Patrimônio Ferroviário em Capitão de Campos - PI: diretrizes para preservação integrada do Conjunto Ferroviário

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INSTITUTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS PROFESSOR CAMILLO FILHO CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO

André Mendes de Carvalho Castelo Branco

PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO EM CAPITÃO DE CAMPOS-PI: Diretrizes para preservação integrada do Conjunto Ferroviário

Teresina-PI 2016

André Mendes de Carvalho Castelo Branco

PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO EM CAPITÃO DE CAMPOS-PI: Diretrizes para preservação integrada do Conjunto Ferroviário

Trabalho apresentado ao curso de Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais Professor Camillo Filho como requisito parcial para obtenção do título de Arquiteto e Urbanista.

Orientadora: Prof.ª M. Sc. Neuza Brito de Arêa Leão Melo.

Teresina-PI 2016

C348p

Castelo Branco, André Mendes de Carvalho. Patrimônio ferroviário em Capitão de Campos - PI: diretrizes para preservação integrada do conjunto ferroviário / André Mendes de Carvalho Castelo Branco. – Teresina, 2016. 219 f. Ilust. 8 pranchas. Orientadora: Neuza Brito de Arêa Leão Melo. Monografia (Bacharel em Arquitetura e Urbanismo) – Instituto Camillo Filho, Teresina, 2016. 1 - Patrimônio Histórico - Rede Ferroviária - Capitão de Campos - PI. I – Título.

CDD: 721.028

André Mendes de Carvalho Castelo Branco

PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO EM CAPITÃO DE CAMPOS-PI: Diretrizes para preservação integrada do Conjunto Ferroviário

Trabalho apresentado ao curso de Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais Professor Camillo Filho como requisito parcial para obtenção do título de Arquiteto e Urbanista.

Aprovado em 02 de dezembro de 2016.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________________ Prof.ª M. Sc. Neuza Brito de Arêa Leão Melo - Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais Professor Camillo Filho

___________________________________________________________________________ Prof.ª Esp. Claudiana Cruz dos Anjos - Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais Professor Camillo Filho

___________________________________________________________________________ Arq.ª Esp. Patrícia Mendes dos Santos - Secretaria de Estado de Cultura do Piauí

AGRADECIMENTOS Desde o início da graduação, ouvi que um trabalho como este depende da ajuda de amigos. Ao longo do processo de pesquisa e elaboração deste Trabalho Final de Graduação, não só verifiquei que é verdade, como tive uma prova de que é um mito a figura do pesquisador solitário e isolado - a pesquisa acadêmica efetivamente depende de uma rede de relações para sua viabilização. Assim, agradeço, aqui, a todos que formaram esta rede que possibilitou meu TFG. A minha família, Frederico, Ana Valéria e Bruno, pelo apoio e companhia em todos os momentos difíceis. A Neuza Melo, que foi minha orientadora em todos os sentidos da palavra. Sem ela, este trabalho teria sido impossível por muitos motivos. A minha avó e minha tia, Teresa e Auxiliadora, pela torcida perene. A meu tio, historiador Pedro Vilarinho, pelo conhecimento e apoio. A meu pai, Frederico, pela companhia e ajuda na pesquisa de campo. A João Eulálio de Pádua, pelo material referente ao Parque Estação Cidadania. A Ranieri Pierotti, pelo tempo, pela atenção e pelo material sobre a ferrovia no Piauí. A Patrícia Mendes, pelo material sobre a política estadual de preservação do patrimônio. A Claudiana dos Anjos, pelo conhecimento compartilhado na forma de conversas, bibliografia e orientações na pré-banca. A Pedro Henrique Brito e Raquel Feitosa Cavalcante, servidores do IPHAN/PI, pela boa vontade, atenção e contribuição para o acesso ao Inventário de Conhecimento realizado pelo Instituto sobre a malha ferroviária do Piauí. A Maria Luiza, moradora de Capitão de Campos, pela conversa e pelas informações disponibilizadas. A Pedro Veras, ferroviário aposentado e também morador de Capitão de Campos, pelo relato e pelas importantes informações cedidas. A Raquel Carvalho e Flávia Maia, por mostrar o que é ser arquiteto com seus TFGs. A Juliana Lopes Elias Aragão, professora que deu contribuição inestimável para meu crescimento disponibilizando tanto do seu tempo e atenção para discutir pesquisa. A Laline Mendes e Áureo Tupinambá, arquitetos que me receberam em seus escritórios, confiaram em meu trabalho e proporcionaram importante aprendizado. A Mariana, Jefferson, João Gabriel, Ivo e Anderson, arquitetos e colegas de trabalho com quem cresci muito. A toda a equipe da Gerência de Obras e Serviços de Engenharia (GOS), da Superintendência de Desenvolvimento Urbano (SDU) Sul, por me receberem e proporcionarem, também, aprendizado. A Aminna Sá, colega de artigos. Aos amigos Ana Clara, Victor, Camila, Anna, Ennio, Nayeno, Filipe, Juliana, João Lucas e Raissa. Vocês são um tesouro pra mim. Aos amigos que me acompanharam na graduação em arquitetura, no ICF e na FAU: Adelcy, Aminna, Carol, Luciana, Marinas, Rhana, Wagner, Jaime, She, Tatiane, Jessica, Cris, Tarsila, Aline, Adriano, Marcela, Beatriz, Tina. Aos amigos arquitetos com quem eu tive o prazer de conviver e trocar experiências ao longo desse caminho: Victor, Marina, Lumena, Tássia, Ana Bárbara, Ludmila, Diego, Willane, Igor, Luna, Samir, Cezar, Leo, Jefferson e Amina. A todos, meu muito obrigado.

RESUMO

O presente trabalho tem como tema o patrimônio ferroviário no Piauí, Brasil, particularmente o conjunto ferroviário localizado na cidade de Capitão de Campos, a 118,5 km da capital Teresina, composto pela estação de passageiros, residências para funcionários da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA) e outras edificações relacionadas. Buscou-se analisar as construções em particular e o conjunto que configuram, tanto nas relações que constituem entre si quanto naquelas que estabelecem com os contextos urbano, cultural e socioeconômico, no município e no estado. Objetivou-se construir um corpus de conhecimento sobre esses bens, de modo a promover o conhecimento e o reconhecimento deles enquanto patrimônio cultural e também a fundamentar a intervenção para sua preservação. Para tanto, realizou-se um amplo estudo sobre a teoria da arquitetura e do restauro, a história e arquitetura da ferrovia e as recomendações das cartas patrimoniais adotadas pelos diversos organismos nacionais e internacionais, de modo a embasar a atuação. Prosseguiu-se ao estudo de casos semelhantes, para colocar esses conhecimentos em perspectiva e relacioná-los a outras iniciativas do tipo. Realizou-se então a análise crítica sobre o bem e sua significação, para, a partir daí, desenvolver diretrizes para novo uso, num contexto amplo. Concluindo, os bens em questão são bastante significativos no contexto da arquitetura e do patrimônio ferroviários do estado, dotando o conhecimento produzido ao longo do trabalho de relevância para os estudos da área. Palavras-chave: Patrimônio Ferroviário. Arquitetura Ferroviária. Capitão de Campos - PI.

ABSTRACT

The present work deals with the railway heritage in Piauí, Brazil, particularly with the railway architectural ensemble located in the city of Capitão de Campos, 118,5 km from the state capital, Teresina, which comprises the passenger station, housing units for Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA) employees and other related buildings. It's intended to analyze the buildings in particular and the ensemble they constitute, in the relations they make up between them as much as in those they establish with the urban, cultural and socioeconomic contexts, in the municipality and in the state. The work also aims to build on the knowledge of them, promoting awareness about the subject and their acknowledgement as cultural heritage, while also providing the grounds for intervening for their conservation. For that, an ample study was conducted on the theory of architecture and conservation, the history and architecture of the railway and the recommendations of the heritage charters adopted by various national and international organizations, as a means for making the action more consistent. The study then proceeds to three case studies, in order to put the previously gained knowledge in perspective and relate them to other initiatives of the kind. Then, a critical analysis was conducted on that heritage and its meanings, so as to develop guidelines for the adaptive reuse, in an ample context. In conclusion, the heritage in question is very significant in the context of railway architecture and heritage in the state, granting special importance to the knowledge built throughout the study and making it relevant to future studies in this field. Keywords: Railway Heritage. Railway Architecture. Capitão de Campos - PI.

LISTA DE FIGURAS Figura 01 – Mapa do Brasil, com o Piauí destacado ................................................................ 18 Figura 02 – Mapa do Piauí, com o percurso da EFCP, as principais cidades por onde a linha passou e a cidade de Capitão de Campos destacada ................................................................. 18 Figura 03 – A Estação Ferroviária (marcada com o ponto amarelo) na mancha urbana de Capitão de Campos ................................................................................................................... 18 Figura 04 – A implantação da estação de passageiros (marcada com o ponto azul) e das residências dos trabalhadores da RFFSA (marcadas com os pontos laranja)........................... 18 Figura 05 – A estação de passageiros em 2011 ........................................................................ 19 Figura 06 – A vila ferroviária em 2011 .................................................................................... 19 Figura 07 – O pórtico da Estação Euston, c. 1896 ................................................................... 35 Figura 08 – Vista lateral da maquete do Coal Exchange.......................................................... 35 Figura 09 – Transporte ferroviário por tração animal, anterior à locomotiva .......................... 87 Figura 10 – Transporte ferroviário por tração animal, anterior à locomotiva .......................... 87 Figura 11 – A Crown Street Railway Station, em gravura de 1833 ......................................... 90 Figura 12 – O interior da London Paddington Station,(construída em 1854 e retratada aqui em 1965) ilustrando as novas possibilidades formais e técnicas da arquitetura do ferro. Ambas deixam transparecer a busca por vencer grandes vãos na área de embarque ........................... 90 Figura 13 – Esquema de fluxo ideal para estações intermediárias ........................................... 91 Figura 14 – Principais esquemas de implantação adotados em estações intermediárias.......... 91 Figura 15 – Esquema de zoneamento ideal para estações terminais ........................................ 92 Figura 16 – Principais esquemas de implantação adotados em estações terminais.................. 92 Figura 17 – Esquemas de rotundas em formato circular, semicircular e em ferradura ............ 92 Figura 18 – Plantas de maisons de gardes................................................................................ 93 Figura 19 – Gare D’Orsay (1900), em Paris, projeto de Victor Laloux, Lucien Magne e Émile Bénard....................................................................................................................................... 94 Figura 20 – Paddington Station (1854), em Londres, projeto de Isambard Brunel e Matthew Wyatt ........................................................................................................................................ 94 Figura 21 – Gare Du Nord, em Paris, projeto de Jacques Hittorf............................................. 94 Figura 22 –Pequena estação construída no vale do Rio Reno, na primeira metade do século XIX, em forma de chalé ........................................................................................................... 94 Figura 23 – A Estação de Karlsplatz (1861-4), em Viena, projeto de Otto Wagner ................ 95 Figura 24 – A Estação Central de Stuttgart (1927), projeto de Bonatz e Scholer .................... 95 Figura 25 – A Estação Central de Helsinque (1904-1919), projeto de Eliel Saarinen ............. 95 Figura 26 – A Estação Santa Maria Novella em Florença (1934-1936), projeto de Giovanni Michelucci ................................................................................................................................ 96 Figura 27 – A Estação de Versailles-Chantiers (1931-1933), projeto de A. Ventre ................ 96 Figura 28 – A Estação Guia de Pacobaíba, a mais antiga do Brasil, em 2013 ......................... 99 Figura 29 – Trem no cais que funcionava como parte da estação, em foto sem data .............. 99

Figura 30 – A Estação de Floriópolis ..................................................................................... 102 Figura 31 – A Estação de União dos Palmares – AL, em 2005 ............................................. 103 Figura 32 – A Estação de Capanema – PA, em 1907 ............................................................. 103 Figura 33 – A Estação Matador, em Rio do Sul – SC nos anos 1930 .................................... 103 Figura 34 – A Estação de Cocal – PI, em 2016 ...................................................................... 103 Figura 35 – A Estação de Cruzeiro – SP em 1917 ................................................................. 104 Figura 36 – A Estação de Ipu – CE c. 2000 ........................................................................... 104 Figura 37 – A Estação Avenida, em Campos de Goitacazes – RJ ......................................... 104 Figura 38 – A Estação General Cordeiro, em Sabará – MG .................................................. 104 Figura 39 – A Estação de São João Del-Rei – MG ................................................................ 105 Figura 40 – A Estação da Luz (São Paulo – SP) .................................................................... 105 Figura 41 – A Estação de Mairinque – SP ............................................................................. 105 Figura 42 – A Estação Dom Pedro II ou Estação Central do Brasil (Rio de Janeiro – RJ).... 105 Figura 43 – A Estação de Teresina, que conta com espaços habitacionais no segundo e terceiro pavimentos................................................................................................................. 107 Figura 44 – A Casa do Agente, pertencente ao mesmo conjunto ........................................... 107 Figura 45 – O sistema ferroviário brasileiro em 1870 ............................................................ 110 Figura 46 – O sistema ferroviário brasileiro em 1890 ............................................................ 110 Figura 47 – O sistema ferroviário brasileiro em 1910 ............................................................ 110 Figura 48 – O sistema ferroviário brasileiro em 1930 ............................................................ 110 Figura 49 – O sistema ferroviário brasileiro em 1954 ............................................................ 111 Figura 50 – O sistema ferroviário brasileiro em 2016 ............................................................ 115 Figura 51 – Planta aproximada da estação de Parnaíba em 1959 ........................................... 120 Figura 52 – A estação de Piracuruca ...................................................................................... 121 Figura 53 – A estação de Parnaíba ......................................................................................... 121 Figura 54 – A estação de Cocal .............................................................................................. 121 Figura 55 – A estação de Luís Correia ................................................................................... 121 Figura 56 – A estação de Floriópolis ...................................................................................... 122 Figura 57 – A estação de Floriópolis ...................................................................................... 122 Figura 58 – A estação de Floriópolis ...................................................................................... 122 Figura 59 – A casa do agente próxima ................................................................................... 122 Figura 60 – A estação de Piripiri ............................................................................................ 123 Figura 61 – A estação de Capitão de Campos ........................................................................ 123 Figura 62 – A estação de Campos Maior ............................................................................... 123 Figura 63 – A estação de Altos............................................................................................... 123 Figura 64 – A estação de Teresina.......................................................................................... 124 Figura 65 – Os armazéns da estação....................................................................................... 124

Figura 66 – Vila ferroviária em Parnaíba ............................................................................... 125 Figura 67 – Vila ferroviária no povoado Miradouro, em Campo Maior – PI ........................ 125 Figura 68 – Toda a rede que a RFFSA instalou no estado e os municípios por onde passa .. 129 Figura 69 – Parte da malha em operação pela FTL, nos estados do Maranhão, Piauí e Ceará ................................................................................................................................................ 130 Figura 70 – Projeto da Transnordestina.................................................................................. 131 Figura 71 – A localização de Cincinnati (ponto vermelho) nos EUA .................................... 135 Figura 72 – Vista do Union Terminal com o jardim, o saguão de passageiros e as plataformas ................................................................................................................................................ 135 Figura 73 – Fachada do Cincinnati Union Terminal .............................................................. 137 Figura 74 – O interior da rotunda ........................................................................................... 137 Figura 75 – O interior do lounge das mulheres ...................................................................... 137 Figura 76 – Detalhes de dois mosaicos do saguão ................................................................. 137 Figura 77 – Detalhes de dois mosaicos do saguão ................................................................. 137 Figura 78 – O Duke Energy Children's Museum ................................................................... 140 Figura 79 – O Cincinnati Historical Museum ........................................................................ 140 Figura 80 – O Museum of Natural History & Science ........................................................... 140 Figura 81 – O cinema OMNIMAX ........................................................................................ 140 Figura 82 – O salão de jantar antes da restauração de 2009 ................................................... 140 Figura 83 – O salão após a restauração .................................................................................. 140 Figura 84 – Localização de Belo Horizonte (laranja) e Santos Dumont (vermelho) em Minas Gerais ...................................................................................................................................... 142 Figura 85 – A estação de Santos Dumont (então Palmyra) em 1930 ..................................... 142 Figura 86 – Edificações remanescentes .................................................................................. 143 Figura 87 – Diagnóstico dos usos da área do projeto e entorno, bem como setorização da intervenção.............................................................................................................................. 144 Figura 88 – Vista aérea da implantação da proposta .............................................................. 145 Figura 89 – Vista aérea da implantação da proposta ............................................................. 145 Figura 90 – Usos propostos da intervenção ............................................................................ 145 Figura 91 – Vista aérea da proposta para o edifício da estação .............................................. 146 Figura 92 – Vista aérea da proposta para o edifício da estação .............................................. 146 Figura 93 – Planta baixa do centro cultural ............................................................................ 146 Figura 94 – Corte AA, mostrando o centro cultural, gare e praças ........................................ 146 Figura 95 – Vista aérea da Praça dos Trilhos ......................................................................... 147 Figura 96 – Vista aérea da Praça Linear ................................................................................. 147 Figura 97 – Planta baixa da gare e das praças ........................................................................ 147 Figura 98 – Planta do Teatro de Arena ................................................................................... 148 Figura 99 – Vista do Teatro de Arena .................................................................................... 148

Figura 100 – Planta da porção norte da proposta ................................................................... 148 Figura 101 – Área externa do café e rampas .......................................................................... 149 Figura 102 – Praça Escalonada............................................................................................... 149 Figura 103 – Planta baixa do café/livraria .............................................................................. 149 Figura 104 – Corte BB ........................................................................................................... 149 Figura 105 – Fachada frontal .................................................................................................. 149 Figura 106 – Planta baixa do anexo........................................................................................ 150 Figura 107 – Corte DD ........................................................................................................... 150 Figura 108 – Vista da Praça da Estação ................................................................................. 150 Figura 109 – Localização do Parque Estação Cidadania em Teresina ................................... 151 Figura 110 – Sobreposição do traçado original de Teresina sobre o atual ............................. 152 Figura 111 – Pré-existências no conjunto ferroviário de Teresina antes da implantação do parque ..................................................................................................................................... 154 Figura 112 – Planta do parque ................................................................................................ 154 Figura 113 – Vista aérea do parque, como construído ........................................................... 156 Figura 114 – Vista da esplanada de entrada, com a estação ao fundo .................................... 156 Figura 115 – Arquibancada do anfiteatro ............................................................................... 156 Figura 116 – Vista da pista de skate ....................................................................................... 157 Figura 117 – Interior do Museu de Arte Santeira ................................................................... 157 Figura 118 – Vista da expografia do Museu, com emprego de trilhos ................................... 157 Figura 119 – Trilhos na entrada do Museu ............................................................................. 157 Figura 120 – Localização de Capitão de Campos no Piauí .................................................... 161 Figura 121 – Localização da mancha urbana, ferrovia e BR-343 no município de Capitão de Campos ................................................................................................................................... 161 Figura 122 – Contexto urbano do conjunto ferroviário de Capitão de Campos ..................... 164 Figura 123 – Edifícios de uso institucional de Capitão de Campos ....................................... 165 Figura 124 – Igreja matriz de Capitão de Campos ................................................................. 166 Figura 125 – Playground do adro da igreja ............................................................................ 166 Figura 126 – Prefeitura municipal .......................................................................................... 166 Figura 127 – Biblioteca municipal ......................................................................................... 166 Figura 128 – Ginásio poliesportivo ........................................................................................ 166 Figura 129 – Praça Acelino Resende...................................................................................... 166 Figura 130 – Casa de Fazenda da Dona Alemã ...................................................................... 167 Figura 131 – Casa de Fazenda da Dona Alemã ...................................................................... 167 Figura 132 – Casa de Fazenda da Dona Alemã ...................................................................... 167 Figura 133 – Casa de Fazenda da Dona Alemã ...................................................................... 167 Figura 134 – Usos do entorno imediato do conjunto ferroviário de Capitão de Campos ...... 168 Figura 135 – Delimitação do conjunto ferroviário de Capitão de Campos ............................ 170

Figura 136 – A estação de passageiros ................................................................................... 171 Figura 137 – A passagem em nível dos trilhos sobre a Rua José Fernandes ......................... 171 Figura 138 – A vila ferroviária ............................................................................................... 171 Figura 139 – A vila ferroviária ............................................................................................... 171 Figura 140 – Implantação do conjunto ferroviário de Capitão de Campos ............................ 174 Figura 141 – Implantação do conjunto ferroviário de Capitão de Campos ............................ 174 Figura 142 – Conjunto ferroviário de Capitão de Campos visto a partir do sul ..................... 174 Figura 143 – A fachada sul da estação ................................................................................... 175 Figura 144 – O dístico da fachada sul .................................................................................... 175 Figura 145 – A fachada oeste ................................................................................................. 175 Figura 146 – A fachada sul ..................................................................................................... 175 Figura 147 – As fachadas norte e oeste da estação................................................................. 176 Figura 148 – A marcação da altitude na fachada oeste .......................................................... 176 Figura 149 – A fachada sul da estação ................................................................................... 177 Figura 150 – Abertura central da fachada oeste ..................................................................... 177 Figura 151 – A cobertura da fachada oeste da estação ........................................................... 177 Figura 152 – Vista de uma das mãos-francesas do telhado .................................................... 177 Figura 153 – A plataforma da estação .................................................................................... 178 Figura 154 – A plataforma da estação .................................................................................... 178 Figura 155 – Planta baixa da estação...................................................................................... 179 Figura 156 – A casa do agente ............................................................................................... 180 Figura 157 – A casa do agente em 2008................................................................................. 181 Figura 158 – A casa do agente em 2016................................................................................. 181 Figura 159 – Casa da tipologia de guarda-chave e feitor, em 2008 ....................................... 182 Figura 160 – Planta baixa da casa .......................................................................................... 182 Figura 161 – Fachada da casa ................................................................................................. 182 Figura 162 – Casas de trabalhador em 2008........................................................................... 183 Figura 163 – Casas de trabalhador em 2016........................................................................... 183 Figura 164 – Fachada das casas de trabalhador...................................................................... 183 Figura 165 – Caixa d'água em 2008 ....................................................................................... 184 Figura 166 – Casa de bomba em 2008 ................................................................................... 184 Figura 167 – Estação de passageiros e anexo em 2008 .......................................................... 184 Figura 168 – Moirão remanescente da cerca da faixa de domínio da ferrovia....................... 185 Figura 169 – Placa de marcação quilométrica ........................................................................ 185 Figura 170 – Vila ferroviária de Parnaíba .............................................................................. 188 Figura 171 – Casa de agente da estação de Teresina.............................................................. 188 Figura 172 – Planta baixa da estação...................................................................................... 191

Figura 173 – Planta baixa da residência de tipologia de feitor/guarda-chave ........................ 192 Figura 174 – Foto do acréscimo ............................................................................................. 192 Figura 175 – O acréscimo nas residências de trabalhador...................................................... 193 Figura 176 – O acréscimo nas residências de trabalhador...................................................... 193 Figura 177 – Diferentes esquadrias observadas no conjunto ................................................. 193 Figura 178 – Diferentes esquadrias observadas no conjunto ................................................. 193 Figura 179 – Diferentes esquadrias observadas no conjunto ................................................. 193 Figura 180 – Diferentes esquadrias observadas no conjunto ................................................. 194 Figura 181 – Diferentes esquadrias observadas no conjunto ................................................. 194 Figura 182 – Diferentes esquadrias observadas no conjunto ................................................. 194 Figura 183 – Planta de cobertura da estação .......................................................................... 195 Figura 184 – Planta baixa da estação...................................................................................... 195 Figura 185 – Fachada oeste da estação................................................................................... 196 Figura 186 – Fachada norte da estação ................................................................................... 196 Figura 187 – Fachada frontal da casa de agente ..................................................................... 197 Figura 188 – Fachada lateral esquerda da casa de agente ...................................................... 197 Figura 189 – Fachada frontal da casa de feitor/guarda-chave ................................................ 197 Figura 190 – Fachada lateral esquerda da casa de feitor/guarda-chave ................................. 197 Figura 191 – Fachada frontal da casa de trabalhador ............................................................. 197 Figura 192 – Fachada lateral esquerda da casa de trabalhador............................................... 197 Figura 193 – Zoneamento da proposta ................................................................................... 200 Figura 194 – Deck em via férrea de Jerusalém ...................................................................... 201 Figura 195 – Proposta para a estação ..................................................................................... 202 Figura 196 – Proposta para a fachada oeste da estação .......................................................... 202 Figura 197 – Proposta para a fachada leste da estação ........................................................... 203 Figura 198 – Proposta para a fachada sul da estação ............................................................. 203 Figura 199 – Proposta para a fachada norte da estação .......................................................... 203

LISTA DE TABELAS Tabela 01 – Crescimento da malha ferroviária brasileira no primeiro século ........................ 109 Tabela 02 – Movimento da EFCP entre 1927 e junho de 1930 .............................................. 125 Tabela 03 – Dados estatísticos do Piauí, de Teresina e de Capitão de Campos ..................... 162 Tabela 04 – Bens materiais tombados a nível estadual no Piauí até 08/2016 ........................ 215 Tabela 05 – Bens do Piauí inscritos na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário até 15/12/2015 .............................................................................................................................. 217 Tabela 06 – Bens materiais tombados a nível federal no Piauí até 11/05/2016 ..................... 218

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ANTT – Agência Nacional de Transportes Terrestres BEC – Batalhão de Engenharia de Construção BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento BNDE – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico CAU/BR – Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil CFN – Companhia Ferroviária do Nordeste CMC – Cincinnati Museum Center CMTP – Companhia Metropolitana de Transporte Público CNVP – Companhia de Navegação a Vapor do Parnaíba COMEPI – Companhia Editorial do Piauí CONFEA – Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia; a partir de 31/12/2010, Conselho Federal de Engenharia e Agronomia CSN – Companhia Siderúrgica Nacional CTPF – Coordenação Técnica do Patrimônio Ferroviário DEPAM – Departamento de Patrimônio Material DNEF – Departamento Nacional de Estradas de Ferro DNER – Departamento Nacional de Estradas de Rodagem DNIT – Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra as Secas DPHAN – Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional EFCB – Estrada de Ferro Central do Brasil EFCP – Estrada de Ferro Central do Piauí EFMM – Estrada de Ferro Madeira Mamoré EFSLT – Estrada de Ferro São Luís-Teresina EUA – Estados Unidos da América FAGEPI – Fundação de Assistência Geral aos Desportos do Piauí FNpM – Fundação Nacional pró-Memória FTL – Ferrovia Transnordestina Logística FUNDAC – Fundação Cultural do Piauí FUNDEC – Fundação Estadual de Cultura e do Desporto do Piauí FUNDESPI – Fundação Estadual de Esportes do Piauí GESFRA – Grupo Executivo para Substituição de Ferrovias e Ramais Antieconômicos IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBPC – Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural

ICOMOS – International Council on Monuments and Sites IDH – Índice de Desenvolvimento Humano IFOCS – Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas INRC – Inventário Nacional de Referências Culturais IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional IPHAPI – Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Arqueológico do Piauí LBA – Livro do Tombo das Belas Artes LH – Livro do Tombo Histórico LPCF – Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário MEC – Ministério da Educação e Cultura; a partir de 1985, Ministério da Educação MES – Ministério da Educação e Saúde Pública MinC – Ministério da Cultura ONU – Organização das Nações Unidas PAC – Programa de Aceleração do Crescimento PCH – Programa Integrado de Reconstrução de Cidades Históricas PIB – Produto Interno Bruto PRESERFE – Setor de Preservação do Patrimônio Histórico Ferroviário RFFSA – Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima S&DR – Stockton & Darlington Railway SEC – Secretaria da Cultura do MEC SECULT – Secretaria de Estado de Cultura do Piauí SNV – Sistema Nacional de Viação SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; entre 1979 e 1990, Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional SPU – Secretaria do Patrimônio da União TFG – Trabalho Final de Graduação TICCIH – The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura VAB – Valor Adicionado Bruto VFFLB – Viação Férrea Federal Leste Brasileiro

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 17 2 REFERENCIAL TEÓRICO .............................................................................................. 25 2.1 ARQUITETURA, CIDADE E SÍTIO HISTÓRICO.......................................................... 25 2.2 DO MONUMENTO AO PATRIMÔNIO CULTURAL .................................................... 30 2.3 AS TEORIAS E INICIATIVAS DE PRESERVAÇÃO .................................................... 38 2.4 AS CARTAS PATRIMONIAIS ......................................................................................... 49 3 A PRÁTICA PRESERVACIONISTA ............................................................................... 57 3.1 A PRESERVAÇÃO NO BRASIL ..................................................................................... 57 3.2 A PRESERVAÇÃO NO PIAUÍ ......................................................................................... 76 4 HISTÓRIA E ARQUITETURA DA FERROVIA ........................................................... 86 4.1 A FERROVIA NO MUNDO ............................................................................................. 86 4.2 A FERROVIA NO BRASIL .............................................................................................. 97 4.3 A FERROVIA NO PIAUÍ ................................................................................................ 116 5 A FERROVIA EM CAPITÃO DE CAMPOS ................................................................ 132 6 ESTUDO DE CASOS SEMELHANTES ........................................................................ 134 6.1 CINCINNATI UNION TERMINAL (OHIO, EUA) ....................................................... 135 6.2 COMPLEXO CULTURAL E MEMORIAL FERROVIÁRIO DE SANTOS DUMONT (MG) ....................................................................................................................................... 141 6.3 PARQUE ESTAÇÃO CIDADANIA (TERESINA, PI) .................................................. 151 7 DIRETRIZES PARA PRESERVAÇÃO INTEGRADA ............................................... 159 7.1 IDENTIFICAÇÃO, CONHECIMENTO E DIAGNÓSTICO ......................................... 160 7.1.1 Localização ................................................................................................................... 161 7.1.1.1 Contexto Municipal .................................................................................................... 161 7.1.1.2 Área do conjunto ........................................................................................................ 169 7.1.2 Levantamento arquitetônico....................................................................................... 172 7.1.3 Contexto histórico ........................................................................................................ 172 7.1.4 Análise tipológica ......................................................................................................... 173 7.1.5 Análise dos valores e significação ............................................................................... 186 7.1.6 Modificações e situação atual ..................................................................................... 191 7.1.7 Mapeamento de danos ................................................................................................. 194 7.1.8 Legislação incidente..................................................................................................... 197 7.2 DIRETRIZES PARA PRESERVAÇÃO INTEGRADA ................................................. 198 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 205 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 207 APÊNDICE A – BENS PROTEGIDOS NO PIAUÍ .......................................................... 215 APÊNDICE B – LEVANTAMENTO ARQUITETÔNICO DO CONJUNTO............... 219

APÊNDICE C – DIAGNÓSTICO E MAPEAMENTO DE DANOS .............................. 223 APÊNDICE D – DIRETRIZES PARA PRESERVAÇÃO INTEGRADA ...................... 227

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho, apresentado ao curso de Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais Professor Camillo Filho como requisito para obtenção do grau de Arquiteto e Urbanista, trata da preservação do Patrimônio Cultural, que engloba diversos bens imateriais e materiais móveis e imóveis que possuem valor cultural para determinado agrupamento de pessoas, ainda que, por vezes, este não seja (re)conhecido pela população que convive cotidianamente com ele. Dentre as diversas categorias de patrimônio cultural, o século XX viu surgir um debate mais aprofundado sobre o Patrimônio Industrial, que engloba todos os bens referentes aos processos produtivos, coleta e produção de matéria-prima, geração de energia, transporte, alojamento e áreas de convívio de trabalhadores, entre outros. Uma vez que esta definição é ampla e as atividades produtivas são tão antigas quanto a sedentarização da humanidade, costuma-se estabelecer um recorte temporal na caracterização deste patrimônio, de modo a incluir apenas bens dos últimos três séculos, posteriores ao que se convencionou denominar de Revolução Industrial. Especificamente, o tema tratado é uma subcategoria do Patrimônio Industrial: o Patrimônio Ferroviário, composto por todos os bens relacionados a este meio de transporte. Ele tem papel central para as discussões e ações de preservação do Patrimônio Industrial desde o início, uma vez que o surgimento da ferrovia é contemporâneo ao da indústria moderna, da qual se tornou importante símbolo. O trabalho tem por objeto o conjunto ferroviário existente em Capitão de Campos, município piauiense localizado a 118,5km a nordeste da capital Teresina. Este é parte da Estrada de Ferro Central do Piauí (EFCP), que operou entre Teresina e o litoral de 1920 a meados dos anos 1980. As Figuras 01 e 02 a seguir apresentam a localização da linha e do conjunto no contexto do Piauí.

18 Figuras 01 e 02 – Mapa do Brasil, com o Piauí destacado; Mapa do Piauí, com o percurso da EFCP, as principais cidades por onde a linha passou e a cidade de Capitão de Campos destacada.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, 2016.

A EFCP foi construída a partir do litoral, tendo seu início na cidade de Parnaíba, cuja estação sede foi inaugurada em 1920. O trecho entre Piripiri e Campo Maior, do qual Capitão de Campos faz parte, foi construído pelo exército e inaugurado em 1961 (VIEIRA, 2010). O conjunto está localizado numa área afastada do centro da cidade, a noroeste deste, e é constituído pelo edifício da estação de passageiros propriamente dita, uma caixa d'água, uma casa de bomba e cinco residências de trabalhadores da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA), empresa estatal que operou a linha a partir de 1957. Neste trecho, os trilhos estão orientados de sudoeste a nordeste e passam entre a estação e as residências (Figuras 03 a 06). Figuras 03 e 04 – A Estação Ferroviária (marcada com o ponto amarelo) na mancha urbana de Capitão de Campos; a implantação da estação de passageiros (marcada com o ponto azul) e das residências dos trabalhadores da RFFSA (marcadas com os pontos laranja).

