), composta de objetos cerâmicos figurativos de diversas temáticas, coletados entre esses índios pela antropóloga francesa Natalie Petesch. O suporte para a construção desse catálogo foi Berta Ribeiro (1988), que forneceu as diretrizes necessárias para a sistematização de classificação e descrição das peças tendo, enquanto base, um estudo específico de classificação de material etnográfico a partir do “Dicionário de Artesanato Indígena”.

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os sistemas sócio-culturais nos quais foram produzidos. Dessa forma, o objeto que, inicialmente, é confeccionado para servir aos membros de um grupo indígena, no momento em que o contexto é modificado, transformando seu propósito de ser, passa a se tornar “peça de museu”, tornando-se instrumento de reflexão, observação e estudo, retratando, a partir de então, a história de uma parte do mundo e, concomitantemente, a história e a realidade do colecionador e da sociedade que a formou, na tentativa de resgatar justamente o contexto do objeto no grupo (RIBEIRO B. e van VELTHEM, 1992; DOMINGUES-LOPES, 2002).



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Foram documentadas 25 peças, sendo que uma dessas peças, feita em madeira, não diz respeito a categoria analisada, mas sua inclusão se fez pertinente no trabalho na medida em que se enquadra na temática abordada, a figuração Karajá, ou seja, a representação da figura humana cultural. Esse catálogo oportunizou a demonstração dos aspectos formais das figurinhas modeladas em argila, assim como, os aspectos decorativos que se destacam através dos motivos e dos desenhos ornamentais existentes nas peças, como também, de seus significados. Foram detectadas as representações de adornos ou atavios em algumas peças. De forma geral, no que tange ao aspecto formal, foram encontradas seis peças que representam o cotidiano Karajá, doze peças que representam a figura humana Karajá, tanto representando o homem como a mulher e sete peças que foram modeladas com representações de seres mitológicos presentes na história do grupo. Os seres mitológicos detectados foram Kboí, Inãrasonuésonué, Adjoramani, Ueni e Omá. Dentre a representações das figuras humanas, Diadomã (moça em idade de casamento) e Wekírika (rapaz em idade de casamento), também foram identificadas (FÉNELON-COSTA, 1978; NETO, 1984; TORAL, 1992). Na busca da compreensão da estética dos Karajá por meio da descrição das peças, puderam ser detectados 18 motivos diferenciados, com nomes “próprios” ou alusivos a epônimos animais ou vegetais. Os motivos que foram levantados de acordo com Fénelon-Costa (1978) são os seguintes: Kananawá, Ixalubú (busto preto é o que significa o termo. Pode ser chamado também de “braço preto do pássaro cigana”. O motivo é composto de formas triangulares pretas sobre o busto que se prolongam em zonas negras na parte interna e anterior dos braços. Pintura masculina. p. 120); Narihílubu (desenho negro de omoplatas. Padrão idêntico ao anterior, mas que se localiza nas espáduas e parte interna e posterior dos braços. Pintura masculina. p. 120); Atanálorudélubú, Mnálubu (literalmente, joelho preto ou “pedra preta”. É uma faixa preta pintada sobre o joelho. p. 120); Udéudé (pontos ou manchas. p. 116), Turehérekô (triângulos pretos e linhas em ziquezaque, nas pernas. É provável que o triângulo seja representativo do pacu e o ziquezaque do morcego. Trata-se de pintura masculina.Variantes do turehé e haarú, tomadas de modo independentes umas das outras, são usadas por ambos os sexos. p.116); Haaru (um peixe parecido com pacu; relaciona-se também com cobra. São losangos circunscritos por triângulos pretos; hachureados com linhas oblíquas e paralelas. Usados nos flancos e coxas. Ocorrem variantes na pintura facial. Observada em rapazes e em mulheres. p.116); Wekrówekró (nome dado às listras. p.116); Koékoé (nome genérico dado às gregas e suas variantes, “porque dá muita volta”. É usado por homens e mulheres, moças e rapazes; entretanto, alguns tipos parecem específicos de um sexo ou outro. p.116); Ikresíkresí (listra verticais cortadas por verticais paralelas, colocados sobre o nariz. Seria a representação da lagarta Idiaré. Observada em rapazes. p. 116), Idiarikumã,

A respeito das formas geométricas como um todo, detectaram-se gregas, faixas, listras, curvas concêntricas, linhas, ziquezaque, composição de triângulos e losângulos, rosáceas, curvas, motivos em forma de S, ângulos, quadriláteros, pontos e manchas, padrões cruciformes, formas elípticas e linhas pontuadas. A maioria das peças encontra-se em bom estado de conservação, com exceção de algumas figuras de cerâmica que já passsaram por restauro. Foram esses os aspectos levantados dessa coleção. Essa contextualização museológica mostrou-se pertinente a partir desse tipo de documentação específica, pois pôde levantar testemunhos do mundo Karajá, que memorizam o estilo de vida e de produção própria desses índios, que poderiam, em determinado nível, se perder pela falta de um registro dessa natureza. Além dos aspectos analisados, através da descrição a respeito do mundo social Karajá como um todo, como a representação de traços sócio-econômicos, de atividades do cotidiano e da própria mitologia, a formação desse catálogo mostrou-se importante, pois, confere uma organização ao conjunto da coleção etnográfica pesquisada, na medida em que acaba sistematizando os dados museológicos tais como, a localização da peça, seu tombamento e o próprio estado de conservação do material, tornando os dados mais acessíveis. Nesse caso, pode-se afirmar que a documentação é imprescindível enquanto banco de dados, que objetiva um melhor manuseio do objeto para pesquisas e estudos futuros. A fotografia foi outro importante recurso metodológico empregado durante o trabalho, pois este recurso acabou proporcionando uma melhor visualização do material em seus diversos aspectos, sem contar que contribuiu

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Koratútiretí, Axikolubú (faixa negra para braço. Provavelmente são desenhos representativos do peixe btontí ou do próprio tucunaré. Usam ambos os sexos e indivíduos maduros. p.116); Rararadié I ( padrão cruciforme, limitado por linhas horizontais paralelas. A cruz é formada por seis riscas, agrupadas em três verticais e três horizontais. Este motivo pode estar localizado nos braços lateralmente e é também usado sobre o abdomêm, neste último caso apresenta: quatro linhas retas agrupadas duas a duas, perpendiculares umas às outras, formam uma cruz inclusa em um quadrilátero de linhas duplas; há pontos inclusos. É representativo de uma ave. Há um padrão de mesmo nome que se chama Rararadié II , usado na pintura facial. É constituído de um triângulo negro sobre a testa, próximo dos olhos, prolongando-se em duas linhas curvas, paralelas, em direção às têmporas. Estas linhas e o triângulo dão origem a três verticais e paralelas, que cobrem o nariz (p. 116 e 119); e Raradié III que significa urubu miranga ou passarinho, são dois triângulos negros ligados por uma linha vertical, orlado por listras e linhas pontuadas. Usados no busto e nas regiões epigástrica e abdominal. Todos os três padrões são usados por homens quanto por mulheres (p. 119); Tosõ, Itiwekró e Odjudjúreti (FÉNELON-COSTA, 1978).



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também para os cuidados museológicos que se deve ter com o material de um acervo, pois, a partir do momento que a coleção era registrada fotograficamente, passava-se a ter um menor contato com as peças, preservando-as de uma excessiva manipulação. A produção desse catálogo oportunizou ressaltar o papel primordial dessas coleções enquanto fonte de informações que, documentadas, tornaram-se referências para a pesquisa científica, assim como, instrumento de transmissão de conhecimentos, desempenhando seu papel social, pois, a contextualização museológica da coleção Karajá, pôde exemplificar o que as coleções etnográficas mostram ser na realidade, quais os documentos materiais que, ao serem estudados, demonstram a relevância do tema como instrumento de análise e compreensão de determinado grupo étnico (RIBEIRO; van VELTHEM, 1992; DOMINGUES-LOPES, 2002). A documentação, como foi realizada com a coleção “Natalie Petesch”, mostrou-se importante também, porque além do conhecimento antropológico e histórico que pôde ser reunido, as peças puderam também ser analisadas sob outras perspectivas como, através da estética do grupo, por exemplo, que se expressaria na variedade de pinturas e motivos decorativos detectados nessas produções, assim como, de suas relações com o meio ambiente do qual se extraem a matéria prima necessária. Esses aspectos têm relação com a importância da determinação tipológica de coleções etnográficas, pois tais exames detalhados podem ser direcionados para esses outros ramos de investigação, valendo a pena ressaltar que o estudo do ponto de vista estético e simbólico só poderá ser empreendido se for associado a dados etnográficos de campo, porque nesse tipo de abordagem específica busca-se compreender na peça, o sistema de representações subjacentes (RIBEIRO; VAN VELTHEM, 1992). O interessante é que esses objetos indígenas, além de ligados no contexto de origem em seu sentido primário funcional e de seu engajamento em acervos etnográficos, para serem objeto de estudo científico, apresentam-se na atualidade também enquanto mercadoria. Isso diz respeito às peças produzidas por índios que são enviadas às lojas de artesanato dos grandes centros urbanos, e que acabaram virando souvenirs para turistas ávidos de “exotismo” (RIBEIRO, 1985). Este é outro espaço que determinados artefatos se engajam e que podem nos dizer bastante sobre o que representam no contexto mercadológico. Aspecto demonstrado a frente.

Para essa contextualização específica foram realizadas visitas a duas lojas do tipo boutique, chamadas Marajó, a uma loja de artesanato denominada Regional, a loja Artíndia e a uma sucursal sua, todas localizadas em Belém. As informações dizem a respeito a forma de obtenção do material, preços pedidos através de sua venda do material, disposição das peças nos locais e as finalidades que o público comprador dá as mesmas. Foi detectado que as lojas possuem intermediários que, na sua maioria, fazem essa transação, com exceção da Artíndia, que às vezes possuem contato direto com alguns índios que fazem pessoalmente a permuta. Não foi detectado nenhum contato em relação à transação com os índios Karajá. No que tange aos preços pedidos pelas peças, na sua grande maioria, os preços são dobrados em até 100% daqueles oferecidos pelos produtores. As peças são dispostas para chamar a atenção do público consumidor, principalmente nas lojas do tipo “boutique”, por isso, os preços são, provavelmente, atribuídos as peças pelo fato de serem elementos de decoração das casas e presentes “exóticos”, para parentes ou amigos. No que diz respeito, as modificações atribuídas a essas produções quando estão no contexto mercadológico, a própria pesquisa vem a demonstrar que a ampliação do mercado referente a essas produções pode ser um dos fatores que acabam provocando a transformação da estrutura produtiva, do lugar social e do significado desses materiais. Na produção ela encerrou na época em que a maioria dos objetos era feita para auto-subsistência e modificou o processo de trabalho, os materiais, o desenho e o volume das peças para adequá-las ao mercado externo (GARCIA CANCLÍNI, 1983), como no caso das “modernas” bonecas Karajá. Além disso, outras modificações foram atribuídas aos objetos como a própria mudança de função, sendo a rigor, a passagem de um uso prático a outro que passou a ser decorativo, simbólico, estético-folclórico, tratando-se de uma modificação total em relação ao que representava o objeto no seu sentido primário (ibidem), ou seja, ao objeto na aldeia. Esse ponto em específico, surgiu ao longo da pesquisa como algo interessante no que tange a discussão de uma refuncionalização atribuída ao material indígena como um todo e não apenas a cerâmica Karajá, pois, no decorrer do trabalho foi perceptível a modificação total que é atribuída ao material indígena quando se insere no contexto particular do comprador das peças indígenas, o que foi detectado através das conversas com os informantes. Garcia Canclíni (1983), afirma que é como que se cada vez que comprássemos essas peças nesses locais observássemos o que vem sobrescrito, tipo “lembrança de algum lugar”, e soubéssemos que esse objeto não foi feito para

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PATRIMÔNIO MATERIAL KARAJÁ EM LOJAS DE ARTESANATO



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ser usado nesse local, ou seja, como se sentíssemos, a partir da inscrição, que o objeto que antes era utilizado no cotidiano, hoje serve a outro tipo de utilização, não mais a de seu contexto de origem. Esta fórmula supostamente destinada a garantir a autenticidade da peça, como no caso de peças “genuinamente amazônicas”, por exemplo, acaba sendo o signo de sua inautenticidade. Um indígena jamais precisará assinalar a origem nas panelas de barro, ou colares e máscaras que ele produz para utilizar em seu grupo. Esse tipo de inscrição ou concepção é necessária para o turista que mistura as peças compradas em vários lugares, sendo que mais significativa é a distinção social, o prestígio de quem esteve em tais lugares para comprá-las do que, às vezes, os próprios objetos (ibidem). Dessa forma, com algumas exceções, a utilidade prática e cerimonial desses produtos é ignorada, pois, retiraram-se os objetos do contexto para o qual foram concebidos e são exibidos isoladamente, sem explicações suficientes que permitam imaginar o seu sentido original. É por isso que, como afirma Garcia Canclíni (1983), ouve-se, freqüentemente, turistas perguntarem sobre a origem e a utilidade das peças. Isso foi detectado pelos informantes durante a visita feitas às lojas por ocasião da pesquisa. Considerando que o turista desconhece as condições de vida dos povos produtores, junto a falta de referência sobre as peças à venda, necessita-se do registro da memória e identidade que se desconhece (ibidem). Assim, se ao dissolver o valor dessa produção específica no intercâmbio das mercadorias ou no quase vazio valor simbólico do indígena, o mercado, no caso o capitalista, precisa construir identidades imaginárias para gerar significados que ocupem o vazio do que foi perdido. Esquecido o uso dos objetos que agora só servem para serem vendidos e servir como elemento de decoração, para serem exibidos e proporcionarem distinção, ignoradas as relações com a natureza e com a sociedade que deram origem à iconografia, qual é o sentido que podemos encontrar em formas que aludem indiretamente a este universo? (ibidem). Por isso é atribuído ao objeto “artesanal” o “mais formoso dos animais domésticos”, “uma espécie de intermediário entre os seres e os objetos”, este meio ambiente especial, um local privado que evidencia a relação particular que o seu dono possui com o exótico. Daí a importância que assume, segundo Garcia Canclíni (1983), para a burguesia o fato de ela não possuir peças de “artesanato” comuns e iguais ao de outras pessoas. Os compradores “ocidentais” não apenas se apropriam da natureza privativa através do domínio técnico, não somente se apropriam do excedente econômico mediante o mercado oferecido dessas peças, que os colocam a serviço das suas necessidades de distinção. Por isso transforma o tempo histórico em

O que acontece a respeito de toda essa reflexão é que se retiram objetos de um sistema específico, onde a produção e a troca eram reguladas por uma organização própria, recolocando-as em um regime de concorrência intercultural em que os produtores, no caso dos indígenas, entendem apenas parcialmente, e ao qual servem de fora (ibidem). Assim, grande parte do poder de decisão a respeito do que devem ser as peças é transferida da esfera da produção para a circulação, para os intermediários, crescente setor de comerciantes que controlam a produção, seja no que tange a comercialização, seja no que tange as novas atribuições dadas as peças. As condições gerais do sistema capitalista e as próprias dificuldades para os produtores nele se inserirem e se organizarem de modo consistente, torna-os cada vez mais dependentes do capital comercial. Este regime acarreta a decadência dessa cultura específica, ou seja, esses objetos deixam de pertencer à cultura indígena para se colocar como apêndice “folclórico” do sistema capitalista nacional e até multinacional (RIBEIRO, 1985). É interessante perceber as modificações operadas nessas produções, pois assim, verificamos que a produção material aparece como um aspecto privilegiado da cultura ao se perceber a rapidez e as múltiplas modificações que o sistema capitalista impõem às sociedades ditas tradicionais. De fato, a estrutura semântica dos objetos é bem mais maleável do que a das pessoas. Como afirmou Garcia Canclíni (1983, p. 92): um manto bordado para a festa de uma padroeira de uma aldeia pode mudar em poucas horas o seu significado e a sua função ao passar a servir de decoração em uma habitação urbana, ainda que a mesma índia que o usava na sua aldeia, transportada para esta cidade, mantenha por muitos anos a crença que a levavam a participar da festa. Enfim, diante dos produtos indígenas, retirados de seus controles (do produtor), a produção material indígena conserva uma relação mais complexa referentes a sua origem e ao seu destino, por estar atrelada a um fenômeno econômico e estético, sendo não capitalista devido a sua confecção manual e seus desenhos, mas se inserindo no capitalismo como mercadoria. Assim, mesmo depois de “emigrar” das comunidades indígenas carregam, na mistura de materiais tradicionais e modernos, de representações indígenas e

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metafísico, dissolve os objeto em signos, os utensílios cotidianos utilizados por outros em troféus – como quadros, vinhos e móveis antigos – cuja posse crêem que confere ao seu dono o gosto pelo “exótico”, pelo diferente, e a um domínio do tempo e da história (ibidem).



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urbanas e dos seus usos (práticos e decorativos), o conflito e a coexistência entre sistemas sociais e simbólicos (ibidem). É nesse sucinto quadro que passou a se situar essa produção quando atrelada ao sistema de vendo de uma forma geral. Essa discussão acerca das novas atribuições dadas pelos compradores a essas produções quando chegam em suas mãos, parece pertinente, pois, extrapola meramente o aspecto mercadológico atrelado a esse contexto, para outro aspecto que está relacionado com a questão de quem sabe, uma re-funcionalização e uma re-significação por qual passa essa produção específica. Algumas considerações desses locais e alguns aspectos que vieram à tona na pesquisa podem servir de estímulo a novas pesquisas e novas abordagens, principalmente, por ter sido uma pesquisa iniciante a respeito desse aspecto, ou seja, uma etnografia que serviu como um primeiro passo acerca de um assunto tão importante e que merece um estudo bem mais aprofundado, no caso da abordagem em lojas que comercializam essa produção, e a forma que esse material é re-funcionalizado. Nesse caso, seria talvez de relevância, uma etnografia nos estabelecimentos possuidores dessa produção. Reflexão que fica como um estímulo à futuras pesquisas, pois, foi detectado de forma superficial que, as produções indígenas que existem na moradia urbana não é se encotra nesse espaço um objetivo utilitário, mas sim seu valor decorativo e não se espera que desempenhem um papel no espaço da prática doméstica, mas sim no tempo que atribui o seu sentido à vida pessoal e familiar, ou seja, a produção indígena nasce nas culturas indígenas pela sua função e é incorporada à vida moderna pelo seu significado, pela sua origem, que instiga tanto o gosto do ocidental por mostrarem-se “diferentes” e “exóticos” de tudo que “conhecem” (GARCIA CANCLÍNI, 1983). A respeito da abordagem específica voltada meramente à venda desse material, pôde-se detectar que essa produção, na sua origem, basicamente, voltada para utilização própria, encontra-se totalmente ligada ao intercâmbio mercantil, isso porque, as bonecas Karajá que eram brinquedos de criança, depois de descobertas pela sociedade nacional, passaram a ser artigo de venda, como pode ser demonstrado através das transformações que foram efetivadas nessa cerâmica temático-figurativa da fase antiga para a moderna. Um importante aspecto da produção indígena, voltada basicamente, para a venda, é hoje um dos mais polêmicos e complicados, porque a cultura constitui, uma série de formas que surpreendem a determinadas circunstâncias históricas, e o desafio mais importante é saber se dentro desse contexto mercadológico, as comunidades indígenas poderão, por si mesmas, assumir e gerar tais mudanças e se possuirão condições de dar respostas as novas circunstâncias, pois a venda deste

Um dos problemas é que a produção específica para venda pode acabar substituindo objetos únicos por objetos feitos em série, feitos para vender por preço barato, e que pode até mesmo provocar uma perda brusca de qualidade. No caso específico Karajá, até então, através das leituras que foram levantadas e da pesquisa feita nas lojas, a venda da produção pareceu positiva, como mesmo salientou Vidal e Silva (1995), pois esse comércio significou uma vantagem financeira para este grupo específico, assim como valorizou esta atividade, ou seja, estimulou, ainda, a criação de novas formas e temas criativos do estilo específico Karajá. Mas será que isso, perdurará por muito tempo? E outras etnias que também sobrevivem desse intercâmbio comercial. Para a finalização desse artigo, fica essa interrogação como forma de aprofundamento da discussão e de novas pesquisas, até mesmo para não se deixar levar por um determinismo acerca da problemática em relação ao destino dessas produções. Pensando nesses três contextos específicos, aldeia, museu e loja de artesanato, enquanto espaços onde podem ser encontrados objetos indígenas que se contextualizam de formas díspares, é que foi desenvolvido o presente artigo, em que se tentou demonstrar múltiplos possuidores e usuários da cultura material Karajá e a forma singular adotada em cada espaço no tratamento de tais acervos, demonstrando, a partir disso, que a reelaboração do lugar da produção material indígena em espaços díspares permite captar a estratégia de contextualização e descontextualização que a própria cultura ocidental cumpre diante das culturas indígenas, a partir do momento que o objeto de procedência indígena sai de seu contexto original e se insere em outros, principalmente no contexto das lojas de artesanato, que o utiliza meramente para venda. Essa contextualização faz com que se fomente ainda mais a discussão a respeito do patrimônio material tangível e sua forma de interação com as categorias de pensamento específicas de grupos sociais, ou seja, com o patrimônio intangível e a forma de interação entre as partes, seja através das modificações atribuídas ao material artesanal dentro da sociedade envolvente em detrimento da aproximação com a sociedade nacional, ou seja, através das próprias modificações de significado e função desse patrimônio por um público diferenciado, no caso dos “ocidentais” que detêm esses objetos a partir de então.

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tipo de objeto pode afetar diretamente o sistema interno de significação dos objetos e das relações que expressam (VIDAL ; SILVA, 1995).