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, com imagens do Google Earth, 2016.

19 Figuras 05 e 06 - A estação de passageiros; a vila ferroviária.

Fonte: Acervo de Frederico Castelo Branco, 2016.

A locomotiva a vapor foi criada na Inglaterra no início do século XIX, em meio à Revolução Industrial, e utilizada inicialmente para o transporte de carvão. Pouco tempo depois, na década de 1820, demonstrou-se sua viabilidade técnica e econômica também para o transporte de passageiros e outros tipos de carga e, a partir daí, esse novo modal de transporte expandiu-se por diversos outros países, frequentemente através do financiamento de capital inglês (HOBSBAWM, 2007). A novidade chegou ao Brasil através do Visconde de Mauá, que foi responsável pela construção do primeiro trecho no país, inaugurado na década de 1850. Nas décadas seguintes, diversos projetos foram elaborados para interligar as várias regiões do país através do trem (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 1954). O Piauí, estado situado na região nordeste, teve sua colonização centrada na pecuária como principal atividade econômica e impulsionadora da ocupação do território, a partir do século XVII. Os rebanhos do estado abasteceram principalmente os engenhos de açúcar e, a partir do século seguinte, também as áreas mineradoras mais ao sul durante o ciclo do ouro. O Rio Parnaíba, fronteira oeste do estado, era uma via de ligação importante entre diversos núcleos de ocupação da sua bacia. Após estes primeiros séculos, em que o gado era deslocado a pé até os locais de venda, na segunda metade do século XVIII a indústria do charque passou a tomar vulto na região da atual cidade de Parnaíba, onde era embarcado no porto fluvial para as regiões consumidoras (SOUSA, 2008). Mudanças nas condições climáticas e econômicas contribuíram para que a atividade pecuária entrasse em declínio e, na segunda metade do século XIX, o extrativismo vegetal assumiu importância crescente até se estabelecer como principal fonte de renda do estado. Nos primeiros anos do século XX, a região norte do Piauí e a cidade de Parnaíba em particular cresceu impulsionada pelas exportações desses produtos através do porto fluvial

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daquela cidade (SOUSA, 2008). O Rio Parnaíba apresentava então condições desfavoráveis para navegação, por causa da estiagem e do assoreamento; assim, os comerciantes da região passaram a reivindicar do governo a construção de uma ferrovia que ligasse a capital ao litoral, servindo as áreas extrativistas, e também de um porto marítimo na cidade de Amarração, atual Luís Correia. Enquanto o porto nunca foi concluído, a ferrovia foi implantada, tendo a construção sido iniciada nos anos 1910 no litoral e a linha sido expandida gradualmente para o sul em quatro etapas, até chegar a Teresina em 1969. O conjunto de Capitão de Campos foi construído na terceira, entre Piripiri e Campo Maior, pelo 2º Batalhão de Engenharia de Construção do Exército (2º BEC) (VIEIRA, 2009). O declínio simultâneo das exportações piauienses e do transporte ferroviário em geral no Brasil, que perdeu relevância em favor das rodovias a partir das primeiras décadas do século XX, eventualmente levou ao fim da operação da linha na década de 1980 e à extinção definitiva da RFFSA em 2007 (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRIO E ARTÍSTICO NACIONAL, 2010; VIEIRA, 2010). A Lei nº 11.483/2007, que trata da extinção da Rede, define que o patrimônio da empresa seja transferido à União, ficando os bens operacionais sob responsabilidade do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e os não operacionais sob a da Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) cabe avaliar e definir quais bens possuem significação cultural relevante, que passam então à sua responsabilidade. No Piauí, os conjuntos ferroviários tiveram destinos variados: o de Parnaíba foi cedido ao governo local e passou a abrigar diversos órgãos da administração pública; a estação de Piracuruca foi restaurada pelo IPHAN e cedida à Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE); a de Brasileira continua abandonada, em ruínas; o conjunto de Capitão de Campos está ocupado irregularmente e usado para moradia. Apesar do fim das operações da linha e da extinção da RFFSA, o acervo arquitetônico construído permanece como testemunha do trabalho a ele relacionado, do período de desenvolvimento do qual fez parte e das consequências sociais e espaciais do trem. É, portanto, importante patrimônio cultural a ser reconhecido, fruído e preservado. A problematização aqui colocada tem dimensão teórica e prática. No aspecto teórico, trata-se de estudar o patrimônio ferroviário piauiense, dentro do seu contexto urbano e econômico e de um recorte espaço-temporal específico, como conjunto de objetos portadores de valores culturais (ainda que não reconhecidos e apropriados na plenitude desse sentido pela população que com eles convive cotidianamente), componentes de uma paisagem característica e representativos de um momento relevante da história do estado. Já no âmbito

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prático, busca-se pensar medidas que objetivem seu conhecimento, apropriação e, por fim, sua preservação integrada ao planejamento urbano, lançando mão de todo o ferramental teórico e prático desenvolvido ao longo da graduação em Arquitetura e Urbanismo. O objetivo geral deste trabalho é propor diretrizes para a preservação integrada do Conjunto Ferroviário de Capitão de Campos - PI, que orientem seu uso e sua relação nos contextos urbano e socioeconômico do município. Para tanto, realizou-se levantamentos históricos, métricos, fotográficos, de legislação e de patologias dos bens estudados; produziu-se registros fotográficos e gráficos das edificações; pesquisou-se a história e a significação das edificações para sua a comunidade envolvente, através de depoimentos de pessoas da comunidade; estudou-se casos semelhantes de bens patrimoniais ferroviários que sofreram intervenção, no Brasil, no mundo e no Piauí; e estudou-se a realidade do município, através do mapeamento dos edifícios institucionais, da análise de dados do IBGE, da observação da paisagem e do conhecimento das atividades desenvolvidas pela população nos espaços públicos. A análise integrada de todos esses aspectos, à luz do referencial teórico estudado, formou o fundamento das diretrizes propostas. O patrimônio industrial, do qual a infraestrutura de transporte é parte integrante, é uma categoria recente, mas relevante de patrimônio cultural. Os bens patrimoniais da industrialização são vestígios da cultural industrial e carregam o testemunho de atividades que têm profundas consequências históricas, característica que justifica, por si só, sua preservação (THE

INTERNATIONAL

COMITTEE

FOR

THE

CONSERVATION

OF

THE

INDUSTRIAL HERITAGE, 2003). A ferrovia teve influência significativa na vida da população dos lugares por onde passou, nos aspectos econômico, social e cultural, sendo, assim elemento importante na paisagem cultural das cidades em que foi implantada. Além disso, é também testemunha do ciclo econômico do extrativismo no Piauí e símbolo de um importante período de desenvolvimento do estado. A questão ferroviária piauiense tem sido objeto de diversos trabalhos acadêmicos, mas o tema carece de estudos feitos na perspectiva da análise da sua arquitetura e da preservação como patrimônio cultural. Assim, este trabalho é relevante por preencher essa lacuna no Piauí, tratando do tema por um viés ainda pouco explorado, elaborando uma proposta de intervenção compatível e exequível e fornecendo subsídios para futuras iniciativas do tipo. A pesquisa é importante também por propor-se a documentar a arquitetura e o estado atual de conservação de edificações de importância e valor histórico e arquitetônico e a reconhecer sua significação para as paisagens culturais que compõem, na perspectiva da sua preservação, atividade que foi realizada apenas parcialmente pelo IPHAN em 2008. Tal

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procedimento é um dos instrumentos recomendados pelo The International Comittee for the Conservation of the Industrial Heritage (TICCIH), primeira organização de proteção do patrimônio industrial do mundo, para conservação destes bens, devendo ser realizado antes de qualquer proposta de intervenção. Contribuir-se-á, ainda, para a discussão sobre as consequências da descontinuação do uso de bens patrimoniais e sobre as possibilidades de uso continuado compatíveis com a preservação de bens industriais. Diretrizes para preservação integrada de sítios históricos urbanos como as ora propostas têm grandes potencialidades. Ao promover o reconhecimento e a preservação desses bens, resgata-se seu potencial pedagógico, cultural e econômico, inclusive através do turismo cultural e do incentivo à economia solidária. Tais medidas podem contribuir significativamente para a qualidade de vida da população envolvente e para o desenvolvimento das regiões que as recebem. A metodologia adotada para fundamentar a proposta foi aquela prescrita pelo restauro crítico, que parte da análise crítica. Num primeiro momento, solicitou-se ao IPHAN todo o material existente sobre as edificações em estudo. O Inventário de Conhecimento recebido contém mapa geral da rede estadual e das linhas individualmente, fichas índice (contendo fotos, descrições, endereço, proprietário, avaliações do estado de conservação e nível de preservação, indicação da presença de bens móveis integrados, formação de conjunto, tipologia arquitetônica, coordenadas geográficas, interesse local na utilização, presença de valor cultural e vigilância, usos original e atual, proteção existente e proposta, data e técnico responsável), fichas de levantamento em campo, levantamento fotográfico (fotografias e descrições), levantamento físico-arquitetônico, Relatório Técnico sobre a linha e Relatório Síntese sobre a malha ferroviária do estado. De posse do material recebido pelo Instituto, fez-se uma pesquisa bibliográfica a respeito da trajetória desses bens ao longo da história e visitas ao local para reconhecimento do espaço, da condição material atual das edificações e compreensão da realidade social na qual elas estão inseridas. Foram contatadas algumas pessoas do município, que ofereceram informações e olhares pertinentes para isso. À luz dos conceitos expostos no Referencial Teórico, realizou-se então a análise e reconhecimento do objeto da intervenção e o estudo de casos semelhantes, tratando de exemplos significativos de bens patrimoniais ferroviários que passaram por intervenções, a níveis internacional, nacional e estadual. Passou-se ao conhecimento e diagnóstico do conjunto ferroviário de Capitão de Campos, em que se identificou os valores culturais e significações que carrega, os contextos

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urbano e econômico em que está inserido e as possíveis demandas da comunidade para o espaço. Juntamente com os conceitos atuais de intervenções no patrimônio arquitetônico, estas reflexões foram utilizadas então para fundamentar as diretrizes propriamente dita. O trabalho está estruturado na forma das seguintes partes: 1 Introdução, com os elementos norteadores e definições do objeto, problemática, objetivos, metodologia, entre outros; 2 Referencial Teórico, em que se estuda todo o arcabouço conceitual sobre arquitetura, cidade, patrimônio e preservação de que foi necessário lançar mão para o desenvolvimento da análise do objeto e das diretrizes propostas; 3 A Prática Preservacionista, em que se estuda as teorias e práticas envolvidas na preservação patrimonial a níveis internacional, nacional e estadual; 4 História e Arquitetura da Ferrovia, que trata de toda a trajetória desse modal de transporte, desde sua gênese até seu declínio, passando pela implantação no Brasil e no Piauí e abordando as perspectivas para seu futuro; 5 A Ferrovia em Capitão de Campos, que identifica e analisa a história e os bens patrimoniais específicos aqui trabalhados; 6 Estudo de Casos Semelhantes, que, como o nome indica, traz casos de bens patrimoniais ferroviários que sofreram intervenção e cuja análise é relevante para a proposta por oferecer perspectivas e avaliações a posteriori de iniciativas adotadas; 7 Diretrizes para Preservação Integrada, em que se apresenta levantamentos e análises aprofundadas dos bens trabalhados, sob ampla gama de aspectos e, a seguir, as diretrizes para a preservação integrada do conjunto, desenvolvidas com base nesses elementos; 8 Considerações Finais, em que se tece comentários sobre o processo do trabalho e se arremata os resultados alcançados; as Referências utilizadas no desenvolvimento do trabalho; e os Apêndices, que contêm todo o material gráfico produzido ao longo do trabalho. Espera-se ampliar o corpus de conhecimento existente sobre o patrimônio ferroviário piauiense, no contexto da região do médio e baixo Parnaíba e da cidade de Capitão de Campos em particular. Pesquisas como esta contribuem diretamente para a preservação dos bens, por promover o (re)conhecimento deles e de seus valores culturais, além de oferecer subsídios para a adoção de políticas urbanas que levem à salvaguarda do patrimônio cultural edificado ao mesmo tempo em que geram emprego e renda, aumentando a qualidade de vida da população, numa perspectiva de preservação integrada ao planejamento urbano. Colaborase também com o conjunto dos estudos sobre arquitetura piauiense ao constituir-se como fonte para outros estudantes, profissionais e pesquisadores. O conhecimento sobre a História da Arquitetura e sobre a trajetória e valores culturais de bens patrimoniais representativos é requisito fundamental para a compreensão da realidade sociocultural em que sua comunidade envolvente está inserida. Esse entendimento é

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imprescindível para um fazer projetual que contemple as expectativas da população, satisfazendo suas necessidades de ordens prática e simbólica e conservando a identidade desses bens. O conhecimento do passado dá às pessoas a possibilidade de entender os processos que deram origem às situações do presente, fundamentando a ação sobre este.

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2 REFERENCIAL TEÓRICO

Este tópico apresenta os conceitos e definições de termos que foram importantes para a execução do trabalho e são fundamentais para sua compreensão. Inicia-se com as ideias de arquitetura, cidade e sítio histórico, que são as peças fundamentais em torno das quais as demais ideias se articulam; discute-se então a trajetória dos termos envolvidos na ideia de patrimônio, do monumento da antiguidade até o patrimônio cultural contemporâneo; em seguida, apresenta-se um panorama das teorias e iniciativas de preservação do patrimônio, com ênfase no chamado restauro crítico, adotado atualmente; traça-se então um quadro geral sobre o patrimônio industrial, do qual o ferroviário faz parte; por último, apresenta-se as cartas patrimoniais mais pertinentes a esta intervenção, que são documentos de referência para pesquisadores e profissionais do patrimônio, elaborados por eles em encontros. Objetiva-se, com isso, esclarecer as posturas norteadoras do trabalho e, ao mesmo tempo, fornecer subsídios para a compreensão das ações empreendidas ao longo das fases de pesquisa, análise e projeto de intervenção.

2.1 ARQUITETURA, CIDADE E SÍTIO HISTÓRICO

Trata-se, neste trabalho, de um tipo específico de objeto patrimonial: o objeto arquitetônico, a edificação, que constitui peça fundamental na formação da cidade, habitat artificial do homem. Desta forma, é necessário conceituar estes termos em primeiro lugar. Ao longo dos séculos de historiografia da arquitetura, muitas foram as definições e conceitos oferecidos para caracterizá-la, muito antes do seu estabelecimento como disciplina autônoma, diferente da simples construção. O tratado mais antigo sobre o tema que chegou até os tempos atuais, escrito por Vitrúvio no século I A.C., afirma que a arquitetura deve apresentar três qualidades fundamentais: firmitas, utilitas e venustas, ou solidez (estabilidade), utilidade (funcionalidade) e beleza. Chamados de Tríade Vitruviana, esses princípios têm permeado grande parte do pensamento sobre arquitetura desde então. Escrevendo no Brasil no século XX, Carlos Lemos dialoga com Vitrúvio ao definir arquitetura como uma intervenção no meio ambiente que cria novos espaços para atender a necessidades imediatas ou expectativas futuras. A característica principal dessa intervenção é o chamado partido arquitetônico, o resultado físico da intervenção proposta pelo arquiteto, que responde a diversos condicionantes e manifesta sua intenção plástica naquela criação (LEMOS, 2003).

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Na presença da intenção plástica é óbvia a constatação da existência de um componente cultural na arquitetura, pois ela é inerente ao seu status de arte. Esse componente se faz presente também nos próprios condicionantes a que essa intenção responderá, de ordem técnica, climática, física, topográfica, programática, financeira e legal, que contribuem, a seu modo, para direcionar o resultado final. Os dois mais importantes e que têm componente cultural mais expressivo são a técnica construtiva, que depende dos materiais, técnicas e conhecimentos disponíveis, e o programa de necessidades, uma vez que a relação entre os usos e a forma de um edifício é clara e as necessidades de utilização são um dado cultural. Essas necessidades transformam-se com o tempo e a satisfação delas pela edificação é um fator que contribui largamente para sua preservação, sendo as novas destinações a edificações antigas como um desafio importante de arquitetura. Da mesma forma, fluxos migratórios podem trazer populações que dominam novas técnicas construtivas, mudanças econômicas podem baratear novos materiais e a legislação urbana induz transformações significativas no corpo edificado e no tecido da cidade. Os condicionantes do partido arquitetônico, portanto, relacionam-se todos entre si (LEMOS, 2003). Quando o ser humano se sedentarizou e passou a viver em sociedades fixas no espaço, suas casas e demais construções necessárias à vida pública passaram a ser agenciadas em conjunto, dando origem a um habitat artificial, a cidade. Esta é mais do que a simples justaposição de edifícios, pois esses agenciamentos são derivados das relações travadas ali e as deixam transparecer de alguma forma. Assim, o arquiteto italiano Aldo Rossi entende [...] a arquitetura em sentido positivo, como uma criação inseparável da vida civil e da sociedade em que se manifesta; ela é, por natureza, coletiva. Do mesmo modo que os primeiros homens construíram habitações e na sua primeira construção tendiam a realizar um ambiente mais favorável à sua vida, a construir um clima artificial, também construíram de acordo com uma intencionalidade estética. Iniciaram a arquitetura ao mesmo tempo que os primeiros esboços das cidades; a arquitetura é, assim, inseparável da formação da civilização e é um fato permanente, universal e necessário (ROSSI, 2001, p. 1).

Fica claro nessa passagem que, assim como para Calos Lemos, para Rossi a arquitetura também tem um componente cultural importante, presente tanto na forma das edificações quanto nas articulações entre elas. A intencionalidade estética, característica sempre presente na arquitetura e da qual deriva a forma, modifica-se ao longo do tempo e, enquanto cresce, a cidade “adquire consciência e memória de si mesma” (ROSSI, 2001, p. 2), ao mesmo tempo explicitando e transformando os motivos do seu desenvolvimento. Como ambiente artificial mais favorável à vida, “a arquitetura é a cena fixa das vicissitudes do homem, carregada de sentimentos de gerações, de acontecimentos públicos, de tragédias privadas, de fatos novos e antigos” (ROSSI, 2001, p. 3). O tecido urbano é mais do que a

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simples justaposição de edificações, pela intencionalidade de sua origem e pelas inter-relações entre a vida e as atividades ali desenvolvidas e sua forma, seu desenvolvimento; nela, sociedade e indivíduo contrapõem-se e se confundem na busca pelo ambiente adequado nos dois âmbitos. Assim, entende-se o caso específico de Capitão de Campos à luz do pensamento de Rossi, ressaltando que as relações sociais que se desenvolveram naquele espaço ao longo do tempo têm profunda relação com a forma urbana. O autor destaca ainda o problema político da cidade, que é “[...] um problema de escolha, pela qual a cidade se realiza através de sua própria ideia de cidade” (ROSSI, 2001, p. 5). A condição física da cidade desenvolve-se em contínua relação com a ideia de cidade ideal e com as utopias urbanas, que não são únicas e colocam-se em embates políticos nos espaços de decisão que determinarão a direção do desenvolvimento das cidades. Outro autor italiano, Leonardo Benevolo, dialoga com a teoria de Rossi em diversos aspectos. Segundo sua obra, a palavra cidade tem dois significados: “uma organização da sociedade concentrada e integrada, que começa há cinco mil anos no Oriente Próximo e que então se identifica com a sociedade civil; ou para indicar a situação física desta sociedade” (BENEVOLO, 2001, p. 13). Existe uma correspondência entre esses dois aspectos; a forma física da cidade é frequentemente mais durável do que a própria sociedade e contém várias informações sobre esta, algumas das quais só podem ser conhecidas através do ambiente construído. As características formais da arquitetura em particular e da cidade em geral constituem, assim, importante objeto de estudos e documento histórico relevante, por guardar valiosas informações sobre as sociedades que as produziram e sobre o momento histórico de sua concepção. Um estudo que correlacione as duas, forma e sociedade, é frequente quando se trata da cidade medieval, em que sua forma física corresponderia à forma política da cidadeestado. Porém, às vezes o tecido urbano antecipa estruturas sociais, como em Pisa, na qual os monumentos do Campo dos Milagres (catedral, batistério e cemitério) foram erguidos na expectativa de uma expansão para o norte que nunca ocorreu (BENEVOLO, 2001). A correspondência incondicional entre as duas dimensões da cidade só funciona em “[...] épocas felizes, onde existe uma medida comum entre as duas realidades e um sistema de instituições que estabiliza tanto uma como a outra” (BENEVOLO, 2001, p. 17). As duas interpretações tradicionais dessa correspondência são a empírica, que trata a cidade como um conjunto de artefatos dispostos sobre o espaço pré-existente, e a cultural, que parte da organização prefixada dos setores da sociedade e considera que a forma urbana é uma projeção externa desses setores. Esta última seria a abordagem preferida pelas instituições,

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uma vez que a classificação física dos setores das sociedades históricas são cristalizações dos setores da sociedade contemporânea à análise. A exceção a essa tendência é a História da Arte, cujos estudos por esse viés são exceções e, frequentemente, recorrem à arqueologia (BENEVOLO, 2001). Por fim, o autor considera que A cidade pode ser estudada como um objeto normal da investigação histórica, nem privilegiado nem ligado de modo especial ao chamado espírito de uma época. Como uma construção histórica variável no tempo, às vezes em uníssono com outros fatos, às vezes em antecipação, outras vezes em atraso, segundo modalidades sempre variáveis (BENEVOLO, 2001, p. 28).

Dessa forma, Benevolo evita falhas e simplificações ao reconhecer a historicidade da própria relação entre cidade e sociedade, ao mesmo tempo em que reafirma o caráter de objeto histórico da primeira, com potencial para carregar importantes testemunhos e informações a respeito desta última. Reafirma-se assim que a cidade e a arquitetura são documentos históricos de fundamental importância e cujo estudo pode revelar informações valiosas sobre a sociedade que as criaram; é importante, porém, identificar se os fatos urbanos aconteceram em antecipação, uníssono ou como resposta a determinadas estruturas sociais de que se está tratando. A presente pesquisa considera, portanto, que o estudo da arquitetura das estações, das casas, armazéns e demais edificações da ferrovia, no caso específico de Capitão de Campos, permite conhecer diversos aspectos da história da cidade e da sociedade que ali vive. O Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS, na sigla em inglês) foi fundado em 1964 e atua junto à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, também na sigla em inglês) como consultor em questões relacionadas ao patrimônio material. Em 1987, a entidade adotou em assembleia geral a Carta de Washington, que afirma que “[...] todas as cidades do mundo são expressões materiais da diversidade das sociedades através da história e são todas, por essa razão, históricas” (INTERNATIONAL COUNCIL ON MONUMENTS AND SITES [ICOMOS], 1987, p. 1). Seus bairros e centros históricos são considerados documentos e expressões dos valores das sociedades urbanas tradicionais, devendo ser preservados, conservados, restaurados e ter um desenvolvimento coerente e uma adaptação harmoniosa com a vida contemporânea (ICOMOS, 1987). Tal postura é perfeitamente alinhada ao pensamento dos três teóricos apresentados até aqui, deixando claro o valor cultural e histórico das cidades. Ao longo do processo de crescimento e transformação pelo qual a cidade passa na sua trajetória, seus diferentes momentos de desenvolvimento vão ficando marcados na sua forma, legíveis em sua arquitetura. O lugar da primeira ocupação, que guarda registros importantes

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sobre o surgimento dos povoamentos, é chamado de sítio histórico. Nas cidades brasileiras mais antigas, fundadas ainda no período colonial, ele é facilmente reconhecível: é aquele espaço em que estão presentes a praça, a igreja matriz e a casa de câmara e cadeira. Por vezes, há grandes conjuntos arquitetônicos expressivos no seu entorno, representativos da arquitetura trazida pelos colonizadores ou, quando sua ocupação foi posterior, já com elementos ecléticos mesclados à arquitetura tradicional. Independente de qual seja a forma específica que suas fachadas apresentem, o sítio histórico urbano é documento importante dos momentos anteriores da cidade. A cidade de Capitão de Campos não apresenta um sítio histórico urbano formalmente reconhecível; sua edificação mais antiga, a Casa de Fazenda da Dona Alemã, encontra-se completamente inserida no tecido urbano e cercada por outras edificações menos expressivas, que não carregam o mesmo valor histórico. Edificada no século XIX, é um exemplo característico da arquitetura rural piauiense e carrega o testemunho da fundação da cidade, uma vez que está relacionada ao surgimento do povoado que primeiro surgiu ali. No entanto, é testemunha histórica solitária, pois o conjunto da Estação Ferroviária está afastado, já em área de mancha urbana bem menos densa. Frisa-se, porém, a possibilidade de se agenciar esses testemunhos históricos numa intervenção que propicie a requalificação da área ao mesmo tempo em que preserve e evidencie os valores culturais desses bens, promovendo o conhecimento da população sobre eles para que possam cumprir esse papel de guardar a memória do município. Elaborada também no ano de 1987, a Carta de Petrópolis compreende a cidade enquanto expressão cultural, socialmente fabricada. Adotando posicionamento que dialoga com aquele presente na Carta de Washington, o documento apresenta a seguinte definição para o sítio histórico urbano: Entende-se como sítio histórico urbano o espaço que concentra testemunhos do fazer cultural da cidade em suas diversas manifestações. Esse sítio histórico urbano deve ser entendido em seu sentido operacional de área crítica, e não por oposição a espaços não-históricos da cidade, já que toda cidade é um organismo histórico (SEMINÁRIO BRASILEIRO PARA PRESERVAÇÃO E REVITALIZAÇÃO DE CENTROS HISTÓRICOS, 1987, p. 1).

O contexto do sítio histórico urbano (SHU) inclui “[...] as paisagens natural e construída, assim como a vivência de seus habitantes num espaço de valores produzidos no passado e no presente, em processo dinâmico de transformação [...]” (SEMINÁRIO BRASILEIRO

PARA

PRESERVAÇÃO

E

REVITALIZAÇÃO

DE

CENTROS

HISTÓRICOS, 1987, p. 1). Todo novo espaço deve ser acrescido ao SHU tendo essa dimensão em mente e considerando as novas intervenções como testemunhos ambientais em

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formação. Por sua dimensão de portador de valores socioculturais, só se justifica qualquer destruição do espaço quando há o completo esgotamento de todo o seu potencial. O trabalho considera que, mesmo com as especificidades de Capitão de Campos, seu sítio ferroviário constitui um espaço notável na cidade, por ser representativo de um momento particular em que ocorriam processos importantes para a história da região e do estado como um todo. Espera-se compreender sua significação e contribuir para seu reconhecimento e apropriação através do seu estudo aprofundado. Ao longo da história da ocupação de determinado lugar, a arquitetura, em sua estreita relação com as dinâmicas sociais e demais condições da sociedade, produz edifícios e espaços livres que são, ao mesmo tempo, uma resposta a esses condicionantes e um testemunho destes. Por essa razão, as edificações e o tecido urbano como um todo são suporte para diversos significados e carregam importantes testemunhos acerca da vida das pessoas que os construíram e que ali habitaram em todas as épocas. Além desse componente histórico, a relação continuada que a população mantém com os espaços é permeada pela cultura. Esses dois fatores, apesar de não serem os únicos, evidenciam o fato de que a arquitetura é importante componente do patrimônio cultural de uma sociedade.

2.2 DO MONUMENTO AO PATRIMÔNIO CULTURAL

A ideia atual de patrimônio cultural é recente, tendo surgido apenas na segunda metade do século XX. Até sua adoção, a historiografia e as iniciativas de preservação trataram de diversos outros conceitos: os monumentos, os monumentos históricos, o patrimônio (por vezes denominado patrimônio histórico e artístico) e, enfim, o patrimônio cultural. O presente subitem faz um histórico dessas denominações. A palavra patrimônio tem origem na Roma antiga, quando patrimonium designava as posses do aristocrata pai de família transmissíveis a seus herdeiros. Naquela época, porém, não existia o conceito de patrimônio como é entendido hoje. O que havia era o monumento, palavra derivada do verbo latino monere, que significa “fazer recordar” ou “instruir”. De fato, os monumentos eram objetos ou edificações erguidas deliberadamente para a rememoração celebrativa de feitos ou acontecimentos. São obras de caráter emotivo, por trabalharem e mobilizarem a memória através da emoção, e cumprem o papel de preservar a identidade de uma sociedade (CHOAY, 2006; FONSECA, 2009; FUNARI; PELEGRINI, 2006). No Renascimento, iniciado na Itália no século XV, a Arte e a História se estabeleceram como disciplinas autônomas. O monumento deixou de ser o objeto memorial

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por excelência, com a difusão de outras formas de registro e memórias artificiais, e a beleza ganhou importância crescente, adquirindo estatuto próprio, não mais restrita à perfeita execução e ao ornamento do monumento. Surgiu nessa época a percepção da alteridade das sociedades, a redescoberta das antiguidades na perspectiva de “documentar para conhecer, admirar e suplantar” a arte antiga e o projeto inédito de estudar e conservar um edifício apenas por ser testemunho histórico e/ou obra de arte. Os olhares convergentes do esteta e do historiador passaram a selecionar, entre um número pré-existente de objetos, aqueles que receberão o status de monumentos históricos. Esta nova categoria difere do monumento pelo seu caráter não-intencional, seu valor atribuído a posteriori e a relação que mantém com o tempo, a memória e o saber, que repercutirá em diferenças nas condições de preservação. O monumento assume esse caráter no ato de sua criação e é preservado enquanto cumpre essa função, enquanto o monumento histórico, por ser constituído enquanto tal por um ato de valoração e curadoria, é entendido como ocupando um lugar imutável e definitivo num conjunto fixado pelo saber, o que teoricamente demandaria sua preservação permanente (CHOAY, 2006; FONSECA, 2009; SANT’ANNA, 2009). A partir do século XVI, estudiosos de vários países (Choay cita exemplos franceses, italianos, ingleses, holandeses e alemães) conhecidos como antiquários passaram a se dedicar ao estudo e catalogação dos monumentos históricos. Inicialmente, esses eruditos dedicaram-se aos monumentos históricos oriundos das Antiguidades Clássicas, posteriormente voltando-se para aqueles que testemunhariam a origem das suas próprias sociedades, as antiguidades nacionais, com o objetivo de dotar a tradição cristã de um corpus de bens notáveis comparável àquele de que dispunha a Greco-romana (CHOAY, 2006). Os conjuntos constituídos pelas antiguidades nacionais acabariam por cumprir o papel de base material para a criação e consolidação das “culturas nacionais” dos Estados-nação que foram surgindo na Europa, especialmente no período que se seguiu à Revolução Francesa de 1789. Como reação ao vandalismo revolucionário que vinha depredando diversas obras vistas como símbolos do Antigo Regime, o governo revolucionário tomou para si a tarefa de preservá-los. Dessa forma, resgatou-se o termo romano patrimonium e surgiu, então, a iniciativa de ressignificar o conjunto dos bens confiscados, que agora seriam de propriedade coletiva, da nação. Um recorte desses bens formaria um elemento novo, o patrimônio nacional, definido por motivações morais, pedagógicas e ideológicas com o objetivo de criar uma identidade nacional, objetivando a nação e fornecendo provas materiais da história oficial. Fortalecia-se, assim, a ideia de que os franceses tinham uma língua, um território e uma história comuns, sendo um só povo: os gauleses (FONSECA, 2009; FUNARI;

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PELEGRINI, 2006). Essa noção de patrimônio nacional foi muito difundida por todo o século XIX e XX, permanecendo ainda hoje em alguns contextos. Ela é a origem do nome do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional brasileiro, que, não coincidentemente, foi inspirado no modelo francês de tutela estatal do patrimônio nacional. Até a 2ª Guerra Mundial, os bens patrimoniais eram monumentos pré-industriais provenientes da arqueologia e da história da arquitetura erudita. Na Europa, eram assim valorados praticamente apenas os remanescentes da Antiguidade, os edifícios religiosos da Idade Média e alguns castelos, enquanto no Brasil o patrimônio histórico e artístico nacional era composto fundamentalmente de edifícios religiosos, governamentais e militares do período colonial e de algumas obras modernistas. Após o conflito, houve uma extensão cronológica, tipológica e geográfica desses bens, que passaram a incluir edificações não Monumentais de outros usos, épocas e lugares (CHOAY, 2006). Após o fim da guerra, foram postas em xeque as interpretações nacionalistas do passado e novos agentes sociais assumiram o centro da ação social e política. A nova conjuntura e a cooperação internacional impulsionaram novas abordagens mais abrangentes e menos restritivas de cultura e de patrimônio (FUNARI; PELEGRINI, 2006). Mudou também o foco da preservação, gradualmente passando do monumento isolado para o entorno, o sítio histórico e, finalmente, para o território (FIGUEIREDO, 2008). Uma das facetas dessa ampliação do campo patrimonial foi o reconhecimento pelo mundo ocidental (de “ascendência cultural” europeia) dos bens imateriais, ou seja, os processos e práticas culturais, sem a necessidade da mediação de objetos. Essa percepção surgiu em grande parte a partir da experiência dos países orientais e do terceiro mundo, que contam em seu patrimônio com diversas criações populares, importantes por expressarem conhecimentos, práticas e processos culturais, além de um relacionamento com o meio ambiente. A prática ocidental e seu arcabouço legal, baseados na conservação e autenticidade de objetos, não eram suficientes para a atuação nos casos em que o que importa preservar é um meio de produzir objetos, uma prática ou uma ideia (SANT’ANNA, 2009). A segunda metade do século XX viu surgir novas questões. A antropologia e a etnografia tornaram-se agentes importantes nesse contexto, através da inclusão da produção dos “esquecidos” no universo dos bens patrimoniais; a valorização (e inclusão no universo do patrimônio) dos bens referentes aos operários, camponeses, imigrantes, minorias étnicas, mulheres, população LGBT, entre outros, se dá através do reforço do seu valor cultural, o que gradativamente levou à sobreposição das noções de bem patrimonial e bem cultural. A preservação do patrimônio não se justifica mais pelo valor de nacionalidade – numa

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perspectiva fundada em valores éticos e estéticos, essa postura tem sido traduzida atualmente pela noção de direitos culturais, demanda formulada a partir da consideração de que a educação (entendida como formação) é de interesse universal (FONSECA, 2009). A expressão direitos culturais foi reconhecida a nível internacional na Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948 e a nível nacional pela Constituição de 1988, que atribui ao Estado o dever de garantir a todos “o pleno exercício dos direitos culturais” (BRASIL, 2016; ONU, 2009). Nesse contexto de ampliação do próprio conceito de patrimônio e do que é considerado como tal que ocorreu a partir do segundo pós-guerra, surgiu uma nova categoria: o Patrimônio Industrial. Enquanto diversos outros bens materiais são fruto de interesse e preservação já desde a Antiguidade, ainda que de forma distinta da atual, percebe-se uma primeira preocupação incipiente e pontual com a preservação do legado da indústria apenas no fim do século XVIII, na França. No século XIX, ela aparece também em países como Suécia, Inglaterra e Portugal. Um debate amplo e aprofundado sobre o tema, porém, só surge na década de 1950, na Inglaterra, país considerado protagonista da Revolução Industrial (KÜHL, 2008; RODRIGUES, 2010). Em acordo com a tradição dos antiquários daquele país, profissionais oriundos de áreas como História e Arqueologia passaram a se interessar por esses bens e a fazer circular informações sobre eles em suas publicações nas primeiras décadas do século XX. A expressão “arqueologia industrial”, presente num texto português do século XIX, foi popularizada no meio anglófono dessa forma, através de um artigo de Michael Rix, da Universidade de Birmingham, publicado na revista The Amateur Historian em 1955, que chamava a atenção para a necessidade de se estudar e preservar sítios e relíquias da industrialização inglesa dos séculos XVIII e XIX. A partir de então, outras disciplinas debruçaram-se sobre esses vestígios, adotando o inventário como instrumento preferencial. Esse debate chegou ao campo arquitetônico vinculado à discussão sobre a tradição funcional na arquitetura ao longo dos séculos e a variedade e qualidade formais de edificações erguidas tendo a funcionalidade como preocupação principal, identificando essa postura em edifícios já do século XVIII, muito anteriores ao Modernismo, portanto. Nesse sentido, o volume de julho de 1957 da revista Architectural Review cumpriu um importante papel na divulgação e consolidação do conhecimento sobre o tema. Os edifícios contendo elementos pré-fabricados (eles mesmos sendo produtos industriais, portanto) e a arquitetura ferroviária estão vinculados à discussão sobre o Patrimônio Industrial desde sua gênese. A ferrovia, especificamente, está intimamente relacionada ao processo de industrialização, uma vez que o

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impulsionou e foi por ele também impulsionada. O tema ganharia relevância e abertura junto a um público amplo a partir dos anos 1960, quando da destruição de exemplares significativos da arquitetura do ferro, como a Estação Euston e o Coal Exchange (KÜHL, 2008). A Estação Euston, construída em 1837, foi a primeira grande estação terminal do mundo e a primeira a receber linhas intermunicipais em Londres. A empresa responsável pela operação da ferrovia decidiu construir um grande pórtico que simbolizasse o caráter de entrada para o centro e o norte do reino, além da novidade da era ferroviária. Assim, o arquiteto Philip Hardwick projetou o maior propileu dórico já construído (Figura 07), com 22 metros de altura. Além de demonstrar a inspiração da arquitetura romana que Hardwick conheceu em viagem à Itália em 1818-19, a estrutura também guarda a característica da total separação formal e funcional entre o edifício de passageiros e administração e a gare onde os trens efetivamente paravam para embarque e desembarque, um grande galpão de 61 metros de comprimento com cobertura estruturada em ferro forjado. Nos anos 1960, a estação original foi demolida para dar lugar ao atual edifício modernista. O Coal Exchange, espécie de bolsa de valores do carvão, foi o primeiro grande edifício construído com emprego significativo de ferro fundido em sua estrutura, entre 1847 e 1849 (anterior ao Palácio de Cristal de 1851, portanto). Contava com fachadas de estética neorrenascentista a oeste e sul, enquanto no vértice havia um pórtico dórico semicircular sustentando uma torre naquele mesmo estilo. Ao centro, havia uma rotunda coberta por uma grande cúpula envidraçada de 18 metros de diâmetro, estruturada por sete costelas de ferro fundido. O edifício ficou sem uso com a nacionalização do carvão após a 2ª Guerra Mundial e terminou por ser demolido em 1962, para dar lugar ao alargamento da rua.

35 Figuras 07 e 08 – O pórtico da Estação Euston, c. 1896; vista lateral da maquete do Coal Exchange.

Fontes: http://www.ucl.ac.uk/. Acesso em: 12 out. 2016. http://www.vam.ac.uk/. Acesso em: 12 out. 2016.

Tais edificações costumam ocupar áreas centrais das cidades e, por vezes, constituem verdadeiros complexos de grandes proporções. Assim, os bens patrimoniais industriais estão constantemente sujeitos a ameaças, tanto pelo seu não reconhecimento enquanto patrimônio cultural pela população, quanto pela dinâmica ágil do capital que pode impor transformações rápidas a esses bens, sua obsolescência funcional, o crescimento das cidades e a pressão imobiliária (KÜHL, 2008; RODRIGUES, 2010). Até a década de 1980, o debate em torno dessa questão buscou oferecer definições. Em geral, reconheceu-se as particularidades dos processos de industrialização em cada país e a presença de vestígios significativos em todos os momentos da história da humanidade, mas enfatizou-se o período iniciado na segunda metade do século XVIII; perdeu relevância a questão da diferenciação objetiva entre artesanato e indústria, mas elegendo-se como objeto de estudo principal os bens relacionados às atividades produtivas, aos meios de transporte, geração de energia e comunicações, bem como os espaços das atividades sociais relacionadas; e colocou-se como objetivos a pesquisa, o levantamento, o registro e a preservação desses bens. Num primeiro momento, essa atuação foi definida como disciplina autônoma, mas o desenvolvimento das reflexões levou à sua consolidação como um campo temático em que é necessário articular os campos teórico-metodológicos de várias disciplinas (KÜHL, 2010). A Carta de Nizhny Tagil sobre o Patrimônio Industrial, documento adotado na Assembleia Geral do TICCIH em 2003, consolidou as discussões anteriores numa definição atualizada e abrangente que inclui nesse campo os vestígios da cultura industrial portadores de uma gama de valores e envolvidos em diversos aspectos da estruturação dos espaços, mas não apresenta uma síntese satisfatória dos métodos de ação adequados a esse patrimônio, referindo-se a documentos formulados tendo em vista bens pré-industriais. Em 2011, porém, o TICCIH elaborou em conjunto com o ICOMOS um novo documento, chamado Princípios

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de Dublin, em que essa definição é aprofundada para incluir a paisagem cultural constituída por esses bens e todos os aspectos intangíveis que carregam. Também são apresentadas diretrizes mais claras para a ação, que incluem a pesquisa, a documentação, a conservação e a promoção do conhecimento sobre esse patrimônio, aspecto importante tanto por não ter sido devidamente destacado anteriormente como também por buscar superar a dificuldade que essa categoria de bens tem em relação à sua apreciação e reconhecimento pela população enquanto patrimônio cultural (ICOMOS; TICCIH, 2011; TICCIH, 2003). Atualmente, de acordo com Kühl (2010), as expressões arqueologia industrial e patrimônio

industrial

são

comumente

consideradas

sinônimos,

ainda

que

haja

questionamentos sobre a pertinência de se utilizar o termo “arqueologia” para casos em que não se empregam técnicas tradicionais daquela disciplina, como escavações. Apesar do contínuo reforço da necessidade de multidisciplinaridade, os estudos sobre o tema permanecem em sua maioria monodisciplinares, geralmente estudos de caso registrando um aspecto da história dos bens ou descrevendo exemplos de intervenção sem aprofundar o conhecimento sobre os processos de industrialização ou discutir a fundamentação e pertinência das intervenções. Faz-se necessário, assim, relacionar o patrimônio industrial às teorias da preservação, de modo a identificar de maneira consistente os bens a serem preservados e a fundamentar as intervenções realizadas, articulando os aspectos específicos da questão (como sua arquitetura) com sua inserção no espaço, ao longo do tempo e em suas relações com a estruturação da cidade e do território. Tendo essas questões em mente, aquelas de ordem prática (de uso, econômicas, entre outras) deixam de ser as únicas e passam a ser indicativas e concomitantes. O processo de intervenção desses bens, em suma, deve se fundamentar no mesmo arcabouço teórico-metodológico que se aplica às demais categorias do patrimônio cultural, tendo sempre presente a questão das razões por que se preserva (KÜHL, 2010). Por sua natureza diferenciada dos bens patrimoniais pré-industriais, para atuar na sua preservação é necessário considerar as condições de reutilização desse patrimônio, que deve ser encarada sob dois aspectos diferentes. Primeiramente, a herança industrial fora de uso geralmente é composta por edifícios sólidos, sóbrios e de fácil manutenção, que se prestam facilmente a novos usos, proporcionando uma conservação de bens de valor e uma economia logística. Em segundo lugar, os lugares desse patrimônio representam tanto a memória afetiva daqueles que viveram aquele espaço e tiveram nele seu horizonte, quanto um documento em escala regional de uma fase da civilização industrial, cujas próprias dimensões colocam desafios para sua preservação em um momento de reorganização dos territórios urbanos. Sua

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preservação demanda, assim, a superação da simples nostalgia no trato dessas questões (CHOAY, 2006). A atuação para preservação do patrimônio arquitetônico da industrialização exige o entendimento e atenção especiais à memória das atividades, processo e trabalhos desenvolvidos naquele espaço, a consideração do papel estruturador desses bens para os espaços urbanos, bem como sua relação com o próprio desenho dos bairros ou das cidades e com a composição da paisagem urbana. No caso específico da ferrovia, a atenção que a prática institucional costuma dispensar à estação isoladamente tem um componente nostálgico. Esses espaços estão relacionados a chegadas e partidas, elementos afetivos relevantes mas que não esclarecem a importância econômica e tecnológica da estrada de ferro. Essa compreensão mais ampla deve necessariamente ter por objeto os conjuntos e complexos ferroviários incluindo tanto as estações quanto equipamentos como armazéns, oficinas, caixas d’água, moradias, pontes, passagens de nível, túneis e outras obras de engenharia. Os locais de trabalho são lugares de desenvolvimento de identidades, o que inclui aspectos positivos e negativos. Por isso, são elementos importantes para o esclarecimento sobre a estruturação das relações sociais e tal aspecto deve estar presente na definição de medidas de salvaguarda para esses bens (RODRIGUES, 2010). A substituição definitiva da terminologia patrimônio histórico, artístico e/ou nacional por patrimônio cultural se deu na França, na Convenção da Unesco de 1972 (UNESCO, 2014). Este é o conceito difundido hoje, marcado por uma contradição fundamental: o relativismo cultural que está na sua origem (através da ampliação do conceito de patrimônio e da inclusão de outras narrativas) dificulta a adoção de concepções universalistas de cultura ou de direitos culturais (e, consequentemente, a formulação de políticas patrimoniais). Dessa forma, a dinâmica atual traz a noção de patrimônio cultural inserindo-se no contexto amplo dos organismos internacionais e, ao mesmo tempo, no contexto restrito das comunidades locais (FONSECA, 2009). Nas últimas décadas, fortaleceu-se a discussão acerca do conceito de Paisagem Cultural, entendida como “[...] uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores“ (BRASIL, 2009, p.17). O caráter peculiar, especial, é o que faz uma paisagem ser portadora de valores culturais. Uma das formas com que essa peculiaridade, que lhe confere identidade, pode se fazer presente é por marcas inscritas no espaço. Essas marcas são características morfológicas, produzidas em diferentes momentos históricos, que se cristalizam no espaço e carregam o testemunho dessas diferentes

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interações do homem com o meio natural ao longo do tempo. São, por isso, tempo passado, mas também tempo presente por estarem inseridas na vida atual e a forma dessa inserção também é relevante para seus conteúdos. A identidade da paisagem não reside apenas em sua forma, mas também na maneira como a sociedade a apreende (aí incluso a memória e as significações) e vivencia (NASCIMENTO; SCIFONI, 2010). À luz dos conceitos expostos, considera-se os imóveis onde se desenvolveram as atividades ferroviárias em Capitão de Campos como patrimônio cultural pelo testemunho que carregam, pelas práticas que abrigaram e pelas características materiais do espaço e das edificações.

2.3 AS TEORIAS E INICIATIVAS DE PRESERVAÇÃO

Assim como o conceito de patrimônio, as teorias e medidas tomadas para sua preservação passaram por profundas transformações ao longo do tempo. Há alguns exemplos isolados de colecionadores e amantes das artes ainda no mundo antigo, que tinham como motivação a apropriação da cultura grega clássica e helenística, mas, no geral, a preservação do monumento da Antiguidade estava diretamente vinculada à continuidade da sua função memorial. Estava, portanto, sujeito à possibilidade de abandono, esquecimento, desapego e mesmo destruição quando já não cumprisse mais esse papel, pelas mais variadas razões (CHOAY, 2006; FONSECA, 2009). Ao longo da Idade Média, houve algumas iniciativas particulares de preservação. A Igreja Católica assumiu importância e difundiu-se entre a população europeia um sentimento de piedade religiosa e apego às relíquias. Os bens da Igreja passaram a dar suporte a um sentimento coletivo de pertencimento, ficando assim imbuídos de um “sentido do sagrado” que os colocava fora da lógica da utilidade imediata, incentivando sua preservação e legado às gerações futuras. Assim, a instituição tomou atitudes para preservação dos bens de sua propriedade. O clero, detentor da cultura letrada, foi incentivador de boa parte das medidas de preservação dos bens de culturas pagãs, por razões práticas de economia, encanto intelectual ou sensibilidade estética. Essa preservação se dava, geralmente, na forma de reutilização de objetos ou de adaptação de edifícios, transformando templos e palácios em igrejas, por exemplo. Também a aristocracia preservava seus castelos, encarados como símbolo de seu poder e continuidade. Porém, muitos monumentos da Antiguidade foram destruídos nesse período, por proselitismo cristão ou pela simples indiferença por objetos esvaziados de

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sentido ou uso após o fim da sociedade que lhes atribuía significado no passado (CHOAY, 2006; FONSECA, 2009). Nos séculos XIV e XV, no contexto do Renascimento italiano, ocorreu a gênese do olhar distanciado e esteta que selecionava edifícios notáveis, transformando-os em objeto de reflexão e contemplação. Esse processo, em que artistas e humanistas “impregnaram-se mutuamente” na redescoberta da arte e da humanitas clássica, deu origem ao conceito de monumento histórico, ainda que só viesse a receber esse nome séculos depois. À época, muitos monumentos da Roma Antiga estavam em ruínas, em parte pelo uso de seu material para novas construções ou para a fabricação de cal a partir do mármore. Os humanistas passaram a preconizar a conservação e a vigilância desses monumentos, tarefa assumida pelo papa, agora de maneira distanciada e objetiva através de bulas que proibiam demolições, e da realização de levantamentos, desobstruções e restaurações. Porém, essa prática oficial também incorria em incoerências e muitas edificações antigas (como o Circus Maximus e o próprio Coliseu de Roma) foram tratadas como fontes de materiais de construção já prontos para utilização a um custo reduzido, inclusive pelos próprios papas, ao mesmo tempo em que eram admiradas e estudadas (CHOAY, 2006; FONSECA, 2009; KÜHL, 1998). A partir daí, surgiram os antiquários, eruditos que se dedicavam ao estudo, catalogação e coleção das antiguidades. Estes estudiosos formaram uma rede dedicada a essa atividade, presente em diversos países da Europa; empreendiam viagens de estudo, trocavam informações, estabeleciam importantes coleções, catalogações e sistematização de bens, entendidos como documentos históricos. Seu trabalho, usado para ilustrar textos antigos e confirmar hipóteses históricas, permitiu formar séries tipológicas e, às vezes, cronológicas dos bens, preservados em “museus de papel”. Essas séries tomavam a forma de dossiês, catálogos e compilações e, por vezes, eram restritas a uma única tipologia, como epígrafes e moedas, refletindo a especialização de alguns dos colecionadores. Foi muito importante o trabalho de artistas que contribuíram para a iconografia das antiguidades e às vezes eram, eles mesmos, antiquários; alguns arquitetos inclusive reproduziram monumentos notáveis, como os desenhos detalhados dos relevos da Coluna de Trajano feitos por Pietro Bartoli (CHOAY, 2006; FONSECA, 2009). Os antiquários foram responsáveis pela preservação de muitos bens importantes, pela redescoberta de outras antiguidades (que não a greco-romana) pelos europeus, através de novas escavações e da ampliação do raio das viagens para incluir o Oriente Próximo, o Egito e o Sudão. Estes eruditos estiveram em atividade relevante até a Revolução Francesa, mantendo-se atores importantes sobretudo na Inglaterra até meados do século XX. A

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destruição de bens da Igreja durante a Reforma Anglicana inglesa do século XVI gerou algumas iniciativas de preservação, motivadas pelo senso prático (que repudiava a destruição de edifícios ainda em condições de utilização) e pela sensibilidade, mas o gosto pela arte e pelo conhecimento não bastava ainda para gerar uma proteção sistemática das antiguidades (CHOAY, 2006; FONSECA, 2009). Com o passar do tempo, os antiquários voltaram-se cada vez mais para os bens que seriam testemunho das origens de suas próprias sociedades, antes e, especialmente, depois do domínio romano; buscou-se criar um conjunto de obras de arte e edifícios representativos da tradição cristã, análogo ao que já existia para a Antiguidade pagã. Ao mesmo tempo, reforçava-se a diferenciação desse conjunto em relação às fontes clássicas, com a intenção de afirmar a originalidade e a excelência da civilização ocidental cristã. Outro viés era o de afirmar particularidades nacionais em relação aos cânones italianos, postura significativa especialmente na Inglaterra. Esse novo projeto, de base nacionalista, inicia-se no fim do século XVI e por vezes atribuíam a essas antiguidades nacionais apenas valor histórico, como produto dos “tempos intermediários” entre a Antiguidade Clássica e o Renascimento, postura que privava seus estudiosos de referências importantes da história da arte. A arquitetura gótica foi, assim, estudada e catalogada com diversas simplificações e juízos negativos sobre sua estética em vários países. Ao longo de toda a Idade Moderna, a atividade dos antiquários passou por diversas outras transformações, tanto com relação ao refinamento e embasamento do seu método comparativo, que se desenvolveu de modo análogo à metodologia das ciências da natureza, quanto na questão da representação, que foi gradualmente ganhando precisão e culminou no desenvolvimento do desenho projetivo atual (CHOAY, 2006). A postura de amor à arte e a exigência da sua presença física difundiu-se o suficiente nesse período para mobilizar setores sociais significativos o bastante e gerar as primeiras iniciativas institucionalizadas de preservação material das obras de arte: a criação dos museus, invenção do século XVIII baseada no modelo das coleções privadas e inserida no projeto geral iluminista de democratização do saber. Curiosamente, a tentativa de estender essa iniciativa ao patrimônio arquitetônico teve resultado oposto, marcado pela dilapidação de obras importantes para enriquecer coleções em lugares distantes, caso dos Mármores de Elgin retirados do Parthenon e levados à Grã-Bretanha, onde ainda se encontram (CHOAY, 2006). A partir da Revolução Francesa de 1789, o governo francês passou a tomar medidas para a salvaguarda de bens patrimoniais. Num primeiro momento, o grande motivador dessa tomada de ação foi a transferência de bens da Coroa, da Igreja e dos emigrados à nação; esse patrimônio, entendido primordialmente no sentido econômico, demandava sua preservação e

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manutenção para evitar perdas financeiras. O governo buscou inventariar esses bens e seu estado de conservação, reunindo diversos deles em museus como o Louvre. Num segundo momento, a partir de 1792, aconteceu uma grande onda de vandalismo revolucionário, em que o aparato burocrático editou decretos quase simultâneos e contraditórios, determinando a destruição de monumentos e, logo depois, sua salvaguarda. A institucionalização definitiva da atividade de preservação na França ocorreu após 1830, quando foi criado o cargo de Inspetor dos Monumentos Históricos. Prosper Mérimée, que assumiu o cargo em 1832, percorreu o país inventariando os bens que constituíam o patrimônio nacional do país, percebendo então que a população, especialmente nas províncias distantes de Paris, era em geral indiferente aos monumentos históricos, exceto quando eles apresentavam algum motivo específico para apego, como o valor religioso (CHOAY, 2006; FONSECA, 2006). Esse novo movimento de preservação superou ao mesmo tempo o senso prático que encarava o patrimônio como riqueza material da nação e a conservação apenas iconográfica dos antiquários. Adotando posturas já difundidas nas ciências naturais, a ação preservacionista governamental declarou explicitamente a intenção moral, política e pedagógica de contribuir para a formação dos cidadãos e celebrar os sucessos da nação. Assim, a estes bens, reunidos num conjunto denominado patrimônio nacional, foi atribuído primeiramente o valor nacional, de legitimação da identidade, que lhe permitiu cumprir o papel de base da cultura nacional. Dele derivavam os outros: o valor cognitivo (educativo) e o econômico. O valor artístico dos monumentos, nessa época, era considerado inferior na hierarquia (CHOAY, 2006; FONSECA, 2009). Essa importância maior do valor nacional sofreria mudanças com a Revolução Industrial (aprox. 1760-1840). O processo de industrialização, movimento planetário que teve diferentes datas de início em cada país, gerou uma verdadeira ruptura com o passado, uma percepção da existência de um período anterior, em que se situava o monumento histórico, e o tempo presente; o patrimônio não era mais um ideal a ser resgatado, mas algo irremediavelmente perdido pelo ciclo natural de aparecimento e morte. Ao mesmo tempo em que difundiu pelo mundo o conceito de monumento histórico e a prática institucionalizada de preservação, nesse processo passaram a ser priorizados também pela primeira vez os valores de sensibilidade, pertencentes ao domínio recente da história da arte. A adoção pela arte romântica de um culto às ruínas como lembrança da transitoriedade das obras humanas, a consciência do advento dessa nova era e o reconhecimento do valor de reverência inspirado pela memória eram as características principais do conceito de monumento histórico que permeou todo o século XIX e parte do XX (CHOAY, 2006; FONSECA, 2009).

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No século XIX, firmaram-se dois modelos principais de restauração do patrimônio: o inglês, chamado de Restauro Romântico, era representado por John Ruskin, preservava os bens com o apoio da sociedade civil, era antiintervencionista e centrado na valoração éticoestética dos monumentos; já o francês, chamado de Restauro Estilístico, era intervencionista, “estatal e centralizador, desenvolvido em torno da noção de patrimônio, de forma planificada e regulamentada, visando ao atendimento de interesses políticos do Estado”, e teve como representante Eugène Viollet-le-Duc. Este modelo difundiu-se pelo conjunto dos países da Europa (CHOAY, 2006; FONSECA, 2009). Havia na época, também, o modelo italiano, chamado de Restauro Arqueológico, sucessor das iniciativas empreendidas pelos papas da Idade Média. Esse método empregava a anastilose, o preenchimento de lacunas e a consolidação com elementos novos, mas distinguíveis, e foi aplicado a bens como o Coliseu e o Arco de Tito, ambos em Roma. A teoria do crítico de arte inglês John Ruskin, com viés puritano e mais ético que estético, era marcada profundamente pela ruptura gerada pela revolução industrial. Encarava a arquitetura como meio para conservar o passado, também em suas virtudes morais; o monumento histórico, enquanto manifestação do esforço humano, era objeto de reverência. O valor de nacionalidade foi eclipsado pelo de humanidade e os vestígios do passado foram considerados como relíquias sagradas, únicas, insubstituíveis e intocáveis, por pertencerem ao mesmo tempo às gerações passadas e futuras. A restauração seria, assim, uma impostura por alterar esse fluxo natural do tempo cujas marcas fazem parte da essência do monumento. Sua teoria, porém, admitia que o fim desse fluxo natural poderia ser retardado, através da manutenção e da consolidação (CHOAY, 2006; FONSECA, 2009). Viollet-le-Duc, engenheiro, tinha concepção formal da arquitetura e partia da noção de monumento ideal, não necessariamente correspondente à forma original do monumento, mas aquela mais adequada a cada caso, buscada pelo restaurador com base em critérios técnicos, estilísticos e pragmáticos. Sua restauração é autodenominada “interpretativa” e busca devolver o edifício a um “estado completo que talvez nunca tenha existido”. Essa prática intervencionista é, muitas vezes, considerada arbitrária pelos acréscimos e alterações que realizava, mas é necessário destacar o mau estado em que se encontravam previamente os monumentos considerados desfigurados, o reconhecimento de Viollet-le-Duc da obra artística do passado e seu interesse pela história das técnicas e canteiros e seus estudos in situ. Sua postura, porém, está fundada na constatação do distanciamento do passado a que Ruskin gostaria de dar continuidade e numa tentativa didática de restituir ao edifício um valor

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histórico, mas não sua historicidade. Sua ideia de monumento histórico é uma abstração e sua autenticidade não é fundamental (CHOAY, 2006; FONSECA, 2009). Os princípios de Viollet-le-Duc inspiraram grandes intervenções em diversos países no século XIX, inclusive em cidades italianas como Florença, Veneza e Nápoles. No fim do século, o engenheiro, arquiteto e historiador da arte italiano Camillo Boito (que possuía, como outros conterrâneos seus, formação polivalente e transitava livremente entre os mundos da arte e da técnica) elaborou uma síntese entre a postura de Ruskin e a de Viollet-le-Duc, resolvendo a contradição entre restaurar e conservar numa teoria conhecida como Restauro Moderno. De Ruskin, Boito assimila a noção de autenticidade, conferindo importância aos sucessivos acréscimos aos edifícios ao longo do tempo como formando uma estratificação quase geológica e contribuindo para o caráter singular de cada monumento. Já da teoria de Viollet-le-Duc, Boito adota a prioridade do presente em relação ao passado, afirmando a legitimidade da restauração. Defende, porém, que o trabalho de intervenção é uma medida paliativa extrema e deve ter caráter ortopédico, adventício e acrescentado, devendo ser ostensivamente marcado, não passando por original. As intervenções seriam inevitavelmente marcadas pelo estilo, conhecimento e técnicas de sua época. Os conceitos de autenticidade, hierarquia das intervenções e estilo de restauração da teoria de Boito deram origem a enunciações ainda importantes (CHOAY, 2006; FONSECA, 2009). Atuando também na Itália na mesma época de Boito, Luca Beltrami elaborou uma outra teoria, conhecida como Restauro Histórico, que encarava o monumento como documento cuja intervenção deveria ser embasada por outros (como livros, arquivos e gravuras) e pela análise da própria edificação. Cada monumento é único e concluído, não se devendo recorrer a analogias com outros elementos, mas havia certa margem para subjetividade, tornando o Restauro Histórico uma espécie de alternativa moderada ao Restauro Estilístico. Seu objetivo era a diminuição dos danos provocados pelo tempo, considerados absolutamente indesejáveis, ao contrário da teoria de Ruskin. Beltrami defende a importância dos valores figurativos e a necessidade de restituir a unidade e a continuidade formal da obra, atuando de forma ampla e até mesmo inovadora, desde que fundamentado por profunda e rigorosa pesquisa. Quando a imagem encontra-se destruída por um dano muito grave, porém, esta teoria coloca a impossibilidade de refazê-la (ELIAS, 2007). No início do século XX, o austríaco Alois Riegl elaborou a teoria dos valores, a partir de uma perspectiva distanciada, independente de representações da nacionalidade e mais focada na percepção por considerar que esta é o elemento central de fundamentação da prática preservacionista. Riegl identificou a dissociação entre duas categorias principais de valores:

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aqueles “de rememoração”, do conhecimento, ligados ao passado e que incluem os ligados à história, e aqueles “de contemporaneidade”, da sensibilidade, ligados ao presente e que incluem os ligados à arte. Entre os primeiros, inclui-se o valor de ancianidade, ligado à apreciação imediata das marcas do tempo, que se diferencia do valor histórico por este remeter a um saber. Entre os segundos, estão o valor de uso prático e o valor artístico, que inclui o valor de novidade, uma atração pelo que é ou parece novo e intacto. Estes valores apresentam articulações variáveis e negociadas, uma vez que o valor de ancianidade exclui o de novidade e ameaça o de uso e o histórico, ao mesmo tempo em que o valor de uso contraria o artístico e o histórico. Esses agenciamentos dependem do estado dos bens e do seu contexto social (CHOAY, 2006). A teoria de Riegl considerou que todos os monumentos têm tanto uma dimensão histórica quanto uma estética e, ao adotar uma concepção de história centrada na ideia de desenvolvimento e evolução, levou à superação da noção de cânone e à afirmação do valor específico de cada período. Sua reflexão chama a atenção para a necessidade de se levar em conta, na formulação e prática de uma política de preservação, os agenciamentos entre os valores, encarados a partir de uma perspectiva crítica. Riegl previa que o valor de ancianidade seria massificado e se tornaria a base da apreciação do patrimônio pela população, enquanto o conflito entre ele e o valor histórico seria resolvido no século XX pelo desenvolvimento de novas tecnologias e meios de registros históricos, o que não se concretizou dessa maneira. Além dessa reflexão sobre as articulações de valores e a superação da preservação pelo nacionalismo, a teoria de Riegl trouxe a contribuição de considerar o valor de uso importante para a preservação e presente em todos os edifícios, exceto ruínas e sítios arqueológicos (CHOAY, 2006; FIGUEIREDO, 2008; FONSECA, 2009). Discípulo de Camillo Boito, o também italiano Gustavo Giovannoni desenvolveu na primeira metade do século XX o chamado Restauro Científico, que atribuía simultaneamente valor de uso e valor museográfico aos conjuntos urbanos antigos. Sua obra fundou uma teoria da conservação do patrimônio urbano, resumida nos princípios do plano regulador, da relação do monumento com o entorno e do respeito à escala e morfologia do núcleo urbano e às afinidades originais de suas partes com as vias. Giovannoni imaginou uma nova relação entre a organização do espaço e o patrimônio urbano, articulando as duas escalas das grandes redes e das pequenas unidades de vida cotidiana, papel que as malhas urbanas antigas podem desempenhar. Estas, ao receberem intervenções compatíveis com sua morfologia, mantêm seu caráter de portadoras de valores históricos e artísticos ao mesmo tempo em que passam a poder catalisar novas configurações espaciais, recuperando sua atualidade. A cidade foi

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considerada, assim, tanto um monumento por si só quanto um organismo vivo, enquanto o monumento histórico foi considerado indissociável de seu ambiente (CHOAY, 2006; FIGUEIREDO, 2008). Segundo ele, o patrimônio urbano poderia receber intervenções análogas às preconizadas por Boito para os monumentos, que deveriam respeitar três critérios: as razões históricas que devem respeitar todas as fases da composição do monumento, a divulgação de todo o material de pesquisa analítica e o sentimento do cidadão, incluindo o espírito da cidade e sua memória. A restituição, recomposição, desobstrução e mesmo a demolição eram admitidas, desde que respeitando o ambiente e o espírito histórico dos lugares e as relações entre as escalas dentro da cidade. Apesar da importante contribuição ao antecipar as questões patrimoniais no contexto do planejamento urbano, sua teoria se mostrou insuficiente para responder aos danos observados na Europa no segundo pós-guerra, quando foram empregados dois modelos de intervenção nos espaços urbanos destruídos, um que aplicou molde completamente novo e outro que buscou reconstruir a identidade através da recuperação de formas documentadas (CHOAY, 2006; FIGUEIREDO, 2008). Após a 2ª Guerra Mundial, tem início a formulação de uma nova postura teórica e prática, o Restauro Crítico. Os primeiros a pensar essa corrente, o napolitano Roberto Pane e o romano Renato Bonelli, desenvolveram um raciocínio que coloca a necessidade de empreender uma análise crítica antes de qualquer intervenção, de modo a identificar os valores próprios dos objetos. Esse procedimento crítico é o que estabelece os limites e parâmetros para a intervenção, que será complementada pelo ato criativo posterior do restaurador, buscando o resgate dos valores estabelecidos pela crítica e a recomposição da unidade potencial do objeto. Embora essa teoria possa parecer, num primeiro momento, muito permissiva, seu posicionamento teórico e a necessidade da análise crítica lhe conferem parâmetros restritivos para a atuação, de modo a não incorrer em falsificações (ELIAS, 2007; FIGUEIREDO, 2008). Cesare Brandi, fundador do Instituto Central do Restauro, em Roma, inseriu-se na teoria do Restauro Crítico e desenvolveu sua Teoria da Restauração em livro de mesmo nome publicado em 1963. Na obra, o autor afirma que a obra de arte tem caráter diferente dos demais objetos do cotidiano, como os produtos industriais, e sua restauração deve colocar a funcionalidade em papel secundário. A obra de arte só assume esse caráter no momento em que é reconhecida enquanto tal e apresenta uma dupla instância, estética (decorrente de sua característica artística) e histórica (como criação humana localizada no tempo e no espaço). Assim, “a restauração constitui o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte,

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na sua consistência física e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão para o futuro” (BRANDI, 2004, p. 30). A partir desse reconhecimento, Brandi enuncia o primeiro axioma da restauração: “restaura-se somente a matéria da obra de arte” (BRANDI, 2004, p. 31). Essa matéria é entendida como o que dá suporte à transmissão da imagem, existindo ao mesmo tempo que ela. Porém, quando a intervenção colocar a necessidade de sacrificar uma parte da matéria, esse ato deve ser realizado sempre respeitando a prioridade da instância estética, pois o gesto criador é irrepetível. O momento do reconhecimento da obra também deve ser historicizado, localizado no tempo e no espaço, e entre ele e o momento da criação da obra decorreram inúmeros outros momentos históricos em que pode ter havido acréscimos e alterações na obra. Esses três momentos compõem a instância histórica da obra, de onde Brandi conclui com seu segundo axioma, afirmando que “a restauração deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, desde que isso seja possível sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem cancelar nenhum traço da passagem da obra de arte no tempo” (BRANDI, 2004, p. 33). A importância da teoria dos valores permaneceu após sua formulação inicial por Alois Riegl, mas assumindo contornos distintos com a identificação de novos valores, tanto culturais quanto socioeconômicos. Entre os culturais, há os valores de identidade, relacionados aos laços afetivos da sociedade com objetos ou sítios; o valor técnico ou artístico relativo, que se baseia na investigação científica e histórico-crítica e trata da relevância daquele bem cultural; o valor de originalidade, que relaciona aquele bem a outros semelhantes de modo a definir sua originalidade, representatividade ou singularidade, de onde se derivará a necessidade de proteção; o valor histórico, característica do que é testemunho da evolução da capacidade de realização do homem; e o valor de antiguidade, que rejeita intervenções alheias ao desgaste natural pelo tempo (FIGUEIREDO, 2008). Já entre os valores socioeconômicos, destacam-se o valor econômico, ligado à geração de renda e cujo manejo inadequado pode ocasionar danos; o valor funcional, que encara o uso continuado do bem como favorecendo sua continuidade; o valor educativo, que fornece meios para integrar o bem ao presente através da conscientização da população e do potencial para o turismo cultural; o valor social, relacionado às atividades tradicionais ali realizadas, que estabelecem a identidade social e cultural; e o valor político, que atrai a atenção do público para um bem relacionado a eventos históricos dentro do seu contexto regional e nacional (FIGUEIREDO, 2008).