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CONCLUSÕES ARTICULADAS I. Patrimônio material Karajá na aldeia : • Artefato em si → signo de comunicação cujas potencialidades só podem ser descobertas por meio de contextualizações específicas que ultrapassem a pesquisa bibliográfica. • Pano de fundo: ambiente ecológico, organização sócioeconômica, estética e os conteúdos simbólicos da sociedade estudada, no caso do grupo Karajá. II. Patrimônio material Karajá no Acervo Etnográfico: • Mediante a formação do catálogo pôde-se levantar testemunhos do mundo Karajá, memorizando o estilo de vida próprio desses índios que poderiam se perder pela falta de um registro dessa natureza • Organização ao conjunto de uma coleção etnográfica. • Ressaltou o papel primordial das coleções enquanto fontes de informações referentes a pesquisa científica. III. Patrimônio material Karajá em lojas de Artesanato: • Produto voltado meramente à venda. • Problemática referente a perda de qualidade estética da produção por estarem sendo feitos em série. • Refuncionalização e a Resignificação dos objetos, recolocando-os na esfera de circulação e dissolvendo seu valor de uso. • Fomento a discussão a respeito de patrimônio tangível e intangível, no que tange a maleabilidade da cultura material indígena por atrelar-se a múltiplos contextos.

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Carlos Eduardo Lira Silva1 Regina Oliveira da Silva2 Vera Bastos3 André Costa 3 Kleber Perotes 3 Amir Lima 3

1 HISTÓRICO E ANTECEDENTES DO PARQUE Juntamente com um grupo de personalidades, o naturalista Domingo Soares Ferreira Penna criava em 6 de outubro de 1866, a “Associação Philomática” com o objetivo de preencher uma lacuna nos estudos sobre a natureza, a geografia, a geologia, a história e, principalmente, sobre o homem indígena da Amazônia. Mais tarde, em 1870, essa associação passou a denominar-se “Museu Paraense de História Natural e Ethnografia” e no ano seguinte, em 25 de março, passou a figurar como órgão do Governo da Província. Em 1891, o Museu Paraense, ainda instalado na rua S. João (hoje, rua S. Diogo), recebia inúmeras doações de espécies de animais: mamíferos, aves e répteis, os quais, em um pequeno espaço externo ao prédio, viviam em gaiolas reduzidas ou acorrentados. Apesar das condições inadequadas chamavam a atenção do público. Em 1893, por sugestão do então diretor Ernesto Acton, especialista em taxidermia junto ao governador Lauro Sodré, firmaram um acordo para a criação de “um pequeno Jardim Botânico e Zoológico destinado a conservação viva de vegetais e animais.” Aceitando o convite do governador, o naturalista Emílio Goeldi, em 31 de janeiro de 1894, assume a direção do Museu. Uma de suas primeiras providências foi delinear a instalação do Zoológico e Horto Botânico. A limitação do espaço físico levou o novo diretor a exigir do governador um lugar mais apropriado para o Museu (GOELDI, 1895). Foi então formada 1 2 3

Universidade Federal do Pará - Estudante de Licenciatura em Biologia - Estagiário do MPEG; Museu Paraense Emílio Goeldi - Pesquisadora; Museu Paraense Emílio Goeldi - Setor Parque Zoobotânico.

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O Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi e suas múltiplas facetas no universo Amazônico



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uma comissão para a escolha do novo prédio que juntasse todas as qualidades e exigências para o alargamento material e técnico. Nessas condições foi adquirida a Rocinha do coronel Silva Santos, para onde transferiu-se o Museu em 16 de março de 1895. Desde então começaram as obras para implantação do Parque Zoobotânico, com a construção de gaiolas, tanques, cercados e edificações. Com o apoio do botânico Jaques Huber, foi planejado o Jardim Botânico. Muitas espécies da flora amazônica começaram então a ter representantes no Parque. A fauna estava representada pelas espécies mais características da região, com ênfase para os mamíferos e aves. Espécies raras estiveram representadas atraindo a curiosidade científica e popular. O PZB, recebeu ornamentos e novas atrações foram inauguradas em 1908, como o pedestal com o busto de Ferreira Penna e dos naturalistas Joham Von Spix e Carl Von Martius, ofertado pela Academia Real de Ciências de Munique. No centro do Parque foi inaugurado o Aquário, com uma bem representada amostra de peixes ornamentais amazônicos, espécies de importância econômica e despertam curiosidades. A partir de 1931, reformaram-se os viveiros dos animais. Foram instaladas gaiolas em madeira a fim de abrigar aves de rapina, bem como, as espécies aquáticas, com condições de reprodução. O Jardim Zoológico alcançou seu apogeu entre o período de 1931 a 1945, com cerca de 2.500 exemplares de animais diversos. Nesse período, o Horto Botânico recebe inúmeras espécies de palmeiras e cria o local chamado Palmarium. Em 1937, intensifica-se a criação de peixes ornamentais e a criação de quelônios aquáticos e terrestres. Em 1940, o PZB passou a ser o melhor Parque do Brasil pelo padrão, cuidados e pela singular simbiose de convivência faunística-florística. Em 1984, através do convênio “Projeto Consciência Ecológica da Amazônia” com o apoio da Companhia Vale do Rio Doce, Alumínio do Brasil, Alumínio do Norte, Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Museu Paraense Emílio Goeldi, o PZB passa por uma reestruturação física e redimensionamento de sua infra-estrutura básica. Vários prédios foram reformados, recuperados e/ou restaurados, destacando o Pavilhão Ferreira Penna (Rocinha), a biblioteca Clara Maria Galvão e a recuperação do prédio Emília Snethlage (Diretoria). Os viveiros foram readaptados e 13 foram construídos. Foram implantados abrigos de chuva, telefonia e executadas obras de infra-estrutura (galeria de drenagem, rede de água e esgoto). Iniciou-se a produção de mudas e horto de plantas medicinais. Esta foi a última reformulação ocorrida no PZB. A partir de 1989 as alterações realizadas na área do parque foram de caráter administrativo e estruturais, mas não chegaram a um conceito mais atualizado de uso de áreas protegidas urbanas.

Historicamente a Amazônia, como região, enfrentou diversas dificuldades para promover seu desenvolvimento e aproveitar socialmente suas potencialidades, desde a chegada, em 1500, de Vicente Yanez Pinzón (FVA/IBAMA, 98). O universo amazônico foi revelado ao mundo pelo espanhol Francisco Orellana nos anos de 1539 – 1542, ao partir de Quito, no Equador, e atingir o oceano Atlântico. Preocupados com as riquezas minerais de suas colônias da costa do Pacífico, os espanhóis deixaram aos portugueses a liberdade de ação quanto ao domínio amazônico (FVA/IBAMA, 98). O apogeu da urbanização nesta região deu-se durante a fase áurea da borracha, em Belém com administração de Antônio Lemos (1897 – 1910) houve a intensificação e a renovação estética da cidade com a limpeza urbana, pavimentação de ruas e construção de praças e jardins. Belém entrou no século XX com uma das melhores infra-estruturas urbanas do País ( Paranaguá et al, 2003). No entanto, esse desenvolvimento trouxe conseqüências como o extermínio de inúmeras espécies. A cada ano, milhares de plantas e animais desaparecem da Terra e, com eles, a possibilidade de serem conhecidos pela ciência. É nesse contexto que Parques Zoológicos e Jardins Botânicos, constituem locais para pesquisas e centros educativos importantíssimos e, juntos, mantêm uma grande coleção de fauna e flora que podem ser apreciadas pelo público e usadas para estudos científicos (FVA/IBAMA, 98). No mundo há mais de 1.600 Jardins Botânicos, no Brasil, são 29, sendo que a Amazônia apresenta apenas três jardins botânicos, por isso podemos dizer que eles, juntamente, com os Zoológicos, desempenham um papel fundamental na conservação ex-situ da Fauna e da Flora (WILISON, 2003). No Brasil Jardins botânicos e Zoológicos, desempenham múltiplos papéis, desde: importância histórica original, aclimatação de espécies, até a educação e sensibilização do público para a preservação do ambiente faunístico e florísticos, além da geração do conhecimento de técnicas e métodos de conservação e reprodução de espécies ameaçadas do ecossistema brasileiro. Os Jardins botânicos e os Zoológicos brasileiros constituem-se, em indispensáveis instrumentos de ressonância dos compromissos internacionais ratificados pelo Brasil em Convenções que tratam da questão ambiental (WILISON, 2003). O Parque Zoobotânico do MPEG, idealizado por Emílio Goeldi e outros pesquisadores, constituiu-se no primeiro parque zoológico e horto botânico do

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2 O PARQUE E SEU CONTEXTO



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País. Este foi criado em 15 de março de 1895, com a transferência definitiva do Museu, da rua Santo Antônio, nº 26, para a Área da Rocinha, Magalhães Barata. Atualmente o Parque possui 5,2 hectares, que abrigam mais de 2000 espécies vegetais e 600 animais em cativeiros ou soltos na área. Representa um dos principais pontos turísticos de Belém e é considerado, por muitos, um microcosmo do universo amazônico incrustado em pleno centro urbano da capital paraense (CASTRO ; SENA, 2002).

3 Flora e Fauna: Um patrimônio Natural 3.1 FLORA A flora do Parque, desde sua criação, tem como um dos objetivos principais manter uma coleção de plantas vivas, representantes da floresta Amazônica. Foram introduzidas espécimes Tipos botânicos, são exemplares em que se baseia a descrição original de uma espécie vegetal, ou de uma categoria intra-específica, e que até hoje permanecem no Parque, pois são de grande valor científico. A vegetação do Parque é exuberante e diversificada, composta de gigantescas árvores e ervas diversas formando o sub-bosque. A maioria de sua flora é composta de espécies representantes da flora Amazônica, embora hajam poucas exóticas que estão sendo cultivadas. Atualmente, a área de vegetação ocupa apenas 34,6% do Parque e caracteriza os mais diversos ambientes amazônicos. A flora do Parque contém espécies de vários ambientes amazônicos tais como: floresta de terra-firme, floresta de várzea, floresta de igapó, campos de terra-firme e restinga. Dessa forma, podemos ter a oportunidade de visualizar e aprender sobre as características floristicas sem necessitar sair da área urbana da cidade, o que torna o PZB uma área nobre para os seus visitantes.

3.2 FAUNA A presença de animais em exposição pública na área do Parque iniciou em 1895. Naquela época com 400 animais, distribuídos em 129 espécies, que contavam com o apreço e apoio da comunidade. Atualmente o PZB tem uma coleção faunística em condições de cativeiro e semiliberdade, exclusiva de animais amazônicos, representada por 100 espécies, sendo 8 ameaçadas de extinção: peixe-boi (Trichechus inunguis), onça ( Panthera onca), coatá-testa-branca (Ateles b. marginatus), ariranha (Pteronura brasiliensis), guará (Eudocimus ruber), ararajuba (Guarouba guarouba), urubu-rei (Sarcoramphus papa), jacaré-açu (Melanosuchus niger) e pirarucu (Arapaima gigas).

Assim, tanto a Fauna quanto a Flora representam um patrimônio natural único localizado no centro de Belém, permitindo que todos os seus visitantes possam conhecer e assumir para si a responsabilidade com a natureza.

4 O PARQUE E O HOMEM O Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi um dos testemunhos de um período de grandes aspirações do homem amazônico, compreendido entre o fim do século XIX e início do século XX quando Belém vivia mudanças que lhe deram as feições pelas quais é mais conhecida até hoje, o torna um forte referencial de identidade urbana (DUPRAT, 2002). Além disso, o PZB constituiu um espaço único no centro da cidade de Belém proporcionando aos seus cidadãos opção de lazer, além de reduzir a poluição atmosférica e contribuir para a regulação do microclima urbano (Paranaguá et al, 2003). Vale ressaltar que dentre as funções do Parque encontra-se a de "gerenciar, conservar e difundir conhecimentos por meio dos acervos vivos de fauna e flora amazônicas do Parque Zoobotânico do MPEG’’ (MPEG, 2002). Em Belém as áreas verdes não se encontram disponíveis para o público, a exceção do Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi e do Jardim Botânico Bosque Rodrigues Alves (Paranaguá et al, 2003), com isso áreas de educação informal, com bastante potencial tornam-se sub-utilizadas pelas redes de ensino da cidade e seus cidadãos. Apresentando uma rica fauna, flora, arquitetura o PZB é um referencial no processo de visitação pública ao longo do ano. Os visitantes o transformam em um sítio de grande potencial para os processos educativos não-formais e formais em nossa cidade, divulgando para todos as expressões culturais e intelectuais do homem amazônico. O Parque é, segundo Castro & Sena (2002), um local que deve levar ao público as importantes descobertas decorrentes de pesquisas, bem como formar pessoas mais críticas e atuantes perantes acontecimentos que envolvam a região amazônica. O Serviço de Educação e Extensão Cultural – SEC da Coordenação de Museologia do MPEG, é responsável pelos projetos e atividades de educação em ciência e meio ambiente que atinjam público diversificado, entre eles educadores,

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A visualização destes animais amazônicos ameaçados de extinção, se bem trabalhada pelo setor educacional do Parque, poderá vir a sensibilizar a população da sua responsabilidade social com o meio ambiente. Desta forma, a Fauna do Parque representa um excelente local de reflexão da atual situação do universo faunístico que se encontra a Amazônia.



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educandos, lideres comunitários e comunidade em geral. O SEC operacionaliza a biblioteca de Ciências Maria Clara Galvão e a Coleção Didática Emília Snethlage (constituídas de peças que representam as áreas de pesquisa do Museu) e desenvolve as atividades de difusão cientifica realizadas no Parque, dentre elas estão incluídas visitas escolares ao PZB, Clube do Pesquisador Mirim (estimula o estudante de ensino fundamental e médio a interessar-se pela ciência), O Liberal no Museu Goeldi, Mostras interativas, campanhas educativas etc. (WILLISON, 2003). Estas atividades buscam difundir o universo científico amazônico para a população, afim de que, passemos a conhecer as descobertas e feitos dos pesquisadores em nossa região. O funcionamento do Parque é das 9:00 às 17:00 de terça-feira a domingo, o PZB por meio de seus departamentos, atende ao público em geral com atividades de visitações simples, guiadas ou programadas e eventos culturais (apresentações folclóricas, teatrais, oficinas, debates científicos, etc.). Além dessas atividades com os visitantes, o Parque tem servido para a realização de pesquisas relacionadas a sua fauna, flora e arquitetura, estas tem um caráter formador para os alunos das Universidades do Estado. As linhas de pesquisa estão concentradas em Zoologia, Biologia, Ecologia, Medicina Veterinária e Botânica. As pesquisas são acompanhadas pelo SPZ e pelo Setor Flora. Os estudos são em geral orientados por pesquisadores do Museu Goeldi, e os resultados são apresentados publicamente em seminários institucionais, workshops e congressos.

5 BIOPARQUE: UMA PERSPECTIVA Até a atualidade o termo Parque Zoobotânico tem sido sinônimo de local de exposição de animais e plantas dentro de um habitat a eles apropriado. Os zoológicos repetiram essa forma de expor os seres vivos e as plantas, como representantes de reinos animais fragmentados. Esta separação, que obedece mais a necessidade humana por classificar e ordenar o mundo, contraria à própria natureza, uma vez que nela a biologia dos animais e das plantas se apresenta como um todo. Em nível museológico a aplicação de velhos conceitos nas exposições levou a mostrar as coleções dos acervos dos museus sempre de forma diferenciada, sem uma preocupação por cruzá-las (Robinson,1992). Nas últimas décadas o conceito de Bioparque tem deslocado, paulatinamente, no âmbito dos zoológicos, jardins botânicos e nos museus de história natural, essa forma tradicional de expor animais, plantas e acervos museográficos. A partir dos meios acadêmicos e dos centros de pesquisa nacionais e internacionais foi se formando uma nova visão de meio ambiente e de Biodiversidade. Essa nova visão veio à tona na RIO ’92 com a elaboração de

Neste novo cenário animais e plantas não recebem mais classificações de benéficos ou nocivos e as culturas não são mais divididas em primitivas ou avançadas. A orientação conceitual desenvolvida a partir da convenção da Biodiversidade aponta para um entendimento global do papel de todos os elementos vivos do planeta, de como estes interferem na vida humana e na manutenção da estabilidade do mesmo. Encara a multiplicidade da cultura humana e busca resgatar as práticas culturais que melhor se conformam com a manutenção da qualidade de vida das populações e a preservação das espécies. A partir deste novo conceito o conhecimento avança no sentido de compreender as relações de causa-efeito que envolvem todos os elementos constitutivos dos ecossistemas. Assim, na atualidade, a partir de uma valorização positiva da Biodiversidade, o conceito de Bioparque elaborado no âmbito das instituições museológicas, define o Parque Zoobotânico como local da Biodiversidade onde se valoriza não apenas os elementos desta diversidade, mas também as relações existentes de interatividade e de interdependência entre eles. Fatos estes, que contribuem para o delineamento e manutenção do sistema como um todo. Isto tudo implica em mostrar as espécies que constituem os diferentes reinos assim como os processos em vários níveis: intraespecífico, social, interespecífico, planta/animal, animal/planta, etc. Desta forma passa-se de um uso tradicional das plantas como pano de fundo dos seres vivos típicos dos zoológicos e das plantas como seres isolados, característico dos jardins botânicos, para um outro que mostra as interações envolvendo ambos os grupos (ROBINSON, 1992). No novo momento as plantas não mais seriam apresentadas como um pano de fundo sobre o qual se desenvolve a vida do reino animal, mas como uma parte integrante e essencial do sistema-vida. Em geral, nos zoológicos tradicionais tem se adotado o recurso de fazer com que o mundo animal pareça ‘naturalístico’, em uma escala e perspectiva que aproximam assim a natureza da forma de perceber dos seres humanos. Se por um lado isso permite uma certa compreensão do tema abordado para o grande público, por outro lado representa um obstáculo, pois de fato, essa visão do mundo animal adotada se baseia numa concepção antropomórfica da natureza, que a distorce e humaniza, impedindo um verdadeiro entendimento de como ela é e de como funciona. Além disso, o ser humano confere ao entorno natural recriado nos zoológicos ou nos jardins botânicos uma posição de domínio (ROBINSON,1992 ; EDER,1996). O conceito de Bioparque busca aproximar o visitante ao mundo animal, mas com a condição de enfatizar as diferentes percepções sensoriais sobre o

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documentos acordados por países do mundo todo, incluindo o Brasil, estabelecendo, assim, uma contraposição à anterior no fato de que a fauna, a flora e os seres humanos não são mais entendidos como elementos independentes.



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entorno que as espécies têm distanciando-nos do ponto de vista estritamente humano, o que permitirá detectar não um único ponto de vista, mas, múltiplos mundos sensoriais e de muitas espécies diferentes (ROBINSON,1992). Neste sentido, as exposições deverão procurar estimular a percepção não só visual, mas auditiva, olfativa, tática e gustativa do visitante. Isto permitirá que o público passe através de uma experiência que, além de aproximá-lo às outras espécies animais, oferecerá ao visitante a oportunidade de um contato profundo com o ambiente representado, estimulando ao máximo a sua capacidade de relacionar e reflexiva.



Poderão ser tratadas as representações artísticas dos diferentes grupos humanos na Amazônia em relação ao meio ambiente natural. É interessante ressaltar a variedade de visões sobre um mesmo tema e neste ponto mostrar como o uso e os meios tecnológicos a disposição dessas populações, permitiram, até o momento, preservar a natureza amazônica sem grandes alterações traumáticas e como isso reflete nas mitologias dos grupos indígenas e de outros grupos humanos na Amazônia.

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Da mesma forma, os grupos humanos deverão ser tratados em seus componentes biológicos, tentando aproximar aquilo que os aproxima e os distancia dos outros seres vivos. As exposições que tomam como motivo principal a riqueza que a biodiversidade representa para o planeta, podem desta forma se transformar num instrumento eficaz de divulgação para se criar estados de opinião favoráveis a projetos de intervenção institucionais. O Parque do MPEG tem cumprido o papel de guardar nele espécies representativas dos diferentes reinos biológicos e dos variados grupos humanos regionais. Deve-se ressaltar a importância de uma instituição de pesquisa, de conservação de acervos e de difusão como é o MPEG, que recolhe e dissemina conhecimento científico sobre o entorno territorial, dado pela ocupação humana e pela natureza amazônicas, dentro de uma perspectiva do desenvolvimento sustentável. O entendimento da Amazônia como um sistema complexo em que fauna, flora e ocupação humana se interagem com o ambiente físico é fundamental para o delineamento desse novo desenho de Parque, já que o mesmo se propõe a atuar como um instrumento de difusão do conhecimento da Região e, na medida do possível, contribuir para reverter o atual quadro de destruição do habitat natural pelo homem.

Esta concepção holística de zoológico e de jardim botânico encerra um grande potencial como instrumento de educação ambiental e, através da prática educativa, se transforma num meio para enfrentar a crise da biodiversidade. A educação pode ser um poderoso instrumento para reverter o quadro de destruição das florestas tropicais, do seu patrimônio genético, e dos problemas sociais que tudo isso comporta, de tal forma que se considere o problema em ampla

Como exemplo, basta citar a enorme repercussão de uma exposição de média duração sobre a Amazônia que o Museu de la Ciència da Fundaciò “la Caixa”, de Barcelona organizou e manteve de 1993 até 1995. Na opinião do geólogo Aziz Ab’Saber, em função dos conteúdos nela veiculados, do tratamento da informação dado e do número de visitantes, a exposição foi, até o momento, a maior contribuição para a difusão de um conhecimento sobre a Região e dos problemas derivados da destruição do seu meio ambiente (AB’SABER,1998). Uma forma de propiciar o desenvolvimento a partir da própria riqueza biológica do entorno amazônico seria incorporar conceitos no entendimento da fauna, flora e da cultura como recursos de sobrevivência humana, buscando sua utilização e a viabilização econômica e, principalmente, ressaltando-os como fonte de qualidade de vida, especificamente para a manutenção da saúde física e mental da população. A forma de apresentação do Parque, as normas de procedimento e as atividades propostas devem refletir a mesma postura ética que se busca inspirar no visitante. Educar para o exercício da cidadania será uma contribuição a mais que o MPEG possa oferecer a Amazônia.