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Os princípios teóricos de Brandi, bem como a atuação precedida pela análise crítica e fundada na dialética entre as instâncias artística e histórica da obra de arte, foram incorporados a algumas cartas patrimoniais, como a Carta Italiana do Restauro e à Carta de Veneza, transpondo as fronteiras da Itália e sendo difundidos na prática de diversos outros países. Dessa forma, muitas das suas formulações permanecem válidas atualmente, mesmo num contexto de ampliação do conceito de patrimônio e inclusão de muitos dos “bens cotidianos”. O outro componente fundamental para a atuação contemporânea é a teoria dos valores, apesar de ter passado por desenvolvimentos importantes após sua formulação por Riegl, pois o reconhecimento desses valores é parte fundamental da análise crítica realizada sobre um bem antes de qualquer proposta de intervenção. Segundo Manoela Rufinoni (2013), o reconhecimento do patrimônio industrial enquanto tal surgiu, nos anos 1960, junto à sua apreciação como elemento constitutivo de uma paisagem cultural, de cuja formação é um dos responsáveis. Em meio às novas questões teóricas e práticas colocadas por essa nova categoria, foram elaboradas diretrizes para a seleção dos bens industriais a serem preservados, que incluíam seu grau de unicidade ou singularidade, sua representatividade como referencial de determinada técnica ou época, suas dimensões e possibilidade de reuso, a verificação do suporte financeiro local e a identificação dos artefatos associados a pessoas ou fatos importantes. Ainda segundo a autora, para atuar na salvaguarda desses bens, é necessário analisálos como um conjunto, como patrimônio urbano, uma vez que costumam apresentar vários edifícios com características distintas, mas inter-relacionados, como espaços de produção e transporte de bens, residências, entre outros. É preciso adotar critérios que situem esses bens tanto no seu contexto histórico quanto no contexto da formação da "personalidade" da região em que estão inseridos, analisando sua escala, a assimilação de seus edifícios ao entorno e o efeito de conjunto que forma com o tecido urbano, que são os atributos que lhe conferem representatividade (RUFINONI, 2013). O reuso, instrumento reconhecidamente importante para a preservação, também é pertinente para os bens industriais, mas deve-se buscar uma função que seja adequada tanto à sua configuração espacial e realidade construtiva e arquitetônica quanto à sua realidade histórica. Esta última deve ser observada tanto na relação entro o uso/significado original e o proposto para a edificação isolada quanto na compreensão do duplo sistema de relações que o edifício assumia: horizontalmente, dentro do espaço urbano em que se situa, e verticalmente, dentro do setor produtivo do qual fazia parte. A nova função proposta deve ser compatível

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com as características do monumento e permitir a permanência das características históricas, estéticas e memoriais que lhe conferem valor como tal (RUFINONI, 2013). Essas observações são especialmente pertinentes ao analisar tanto a maioria das intervenções propostas para esses bens, que costumam passar completamente ao largo de todo o acúmulo teórico sobre restauro, quanto a produção acadêmica sobre o tema, que se concentra em inventários e registros pertinentes, mas que resume-se à descrição ou a falhas de interpretação ao analisar essas intervenções. Esse distanciamento da teoria abre espaço para que os interesses econômicos, políticos e setoriais se sobreponham ao valor patrimonial nas intervenções (RUFINONI, 2013). Rufinoni (2013) chama atenção para a necessidade de se pensar o restauro, o urbanismo e o projeto arquitetônico de forma integrada para intervir adequadamente no patrimônio industrial urbano. Nesse processo, é necessário superar dificuldades relativas ao patrimônio urbano de modo geral e ao industrial em particular, articulando formulações de diversas áreas do conhecimento para aderir todas essas contribuições às diversas exigências da realidade, ao mesmo tempo em que se mantém o vínculo de todas com os fundamentos e a finalidade do restauro. Segundo a autora, essa é precisamente a questão principal que está colocada atualmente: no campo prático, observa-se uma tendência equivocada de tratar o restauro como disciplina isolada, enquanto no campo teórico este se tornou um problema cada vez mais complexo através da ampliação do seu campo de atuação e da necessidade de se articular diferentes saberes. Assim como Brandi define a restauração da obra de arte como o momento metodológico do seu reconhecimento, Rufinoni (2013) afirma que o restauro urbano passa pelo reconhecimento das peculiaridades do ambiente antrópico e de seus valores. Coloca-se também a necessidade de partir da atuação, já consolidada, sobre monumentos excepcionais para aquela sobre conjuntos, ambientes, uma vez que se está diante de resultados de práticas que realizam uma arte de viver e uma arte de fabricar, terminando por dar vida a formas. O patrimônio urbano é produto de uma série de fenômenos (práticas e funções cotidianas) que não necessariamente estão voltados à materialização de formas arquitetônicas excepcionais, mesmo que o resultado termine por ser este. Deve-se apreender, valorizar e tutelar esse patrimônio com base em sua importância testemunhal e em seu papel na composição de uma estrutura, de um organismo figurativamente completo. Para essa atuação, é necessário buscar um caminho e um método de projeto que considere as prioridades do restauro simultaneamente às demais, num todo de ações intimamente integradas e correlacionadas. Essa atuação, apropriadamente denominada

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restauração integrada, inclui a busca por soluções a partir de esforços e contribuições multidisciplinares, pautando a qualidade do projeto na integração entre a composição arquitetônica, o projeto urbanístico e as intervenções de restauro (RUFINONI, 2013). Para isso, deve-se superar a oposição entre conservação e desenvolvimento, gerando benefícios para a coletividade e a melhoria da qualidade de vida nas áreas afetadas ao mesmo tempo das razões culturais; a preservação do patrimônio urbano significa, portanto, assegurar as relações sociais e o bem-estar da comunidade, tendo como ponto central o respeito aos seus valores históricos e estéticos, presentes naquele patrimônio. Rufinoni (2013) apresenta um caminho analítico-operativo para essa ação, em três etapas: a aquisição dos conhecimentos, que impõe o controles dos instrumentos e métodos; a exegese desses conhecimentos, para domínio do sistema conceitual; e o emprego dos conhecimentos na intervenção, que implica na familiaridade com os conceitos atuais do restauro. Trata-se, portanto, de um desdobramento da metodologia do restauro crítico de Brandi a nível urbano, partindo da análise crítica para a atuação. Após esse primeiro momento de análise, em que são reconhecidos os valores patrimoniais que motivam a preservação, deve-se operar para sua salvaguarda estabelecendo critérios claros, em que as questões de ordem prática e urbanística deverão ser observadas, mas subordinadas àquelas de caráter cultural. Nesse contexto, é imprescindível ter como diretriz que o novo uso é um meio para a preservação, não a finalidade da intervenção (RUFINONI, 2013).

2.4 AS CARTAS PATRIMONIAIS

O período de cooperação internacional iniciado na segunda metade do século XX é marcado por encontros onde são discutidas a teoria e a prática da preservação, na perspectiva da uniformização de discursos políticos e práticas internacionais, postura relacionada à difusão do Restauro Crítico. Os documentos finais desses eventos são as chamadas Cartas Patrimoniais, resultado da avaliação e debate de discursos, teorias e práticas empregados em diversos contextos e localidades diferentes. O acúmulo teórico representado por elas é de grande valor para o embasamento de todas as etapas da atuação sobre o patrimônio, desde o reconhecimento, diagnóstico e valoração do bem até o projeto de intervenção propriamente dito, de modo a garantir consistência e rigor a todas as etapas do processo. Destaca-se algumas de especial relevância para o trabalho: a de Atenas, de 1931; a de Veneza, de 1964; o Manifesto de Amsterdã, de 1975; a de Burra, de 1980; a de Petrópolis, de

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1987; a de Washington, também de 1987; a de Lisboa, de 1995; a de Nizhny Tagil, de 2003; e os Princípios de Dublin, de 2011. A Carta de Atenas de 1931 foi uma iniciativa pioneira e trouxe como contribuição a recomendação do abandono da reconstituição integral em favor da manutenção regular e permanente, respeitando-se a obra artística e histórica do passado quando for necessário restaurar; a tendência de considerar certo direito da coletividade sobre a propriedade privada; a manutenção da fisionomia da cidade e do entorno do bem, assim como sua visibilidade; o emprego preferencial da manutenção e da anastilose; a adoção de técnicas e materiais modernos, desde que não descaracterizem o bem; e a cooperação entre arquitetos e arqueólogos. Frisa ainda que a utilização compatível daquele bem favorece a sua conservação (ESCRITÓRIO INTERNACIONAL DOS MUSEUS SOCIEDADE DAS NAÇÕES, 2014). A Carta de Veneza, de 1964, constitui espécie de documento base do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), sendo até hoje muito importante para os estudos da área. Entre suas contribuições, ela considera patrimônio tanto os bens isolados quanto os sítios urbanos e rurais, reconhece os valores histórico e estético dos bens, abrange também as obras modestas, afirma a necessidade de pensar o bem no seu contexto e coloca a necessidade de fazer extensa documentação de todos os trabalhos realizados. Quanto às diretrizes para ação, o texto coloca a necessidade da manutenção permanente, que inclua o entorno e que é sempre favorecida pela utilização da edificação. A restauração é considerada medida excepcional, a ser empregada apenas quando indispensável, e deve respeitar todas as contribuições válidas que foram feitas ao bem durante sua história, o que constituiu uma inovação conceitual importante à época. Quando os materiais e técnicas tradicionais mostrarem-se inadequados, é admitido utilizar técnicas e materiais modernos para a consolidação, desde que integrados harmoniosamente ao bem. Esta Carta traz ainda a máxima de que a restauração termina onde começa a hipótese, conferindo rigor à atividade ao evitar a especulação e prescrever a necessidade de estudos arqueológico e histórico antes e durante a intervenção (ICOMOS, 2014b). 1975 foi escolhido como o Ano Europeu de Proteção do Patrimônio Arquitetônico e, na ocasião, realizou-se uma reunião do Comitê de Ministros do Conselho da Europa que adotou e promulgou os princípios da Declaração de Amsterdã. O texto considera que “[...] a conservação do patrimônio arquitetônico depende, em grande parte, de sua integração no quadro da vida dos cidadãos e de sua valorização nos planejamentos físico-territorial e nos planos urbanos” (CONGRESSO SOBRE O PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO EUROPEU, 2014, p. 01).

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O texto coloca a variedade dos bens que compõem esse patrimônio, que incluem os bens móveis componentes de sua atmosfera, afirma sua função educativa e suas potencialidades econômicas e sociais e chama atenção para as ameaças a que estão sujeitos pela antiguidade, ignorância, degradação e planejamento urbano que não os leva em consideração. Para afastar essas ameaças, é proposta a conservação integrada, que consiste no emprego conjunto das técnicas de restauração e da pesquisa de funções apropriadas e deve ser realizada com um espírito de justiça social, sem promover o êxodo das populações já fixadas naquele local. Deve-se empregar recursos jurídicos, administrativos, financeiros e técnicos, com especial atenção à multidisciplinaridade e à educação patrimonial, de modo que se torne uma prática assimilada ao planejamento urbano e, como disposto no início, presente nos quadros

da

vida

da

população

(CONGRESSO

SOBRE

O

PATRIMÔNIO

ARQUITETÔNICO EUROPEU, 2014). A Carta de Burra, elaborada pelo ICOMOS da Austrália em 1980, apresenta definições para os conceitos comumente envolvidos nas atividades de preservação do patrimônio, como significação cultural, composta pelo valor estético, histórico, científico ou social de um bem para as gerações passadas, presentes ou futuras; conservação, termo amplo que designa os cuidados dispensados a um bem para conservar suas características culturalmente significativas; manutenção, que é a proteção contínua da substância, do conteúdo e do entorno; preservação, que é o ato de manter a substância de um bem e desacelerar sua degradação; restauração, que é o restabelecimento dessa matéria a um estado anterior conhecido; a reconstrução, que é semelhante à restauração, com a diferença de que se caracteriza pela introdução de matéria nova; adaptação, que é o agenciamento do bem para um novo uso, compatível com sua significação; o uso compatível, por fim, que é aquele que não implica mudança na significação cultural da substância, mudanças irreversíveis substanciais ou impactos significativos (ICOMOS, 2014a). Com relação às diretrizes para a atuação, essa Carta reafirma o disposto na Carta de Veneza. É importante frisar também que essas definições de conservação e preservação são muito difundidas nos países de língua inglesa, enquanto no Brasil a academia e os órgãos atuantes nas políticas patrimoniais utilizam cotidianamente esses termos com definições inversas das apresentadas na Carta de Burra, com conservação designando as ações de manutenção da matéria do bem e desaceleração da sua degradação, enquanto preservação é o termo amplo que compreende todas as medidas tomadas para a continuidade da matéria e da significação do monumento. A Decisão Normativa Nº 83, elaborada pelo Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CONFEA) em 2008, traz os conceitos difundidos no

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Brasil. O documento define conservação como o conjunto de técnicas destinadas a prolongar o tempo de vida de uma edificação e a preservação como o termo mais amplo, que abrange a conservação e a restauração e tem por objetivo a integridade e a perpetuidade de um bem cultural (CONFEA, 2008). Os arquitetos e urbanistas não fazem mais parte do sistema CONFEA, contando com o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR) e respectivas instâncias estaduais após a promulgação da Lei Nº 12.378/2010 (BRASIL, 2010a). A terminologia utilizada pelos profissionais, porém, permanece aquela presente na Decisão Normativa Nº 83 do CONFEA. Em 1987, em reunião na cidade americana de Washington, o ICOMOS redigiu a Carta Internacional para a Salvaguarda das Cidades Históricas, conhecida como Carta de Washington, que pretende complementar a Carta de Veneza. Este documento traz uma assertiva importante, a de que “[...] todas as cidades do mundo são a expressão material da diversidade das sociedades através da história, sendo, por esse fato, históricas” (ICOMOS, 1987, p.1). Este é um avanço em relação aos enunciados anteriores, que limitavam suas considerações ao entorno imediato de bens arquitetônicos. A Carta coloca a necessidade de incluir a preservação no planejamento urbano, como parte de uma política coerente de desenvolvimento econômico e social, que trate do “[...] conjunto de elementos materiais e espirituais que lhe determinam a imagem” (ICOMOS, 1987, p. 2). Estas incluem a forma urbana definida pela malha fundiária e rede viária, as relações entre os edifícios e os espaços livres, as formas dos edifícios, a relação da malha urbana com o ambiente natural e as vocações que aquela cidade assumiu ao longo da sua história. Por fim, são colocados instrumentos de que se pode lançar mão para implantar uma política de salvaguarda, que contemplam o envolvimento da população, a manutenção permanente do corpo edificado, a educação patrimonial, o objetivo de melhorar as condições de habitação, a regulamentação do tráfego de veículos, entre outros (ICOMOS, 1987). Naquele mesmo ano, aconteceu no Brasil o 1º Seminário Brasileiro para Preservação e Revitalização de Centros Históricos, na cidade carioca de Petrópolis, que teve como documento final a Carta de mesmo nome. Nela é definido o Sítio Histórico Urbano (SHU) como o “[...] espaço que concentra testemunhos do saber cultural da cidade em suas diversas manifestações”, parte de um contexto amplo que engloba as relações entre ambientes natural e construído e as vivências de seus habitantes (SEMINÁRIO BRASILEIRO PARA PRESERVAÇÃO E REVITALIZAÇÃO DE CENTROS HISTÓRICOS, 2014, p. 1). A cidade é entendida como expressão cultural socialmente fabricada e, como tal, é um testemunho em constante transformação de todos os processos que se passam ali. Sua

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preservação deve manter a ambiência ao mesmo tempo em que assegura a permanência das populações residentes e a continuidade da polifuncionalidade. Coloca-se a possiblidade de empregar inventários participativos como forma de conhecimento e valoração, mas também como instrumento de fortalecimento do vínculo da população com SHU. Deve-se também propiciar a ação conjunta de todas as esferas do governo e a sociedade interessada (SEMINÁRIO

BRASILEIRO

PARA

PRESERVAÇÃO

E

REVITALIZAÇÃO

DE

CENTROS HISTÓRICOS, 2014). Alguns anos depois, em 1995, aconteceu em Lisboa o 1º Encontro Luso-Brasileiro de Reabilitação Urbana, cujo documento final foi a Carta de Lisboa sobre a Reabilitação Urbana Integrada, comumente conhecida como Carta de Lisboa. A primeira parte desse documento traz uma série de definições sobre a preservação e intervenção em edifícios e sítios históricos, das quais a maior parte está em acordo com as demais Cartas apresentadas. Destaca-se aqui o conceito de requalificação urbana, especialmente pertinente para a proposta que se deseja aqui embasar: É uma estratégia de gestão urbana que procura requalificar a cidade existente através de intervenções múltiplas destinadas a valorizar as potencialidades sociais, económicas e funcionais a fim de melhorar a qualidade de vida das populações residentes; isso exige o melhoramento das condições físicas do parque construído pela sua reabilitação e instalação de equipamentos, infraestruturas, espaços públicos, mantendo a identidade e as características da área da cidade a que dizem respeito (ENCONTRO LUSO-BRASILEIRO DE REABILITAÇÃO URBANA, 1995, p. 1).

O restante da Carta traz ainda a necessidade de se inserir as medidas de preservação na lógica do desenvolvimento sustentado, à medida em que contradizem uma certa lógica consumista imobiliária, prolongam a vida útil das edificações e mantêm sua presença na vida econômica, sempre tendo como objetivo a melhoria nas condições de vida do ser humano (ENCONTRO LUSO-BRASILEIRO DE REABILITAÇÃO URBANA, 1995). Com a já mencionada ampliação do campo do patrimônio ocorrida na segunda metade do século XX, um dos desdobramentos foi a edição de cartas patrimoniais dedicadas a categorias específicas de patrimônio. Em 2003, o The International Comittee for the Conservation of the Industrial Heritage (TICCIH) realizou uma reunião na cidade russa de Nizhny Tagil, na qual foi redigida a primeira carta dedicada ao patrimônio industrial. A primeira parte é dedicada a definir essa categoria de patrimônio, que inclui “[...] os vestígios da cultura industrial que possuem valor histórico, tecnológico, social, arquitectónico ou científico” (TICCIH, 2003, p. 3). Estão inclusos nesse universo bens relacionados à produção de matéria-prima, beneficiamento, manufatura, geração de energia e transportes, representativa de um momento em que a humanidade ingressou com a Revolução Industrial,

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iniciada na segunda metade do século XVIII, em que os processos sociais se transformam cada vez mais rápido. O processo de estudo, investigação e conhecimento desses bens, com o emprego de métodos de investigação multidisciplinares, é denominado arqueologia industrial (TICCIH, 2003). Os bens industriais carregam “[...] o testemunho de actividades que tiveram e que ainda têm profundas consequências históricas” (TICCIH, 2003, p. 4), característica que justifica a sua preservação. Eles trazem registros da vida a população comum e do trabalho que ali realizaram, carregando, portanto, valor científico e tecnológico além de qualquer possível valor estético; quaisquer desses bens, independentemente da sua excepcionalidade, carregam esses valores. As questões relativas ao conhecimento, registro, levantamento e inventário são para o patrimônio industrial iguais aos das outras categorias, mas a legislação pertinente deve contemplar sua natureza específica, seus bens móveis e imóveis e a paisagem que constituem (TICCIH, 2003). A conservação desses sítios depende da “[...] preservação da sua integridade funcional” (TICCIH, p. 2003, p. 10), o que inclui tanto a manutenção dos bens móveis integrados (como maquinário) como da sua possibilidade de sua utilização continuada. Evidentemente, os movimentos do capital por vezes impõem o encerramento das suas atividades; nesses casos, a Carta recomenda a conservação in situ dos bens, com a possibilidade de adaptação de uso, desde que fundamentadas no profundo conhecimento das atividades ali realizadas. Este conhecimento constitui em si um bem patrimonial importante, a ser preservado e reconhecido. A restauração, entendida como o restabelecimento do bem a um estado anterior, deve ser encarada como medida excepcional. Por último, o documento coloca a necessidade de formar mão de obra qualificada para a preservação e a intervenção nesses bens, assim como a adoção de medidas de educação patrimonial e de reconhecimento dos sítios industriais e das atividades ali realizadas (TICCIH, 2003). Em 2011, o TICCIH e o ICOMOS reuniram-se e redigiram um documento intitulado Princípios Conjuntos ICOMOS-TICCIH para a Conservação de Sítios, Estruturas, Áreas e Paisagens do Patrimônio Industrial – Os Princípios de Dublin (em tradução livre nossa), adotados posteriormente em assembleia geral pelo ICOMOS, o que lhe confere uma abrangência maior fora dos círculos específicos do patrimônio industrial. Reconhecendo que esses bens patrimoniais testemunham importantes acontecimentos transformadores da vida da sociedade e estão constantemente em risco pelo desconhecimento, falta de proteção e pela mudança nas tendências econômicas, o documento aprofunda a definição da Carta de Nizhny Tagil, afirmando que

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Percebe-se que agora há uma compreensão mais ampla desta categoria de patrimônio, incluindo um maior leque de bens e destacando uma ampla gama de aspectos culturais que não estavam presentes ainda na Carta de Nizhny Tagil, como a paisagem cultural constituída por esses bens e todo o patrimônio imaterial formado em torno do trabalho ali realizado. Partindo dessa definição, os Princípios compreendem quatro diretrizes gerais para o tratamento desse patrimônio: documentar e compreender, que deve abranger as dimensões material, técnica, social, histórica, entre outras e uma ampla gama de fontes; garantir proteção e conservação efetiva, empregando iniciativas públicas e privadas, inventários e listas, no caso dos bens não operacionais, e reconhecimento de que a continuidade do funcionamento dos bens operacionais constitui, por si só, um valor patrimonial, devendo ser levado em consideração no desenvolvimento e aplicação de quaisquer iniciativas, que devem também contemplar todos os bens móveis integrados; conservar e manter, que deve contar sempre que possível com a continuidade do uso através de intervenções mínimas, reversíveis e extensamente documentadas; apresentar e comunicar, para proporcionar conhecimento público e corporativo e apoiar a formação e a pesquisa, que reconhece a dimensão de portador de importante conhecimento técnico e científico, mas também cultural e histórico que esse patrimônio tem, devendo ser objeto de exposições e outras iniciativas afins que gerem envolvimento com o público de modo a facilitar a preservação ao mesmo tempo em que auxilia na formação de mão de obra qualificada (ICOMOS; TICCIH, 2011). As cartas patrimoniais, das quais se fez aqui um recorte das mais pertinentes, são documentos de importante conhecimento para trabalhos como este, pois, como fruto que são de encontros de profissionais e pesquisadores de diversas realidades e áreas do conhecimento, apresentam sínteses e análises pertinentes para as atuações do tipo. Seu estudo e reflexão são importantes para a fundamentação de intervenções como a que se propõe para Capitão de Campos, pois fornecem subsídios para a compreensão da realidade da qual o bem patrimonial

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faz parte e para o próprio projeto, uma vez que este deve ser fruto de estudos consistentes e não de mera especulação. Referenciando-se nos conceitos expostos, a intervenção proposta para o conjunto de Capitão de Campos é definida como uma requalificação urbana, nos termos da definição da Carta de Lisboa, uma vez que se almejou valorizar as potencialidades da área através do projeto. As formulações presentes nas demais cartas mencionadas são pontos importantes para a análise crítica que necessariamente precede a proposta, tanto para a apreensão da realidade atual quanto para a compreensão dos valores e significância de que os bens são portadores.

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3 A PRÁTICA PRESERVACIONISTA

Além do conhecimento e reflexão sobre a história e teorias do restauro e da prática preservacionista no ocidente, este tipo de trabalho demanda, para seu embasamento, também conhecer os desdobramentos que o pensamento e as ações internacionais tiveram onde se vai efetivamente intervir. Desta forma, são feitas aqui breves exposições sobre as iniciativas empreendidas para a preservação do patrimônio a nível federal, estadual e municipal.

3.1 A PRESERVAÇÃO NO BRASIL

No Brasil, há notícia de algumas ações de preservação isoladas, por iniciativa individual, realizadas ao longo dos períodos colonial e imperial. No entanto, foi no século XX que a questão assumiu proporções e alcance mais amplos. A prática preservacionista estava, nos anos 1920, concentrada nos grandes museus nacionais, com a preocupação de proteger os vestígios do passado da nação e os monumentos e objetos de valor histórico e artístico. Não havia, porém formas eficazes de se salvaguardar os bens que não faziam parte desses acervos, especialmente os imóveis. A partir da denúncia de intelectuais sobre o abandono das cidades históricas, o tema passou a ser objeto de debate nas instituições culturais, na imprensa e no governo (FONSECA, 2009). Muitos desses intelectuais que então chamavam a atenção para essa questão seriam depois ligados ao movimento moderno das artes no país e à Semana de Arte Moderna de 1922. O movimento tinha uma tônica de emancipação, fundada numa ética de libertação e de transformação rumo ao aperfeiçoamento moral e social. Dentro dessa visão de modernidade, a temática patrimonial era importante como instrumento de transformação da realidade brasileira e construção de uma nação globalizante e inclusiva, de modo a registrar o passado para abrir-se para o futuro. Essa aparente contradição do olhar modernista que foca o passado não tinha viés saudosista, mas o objetivo de analisar o antigo, pois, numa perspectiva evolucionista, eles consideravam-se herdeiros da tradição do país. Seu projeto estético, ético e social era de criar uma nova arte genuinamente brasileira, fazendo o Brasil adentrar o mundo moderno pela busca e afirmação de uma identidade própria, uma vez que consideravam não existir uma cultura própria, de identificação nacional (VILLASCHI, 2008). Os intelectuais e artistas ligados ao modernismo brasileiro não eram um grupo homogêneo ou mesmo politicamente ativo em sua totalidade, contando com figuras tão díspares quanto Oswald de Andrade, Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Menotti Del

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Picchia e Plínio Salgado. A Semana de 1922 apresentava-se como antiburguesa, embora contasse com o apoio da indústria cafeeira em figuras como a de Paulo Prado. O contexto cultural da década de 1920 foi marcado, na literatura e nas artes, pelo não-realismo com incorporação de elementos das vanguardas europeias, pela visão crítica do Brasil europeizado e pela valorização dos traços primitivos da cultura nacional. Na arquitetura, o modernismo também se deu através da incorporação da vanguarda europeia, notadamente através da influência de Le Corbusier, numa reação ao ecletismo Beaux-Arts que era então adotado tanto pelas elites quanto pelo poder público. A reação se deu inicialmente pelo movimento neocolonial, até que na década de 1930 o apoio de algumas figuras centrais da economia cafeeira propiciou o estabelecimento da Arquitetura Moderna no país. Essas primeiras manifestações estavam, portanto, integradas a um movimento mais amplo de questionamento das estruturas culturais e políticas do país à época, quando vigorava a chamada República do Café com Leite (FONSECA, 2009). Quando Getúlio Vargas assumiu a presidência da república em 1930, realizou uma reforma no aparelho estatal que incluiu a criação de novos ministérios, como o da Educação e Saúde (MES), o do Trabalho e o Departamento Nacional da Propaganda. Em 1937, ao inaugurar o período autoritário chamado de Estado Novo, Vargas aprofundou essa reforma e buscou conferir ao Estado o papel de “organizador da vida social e política”. Nesse movimento, seu governo assumiu contornos ditatoriais e instaurou a censura, mas abriu pela primeira vez o governo federal para a participação da intelectualidade, agregando até mesmo aqueles não alinhados com seu regime para o processo de construção da nação. O aparato estatal passou a incentivar a participação em atividades cívicas e usar as tradições culturais brasileiras para legitimar o regime, recorreu à criação de símbolos, que instrumentalizavam esses conteúdos, para invocar a ideia da pátria. Dessa forma, o regime buscou estruturar uma base mítica para o Estado que intentava construir. Naquele ano, com a nomeação de Capanema como ministro do MES, iniciou-se uma reforma na estrutura interna do órgão, com a criação do Instituto Nacional do Livro, do Serviço Nacional de Teatro, do Instituto Nacional de Cinema Educativo e do Serviço de Radiodifusão Educativa (estes dois últimos, disputados pelo Ministério da Justiça como instrumento de propaganda) e a assimilação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), criado no ano anterior, do Conselho Nacional de Cultura e do Conselho Consultivo do SPHAN (FONSECA, 2009). Ao longo da década de 1930, as artes e a literatura mudaram de ênfase, distanciandose do projeto estético da década anterior e assumindo um projeto ideológico, cuja produção conferiu à noção de identidade nacional uma positividade e um tom afirmativo inédito. A

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arquitetura moderna recebeu apoio oficial através da nomeação de Lúcio Costa para a direção da Escola Nacional de Belas Artes e a formação de uma equipe de jovens arquitetos modernistas para a criação do prédio do MES, considerado hoje um marco importante do Modernismo no país que se converteu em um monumento aos novos tempos (FONSECA, 2009). Esse movimento apresentou um sentido de ruptura com a arte produzida até então no Brasil, cuja literatura era acomodada, formalmente rebuscada e imbuída de ufanismo, fruto da vida cultural restrita dos períodos colonial e imperial. A literatura modernista veio, assim, para fundar de fato uma literatura que cumprisse a função social de elaborar esteticamente uma representação crítica do real, ao mesmo tempo em que formulavam uma nova expressão artística, afinada com a vanguarda europeia e com a modernidade. A tônica nacionalista vinha do pensamento de que um rompimento com o passado só fazia sentido em países que já contavam com uma traição nacional internalizada, enquanto no Brasil a tradição ainda estava por construir. Assim, essa construção conferiria o caráter de novo e particular àquela arte. Lúcio Costa fez movimento inverso para chegar ao mesmo ponto ao partir do neocolonialismo para o modernismo, integrando modernidade e tradição na reflexão sobre as especificidades da arquitetura e seu contexto. Essa peculiaridade dos modernistas brasileiros, a busca ao mesmo tempo de ruptura e construção de uma tradição, está na base do seu trabalho junto à área patrimonial. Nesse momento, ocorre também a afirmação da importância de Minas Gerais para o movimento, tanto por ser a origem de membros importantes quanto pelas viagens culturais que diversos artistas empreenderam ao estado. Lá, os intelectuais que mais tarde integrariam o SPHAN “descobriram” o barroco mineiro, entendido como primeira manifestação cultural tipicamente brasileira, e perceberam a necessidade de proteger os monumentos históricos (FONSECA, 2009). As iniciativas preservacionistas estatais precursoras vieram, em resposta às denúncias de perda de bens importantes, na forma da criação de Inspetorias Estaduais de Monumentos Históricos na esfera estadual, em Minas Gerais (1926), na Bahia (1927) e em Pernambuco (1928), que tinham acervos significativos. Na esfera federal, as primeiras iniciativas surgiram no âmbito dos museus nacionais. Nos anos 1920, alguns anteprojetos de lei para defesa do patrimônio histórico e artístico nacional foram apresentados ao Congresso, esbarrando sempre na questão da propriedade. A primeira iniciativa preservacionista do governo federal foi a elevação de Ouro Preto a monumento nacional, realizada por decreto em 1933, e o primeiro órgão federal dedicado à preservação foi a Inspetoria dos Monumentos Nacionais, criada em 1934 e vinculada ao Museu Histórico Nacional. No mesmo ano, Gustavo Capanema assumiu

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o MES, atribuindo aos modernistas a tarefa patrimonial tanto pela sua proximidade com o movimento quanto pela qualidade da produção de seus integrantes (FONSECA, 2009). O Estado Novo (1937-1945) integrou o ideário patrimonial no seu projeto de construção da nação e apelo a uma identidade nacional. Em meio a esse contexto, Capanema solicitou ao poeta Mário de Andrade que elaborasse, em 1936, um projeto para a criação do órgão preservacionista federal e suas diretrizes de atuação para proteção do patrimônio. O projeto tinha peculiaridades em relação ao realizado na Europa, por contar com uma definição ampla que reunia todo o universo de bens patrimoniais sob a proteção de uma única instituição. Andrade definiu o Patrimônio Artístico Nacional como “todas as obras de arte pura ou aplicada, popular ou erudita, nacional ou estrangeira” e, pela amplitude do próprio conceito adotado de arte como “habilidade com que o engenho humano se utiliza da ciência, das coisas e dos fatos”, encarava como constituinte desse conjunto a totalidade dos bens culturais, antecipando a abordagem atual de patrimônio ao considerar significativas todas as manifestações culturais do homem brasileiro. A noção de arte, definida então próxima da concepção antropológica de cultura, com ênfase não esteticista, era o elemento unificador da ideia de patrimônio. As obras eram classificadas em oito categorias: arte arqueológica, arte ameríndia, arte popular, arte histórica, arte erudita nacional, arte erudita estrangeira, artes aplicadas nacionais e artes aplicadas estrangeiras. Mário de Andrade considerava que, em caso de um mesmo bem apresentar valor ao mesmo tempo artístico e histórico, deveria ser patrimonializado pelo valor histórico, que teria o potencial de “atrair as massas para os monumentos” (FONSECA, 2009; VILLASCHI, 2008). Em 1936, o SPHAN foi criado dentro da estrutura do MES, tendo Rodrigo Melo Franco de Andrade como diretor, Mário de Andrade como assistente técnico em São Paulo, Lúcio Costa como chefe da Divisão de Estudos e Tombamentos, Carlos Drummond de Andrade como chefe da Seção de História, entre outros nomes de destaque (FONSECA, 2009). Após um período de funcionamento experimental, o governo federal editou no ano seguinte o Decreto-Lei nº 25/37, que regulamenta a atuação do órgão. Em comparação ao projeto de Andrade, o texto efetivamente adotado adota escopo bem mais restrito de bens para proteção, apresentando a seguinte definição: Constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interêsse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (BRASIL, 1937, p. 1).

Ainda que a conceituação de patrimônio tenha ficado em aberto, é possível perceber que o Decreto-Lei coloca toda a ênfase nos bens materiais, ao invés de abranger toda a

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diversidade de manifestações prevista no texto anterior. Considera-se que essa postura foi fruto da moderação do ministro Capanema, que buscou evitar a asfixia a que o órgão estaria sujeito se assumisse todas as obrigações que o projeto de Andrade supunha (FONSECA, 2009; VILLASCHI, 2008). Além das definições conceituais e organizacionais, que já haviam sido equacionadas, também coube a este decreto-lei equacionar a questão da propriedade, que havia inviabilizado os projetos anteriores. Apoiando-se no fato de a Constituição de 1934 ter estabelecido um limite ao direito de propriedade na forma da sua função social, estabeleceu-se um novo instrumento para a preservação, o instituto do tombamento. Essa nova medida garante a continuidade do uso e da posse daquele bem ao mesmo tempo em que estabelece a obrigatoriedade de proteção, criando um compromisso entre o direito individual à propriedade e o interesse público na preservação enquanto eliminava a onerosa necessidade de desapropriação. Do ponto de vista legal, a atuação do SPHAN estava então resolvida, restando a tarefa de legitimá-lo socialmente. Franco de Andrade buscou alcançar esse objetivo através da fixação de um padrão de trabalho dentro de rigorosos padrões, a incorporação de quadros qualificados, a imagem de coesão e desvinculamento de interesses partidários e a defesa intransigente do decreto-lei. Nesse contexto, as diferenças entre o anteprojeto de Mário de Andrade e o texto adotado de fato não constituem uma oposição incontornável. O recuo na definição de patrimônio e a atuação centrada nos bens materiais foram medidas motivadas pela conjuntura da época e, como o tombamento interfere em outros valores (especialmente econômicos), era necessário fundamentá-lo em critérios juridicamente defensáveis e socialmente aceitáveis, impondo limites ao “vanguardismo” do órgão (FONSECA, 2009). O tombamento teve seu nome inspirado na Torre do Tombo, o arquivo público português, e é empregado continuamente pelo órgão desde então. O atual IPHAN apresenta a seguinte definição: É o mais antigo instrumento de proteção em utilização pelo IPHAN e proíbe a destruição de bens culturais tombados, colocando-os sob vigilância do Instituto. Para ser tombado, um bem passa por um processo administrativo, até ser inscrito em pelo menos um dos quatro Livros do Tombo instituídos pelo Decreto: Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; Livro do Tombo Histórico; Livro do Tombo das Belas Artes; e Livro do Tombo das Artes Aplicadas (IPHAN, 2014A).

O espírito do anteprojeto de Mário de Andrade permaneceu nas diversas publicações feitas pelo SPHAN sobre as produções populares e regionais e no reconhecimento do seu valor pelos quadros da instituição. A prática dos tombamentos, porém, concentrou-se nos remanescentes da arte colonial, ameaçados pela urbanização, pela comercialização com colecionadores estrangeiros e pelo descaso da população que identificava aqueles bens com

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ideias de atraso. Os quadros do órgão percorreram o país nos últimos anos da década de 1930 pesquisando bens que formariam esse corpo inicial do patrimônio artístico e nacional brasileiro, privilegiando as áreas onde ocorreram os chamados ciclos econômicos, nas regiões Sudeste e Nordeste, tendo as regiões Norte e Centro-Oeste sido contempladas apenas na década seguinte. O conjunto deixa clara uma associação entre identidade nacional, patrimônio cultural e a experiência colonizadora portuguesa (FONSECA, 2009; MILET, 1988). A descoberta do barroco e da arquitetura colonial pelos intelectuais do SPHAN não se deu através do discurso triunfalista oficial, mas pela noção de civilização material, que considerava aqueles bens na sua relação com o processo histórico de ocupação das diferentes regiões do país. Essa foi também a justificativa para privilegiar os representantes da herança cultural portuguesa, pois se considerou que as culturas negra e indígena não haviam deixado vestígios relevantes. Da mesma forma que o valor histórico era atribuído de acordo com a historiografia da época, a priorização dos monumentos arquitetônicos religiosos aconteceu pelo seu número e por uma intenção didática e exemplificativa, uma vez que nessa cultura de origem latina o templo religioso era enfatizado no tecido urbano e recebia decoração opulenta. Já o valor de excepcionalidade segundo o qual se selecionava os bens estava relacionado ao caráter discricionário da patrimonialização. Rodrigo Melo Franco de Andrade afirmava que essa excepcionalidade deveria ser ajuizada não em comparação com exemplos já consagrados de outros países, mas com o universo dos bens produzido no Brasil (FONSECA, 2009; MILET, 1988). Outro desafio que o órgão precisou enfrentar foi o da legitimação dos seus critérios de atuação junto à população, que esperava reconhecer no patrimônio valores de beleza e realidade da nação (numa postura que Alois Riegl já previa, ao afirmar que o conjunto das pessoas buscava o valor de novidade nos monumentos). O SPHAN, porém, selecionava e atuava sobre os bens de acordo com critérios que se pretendiam científicos, relacionados à autenticidade, cujos valores só eram evidentes para um grupo restrito de pessoas. Os quadros do órgão terminaram, nesse sentido, por se integrar à postura estadonovista de construção da nação ao esperar que o Estado assumisse o papel de guardião e mediador dos valores culturais. Seu corpo técnico predominantemente de arquitetos acabou por marcar o conjunto de tombamentos realizados até os anos 60 por outros critérios, decorrentes da forma e da leitura que os modernistas faziam da história da arquitetura brasileira. Essa prática se cristalizou numa espécie de jurisprudência que guiou a atuação do órgão ao longo das suas primeiras décadas (FONSECA, 2009).

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A inscrição no Livro do Tombo é um ato discricionário, interpretativo do valor cultural de um bem pelo agente autorizado. Essa interpretação é gradualmente produzida, embasada pelas diferentes etapas de indicação, inventário, informação e pareceres técnicos, vinculadas à versão do órgão para esses valores. Porém, especialmente durante essa primeira fase da sua atuação, os tombamentos do SPHAN foram influenciados por fatores políticos e ideológicos diversos. No final dos anos 1930, especificamente em 1938, foi tombado um grande número (292) de monumentos iniciais, oriundos principalmente do século XVIII, mas também do XVI e XVII. Eram principalmente exemplares da arquitetura religiosa, seguidos das arquiteturas civil e militar, dos conjuntos e de outros de menor número. Predominavam as inscrições no Livro de Belas Artes (LBA), seguidas pelas duplas inscrições no Livro Histórico e no de Belas Artes (LH/LBA). Nesse primeiro momento, foram raras as inscrições apenas no LH, com alguns bens de claro valor histórico inscritos apenas no LBA. Tal fato se deu por uma hierarquização informal dos livros, em que o LBA assumiu proeminência, e pela constituição do patrimônio majoritariamente por critérios estéticos e afinidades eletivas numa instituição que então praticamente não contava com historiadores. Só nos anos 1960 o LH assumiria prioridade nas inscrições (FONSECA, 2009). Quanto aos estilos, também havia uma hierarquização. O barroco era o mais valorizado, seguido pelo neoclássico. A arquitetura moderna, imbuída da mesma busca pela construção de uma identidade nacional e da qual alguns exemplares foram produzidos por pessoas próximas aos quadros do órgão, foi valorada cedo, com bens tombados já nos anos 1940. O eclético, apesar de característico da Primeira República, tinha menos importância estética aos olhos dos arquitetos modernistas, contando com poucos bens tombados, todos exclusivamente por seu valor histórico (FONSECA, 2009). São já desse primeiro período de atuação os primeiros tombamentos de bens patrimoniais industriais: as ruínas da Fábrica de Ferro Patriótica em Ouro Preto (1938), a casa do Engenho Matoim, o engenho em Candeias, na Bahia (ambos em 1943) e a Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema, em Iperó (1964). Destaca-se que esses bens foram valorados antes da formação de um debate consistente sobre o patrimônio industrial no país, recebendo a salvaguarda pelas características arquitetônicas do monumento, como no caso dos engenhos, ou pela sua relevância para a história nacional, caso das fábricas (ROSA, 2011). O processo que culminou no fim do Estado Novo em 1945 iniciou-se alguns anos antes e contou com a mobilização de setores da intelectualidade ligados à cultura. Franco de Andrade, porém, não endossou explicitamente as manifestações contrárias ao governo, por receio de prejuízos para o SPHAN. O restabelecimento da democracia não trouxe grandes

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mudanças para a política federal de preservação, que manteve o mesmo dirigente e praticamente a mesma orientação até o fim dos anos 1960, com o novo nome de Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), parte do novo Ministério da Educação e Cultura (MEC), criado em 1953. Essa continuidade, porém, tinha relação com a pouca importância que os governos seguintes davam à questão patrimonial, que não era uma arena importante do jogo político e ideológico. O novo modelo de desenvolvimento adotado no país nas décadas de 1950 e 1960 associou o nacionalismo à modernização, incentivando a industrialização, a urbanização e a interiorização. A preservação sofreu consequências tanto no nível simbólico (da contraposição entre modernização e continuidade e tradição) quanto nos níveis econômicos e sociais, devido à intensa migração e à valorização do solo urbano. Surgiram então tensões na prática da DPHAN, especialmente para preservação das cidades e centros históricos (FONSECA, 2009). O que ocorreu com a DPHAN, na verdade, foi um desgaste do seu modelo, pela tecnificação da sua atividade, pouca renovação dos quadros, oposição da especulação imobiliária, restrição das atividades de pesquisa e divulgação e concentração na questão dos tombamentos e obras. Ao longo dos 30 anos em que foi dirigido por Franco de Andrade, a chamada Fase Heroica, o SPHAN/DPHAN consolidou uma prática de rigor ético e atuou de forma expressiva para a preservação e o restauro de diversos bens de valor histórico e artístico. No entanto, não foi alcançada uma mobilização mais ampla do governo e da sociedade para conhecimento e preservação do patrimônio, o que passou a ser considerado de fundamental importância (FONSECA, 2009). O caráter cultural da atuação da DPHAN (transformada em Instituto, com a sigla IPHAN, em 1970) na fase heroica demonstrou-se insuficiente para esse novo contexto. O órgão recorreu à Unesco, a partir de 1965, para reformular sua atuação, passando então de uma postura intransigente para uma de negociação e busca da compatibilização entre preservação e desenvolvimento. Ao invés de sensibilizar e persuadir a população para o tema, o novo objetivo era demonstrar que o valor cultural e o econômico não são conflitantes, tanto pelo agenciamento dos bens culturais para a atividade turística quanto pela busca neles de indicadores culturais para o desenvolvimento. A primeira alternativa, presente nas Normas de Quito elaboradas em encontro internacional naquela cidade em 1967 e adotadas no Brasil nos encontros de governadores de 1970 e 1971, levou à criação do Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas (PCH), em 1973. A segunda gerou o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), criado em 1975. Ambas partiam do pressuposto de que a estrutura do IPHAN era, agora, insuficiente (FONSECA, 2009).

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Um dos princípios dessa nova orientação era a descentralização, através da suplementação da ação federal por estados e municípios. Outros setores do governo passaram a atuar no PCH, voltado inicialmente para as regiões Norte e Nordeste, com inclusão posterior do Sudeste. O programa objetivava criar infraestrutura adequada ao desenvolvimento e suporte de atividades turísticas e uso dos bens culturais como fonte de renda em regiões carentes, revitalizando monumentos degradados. O PCH contava com recursos que faltavam ao IPHAN, que atuava como referência técnica e conceitual, campo em que também houve questionamentos (FONSECA, 2009). Após a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural da Unesco, em 1972, países da África, América Latina e Ásia reivindicaram a proposição a nível internacional de instrumentos de proteção do patrimônio popular. No Brasil, diversos setores, inclusive dentro do governo militar, acreditavam que era necessário atualizar a própria conceituação e composição do patrimônio, até então praticamente limitada a uma vertente luso-brasileira elitista, negligenciando manifestações mais recentes e também as oriundas da cultura popular. A partir das reuniões de um grupo de professores da UnB para discutir o reconhecimento e a fisionomia própria do produto brasileiro (numa indagação próxima à dos modernistas de 22 sobre a identidade nacional), foi criado em 1975 o CNRC, dirigido por Aloísio Magalhães. O objetivo inicial do órgão era criar um banco de dados e um centro de documentação que possibilitasse o conhecimento e o acesso aos produtos culturais brasileiros, não para eleger símbolos ou conhecer e divulgar tradições, mas para buscar indicadores para um modelo de desenvolvimento, colocando a cultura como meio para este fim. Ao contrário do corpo técnico do IPHAN, tradicionalmente formado por uma maioria de arquitetos, o CNRC tinha equipe bastante diversificada em formação e interesses, atuando de maneira interdisciplinar

e

formulando

tipologias

apenas

a

posteriori

(FONSECA,

2009;

SANT’ANNA, 2009). O perfil dos funcionários do órgão e sua independência administrativa possibilitaram ao CNRC ter atuação ágil e diversificada, ainda que dispersa em alguns momentos. Os projetos eram diversificados em escopo, complexidade e metodologia, buscando alcançar uma amostragem da realidade brasileira e focando no potencial dos projetos, numa perspectiva de desenvolvimento que buscava dar novo tom ao termo após a crise econômica do início dos anos 1970. Constituía uma inovação na política patrimonial brasileira por ser um órgão governamental voltado a diversos aspectos do patrimônio imaterial e das produções populares. Após um primeiro momento focado em experiências de referenciamento, o centro se estruturou em quatro programas: mapeamento do artesanato brasileiro, levantamentos

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socioculturais, história da ciência e da tecnologia no Brasil e levantamento de documentação sobre o Brasil, que alcançaram objetivos e resultados diversos (FONSECA, 2009). Ainda que tenha partido da preocupação de conferir caráter ao produto nacional, que tem relação com a ideia de tradição da mesma forma que as formulações dos modernistas de 22, o CNRC desenvolveu um trabalho que encarava essa tradição como algo vivo, dinâmico e plural, de onde viria seu potencial criativo. Essa postura estaria em oposição à imagem de cultura adotada pelas instituições, que seria restrita, morta, testemunho do passado ou expressão individual. Progressivamente, foi formulada a ideia de bem cultural, mais abrangente que a de patrimônio histórico (que constituiria um subtipo). Sua inovação maior, porém, foi a mediação entre a cultura e o interesse nacional na forma da apresentação de formas de gerar valor econômico e alternativas para o desenvolvimento que permitissem adaptar no nível micro os modelos importados para a realidade brasileira (FONSECA, 2009). Em 1979, o governo realizou a fusão do IPHAN, do PCH e do CNRC, reorganizando a política cultural federal em um órgão normativo, a Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), e um executivo, a Fundação Nacional pró-Memória (FNpM). Aloísio Magalhães, que assumiu então a direção da SPHAN, encarava esse processo como uma revitalização daquele órgão e uma operacionalização do CNRC, numa perspectiva de continuidade dos trabalhos deste último e de suprimento de uma lacuna na atuação do IPHAN, focada nos bens de pedra e cal. O CNRC tinha uma contribuição importante também na sua elaboração da dicotomia entre cultura erudita e cultura popular. Os técnicos do IPHAN reconheciam o valor cultural das manifestações populares, mas tinham dificuldade para aplicar a eles os mesmos critérios de valoração e proteção que empregavam para as expressões eruditas, entre as quais estavam os bens de “excepcional valor”. Para o CNRC, essa distinção deveria assumir outros contornos, conferindo o mesmo status de patrimônio à produção de contextos populares e etnias indígenas e afro-brasileiras. Na gestão de Aloísio Magalhães, a prática de preservação também não se resumia mais a coletar bens para guardar, mas fundava-se sobre a noção de dinamizar a memória, colocando a atividade de proteção a serviço da sociedade em sua vida cotidiana (FONSECA, 2009). Nesse processo de reordenamento institucional da área cultural do MEC, Aloísio Magalhães buscou democratizar o aparelho estatal de diversas formas. Primeiramente, realizou seminários reunindo quadros de diferentes áreas da administração pública em 1979, quando da fusão IPHAN/PCH/CNRC, e em 1981, quando da criação da Secretaria da Cultura do MEC (SEC). Neste último, foram elaboradas as diretrizes para atuação do novo órgão, que trazia como herança do CNRC o objetivo de atender aos interesses de grupos até então

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mantidos à margem da política cultural. Enquanto o SPHAN da fase heroica buscou atingir a sociedade através de uma campanha de educação popular, a SEC pretendia não só levar em consideração as necessidades dos diferentes grupos sociais como proporcionar a participação destes em todos os processos. Buscou-se, assim, legitimar a política de preservação do patrimônio nos anos 1980 através da participação social, não mais pela seleção rigorosa de bens de valor excepcional (FONSECA, 2009). Esse novo discurso de participação foi não só compatível com o momento de abertura democrática dos últimos governos militares como foi também encampado pela Nova República iniciada em 1985. O novo período democrático tem mostrado diversas reorganizações institucionais na área da cultura. Em 1985, a SEC foi substituída pelo Ministério da Cultura (MinC), que buscou aprofundar a participação da sociedade através da criação de assessorias especiais, a realização de seminários e a implantação da Lei nº 7.505/1986 (Lei Sarney), de incentivos ficais. Em 1988, a nova Constituição incorporou a política cultural aos seus artigos 215 e 216, que estabelecem as formas pelas quais o Estado garantirá o exercício dos direitos culturais. Em 1990, a Lei Sarney foi revogada e posteriormente substituída pela Lei nº 8.313/1991 (Lei Rouanet), que ao longo do tempo fortaleceu o mecenato (incentivo a projetos culturais por meio de incentivos fiscais) como mecanismo de fomento. No mesmo ano, o MinC foi transformado em Secretaria da Cultura, diretamente vinculada à Presidência da República, e voltou a ser ministério em 1992, situação em que se encontra atualmente. Ainda em 1990, a SPHAN e a FNpM foram transformadas no Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC), renomeado como o atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1994 (FONSECA, 2009). A seção da Constituição de 1988 que trata da cultura, alterada pelas Emendas Constitucionais nº 42/2003, nº 48/2005 e nº 71/2012, é composta pelos artigos 215 e 216, a seguir: Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais. § 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: I - defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II - produção, promoção e difusão de bens culturais;

68 III - formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; IV - democratização do acesso aos bens de cultura; V - valorização da diversidade étnica e regional. Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. § 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. § 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. § 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. § 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. § 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. § 6 º É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo estadual de fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, para o financiamento de programas e projetos culturais, vedada a aplicação desses recursos no pagamento de: I - despesas com pessoal e encargos sociais; II - serviço da dívida; III - qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos investimentos ou ações apoiados. Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais. § 1º O Sistema Nacional de Cultura fundamenta-se na política nacional de cultura e nas suas diretrizes, estabelecidas no Plano Nacional de Cultura, e rege-se pelos seguintes princípios: I - diversidade das expressões culturais; II - universalização do acesso aos bens e serviços culturais; III - fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens culturais; IV - cooperação entre os entes federados, os agentes públicos e privados atuantes na área cultural;

69 V - integração e interação na execução das políticas, programas, projetos e ações desenvolvidas; VI - complementaridade nos papéis dos agentes culturais; VII - transversalidade das políticas culturais; VIII - autonomia dos entes federados e das instituições da sociedade civil; IX - transparência e compartilhamento das informações; X - democratização dos processos decisórios com participação e controle social; XI - descentralização articulada e pactuada da gestão, dos recursos e das ações; XII - ampliação progressiva dos recursos contidos nos orçamentos públicos para a cultura. § 2º Constitui a estrutura do Sistema Nacional de Cultura, nas respectivas esferas da Federação: I - órgãos gestores da cultura; II - conselhos de política cultural; III - conferências de cultura; IV - comissões intergestores; V - planos de cultura; VI - sistemas de financiamento à cultura; VII - sistemas de informações e indicadores culturais; VIII - programas de formação na área da cultura; e IX - sistemas setoriais de cultura. § 3º Lei federal disporá sobre a regulamentação do Sistema Nacional de Cultura, bem como de sua articulação com os demais sistemas nacionais ou políticas setoriais de governo. § 4º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão seus respectivos sistemas de cultura em leis próprias (BRASIL, 2016).

Fica claro que a redação do texto constitucional incorpora a noção de bem cultural, cuja preservação é justificada pelos direitos culturais que o Estado deve assegurar a todos os cidadãos. As formulações da gestão de Aloísio Magalhães frente aos órgãos federais nos anos 1970 e 1980 foram incorporadas tanto nas definições de cultura e patrimônio cultural, que incluem bens materiais e imateriais de todos os grupos sociais brasileiros, quanto na determinação de que as práticas devam contar com a colaboração da comunidade. Ficou reconhecido o papel que vários instrumentos podem cumprir para a salvaguarda do patrimônio cultural, além do tombamento. Uma maior ênfase nesse sentido, porém, só ocorreria anos mais tarde: apenas em 2000 houve a criação do Registro de bens imateriais. No fim dos anos 1980, após Quito, capital do Equador, ter sido atingida por um terremoto, o governo daquele município buscou o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para financiar sua reconstrução. Essa associação gerou em 1994 o Programa de Revitalização do Centro Histórico de Quito, em que os recursos do banco foram utilizados

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para a restauração de edifícios, investimentos em infraestrutura e transporte, manutenção da população residente nas áreas reabilitadas e fomento à iniciativa privada para reabilitação de imóveis. Essa ação foi marcadamente diferente da prática preservacionista anterior naquele país, por ter acontecido desvinculada do órgão federal competente e pela exigência da criação de uma empresa de capital misto para atrair e assegurar a viabilidade de investimentos na região (GIANNECCHINI, 2014; POZZER, 2013). Após essa experiência, o BID buscou expandir a atuação no patrimônio urbano pela América Latina e o Brasil foi considerado pela instituição um país com massa crítica suficiente para realizar um laboratório de Quito em escala nacional, que terminaria por dar origem ao Programa Monumenta. Em 1995, representantes do MinC, do IPHAN, do Ministério do Planejamento e do BID passaram a trabalhar em uma proposta de ação, mas o IPHAN acabou por ser afastado do projeto devido a divergências com o banco e os trabalhos prosseguiram dentro da estrutura do MinC. A preocupação central era desenvolver um sistema replicável para a recuperação sustentável do patrimônio, através de projetos em bens monumentais de grande visibilidade, que atrairiam mais facilmente investimentos privados rentáveis, cujos retornos financeiros comporiam um Fundo Municipal de Preservação que possibilitaria a conservação dos sítios em longo prazo. A gestão dos projetos seria descentralizada e realizada em parceria com as municipalidades (GIANNECCHINI, 2014; POZZER, 2013). A partir de 2003, o Monumenta passou ter suas ações articuladas com outros ministérios, como da Casa Civil, das Cidades, do Meio Ambiente e do Turismo, além da Caixa Econômica Federal, e a contar com parcerias com o IPHAN e a Unesco. Como resultado, houve uma série de iniciativas para capacitação e incentivo a municípios (inclusive fora do programa) para elaboração de planos diretores, financiamento de intervenções em imóveis particulares, regulamentação dos fundos municipais, elaboração de planos e roteiros turísticos para as áreas contempladas pelo programa, geração de trabalho e renda nas áreas contempladas, entre outras (GIANNECCHINI, 2014; POZZER, 2013). Paralelamente a essas intervenções no patrimônio material, vinham sendo gestados, desde os anos 1990, instrumentos de proteção do patrimônio imaterial. Em 2000, foi enfim instituído como atribuição do IPHAN o instrumento do Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, pelo Decreto nº 3.551. De maneira semelhante aos Livros do Tombo, o decreto criou quatro Livros de Registro: dos Saberes, das Celebrações, das Formas de Expressão e dos Lugares. A necessidade desse novo instrumento advém da natureza dinâmica e mutável desse patrimônio, que trata de práticas culturais. Assim, sua preservação consiste na

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documentação periódica (no mínimo, a cada dez anos) e em ações de fomento e incentivo. Foi criado também o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), que busca subsidiar as ações de registro e realizar um recenseamento mais amplo dessas manifestações. Ao adotar o conceito de referência cultural, buscou-se também superar a oposição entre patrimônio material e imaterial (SANT’ANNA, 2009; VILLASCHI, 2008). Em 2004, o IPHAN foi reestruturado, aumentando o número de superintendências e sua capilaridade no território nacional. Em 2006, o coordenador do Programa Monumenta, arquiteto Luiz Fernando de Almeida, foi nomeado presidente do IPHAN e o programa foi integrado ao Instituto. Esse momento trouxe mudanças significativas para o órgão, por resgatar sua capacidade de realizar ações de preservação e sua capacidade de investimento, redimensionar o órgão no arranjo institucional e proporcionar maior articulação e proximidade com outros ministérios, gerando força institucional. Os resultados obtidos nas intervenções com financiamento do BID, a repactuação do IPHAN com estados e municípios, o incentivo ao planejamento urbano e a ampliação do acesso da população de baixa renda a financiamentos para intervir em imóveis privados foram apontados como pontos positivos do programa. A seleção de projetos foi encerrada em 2006 e o programa foi prorrogado até 2009, por ainda contar com obras em andamento (GIANNECCHINI, 2014; SCHICCHI, 2012). Também em 2009, como parte do Sistema Nacional do Patrimônio Cultural, o debate atual sobre intervenções em centros históricos foi incorporado ao instrumento do Plano de Ação para Cidades Históricas, que consiste num planejamento integrado que trate de todas as potencialidades de cerca de 140 cidades que têm seu patrimônio cultural como elemento estratégico para o desenvolvimento. O Plano é elaborado por parcerias entre o IPHAN e os estados e municípios e se diferencia do Programa Monumenta por ser uma ação integrada à estrutura do Instituto desde o começo, por trabalhar com perspectivas globais que não se restringem a perímetros tombados ou projetos pontuais e por contar com financiamento inteiramente estatal. Cabe aos municípios elaborar um plano de execução das medidas, que são então supervisionadas pelo Instituto (IPHAN, 2009; SCHICCHI, 2012). Em 1992, com o avanço da discussão sobre a paisagem cultural, a Unesco havia estabelecido essa figura como uma nova tipologia de reconhecimento de bens culturais. Anos depois, o IPHAN se alinhou àquele órgão e instituiu, através da Portaria nº 127/2009, a Chancela da Paisagem Cultural. Os bens que receberão esta chancela são definidos como “[...] uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores” (BRASIL, 2009, p. 17). Este instrumento se diferencia do registro do patrimônio

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imaterial por não tratar de práticas específicas, mas de modos de vida, formas de estar no mundo. Exemplos dessas paisagens no país são o sertanejo e a caatinga, o pantanal e o boiadeiro, o cerrado e o candango, as tradições da mata e as tribos indígenas, entre outros. A chancela pressupõe um pacto entre o poder público, a sociedade civil e a iniciativa privada para a gestão compartilhada dessas porções do território (IPHAN, 2014a). Após o fim do Programa Monumenta, foi lançado em 2009 o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) das Cidades Históricas, parte do PAC mais amplo criado pelo governo federal em 2007. O novo programa sucedeu diretamente ao Monumenta na medida em que compreendeu investimentos em restaurações, reabilitações e infraestrutura, com a diferença de que o escopo é restrito a obras e, assim como nos Planos de Ação, o investimento é completamente oriundo de fontes estatais. Inicialmente, a participação no programa foi oferecida a 173 cidades com sítios tombados ou em processo de tombamento, mas 44 foram efetivamente contempladas com obras. Adicionalmente, foi disponibilizado crédito para proprietários de imóveis particulares em 105 cidades com conjuntos tombados realizarem reformas por iniciativa própria. Os bens inclusos estão divididos em seis categorias: museus, instituições de ensino, igrejas históricas, patrimônio ferroviário, equipamentos culturais e fortes e fortalezas (GIANNECCHINI, 2014; IPHAN, 2013). A inclusão de uma categoria de bens formada pelo patrimônio ferroviário está em consonância com um processo mais amplo que se iniciou no IPHAN em 2007, quando foi encerrado o processo de liquidação da RFFSA com sua extinção pela Lei nº 11.483/2007. O texto delega ao Instituto a obrigação de “[...] receber e administrar os bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta RFFSA, e zelar pela sua guarda e manutenção” (BRASIL, 2007, p. 07), além de preservar e difundir a “Memória Ferroviária constituída pelo patrimônio artístico, cultural e histórico do setor ferroviário” (BRASIL, 2007, p. 07). A enunciação desse termo, feita no parlamento com intervenção das associações de ferroviários, se utilizou de uma retórica homogeneizante e positiva, de modo a criar uma história ferroviária estável. A academia, buscando compreender o conteúdo da expressão, comumente relacionou temas da história da ferrovia, da arquitetura ferroviária e das relações sociais que se desenvolveram no país durante todo o trajeto desse modal. Até então, o patrimônio ferroviário era discutido e recebia iniciativas de salvaguarda através do instituto do tombamento, especialmente a partir dos anos 1980. Essa lei, porém, colocou duas novas questões: a atribuição de valorar e preservar um conjunto de cerca de 50 mil bens e as

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definições, conceituais e práticas, referentes a essa nova categoria, a memória ferroviária (PROCHNOW, 2014). O conceito de memória ferroviária tem alguns antecedentes. Destaca-se o trabalho do Setor de Preservação do Patrimônio Histórico Ferroviário (PRESERFE), criado em 1986 como parte da RFFSA, para suceder a um programa semelhante do Ministério dos Transportes. Esse setor atuou, até o fim dos anos 1990, para o reconhecimento dos valores culturais do patrimônio ferroviário e sua influência na arquitetura, no urbanismo e nas sociedades com que tiveram contato. O PRESERFE firmou diversas parcerias com municípios para viabilizar ações de restauração em edificações da rede, chegando a instalar os Centros Ferroviários de Cultura (espécie de centros de referências culturais) em algumas delas. Alguns elementos dessa prática seriam incorporados pelo IPHAN posteriormente. O processo de criar programas nos âmbitos do Ministério e da própria RFFSA e de incluir na lei de extinção da rede a obrigatoriedade de valorar os bens e preservar a memória da empresa podem ser lidos como representativos de uma intenção de reparação à sociedade em geral e aos ferroviários em particular (que fizeram pressão para tal) pelo fim da empresa (PROCHNOW, 2014). A Lei nº 11.483/2007 extinguiu a empresa e definiu o destino de seus bens. A rigor, todos pertencem à União, mas aqueles operacionais foram transferidos ao DNIT, enquanto os não operacionais passaram à SPU. Aqueles que o IPHAN reconhecer como de valor cultural, quando não operacionais, passam a ser administrados pelo Instituto, enquanto os operacionais são administrados em conjunto com o DNIT (BRASIL, 2007). O IPHAN iniciou, então, um processo de construção de conhecimento a respeito desses bens, com a criação da Coordenação Técnica do Patrimônio Ferroviário (CTPF). Subordinada ao Departamento de Patrimônio Material (DEPAM), a CTPF foi incumbida de coordenar as atividades de desenvolvimento de critérios e metodologias processuais para cumprimento da Lei nº 11.483 e de fazer a interlocução com as unidades descentralizadas do IPHAN e com a Inventariança da RFFSA. No início de 2010, um grupo de trabalho da comissão elaborou uma minuta de portaria que buscou propor uma solução à questão, reconhecendo as dificuldades colocadas pelo grande número de bens componentes desse espólio e a incapacidade do órgão de responder isolado a essa demanda. O texto sugere considerar o patrimônio ferroviário nas dimensões físico-espaciais, ambientais, econômicas, sociais, estético/simbólicas, histórico/etnográficas e funcionais, propondo uma “política nacional de preservação do patrimônio cultural ferroviário” e seus princípios gerais. Considera que preservar significa definir as permanências de quê, como e para quem

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preservar, sendo necessário coletar e analisar informações que revelem a identidade dos bens; que a configuração espacial faz forma a principal característica, que se expõe à contemplação, informa sobre a vida social e é fonte de entendimento histórico; que o estudo dessa configuração espacial deve considerar a formação histórica, sua morfologia, sua função na estrutura regional e da cidade, sua dinâmica de uso, produção e apropriação pela sociedade; e que os bens demandam conhecimento a partir de categorias de análise e técnicas apropriadas (PROCHNOW, 2014). Além de colocar um entendimento mais amplo do que o da Lei nº 11.483 sobre o que constitui a memória ferroviária, incluindo diversas dimensões sociais, históricas e culturais, o IPHAN estabeleceu também nessa minuta que só passarão para sua responsabilidade aqueles bens que forem valorados e, só então, requisitados para tal. A minuta dispõe ainda sobre parâmetros para garantir o uso e conservação dos bens, através de parcerias com entes públicos ou privados para cessão. Foi colocada a seguinte ordem de prioridade: uso original ou que faça referência ao transporte ferroviário; uso de função similar e compatível à atividade de transporte ferroviário; usos ligados à preservação da memória ferroviária (museu, biblioteca, arquivos); usos ligados a outras finalidades culturais; usos ligados a funções da administração pública; outros usos, de caráter público, que não representem ameaça à integridade física do bem. Nesses critérios está presente a continuidade da prática empreendida pelo PRESERFE nos anos 1980 e 1990 (PROCHNOW, 2014). Em dezembro de 2010, o IPHAN normatizou definitivamente a questão, tendo com base a minuta do ano anterior, na forma da Portaria nº 407/2010. A portaria coloca os parâmetros de valoração e procedimentos de inscrição na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário (LPCF) e institui a Comissão de Avaliação do Patrimônio Cultural Ferroviário (CAPCF), composta pelos coordenadores do DEPAM, que tem a atribuição de analisar os pedidos de inclusão na LPCF realizados pelas superintendências estaduais do IPHAN (PROCHNOW, 2014). O texto da portaria criou a LPCF, cuja gestão ficou a cargo da CTPF e em que serão inscritos os bens ferroviários valorados pela CAPCF. A inscrição dos bens na lista garante a proteção, “[...] com vistas a evitar seu perecimento ou sua degradação, apoiar sua conservação, divulgar sua existência e fornecer suporte a ações administrativas e legais de competência do poder público” (BRASIL, 2010b, p. 39). Os processos administrativos que solicitam a inclusão de bens na lista são instruídos nas superintendências estaduais ou na própria CTPF, devem incluir um “[...] parecer técnico que ateste as reais condições de apropriação social do bem, em especial quanto a sua

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segurança, conservação e uso compatível com a preservação da Memória Ferroviária” (BRASIL, 2010b, p. 39). Devem, ainda, apontar se a instância local recomenda ou não a inclusão na lista e especificar quais critérios do artigo 4º o bem atende: Art. 4º São passíveis de inclusão na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário os bens móveis e imóveis oriundos da extinta RFFSA: I - Que apresentarem correlação com fatos e contextos históricos ou culturais relevantes, inclusive ciclos econômicos, movimentos e eventos sociais, processos de ocupação e desenvolvimento do País, de seus Estados ou Regiões, bem como com seus agentes sociais marcantes; II - Portadores de valor artístico, tecnológico ou científico, especialmente aqueles relacionados diretamente com a evolução tecnológica ou com as principais tipologias empregadas no Brasil a partir de meados do século XIX até a década de 1970; III - Cujo intuito de valoração cultural seja objeto de manifestação individual ou coletiva de pessoa física ou jurídica, pública ou privada, desde que devidamente justificada, podendo ser, inclusive, motivada por seu valor simbólico. Parágrafo único. Os bens passíveis de valoração serão analisados e avaliados, isoladamente ou em conjunto, mediante processo administrativo (BRASIL, 2010b, p. 39).