6 CONCLUSÕES 1. O Parque Zoobotânico representa no universo da história amazônica, um local de referência, pois apresenta aos seus visitantes uma parte importante da história arquitetônica da cidade de Belém do Pará com prédios como a Rocinha e a Biblioteca de ciência Maria Clara Galvão; 2. O Parque está intimamente ligado ao cotidiano e a história da população da cidade de Belém do Pará, pois todos os belenenses, tanto idosos quanto crianças, que são levadas por seus pais, costumam freqüentar o ambiente do Parque a procura de aprendizagem, descanso ou lazer; 3. O Parque é um dos símbolos culturais da cidade de Belém, isto por que, nele estão presentes exposições referentes ao homem amazônico. Tais exposições procuram abordar os mais variados aspectos culturais da população desta região;

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perspetiva. Podemos assim, perceber o dilema das populações dos países emergentes, onde se encontram a maior parte das florestas tropicais e da biodiversidade do mundo. Dilema no qual se enfrentam os preceitos conservacionistas com as necessidades básicas de subsistência a curto-prazo dessas populações. Neste contexto, os investimentos dos países centrais em projetos educativos podem vir a se transformar em um movimento de pressão sobre os governos que podem ser compelidos a proporcionar soluções que encarem o problema das populações dos países emergentes (ROBINSON,1992).



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4. O Parque é uma área que permite o desenvolvimento de diversas atividades educativas para a população e seus visitantes, seja ele turista ou não. Estas atividades engrandecem nossa cultura amazônica permitindo sua difusão e enraizamento nos jovens paraenses. Alem disso, estas atividades permitem que nós, paraenses, nos tornemos mais responsáveis pelo patrimônio histórico e natural presente em nossa cidade; 5. A coleção faunística e florística, patrimônio natural indispensável ao Parque, nos remete a possibilidade de educar os mais diversos cidadãos em espaço não formais, permitindo uma tomada de consciência e reflexão quanto aos aspectos das inter-relações ambientais presentes na Amazônia; 6. O Parque é um local onde foram e são realizadas as mais variadas pesquisas. Ao longo de seus mais de cem anos de existência vários estudos foram realizadas em áreas como zoologia, educação, botânica etc. Essas pesquisas revelam como o Parque é um local multiuso dentro do universo regional, possibilitando o desenvolvimento ambiental local; 7. A proposta de transformar o PZB em Bioparque viria a enriquecê-lo nos aspectos educacionais, permitindo que a população passe, não apenas a ver o ambiente, mas que se sinta verdadeiramente parte desse meio amazônico. A sensibilização do visitante viria a incentivar a participação da população na defesa de sua cultura e de seu patrimônio.

REFERÊNCIAS AB’SABER, A. N. Espaços complementares de educação. In: CRESTANA, Silvério et al. Centros e museus de ciência: Subsídios para um programa nacional de popularização da ciência. São Paulo: [s.n.], 1998. DE OLIVEIRA (ORG.), Tânia Roberta Costa. Refletindo o Ensino de Ciências no Pará. In: SENA, Heronilce Nazaré Silva Sinaida Maria Vasconcelos de CASTRO Sinaida Maria Vasconcelos de. Ensino de Ciências: Produção e disseminação do conhecimento. Belém: [s.n.] , 2002.

DUPRAT, ISABEL. Relatório de Consultoria do MPEG. Belém - Pa. 2002. EDER, Klaus. The social construction of nature. London: SAGE, 1996 [1988] GOELDI, E. Relatório Administrativo. Bol. Mus. Para. Fasc. 1, V. II, 1895.

FVA/IBAMA, Plano de Manejo do Parque Nacional do Jaú. Manaus: Fundação vitória Amazônica, 1998. PARANAGUÁ, P. et al. Belém Sustentável. Belém: IMAZON, 2003. ROBINSON, M.H. The bio-park concept and the exhibition of mammals. In: KLEIMAN, Dera G. et al. Wild mammals in captivity: Princples and techniques. Chicago: CUP, 1992. 4

Júlia. Educação Ambiental em Jardins Botânicos : Diretrizes para desenvolvimento de estratégias individuais – Educação em ciências para a comunidade. Rio de Janeiro: [s.n.], 2003.

WILLISON,

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MUSEU Paraense Emilio Goeldi. Documento Institucional da Força Tarefa. Belém - Pa., 2002.



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Agradecimento a colaboradores como: Antônio C. Vallinoto Jr., Carmosina Calliari e Jayme N. Silva.

Rita de Cássia Domingues-Lopes1 Gilmar Matta da Silva2 Exercício de análise sobre a possibilidade de estudo em coleções etnográficas indígenas da Universidade Federal do Pará, partindo da categoria artesanal Instrumentos Musicais e de Sinalização. Para atingir este fim, utilizamos como fonte os Catálogos organizados na Reserva Técnica do Laboratório de Antropologia por Figueiredo (1981) e Domingues-Lopes et all. (2003), as 3 informações observadas durante o trabalho de campo na Área Indígena Xikrín e as informações obtidas na literatura antropológica referentes ao grupo Juruna.

EM BUSCA DE INSTRUMENTOS MUSICAIS E DE SINALIZAÇÃO A primeira etapa de trabalho consistiu em fazer um inventário, isto é, um levantamento referente aos instrumentos musicais e de sinalização nos Catálogos organizados por Figueiredo (1981) e Domingues-Lopes et all. (2003), objetivando reconhecer peças, dimensões, grupos indígenas, e coleções que possuíam tais artefatos dentro da Reserva Técnica da Universidade Federal do Pará. O inventário constituiu em procurar na Reserva Técnica todos os instrumentos nela guardada, anotando o número de registro de cada peça; a descrição de acordo com o Catálogo (DOMINGUES-LOPES et al. 2003); e a localização, ou seja, os números dos armários onde estão guardadas as peças nesta Reserva. Neste levantamento verificou-se a existência de quatro coleções etnográficas indígenas4 totalizando trinta e dois instrumentos musicais e de 5 sinalização indicados e distribuídos entre oito grupos indígenas , tendo que 1

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Mestre em Antropologia, pesquisadora associada junto ao Grupo de Pesquisa Cidade, Aldeia e Patrimônio coordenado pela Prof.ª Dr.ª Jane Felipe Beltrão do Departamento de Antropologia da UFPA. Bacharel e Licenciado Pleno em Ciências Sociais e estagiário junto ao Grupo de Pesquisa Cidade, Aldeia e Patrimônio coordenado pela Prof.ª Dr.ª Jane Felipe Beltrão do Departamento de Antropologia da UFPA. A área indígena Xikrín do Cateté fica no sudeste do Estado do Pará As duas aldeias Xikrín, Cateté e Djudjê-kô, ficam às margens do rio Cateté. As Coleções Etnográficas referidas são de: Protásio Frikel (1965); Eduardo Galvão e Protásio Frikel (1966); Arthur Napoleão Figueiredo e Anaiza Vergolino e Silva (1969) e Arthur Napoleão Figueiredo (1972). Os grupos indígenas são: Anambé, Juruna, Kamayurá, Kuikuro, Trumai, Tiriyó, Xaruma e Xikrín.

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Instrumentos Musicais e de Sinalização: coleções etnográficas da universidade federal do Pará



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considerar a não localização de um dos instrumentos, registrado como “Maracá em trançado de arumã com enfeite de penas” sob número de tombamento 1229, finalizando, assim, trinta e um instrumentos musicais e de sinalização indígenas. O segundo momento referiu-se à classificação desses instrumentos como propõem Berta Ribeiro (1988) no Dicionário do Artesanato Indígena. Assim, os instrumentos estão dispostos em dois grandes grupos, são eles: aerofones e idiofones. Durante esta classificação, ainda se adotou o procedimento utilizado por Domingues-Lopes (2002), que sistematizou os dados mediante a elaboração de uma nomenclatura visando reunir informações dos artefatos Xikrín da Coleção Etnográfica Protásio Frikel (1965), apreendida como objeto de estudo durante a fase de elaboração de sua pesquisa. Dessa forma, onze tabelas foram elaboradas nas quais os instrumentos estão classificados dentro de cada coleção, isto é, em uma coleção há instrumentos aerofones e idiofones. Paralelamente a essa atividade, foi realizado levantamento bibliográfico com o intuito de completar as informações das tabelas por meio de consulta às obras de referência dos antropólogos que coletaram tais artefatos, sendo que esse processo de análise das fontes bibliográficas continua. A categoria artesanal Instrumentos Musicais e de Sinalização compreende uma classificação interna, que podemos considerar como uma forma de produzir vibrações (LOWEI, 1947), ou seja, de acordo com o modo que o som é produzido. São identificados, assim, quatro tipos de produção de som: idiofone, aerofone, membranofone e cordofone. Nas quatro coleções etnográficas indígenas pertencentes à Universidade Federal do Pará, encontramos apenas dois dos quatro tipos de produção de som, são eles: idiofone e aerofone. O primeiro é caracterizado por “... instrumentos que soam mediante a vibração da própria matéria de que são feitos” (RIBEIRO, 1988, p. 195), como os bastões maciço de ritmo, chocalhos e tambores feitos a partir da carapaça de tartaruga são utilizados tanto para produzir som, quanto para marcar os passos em uma festa. O aerofone é um instrumento de sopro que “produz som mediante a vibração do ar soprado no interior de um receptáculo como flautas e apito, ou quando são postos a girar em torno de seu eixo, como os zunidores” (Ribeiro, 1988, p.195). O trabalho de descrição das peças desenvolveu-se mediante a observação das estruturas que as compõem como: matéria-prima utilizada na confecção e os motivos decorativos que apresentam, utilizando como referência principal o Dicionário do Artesanato Indígena. (1988) para que se estabelecesse um padrão na descrição. Durante o trabalho percebeu-se que algumas peças possuem traços característicos comuns, como: decoração com penas, incisões no corpo do objeto, formas. Fator que permite supor um diálogo entre os grupos que as produzem

Para a realização das descrições e dos desenhos da categoria artesanal em questão foram necessárias várias entradas na Reserva Técnica, sendo os objetos desenhados por Maria do Socorro Lacerda Lima6 e Levi Alcântara de Lima7. O recurso do desenho evitava a manipulação excessiva das peças e seu desgaste.

DESCOBRINDO OS INSTRUMENTOS MUSICAIS E DE SINALIZAÇÃO A categoria artesanal instrumentos musicais e de sinalização compreende: bastões maciço de ritmo, flautas, tambores, chocalhos, zunidores, apitos entre outros. Na Reserva Técnica do Departamento de Antropologia da UFPA encontramos 13 flautas classificadas como flauta de pan, flauta reta com aeroduto, flauta reta de osso, flauta transversa sem orifício, flauta reta com aeroduto interno, flauta reta sem aeroduto; nove maracás classificados como chocalho globular, chocalho em recipiente fechado, chocalho ovóide; quatro zunidores; quatro bastões maciços de ritmo e um apito de caça. Tais artefatos foram coletados entre o período de 1965 a 1972, apresentando mais de trinta anos desde sua entrada. Os objetos apresentam, em geral, bom estado de conservação, apesar de haver exceções e algumas peças apresentarem rachaduras em suas estruturas e alterações de cores nos desenhos e penas. Segundo Ribeiro (1988), flautas são aerofones, ou seja, são instrumentos de sopro com suas variantes indicando a matéria-prima seja osso, taboca, cabaça; forma globular, tubular, circular, indicando ainda presença ou não de orifícios de digitação, localização do orifício de soprar (reta ou transversa), modo de soprar e quantidade de tubos. Os maracás são chocalhos que possuem recipiente fechado, que pode ser de cabaça ou cuia, ovos de ema ou de jacaré, crânio de macaco, cerâmica, carapaça de tartaruga, entre outras matérias-primas, provido de um cabo. Os elementos sonoros contidos no recipiente podem ser as próprias sementes do fruto, pedrinhas, outras sementes ou élitros de coleóptero. A forma varia entre globular e ovóide (Ribeiro, 1988, p.199).

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Graduanda em História na Universidade Federal do Pará. Bacharel e Licenciado Pleno em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará.

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pelo fato de alguns pertencerem à mesma área geográfica como no caso os grupos que estão localizados no Alto Xingu (Juruna, Kamayurá, Kuikuro, Trumai) em contraposição aos localizados no Tocantins-Xingu (Anambé, Xikrín) e Norte-Amazônico (Tiriyó, Xaruma).



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Os zunidores são peças em madeiras oblongas e achatadas amarradas à extremidade de uma corda que, por sua vez, é fixada freqüentemente a uma vara. O executante gira o zunidor sobre sua cabeça e o movimento de rotação da peça sobre seu próprio eixo faz vibrar o ar em volta, produzindo um zunido. Quanto mais estreito o artefato e mais rápido o movimento, mais agudo é o zunido (Ribeiro, 1988, p. 208). Segundo Ribeiro, o instrumento bastão maciço de ritmo ou bastão de dança são definidos como “vara maciça de madeira leve, com ornato exultório percutida verticalmente contra o solo, pode ter chocalhos em fieiras amarradas acrescentando-lhe efeitos sonoros” (1988, p.197). Assim, apresentamos as Coleções que possuem instrumentos musicais e de sinalização na sua composição, referindo grupo indígena, nome e número de tombamento do objeto dentro da Reserva Técnica da UFPA. Coleção Etnográfica Protásio Frikel (19658) Grupo Indígena: Aramagoto (Tiriyó) N.º

OBJETO9

0043

Bastão maciço de ritmo

0044

Bastão maciço de ritmo

0049

Bastão maciço de ritmo

0050

Bastão maciço de ritmo

0096

Flauta reta sem aeroduto

0097

Flauta transversa sem orifício

0098

Flauta transversa sem orifício

0099

Chocalho globular



0100

Flauta reta sem aeroduto

272

0101

Flauta reta sem aeroduto

0102

Flauta de pan

0103

Flauta reta com aeroduto interno

0149

Flauta reta de osso

8

9

Todas as informações aqui inventariadas foram retiradas dos Catálogos organizados por Arthur Napoleão Figueiredo e Rita Domingues-Lopes. Conferir: FIGUEIREDO (1981) e DOMINGUES-LOPES et all. (2003). Os nomes dos objetos estão de acordo com RIBEIRO (1988).

N.º

OBJETO

233

Chocalho globular

293

Miniatura/brinquedo chocalho globular

294

Miniatura/brinquedo chocalho globular

Coleção Eduardo Galvão e Protásio Frikel (1966) Grupo Indígena: Juruna N.º

OBJETO

706

Flauta reta com aeroduto

Coleção Etnográfica Eduardo Galvão e Protásio Frikel (1966) Grupo Indígena: Trumai N.º

OBJETO

741

Zunidor

293

Miniatura/brinquedo chocalho globular

Coleção Etnográfica Eduardo Galvão e Protásio Frikel (1967) Grupo Indígena: Kuikuro N.º

OBJETO

741

Zunidor

Coleção Etnográfica Eduardo Galvão e Protásio Frikel (1966) Grupo Indígena: Kamayurá N.º

OBJETO

741

Zunidor

833

Chocalho globular

838

Flauta reta com aeroduto

841

Flauta reta com aeroduto

842

Flauta de pãn

843

Flauta de pãn

844

Zunidor

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Coleção Etnográfica Protásio Frikel (1965) Grupo Indígena: Xikrín (Kayapó)



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Coleção Arthur Napoleão Figueiredo e Anaíza Vergolino e Silva (1969) Grupo Indígena: Anambé N.º

OBJETO

1113

Apito

Coleção Etnográfica Arthur Napoleão Figueiredo (1972) Grupo Indígena: Xaruma N.º

OBJETO

1222

Chocalho ovóide

1223

Chocalho globular

1230

Chocalho em recipiente fechado

Observa-se, assim, que parte da riqueza da música indígena relaciona-se com a diversidade dos instrumentos, que, por vezes, marcam o ritmo da dança, dos movimentos e demonstram que tais objetos possuem um contexto dentro de cada sociedade. O índio os improvisa, os talha e nessas atividades vão-se repetindo fatos e estabelecendo coincidências que vêm favorecer o estudo comparativo. As surpresas surgem a cada passo devido ao material empregado à conformação dada às peças e a maneira de utilizá-las. Neste ponto pode-se afirmar que os instrumentos repetem as mesmas impressões provocadas pela música vocal: sempre modificados de grupo para grupo (CAMÊU, 1977, p. 191). Alguns instrumentos possuem finalidade prática destinando-se a qualquer tipo de comunicação, e/ou função musical. Eles possuem condições para a obtenção de linhas melódicas que, em conjunto, estabelecem relações de sons de efeito musical. Tomamos como exemplo prático dessas finalidades, os chocalhos globulares (maracás) e as flautas existentes nas Coleções. Neste sentido, os artefatos recolhidos em museus e reservas representam, para quem os analisa, a possibilidade de conhecer a cultura dos seus produtores e assim como sinalizam uma variedade de estudos de acordo com a categoria(s) selecionada(s) pelo pesquisador, como possibilidade de entender os sentidos atribuídos a essas peças que apresentam um conteúdo simbólico de grande importância na vida dos grupos indígenas, sendo utilizados em contextos e funções específicas em sua ampla maioria religiosa como constata Camêu (1977) analisando crônicas e relatos de viajantes e obras do século XVI.

As flautas da mesma forma que os chocalhos globulares estão carregadas de significados e implicações de tabus conforme a cosmologia dos grupos indígenas em algumas áreas (alto Xingu, alto rio Negro, por exemplo). Mas para além da função religiosa esses instrumentos viabilizam um campo de análise em torno da etnomusicologia Tendo por objeto de estudo o som, fenômeno singular de um determinado instrumento, de um estilo vocal e, ainda, a rede de relações possíveis e necessárias entre diferentes sons, relações estas que são responsáveis por fenômenos como afinação e escala – duas abstrações culturais – que merecem atenção especial da musicologia e da antropologia musical. Esta última, desenvolveu-se inicialmente, como subárea da musicologia, passando por diversas designações, como musicologia comparativa, pesquisa musical etnológica, folclore e etnologia musical, “antropologia musical” ou “música dos povos estranhos”. Por volta de 1950, o musicólogo holandês Jaap Kunst introduziu o termo ethno-musicology e a partir de 1956 esta designação da disciplina consagrou-se internacionalmente com a fundação da Society for Ethnomusicology nos Estados Unidos (PINTO, 2001). Com o seu livro The Anthropology of Music de 1964, considerado decisivo para a abordagem antropológica na etnomusicologia, o antropólogo americano Alan P. Merriam formulou uma “teoria da etnomusicologia”, na qual reforçou a necessidade da integração dos métodos de pesquisa musicológicos e antropológicos. Música é definida por Merriam como um “meio de interação social, produzida por especialistas (produtores) para outras pessoas (receptores); o fazer musical é um comportamento apreendido, através do qual sons são organizados, possibilitando uma forma simbólica de comunicação na inter-relação entre indivíduo e grupo” (apud PINTO, 2001, p.224). Assim, como transpor o aspecto material contido nos instrumentos musicais para se chegar ao aspecto imaterial da música? Isto se torna possível mediante a contextualização dos objetos estudados, pois, Ribeiro, fazendo referencia a Seeger em relação ao estudo da música indígena, diz que este “recomenda que o instrumento seja focalizado no conjunto da cultura material, a qual, por sua vez, deve ser integrada aos outros domínios da sociedade. A inserção do instrumento musical nesse contexto implica responder a indagações tais

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É fora de dúvida que de todos os instrumentos sonoros ou musicais o chocalho globular foi e é o que está mais ligado às cerimônias religiosas e às supertições. Mas é o que está mais ligado e não o único a ser incluído nas manifestações e mesmo nas crenças de cada um. Mas ficou, talvez em definitivo, o hábito de considerar o instrumento como objeto sagrado. Egon Schaden o aponta como peça mágica por excelência. (CAMÊU, 1977, p. 276)



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como: quem faz, como faz, quem utiliza, quando, onde, em que circunstâncias? A isto qualifica ‘etnografias’ de desempenho...” (1985, p.16). Dessa forma, pode-se entender a música enquanto produto construído pela atividade humana integrada a estrutura social das sociedades que as produzem.