A portaria determina, também, que os bens valorados podem ser reavaliados “[...] a qualquer tempo, caso a justificativa apresentada ou os compromissos acordados para seu uso e conservação adequados não sejam mais condizentes com a preservação da Memória Ferroviária” (BRASIL, 2010b, p. 40). É possível perceber uma diferença de postura entre a minuta e a portaria definitiva, uma vez que o primeiro texto discute parâmetros para seleção e uso dos bens, enquanto o segundo discorre sobre valoração e inscrição na lista, acabando por assumir valores semelhantes aos do Decreto-lei nº 25. A questão da preservação atrelada a uso e desenvolvimento social, que havia na minuta, passou ao texto da portaria na forma da gestão, simplesmente. A inclusão na lista é condicionada atualmente pela existência de parceria prévia entre os entes, firmada por um Termo de Cessão do qual o IPHAN é interveniente (PROCHNOW, 2014). As razões para o estabelecimento desse novo instrumento de proteção, segundo os quadros da CTPF, são a necessidade de se valorar os bens de valor cultural dos espólios das empresas estatais privatizadas, à luz do seu novo regime de propriedade; o fato de o tombamento exigir uma instrução de processo complexa, demorada e pouco aplicável em larga escala, como exigido pela quantidade de bens advindos da RFFSA; as particularidades do conceito de memória ferroviária, que surgia pela primeira vez como um conjunto de valores a ser atingido, demandando, assim, nova forma de acautelamento (PROCHNOW, 2014).

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Assim, passaram a existir dois instrumentos de proteção para o patrimônio ferroviário no país: a LPCF e o tombamento. Suas semelhanças residem na necessidade de inscrição num documento legal, após instrução de processo fundamentado e avaliação por comissão ou conselho. Já quanto às diferenças, a LPCF só pode conter bens oriundos do espólio da RFFSA, os bens móveis valorados passam à propriedade do IPHAN e, por fim, as medidas específicas para uso e conservação dos bens são definidas em termos de compromisso firmados em parcerias com governos locais ou entidades civis. Surgiu, assim, um trâmite novo para o órgão, em que a valoração ficou vinculada à necessidade de projetos para uso e gestão. Na prática do órgão, é possível perceber que essa vinculação é um princípio definidor e que muitas vezes está na origem do processo. Os pedidos de inscrição ocorrem, muitas vezes, por iniciativa dos municípios, que acionam a SPU ou o IPHAN após surgir o interesse pela cessão de uso (PROCHNOW, 2014). Ao analisar a questão da prática simultânea dos tombamentos pelo Conselho Consultivo e das inscrições na LPCF pela CTPF, Prochnow (2014) afirma que as diferenças vão além dos trâmites administrativos e das particularidades dos dois instrumentos. O próprio arcabouço teórico e conceitual que embasa as duas práticas é diferente, pois o Conselho Consultivo realiza a prática consolidada com base em valores de monumentalidade e excepcionalidade, valorando os bens por erudição, enquanto a CTPF precisa mediar os valores sociais e os de uso daqueles bens que valora pela atribuição legal e pelo “valor de gestão”. Esses bens seriam fruto da “crise do monumento” que colocou novos patrimônios a partir da segunda metade do século XX. Chamando atenção para a dicotomia entre o uso prático de um bem e sua significação, o autor afirma que o TICCIH por vezes incentiva a fetichização dos bens industriais na forma da ênfase na criação de narrativas sobre identidades (por vezes, também construídas através do patrimônio) ou em atributos formais, em detrimento da história das relações sociais e de trabalho ali realizadas. Seria necessário, assim, o aporte de contribuições das ciências humanas para possibilitar a correta compreensão de todos os valores e significações que aqueles bens carregam, de modo a mediar essas duas dimensões nas ações de preservação.

3.2 A PRESERVAÇÃO NO PIAUÍ

O território que hoje constitui o estado do Piauí foi colonizado a partir do século XVII, no contexto do ciclo da cana-de-açúcar na faixa litorânea leste do nordeste brasileiro. O fortalecimento dessa monocultura levou à iniciativa de reservar as áreas mais próximas ao

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litoral exclusivamente para esse fim, tendo como consequência a interiorização da pecuária. O Rio São Francisco constituiu uma espécie de fronteira, assim, entre as duas atividades, e os vales dos rios Piauí e Canindé, na atual região central do estado, passou a ser ocupado por fazendas de criação extensiva de gado. A região era parte do chamado sertão de dentro, a rota terrestre interiorana entre Salvador e o Maranhão e o Pará. Na década de 1710, foi criada a Capitania de São José do Piauí, com sua sede administrativa estabelecida entre os dois rios, na cidade de Oeiras. A permanência desse ciclo econômico centrado na pecuária durante todo o período colonial levou à consolidação de uma arquitetura despojada, rústica, baseada em técnicas tradicionais e no emprego de materiais naturais, presentes nos meios urbano e rural (FIGUEIREDO, 2003; TEIXEIRA, 2014). No início da década de 1820, quando o rei D. João VI transferiu a sede da Coroa do Rio de Janeiro de volta a Lisboa, a independência do Brasil era encarada como inevitável. Na tentativa de manter as regiões mais ao norte sob domínio português, a metrópole enviou tropas para Oeiras, sob o comando do major Fidié. Após a Proclamação da Independência por D. Pedro I em 1822, em São Paulo, o movimento pelo desligamento de Portugal ganhou força gradativamente no Piauí, com Fidié deslocando seus soldados até Parnaíba. Dali, dirigiu-se a Campo Maior, onde travou em 1823 a Batalha do Jenipapo contra revoltosos, e seguindo para Caxias, no Maranhão, onde foi cercado e rendido por forças reunidas do Piauí e Ceará. Tal fato pavimentou o caminho para a adesão definitiva da província ao Império do Brasil e para a consolidação do poder político de Sousa Martins, futuro Visconde da Parnaíba, na região. Após a Independência, o Piauí teve também participação na Confederação do Equador, movimento republicano de 1824 centrado em Recife, e na Balaiada, movimento iniciado em 1838 em Caxias e que fez oposição ao governo de Sousa Martins, sendo derrotado definitivamente pelo exército imperial em 1841. Em 1852, a capital foi transferida de Oeiras para a região da Vila Nova do Poti, às margens do Rio Parnaíba, que foi rebatizada como Teresina em homenagem à imperatriz Teresa Cristina. A mudança objetivava tirar proveito da navegação no rio e rivalizar com a influência econômica que Caxias exercia sobre o Piauí e acabou por contribuir para a estagnação econômica da antiga capital, cujo sítio histórico conserva muitas das feições coloniais até hoje. A cidade de Parnaíba, no litoral, teve vocação comercial exportadora desde sua origem no século XVIII, quando comerciava charque. Posteriormente tratou de produtos como algodão, fumo, couro, pedras, sementes e, no início do século XX, foi o ponto de embarque de cera, óleos e amêndoas do extrativismo local para o mercado internacional. Seu sítio histórico conta com exemplares coloniais importantes, como o Porto das Barcas, o Sobrado Simplício

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Dias e o Sobrado de Dona Auta. Esse contato com outras regiões introduziu novos repertórios na arquitetura local, dando origem a um ecletismo peculiar que incorporou as referências externas através do hibridismo com as formas, técnicas, métodos e materiais da arquitetura tradicional (FIGUEIREDO, 2003; MELO, 2012). Teresina, Amarante e Pedro II tiveram origem ou passaram por períodos de desenvolvimento em meados do século XIX, mas constituíram sítios históricos diferentes. As duas primeiras tinham como base econômica o comércio através da navegação no Rio Parnaíba, mas Teresina foi dotada de um traçado urbano regular, que buscou posteriormente modelos urbanos da Revolução Industrial distanciados dos coloniais. Amarante estabeleceu-se espontaneamente sob a influência dos elementos coloniais e ecléticos, mas com configuração bastante diversa do núcleo colonial tradicional centrado na praça da igreja matriz. Por sua relação com o comércio e a navegação, a cidade se formou tendo a avenida que leva ao cais como espinha dorsal. Já Pedro II, na região serrana do estado, conserva em seu sítio histórico tanto os traços ecléticos quanto a herança colonial na arquitetura (FIGUEIREDO, 2003). Capitão de Campos, a 118,5 km a nordeste da capital Teresina, teve origem rural, na fazenda de Jovita de Sousa Barros. A ocupação da região se deu com o estabelecimento de comércios nos anos 1930 e se intensificou com a construção da rodovia BR-343, nos anos 1940. A cidade não apresenta um sítio histórico homogêneo ou coeso; a edificação mais antiga é a Casa de Fazenda da Dona Alemã, erguida no fim do século XIX, único bem daquele município que conta com proteção legal, sendo tombada a nível estadual. Também notáveis são o conjunto da estação ferroviária, erguido no início dos anos 1950, a edificação onde atualmente funciona a biblioteca municipal, construída nos anos 1960 ou 1970 para abrigar a usina elétrica municipal e uma casa sem data de construção conhecida, que incorporou alguns elementos da estética da estação e permanece com função residencial. Todos esses exemplos, inclusive a Casa da Dona Alemã, carecem de documentação, conhecimento e valoração mais efetivos (IPHAN, 2008b; PIAUÍ, 2016). No meio rural, o Piauí apresenta casas de fazenda significativas erguidas nos séculos XVIII e XIX, em municípios como Aroazes, Esperantina, José de Freitas e Oeiras. Essa arquitetura conta com programas diversificados, que incluem elementos como capela, espaços de trabalho e moradia de vaqueiro. Os materiais mais tradicionais, ainda empregados em diversas áreas do estado, são a carnaúba, a pedra e o barro, com exemplares apresentando estrutura independente em madeira, alvenaria autoportante em adobe ou pedra e, por vezes, apenas taipa. As plantas geralmente eram retangulares, com telhados de barro ou palha em duas ou quatro águas, apresentando ainda, como elemento marcante, as varandas e alpendres,

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locais de estar cobertos que protegiam do sol, possibilitavam a visão do entorno e estabeleciam uma transição gradual entre o exterior e o interior. Os sítios históricos piauienses enfrentam dois desafios adicionais à sua preservação, que dificultam o próprio reconhecimento dos bens. O primeiro é causado pela heterogeneidade das suas paisagens, uma vez que os núcleos urbanos do estado, mesmo os mais antigos, apresentam uma diversidade de elementos formais acrescentados ao longo de diferentes períodos. A substituição da ideia de unidade formal por uma compreensão dessa diversidade é ainda difícil no Brasil de modo geral. O segundo desafio deriva da visão Monumentalista que marca, desde o início, a atuação dos órgãos oficiais de preservação, até os dias de hoje. A indiferença com que muitos bens do estado são tratados vem da crença de que o Piauí não possui bens comparáveis aos de sítios como o de Ouro Preto. A prática preservacionista piauiense, assim, tem como missão central mostrar a relevância desse acervo (FIGUEIREDO, 2003). Ao longo de boa parte da sua história, a preservação dos bens patrimoniais arquitetônicos no Piauí ocorreu através de iniciativas particulares, de acordo com os interesses dos envolvidos. As primeiras iniciativas institucionais de preservação do patrimônio no estado ocorreram após a criação do SPHAN, quando os primeiros tombamentos a nível federal, realizados em 1938, incluíram o Cemitério do Batalhão, em Campo Maior (onde estão sepultados os mortos da Batalha do Jenipapo), o Sobrado Nepomuceno e a Ponte Grande, em Oeiras, e as portas da Igreja de São Benedito, em Teresina. Em 1940, tombou-se também a Igreja Matriz de Nossa Senhora das Vitórias, em Oeiras, e a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo, em Piracuruca (IPHAN, 2016). Por mais de três décadas, estes seriam os únicos bens culturais que gozariam de proteção legal no estado. Percebe-se uma série de recortes no universo dos bens reconhecidos; todos são exemplares do período colonial, priorizado pelo IPHAN nesse primeiro período de atuação, e edificações de maior porte, edificadas com técnicas e materiais mais duradouros. As edificações de terra, taipa, carnaúba e palha, tradicionais no Piauí, não foram patrimonializadas então (TEIXEIRA, 2014). Em 1984, o IPHAN instalou um escritório técnico no Piauí. A presença do órgão no estado objetivava atuar para a preservação do patrimônio local valorado a nível nacional, mas também teve o efeito positivo de constituir uma referência para as instituições e demais agentes locais que atuavam na área, tanto pela relevância do órgão quanto pela bagagem conceitual e técnica obtida ao longo de toda sua atuação (PEDRAZZANI, 2005). Na reestruturação do órgão realizada em 2004, foi feita a separação administrativa entre Ceará e Piauí, passando este último a contar então com a 19ª Superintendência Regional, atual

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Superintendência do IPHAN no Estado do Piauí. Nos anos seguintes, o órgão iniciou vários inventários e estudos, realizando diversos novos tombamentos na década de 2010. Merecem destaque, por seu porte e relevância, os tombamentos dos Conjuntos Históricos e Paisagísticos de Parnaíba, Oeiras e Piracuruca. Atualmente, o IPHAN do Piauí conta com um Escritório Técnico em São Raimundo Nonato e com um escritório para atendimento ao público em Parnaíba (IPHAN, 2014b). No universo dos bens piauienses valorados e protegidos pelo IPHAN por meio do tombamento a nível federal, constante em tabela no Apêndice A, é possível constatar um recorte no conjunto dos seis primeiros bens a receberem a medida, ainda à época dos primeiros tombamentos do órgão. A metade são edifícios religiosos (no caso da Igreja São Benedito, apenas suas portas) e cinco são remanescentes do passado colonial. Houve um hiato de mais de 50 anos entre esses primeiros tombamentos, realizados entre 1938 e 1940, e os demais, posteriores a 1990. Um reconhecimento e salvaguarda mais constante de bens só ocorreram após a autonomia administrativa do órgão no estado. Já na relação dos bens piauienses inscritos na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, também presente no Apêndice A, percebe-se que foram valorados pelo IPHAN apenas aquelas edificações que apresentam arquitetura com características formais mais marcantes: três estações construídas ainda na década de 1920, de tipologia eclética e com referências à arquitetura produzida na Europa, e outros edifícios acrescentados ao conjunto da Estação de Parnaíba ao longo dos anos 1940 e 1950, de tipologia Art Déco. É interessante ressaltar que o conjunto da Estação de Teresina goza de proteção legal na forma do tombamento a nível federal, da inscrição na Lista do Patrimônio Ferroviário e do tombamento a nível estadual. A Estação de Parnaíba é protegida tanto pelo tombamento a nível federal do Conjunto Histórico e Paisagístico de Parnaíba, em cujo perímetro está situada, quanto pela sua inscrição na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário. Já a Estação de Floriópolis, situada também no município de Parnaíba, não goza de nenhuma forma de proteção legal, mas suas características arquitetônicas únicas justificaram uma intervenção realizada pelo IPHAN em 2010, em que suas paredes e tetos foram restaurados, acrescentouse novas esquadrias e cobertura e criou-se uma praça no entorno, para tornar o espaço atraente para a comunidade local. O estado já recebeu, também, intervenções integradas a programas federais. Como parte do Programa Monumenta, o sítio histórico de Oeiras foi selecionado para receber obras na Igreja N. Sra. das Vitórias, nas Capelas dos Passos da Paixão, no Museu de Arte Sacra, no Sobrado dos Ferraz, no Sobrado do Major Selemérico, no Cine-Teatro, no Mercado Público,

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no Café Oeiras, na Ponte Grande Zacarias de Góis e nas Praças Orlando de Carvalho, Mafrense e Marechal Deodoro, apesar de nem todas terem recebidos intervenções de fato (DIOGO, 2009). Já o PAC Cidades Históricas incluiu a restauração do Porto das Barcas, do Sobrado Simplício Dias, das Igrejas de N. Sra. das Graças e de N. Sra. do Rosário, da Capela de N. Sra. do Monte Serrate, do Sobrado da Dona Auta, do Casarão da Escola de Direito Miranda Osório e do Complexo Ferroviário, todos no sítio histórico da cidade de Parnaíba (IPHAN, 2013b). A respeito das práticas preservacionistas institucionalizadas a nível estadual, No Brasil, até os anos de 1970, ainda era vago o interesse público regional na preservação do patrimônio cultural e, no Piauí, não era diferente. No estado, a institucionalização do patrimônio se iniciaria em meados da década de 70 por meio de inúmeras leis e decretos, num reconhecimento da necessidade de proteção dos seus bens culturais. Esse procedimento estava vinculado aos macros [sic] objetivos provenientes das recomendações internacionais citadas, das quais o Brasil é signatário, e que influenciaram na elaboração de políticas públicas em nível federal que terminaram por auxiliar estados e municípios na missão de salvaguardar seus bens culturais já que, na maioria dos casos não conseguiam sozinhos fazê-lo (PEDRAZZANI, 2005, p. 56-57).

Esta situação começou a mudar com os encontros de governadores realizados em 1970 e 1971, em que se colocou a necessidade da esfera estadual atuar em conjunto com a federal para a preservação. Tais encontros tiveram influência na criação do Programa Integrado de Reconstrução de Cidades Históricas (PCH), que tinha viés de fomento ao turismo cultural, especialmente na perspectiva do desenvolvimento de regiões carentes, o que levou a um foco inicial nas regiões Norte e Nordeste. A partir de 1975, realizou-se estudos para contemplar Oeiras, Amarante, Parnaíba e Piracuruca e, em 1978, firmou-se um convênio entre o governo federal e o estadual para execução do Programa Estadual de Restauração e Preservação, parte do PCH, que objetivava criar infraestrutura adequada para a atividade turística (PEDRAZZANI, 2005). Até essa mesma década, só eram alvo de medidas institucionais de preservação no estado os bens tombados a nível federal, não havendo legislação específica nem órgão responsável pela salvaguarda do patrimônio de valor regional. Nessa época, incentivou-se (tanto a nível internacional, nos diversos encontros e cartas, quanto a nível nacional) a descentralização da política patrimonial e a criação de aparato institucional e legal específico nas esferas menores da administração pública. No Piauí, duas iniciativas foram tomadas no ano de 1975: a reestruturação do Conselho Estadual de Cultura (CEC), com a atribuição de defender o patrimônio cultural e propor medidas ao poder público para tal, e a criação da Fundação Cultural do Piauí (FUNDAC) pelo governo do estado (PEDRAZZANI, 2005). A Lei estadual nº 3.320/75, que estabelece sua criação, afirma que

82 A Fundação Cultural do Piauí tem por finalidade promover e executar a política cultural do governo e preservar o patrimônio natural, histórico e artístico do Piauí. Pelo seu Estatuto (PIAUÍ, 1975), ficava instituído o Departamento de Defesa do Patrimônio Natural, Histórico e Cultural, com a competência de coordenar, supervisionar e executar as atividades referentes à proteção do patrimônio do estado. Com a implantação de um Departamento específico de proteção se esperava ações mais rápidas de identificação, proteção, difusão, promoção e revitalização do patrimônio cultural do estado (PEDRAZZANI, 2005, p. 61).

A primeira legislação específica de salvaguarda do patrimônio cultural do Piauí foi o Decreto 2.967-A/78, que criou o Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Arqueológico do Piauí (IPHAPI), conferiu-lhe a atribuição de proteção e vigilância do patrimônio do estado, definiu que tipo de bens comporiam este patrimônio e criou o instrumento do tombamento a nível estadual (PIAUÍ, 1978). Essa medida é, portanto, análoga em muitos pontos ao Decretolei nº 25/37 e buscou dotar o estado de instrumental semelhante ao IPHAN na esfera federal, em forma e objetivos. Duas possíveis razões colocadas para tal são a política de descentralização empreendida pelo órgão federal à época e a avaliação de que a Fundação Cultural do Piauí tinha logrado resultados insatisfatórios. O que se verificou, porém, foi que o Instituto não passou por um processo de maturação e nem conseguiu se consolidar, tendo funcionado apenas por um curto período e não realizando nenhum tombamento (PEDRAZZANI, 2005; TEIXEIRA, 2014). As mudanças no cenário cultural nacional, iniciadas em meio às movimentações da década de 1970, fizeram-se sentir no Piauí. No início de 1980, crescia o interesse público e a atenção da imprensa a casos de destruição do patrimônio, especialmente na cidade de Teresina, em que se vinha demolindo casas de valor cultural relevante em nome de argumentos centrados em “segurança” e “higiene”. A sociedade civil passou a cobrar da administração municipal uma mudança de postura, com o fim das demolições e da adoção de medidas de salvaguarda. A resposta do governo do estado às demandas da população veio na forma da Lei estadual nº 3.742/80, que estabeleceu os critérios, procedimentos e competências relativos ao processo de tombamento, passando enfim este instrumento a ser aplicado no Piauí (PEDRAZZANI, 2005). O texto assim define o Patrimônio Histórico, Artístico e Paisagístico do estado: Constituem o patrimônio Histórico, Artístico e Paisagístico do estado do Piauí, a partir do respectivo tombamento, na forma indicada nesta Lei os bens móveis e imóveis atuais e futuros, existentes nos limites do seu território, cuja preservação seja de interesse público, desde que compreendidos em um dos seguintes itens: I – Construções e obras de arte de notável qualidade estética ou particularmente representativas de determinado estilo ou época. II – Prédios, monumentos e documentos intimamente vinculados a fatos memoráveis da história estadual ou a pessoa de excepcional notoriedade no campo das artes, das letras e das ciências.

83 III – Monumentos naturais, logradouros, sítios e paisagens, inclusive os agenciados pela indústria humana, que possuam especial atrativo ou sirvam de “habitat” a espécimes interessantes da flora e da fauna regionais. IV – Sítios arqueológicos. V – Bibliotecas e arquivos de acentuado valor histórico (PIAUÍ, 1980, p. 01).

Fica claro, no texto da lei, que a definição de patrimônio contempla os valores estético e histórico dos bens, mas continua restrita àqueles excepcionais, ainda que seu escopo tenha sido ampliado para abranger mais elementos do patrimônio natural. Através da FUNDAC, o governo estadual realizou os primeiros tombamentos de bens de valor regional, além de intervenções de restauro e também diversas iniciativas de fomento à cultura popular e de proteção do patrimônio imaterial. Essas ações foram adotadas principalmente em cidades do interior, notadamente as já mencionadas Oeiras e Amarante, enquanto os bens da capital Teresina permaneciam em situação mais vulnerável por nunca terem cessado as demolições de edificações de valor cultural em seu tecido urbano. O poder público enfrentava ainda a dificuldade de patrimonializar bens que não se enquadram nas concepções Monumentalistas que o governo federal vinha adotando em suas definições e que a opinião pública parecia compartilhar. Ainda hoje, o patrimônio piauiense tem seu reconhecimento pela população dificultado por ser despojado em comparação com aquele presente em outras regiões, devido à história e características da sua ocupação expostas no início deste item (PEDRAZZANI, 2005; TEIXEIRA, 2014). A Lei estadual nº 3.742/80 foi a norma base para as ações governamentais de preservação do patrimônio no Piauí e ficou em vigor por 12 anos, até ser substituída pela Lei estadual nº 4.515/92, que trazia inovações conceituais importantes (PEDRAZZANI, 2005). O início da Lei traz as seguintes definições: Art. 1º - O Patrimônio Cultural do Estado do Piauí é constituído pelos bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da comunidade piauiense e que, por qualquer forma de proteção, prevista em Lei, venham a ser reconhecidos como valor cultural, visando à sua preservação. Parágrafo Único – Integram, ainda, o Patrimônio Cultural do Estado, nos termos desta Lei, o entorno dos bens tombados, os bens declarados de relevante interesse da cultura e as manifestações culturais existentes. Art. 2º - Os bens e as manifestações de que trata esta Lei poderão ser de qualquer natureza, origem ou procedência, tais como: históricos, arquitetônicos, ambientais, naturais, paisagísticos, arqueológicos, museológicos, etnográficos, arquivísticos, bibliográficos, documentais ou quaisquer outros de interesse das demais artes ou ciências. § 1º - Na identificação dos bens a serem protegidos pelo Governo do Estado levarse-ão em conta os aspectos cognitivos, estéticos ou afetivos que estes tenham para a comunidade. § 2º - Cabe à comunidade participar da preservação do patrimônio cultural, zelando pela sua proteção e conservação (PIAUÍ, 1992, p. 02).

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Entre as inovações mencionadas, destaca-se a ampliação do conceito de patrimônio, que deixou de ser restrito aos bens excepcionais para incluir aqueles de qualquer natureza, origem ou procedência que portem referência à identidade, memória ou ação de diferentes grupos que compõem a comunidade piauiense. Trata-se já de uma influência positiva da Constituição Federal de 1988, que, como visto no tópico anterior, trouxe em seus artigos 215 e 216 ampliações conceituais do tipo. Além disso, com a vigência dessa lei, o processo de tombamento foi regulamentado e o órgão competente a nível estadual passou a poder proteger bens de propriedade da União (PEDRAZZANI, 2005). Ao longo de boa parte da década de 1990, a FUNDAC e o IPHAN mantiveram um Termo de Cooperação Técnica que levou as duas instituições a moverem juntas os processos de tombamento realizados no estado. Porém, as dificuldades técnicas e financeiras enfrentadas pela Fundação no período dificultaram as ações de fomento e preservação, pois os recursos disponíveis não permitiam que se assumisse compromissos financeiros a médio e longo prazo, impossibilitando a adoção de uma política sistemática (PEDRAZZANI, 2005). A prática de tombamentos a nível estadual teve como objeto sempre bens isolados, fazendo menção a seus entornos e ao contexto urbano em que estão inseridos apenas a partir dos processos dos anos 1990, época em que esses documentos também adquiriram maior complexidade e detalhamento. Merece destaque a proteção do entorno da Praça Pedro II, em Teresina: o processo de tombamento do Teatro 4 de Setembro inclui no perímetro de proteção o Clube dos Diários (já então tombado), o Cine Rex e o interior da praça (que foi alterado no final dos anos 1990, em intervenção que objetivou resgatar um estado anterior), mas o cinema, o Palácio de Karnak e a Igreja São Benedito foram todos objetos de seus próprios tombamentos (PEDRAZZANI, 2005). Em 1997, a FUNDAC foi fundida com a Fundação de Assistência Geral aos Desportos do Piauí (FAGEPI), dando origem à Fundação Estadual de Cultura e do Desporto do Piauí (FUNDEC), que passou a atuar nos dois campos. Poucos anos depois, em 2003, os órgãos foram novamente desmembrados em Fundação Estadual de Esportes do Piauí (FUNDESPI) e Fundação Cultural do Piauí (FUNDAC), esta última voltando a assumir a atribuição de zelar pelo patrimônio cultural do estado. A última mudança na estrutura governamental responsável pela cultura ocorreu em junho de 2015, quando a Lei estadual nº 6.673/15 extinguiu a FUNDAC e criou a Secretaria de Estado de Cultura do Piauí (SECULT) em seu lugar. As atribuições da nova secretaria são I - Estimular, desenvolver, difundir e documentar as atividades culturais do Estado, bem como as manifestações da cultura popular;

85 II - Desenvolver um plano editorial visando à promoção do autor piauiense e nordestino; III - Coordenar pesquisa sócio-econômico-cultural visando ao conhecimento da realidade estadual; IV - Promover ações voltadas para a preservação do patrimônio arqueológico, histórico e artístico do Estado; V - Coordenar e apoiar tecnicamente as atividades do Sistema Estadual de Bibliotecas e dos Museus Estaduais; VI - Promover a documentação e manutenção de bens históricos e culturais, móveis e imóveis; VII - Planejar, coordenar e supervisionar as atividades do Teatro 4 de Setembro; VIII - Assessorar o Governo do Estado na promoção e execução das políticas artísticas e culturais; IX - Criar e manter centros artísticos e culturais; X - Promover programas de intercâmbio cultural; XI - Formar mão-de-obra especializada para atender e desenvolver atividades na área de cultura (PIAUÍ, 2015, p. 05).

A SECULT absorveu os recursos humanos e materiais da Fundação e assumiu o papel de conduzir os processos de tombamento a nível estadual, através da sua Coordenação de Registro e Conservação, com o Conselho Estadual de Cultura integrando sua estrutura como colegiado consultivo e normativo permanente. O processo permanece aquele estabelecido na Lei estadual nº 4.515/92. No conjunto dos bens tombados a nível estadual no Piauí, também presente no Apêndice A, nota-se que o único bem patrimonial ferroviário que goza desta proteção legal no estado é a Estação de Teresina, enquanto o único tombamento realizado em Capitão de Campos foi o da Casa de Fazenda da Dona Alemã, edificação hoje integrada ao tecido urbano que guarda relação com o início da ocupação na região e com diversos acontecimentos históricos da cidade, inclusive sua fundação. O município de Capitão de Campos não conta com secretaria própria de cultura, havendo apenas uma diretoria voltada ao tema, vinculada à Secretaria de Educação. O órgão desenvolve trabalho voltado particularmente aos eventos tradicionais da cidade, como festa junina, festa do dia de reis, festejos do padroeiro e o programa de incentivo ao artesanato em bordados. Não foi possível verificar a existência de legislação municipal ou medidas institucionais específicas para a preservação do patrimônio cultural.

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4 HISTÓRIA E ARQUITETURA DA FERROVIA

Este tópico busca explorar os principais aspectos do desenvolvimento do transporte sobre trilhos e de sua infraestrutura relacionada, especialmente os edifícios, de modo a conhecer o objeto de estudo e embasar a sua análise e intervenção.

4.1 A FERROVIA NO MUNDO

O transporte por trilhos é uma criação antiga da humanidade, como atesta o Diolkos, um trilho de pedra utilizado para o transporte de embarcações por terra próximo à cidade de Corinto, na Grécia, entre os séculos VI A.C. e I D.C. Ao longo da Idade Média e da Idade Moderna, sistemas de vagões sobre trilhos foram desenvolvidos de variadas formas, com operação por tração humana ou animal. Em relação às carroças, que rodavam sobre superfícies irregulares, esse sistema apresentava a vantagem de que as rodas e trilhos rígidos permitiam o transporte de cargas muito maiores com a mesma tração. Assim, mostraram-se ideais para o transporte de grandes densidades de carga, como minérios. A ferrovia motorizada, um dos símbolos mais marcantes da Revolução Industrial, é filha tecnológica das minas de carvão do norte da Inglaterra. A locomotiva foi desenvolvida adaptando-se o já difundido motor a vapor para a tração dos vagões que transportavam o carvão nas minas, que antes eram deslocados sobre os trilhos por tração animal ou humana. O novo trem a vapor permitia o transporte de composições mais longas (e, consequentemente, de maiores cargas) por longas distâncias, sendo primeiramente empregado no transporte da produção inglesa de carvão, que deu um salto sem precedentes no início do século XIX. A primeira estrada de ferro pública do mundo a contar com essa nova tecnologia, a Stockton & Darlington Railway (S&DR), foi inaugurada em 1825 para transporte do minério até o litoral, iniciando o emprego da locomotiva no transporte de passageiros em 1833 (HOBSBAWM, 2007).

87 Figuras 09 e 10 – Transporte ferroviário por tração animal, anterior à locomotiva.

Fonte: http://datab.us/i/Stockton%20and%20Darlington%20Railway. Acesso em: 02 jun. 2016.

Tão logo foi provada sua viabilidade técnica e econômica, diversos outros países passaram a construir ferrovias, frequentemente através de investimentos, maquinário e matéria-prima ingleses. Linhas de trem foram abertas no EUA em 1827, na França em 1828, na Alemanha e na Bélgica em 1835 e na Rússia em 1837; em 1850 já havia mais de 35 mil quilômetros de ferrovia no mundo. Mesmo estes primeiros exemplos já tinham notável maturidade técnica, sendo possível alcançar velocidades de 96 km/h ainda nos anos 1830. Economicamente, o seu alto custo era uma vantagem, pois sua grande demanda por ferro, aço, carvão, maquinário, mão-de-obra e capital possibilitaram que as indústrias de bens-de-capital se transformassem tão profundamente quanto a algodoeira já havia feito, dando nova dimensão à Revolução Industrial. Além disso, diversos países foram abertos para o mercado inglês através desta nova tecnologia (HOBSBAWM, 2007). As características do trem a vapor (velocidade, capacidade de carga, entre outras) e de todas as estruturas necessárias para o seu funcionamento marcaram profundamente o imaginário das pessoas e fizeram com que ele se tornasse um símbolo da era industrial, conforme afirma Hobsbawm (2007, p.72): Nenhuma outra inovação da revolução industrial incendiou tanto a imaginação quanto a ferrovia, como testemunha o fato de ter sido o único produto da industrialização do século XIX totalmente absorvido pela imagística da poesia erudita e popular [...] A estrada de ferro, arrastando sua enorme serpente emplumada de fumaça, à velocidade do vento, através de países e continentes, com suas obras de engenharia, estações e pontes formando um conjunto de construções que fazia as pirâmides do Egito e os aquedutos romanos e até mesmo a Grande Muralha da China empalidecerem de provincianismo, era o próprio símbolo do triunfo do homem pela tecnologia.

A constituição da arquitetura ferroviária deu-se como resposta à diversidade de funções impostas pelo meio de transporte e pelo caráter linear dos trilhos e composições. Por não haver referência prévia de edifícios assim, as soluções projetuais foram derivadas dessas preocupações funcionais, adotando alguns elementos de tipologias diversas, especialmente as

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fórmulas de organização de fluxos de edifícios públicos, as soluções para edifícios industriais e as grandes estruturas de cobertura surgidas nas Exposições Universais (FINGER, 2013). O ferro é um material industrial, de comportamento estudado cientificamente, o que levou a novas possibilidades formais com seu emprego na arquitetura. Sua utilização foi feita primeiramente na forma de ferro fundido, mas os avanços técnicos na produção levaram ao emprego também do ferro forjado, laminado, em chapas, e, posteriormente, do aço. O avanço na produção e nas técnicas de cálculo, com o surgimento de modelos espaciais, as possibilidades de novas formas, de pré-moldagem e da construção de estruturas provisórias desmontáveis foram fatores que impulsionaram a adoção do ferro na construção a partir do século XVIII e sua posterior assimilação na arquitetura ferroviária (FINGER, 2013). Ao longo de todo século XIX, a pesquisa e experimentação com as tipologias e programas de estações, a discussão e busca por uma identidade formal própria levaram a um contínuo avanço da arquitetura dessas edificações, ao mesmo tempo em que a expansão rápida da ferrovia levou à estandardização de estações de pequeno e médio porte. As experiências com o aumento de vãos de pontes e viadutos com estrutura metálica foram rapidamente assimiladas pela arquitetura e empregadas nas coberturas de edifícios, em que apresentavam as vantagens da leveza, possibilidade de maiores vãos com menos pontos de apoio e a ideia de que seriam incombustíveis e, portanto, boas substitutas para a madeira. A primeira estação ferroviária a receber uma grande cobertura com estrutura metálica foi a Euston Station, em Londres, e a partir daí o material foi amplamente adotado em outras estações. A substituição das carroças pelos bondes e trens urbanos, que exigem vias mais retas e largas, influenciou também as reformas urbanas realizadas no período, sendo usada como justificativa para demolições de áreas das malhas medievais e remoções de populações pobres (FINGER, 2013; KÜHL, 1998). Os primeiros complexos ferroviários foram em geral projetados por profissionais especializados contratados pelas empresas para desenvolver todas as suas estações. Sua destinação para transporte de grandes quantidades de carga tornava a funcionalidade e a eficiência as preocupações determinantes no projeto. Esse fato, aliado ao de que esses profissionais também projetavam a infraestrutura relacionada (pontes, túneis, entre outras), levou a uma imediata assimilação das novas formas e dos materiais industriais, o que terminou por contribuir para a aceitação desse repertório pelo público em geral (FINGER, 2013). A partir da década de 1830, com a extensão do transporte também para passageiros, as funções e programas dos complexos foram reformulados e as preocupações estéticas

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ganharam importância nos projetos ferroviários. Iniciou-se nesse período a reflexão crítica sobre a arquitetura das estações e sobre que caráter esta teria. As atividades foram separadas em edifícios específicos (frequentemente apresentando partidos arquitetônicos e formas totalmente diferentes) e aumentou a demanda pela especialização cada vez maior dos profissionais de projeto, o que gerou a publicação de diversos tratados sobre o assunto a partir da segunda metade do século XIX, que deixam claro a componente de experimentalismo que caracterizou a arquitetura ferroviária desde o início (FINGER, 2013). De natureza eminentemente prática, esses textos discutiam e apresentavam soluções projetuais para diversas questões, da implantação dos edifícios à organização dos fluxos, e recomendavam aquelas que julgavam as melhores. A ampla circulação desses trabalhos contribuiu para a consolidação dessas soluções como “fórmulas” amplamente reproduzidas e adaptadas pelo mundo. Indicativa desse processo é a terminologia: de ampla variação entre países e línguas distintos, consolidou-se no Brasil a denominação de “estação” para o edifício que realiza as funções diretamente relacionadas aos passageiros, de “gare” para a cobertura das plataformas e de “complexos” ou “pátios” para o conjunto de edificações destinadas a atender as funções ferroviárias (FINGER, 2013). Os programas de necessidades passaram por transformações ao longo do tempo. Depois dos primeiros anos dedicados exclusivamente ao transporte de cargas, a inclusão do transporte de passageiros no rol das funções dos complexos ferroviários levou seu programa a se constituir basicamente por quatro eixos: atividades ligadas ao transporte de passageiros (embarque e desembarque, bilheteria, sala de espera, despacho de bagagens e, posteriormente, restaurantes, hotéis e outras amenidades); atividades ligadas ao transporte de cargas (carga e descarga, armazéns e depósitos); atividades ligadas à manutenção e operação (oficinas, abrigos para locomotivas e vagões, caixas-d’água, armazenamento de combustível, equipamentos de sinalização, gruas, monta-cargas, entre outras); e atividades administrativas (escritórios, almoxarifados, dependências para funcionários, entre outras) (FINGER, 2013). Os tratados apresentavam soluções que buscavam a separação destes eixos de funções em edifícios distintos, assim como sua implantação buscava separar as funções internas das de atendimento externo. Os complexos ferroviários acabaram por ser classificados em categorias, a depender do local de implantação, importância em relação à linha e os serviços que concentravam. A organização difundida conta com os complexos terminais ou de extremidade, que receberiam toda a gama de funções; os complexos intermediários ou de passagem, que seriam divididos em classes de acordo com a importância da localidade e receberiam apenas parte das funções; e os complexos de entroncamento ou ramificação, que

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poderiam receber todas as funções por sua localização estratégica e complexidade. Haveria ainda uma última categoria, situadas em localidades de pouco tráfego: as haltes ou paradas, que contariam apenas com um edifício simplificado ou mesmo um abrigo. Com o tempo, o crescimento dos núcleos urbanos em que as ferrovias estavam situadas, a intensificação do tráfego e o desenvolvimento de materiais levaram a programas mais complexos e aquele experimentalismo dos primeiros projetos deu lugar a uma maior reflexão sobre o ordenamento dessa tipologia e o caráter dessa arquitetura (FINGER, 2013). Beatriz Kühl (1998, p 59) afirma, sobre esse novo tipo arquitetônico, que A primeira estação ferroviária, Crown Street (1830), em Liverpool, foi construída por George Stephenson e J. Forster, apresentando características que se tornariam canônicas em estações posteriores. O edifício principal, de forma retangular, foi disposto com seu lado maior paralelo à linha e contava com bilheterias, sala de espera, escritório, e, no primeiro andar, estavam localizadas as dependências do chefe da estação. As plataformas eram cobertas por tesouras de madeira que venciam um vão de cerca de 9 metros. [...] O embarque e desembarque de passageiros, em ambas as estações, era feito de um dos lados da linha, através da edificação retangular. Essa solução foi amplamente utilizada em estações nos vários países na primeira década da expansão ferroviária [...], transformando-se na solução mais natural a ser empregada nas estações intermediárias e de passagem. Figuras 11 e 12 – A Crown Street Railway Station, em gravura de 1833; o interior da London Paddington Station,(construída em 1854 e retratada aqui em 1965) ilustrando as novas possibilidades formais e técnicas da arquitetura do ferro. Ambas deixam transparecer a busca por vencer grandes vãos na área de embarque.

Fonte: http://www.telegraph.co.uk/books/what-to-read/historic-english-railways-200-years-of-history. Acesso em: 09 ago. 2016.

No início de seu desenvolvimento, a tipologia da estação partiu da simples justaposição de uma área social a uma funcional, sem constituir uma unidade formal de fato. Apesar disso, esse modelo terminou por se tornar cânone e ficar bastante difundido, sendo consolidado nos tratados e dando origem às principais soluções para estações intermediárias (FINGER, 2013).

91 Figuras 13 e 14 – Esquema de fluxo ideal para estações intermediárias; principais esquemas de implantação adotados em estações intermediárias

Fonte: FINGER, 2013.

Já as estações terminais tiveram como primeiro modelo significativo a Euston Station de Londres, que empregou também uma solução de justaposição de blocos, com a estação de passageiros implantada perpendicularmente à linha. Esse formato foi posteriormente extrapolado para outros em T, U ou L e, também, consolidado nos tratados (FINGER, 2013).

92 Figuras 15 e 16 – Esquema de zoneamento ideal para estações terminais; principais esquemas de implantação adotados em estações terminais

Fonte: FINGER, 2013.

Os demais edifícios que compõem os complexos também tiveram modelos definidos e recomendados nos tratados. Os armazéns poderiam ser galpões retangulares e deveriam ficar dispostos também paralelos à via, para facilitar a carga e descarga; os edifícios para abrigo, manobra e manutenção, aí inclusas as oficinas, poderiam ficar concentrados ou dispostos em pontos ao longo das linhas, fazendo-se apenas a recomendação de boa ventilação e iluminação; os abrigos de locomotivas, inicialmente retangulares, consolidaram-se em formato circular (a rotunda), semicircular ou em ferradura, em que as locomotivas eram dispostas radialmente e se utilizavam de um girador ao centro para serem deslocadas para a linha (FINGER, 2013). Figura 17 – Esquemas de rotundas em formato circular, semicircular e em ferradura

Fonte: PERDONNET, 1860 apud FINGER, 2013.

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Os tratados ferroviários discorriam ainda sobre os locais para armazenagem de água, que se recomendava que ficassem próximos aos demais edifícios do conjunto que também seriam servidos, e para os depósitos de carvão, que deveriam ficar próximos às linhas para facilitar sua carga e descarga. Por último, falavam das maisons de gardes, residências construídas ao longo das linhas para abrigar os guardiões de passagens de nível. Inicialmente realizadas com grandes dimensões e condições que as encareciam, essas residências foram simplificadas e barateadas quando de sua difusão (FINGER, 2013). Figura 18 – Plantas de maisons de gardes

Fonte: PERDONNET, 1860 apud FINGER, 2013.

O desenvolvimento da arquitetura ferroviária foi marcado tanto pelo processo, ocorrido no século XIX, de reabilitação das diversas linguagens historicistas, quanto pelo desenvolvimento técnico desvencilhado das referências tradicionais. Dessa forma, as contradições da arquitetura daquele século ficaram evidentes nos edifícios ferroviários. Em planta, estes foram marcados desde o início pela solução das questões funcionais, mas a definição do “caráter” dessa arquitetura (e, consequentemente, da sua linguagem estética “própria”) foi questão de divergência (FINGER, 2013). Os primeiros edifícios, dedicados unicamente ao transporte de cargas, foram construídos em geral pelos engenheiros que também projetavam as demais estruturas relacionadas. A partir dos anos 1830, com a inclusão do transporte de passageiros, sua arquitetura ganhou destaque e os arquitetos passaram a se envolver nos projetos. Após as primeiras tentativas de reproduzir repertórios historicistas, começaram a surgir em meados daquele século os exemplares cuja forma externa guardava relação com as novas funções desempenhadas ali. Surgiram então fachadas com a marcação das gares, a adoção de elementos como mãos-francesas e a proeminência do relógio, marcando a associação entre o controle do tempo com o a ferrovia (FINGER, 2013). Alguns elementos, por sua repetição, passaram a ser fortemente associados à arquitetura ferroviária, contribuindo para a formação desse “caráter” que se buscava. Destacam-se as arcadas entre torres, amplamente empregadas em estações; as rosáceas em

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metal e vidro, marcando a cobertura na fachada; os pórticos, que enfatizavam a ideia de “porta de entrada”; os grandes vestíbulos e saguões, comparados a foyers de teatro pela característica como ponto de encontro; a proeminência do relógio, que projetou o controle do tempo da atividade ferroviária ao ritmo geral das cidades e contribuiu para firmar as estações como marcos urbanos (FINGER, 2013). Com relação à ornamentação, após esse primeiro período de aplicação de estilos históricos, os tratados de meados do século XIX recomendavam que as estações dos grandes centros urbanos adotassem os estilos dos edifícios daquelas cidades, enquanto as de menor porte deveriam receber tratamento mais simplificado. É desse período a Gare Du Nord (Paris, 1861-4), que conta com marquise metálica e fechamentos de metal e vidro, ao mesmo tempo em que apresenta grandes colunas jônicas ladeando as aberturas. Já aquelas implantadas em localidades menores ou no campo poderiam empregar o molde dos chalés rurais, pois permitiriam cobrir as plataformas de embarque com seus beirais largos sem a necessidade de estruturas independentes para as coberturas (FINGER, 2013). Figuras 19 a 22 – Gare D’Orsay (1900), em Paris, projeto de Victor Laloux, Lucien Magne e Émile Bénard; Paddington Station (1854), em Londres, projeto de Isambard Brunel e Matthew Wyatt; Gare Du Nord (18611864), em Paris, projeto de Jacques Hittorf; pequena estação construída no vale do Rio Reno, na primeira metade do século XIX, em forma de chalé.

Fontes: https://thefeaturewriter.files.wordpress.com/2011/09/musee-dorsay-paris.jpg. Acesso em: 19 out. 2016. https://railm.blob.core.windows.net/website/1/galleries/galleries/london-from-the-air/paddington4-4913-philmetcalfe_w650.jpg. Acesso em: 19 out. 2016. http://parisianfields.files.wordpress.com/2011/02/scan0004.jpg . Acesso em: 19 out. 2016. PERDONNET, 1860 apud FINGER, 2013.

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A arquitetura ferroviária passou por uma renovação no final do século XIX, com a popularização de linguagens como o Art Nouveau e as discussões sobre pureza formal que influenciaram posteriormente o Movimento Moderno. Desse período, destaca-se a Estação de Karlsplatz (Viena, 1894), de Otto Wagner, que conta com superfícies planas e tira partido do “estado natural” dos materiais, especialmente o ferro (FINGER, 2013). Figura 23 – A Estação de Karlsplatz (1861-4), em Viena, projeto de Otto Wagner.

Fonte: http://users.humboldt.edu/eland-weber/exhibit/show/travel/danube/Karlsplatz.jpg. Acesso em: 19 out. 2016.

No século XX, essa arquitetura sofreu revisão com a influência do Movimento Moderno. Alguns projetos, como os da Estação Central de Helsinque (projeto de Eliel Saarinen inaugurado em 1919) e da Estação Central de Stuttgart (projeto de Bonatz e Scholer inaugurado em 1927) romperam com o historicismo e buscaram nova expressão, por vezes inclusive substituindo o ferro pelo concreto na cobertura das plataformas, além das plantas assimétricas com torres em segundo plano (FINGER, 2013). Figuras 24 e 25 – A Estação Central de Stuttgart (1927), projeto de Bonatz e Scholer; a Estação Central de Helsinque (1904-1919), projeto de Eliel Saarinen.

Fontes: http://4.bp.blogspot.com/_Ci2BjNP9jjA/TKd7TxNLCI/AAAAAAAABG8/r1fxmEyrOC0/s1600/Stuttgart_hbf1.jpg. Acesso em: 19 out. 2016. http://edition.cnn.com/2013/05/07/travel/five-train-stations-worth-a-stop/. Acesso em: 09 ago. 2016.

No período entre guerras, elementos do Estilo Internacional, como as formas geometrizadas simplificadas e os panos de vidro, foram assimilados em algumas estações,

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como Santa Maria Novella, projeto de Giovanni Michelucci em Florença (1934-1936), e a Estação de Versailles-Chantiers, projeto de Ventre (1931-1933) (FINGER, 2013). Figuras 26 e 27 – A Estação Santa Maria Novella em Florença (1934-1936), projeto de Giovanni Michelucci; a Estação de Versailles-Chantiers (1931-1933), projeto de A. Ventre.

Fontes: http://www.grandistazioni.it/cms-file/immagini/grandistazioni/FI_p_1960_533x350.jpg. Acesso em: 19 out. 2016. https://viajaresimples.files.wordpress.com/2014/01/paris27.jpg. Acesso em: 19 out. 2016.

Após a 2ª Guerra Mundial, diversas estações destruídas foram reconstruídas segundo a linguagem do International Style. O avanço tecnológico ocasionou mudanças como a substituição do vapor pela eletricidade ou outros combustíveis menos poluentes, que causaram a obsolescência de diversos elementos inicialmente associados a essa arquitetura, como o alteamento de coberturas e o uso do lanternim para a dispersão dos gases liberados pelas locomotivas. Assim, houve um distanciamento das referências tipológicas originais, difundidas pelos tratados, e seus edifícios aproximaram-se formalmente de outras tipologias, como prédios comerciais e aeroportos (FINGER, 2013). O transporte ferroviário entrou em declínio no mundo inteiro na segunda metade do século XX, passando frequentemente por grandes reestruturações e mudanças na sua integração com a vida cotidiana. Dentro das cidades, difundiram-se diversas tipologias, como metrôs, bondes, VLTs e monotrilhos, atendendo a diferentes situações de densidade, mas geralmente usando infraestrutura diversa dos trens tradicionais, ainda que em estações integradas. Já os trens interurbanos têm emprego preferencial atualmente para o transporte de grandes densidades de carga por grandes distâncias. Atualmente, o advento dos trens de alta velocidade, que têm levado a uma maior utilização do transporte sobre trilhos, inclusive por passageiros (KÜHL, 1998).

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4.2 A FERROVIA NO BRASIL

É fundamental para a compreensão da história ferroviária no Brasil a ideia de isolamento nacional: a crença de que o país é constituído de regiões desconectadas, social, política e economicamente. Essa ideia está presente em textos produzidos aqui desde o período colonial e motivou diversas iniciativas oficiais para ocupar o interior e assegurar as fronteiras do território (GALVÃO, 1996). Logo após os grandes descobrimentos dos séculos XV e XVI, passou a vigorar na Europa a lei internacional do uti possidetis, segundo a qual a posse legal de um território recém-descoberto era do país que realizasse a efetiva ocupação. Esse fato, aliado às incursões de outros países europeus no continente americano, motivou Portugal a se empenhar para povoar a colônia e interligar as províncias brasileiras, de modo a garantir a integridade do seu território. Essa preocupação com a unidade nacional tornou-se cada vez mais intensa ao longo do tempo, uma vez que após a Independência (1822) e durante todo o período imperial (18221889) a integridade da nação foi ameaçada de fato por movimentos separatistas de inspiração regionalista ou republicana (GALVÃO, 1996). Essas ameaças colocaram ao governo a necessidade de criar instrumentos eficazes para preservar a unidade do país. Após a Proclamação da República (1889), a questão da integração do litoral às grandes áreas despovoadas do interior tornou-se central nas discussões do parlamento, inclusive sendo incluída na primeira Constituição republicana (1891) a intenção de mudar a capital, do Rio de Janeiro para o Planalto Central. Um dos aspectos que essa visão integracionista assumiu foi a política de incentivos à construção de ferrovias. No século XX, essa questão esteve presente na ideologia nacionalista da marcha para o Oeste, que motivou os governos de Vargas (1930-1945) e Kubitschek (1956-1961) a realizar as grandes obras rodoviárias e a construção de Brasília, e no tratamento dado a essa questão como assunto de segurança nacional pelos governos militares das décadas de 1960 e 1970 (GALVÃO, 1996). O Brasil entrou no século XIX ainda na condição de colônia de Portugal, país que, por sua vez, estava à margem das discussões sobre a arquitetura ferroviária realizadas em países como Inglaterra, França e Alemanha. A arquitetura brasileira permanecia então profundamente enraizada na produção colonial, completamente empírica e baseada em materiais como madeira, pedra e barro. O trabalho escravo, responsável pela construção, manutenção, abastecimento e retirada de dejetos era um fator determinante para essa permanência, pois a mão de obra abundante e não especializada tornava desnecessária a

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preocupação com a economia, aproveitamento de materiais e eficiência na construção. A Missão Artística Francesa (1816), a fundação da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios (1816) e a da Academia Imperial de Belas Artes (1826) introduziram os padrões estéticos no país, mas sua adoção ficou praticamente restrita aos edifícios públicos (FINGER, 2013). Outra diferença em relação à Europa é que a Revolução Industrial havia causado grande aumento populacional das cidades que receberam indústrias, fazendo com que se buscasse soluções para a insalubridade e a mobilidade já no início do século XIX, culminando nas reformas urbanas daquele século. Enquanto isso, o Rio de Janeiro, capital do Império e cidade mais populosa da América Latina, contava com cerca de 200.000 habitantes e urbanização precária. A economia nacional baseava-se na agropecuária e na mineração e o país importava bens industrializados de países como a Inglaterra, com quem tinha relações comerciais desde os tempos de colônia. Essas relações fizeram os efeitos da Exposição Universal de Londres de 1851 serem sentidos aqui, com a importação de inovações como o telégrafo, a iluminação a gás e as ferrovias (FINGER, 2013). Nas primeiras décadas após a Independência do Brasil, parte significativa da economia brasileira era baseada na exportação de produtos agrícolas. Naquela época, as duas principais formas de escoamento da produção apresentavam desvantagens: a navegação de cabotagem (ao longo da costa) vinha declinando e o transporte por mulas era lento, oneroso e acarretava perdas. Assim, a facilitação do transporte da produção agrícola brasileira, especialmente o café, foi a motivação central para as primeiras iniciativas de implantação do trem, ainda durante a Regência. Poucos anos depois da inauguração da S&DR na Inglaterra, a primeira lei de incentivo à ferrovia do Brasil foi sancionada em 1835 pelo regente Feijó, concedendo crédito, isenções de impostos para importação de maquinário e matéria-prima, cessões de terrenos e monopólios de operação. Essa iniciativa não atingiu seu objetivo, por desconfiança e baixa disponibilidade de capital (VIEIRA, 2010). Nos anos seguintes, o aumento da produção cafeeira e o fortalecimento da ideologia de integração impulsionaram o projeto de implantar a estrada de ferro, mas só na década de 1850 ela se materializaria de fato, como vetor da entrada de capital no país e incentivo à cafeicultura (VIEIRA, 2010). O Visconde de Mauá foi o responsável pelo primeiro trecho implantado no Brasil, inaugurando os primeiros 14 km da ferrovia Rio-Petrópolis em abril de 1854. Esse empreendimento contou com crédito facilitado, incentivos fiscais e concessão de material, terrenos e pessoal do Exército (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA [IBGE], 1954).

99 Figuras 28 e 29 – A Estação Guia de Pacobaíba, a mais antiga do Brasil, em 2013; trem no cais que funcionava como parte da estação, em foto sem data.

Fonte: http://www.estacoesferroviarias.com.br. Acesso em: 30 set. 2016.

Ao longo de todo o século XIX, a ferrovia se expandiu pelo Brasil contando, frequentemente, com capital inglês. Esse contato direto com a Europa, aliado à pouca expressividade da siderurgia nacional à época, levou a que a infraestrutura ferroviária fosse reproduzida dos modelos desenvolvidos no velho continente, mas adaptada de várias formas ao contexto local. As estações ferroviárias brasileiras apresentavam, em sua maioria, técnica construtiva mista, com paredes em alvenaria e cobertura metálica. As estações menores frequentemente contavam apenas com uma cobertura ou marquise protegendo a plataforma de embarque, semelhante ao modelo de chalé presente nos tratados ferroviários europeus. Como pode ser observado na Figura 28, a Estação Guia de Pacobaíba, inaugurada por Mauá em 1854, é um representante claro desta tipologia, apresentando a planta retangular paralela aos trilhos, o telhado de duas águas e a cobertura com estrutura metálica sobre a plataforma de embarque. O crescimento econômico e a intensificação do comércio com a Europa levaram a iniciativas de aproximação no âmbito da cultura e das artes que incluíram a importação de referências arquitetônicas sem questionamentos e, por vezes, de edifícios pré-fabricados inteiros. Estas obras, de certa forma “europeizadas”, tiveram impacto na paisagem das cidades, também como referência para o ecletismo que então se desenvolvia (KÜHL, 1998). A mesma política de incentivos e monopólios se estenderia por diversas outras regiões do país nas décadas seguintes, impulsionando a construção de linhas para integrar o território de norte a sul. No entanto, esses empreendimentos tinham motivações políticas e estratégicas preponderantes, considerando que o desenvolvimento econômico seria quase uma consequência natural. Questionamentos sobre a viabilidade desse modal no país sem um mercado interno que gerasse renda passaram a figurar nos discursos de vários agentes do governo já entre os pioneiros do terceiro quartel do século XIX (GALVÃO, 1996).

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O processo de implantação das linhas auxiliou no desbravamento do território, influenciando o crescimento de diversas cidades. A locomotiva a vapor demandava estações situadas até 20 km umas das outras, para o abastecimento das composições com água e carvão ou lenha, que necessitavam, por sua vez, de uma equipe de trabalhadores. Como muitas vezes esses pontos ficavam longe de centros urbanos, foram construídas unidades habitacionais, as “casas de agente”, cujo número variava em cada caso. Nos entroncamentos ou nos locais de implantação de escritórios e oficinas, instalavam-se muitos trabalhadores, alguns estrangeiros habituados a padrões de vida distintos dos brasileiros (FINGER, 2013). Frequentemente, o mercado habitacional não dispunha de unidades disponíveis suficientes, o que levou à opção de muitas empresas pela construção de vilas inteiras com equipamentos e infraestrutura urbana moderna, que diferiam dos padrões já existentes. Essas novas construções acabaram por introduzir ao interior referências culturais novas, inclusive repertório formal arquitetônico e paleta de materiais novos, transformando a paisagem e levando a ocupação de cidades e regiões inteiras, como no caso de Porto Velho, que surgiu em decorrência da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (FINGER, 2013). No final do século XIX, especialmente a partir da década de 1870, as linhas férreas contribuíram para a instalação de indústrias de substituição de importações próximas aos principais núcleos urbanos em estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Possibilitaram, ainda, aos produtores rurais transferir suas residências das fazendas para as capitais, aumentando a importância política dessas cidades. Esses fatos levaram a diversas transformações urbanas semelhantes às ocorridas na Europa cem anos antes, com o aumento do interesse por diversões públicas, a construção de hotéis, jardins e passeios públicos, teatros, cafés, novos sistemas de calçamento, iluminação, abastecimento de água, transportes, entre outros. Muitas cidades foram reconstruídas, adotaram o transporte por bondes e tiveram seu crescimento direcionado pelas linhas de trem (FINGER, 2013). As estações ferroviárias atraíram para seu entorno diversos estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços, como hotéis e restaurantes, causando uma sensação de “movimento” que era intensificada pela chegada de correio, jornais e viajantes. Tornaram-se referências urbanas que rivalizavam com as casas de câmara e cadeia e com as igrejas, pautando o ritmo da vida urbana. O horário do trem se sobrepôs à hora local, dada pela igreja; diferenças de minutos passaram a ser importantes e as torres das estações maiores passaram a contar com relógios marcando a hora exata. É importante frisar, porém, que esses impactos foram sentidos de maneira mais contundente nas regiões mais densamente povoadas do Sul e Sudeste (FINGER, 2013).

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A arquitetura foi impactada pela influência das formas dos edifícios ferroviários e também pelos produtos industriais que, antes restritos a cidades portuárias como Rio de Janeiro, Recife e Salvador, passaram a ser transportados por trem até localidades do interior. O ecletismo entrou no Brasil na segunda metade do século XIX, quando já era alvo de críticas na Europa, adquirindo aqui caráter de símbolo de modernidade, pelo distanciamento formal das referências coloniais e pela “atualização tecnológica” representada pela incorporação de materiais e técnicas industriais. A arquitetura ferroviária teve papel importante nesse processo de popularização da linguagem eclética e dos novos materiais e técnicas, introduzindo a alvenaria de tijolos cozidos maciços, o cimento, as telhas do tipo Marselha, folhas de flandres e cobre para calhas, rufos e condutores, vidros decorados, azulejos e ladrilhos hidráulicos. Esses elementos passaram a ser também importados e, posteriormente, produzidos no Brasil, sendo adotados na arquitetura privada. No início do século XX, processo semelhante ocorreu também com o concreto armado e o Art Déco (FINGER, 2013). Como a tecnologia ferroviária foi importada para o Brasil já depois de desenvolvida e consolidada na Europa, os edifícios construídos na implantação das primeiras linhas repetiram em grande medida os modelos externos. As atividades desenvolvidas nos primeiros complexos ferroviários brasileiros seriam, assim, divididas nos mesmos quatro grupos: as ligadas ao transporte de passageiros, as ligadas ao transporte de cargas, as ligadas à manutenção e operação da linha e as ligadas às atividades administrativas. Estas atividades estavam dispostas ao longo das linhas de modo a otimizar a mão de obra, agrupadas em torno de pátios. Como muitas vezes as linhas implantadas passavam por locais isolados, distantes de núcleos urbanos, em diversas situações houve a necessidade de instalar trabalhadores em lugares ainda desabitados, constituindo assentamentos que, algumas vezes, deram origem a novos povoados e cidades e, em outras, foram abandonadas (FINGER, 2013). Também como na Europa, os complexos ferroviários seguiram a lógica de se estruturar conforme sua importância e posição na linha, podendo ser classificados em complexos terminais, intermediários ou de entroncamento. Havia também as oficinas de manutenção com equipe técnica permanente, situadas em algumas localidades onde houvesse maior demanda por esse serviço ou maior disponibilidade de mão de obra. Esse esquema de organização foi amplamente empregado no país no primeiro século de instalação de ferrovias e permaneceu mesmo depois da criação da RFFSA (FINGER, 2013). No início da implantação, percebe-se que a maioria dos complexos eram pequenos e construídos de forma precária, sendo posteriormente ampliados ou, mesmo, reconstruídos quando aumentava a demanda. Com frequência, também se observa simples paradas, como as

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haltes dos tratados ferroviários. Consistiam em um único edifício, simplificado, muitas vezes apenas um abrigo para embarque e desembarque, a exemplo da Estação de Floriópolis, em Parnaíba, no Piauí (FINGER, 2013). Figura 30 – A Estação de Floriópolis.

Fonte: Acervo de André Castelo Branco, 2016.

Também as tipologias arquitetônicas já se encontravam definidas quando a tecnologia ferroviária chegou ao país, contando-se com um repertório amadurecido de referências. Nas duas primeiras décadas de implantação, quando a estrada de ferro atendia a objetivos puramente econômicos, os edifícios necessários à sua operação foram geralmente projetados pelos engenheiros das próprias companhias. Como muitos desses técnicos eram estrangeiros, em grande medida reproduziram os modelos já empregados em seus países de origem (FINGER, 2013). As estações de passageiros, em geral, foram divididas nos mesmos dois espaços justapostos do modelo europeu, com um bloco principal, onde se concentravam as funções relacionadas aos passageiros e à administração, e outro, onde havia plataformas paralelas à linha e se desempenhavam as funções relacionadas embarque e desembarque de passageiros e carga. A implantação também seguia os padrões estrangeiros, com a exceção de algumas estações terminais laterais, implantadas na direção da continuidade das linhas férreas. Porém, estes casos eram exceções e a grande maioria das estações brasileiras seguia o esquema da Crown Street Station, com a plataforma protegida pelo prolongamento do beiral ou, por vezes, por uma gare. As estações menores, que contavam apenas com os beirais sobre a plataforma, muitas vezes seguiram o modelo de chalé apresentado nos tratados ferroviários, com maior ou menor número de elementos decorativos. Esse é o caso da maior parte das estações da EFCP (FINGER, 2013).