O CHOCALHO GLOBULAR XIKRÍN E A FLAUTA JURUNA Como estamos trabalhando com uma categoria artesanal dentre as nove sistematizadas por Ribeiro (1988), o tratamento dado às coleções etnográficas foi inventariar, classificar, descrever, desenhar os instrumentos musicais em quatro coleções, que segundo Beltrão são “tarefas fundamentais no que diz respeito à documentação do acervo sob a guarda de uma Instituição...” (2003, p.7). Neste caso, no Laboratório de Antropologia Arthur Napoleão Figueiredo/UFPA10, os trabalhos nesta linha estão sendo elaborados, isto é, a contextualização dos objetos encerrados na Reserva Técnica. Exemplos serão dados para demonstrar a análise feita em dois artefatos classificados como instrumentos musicais: o chocalho globular Xikrín e a flauta reta com aeroduto Juruna, contextualizados por Domingues-Lopes (2002) e Lacerda-Lima (2003) respectivamente. O chocalho globular Xikrín foi observado por Domingues-Lopes (2002) na aldeia Cateté como objeto de decoração na casa das auxiliares de enfermagem, pendurado de cabeça para baixo na porta que dá acesso à cozinha, e não em seu uso habitual, como instrumento de musical, sofrendo, assim, mudança de contexto. O maracá é semelhante ao encontrado na Reserva Técnica, sob tombamento 233. O chocalho globular é utilizado em rituais de nominação e de iniciação masculina e feminina, tanto como instrumento musical, quanto objeto mítico. Segundo Vidal, o maracá,



...é um sinal distintivo dos ngô-kon-bori [pais do maracá], e está simbolicamente ligado ao centro da praça... Simboliza ainda uma cabeça. Por ocasião de um ritual merêrêmê, os ngô-kon-bori recobrem o alto de seus maracás com penugem de urubu-rei e, no final da cerimônia, passam urucu sobre a penugem, exatamente como se faz com as cabeças dos que participaram das danças. O maracá, por outro lado, é usado para a demarcação de uma nova aldeia ou um novo acampamento na floresta. Colocando os maracás nos galhos de uma árvore, os ngôkonbori apoderam-se de

276

10

Com o projeto Coleções Etnográficas: testemunhos da História e diversidade na Amazônia, no Grupo de Pesquisa Cidade, Aldeia e Patrimônio coordenado pela Prof.ª Dr.ª Jane Felipe Beltrão, alguns trabalhos neste sentido já foram elaborados consultar: Domingues-Lopes (2002) Lacerda-Lima (2003)

Sua produção e uso são de ordem masculina. As matérias-primas utilizadas são: cuia, paxiúba, algodão, sementes e plumas, recursos retirados da floresta que circunda a aldeia. Hoje, o fruto arredondado da cuieira, a cuia, pode ser obtido no espaço da aldeia, pois os Xikrín cultivam árvores próximo a suas casas. Este instrumento musical é utilizado em várias festas, uma delas no Mêrêrêméi que significa “festa bonita”, foi presenciado, em 2001, por Domingues-Lopes um memu-merêrêméi, que significa festa dos homens, entre os quais foram escolhidos e apresentados à comunidade os novos pais do maracá (ngô-kon-bori), assim como, os demais jovens iniciantes, os menoronure 11. Nesta festa os jovens iniciados são paramentados na Casa dos Homens com adornos plumários e ecléticos, saem da Casa em direção ao pátio da aldeia, acompanhados pela categoria de idade mekrare12 os quais cantam, aconselham e relatam os desafios de ser Xikrín. As narrativas, a festa e o movimento transformam o espaço ritual em palco onde a tradição é repassada através da socialização dos valores vividos dentro da aldeia. Todos na aldeia, acompanham os movimentos realizados durante a Festa. Na seqüência, o grupo se levanta e canta acompanhado pelo som dos maracás, formando um círculo com a participação dos observadores dando várias voltas no pátio da aldeia. Os movimentos praticados pelos mais experientes, que cantam acompanhados pelo som dos maracás, são circulares e, para tal formação, são desenhados no chão três círculos para guiar os homens que dançam pela manhã, acompanhados por mulheres. Ao término de cada volta, uma das mulheres “reaviva” o círculo puxando a terra com enxada. A trilha provavelmente é feita para orientar a apresentação. Após a dança, os homens retornam à Casa dos Homens, há pausa. À tarde são reiniciados cantos e danças. Ao final da tarde, todos saem da Casa dos Homens, formando fila única, integrando todos os participantes, e dão várias voltas no pátio da aldeia. Os 11

12

A rigor são rapazes que vão dormir na Casa dos Homens, “... a partir dos 10 anos de idade e até os 13 são chamados de megomanõro. Dos 13 aos 15 já receberam o estojo peniano são os me-mudjênu; dos 15 aos 29 anos são os iniciandos e iniciados, e os me-nõrõnu-tum são iniciados de 20 a 25 anos, sem filho, ainda morando na casa dos homens.” (VIDAL, 1977, p. 57) Mekrare, categoria de idade que corresponde a homens adultos casados com filhos de ambos os sexos. Sobre o assunto, consultar: Vidal, 1977 e 1976.

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um espaço que deve ser reorganizado segundo o modelo tradicional. O maracá é o que há de mais sagrado e, portanto, de mais vulnerável para os Xikrin. Sendo assim, somente os jovens iniciados os ngôkonbori-nu [novos pais do maracá], que não têm filhos, podem ser pais do maracá. (1977, p.135)



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iniciados se reuniram a leste da Casa dos Homens, justamente com os demais membros da aldeia, neste momento foram recolhidos os maracás pelo ngô-kon-bori-tum (velhos pais do maracá) que nomeou e investiu com suas funções os ngô-kon-bori-nu (novos pais do maracá). Segundo Vidal, a transmissão de privilégios não é uma função herdada através de um i-ngêt, mas está relacionado a algum menoronure que ...deverá corresponder aos valores reconhecidos como ideais para um homem, desempenhar suas atividades com responsabilidade e entusiasmo, ser solícito e possuidor de qualidades físicas e psicológicas que o predisponham a assumir esta função. (1977, p. 133) Os velhos pais do maracá se movimentam, indo e vindo, diante dos menoronure dispostos lado a lado, após ouvir mitos e lançar desafios. Os ngô-kon-bori-tum procuram localizar os ngo-kon-bori-nu, que seguem até eles e entregam os maracás, símbolo do centro do mundo para os Xikrín. Assim, a festa atravessa a noite, todos dançam no pátio da aldeia, o Merêrêméi encerra na manhã seguinte, com o retorno de alguns adornos à casa de seus donos, como o maracá e os artefatos plumários considerados pelos Xikrín como nekrei (bem preciosos). No caso da flauta reta com aeroduto Juruna, Lacerda-Lima (2003) que fez um trabalho minucioso sobre a Coleção Etnográfica Juruna/Xingu referente a este grupo indígena demonstrou que “entre os Juruna/Yudjá o uso de instrumentos musicais, principalmente as flautas é muito evidente” (2003, p. 26) como pode constatar em fontes bibliográficas sobre os Juruna. Na Coleção há um instrumento musical de sopro sob número de tombamento 706, flauta reta com aeroduto conhecida como arapadigá parin. Esta flauta, segundo Oliveira (1970), foi manufaturada com a intenção de imitar o canto de um passarinho. Há um mito que conta a história desse passarinho (conhecido como Witxitxi), cuja relevância é incontestável visto que foi esse passarinho que ensinou os Juruna/Yudjá a prepararem os alimentos. Lacerda-Lima (2003, p. 27) apresenta um mito que conta a história, que reproduzimos aqui a fim de marcar a importância da cosmologia nos estudos de contextualização dos objeto, “[a]ntigamente, Juruna não tinha plantas. Só o milho que era grande como buriti. As espigas davam como cacho de banana. Mas, ficava muito alto e difícil de apanhar. Kumahari sabia que o sucuri tinha planta de comer. Kumahari era pajé. Sonhou muito para ver como arrancava as plantas do sucuri. Mandou Juruna esperar que ele estivesse dormindo. Mandou derrubar os paus todos da mata em cima do sucuri. Juruna abriu, como se fosse roça. Tocaram fogo e o sucuri, que ficou preso aos paus, queimou e

O roçado estava cheio de plantas de comer: milho, mandioca, melancia, abóbora, mamão, pimenta, cará, batata e, ainda, cabaça e cuia. Juruna trouxe as frutas para a aldeia, mas, não sabia preparar a comida. Quis assar a melancia no fogo, ela espocou. Comia pimenta crua, parecia fogo. Abria a cabaça, para comer a polpa, ia ficando magro. Mandioca fazia ficar doente. Foi aí que Witxitxi, um passarinho, falô pra Juruna que ia ensinar a preparar a comida. Aí foi falando, pimenta só com peixe, cabaça tira a polpa, deixa secar que serve para carregar água, melancia e mamão come cru. Mandioca é pra fazer farinha. É bom também pra caxiri. Com abóbora, cozinha e faz mingau. Banana corta o cacho, pendura e deixa amadurecer, come cru. E assim, planta por planta, ele ensinou Juruna. Witxitxi só come mamão. Juruna não mata Witxitxi. (apud GALVÃO, 1996, p.362) Lacerda-Lima (2003) indica que a Flauta reta com aerodutoarapadiga-pari é tocada de acordo com a vontade de seu dono, ou seja, durante o dia ou ao anoitecer. Não há referência ao uso ritual desse artefato, há indicação de que a fabricação e o uso são essencialmente masculinos. É feita com cilindro de bambu (Bambusa vulgaris Scrad.), com 46 cm de comprimento e 11 cm de diâmetro, tendo a extremidade da embocadura fechada e apresentando quatro orifícios para a variação dos sons.

À GUISA DE CONCLUSÃO 4.1 Partindo de quatro Coleções Etnográficas referentes a oito grupos indígenas preservadas na Universidade Federal do Pará, especificamente em relação à categoria Instrumentos Musicais e de Sinalização, totalizando 31 artefatos. Observamos que a cultura material reflete uma realidade simbólica e social de vários grupos, transmitida pelos mitos e utilizada dentro de um conjunto ritual, que traduz a visão de mundo e a organização social, demonstrando a dinâmica própria do grupo, onde são atribuídos papéis rituais e ações de acordo com o grupo indígena de que a pessoa faz parte. 4.2 A música nas sociedades indígenas representa um dos aspectos relevantes de sua organização social e socialização. A variedade de instrumentos musicais é um demonstrativo da forma como os grupos humanos se apropriam do

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morreu. Kumahari mandou esperar. Começou a cair muita chuva. Passado muito tempo de chuva, Kumahari mandou Juruna ao lugar que tinha queimado o sucuri.



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meio-ambiente e expressam sua criatividade de comunicação. Como diz Seeger, “os instrumentos musicais ... são tidos pelos nativos como objetos que incorporam um poder identificado com diversas espécies de espíritos, seres ou grupos de pessoas” (1987 , p. 173). 4.3 Um estudo mais aprofundado acerca desses instrumentos fornecerá elementos que possibilitem a sua compreensão em diversos contextos da vida dos grupos produtores, bem como permitirá avançar o trabalho para o campo da etnomusicologia, uma vez que, a partir da estrutura material, há possibilidade de se chegar à estrutura imaterial, e este está sendo o propósito do trabalho em questão que está sendo iniciado.

REFERÊNCIAS BELTRÃO, Jane Felipe. Coleções etnográficas: chave de muitas histórias. In: DataGamaZero – Revista de Ciência da Informação. v. 4, n. 3, jun., 2003. Disponível em: . CAMEU, Helza. Introdução ao estudo da música indígena brasileira. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1977. DOMINGUES-LOPES, Rita de Cássia, et all. Coleções etnográficas: Etnologia Indígena, População Urbana/Cultos Afro-brasileiros e População Interiorana. Belém: UFPA, 2003. Mimeografado. DOMINGUES-LOPES, Rita de Cássia, et all. Desvendando significados: contextualizando a Coleção Etnográfica Xikrín do Cateté. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2002. Mimeografado. FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. As coleções etnográficas da Universidade Federal do Pará: Catálogo. Belém: DEAN/UFPA, 1981. Mimeografado. LACERDA-LIMA, Maria do Socorro Lacerda. Os Yudjá/Juruna e a conquista portuguesa: um estudo etnohistórico a partir de testemunhos. Relatório Final de Iniciação Científica. Belém: UFPA, 2003. Mimeografado. LOWIE, Robert. Historia de la Etnologia. México: Fondo de Cultura Econômica, 1946. OLIVEIRA, Adélia Engrácia de. Os índios Juruna do alto Xingu. Revista Dédalo, São Paulo, v. 6, n. 11-12 , p.1-129, 1970.

RIBEIRO, Berta G. Dicionário do Artesanato Indígena. São Paulo: EDUSP, 1988. RIBEIRO, Berta G. Os estudos de cultura material: propósitos e métodos. Revista do Museu Paulista. V. 30, p. 3-41, 1985. SEEGER, Anthony. Novos horizontes para a classificação dos instrumentos musicais. In: RIBEIRO, Darcy et. all. Suma Etnológica Brasileira. Edição atualizada do Handbook of South American Indians. Vol. 3-Arte índia, Petrópolis: Vozes: FINEP, 1987: p. 173-179. VIDAL, Lux. Morte e vida de uma sociedade indígena brasileira: os Kayapó-Xikrin do rio Cateté. São Paulo: HUCITEC/EDUSP, 1977. VIDAL, Lux. As categorias de idade como sistema de classificação e controle demográfico de grupos entre os Xikrin do Cateté e de como são manipuladas em diferentes contextos. Revista do Museu Paulista., São Paulo, Nova Série, n. 23, p. 133-142, 1976.

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PINTO, Tiago de Oliveira. Som e música: questões de uma antropologia In: Revista de Antropologia. v. 44, n.1, p. 222-286, 2001.



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Rita de Cássia Domingues-Lopes1 As coleções etnográficas encontradas nas reservas técnicas dos museus e das universidades são representantes da cultura material produzida pelos seres humanos, formando conjuntos de expressões materiais e imateriais desenvolvidas pelo grupo produtor, sendo suporte de informações da cultura que as produziu. Os artefatos são produtos de uma história que refletem valores, costumes e tradições reconhecidos pelo grupo e imprimindo marcas étnicas a cada objeto produzido. A tradição está ligada à socialização dos elementos que uma geração repassa a outra, através de meios e/ou processos de transmissão de saberes dentro do próprio grupo e as transformações, permitem também o conhecimento do modo de vida tanto das sociedades de onde os objetos foram retirados, quanto da nossa, ao compartilhar as particularidades de cada uma. O artigo ora apresentado contextualiza a Coleção Etnográfica Xikrín do Cateté constituída pelo antropólogo Protásio Frikel (1912-1974), em 1965, buscando desvendar significados e sentidos, além de reconhecer potencialidades de uso dos objetos recolhidos há 38 anos que estão sob a guarda da Universidade Federal do Pará (UFPA), na Reserva Técnica do Laboratório de Antropologia Arthur Napoleão Figueiredo (LAANF), do Departamento de Antropologia, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas.2 Contextualizar os artefatos, no caso, é considerar o contexto cotidiano e ritual dos Xikrín, posto que, tais artefatos representam marcas de identidade e registros de momento histórico-cultural do grupo.

1

2

Mestre em Antropologia, pesquisadora associada no Grupo de Pesquisa Cidade, Aldeia e Patrimônio coordenado pela Prof.ª Dr.ª Jane Felipe Beltrão do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Pará. Este artigo faz parte da dissertação de Mestrado em Antropologia defendida e aprovada em fevereiro/2002. Sobre o assunto consultar: DOMINGUES-LOPES, Rita de Cássia. Desvendando significados: contextualizando a Coleção Etnográfica Xikrín do Cateté. Dissertação ( Mestrado em Antropologia) - Belém: UFPA, 2002.

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Artefatos do Cotidiano das Aldeias Xikrín: contextualizando uma coleção etnográfica



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1 ADENTRANDO À RESERVA TÉCNICA Os artefatos que compõe as coleções etnográficas do Laboratório de Antropologia Arthur Napoleão Figueiredo, da Universidade Federal do Pará, foram organizadas inicialmente por Arthur Napoleão Figueiredo (1923-1989), em 1981, sendo os objetos oriundos de diversos grupos indígenas do Pará,3 recolhidos entre os anos 1965 a 1972, por quatro antropólogos Protásio Frikel, Eduardo Galvão, Arthur Napoleão Figueiredo e Anaíza Vergolino-Henry, totalizando 731 artefatos. O ponto de partida foi a Reserva Técnica onde realizei, num primeiro momento, o levantamento da Coleção Etnográfica Xikrín do Catete, no Catálogo (FIGUEIREDO, 1981), para conhecer os 144 artefatos que a constituem. Em seguida, classifiquei os objetos da Coleção em categorias artesanais baseadas no Dicionário de Artesanato Indígena (RIBEIRO, 1988), o qual normatiza o vocabulário técnico dos objetos, permitindo a comparação de informações entre diferentes coleções que, segundo a teoria museológica, a sistematização dos acervos ocorre através da ...organização sistemática dos elementos possíveis de serem encontrados nas coleções dos museus, baseada em critérios e normas aceitas pela coletividade científica ou museológica, e refletindo os códigos culturais vigentes em nossa sociedade. (HORTA, 1994, p. 23) A classificação dos artefatos que compõe a Coleção compreende oito categorias artesanais, são elas: adornos plumários; adornos de materiais ecléticos, indumentária e toucador; armas; cordões e tecidos; instrumentos musicais e de sinalização; objetos rituais, mágicos e lúdicos; trançados; por fim, utensílios e implementos de madeira e outros materiais. Na seqüência, os artefatos foram desenhados4 com o intuito de se criar um registro gráfico dos objetos que a constituem, tornando-se documentos que mostram detalhes da peça, fato que ajudou na descrição, evitou a excessiva manipulação dos objetos e, conseqüentemente, seu desgaste. Os desenhos utilizados não obedecem escala, preservando, no entanto, as proporções dos objetos, com destaque para detalhes de técnicas e matérias-primas, o que os transforma em documentos visuais. 3

4

O acervo é formado por 12 coleções de grupos indígenas localizados nos Estados do Pará e Mato Grosso, são eles: Anambé, Aramagoto (Tiriyó), Juruna, Kayabi, Kamayurá, Kuikuro, Suyá, Trumai, Txukahamãe, Xaruma, Xikrin (Kayapó), Yawalapiti. Compõe ainda o acervo, coleções interioranas e coleções afro-brasileiras, totalizando 1512 peças. Os desenhos foram feitos por Luiza de Nazaré Mastop-Lima (mestre em Antropologia/UFPA), Levi Alcântara de Lima (graduado em Ciências Sociais/UFPA), Maria do Socorro Lacerda Lima, Thiago Pinheiro e Ellenflávia Palheta Mesquita (graduandos em História/UFPA).

2 A DESCOBERTA DO CINTO COURO DE ONÇA Trabalhando na Reserva Técnica com a Coleção Etnográfica Xikrín do Cateté, e fazendo uso do Dicionário do Artesanato Indígena (RIBEIRO, 1988), para proceder a classificação dos artefatos verifiquei que a antropóloga Berta Ribeiro faz referência ao artefato “cinto couro de onça,” da seguinte maneira: Def. Adorno masculino de cintura constituído por uma tira de 15 a 20 cm de largura de couro de onça. É provido de atilhos e adornado na beira com continhas de sementes e tufos de plumas. Encontrado entre os Xikrín (FRIKEL, 1968: 69) e outras tribos... Nota: sem protótipo nas coleções consultadas. (1988, p. 160)

Levi Alcântara de Lima

Assim, quando Ribeiro (1988) se refere em nota que não há protótipo nas coleções consultadas6 e nem em catálogos de exposições, como do Museu Pigoirne e do Museu de Berlim, confirma-se a tese de Horta (1994) sobre coleções enquanto “signos em potencial,” pois, na medida em que o artefato foi recolhido e guardado na Reserva Técnica, sob o número de tombamento 268 (Desenho 1), não houve comunicação museal. Portanto, contextualizo para desvendar significados e comunicar a informação tanto pela singularidade do “cinto couro de onça” quanto por todas as demais peças da Coleção Etnográfica Xikrín do Cateté.

Desenho 1 - Cinto couro de onça Mepredjó rop-tük (N.º 268)

5 6

Na Área Indígena Xikrín do Cateté há duas aldeias, Cateté e Djudjê-kô, localizadas no sudeste do Pará. As coleções consultadas pertencem: Museu do Índio, Museu Nacional, Museu de Genebra, Museu Regional Dom Bosco, Museu de Munique, Museu Haffenrffer de Antropologia e coleções particulares, mas não explicita quais.

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Para contextualização dos artefatos da Coleção o trabalho de campo nas 5 aldeias Xikrín foi muito importante, pois observei a utilização dos objetos na aldeia, ouvi, e escrevi explicações que foram dadas pelos produtores sobre a confecção dos artefatos, recorrendo também às técnicas de observação direta e entrevista para compreender significados e sentidos dos artefatos.



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Durante o trabalho de campo a utilização de desenhos e fotografias gerou 7 situações profícuas para análise. Na aldeia Djudjê-kô, estávamos - Ivone Marçal e eu - na casa de Piudjô, e havíamos mostrado a ele o desenho do cinto couro de onça. Com a folha do desenho em mãos, Piudjô olhou-o e, não o identificando, perguntou-nos que objeto era aquele. Imediatamente lhe dissemos que se tratava em língua Jê do mepredjó-rop-tük ou “cinto couro de onça.” Ele ficou pensativo durante um certo tempo como se estivesse lembrando de algo e disse amrebei ipei, o qual podemos entender, pois, há muito tempo atrás se fazia esse tipo de cinto e, acrescentou dizendo que, atualmente, não o confeccionam mais. Lembrou de ter visto um cinto semelhante há muito tempo atrás com seu pai e relacionou os nomes das matérias-primas empregadas, a partir do desenho feito em grafite (preto) sobre folha de papel (branca), Piudjô identificou as penas como sendo de urubu-rei, os atilhos, de miçangas, as sementes, mroreikò (sementes de tucum cortadas ao meio) e os fios, de algodão. Quando mostrei-lhe a fotografia colorida do mesmo objeto, ele exclamou novamente amrebei e sorriu, dizendo que as penas eram de papagaio e que os atilhos eram de sementes e miçangas, identificando as matérias-primas a partir das cores. Da “leitura” do desenho em grafite à da fotografia colorida houve mudanças no que concerne à matéria-prima, todavia, os elementos comuns a ambos também foram identificados e a expressão manifestada por Piudjô ao ver um objeto que não é mais fabricado e utilizado hoje, mostrou a importância do trabalho entre a reserva técnica e as aldeias. O cinto couro de onça está em bom estado de conservação, mede 14 cm de largura por 74 cm de comprimento. O cinto é produzido com rop-tük/couro de onça preta (Felis onsa), kadyót/fio de algodão, mrô-iniká/semente (metade de coco de tucum), ã-o/contas pretas, angó/miçangas e krôkrô-yamü/penas de papagaio (Amazona sp), o cinto couro de onça-mepredjó rop-tük constitui-se de tira de couro de onça preta que apresenta, ao centro e às extremidades, fiadas de contas pretas e miçangas, arrematadas com sementes e penas de papagaio. Provido de atilhos de algodão entretrançados cuja amarração é feita às costas do usuário, o mepredjó rop-tük era produzido e utilizado por homem em momentos rituais. Vimos assim, que comunicar torna-se imprescindível, pois, visto como comunicadores, museus e universidades devem repassar informações qualificadas e contextualizadas de seus acervos etnográficos, e tais atividades somente são realizadas mediante pesquisa científica e divulgação de seus resultados.

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Ivone Marçal, professora da aldeia Djudjê-kô, que me ajudou durante as conversas estabelecidas em língua Jê com os interlocutores Xikrín ao decorrer do trabalho de campo.

A contextualização dos artefatos a partir da observação do dia-a-dia nas aldeias Xikrín, as situações de uso e fabrico por parte de homens e mulheres. Em uma tarde de março de 2001, na aldeia Djudjê-kô, quando entrevistava 8 Piudjô na cozinha de sua casa, Djaworo, sua esposa, acompanhava-o e, por vezes, participava da conversa, vendo a foto ou o desenho que Piudjô segurava ou ainda, quando ele lhe pedia para ir buscar os objetos que possuíam dentro de casa ou guardados na cumeeira da cozinha, semelhantes aos da fotografia. Após a entrevista, permaneci com eles e pedi permissão para fazer fotografias dos cestos cargueiros que estavam na cozinha. Djaworo acompanhava 9 meus movimentos deitada no catre enquanto fazia as fotografias dos cestos, ela me chamou e apontou para a cumeeira da cozinha, indicando-me um outro objeto, o pau de tirar batatas, chamado de yot kakúdjo. Então, levantou-se da cama e o pegou, assim como o cesto kai e o facão, o fez para mostrar-me como se arrancam tubérculos como: batata-doce, macaxeira e mandioca na roça. Colocou o yot kakúdjo dentro do cesto que possue uma alça que cinge a testa do usuário, repousando o peso nas costas, ficando com o facão na mão, encenando como é utilizado para abrir caminho na mata e, em seguida, com o yot kakúdjo nas mãos, inclinou o corpo e o bateu sobre o chão e, com a outra mão, imaginando pegar uma batata, a colocou no cesto e disse “quando está cheio [apontou para o cesto kai] o trabalho acabou.” Depois, Djaworo foi buscar o machado para demonstrar o corte da lenha, quem e como se utiliza o cesto, o pau de tirar batata, o facão e o machado. Observar o artefato na Reserva e na aldeia, possibilitou não somente ver o objeto em si, mas aprender com os produtores sua denominação e uso. Observamos artefatos Xikrín não só nas aldeias, mas também em uso decorativo na parede da sede da Associação Bep-Nói em Defesa do Povo Xikrín do Cateté, no município de Marabá. Durante minha permanência na Associação, observei que havia um diadema vertical decorando o ambiente, semelhante ao que encontramos na Reserva Técnica do LAANF/UFPA, sob tombamento 254 feito 8

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As cozinhas são construções feitas de troncos de madeira e palha, algumas apresentam paredes feitas de madeira, outras são de enchimento, e há ainda àquelas cozinhas que não apresentam paredes. Tais construções são feitas atrás das casas de alvenaria, seguindo o formato circular da aldeia, segundo Silva é lá que “...são realizadas a maior parte das atividades cotidianas. É nessas estruturas que os Xikrín costumam passar várias horas do dia, processando e consumindo alimentos, conversando, divertindo-se entre si e com seus filhos, praticando a pintura corporal e produzindo a maioria dos seus itens materiais...” (2000, p.121) O catre é uma espécie de cama, mas também serve como aparador de objetos, assemelhando-se a uma mesa baixa. Sua estrutura é formada por dois pedaços de madeira fincados no chão, de maneira eqüidistante, onde são colocadas tábuas quando necessário, ou seja, na hora de deitar ou guardar os objetos, as tábuas são forradas com folhas de palmeira ou esteiras rõti-ô.

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3 OS ARTEFATOS NO COTIDIANO DAS ALDEIAS XIKRÍN



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Socorro Lacerda

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de pequenos tubos contornados com fios de algodão brancos e pretos, tendo na parte superior do diadema penas pretas e amarelas aparadas e, na base, um fio-guia para amarrá-lo na parte posterior da cabeça (Desenho 2).

Desenho 2. Diadema vertical - Kruapú (N.º 254)

Juntando as peças do ‘quebra-cabeça’ para a contextualização, recorri a Frikel (1968), onde observei um diadema semelhante ao descrito acima, denominado kruapú, testeira cerimonial. Recorrendo ao Dicionário do Artesanato Indígena, este artefato é nominado como diadema vertical, tendo por definição “[o]rnamento plumário em forma de diadema usado na fronte em posição vertical.” (1988, p. 120) Na classificação museológica o diadema é relacionado na categoria artesanal adornos plumários, mais especificamente, adornos plumários de cabeça. Durante o trabalho de campo na aldeia Cateté, observei um diadema semelhante pendurado na varanda da casa de Kokopá e, quando lhe perguntei o nome do objeto dependurado, tirou-o do prego onde estava e me disse kruapú, em seguida, colocou-o na testa para mostrar-me onde usava e balançando levemente os braços curvados para frente e para trás como se estivesse dançando, indicou que se usava em festas e, quando perguntei quem usava, respondeu-me que os homens no Mêrêrêméi que podemos traduzir por “festa bonita” +ritual Xikrín que apesar “...de não estar relacionado a nenhum rito de passagem específico, pode, por isso mesmo, receber, como apêndice, elementos de [outros] rituais...” (VIDAL, 1977, p. 182). Em outro momento, na aldeia Djudjê-kô, trabalhando com Akruanturo e Piudjô, mostrei-lhes uma fotografia do diadema vertical/kruapú, em momentos diferentes. Mostrei primeiro à Akruanturo, no dia 15 de março de 2001, em sua casa, e me disse que somente homem usava na festa do Mêrêrêméi e quando sua

Dentre o repertório de rituais de iniciação e nominação que os Xikrín praticam, o mentoro Bep como disse Piudjô, é considerado um dos rituais de nominação, sendo esta uma das fases do ritual. Vidal distingue três rituais para a nominação masculina, são eles: Bep, Tokok e Katob e seis para a nominação feminina: Bekwe, Nhiok, Kôkô, Payn, Ngrei e Ire. Em relação aos rituais de iniciação, a autora distingue seis fases: Bep-me-nõrõnu, Mekutop-ã-Kangore, Merõrõnu-kukrut, Menõrõnu-Ngrôa, Menõrõnu-Ngôre e Mekuka-tuk (1977, p. 175). Giannini (1991) identificou apenas cinco fases, são elas: Mekutop, Kukrut menõrõnu, Ngroa menõrõnu, Ngôreraixi, e encerrando o ciclo o Mekukatuk. A diferença encontrada pelas autoras pode revelar o ajuste praticado pelo grupo com o passar dos anos para continuar expressando por meio dos rituais a organização social e a cosmologia Xikrín. A preparação do kruapú em seu conjunto é masculina, mas o produtor conta com a ajuda das mulheres que tecem fios de algodão e tingem uma parte de preto, embora hoje seja possível, comprar fios de algodão industrializados. Os materiais utilizados nos diademas são: tubos de taquari, fios de algodão branco e tingido de preto, penas pretas de mutum-castanheiro, penas amarelas de japu e corda de imbaúba. Durante minha permanência nas aldeias, observei que os Xikrín criam aves como arara, periquito e papagaio para retirar as penas.13 Quando da 10

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Taboca é o mesmo que taquara, “planta da família das gramíneas... Os indígenas utilizavam as taquaras, particularmente para confecção de flechas.” E taquari, é uma espécie de taboca, nome vindo do tupi que significa ‘taquara pequena’ é classificada como sendo da família das euforbiáceas (Mabea angustifolia). Consultar: Cunha, 1989: 282. Verbetes Taboca e taquari. Segundo Vidal “o nome de maior prestígio é Bep... ainda que o Bep seja uma cerimônia de nominação, distinta da iniciação, é a primeira fase do ritual do ciclo de iniciação.” (1977, p. 111. Negrito da autora) Corresponde à categoria de idade relativa aos jovens iniciandos, ou seja, aqueles que moram/dormem na casa dos homens. Consultar: Vidal, 1977 e 1976, que trabalhou pormenorizadamente as categorias de idade e sexo, entre os Xikrín. As aves, capturadas vivas e criadas como xerimbabos na aldeia, não é uma característica somente de grupos Jê, como os Xikrín. Viveiros de Castro informa que encontrou entre os Araweté (grupo tupi), em 1982, 54 araras criadas soltas na aldeia (1992: 41).

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esposa era viva e moravam na aldeia Cateté ele confeccionava diademas. Perguntei por que não fazia mais, respondeu-me que não faz mais por falta de material, pois era sua esposa quem produzia os fios de algodão necessários para 10 enrolar os tubos de taboca (taquari). Piudjô, ao ver a fotografia do diadema, disse alto o nome em Jê, kruapú, colocou a foto sobre a testa e a segurou com uma das mãos e, com a outra, por trás da cabeça, fez o movimento como se estivesse amarrando-o com um nó, enfatizando o uso na cabeça. Piudjô, observando a foto, identificou as matérias-primas como fio de algodão, penas de mutum e de papagaio. Quando perguntei em que festa era usado o kruapú, me respondeu que no mentoro Bep,11 isto é, durante a festa de nominação Bep dos menoronure.12



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preparação de adornos plumários, pude observar em julho de 2000, duas mulheres arrancando penas e penugens de arara e, em outro momento, fevereiro de 2001, mãe e filho realizavam tal tarefa. Arrancavam, habilmente, as penas e penugens que ficavam abaixo da cabeça e das asas. Em outra casa, uma mulher Xikrín separava penugens de plumas para confeccionar braçadeiras, ela atava os cálamos das plumas ao fio de algodão tingido de vermelho, fio firmado entre a mão e o pé, utilizando o corpo como ferramenta/apoio na produção do artefato. Observei ainda, em outro momento, uma mulher preparando braçadeira de miçangas amarelas com cascas de sementes de tucum e penugens amarelas nas pontas, fatos que confirmam a necessidade de ter aves à disposição na aldeia. “Passeando”14 pela aldeia Cateté, em julho de 2000, parei para observar uma mulher que pintava seu filho deitado sobre um pedaço de plástico preto e que estava dormindo. Próximo a ela vi um pilão feito de madeira, em que uma Xikrín mais velha começou a usar para pilar castanha-do-pará. Transformada em massa, a castanha foi posta de molho, mas antes disso, extraiu da castanha socada um líquido branco, que separou e guardou. Na Reserva Técnica, há um pilão sob tombamento 186, também feito em madeira. Durante a segunda estada em campo, de fevereiro a abril de 2001, a produção do óleo de babaçu estava em alta, era o período de safra do fruto e as mulheres estavam preparando óleo para uso diário e para a festa que se aproximava, o Merêrêméi. Quando entrávamos – eu e Ivone Marçal – na aldeia Djudjê-kô, víamos fumaça sobre a cozinha das casas e, quando nos aproximávamos destas, víamos grandes panelas de ferro sobre o fogo cozinhando coco babaçu, um dos passos necessários à produção de óleo. Os Xikrín recolhem os frutos de babaçu na floresta, tarefa feminina e masculina, os transportam à aldeia em cestos do tipo konôiaka e kai,15 e os frutos são colocados no chão das cozinhas das casas. Cozidos em água em grandes panelas de ferro os frutos ficam “prontos” quando “a semente solta da casca,” o que é confirmado quando a mulher tira um ou dois frutos para experimentar, quebrando-os. Depois de cozidos, os frutos são colocados para esfriar e em seguida, as mulheres começam a quebrá-los com a parte de trás do machado para retirar as amêndoas. Na seqüência, as sementes são “pisadas” no pilão pelas mulheres, trituradas, peneiradas e postas novamente para cozinhar e daí extrair o óleo, com uma concha retiram o óleo da panela, coam-no com a ajuda de uma peneira e o armazenam em garrafas plásticas ou de vidro. 14

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Era como alguns Xikrín denominavam minhas idas à aldeia para um dia de trabalho, talvez, pelo fato de não praticar as atividades de rotina da aldeia. Para melhores explicações sobre a cestaria Xikrín, consultar: Silva, 2000. Não há exemplares destes cestos na Coleção Etnográfica Xikrín do Cateté que estou trabalhando.

O pilão em estilo vasiforme cilíndrico usado por Nhiok (Fotografia 1), é predominante na aldeia, mas vimos na aldeia Cateté, nas casas de Ikaiê e Bep-djô, um pilão vasiforme com pedestal. Quando perguntei quem havia feito tais pilões, Ikaiê e Bep-djô, disseram-me que suas mulheres. Entretanto, quando comentei que era diferente dos outros que havia visto na aldeia, disseram-me que aprenderam com os kuben, que haviam visto na casa de kuben, e que o pilão era alto (aproximadamente 75 cm de altura) para facilitar o processo de trituração dos alimentos, feito em pé, e não sentado como, anteriormente, ao usar o pilão sem pedestal, encontrado em grande número na aldeia.

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A atividade de pilar cabe às mulheres, mas em duas situações específicas, presenciei homens Xikrín realizando tal tarefa. Ao interrogá-los sobre o porquê de “pisarem” coco babaçu, um deles me respondeu que sua mulher havia feito uma cirurgia há pouco tempo e ela não podia, ainda, fazer esforço físico e, disse-nos, também, que antes da operação, fora ela quem havia feito os três pilões de sua casa. Em outra cozinha, um velho Xikrín “pisava” o coco porque estava ajudando sua esposa, posto que ela cuidava dos netos. Percebi, assim, a casualidade da participação do homem nesta tarefa feminina, em momentos excepcionais. Desta forma, o pilão, objeto pertencente à categoria artesanal utensílios e implementos de madeira e outros materiais, continua sendo utilizado pelo grupo nas atividades domésticas.

Rita de Cássia Domingues-Lopes



Fotografia 1. Nhiok, pilando coco babaçu

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Durante o trabalho de campo nas aldeias Xikrín fui levada a intensificar o aprendizado na língua Jê, falada cotidianamente pelos Xikrín. A língua portuguesa é falada somente pelos homens quando da presença de kuben, mulheres e crianças, a rigor, não falam português, mas entendem que é dito à elas em alguns momentos. Aos poucos fui exercitando palavras, expressões, frases e perguntas para entender o diálogo estabelecido entre os próprios Xikrín e da minha interação com eles; entretanto devemos considerar que eram de extrema importância para o entendimento os contextos em que aconteciam os diálogos. Os informantes/interlocutores16 são sujeitos falantes, na medida em que são pessoas importantes dentro do processo de enunciação onde imprimem “marcas” em seus enunciados, considerando sua posição socio-histórico-cultural na sociedade (BRANDÃO, 1998). Os interlocutores com quem se estabelecem os diálogos, não são passivos, eles também constroem significados a partir do que é exposto e do que não é exposto no diálogo, levando em consideração suas noções pré-construídas. Na tarde do dia 26 de fevereiro de 2001, na aldeia Cateté, pude observar Bep-djô preparando dois arcos.17 Inicialmente, separou todos os materiais necessários à fabricação: madeira vermelha e preta (pin-kamrik e pin-tuk), corda feita de imbaúba (djudjê-djê), fio de algodão (kàdyot) branco (comprado na cidade), facão, pequena faca e uma pequena bolsa industrializada (estilo pochete) com apetrechos e instrumentos de artesão. Dispôs os materiais próximos ao banco onde confeccionaria os arcos na varanda de sua casa. Como previamente ele já havia preparado a base de madeira, no sentido de ter retirado da árvore o tamanho necessário para fazer o arco, precisou apenas “ser raspada.” Em seguida, Bep-djô começou a enrolar na coxa dois pedaços de cipó para formar uma corda e, ao longo do enrolamento, foi acrescentando mais cipó para aumentar o comprimento. O enrolamento foi feito para frente, juntando os pedaços de cipó e, imediatamente, volta, entrelaçando as duas pernas num movimento de vai-e-vem. A fiação das fasquias de imbaúba foi feita a partir da torção em ‘Z,’ que significa fios em espirais seguindo da direita para a esquerda, semelhante a esta letra.18 Bep-djô esticou a corda já pronta, amarrando as extremidades entre um prego na parede de sua casa e a cerca da varanda, e esticou a corda para retirar os excessos, as pontas dos fios que costumam “escapar” do enrolamento, tais pontas eram cortadas com faca. Depois de retirar os excessos de fios, faltava alisá-los e, o fez, passando várias vezes na coluna de madeira da 16

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Considero interlocutor, sujeito que estabelece relação com outros sujeitos através do diálogo (linguagem verbal e não verbal), em um determinado espaço discursivo (no caso, a casa e a aldeia) mantendo, assim, uma interação entre falante-ouvinte/ouvinte-falante. Como sujeitos, somos reais e estamos inseridos dentro de um contexto social que abrange e interfere no modo como emitimos nossos enunciados (BRANDÃO, 1998). Um djudjê-kamrik, arco feito com madeira vermelha e outro djudjê-tuk, arco feito de madeira preta. Sobre fiação, consultar: Ribeiro, B. 1987.

Depois de preparar o fio, Bep-djô trabalhou com a base de madeira, raspando-a com uma pequena faca a fim de alisá-la e com o facão talhou as extremidades para amarrar o fio tecido por ele. Para alisar a base em madeira, Bep-djô sentou na cadeira e com os pés firmou a madeira, com a mão esquerda segurou na parte superior da madeira, enquanto na mão direita, com uma faca, iniciava o trabalho de raspagem de cima para baixo. Depois de talhar as extremidades, Bep-djô levou as bases ao fogo, que já estava pronto na cozinha, a fim de curvá-las, ele as deixava por alguns segundos sobre o fogo, retirava e pisava no centro da madeira, ou ainda a prendia entre as frestas da cozinha para dar-lhe a curvatura desejada. Na seqüência, Bep-djô amarrou a corda na base de madeira, faltando apenas um detalhe para ficar pronto, em uma das extremidades do arco foi colocado um enfeite trançado, de franjas preparadas com fio de algodão. Na Reserva Técnica há dois arcos semelhantes ao acima descrito, sob tombamento 187 e 322, classificado como arco elipsoidal. Na aldeia Djudjê-kô, em março de 2001, quando cheguei à casa de Akruanturo, ele estava terminando de preparar um arco, havia restos de madeira e cipó pelo chão, então, lhe perguntei como usava o arco e onde. Então passou a me ensinar com que tipo de armas mata determinados animais, para isso foi buscar borduna e flechas. Com as armas em mãos ele gesticulava, batia no peito e produzia sons imitando os animais. Primeiro pegou uma flecha com a ponta lanceolada, chamada büri, que na Coleção recebe o número de tombamento 198 e me disse que serve para matar “animais que andam na chão,” como porcão, veado e catitu; depois pegou outra flecha, sendo de ponta afiada feita de paxiúba chamada kruanó, que na Coleção há três exemplares que recebem os números de tombamento 201, 204, 206, utilizada para matar aves como, urubu-rei, curica e papagaio. Por fim, Akruanturo mostrou a borduna/kô, utilizada para terminar de matar o animal com um golpe firme sobre a cabeça, e com a ponta afiada, serve para furar a caça e tirar o sangue. Disse-nos ainda, que antigamente, nas guerras, a borduna era usada para matar inimigos, e reforçou que “hoje não matam mais gente, só bicho.” É possível observar ainda as armas em festas rituais empunhadas por homens como no Merêrêméi, de abril de 2001. A borduna que Akruanturo mostrou era pontiaguda, lisa na parte inferior e com sulcos no cabo19. Perguntei a ele como eram feitas as incisões no cabo e, me respondeu que, hoje é feito com faca pequena e bem afiada, antigamente, eram feitos com kukê-djuá, raspador de dente de cotia, fabricado e usado por homens. Na Coleção Etnográfica Xikrín do Cateté, há dois exemplares deste artefato, sob tombamento 296 e 297. 19

Na Coleção há duas bordunas com tais características, nomeadas como “Borduna circular lisa” sob tombamento 189 e 192.

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varanda de sua casa, num movimento semelhante ao ato de serrar e, em seguida, depois de pronto, o reservou.



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Segundo a definição do Dicionário do Artesanato Indígena, formão, é um implemento tipo plaina feito mediante engate numa taboca ou numa vareta de madeira roliça de incisivos de grandes roedores... Pelo seu formato e resistência presta-se ao uso como plaina, buril ou verruma para raspar, alisar, gravar e perfurar madeira, osso, concha e outros materiais. Acompanhado, às vezes, de amolador de pau-ferro... (1988, p. 264) Na Coleção há um amolador em madeira, semelhante ao referido na citação acima chamado mürere-í ou mrüre-djuá-ingrò-djó, sob tombamento 329 e, partindo das considerações de Frikel, considero que formão e amolador formam um conjunto. Frikel diz que o amolador “...consiste num pedaço de madeira duríssima. É mais ou menos retangular, ou também oval, e às vezes perfurado num dos cantos para poder ser pendurado... É fabricado e usado por homens” (1968 , p. 47). Este artefato não observei na aldeia, entretanto, vi um substituto, o esmeril industrializado comprado na cidade para amolar facas e tesouras, também adquiridas após o contato com a sociedade não indígena. Quando mostrei o desenho do formão à Piudjô, ele o identificou dizendo kudjuá-kri e, disse-me que, antigamente, era feito e usado por homens para confeccionar bordunas e flechas, mostrando como era utilizado. Com seu dedo imitando o formão ele passou a unha sobre a pele do braço, como se estivesse fazendo as incisões na madeira, e disse que hoje já não fazem mais os sulcos com o formão e sim com facas de kuben. Observei mulheres Xikrín preparando bandoleiras, colares, pulseiras, enfiando miçangas coloridas em fio de náilon. Materiais que estão se tornando ou já são freqüentes na aldeia, como faca, tesoura, miçangas e fios industrializados de náilon, lã e algodão, convivem com elementos “tradicionais” retirados da floresta, como cipó, sementes, madeiras entre outros. Verifico, desta maneira, algumas mudanças nas condições materiais de produção do artefato, face ao contato com a sociedade não-indígena. As mulheres produzem fios que são utilizados na confecção de adornos como bandoleiras, braçadeiras, cintos, diademas e mesmo fios para pulseiras e jarreteiras20 das crianças e jovens. Turner (1969) diz que durante algum tempo as 21 mães tecem faixas de algodão e tingem de vermelho e dão voltas pacientemente 20

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São fios de algodão amarrados abaixo do joelho, podem ser confeccionadas também com miçangas. As miçangas são muito apreciadas pelos Xikrín. Darcy Ribeiro considera que há séculos são vistas como grande riqueza e assevera, “[o] encanto da miçanga se exerce provavelmente pela contextura regular das contas... e pelas tonalidades de seu colorido maravilhoso.” (1987, p. 53) . A cor vermelha tem função simbólica, considerada benéfica para o crescimento e resistência das crianças, está, também, associada à saúde, energia e vitalidade (TURNER, 1969).

Os adornos usados nas pernas como: jarreteiras que foram postas, cuidadosamente, abaixo dos joelhos e tornozeleiras significam, segundo informações de campo e bibliográficas, ornamentos infantis para tornar a panturrilha méi (bonita) e toi (forte). Tais símbolos foram entendidos no interior do código de significados da cultura Xikrín, estes ornamentos associados ao dilatador do lóbulo da orelha e fios de algodão usados na altura dos bíceps, semelhante a braçadeiras, formam um conjunto de adornos utilizados pelos meprire (crianças de ambos os sexos). Com a mudança de categoria de idade, estes adornos são trocados por outros, como: braçadeiras trançadas, de miçangas e emplumadas. Em momentos rituais, são usados jarreteiras de miçangas e auriculares disco de madrepérolas, diademas e pinturas corporais próprios a cada fase da pessoa e do ritual. Para apreensão dos contextos de significação onde estão inscritos os objetos, o trabalho de campo nas aldeias e o uso da teoria foram imprescindíveis.

4 NA TRILHA PARA CONTEXTUALIZAR A COLEÇÃO ETNOGRÁFICA XIKRÍN DO CATETÉ Quando tratamos dos artefatos produzidos por grupos humanos referimo-nos a um contexto específico de relações sociais e culturais e com isso falamos de como o grupo se organiza para dar continuidade à produção de sua arte e a quem, quando e como é permitido confeccionar um artefato, seguindo regras e valores. Segundo Velthem, “...a capacidade de contextualizar a arte, de lhe conferir significação cultural é sempre um assunto pertinente à cultura onde está inserida.” (1992, p. 84). Nessa perspectiva, Geertz, considera que a teoria auxilia o antropólogo a penetrar no “...universo simbólico não familiar de ação simbólica...” (1978, p. 35) dos grupos sociais, diz ainda que, o antropólogo deve considerar a teoria que “leva a campo,” adaptá-la às situações reais que acontecem durante a realização do trabalho (GEERTZ, 1997). Para Geertz (1978) a cultura é pública, no que diz respeito aos códigos comuns que um grupo formula, partindo do momento em que uma ação particular (subjetiva) é compartilhada e aceita com/pelo outro, criando assim um consenso (objetivo), onde a ação simbólica é construída e envolvida por significado comum, validando sentidos e regras sociais. Ou seja, são:

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no pulso, no tornozelo e no joelho das crianças. É possível ver as mães Xikrín adornando os filhos de ambos os sexos com tal adorno.



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...sistemas entrelaçados de signos interpretáveis... não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível. (GEERTZ, 1978, p. 24). No trabalho, a primeira tentativa de ver os Xikrín foi tomar o Catálogo, elaborado por Figueiredo (1981) e, usando das informações disponíveis, abri a Reserva Técnica para tomar contato com os artefatos. A exuberância das peças e o desconhecimento da cultura Xikrín indicaram a necessidade de recorrer a Frikel (1968), pois, na condição de antropólogo-coletor, traz a público a descrição dos artefatos no contexto da aldeia na década de 60. Acontece que, quando comecei a trabalhar, as peças do Laboratório de Antropologia Arthur Napoleão Figueiredo/UFPA, estavam encerradas há pelo menos três décadas, era preciso desvendar o contexto da Coleção. Elaborei proposta de trabalho e fui a campo em busca da teia e dos tecidos Xikrín. Fiz o trajeto de pesquisa pensando que o antropólogo estuda e apreende teia de significados e os tecidos feitos pelo grupo nas aldeias, tomando aldeias como espaço de apreensão do contexto em que os artefatos da Coleção Etnográfica Xikrín do Cateté, dizem respeito a um dado momento na história do grupo, momento em que os objetos foram coletados (1962/63). Segundo nos informa Frikel, este foi um período em que os Xikrín, “...tinham-se mudado para a foz do rio [Cateté] e queimado a antiga aldeia. O sistema de moradia fôra alterado. A casa dos homens não funcionava mais, porque simplesmente não havia... e era forte a tensão existente contra os civilizados...” (1968, p. 3). Portanto, estive nas aldeias quando entrei na Reserva Técnica e ao me deslocar para o Cateté e o Djudjê-kô em busca da história atual dos Xikrín, pois não há uma única verdade, mas várias versões sobre determinado acontecimento, pois elas variam conforme o ângulo de visão do observador. Dessa forma, quando o antropólogo vai a campo, mantém uma relação próxima com o nativo e ao “eleger” seus interlocutores deverá ter em mente que, o que for repassado pelo nativo, representa apenas uma parte, uma visão do fato ocorrido na sociedade estudada, pois ...a Antropologia sempre teve um sentido muito aguçado de que aquilo que se vê depende do lugar em que foi visto, e das outras coisas que foram vistas ao mesmo tempo... e que as formas do saber são sempre e inevitavelmente locais, inseparáveis de seus instrumentos e de seus invólucros. (GEERTZ, 1997, p. 11) Mas, o fato do conhecimento ser local, não impede a busca de compreender as verdades locais a partir de correlações mais amplas. Assim sendo, a comunicação Reserva Técnica/ Aldeias/ Reserva Técnica foi a principal trilha

Desenho 3. Tipiti de torção (N.º 224)

Rita de Cássia Domingues-Lopes

Maria do Socorro Lacerda Lima

Na tentativa de demonstrar a importância da trilha, tomo o “recipiente em palha trançada” sob tombamento 224 (Desenho 3), cuja nomeação por Figueiredo (1981) corresponde às características físicas/externas e, em campo trabalhando com os produtores, detectei ser “tipiti de torção,” isto é, um kri-ô feito de folíolos de tucum, utilizado por mulheres (Fotografia 2) para espremer a massa ralada de mandioca ou macaxeira “...que é posta no meio do traçado que, em seguida, é torcido, espremendo o tucupí... confeccionado por homens.” (FRIKEL, 1968, p. 40) Trabalhando com Piudjô mostrei a fotografia do tipiti, ele imediatamente apontou para o objeto (kri-ô) que estava sobre o esteio da cozinha e colocou-o ao lado da foto, para mostrar que era o mesmo objeto.

Fotografia 2. Irebã mostrando como é utilizado o

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para conhecer os Xikrín, mas não deixei de considerar a produção etnográfica e museográfica sobre o grupo.

• Assim procedendo, verifiquei a importância das correlações feitas com base em documentos etnográficos produzidos em momentos diversos, Piudjô e eu “lemos”, cada um a seu modo, o kri-ô, comprovando que a cultura pode ser pensada como texto socialmente elaborado, como ensina Geertz, e interpretada no contexto adquire inteligibilidade, permitindo a “...compreensão de significados localizados, próprios dos contextos culturais em que são produzidos” (FREHSE, 1998, p. 242). Assim, parto de observações concretas e ações simbólicas trabalhadas, com o auxílio da teoria, para formular considerações sobre os Xikrín, tendo como objetivo a análise do discurso social e a expectativa de contribuir com a Etnologia

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brasileira, mesmo que a análise cultural seja incompleta, pois a realidade possui vários ângulos de observação e o campo semântico possui múltiplos sentidos. Compreender a cultura como código simbólico significa que cada cultura possui uma dinâmica e uma coerência interna que é compartilhada pelos membros da sociedade e, que ao ser estudada por intermédio de procedimentos antropológicos, pode ser “decifrada e traduzida” para membros que não pertencem a este grupo. A cultura se refere à capacidade e necessidade que os seres humanos têm de aprender.

5 INDO ALÉM DA RESERVA TÉCNICA 5.1 No caso dos grupos indígenas, os diversos povos possuem maneiras particulares de ver o mundo, organizar o espaço, construir a casa e marcar os momentos significativos da vida de seus membros. No contato com a sociedade não indígena, tomam aquilo que, de acordo com a sua própria cultura, seria passível de ser adotado; atribuíndos muitas vezes, significados diversos a elementos, inicialmente, alienígenas que são assim incorporados dinamicamente aos seus valores culturais. 5.2 Tomando a cultura como um processo dinâmico de contínua invenção de tradições e significado, discute-se a possibilidade de um grupo indígena manter sua cultura quando este passa a adotar alguns costumes e objetos ocidentais como, usar roupas e sapatos ‘dos brancos.’ A cultura dos grupos indígenas como a nossa, é dinâmica, assimila certos elementos culturais de sociedades não indígenas, atribuindo-lhes novos significados e rechaçando outros. O contato dos Xikrín com a sociedade nacional é da década de 50, segundo Vidal (1977). Hoje, consomem alimentos industrializados, utilizam roupas, armas de fogo e aparelhos eletro-eletrônicos. Giannini relata a chegada, na aldeia, de avião comprado pelos Xikrín em 1989, e como os Xikrín o enfeitaram para a festa de nominação quando ...receberia o nome de Bepkororoti, personagem mitológico que subiu ao céu pela força do relâmpago, já estava preparado. Ao seu lado, as nominadoras (aquelas que transmitem as prerrogativas dos nomes) e as amigas formais... Todo emplumado com cocares e penugem de papagaio, lá estava o avião Bepkororoti. A ‘ave de ferro’, um bimotor, era o mais novo integrante da comunidade. (1993, p. 16). Percebe-se, pelo relato, que cada sociedade manifesta suas ações, símbolos e significados a partir de sua cultura. Assim, o símbolo é alguma ‘coisa’ cujo valor ou significado é atribuído pelas pessoas que o empregam. São ‘coisas’

5.3 Os objetos podem ser concebidos como elementos portadores de valores culturais. E o objeto etnográfico ocupa um lugar no conjunto de documentos tais como textos etnográficos, cadernos de campo, filmes documentários e fotografias, por meio dos quais é possível pensar usos e significados em uma cultura particular. As coleções etnográficas, poderão ser interpretadas incluindo os objetos que as integram em contextos sociais específicos, pois os valores não são intrínsecos aos objetos, dependem dos valores que lhes são atribuídos pelos seres humanos. 5.4 No trabalho, pretendi “...mostrar a lógica das formas de expressão deles [os Xikrín], com nossa [minha] fraseologia...” (GEERTZ, 1997, p. 20) pois a cultura não se define mais (e somente) enquanto um conjunto fixo de costumes, artefatos e crenças que podem ser armazenadas ou resguardadas em museus ou livros, independentemente das pessoas. É tomada como código de significados compartilhados socialmente. 5.5 Estudar a cultura é estudar um código de símbolos partilhados pelos membros dessa cultura. Desta forma, “...a interpretação de um texto cultural será sempre uma tarefa difícil e vagarosa.” (LARAIA, 1997, p. 64). Durante a realização do trabalho de campo presenciei, cotidianamente, a socialização dos membros mais jovens da sociedade Xikrín, assistir a homens e mulheres mais experientes ensinar, sob olhar atento, os códigos culturais do grupo. Ao tornar públicos os procedimentos, repassando-os às novas gerações, os mais velhos garantem a manutenção de sua sociedade, sem “descuidar” de introduzir as modificações necessárias para continuar existindo, sem deixar a identidade de ser Xikrín.

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porque um símbolo pode assumir qualquer forma física; pode ter a forma de um objeto material, uma cor, um som, um cheiro, o movimento de um objeto, um gosto. O significado do valor de um símbolo não deriva nunca, nem é determinado pelas propriedades intrínsecas de sua forma ou outra qualquer. O significado dos símbolos é derivado e determinado pelos organismos que os usam; sentidos são atribuídos pelos seres humanos a formas físicas que então se tornam símbolos (WHITE, 1975).



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REFERÊNCIAS BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise de discurso. Campinas: Ed. Unicamp, 1998. CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário histórico das palavras portuguesas de origem Tupi. São Paulo: Melhoramentos: EDUSP, 1989. DOMINGUES-LOPES, Rita de Cássia. Desvendando significados: contextualizando a Coleção Etnográfica Xikrín do Cateté. Dissertação (Mestrado em Antropologia). UFPA, Belém, 2002. Mimeografado. FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. As coleções etnográficas da Universidade Federal do Pará: Catálogo. Belém: DEAN/UFPA, 1981. Mimeografado. GEERTZ, Cliford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa Petrópolis: Vozes, 1997. 366. p. Resenha de: FREHSE, Frya. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 41, n.. 2, p. 235-243, 1998. FRIKEL, Protásio. Os Xikrin : Equipamento e Técnica de subsistência. Belém: MPEG, 1968. (Publicações Avulsas, n.º 7). GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. GEERTZ, Clifford. O Saber Local: novos ensaios em Antropologia Interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997. GIANNINI, Isabelle Vidal. A ave resgatada: a impossibilidade da leveza do ser. Dissertação (Mestrado) São Paulo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991. Mimeo grafado. GIANNINI, Isabelle Vidal. Índios Xikrín. Revista Horizonte Geográfico. Ano 6, n.. 27, mar/abr., p. 16-25, 1993. HORTA, Maria de Lourdes Parreiras. Semiótica e Museu. Estudos de Museologia. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura/IPHAN, n.º 2, p. 9-28, 1994. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar , 1997. RIBEIRO, Berta G. Dicionário de Artesanato Indígena. Belo Horizonte: São Paulo: Itatiaia: EDUSP, 1988. RIBEIRO, Berta G. Glossário dos Trançados. In: RIBEIRO, Darcy et. alli. Suma Etnológica Brasileira. Edição atualizada do Handbook of South American Indians. Petrópolis: Vozes/FINEP, 1987. p. 314-321. v.2: Tecnologia indígena.

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Alyne Marcely Fernandes de Souza1 Antônio do S. F. Pinheiro1 Benedita da Silva Barros1 Gustavo Lynch1 Neila Cristina dos Santos Barbosa1

Apresentação Repatriamento de acervos etnográficos como alternativa de retorno desses bens ao seu país de origem dá ao presente texto o caráter prospectivo. No recorte 2 do patrimônio cultural indígena, usaremos reflexões de José Bessa Freire , que aponta a valorização externa de tais acervos e sua relação a uma estética latino-americana e a necessária valorização brasileira, como elemento essencial para a retomada dos bens. A relação entre propriedade e patrimônio e a base de valorização do patrimônio cultural brasileiro, a partir da política do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e sua histórica carga elitista, em contraponto a uma nova política cultural a partir da Constituição de 1988. Nova forma de relação entre os Museus Nacionais, acervos etnográficos e povos indígenas. Forma de se trabalhar o repatriamento no âmbito interno não pela devolução do bem, mas sim pela disponibilização à comunidade dos ativos sociais, culturais e econômicos presentes ou advindos deles, tais ações contribuíram para o empoderamento dos Povos Indígenas, fortalecendo-os, para a cobrança de uma ação conjunta do Estado3 acerca do seu patrimônio que está fora do pais, e a retomada dele como Patrimônio Nacional, expressão de um dos matizes que compõem o povo brasileiro.

1

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*Equipe da Assessoria Jurídica e Propriedade Intelectual do Museu Paraense Emilio Goeldi. Respectivamente, Acadêmica de Direito/UFPA – Estagiaria/AJUR/Goeldi; Bacharel em Direito, Especialista em Gestão e Planejamento Ambiental-Bolsista DTI/AJUR/GOELDI;Advogada Mestra em Direito das Relações Sociais – Coordenadora da Assessoria Jurídica; Advogado Especialista em Direito Civil e Processo Civil, Técnico Efetivo – AJUR/GOELDI, Acadêmica de Direito/CESUPA – Bolsista DTI/Museu Goeldi. Todas as citações de José Bessa Freire foram tiradas do texto: Um Olhar Sobre a Cultura Brasileira. Patrimônio cultural indígena. MinC. 1998. Disponível em: . Acessado em 30/06/2004. Art.232, Constituição brasileira de 1988, garante ação jurídica para resguardo de seus direitos, podendo se opor ao Estado brasileiro. “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.

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O Patrimônio Cultural Indígena: valorização nacional e repatriamento de acervos etnográficos



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Patrimônio cultural Indígena Trazemos reflexões sobre a valoração do patrimônio cultural indígena a partir de duas situações reais: 1º. Moradores de um residencial de Berlim localizado no Bairro Amarelo, ao solicitarem reforma de seu conjunto habitacional, apontam que este deveria se identificar com a América Latina. Ao ser selecionada, a Empresa Brasileira responsável pela obra, sugeriu o uso de motivos indígenas para os azulejos das fachadas; 2º. A empresa H. Stern lançou uma coleção de jóias – a coleção Purangaw – com 57 peças inspiradas na arte plumária, pinturas corporais, cestaria e cerâmica dos índios Bororo, Kadiweu, Kayapó, Kaingang e outros. As jóias que imitaram a cestaria dos índios Tukano foram feitas especialmente para complementar a coleção primavera/verão/1994, do estilista brasileiro Ocimar Versolato, em Paris. (FREIRE, p. 1998). Questiona-se a trajetória que levou os arquitetos e os designers a optarem por uma temática indígena, e por que um povo, como o alemão, que possui um expressivo patrimônio artístico próprio busca melhorar sua qualidade de vida lançando mão de elementos das culturas indígenas? Será que moradores de um bairro de qualquer cidade da América Latina ou, mais especificamente, da Pan-Amazônia, tomariam decisão semelhante? Os arquitetos ousariam uma proposta dessa para um bairro, por exemplo, de Manaus? Por que a “cara” da América Latina para os europeus, possui, necessariamente traços indígenas? Essa imagem que o outro tem de nós corresponde à nossa auto-imagem? (FREIRE, p. 1998) Faz -se questionamentos de ordem mais prática: Se existem mesmo desenhos indígenas, com qualidades estéticas capazes de alegrar e embelezar um conjunto habitacional em Berlim ou em outra qualquer cidade latino-americana? Onde encontrá-los? Que critérios podem ser usados para selecioná-los? (FREIRE, p. 1998). Indica-se que se os arquitetos aprendessem a usar referências passadas 4 poderiam encontrar ali mesmo, em Berlim, material necessário para desenvolver sua temática, pois no século XVI, cronistas europeus já registravam os desenhos 4

Se os arquitetos procurassem, nos museus, os desenhos indígenas para os azulejos, nem precisariam ir muito longe. Bem próximo em Berlim, no Museu Etnográfico (Museum für Völkerkunde), situado a alguns quilômetros do Bairro Amarelo, encontrariam milhares de peças, organizadas em diferentes coleções, formadas a partir de coletas feitas por naturalistas, sobretudo no século passado. Os arquitetos poderiam optar por peças fabricadas pelos Bakairi, Suyá, Juruna, Kamayurá e outros povos do Xingu ou pela cerâmica e trançado dos Bororo e Terena, recolhidos no século passado por Karl von den Steinen. No mesmo Museu Etnográfico de Berlim, encontrariam, também, parte da coleção feita no início deste século por Koch-Grünberg: máscaras, adornos plumários, brinquedos, cerâmica, trançado e utensílios diversos produzidos pelos Desana, Kubewa, Tariana, Tukano, Tuyuca e outros povos do rio Negro, que vivem também na Colômbia e Venezuela. Se os arquitetos optassem por desenhos existentes em peças arqueológicas, poderiam copiá-los da cerâmica marajoara, que o Museu de Berlim permutou com o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Se o interesse fosse pelos desenhos de cores azuis, vermelha e verde dos índios Kadiweu, o acervo do Museu de Berlim possui exemplares coletados por Guido Boggiani no final do século passado. São muitas as coleções existentes só em Berlim. [...] (FREIRE ,1998)

No aspecto de coleções de grupos indígenas da Amazônia, o primeiro europeu a dar uma visão de conjunto dos povos da várzea foi o frei dominicano Gaspar de Carvajal, cronista de Orellana. Mesmo considerando os índios bárbaros, não se conteve, mostrou seu fascínio quando viu os mantos coloridos tecidos pelos Omagua do alto Solimões ou a cerâmica Tapajônica que, para ele, era “coisa maravilhosa de ver", “tanto de escultura como desenhos e pinturas de todas as cores, dos mais vivos tons”. (CARVAJAL, 1555, apud FREIRE, 1998). Vê-se que brasileiros e amazônidas, índios e não-índios desconhecem e não dimensionam tais acervos e, diante do grande acervo do passado, os arquitetos optaram pela indígena contemporânea. Saíram atrás de desenhos novos, atuais, com uma série de dúvidas: seria possível encontrá-los, depois de quinhentos anos de contato, do saqueio colonial, do trabalho compulsório, dos massacres, das missões, das invasões de terras, das estradas, dos colonos, dos garimpos, das frentes extrativistas, das hidrelétricas, dos grandes projetos? Os índios não teriam perdido suas fontes de inspiração? Em muitas sociedades indígenas, as tigelas e potes de cerâmica foram substituídos por peças de alumínio e plástico, as indumentárias e adornos tradicionais foram trocados pelo vestuário ocidental: em que medida este fato afetou a expressão artística tradicional? Como fonte de referência puderam contar com trabalhos de documentação contemporânea da arte de várias etnias, os Wayanana, por Lúcia Van Velthem (VAN VELTHEM, 1992: 64), os Xerentes, por Aracy Lopes da Silva e Agenor Farias. (SILVA ; FARIAS, 1992.), os Asurini, por Lúcia Andrade. (ANDRADE, 1922, p.128), os Xikrin Kayapó do sudeste do Pará, foi estudada por Lux Vidal; os Karajá e Javaé do rio Araguaia, pesquisados por André Amaral; os Waiãpi, do Amapá, por Dominique Gallois (GALLOIS, 1992, p. 229.). [...], este último foi considerado Patrimônio Imaterial da Humanidade em 2003, grifamos. Poderia se compor, afora às etnias citadas, outro quadro rico e diversificado, ampliando as opções dos arquitetos Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, responsáveis pelo projeto de remodelação das fachadas do conjunto habitacional de Berlim. Mas eles acabaram optando pelo traço Kadiweu – cujos

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utilizados pelos índios, da pintura corporal, e em diferentes tipos de suporte: nas cerâmicas, nos tecidos, nas máscaras, nas cestarias, nas esculturas em madeira, e em uma série de artefatos e ornamentos. Peças, coletadas de forma aleatória foram enviadas aos “gabinetes de curiosidades”, embrião dos atuais museus. Coleções enriquecidas pelas mãos de viajantes e naturalistas que no século XVIII percorreram o continente americano, pesquisaram de forma mais sistemática, coletaram objetos fabricados pelos índios, e os remeteram às instituições européias.



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desenhos consistem em figuras geométricas abstratas. Foi, este patrimônio artístico que se incorporou à paisagem urbana de Berlim. Como a pintura Kadiweu é tarefa exclusiva da mulher os arquitetos realizaram um concurso entre as índias da aldeia Bodoquena, no Mato Grosso do Sul. Um deles conta como organizou o processo: Mandamos para a aldeia Bodoquena um lote de papel cortado no tamanho já estabelecido, as instruções sobre as cores e canetas hidrográficas. Noventa e três índias, de 15 a 92 anos de idade, realizaram três propostas cada uma. O resultado nos agradou muito. No produto final foram preservados os traços vazados das canetas hidrocor, o gesto da pintura. (GAMA, 1998, p. 5 apud FREIRE,1998) Selecionaram, num primeiro momento, trezentas estampas coloridas criadas pelas índias e depois escolheram seis como vencedoras do concurso. No dia 19 de junho de 1998, as estampas transformadas em azulejos foram inauguradas nas fachadas dos blocos do Bairro Amarelo, alegrando-o, humanizando-o, tomando-os mais belos, melhor habitável e civilizado, facilitando a convivência e a comunicação entre os seus moradores. A aldeia Bodoquena ganhou, por este trabalho civilizatório, 20 mil marcos alemães e mais passagens e estadias de dez dias para seis índias, artistas Kadiweu, que estiveram presentes na festa de inauguração. Freire discorre que a reforma urbana de um conjunto habitacional de Berlim com desenhos Kadiweu evidencia os equívocos da concepção evolucionista ultrapassada, que considera as experiências das sociedades indígenas no campo da arte e da ciência como primitivas, opostas à modernidade e, portanto, como algo que pertence à infância da humanidade, que não tem mais lugar no tempo presente. Que isto serve também para exemplificar como um bem cultural pode adquirir novos usos e novas significações se nele é investido um novo trabalho cultural. A carga simbólica presente nos bens imateriais indígenas enfatiza o aspecto de que a cultura está relacionada não apenas às obras, mas a capacidade humana de produzi-las e usufruí-las. Assim a definição de patrimônio deve relacionar sua função ao significado que possui para a população e, com isso, reconhecer que o elemento básico na percepção do significado de um bem cultural reside no uso que dele é feito pela sociedade. Freire (1998), ao descrever o processo de incorporação da arte indígena à paisagem urbana de Berlim, sua valorização estética à qual se soma a coleção de jóias da H.Stern, destaca quatro pontos que emergem das suas dissensões:

2. Os próprios índios estão atualmente interessados em reapropriar-se deste patrimônio, com propostas claras de preservação. A COIAB - Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira pretende construir em Manaus o Museu Intercultural das Ciências e das Artes Indígenas da Amazônia, com o apoio de uma equipe de museólogos vinculados à UERJ e de um escritório de arquitetura de Manaus, tornando possível “um repatriamento efetivo e uma circulação de objetos, considerados por muito tempo – sem ambigüidade – como ‘propriedades’ pelos colecionadores e curadores de museus metropolitanos”. (CLIFFORD, 1991, p.241). 3. O patrimônio indígena – tanto o material como o imaterial – continua sendo enriquecido hoje, num processo contínuo de transformação, de tensão provocada pela articulação entre tradição e inovação. Os índios estão permanentemente recriando a tradição, introduzindo novos sentidos e novos símbolos. Não se trata, portanto, de patrimônio “congelado”, vinculado apenas ao passado da Amazônia, mas de algo vivo, ligado ao presente e ao futuro da região. Vê-se que tal discussão se aplica para que possamos externar reflexão, ainda incipiente, mas que merece destaque diante de situações que, se provocadas, gerarão conflitos insolúveis e com possíveis perdas para as partes envolvidas (Instituições e Povos Indígenas), o que buscaremos demonstrar a partir de um raciocínio que nos esforçaremos para ser cristalino. Ética e justiça são caminhos a serem percorridos no alcance de uma possível solução. Dispare de Freire, pousaremos olhar no espaço museológico, brasileiro e suas relações com esses povos, pois, quando ele aponta o desconhecimento dos acervos que estão lá fora, vislumbramos o que ficou em instituições brasileiras, os quais, os povos que os produziram não têm conhecimento e, conseqüentemente, o acesso. É claro que, quanto aos acervos etnográficos nacionais, presentes em Museus Internacionais, estes como parte do Patrimônio Cultural Nacional,

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1. Existe nos museus da Europa e dos países americanos uma extraordinária quantidade de bens culturais, de objetos materiais, produzidos, no passado pelas sociedades indígenas da Amazônia. Esse patrimônio está mais disponível e acessível aos europeus do que aos brasileiros e aos próprios índios. Daí a discussão que foi retomada sobre o repatriamento dessas peças e a necessidade de inventariá-las e mapeá-las.



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deve-se visar seu retorno, configurando assim o Repatriamento desses acervos. 5 Por outro lado, com base no que prevê a Convenção 169, da OIT acerca dos Povos Indígenas, que podemos pensar em “Repatriamento” dos bens que estão em Museus Nacionais, por uma outra ótica, não necessariamente do bem em si, mas, sim, dos valores depositados nele. Seria, então, a partir desse raciocínio, que os subsídios aqui delineados poderiam encetar uma discussão que aproxime os envolvidos e propicie às instituições e povos indígenas, uma nova forma de relacionamento e acesso aos acervos e que isto possa beneficiar ambos na construção de ações coletivas rentáveis, cultural e econômica como enfrentamento da “lixiviação cultural desses povos” e da carência de recursos que ambas grassam.

UM RECORTE JURÍDICO SOBRE A PROPRIEDADE No âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, o conceito de propriedade circunscreve a previsão do Código Civil Titulo II - Dos Direitos Reais, em que a propriedade é um dos direitos que compõem os Direitos Reais, além dela, circunscreve outros dos quais destacamos o usufruto (art. 1225, V) e o uso (art. 1225, VI). Direito real sobre coisa alheia, se relaciona ao ato de receber, por meio de norma jurídica, permissão do seu proprietário para usá-lo ou tê-la como se fosse sua em determinadas condições e/ou circunstancias em consonância com a lei e com que foi estabelecido em contrato válido. Essa conceituação é uma das referencias básicas de discussão da presente temática 6

O Art. 1228, do CC , caput conceitua a propriedade de forma geral, “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. Deve-se considerar o principio da função econômico-social da propriedade, uma vez que isto proporciona uma limitação ao direito da propriedade visando 5

6

Convenção Relativa aos Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes - OIT, Convenção 169 de 7/6/1989, integrada ao ordenamento jurídico nacional em 2004, através do decreto Nº 5.051, de 19 de Abril de 2004. Exemplificamos no que prevê o artigo 2º, §1. Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade; §2. Essa ação deverá incluir medidas: a) que assegurem aos membros desses povos o gozo, em condições de igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros da população. b) que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições. c) que ajudem os membros dos povos interessados a eliminar as diferenças, sócio - econômicas que possam existir entre os membros indígenas e os demais membros da comunidade nacional, de maneira compatível com suas aspirações e formas de vida. Lei 10.406 de 10/01/2002.

O bem pode ser visto a partir de dois tipos: material ou corpóreo, que se revelam aos sentidos por possuírem um corpo físico e imateriais ou incorpóreos (intangíveis), que são captáveis unicamente por intermédio de valoração humana. Este último é protegido pela Lei de Propriedade Intelectual. O termo “Direito de Propriedade Intelectual”, a rigor, surgiu em 1893, com a criação da Secretaria Internacional para Proteção da Propriedade Intelectual e firmou-se a expressão, na Conferencia Diplomática de Estocolmo, em 1967, da Organização Mundial de Propriedade Intelectual - OMPI, agencia especializada das Nações Unidas. No geral, Direito de Propriedade Intelectual é a disciplina jurídica que cuida do domínio sobre bens imateriais e intelectuais e suas atividades conexas, produto da energia criativa do homem susceptível de valoração econômica. Os bens imateriais podem ter natureza diversa: industrial, comercial, técnica, cientifica, literária ou artística. Neste cenário, os bens de criação coletiva, o patrimônio imaterial de comunidades tradicionais, povos indígenas, não são protegidos pelo conceito de propriedade intelectual de cunho liberal, uma vez que este exige um titular individualmente identificado, enquanto aquele pertence a uma coletividade que, por vezes, pode ser difusa. Nesse aspecto, cabe uma dissensão entre patrimônio e propriedade e as implicações que os circunscreve, e buscar visibilidade de como proteger o conhecimento ancestral das comunidades tradicionais e povos indígenas, patrimônio imaterial que expressa sua oralidade através de lendas, ou entendimentos acerca dos elementos naturais, materializada em musicas, danças, pinturas objetos [...], e dos próprios recursos biodiversos relacionados.

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forma de uso do bem, para que o exercício do direito não provoque prejuízo ao bem estar social, almeja-se que ele seja economicamente útil e produtivo, atendendo o desenvolvimento econômico e os reclames de justiça social.



309 PATRIMÔNIO X PROPRIEDADE Derani (2002, p. 145), diferenciando patrimônio de propriedade, reporta-se que a palavra patrimônio circunscreve um conjunto de objetos que é próprio do sujeito, e isto alcança a propriedade. “Propriedade é aquilo que é relativo a alguém, ao sujeito por impregnar a construção de sua existência. É a extensão objetiva do Sujeito”. Em relação ao patrimônio, ao apontar que este nasce como um objeto ligado à essência do sujeito, Ost (1997, p. 53-72) afirma que patrimônio compreende um conjunto de objetos necessários à realização do sujeito, ao seu desenvolvimento,

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relacionado naturalmente a bens econômicos, e a ele não está restrito, uma vez que o conteúdo de um patrimônio ultrapassa a realidade econômica que o visualiza como um conjunto de bens comerciáveis, sendo o patrimônio uma ‘potencia jurídica’, um atributo da personalidade do sujeito de direito. Derani (ibidem) abaliza que o patrimônio é um conceito transtemporal que se visualiza ao relacioná-lo ao hoje, ao ontem, e ao amanhã, uma riqueza do passado, a qual transita pelo presente, e se destina a favorecer os hóspedes presentes e futuros do planeta. Entende patrimônio, como orientação de valores essenciais à sociedade, algo que parte de pais para alcançar aos filhos. Um traço de união, laço entre o ter e o ser, Ost contribui “portadora de um sentido a propriedade cessar de ser apenas o domínio do ter” (ibid). É importante em nossa discussão tal dissensão, uma vez que as comunidades tradicionais possuem valores diferentes da sociedade envolvente quanto ao exercício da propriedade; perpassa-nos a idéia de que no caso do acervo composto por patrimônio material que agrega valor imaterial de povos indígenas, a posse desses bens não, necessariamente, poderia configurar a propriedade no sentido do usufruto pleno do bem por quem o detém, uma vez que se pode identificar pelas características iconográficas a etnia de origem e, dessa forma, relacioná-lo ao patrimônio da etnia7, havendo necessidade de que esta seja consensual ao tipo de uso “exploração cultural e econômica do bem”. Por ser temática complexa, nos preocupamos em apontar situações não, necessariamente respostas. Noutro aspecto tais bens, como já citado, se inscrevem no rol daqueles que compõem o Patrimônio Histórico Cultural Brasileiro e pelo Estado deve ser protegido.



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Portaria nº 693/2000. FUNAI cria o Instituto do Cadastro do Patrimônio Cultural Indígena. Art. 1º. Fica criado o Cadastro do Patrimônio Cultural Indígena. Art. 2º. Caberá ao Museu do Índio proceder ao cadastro do patrimônio cultural indígena em livro próprio. Parágrafo Único – O cadastro não é condição necessária para atestar a existência e titularidade do bem cultural. Art. 3º. Poderão solicitar a instauração do procedimento de cadastro: I. as sociedades indígenas e suas comunidades; II. as organizações indígenas; III. as organizações da sociedade civil; IV. as instituições científicas; V. o Ministério Público Federal; VI. A Fundação Nacional do Índio; VII. o índio, no caso de produção individual. Parágrafo Único – Em qualquer hipótese fica ressalvado o direito da sociedade indígena interessada obstar o cadastro de um bem integrante do seu patrimônio cultural. Art. 4º. A solicitação de cadastro deverá ser dirigida ao Chefe do Museu do Índio, acompanhada da descrição do bem e de todas as demais informações pertinentes. Art. 5º. O cadastro deverá ser efetuado no prazo máximo de noventa dias, de maneira gratuita, devendo o Museu do Índio fornecer ao interessado certidão que ateste a condição do bem cadastrado. Art. 6º. A Fundação Nacional do Índio deverá dar ampla divulgação aos bens culturais cadastrados, especialmente junto às sociedades indígenas. [...]

Mario de Andrade, enquanto líder modernista, foi catalisador da Política Nacional do Patrimônio Artístico. Direcionava um olhar especial sobre o fazer popular, e tinha nele um marco singular, por vê-lo como depositário da brasilidade. Suas várias viagens ao interior possibilitaram reunir rica e diversificada documentação englobando aspectos da fala, utensílios domésticos, dança, música, manifestações populares como um todo [...]. Podemos situá-lo em um cenário propício à discussão de uma identidade nacional, uma vez que era o momento de grande efervescência, inquietações, que de certa forma aglutinam discussões que vinham desde a cisão do Brasil de Portugal. Afirmava-se que era preciso redescobrir o Brasil. É neste cenário que surgirá o Serviço do Patrimônio Histórico e 8 Artístico Nacional, em 1937 (SPHAN) , não mais aquela da visão de Mario de Andrade (SPAN). Coube a Rodrigo Melo Franco de Andrade, institucionalizar a política do Patrimônio Artístico Nacional. Este tinha proximidade com os modernistas e fez parte da elite urbana. Sua ênfase não foi de um patrimônio cultural, que identificasse os vários matizes da formação social brasileira. Primou por referenciar-se em um “passado exemplar”. (GONÇALVES, 1996). Nesse sentido, fez-se da pesquisa uma das ações do SPHAN e esta referência para o discurso e as definições do que se teria como patrimônio histórico e artístico nacional. Com esse encaminhamento e sobre a égide do Estado, no que regulou o Decreto 25/1937, em pouco tempo um rol de bens culturais que assim se constituem nos idos atuais tombados e relacionados no patrimônio histórico do Brasil e, significativamente, marcado pelo patrimônio edificado (igrejas, capelas, quartéis, fortes, cadeias, palacetes, palácios [...]). Fenelon (1992, p.30), afirma que se define e se consagram, os elementos simbólicos e dignos de marcar o imaginário nacional, como espelho de um rosto de nação. A ascensão de Aloísio Magalhães, em 1979, na direção do SPHAN, se caracteriza por uma ação reformadora. Visava agilidade e autonomia do órgão, de 8

SPAN – Serviço do Patrimônio Artístico Nacional – Sigla original proposta por Mário de Andrade, que ficou mais conhecido como SPHAN, quando foi acrescentada a categoria de Histórico – Este órgão já mudou de nome algumas vezes, hoje tem a nomenclatura oficial IPHAN; de serviço passou à de Instituto.

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POLÍTICA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL



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forma que pudesse espraiar suas ações para além dos monumentos e alcançassem o fazer popular. A visão de Aloísio sobre o processo de apropriação da cultura nacional ao focar o passado difere-o daquele exemplar de Rodrigo, o tem como referência de um processo econômico e cultural. Os bens culturais relacionados ao passado ele os tinha como bens patrimoniais, mas não como mera coisa do passado. Sua visão do tempo cultural não foi cronológica “o tempo cultural não é cronológico. Coisas do passado podem, de repente, tornar-se altamente significativas para o presente e estimulante do futuro” (MAGALHÃES [1981] 1985, p. 67). Tal entendimento materializa-se na criação do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), posteriormente integrado ao SPHAN, o qual centrou suas atividades em quatro áreas principais, no que ele via a expressão dos matizes que compõem a sociedade nacional. 1. Artesanato; 2. Levantamentos Socioculturais; 3. História da tecnologia e da ciência; 4. Levantamento de documentação sobre o Brasil. Sintetizou cada linha de trabalho descrevendo sua ação: a) Artesanato – conhecer o processo de produção, comercialização; consumo das matérias primas e técnicas artesanais; b) Levantamentos sócio-culturais – conhecimento dos processos de transformações sócio-cultural; ênfase aos estudos de modelos alternativos de desenvolvimento; c) História da tecnologia e da Ciência – conhecimento das técnicas e do saber tradicional artesanal; compreender as economias pré-mercado e estímulo à descoberta de tecnologias alternativas nas atividades de transformação do país; d) Levantamento de documentos sobre o Brasil – levantar, referenciar, preservar e difundir documentação sobre o Brasil; experiências de adequação ao usuário de sistemas de arquivamento e informação. Ao contrário do uso do dec. 25/1937, feito por Rodrigo Melo Franco de Andrade que, dentre todos os instrumentos legais de proteção dos bens culturais, deu destaque ao tombamento, como forma de intervenção estatal mais utilizado para a preservação do patrimônio histórico e artístico público, uma vez que, feita a inscrição dos bens móveis e imóveis nos órgãos oficiais de preservação –Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), no âmbito

Essa visão sofreu críticas, o que já apontamos na visão de Fenelon (1992) e que pode ser complementada por Marilena Chauí (1992, p.37) ao se manifestar acerca da política cultural. Uma política cultural que idolatre a memória enquanto memória ou que oculte as memórias sob uma única memória oficial está irremediavelmente comprometida com as formas presentes de dominação, herdadas de um passado ignorado. Fadada à repetição e impedida de inovação tal política cultural é cúmplice do “status quo”. Mais recentemente, Renato Janine (2003, p.1)9, discute o que deveria ser uma política cultural, onde reforça a idéia de Chauí, ao se somar aos que vêem a necessidade da política do governo inserir os diferentes segmentos que compõem a sociodiversidade brasileira, e que isto se configura na perspectiva de se ter um processo de enriquecimento de um cenário propício para a integração dos vários segmentos, principalmente a camada popular. Discutamos um pouco o que deveria ser uma política de cultura. Antes de qualquer coisa, ela não deveria ter como principais destinatários ou autores nem os artistas nem os intelectuais. Numa sociedade democrática (e a cultura que pode contribuir para tornar mais democrática a sociedade, enriquecendo o imaginário das pessoas, assim as capacitando para decidir melhor suas vidas), quem tem mais a ganhar com a cultura é o povo, ou o público, como um todo. Assim, o próprio fato de que a discussão sobre a política da cultura se dê nos cadernos culturais dos jornais, ou nas revistas culturais como Bravo, e não nas páginas centrais dos jornais diários ou das revistas semanais, já mostra que ainda não estamos convencidos de que a cultura é um assunto político prioritário. E isso se agrava, na medida em que os próprios ministros e secretários de Cultura parecem falar mais em porcentuais e em leis de renúncia fiscal do que em cultura. [...] (JANINE, 2003, p.1) O cenário apontado por Janine (2003), e revisto por Meira (2004), ao apontar as agruras do processo de construção de uma Política Cultural, o esvaziamento pelo qual ao longo dos anos passou o Ministério da Cultura (MinC) e a possível retomada de um espaço mais favorável para a Cultura Brasileira. 9

Texto acessado no site http://www.renatojanine.pro.br/Cultura/politica2.html em 20/07/2004. Artigo publicado na revista Bravo, em fevereiro de 2003.

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federal ou órgãos semelhantes nos Estados e Municípios, impede-se, legalmente, que eles sejam destruídos ou mutilados, mas, materialmente, não garante que isto se concretize. E o tempo se encarrega de, verdadeiramente, tombá-los.



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A conseqüência principal desse processo é que o Ministério da Cultura hoje não se configura, na prática, como um ministério digno da responsabilidade e do papel estratégico que a cultura deveria ter como Política de Estado, tal como está preconizado na Constituição e no nosso programa de governo. Nesse sentido, caberá ao núcleo político central do nosso governo conferir ao MinC o apoio político indispensável para tirá-lo dessa atual condição de fragilidade, tanto na sua reestruturação quanto na garantia de não contingenciar o seu já minimalista orçamento, em torno de 0,25% do OGU, abrindo assim todas as enormes possibilidades e potencialidades que a dimensão cultural pode estabelecer para o país e para o governo, pois uma estratégia de longo prazo para construção no Brasil de uma nova hegemonia “democrática e republicana” contraposta às forças conservadoras “clientelistas e oligárquicas” passa indispensavelmente pela cultura. (MEIRA, 2004, p..3) No aspecto do entendimento conceitual do que seria uma política cultural recorremos a Teixeira Coelho (1997, p. 293-300), ao reportar-se que, comumente, entende-se política cultural como um “programa de intervenções de Estado, instituições civis, entidades privadas ou grupos comunitários, com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas”. Define as formas de intervenções “produção, distribuição e uso da cultura, preservação e divulgação do patrimônio histórico e ordenamento do aparelho burocrático materializando-se em 1. Normas jurídicas, 2. Intervenções diretas de ação cultural” Quanto ao Patrimônio Cultural, este aponta que a definição de patrimônio cultural no Brasil, historicamente, reporta-se ao dec. 25/37, neste Patrimônio Cultural “é o conjunto de bens moveis e imóveis existente no país, cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis, quer por pelo seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico”. Num contraponto, compara este conceito com o da Carta Constitucional mexicana, que apresenta patrimônio cultural como: “o conjunto dos produtos artísticos, artesanais e técnicos, das expressões literárias, lingüísticas e musicais, dos usos e costumes de todos os povos e grupos étnicos, do passado e do presente”. Teixeira Coelho (1997) comenta que a primeira definição parte de um governo ditatorial e a segunda de uma organização de espírito democrático.

A Constituição Federal de 1988 inseriu em nosso ordenamento jurídico um espírito democrático, coadunando com a vertente internacional de patrimônio cultural, ampliando o leque de bens passíveis de proteção, incluindo a proteção sobre os bens imateriais, de natureza intangível. O artigo 216 da Carta Magna constitui-se, pois, na espinha dorsal do sistema de identificação e de preservação dos valores culturais brasileiros. Incluem-se, nesse conceito, as formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver, considerando: os saberes, as celebrações, as formas de expressão e os lugares. O Tombamento como política de preservação é pouco dinâmico. Ao prender-se ao passado, imobiliza o bem. A perspectiva cultural dinamiza-o, põe o bem num fluxo de transformação, como extensão da transformação da própria sociedade. Sua preservação vem em prol da melhoria do acesso e usufruto por um 10 número maior de pessoas e, principalmente, o bem como “fonte geratriz” de sua manutenção. A partir dele, pode-se tirar seu sustento, tendo nele a perenidade de uma tradição – expressão de seu modo de fazer, agir e relacionar-se. A preocupação com aspectos não-palpáveis da cultura começou na metade da década de 80 com Fernando Magalhães, que retoma as idéias de Mario de Andrade. Todavia, isto se fortaleceu no IPHAN a partir de um foco externo, e este, em 1998, passou a discutir uma política nacional para o patrimônio imaterial, como forma de regular o que a constituição de 1988, há 11 uma década atrás já previra. A inserção do que a Constituição de 1988 circunscreve como patrimônio nacional face à abrangência do seu conteúdo, adota o método da classificação. O 10

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Nesse aspecto, pensamos no bem como fonte de recurso material para seu detentor que visa sua manutenção e inserção no espaço público para uso da coletividade. Isto já está presente nos espaços revitalizados da cidade que são de acesso público, mas que prestam serviços privados que contribuem para sua manutenção. Em 1998, o Ministério da Cultura (MinC), instituiu o GTPI (Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial), com o intuito de promover discussões entorno da idéia da proteção de “bens culturais intangíveis”, que em nosso país é designado mais freqüentemente como patrimônios culturais imateriais. Depois de vários seminários e reuniões, chegou-se a um documento que propões uma minuta de decreto presidencial, no qual se definiu um novo instituto jurídico denominado registro. A proposta do novo decreto circunscreveu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, como instrumento de acautelamento, e instituiu o “Programa Nacional de Identificação e Referenciamento de Bens Culturais de Natureza Imaterial”. Mais especificamente, o Registro consiste na inscrição de bens culturais de natureza imaterial em um, ou mais de um, dos seguintes Livros de Registro: I - Livro de Registro dos Saberes e modos de fazer, enraizados no cotidiano das comunidades. II - Livro de Registro das Festas, celebrações e folguedos que marcam ritualmente a vivência do trabalho, da religiosidade e do entretenimento e de outras práticas culturais III - Livro de Registro das formas de expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;

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A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O QUE TROUXE DE MUDANÇA NO CONCEITO DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL



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art. 216, §1º estatui que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro por meio de inventário, registro, vigilância, tombamento, desapropriação e de outras formas de acautelamento e preservação e relaciona como patrimônio no caput do artigo “os bens de natureza material e imaterial, tomado, individualmente, ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem”: I. as formas de expressão; II. os modos de criar, fazer e viver; III. as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV. as obras, objetos, documentos,edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V. os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Vê-se que o conceito de patrimônio cultural envolve referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, o que não exclui os povos indígenas. Historicamente, não se caminhou nessa direção. Percebe-se que os valores que fundamentaram a formação do patrimônio cultural nacional, a identidade que se buscou dar à nação a partir do seu recorte patrimonial de “histórico e artístico nacional”, o distanciou das camadas populares. Voltamos a Freire (1998) e seu entendimento de que “nós brasileiros” não temos uma identificação cultural, com os valores indígenas, estes não são integrados a 12 personalidade do povo brasileiro , o que de certa forma lá fora, em sua visão é o que nos particulariza. A instituição de uma Política na área do Patrimônio Imaterial, no que se cerca do cultural, visa à inserção de valores de caráter menos elitista e mais popular – tradicional, dos vários matizes que compõem o povo brasileiro. As novas estratégias de preservação emergiram dos chamados novos patrimônios – especialmente, no crescente interesse pelos patrimônios ditos etnográficos. Noutro aspecto, a inserção do cultural ao histórico soma ao bem um valor passível de ser transformado em moeda é, com isso, propiciar o usufruto do bem pela coletividade e pelo particular, sem que isso incida na 12

A comparação ou alusão a característica indígena, é um qualificativo negativo para a população brasileira.

Apontar a valoração comercial como ponto de partida do resguardo do patrimônio imaterial é dar conta do paradigma que norteia a sociedade de consumo hoje. Domenico de Mais (2004), discorrendo sobre “Paradigma” nos mostra que a história humana é caracterizada por mudanças e que algumas transformações são tão intensas e velozes que passam desapercebidas por quem as está vivendo. Este vê que a sociedade industrial, centrada sobre a produção em larga escala de bens materiais, cobriu (dominou) um espaço de tempo que foi de 1700 a 1900. A partir da segunda guerra mundial, perpassou um novo período, com a rápida afirmação de um modelo socioeconômico de “tudo novo” rompimento/novidade, que por comodidade chamamos de pós-industrial, e que centrou sua produção nos bens imateriais: informações, serviços, símbolos, valores, estética. Na passagem do século XX para o XXI, este modelo revelou, muito claramente, algumas das suas características em relação a novas formas de economia, informações e convivência. Os fatores principais dessa mudança foram: o progresso tecnológico, o desenvolvimento planejado, a globalização, a escolarização das massas; em que as características do sistema emergente são: a criatividade e a estética como valores dominantes; a economia prevalecendo sobre a política; as finanças (do governo) prevalecendo sobre a economia; a velocidade sobre a lentidão; a globalização sobre a identidade e a virtualidade prevalecendo sobre o universo físico; o binômio fornecedor-cliente sobre o binômio comprador-vendedor; a mistura sobre a separação; a comercialização ultrapassando os bens materiais, alcançando os bens imateriais; os relacionamentos e a cultura. As necessidades emergentes/ascendentes são: a intelectualização, a ética, a estética, a subjetividade, a emotividade, a androgenia, a destruição do tempo e do espaço, a virtualidade e a qualidade de vida. A sociedade consumista persegue, sobretudo: poder, dinheiro e sucesso. Nesse cenário, o patrimônio imaterial de comunidades tradicionais ganha valor e por estar descoberta da proteção advinda da previsão legal (tradicional) de proteção de propriedade imaterial, está sujeita a apropriação por terceiros.

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descaracterização do bem, uma vez que sua manutenção e que garantirá seu valor a ser negociado no mercado. De certa forma, o aspecto econômico se soma ao cultural, ao transformá-lo em produto de consumo e, noutra ponta, agir num processo de retomada e manutenção do bem enquanto ativo material (produto) e ativo imaterial (cultura).



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Comparato (2001), usa a mitologia para analisar a contradição do ser humano entre a ética e a técnica; aponta a dependência socioeconômica e os embates entre as nações menos desenvolvidas e as grandes potências. A necessidade de construírmos um mundo novo, uma nova civilização, com dignidade, felicidade, onde as tecnologias, não sejam apenas para alguns. Sintetiza o que esperamos desse novo século. As Instituições de pesquisa são responsáveis por jogar lume sobre os povos indígenas e seus conhecimentos. E estas, também têm limitações por não dominarem os mecanismos de proteção da propriedade intelectual, assim, facilitam a dilapidação de recursos, seus, da comunidade e do país. Comparato (2001), destaca a questão do egoísmo competitivo, a exclusão de muitos e o domínio de poucos, onde a tecnologia, o uso mercantil (grifamos) acabam como privilégios de alguns. No aspecto cultural, vemos o uso de grafismos indígenas transformados em design, e com informações de suas tradições agregadas a produtos. Assim, a relação entre as Instituições de Pesquisa e sua produção deve ser revista, bem como sua relação com as comunidades tradicionais – povos indígenas – seus parceiros em muitas produções. Com a valoração de seus conhecimentos nem sempre há retorno satisfatório às suas origens. Quanto à valoração, chama-se a atenção para a visão de design de Aloísio Magalhães, açodada pela leitura de José Bessa Freire (1998), acredita que as formas dos paneiros, das cerâmicas, dos grafismos indígenas, deveriam ser incorporadas ao dia a dia, como produtos que apontam uma tecnologia e estética nacional. Ele já preconizava situações que hoje perpassam um mercado ávido por consumo, onde empresas buscam na sociodiversidade e na biodiversidade novos insumos e produtos. Magalhães, ao apontar que nossa identidade –vista pelo estrangeiro – identifica-a a traços culturais indígenas e que se não nos identificamos ou valorizamos isso, há quem o faça, apontando os consumidores europeus das Jóias H Stern e os moradores do bairro Amarelo, de Berlim.

318 O Repatriamento de bens etnográficos A discussão da questão do Repatriamento em si exigiu um perpasso histórico, pois nos proporcionou a visão de que a cultura indígena é encontrada no rol do patrimônio nacional como parte de acervo etnográfico de museus. Se possuímos um acervo nacional é devido à ação de historiadores e antropólogos, uma vez que pouco se fez e se faz enquanto política nacional para resguardo de 13

A Humanidade no Século XXI: A grande Opção. - Brasília: Centro de Estudos Jurídicos. Revista CEJ.n. 13: 187-198, jan./abril. 2001.

Ideologicamente, “coisa de índio” é um termo pejorativo que se soma a outro “parece índio” – ambos são termos excludentes destes da sociedade nacional e daqueles que se identificam com sua estética e ética. Então, que valores perpassam a seleção e acolhida de produtos das ações de povos indígenas em acervos de Museus? – Encontramos discursos antropológicos que se contrapõem ao discurso oficial do “Estatuto do Índio”, no que este não respeita sua particularidade e vê a supressão de sua cultura pelo da sociedade envolvente, como forma deste alcançar o gozo pleno dos direitos de 15 cidadãos, com isso, deixando de ser índio e semi-imputável. A importância dos antropólogos nessa ação pode ser visualizada na leitura acerca do aspecto cultural, como referência do patrimônio nacional presente no olhar de Mário de Andrade, esquecida por Rodrigo e estimulada por Aloísio. Nesse contraponto, pode-se visualizar tal influência nas diretrizes das políticas de um e de outro. E, mais recentemente, a participação dos historiadores e antropólogos junto aos povos indígenas, na formatação da Constituição Nacional (1988) e o embate buscando uma visão do direito constitucional acerca da condição e dos direitos indígenas. A formação dos acervos etnográficos, não foi de seleção e coleta pelo mero aspecto do inusitado, mas, sim, na perspectiva de se ter um acervo material em que se pudesse estudar e analisar determinada cultura e, com isso, poder discernir no que esta poderia ajudar a sociedade envolvente a se compreender e compreender o seu diferente. Hoje, as pressões do mercado por novos produtos, novas estéticas, têm avançado sobre recursos naturais e usado o conhecimento tradicional para chegar

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tais acervos e identificação deste com a população nacional. Uma vez que pelo Estatuto do Índio este é um sub-sujeito, que alcança a nacionalidade de brasileiro (cidadão) ao se distanciar de seus valores e, ao aderir, aos valores da sociedade moderna, isso atua como ação de extermínio de sua cultura14.



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Em 1991, Alcida Rita Ramos fez a seguinte afirmação “No Brasil, ou se é brasileiro, ou se é estrangeiro, ou se é índio. O estrangeiro pode entrar no rol dos cidadãos por um ato jurídico-burocrático reveladoramente chamado de ‘naturalização’. Ao índio não cabe naturalizar-se, pois ele já é um ‘natural da terra’; cabe ‘emancipar-se’, libertar-se do status ambíguo de relativamente incapaz, conforme reza o Código Civil”. Grifamos que o Novo Código Lei 10.406/2002 em seu Art. 4º - Parágrafo Único prevê: “A capacidade dos Índios será regulada por legislação especial”. Assim reporta-se à previsão constitucional Art.231 - São reconhecidos, aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. A constituição não alude a condição de tutelado. Todavia, a lei complementar para a efetivação da previsão Constitucional não veio. Encontra-se em discussão o Projeto de Lei Nº 2.057/91, visa a adequação do Estatuto do Índio ao preceito constitucional, este conta com vários substitutivos, o que demonstra uma série de interesses que perpassam a matéria. A semi-imputabilidade advém da condição de tutelado que até hoje ainda não foi superado pelas políticas atuais relacionas aos povos indígenas.

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a eles, ou valorizar os produtos deles advindos. No aspecto estético, pinturas, grafismos sonoridades são descritos por pesquisadores e utilizados por artistas e pela indústria em produtos consumidos e sem a respectiva contrapartida aos povos indígenas.16 Muitas vezes, tais produtos são cópias – não há releitura – são usados como referências e inspiração para novas estéticas. A cópia é feita e não referenciada, como se esta fosse criação do copiador. Com relação a tais bens, apontamos possibilidades que, se trabalhadas, podem se somar ao fortalecimento de povos indígenas. Assim, vemos que a formação de acervos em Museus Nacionais e o retorno destes às comunidades não, necessariamente, deve ser o bem em si, mas, sim, o que este tem de ativo, quer seja econômico, social e cultural. A ação da COIAB, citada por Freire (1998), e o trabalho de pesquisadores como Dominique Gallois (2003) e Lux Vidal (2003), no que assessoram no registro de bens imateriais ou na construção de Museus, são ações a serem difundidas e que deve ser o resultado da relação processual entre as instituições museológicas e os povos indígenas. Pensamos que, neste aspecto, deve-se desenvolver um trabalho diferenciado em que se possa empoderá-los para o enfrentamento de tais questões (incluso a retomada de acervos em museus internacionais). Usaremos a perspectiva do Museu Paraense Emílio Goeldi e sua coleção etnográfica, como exemplo de reflexão. Há muito se discute no Museu Goeldi a perspectiva de se ter um setor de transferência tecnológica que cuide da propriedade intelectual de seus trabalhos. Dessa forma, as relações com as comunidades com as quais este trabalha vêm sendo repensadas, para isto, trabalha-se a implantação de um Grupo de Pesquisa em Propriedade Intelectual que discuta o conhecimento tradicional e o direito de comunidades tradicionais e dos povos indígenas. O cenário em que se possa desenvolver discussões e delas tirar conclusões que ao serem sistematizadas se transformem em diretiva da instituição, como padrão de relacionamento com povos indígenas e comunidades tradicionais, em verdade, se configura na sistematização da prática informal que, até então, tem caracterizado a relação do pesquisador com as comunidades tradicionais e povos indígenas. Não há o que se cobrar de uma instituição centenária que sempre primou pela ética em suas relações com as comunidades tradicionais e povos indígenas, uma vez que a legislação é recente e todas as instituições de pesquisa da 16

Vide nota 8 do texto.

O Museu Paraense Emílio Goeldi vem sendo procurado por empresas para negociar informações, advindas de suas pesquisas, o acervo etnográfico também é cogitado, principalmente, para o desenvolvimento de design, (estampas, jóias [...]), o comportamento da curadoria do acervo é bem claro, enfatizando a necessidade de se ter consensualidade do povo indígena relacionado. Noutro aspecto, busca-se negociar situações que tragam ativos para as comunidades envolvidas e para o Museu, de forma que o investimento público possa se reverter em benefícios para a coletividade. Como isso não é algo simples, deve-se definir uma nova forma de relação, a partir das regras de acessos e de repartição de benefícios. No caso dos acervos de recursos da biodiversidade a Convenção da Biodiversidade (CDB) reporta-se a patrimônio genético in situ e ex-situ. No mesmo aspecto, cremos que deva ser pensado para o acesso ao acervo de material etnográfico. Assim, quem detém tais acervos deve repensar sua forma de uso, de modo que haja uma proximidade com as comunidades de origem e consensualidade de interesses. Exige-se, para isso, como já nos reportamos, uma nova forma de relacionamento, não só para a repartição de benefícios, mas para o empoderamento das comunidades. No trajeto histórico, a valoração do acervo de tais comunidades, não se relacionava ao Patrimônio Histórico Cultural da Nação como expressão de seu povo, inserido como expressão da nação e do qual deve-se orgulhar. A visão elitista obscureceu tal possibilidade. Com as discussões acerca de Patrimônios Imateriais, Celebrações e Saberes da Cultura Popular, vê-se a perspectiva de se alcançar, a previsão do art. 216, CF/88, os vários grupos formadores da sociedade brasileira, ao ser contemplada pela política de patrimônio cultural nacional. No aspecto da ação do Museu em relação aos povos indígenas, dos quais detém acervo, nos perpassa a fala de Santos (1990, p. 66-9). A função de preservar, ao nosso ver, está intimamente relacionada à função do uso no sentido de se construir, a partir da manifestação cultural, uma informação não acabada, dogmática, mas de alimentar novas idéias, repensar velhos conceitos, porque entendemos que uma das principais funções do museu é educar, e educar não é convencer, mas estimular uma constante recriação intelectual, crítica, reflexiva.

Propriedade Intelectual e Patrimônio Cultural: proteção do conhecimento e das expressões culturais tradicionais

região amazônica e do Brasil estão dando passos na direção da regulação interna, adequando as ações institucionais à previsão legal.



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Nos vários pontos em que esta enumera como elementos operacionais para melhorar a relação do Museu com o público e cumprir sua função social, o primeiro é emblemático. Disposição para agir, apesar da ausência de verba; de lutar por essas mesmas verbas, de acreditar que é possível tornar a instituição útil com um papel importante a desempenhar junto à sociedade(1990, p. 66-9). Vê-se, nesta última fala, o que tem movido muitas ações no âmbito do Museu Goeldi e cremos que a inclusão da perspectiva de nova relação entre a comunidade indígena e a instituição está em gestação, pronta para nascer e caminhar em um processo cujo resultado será uma ação, na qual todos se identifiquem. Nesse todo também estão os povos indígenas, ao verem o Museu como parceiro – expressão da ação de todos e não de alguns. Dessa forma, não anularemos a ação de repatriamento, mas caminharemos nessa direção, uma vez que a ação do Museu poderá ir ao encontro do desejo indígena e contribuir para uma política em que o acervo que está sob sua guarda sirva para o fomento do que hoje estes acenam como essencial para uma política cultural que contemple os povos indígenas, a saber: 1) fortalecer as manifestações culturais indígenas; 2) lutar contra o preconceito e divulgação e valorização das culturas indígenas;

promover

campanhas

de

3) romper com a marginalidade dos povos indígenas em relação ao acesso aos bens culturais do país; 4) elaborar uma política cultural indígena em parceria com os povos indígenas; 5) respeitar a propriedade intelectual dos povos indígenas e garantir a proteção aos bens culturais e conhecimentos tradicionais. Essas diretrizes foram encaminhadas pela representação indígena ao Ministério da Cultura (MinC) durante o Fórum Cultural Mundial, ocorrido em junho de 2004, em São Paulo. A partir deles, podemos começar a repensar novas ações e tomar posições concretas que possam alcançar um reclame que, ha séculos, faz eco e pode ser visualizado em várias falas de representantes dessas comunidades; de pessoas que se importam e trabalham para que estes se auto-determinem.

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