103 Figuras 31 a 34 – A Estação de União dos Palmares – AL, em 2005; a Estação de Capanema – PA, em 1907; a Estação Matador, em Rio do Sul – SC nos anos 1930; a Estação de Cocal – PI em 2016.

Fontes: http://www.estacoesferroviarias.com.br/. Acesso em: 24 out. 2016. Acervo de André Castelo Branco, 2016.

O modelo unilateral foi empregado por todo o país, em estações de linhas, portes e regiões distintas, como a Estação de Cruzeiro – SP, a Estação da Luz, em São Paulo, a Estação Guia de Pacobaíba, no Rio de Janeiro, e a Estação de Teresina, no Piauí. A maior variação acontecia na planta, quando a estação agregava também a moradia do chefe da estação no mesmo edifício. Nesses casos, encontra-se plantas em forma de T e L. Um outro modelo também adotado com certa frequência foi o bilateral, com o edifício de passageiros de um lado da linha e o armazém do lado oposto, por vezes contando com uma gare interligando os dois, a exemplo da Estação de Ipu (FINGER, 2013).

104 Figuras 35 e 36 – A Estação de Cruzeiro – SP em 1917; a Estação de Ipu – CE c. 2000.

Fonte: http://www.estacoesferroviarias.com.br/. Acesso em: 24 out. 2016.

Algumas estações intermediárias bilaterais destacam-se, também, pela implantação em forma de túnel, em que houve a preocupação de caracterizar um edifício uno. Geralmente, nesses casos, o trem entrava por um dos lados menores do edifício de planta retangular, com as plataformas no seu interior, como a Estação Avenida, em Campos de Goitacazes – RJ. Houve, também, exemplos de estações em bifurcações que assumiram uma configuração em Y, derivada do esquema unilateral, como a General Carneiro, em Sabará – MG (FINGER, 2013). Figuras 37 e 38 – A Estação Avenida, em Campos de Goitacazes – RJ; a Estação General Cordeiro, em Sabará – MG.

Fonte: http://www.estacoesferroviarias.com.br/. Acesso em: 24 out. 2016.

A maior parte das estações brasileiras do primeiro século apresenta planta retangular com telhado de duas águas, constituindo um único volume, que poderia apresentar uma variação na forma de um corpo central de dois pavimentos com alas laterais térreas. Apenas nos anos 1920 viriam a ser projetadas estações de maior porte, inclusive com mais de dois pavimentos (FINGER, 2013).

105 Figuras 39 a 42: A Estação de São João Del-Rei – MG; a Estação da Luz (São Paulo – SP); a Estação de Mairinque – SP; a Estação Dom Pedro II ou Estação Central do Brasil (Rio de Janeiro – RJ).

Fontes: http://www.estacaodaluz.org.br. Acesso em: 30 set. 2016. http://www.estacoesferroviarias.com.br. Acesso em: 30 set. 2016.

Nas Figuras 39 a 42, é possível perceber a diversidade estética das estações construídas no país. A mais antiga delas, a de São João Del-Rei, foi inaugurada em 1881 e apresenta platibanda e repertório ecléticos nas fachadas, mas ainda mantém a volumetria rígida da arquitetura colonial. A Estação da Luz atual, terceira erguida naquele lugar, teve sua construção concluída em 1901 segundo projeto atribuído ao inglês Charles Driver e é composta por dois edifícios. O que se vê na imagem é o edifício sede, em alvenaria de tijolos e de estética eclética já com movimento na fachada e na cobertura e a presença de torreões e da torre do relógio. Ao lado, há a gare retangular com planta medindo 40 por 150 m, em estrutura metálica pré-fabricada. A Estação de Mairinque, inaugurada em 1897, foi um dos primeiros edifícios executados com estrutura de concreto no país e apresenta linhas Art Nouveau. Por último, o edifício atual da Estação Dom Pedro II, entregue em 1943, tem estética Art Déco. Como a maioria das linhas do Brasil nesse período foi construída para escoar a produção agrícola, os armazéns sempre se fizeram presentes, para possibilitar a estocagem da carga até seu embarque no trem ou até que o destinatário fosse buscá-la. Geralmente, eram configurados na forma de galpões de planta retangular, paralelos à linha e situados no mesmo

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lado da estação de passageiros, na configuração unilateral, ou no lado oposto, na configuração bilateral. Nas estações menores, que contavam apenas com um edifício, o espaço para armazenagem de produtos geralmente ficava no interior deste (FINGER, 2013). Compunham também os pátios ferroviários as oficinas, rotundas e caixas d’água. As oficinas eram usadas para manutenção de material rodante e produção de mobiliário, geralmente assumindo a forma de um galpão de planta retangular livre e pé direito alto, por dentro do qual circulavam os vagões. As rotundas, cujo maior número foi construído em São Paulo (11), seguiam o mesmo esquema dos modelos difundidos nos tratados do século XIX, em arco ou semicírculo. Já as caixas d’água assumiram aspecto monumental em diversos casos, constituindo marco na paisagem, como no caso das célebres caixas d’água de Porto Velho. Com a obsolescência da tração a vapor, muitas perderam a função e permanecem abandonadas (FINGER, 2013). Por último, os sistemas contavam também com residências implantadas ao longo das linhas para abrigar funcionários das empresas, necessárias para o abastecimento que as locomotivas a vapor demandavam a intervalos regulares e para a manutenção das linhas, uma vez que, como mencionado, muitas cruzavam áreas desprovidas de núcleos urbanos. Durante a construção das linhas, muitas vezes foram construídas residências temporárias rústicas, sem planejamento de implantação e empregando materiais locais, como madeira, barro e palha. Já durante a operação, as residências de ferroviários tinham caráter permanente e costumavam ser hierarquizadas em dimensões e padrões de acabamento, de acordo os cargos dos moradores nas empresas (FINGER, 2013). A movimentação do trecho sob sua responsabilidade e a demanda por mão de obra ditavam o número de residências necessárias, que chegavam a configurar bairros inteiros. Essas residências empregavam já os desenvolvimentos pós-industriais de implantação, programa de necessidades e infraestrutura relacionada, sendo vetores da adoção desses aspectos na arquitetura residencial das cidades de um modo geral. Uma variação foram as estações que contavam no próprio edifício principal com espaço para a residência do agente, como é o caso da Crown Street e da Estação de Teresina. Os espaços de socialização e uso coletivo tinham, também, a função de permitir o controle e a vigilância das empresas. (FINGER, 2013).

107 Figuras 43 e 44 – A Estação de Teresina, que conta com espaços habitacionais no segundo e terceiro pavimentos; a Casa do Agente, pertencente ao mesmo conjunto.

Fonte: Acervo de Liana Lima, 2009.

As primeiras estações brasileiras foram edificadas num momento em que a industrialização no país ainda não era capaz de fornecer os materiais de desenvolvimento mais recente com a qualidade e a quantidade necessárias para que se reproduzissem os modelos europeus. Assim, diversas estações das décadas de 1850 e 1860 foram construídas com materiais tradicionais, como barro, madeira e palha, chegando mesmo a ter piso de terra batida. Os materiais importados, nesse primeiro momento, restringiam-se às peças de ferro e ao breu, asfalto e carvão. Alguns casos excepcionais, porém, contavam com estruturas e mesmo estações inteiras pré-fabricadas e importadas, com gares metálicas, mas que constituíam de fato exceções mesmo na década de 1880, quando se tornaram mais comuns (FINGER, 2013). Como as estradas de ferro eram empreendimentos com fins lucrativos, buscou-se garantir seu funcionamento inicial com o mínimo investimento, reconstruindo-se posteriormente esses edifícios com outros materiais e técnicas quando a empresa estivesse capitalizada. Essas reconstruções ocorreram a partir dos anos 1870, com a difusão do tijolo maciço e das telhas cerâmicas, ambos industrializados. Esses materiais foram difundidos para as áreas servidas pela estrada de ferro, tanto pela referência formal das estações quanto pela facilidade de transporte que o trem agora oferecia (FINGER, 2013). Os materiais e técnicas predominantes na arquitetura ferroviária do século XIX e início do XX foram a alvenaria de tijolos maciços com cobertura de telhas cerâmicas, estruturada em tesouras de madeira. Após a virada do século, o concreto armado começou a ser comumente empregado, conjugado com materiais tradicionais ou não. Suas características permitiram novas formas, como as da Estação de Mairinque – SP, e a construção de edifícios de maior porte, como a Estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro. De maneira geral,

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percebe-se que os materiais tradicionais foram utilizados em conjunto com os da era industrial em diversos casos, nunca deixando totalmente de ser utilizados (FINGER, 2013). De maneira geral, a arquitetura ferroviária brasileira apresenta poucas variações tipológicas e funcionais, basicamente reproduzindo os modelos europeus. Porém, há uma significativa diversidade formal, decorrente dos diferentes materiais, linguagens e composições adotados. Após o primeiro momento de experimentalismo e de edifícios simples construídos com o mínimo investimento necessário, muitas ferrovias passaram por um aumento da demanda, com o crescimento das cidades que serviam e com suas estações assumindo o status social de porta de entrada e ponto de encontro. Dessa forma, houve diversos casos de reconstrução completa de edifícios, visando resolver essas novas questões funcionais e simbólicas (FINGER, 2013). Uma particularidade das estações brasileiras, em relação às europeias, é o fato de terem mantido a separação formal entre espaços de serviços para passageiros e espaços para carga e embarque. As estações de passageiros receberam tratamentos diferenciados, conforme sua importância. Nas grandes cidades, nas pontas de linha e nos entroncamentos (estações de 1ª classe), as estações costumavam ser de maior porte e receber tratamento técnico e estético mais trabalhado. Já nas demais, de 2ª e 3ª classe, recebiam tratamento mais simplificado e a maioria foi inspirada no modelo de chalé rural, com telhado de duas águas projetado sobre a plataforma. Algumas das estações construídas por empresas brasileiras ou inglesas contavam também com gares, estruturadas inicialmente em madeira e, posteriormente, em ferro (FINGER, 2013). O repertório formal das estações brasileiras formou-se com base numa tentativa de se integrar ao discurso de progresso e de aproximação com os grandes centros da Europa, além de algumas tentativas, por parte das empresas que administravam as primeiras linhas, que constituir identidade formal própria. Esse viés ideológico e a chegada dos novos materiais industrializados foram determinantes para a adoção do ecletismo como “estilo oficial” desses edifícios no país durante o século XIX. Essa hegemonia foi rompida depois do advento do concreto armado, empregado de forma pioneira na Estação de Mairinque. O material ofereceu novas possibilidades formais, viabilizando o Art Déco que seria largamente adotado nas linhas administradas pelo Estado na época de Vargas (1930-1945), a exemplo de outros edifícios públicos. Após a 2ª Guerra Mundial, assim como na Europa, também no Brasil as estações assumiram a linguagem do Movimento Moderno, abandonando as referências históricas e se aproximando formalmente das demais tipologias arquitetônicas (FINGER, 2013).

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No documento que trata do primeiro centenário da estrada de ferro no Brasil, publicado em 1954, o IBGE divide a história ferroviária do país em cinco momentos, conforme ilustrado pela Tabela 01 e pelas Figuras 45 a 49. No 1º período, de 1854 a 1870, foram construídos trechos em pequenas porções no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco e Bahia. Durante o 2º período, de 1871 a 1890, expandiu-se a malha, tanto radialmente, a partir dos portos de Santos, Rio de Janeiro, Salvador e Recife, quanto em linhas novas em outros estados. Aconteceram então as primeiras ligações interestaduais, entre São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. O 3º período compreende os primeiros anos da República, de 1891 a 1910, em que a malha começou a ser implantada em estados do Norte e Nordeste, como Pará, Guaporé (atual Rondônia: a célebre Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, EFMM) e Maranhão. Os anos de 1911 a 1930 constituem o 4º período, em que foram construídas vias férreas com a irradiação das redes que já existiam no Sul e Sudeste e o surgimento de novas linhas no Maranhão, Piauí (data desse período a Estação Ferroviária de Teresina e os primeiros trechos do que viria a ser a EFCP, no norte do estado), Goiás, Mato Grosso, Pernambuco e Bahia. Parte dessa rede foi implantada através de investimentos ingleses, que visavam os mercados de café do Sul e Sudeste e de açúcar do Nordeste (IBGE, 1954; VIEIRA, 2010). Tabela 01 – Crescimento da malha ferroviária brasileira no primeiro século.

Período

Crescimento (km)

Média anual (km/ano)

Rede total (km)

1854 – 1870 1871 – 1890 1891 – 1910 1911 – 1930 1931 – 1954

744 9.228 11.352 11.152 4.539

44 266 568 558 189

744 9.972 21.324 32.476 37.015

Fonte: IBGE, 1954.

110 Figuras 45 a 48: O sistema ferroviário brasileiro em 1870; em 1890; em 1910; em 1930.

Fonte: IBGE, 1954.

O governo federal passou então a também a encarar a estrada de ferro como meio de amenizar os efeitos da seca: criou-se, em 1909, a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), rebatizada em 1945 de Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS). Esse órgão foi responsável pela mobilização de diversos migrantes para a construção de açudes, poços, estradas, ferrovias, entre outros. O último período de que trata o material, o 5º, inicia-se em 1931, após a chegada de Vargas ao poder, e vai até a publicação do documento, em 1954. Nesses anos, a rede aumentou menos do que nos períodos anteriores. O texto apresenta como uma das razões para a diminuição do ritmo de expansão o fato de ter sido criado em 1934 o Plano Geral de Viação Nacional, que estabelecia o objetivo de orientar as expansões para a ligação entre linhas já existentes, constituindo de fato uma rede federal (IBGE, 1954; VIEIRA, 2010).

111 Figura 49: O sistema ferroviário brasileiro em 1954.

Fonte: IBGE, 1954.

Em 1919, a indústria automobilística chegou ao país com a fundação da Ford do Brasil, seguida em 1925 pela General Motors do Brasil. Nos anos seguintes, a publicidade dessas empresas construiu um discurso do automóvel como máquina resistente, rápida, confortável e confiável, apelando tanto para o público urbano quanto para o rural. Eventos, exposições e corridas foram utilizados para divulgar os novos modelos e as empresas atuaram junto ao poder público para impulsionar a construção de estradas de rodagem. O governo de Getúlio Vargas (1930-1945) passou a investir no transporte rodoviário, novo mote do progresso, por razões que incluíam o incentivo à industrialização (devido ao “efeito multiplicador” que a indústria automobilística tem ao fazer surgir as indústrias subsidiárias) e a expansão mais ágil e de menor custo da malha rodoviária quando comparada à ferroviária. Diversos textos da época fazem menção ao papel dos caminhões escoando produtos por

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estradas carroçáveis em regiões antes isoladas, à formação de técnicos brasileiros e à retenção de divisas que seriam proporcionados pelo automóvel. O já referido Plano Geral de Viação Nacional de 1934 ainda priorizava o transporte ferroviário e portuário; em 1944 foi criado um plano rodoviário em que a estrada de rodagem assumia formalmente o papel de complementação aos outros modais, determinando a não superposição ou concorrência desta com os principais troncos ferroviários (GALVÃO, 1996; VIEIRA, 2010). Após a Segunda Guerra Mundial, os segmentos técnicos do país passaram a encarar pela primeira vez a integração nacional prioritariamente rodoviária como desejável. Uma comissão do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) apresentou em 1946 um relatório em que se criticava o impedimento de paralelismos entre ferrovias e rodovias, por restringirem o transporte em algumas regiões a apenas um modal e impedir a criação de uma rede nacional eficiente de fato. A mesma comissão elaborou em 1951 um Plano Nacional de Viação em que determinava que a estrada de rodagem assumisse o papel pioneiro até então destinado à estrada de ferro (GALVÃO, 1996). Em 1951, foi formada a Comissão Mista Brasil – Estados Unidos para o Desenvolvimento Econômico, que objetivava formular e implementar projetos para os setores de energias e transportes no país. A comissão elaborou um relatório final desfavorável para o setor

ferroviário

e,

nos

anos

seguintes,

os

investimentos

estatais

diminuíram

consideravelmente para esse modal, enquanto aumentaram aqueles destinados às rodovias, inclusive provenientes de financiamento dos EUA. Em 1956, foi criada uma comissão interna na RFFSA para estudar a supressão dos ramais antieconômicos e, em 1966, surgiu o Grupo Executivo para Substituição de Ferrovias e Ramais Antieconômicos (GESFRA), com a atribuição de executar o plano. As desativações começaram pelo fim do transporte de passageiros, que geraram uma “ruptura afetiva” ao mudar a relação da população com a ferrovia (PROCHNOW, 2014). Juscelino

Kubitschek,

em

seu

governo

(1956-61),

adotou

uma

política

desenvolvimentista em que os transportes, a geração de energia e as indústrias de base tinham papel relevante. Buscou-se atrair investimentos e a instalação de indústrias de eletrodomésticos e automóveis, de modo a gerar emprego e renda; a eletricidade seria necessária para a operação das plantas industriais e a infraestrutura de transporte para o fornecimento de materiais, e trabalhadores e para o escoamento da produção. Além disso, havia a necessidade de interligar a nova capital federal, Brasília, às demais regiões do país; o governo considerou que as rodovias seriam o meio capaz de prover essas conexões em tempo hábil, proporcionando o desenvolvimento desejado para o Planalto Central (VIEIRA, 2010).

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Para as ferrovias, o Plano de Metas do governo previa a expansão da rede e a modernização do material rodante, através de capital do (à época) Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE). A motivação integracionista fez-se presente também com a criação, em 1957, da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA, da qual a União era acionista majoritária), formada por diversas linhas já existentes, que objetivava unificar o planejamento e gestão da malha. Porém, os investimentos priorizaram estados como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, considerados mais economicamente viáveis, enquanto as linhas de outros estados (incluindo os do nordeste) receberam menos verbas e, frente à expansão rodoviária, foram gradativamente perdendo uso (VIEIRA, 2010). Nestes últimos anos aconteceu o ponto de inflexão definitivo no equilíbrio da rede de transportes do país; o número de caminhões em circulação foi de 103 mil em 1945 a 265 mil em 1952, um crescimento de mais de 157%. As rodovias eram responsáveis pelo transporte de apenas 7,6% do volume de cargas transportado em 1946 no país, enquanto em 1970 esse percentual havia passado para cerca de 73% (GALVÃO, 1996). Galvão (1996) aponta alguns questionamentos frente a essa mudança, acerca do maior custo do transporte rodoviário para longas distâncias, da grande dependência que a economia brasileira tem da rodovia desde então e da não melhora concomitante da infraestrutura dos outros modais para que fossem alternativas viáveis. O autor coloca que surgiu uma crença generalizada de que a rodovia seria a única capaz de proporcionar a integração do país em tempo e custos hábeis, apesar de a malha brasileira ter más condições no início dos anos 1950. A cabotagem e a ferrovia entraram em declínio a partir dos anos de 1930 e 1940; a primeira apresentava frota já com décadas de uso e más condições de canais, atracadouros e armazéns, enquanto a segunda operava com grandes déficits e péssimo estado de conservação da linha e do material rodante, apresentando muitos acidentes e redução geral na velocidade. Considerava-se que a modernização desses dois sistemas, que incluía também melhorias nos portos, seria muito onerosa para o Estado. A explicação mais difundida para a falência dos transportes não rodoviários no Brasil gira em torno das condições climáticas e topográficas e da economia centrada na exportação de produtos primários, o que é uma simplificação e ignora o papel da cabotagem e da ferrovia no desenvolvimento dos mercados internos. Da mesma forma, também não se pode atribuir a causa ao lobby da indústria automobilística, que lhe foi posterior, nem a diferenças de bitolas, uma vez que as grandes ligações brasileiras eram todas feitas por linhas com bitola de um metro. A particularidade do Brasil nesse caso era a fragilidade do mercado interno, que não garantia rentabilidade para as linhas e não justificava sua melhoria e expansão. A

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concentração da já baixa renda leva a baixas densidades de tráfego no país, tornando a rodovia o único modal viável por sua versatilidade, sua menor sensibilidade a economias de escala e o fato de que as empresas que operam o sistema não são as mesmas responsáveis pela implantação da infraestrutura. As ferrovias e hidrovias apresentam menores custos por unidade de carga, mas demandam grandes volumes deslocando-se em duas direções para serem viáveis. Conclui-se, portanto, que a opção pelo rodoviarismo no Brasil foi praticamente inevitável devido ao mercado interno pequeno e concentrado (GALVÃO, 1996). A tendência de expansão do transporte rodoviário e de declínio dos outros modais permaneceu e se aprofundou no Brasil ao longo das décadas seguintes. O direcionamento dos investimentos para as rodovias e o consequente sucateamento da rede e do material rodante ferroviários levou a um eventual desmonte e adaptação de diversas linhas no país, vistas cada vez mais como geradoras de custos desvantajosos ao Estado, que operava através da RFFSA cerca de 73% da rede nacional em 1996. Em 1992, um estudo apresentado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) recomendou a transferência do transporte ferroviário de cargas para o setor privado, levando o governo federal a incluir a RFFSA no Programa Nacional de Desestatização. No período de 1996 a 1998, essa transferência foi realizada através de concessões de linhas (agora segmentadas em seis malhas regionais) e arrendamento do material rodante por 30 anos (REDE FERROVIÁRIA FEDERAL SA). Em dezembro de 1999, iniciou-se o processo de liquidação da empresa, com o pagamento de passivos e a realização de ativos não operacionais. Os ativos operacionais (infraestrutura, material rodante, entre outros) foram arrendados às seis empresas operadoras da rede, cabendo à RFFSA a fiscalização. Esse processo foi finalizado em 2007, quando a Lei Nº 11.483/2007 declarou extinta a empresa, que foi sucedida pela União em todos os processos legais. Seus bens operacionais foram transferidos ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), enquanto os não operacionais são de responsabilidade da Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Ao IPHAN coube a atribuição de receber e administrar os bens de valor histórico, artístico e cultural, zelar pela sua guarda e manutenção e preservar e difundir a Memória Ferroviária através de ações e equipamentos culturais que lancem mão desses recursos (BRASIL, 2007; REDE FERROVIÁRIA FEDERAL SA). Atualmente, a malha ferroviária em atividade no Brasil é operada por 13 concessionárias, que atuam quase inteiramente no transporte de cargas. Percebe-se que a rede é menos capilarizada do que já foi no passado, alinhando-se ao princípio de reduzi-la a troncos principais com alta densidade de carga. Desde 2001, o órgão responsável por regular

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o setor ferroviário no Brasil é a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), a que também compete regular a infraestrutura rodoviária e a prestação de serviços de transporte terrestres. Os últimos investimentos para expansão da rede têm ocorrido em conjunto com a iniciativa privada, como no caso da Transnordestina, que está prevista para interligar portos no Ceará e Pernambuco ao cerrado piauiense. Figura 50 – O sistema ferroviário brasileiro em 2016.

Fonte: ANTT, 2016.

O advento da ferrovia no Brasil esteve relacionado a profundas mudanças na sociedade. Alguns passos foram dados no sentido da intenção de integração nacional, na forma das áreas isoladas que passaram por desenvolvimento com a implantação da estrada de ferro. As empresas que construíram as linhas, muitas estrangeiras, geraram aporte de

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investimentos, introduziram novas noções de organização empresarial, novos sistemas modernos de administração e novas relações de trabalho numa sociedade que era ainda largamente agrícola e escravocrata. A estrada de ferro introduziu novas referências formais através da sua arquitetura e da facilidade de transporte de novos materiais, contribuindo para transformar a paisagem das cidades por onde passou (FINGER, 2013).

4.3 A FERROVIA NO PIAUÍ

O advento da ferrovia no nordeste brasileiro esteve inserido na lógica do período imperial de impulsionar as exportações de produtos agrícolas e de integrar regiões isoladas, uma vez que a produção de açúcar era ainda importante a nível nacional e dependia em parte do transporte por tração animal e pela navegação fluvial, cada vez mais difícil. Contando com capital inglês, a primeira estrada de ferro da região foi construída ainda nos anos 1850, com o objetivo de ligar Recife ao Rio São Francisco. A ela se seguiram outras e a região chegou a 1890 com trechos nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Bahia (IBGE, 1954; VIEIRA, 2010). A economia piauiense, desde o início de sua colonização, era baseada na pecuária. O estado fornecia gado, transportado vivo, para as regiões açucareiras e mineradoras do Brasil colônia. No século XVIII, desenvolveu-se uma indústria de charque na região norte do estado, que, junto com outros derivados (como o couro) tornou-se importante produto de exportação e parte relevante da economia da região de Parnaíba por décadas. No entanto, fatores como a grande seca de 1777-1779, que reduziu drasticamente os rebanhos, e o desenvolvimento de charqueadas em outras regiões do país levaram ao enfraquecimento desse setor e, no início do século XIX, a economia do estado foi redirecionada para a agro exportação (IPHAN, 2008b). No Piauí, os investimentos realizados em transportes em meados do século XIX focaram no meio fluvial, em parte pela transferência da capital de Oeiras para Teresina. Essa mudança, do interior para a margem do Rio Parnaíba, teve como um de seus objetivos diminuir a influência econômica de Caxias sobre a região e colocou a navegação como meio de abastecimento direto para a capital. Em 1858, foi fundada a Companhia de Navegação a Vapor do Parnaíba (CNVP) que, assim como outras empresas menores, teve papel importante na estruturação de um mercado de produtos extrativistas piauienses e atuou no transporte de mercadorias de pequenos produtores ao longo do rio para os mercados europeu e americano (VIEIRA, 2010).

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Entretanto, o Rio Parnaíba apresentava dificuldades de navegação em diversos trechos, causadas principalmente pela diminuição do seu nível em épocas de estiagem e pelo assoreamento. Além disso, muitos dos produtos eram embarcados para o exterior em Tutóia, no lado maranhense do delta do rio, em parte pelas condições que a baía existente naquela cidade oferecia para a aproximação de navios maiores. Essa situação gerava custos para os comerciantes piauienses e o Maranhão recolhia impostos sobre essa carga. Assim, a dependência do estado vizinho causava insatisfação tanto em comerciantes quanto em setores do governo, reforçando a retórica de emancipação do estado vizinho (VIEIRA, 2010). Nos anos seguintes, registra-se em documentos oficiais e discursos alusões à necessidade de investimentos em infraestrutura e transportes, de modo a integrar melhor o estado no contexto regional e garantir “progresso” e “desenvolvimento econômico”. Nas primeiras décadas da segunda metade do século XIX, estava já presente a fala sobre o projeto de construir ferrovias e um porto marítimo como obras estruturantes. Foram editadas Resoluções Provinciais em 1871 e 1888 para a construção de ligações ferroviárias, uma de Parnaíba a Luís Correia e outra de Amarante a Oeiras e ao Rio São Francisco, mas estas iniciativas não vingaram. Em 1890, o governador publicou resolução considerando esse segundo projeto insubsistente, por contrariar o plano geral de viação férrea da República, focado em ligar as capitais estaduais entre si e à capital Rio de Janeiro (VIEIRA, 2010). Nos primeiros anos após a Proclamação da República (1889), o trem continuou sendo encarado pelo poder público como instrumental para a integração nacional, inserido num imaginário que o identificava com velocidade e progresso, almejados pelo governo republicano. Os investimentos em ligações ferroviárias continuaram concentrados nas regiões Sul e Sudeste, com o Nordeste sendo considerado “área-problema” pelo seu isolamento e pelas mazelas da seca, além de a sua produção de açúcar e algodão gerar menos renda que o café do sudeste. Parte dos esforços para integração da região resultariam na criação da IFOCS, em 1909, que posteriormente cumpriu papel importante na construção das linhas férreas no estado. Nesse período, foi comum a reivindicação de investimentos federais em projetos estruturantes para o Piauí, como a ferrovia e o porto marítimo, por parte de representantes da política, comércio e imprensa locais. Considerava-se que a estrada de ferro seria um importante passo para dar solidez à economia da agro exportação (IPHAN, 2008b; VIEIRA, 2010). A futura ligação com o Maranhão recebeu o primeiro trecho em 1895, a Estrada de Ferro Caxias – Cajazeiras (atual Timon), que chegou a São Luís em 1919, sendo renomeada no ano seguinte como Estrada de Ferro São Luís – Teresina (EFSLT). No início do século

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XX, o Piauí se inseriu no contexto nacional do Ciclo da Borracha através da exportação da borracha de maniçoba, e, posteriormente, passou a fornecer também derivados da carnaúba e do babaçu, pedras e artigos de couro. Essa intensificação do comércio levou a um crescimento econômico relevante em algumas cidades do norte do estado, notadamente Parnaíba, que incorporou diversos elementos da arquitetura e da cultura em geral dos países com que teve contato. Em 1917, a classe dos comerciantes daquela cidade fundou a Associação Comercial de Parnaíba, que passou a atuar na imprensa e junto ao poder público para reivindicar seus interesses, entre os quais estavam a ferrovia e o porto de Luís Correia (VIEIRA, 2010). Em 1910, foi criada a Rede de Viação Cearense (RVC), que foi concedida naquele ano à empresa inglesa South American Railway Construction Company Limited. Em 1911, a empresa assinou contrato com o governo federal para a construção da EFCP. Em 1915, esse contrato foi considerado caduco e o governo federal assumiu a incumbência de edificar as ligações ferroviárias entre Teresina e Petrolina – PE (parte da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro – VFFLB), Crateús – CE e Luís Correia (no litoral piauiense), além de São Luís – MA (Estrada de Ferro São Luís – Teresina, EFSLT), contratando todos esses trechos com a Companhia Geral de Melhoramentos do Maranhão. No mesmo ano, foi lançada a pedra fundamental da estação sede daquela cidade e a linha da VFFLB foi iniciada em 1919, a partir de Petrolina. Em 1920, a administração das ferrovias da RVC foi assumida pela IFOCS, que empregou migrantes em suas obras. O primeiro trecho da EFCP foi efetivamente inaugurado em 1922, ligando as cidades de Luís Correia, Parnaíba, Bom Princípio e Cocal e, no ano seguinte, inaugurou-se também o trecho que serve a cidade de Piracuruca, totalizando então 148 km naquela linha. Havia também um ramal ligando a estação de Parnaíba ao Porto das Barcas, situado naquela mesma cidade, na margem do Igaraçu, um braço do Rio Parnaíba (IBGE, 1954; IPHAN, 2008b; VIEIRA, 2010). A ferrovia levou à centralização da economia das principais cidades por onde passou, sendo responsável pela abertura de novos caminhos das regiões produtoras e rearranjo das rotas coloniais, agora com mais sentido econômico do que ocupacional. Cocal, que recebeu a ferrovia no primeiro trecho, absorveu a produção agropecuária da região serrana da Ibiapaba, levando ao crescimento da cidade. Em diversas áreas produtoras e em pontos de parada do trem, formaram-se novas aglomerações, como o povoado de Frecheiras, em Cocal, e a cidade próxima de Cocal dos Alves (IPHAN, 2008b). A chegada do trem a Piracuruca em 1923, que foi ponta de linha pelos 14 anos seguintes, levou a cidade a se tornar referência comercial para a região, dinamizando a economia das zonas produtoras de carnaúba e de gêneros agrícolas dos vales dos Rios

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Piracuruca, dos Matos e Longá. O desenvolvimento da cidade levou a um aprimoramento de sua arquitetura, à difusão de novos produtos (como geladeiras) e à migração de jovens das elites para estudar em outras cidades (IPHAN, 2008b). No Piauí, assim como no resto do mundo, a ferrovia se constituiu em depositório de uma forte carga simbólica. Nos lugares por onde passou, gerou grande expectativa de desenvolvimento e fundação de uma nova era de modernidade, movimento, conquista do espaço e do tempo. A locomotiva se tornou um símbolo do otimismo tecnoindustrial e o maquinário empregado, as obras de engenharia relacionadas, o emprego pioneiro do ferro e do concreto e o salto qualitativo de logística em relação ao carro de boi geraram fascínio. Ao mesmo tempo, os acidentes, os sons, as brasas e os incêndios nas casas de palha combinavam a surpresa e o otimismo com o medo e a desconfiança (VIEIRA, 2009). Os padrões de consumo e de comportamento da sociedade se transformaram. A sociedade que recebe a ferrovia no Piauí é nascida nos ambientes rurais, com referência na família e na fazenda. O trem foi catalisador de um amálgama desses valores rurais com a urbanidade, introduzindo modos de vestir, formas e materiais arquitetônicos, reordenamentos urbanos e até a cultura carnavalesca, que, tendo nascido nos subúrbios cariocas, ganhou perfil elitista quando chegou a Piracuruca, por exemplo. A “hora natural” dada pelo nascer e pôr do sol deu lugar a uma vida programada, da qual faziam parte o telégrafo, o rádio e a máquina a vapor que apitava suas chegadas e partidas independentemente do canto do galo ou do berro do boi. A intensificação do comércio trazida pelo trem fez crescer as vaidades dos proprietários rurais, apoiadas no recente acesso aos novos palacetes urbanos e às pratarias e finas porcelanas que agora vinham de outras regiões (IPHAN, 2008b). Assim como a ferrovia chegou ao Brasil aplicando os modelos já amadurecidos na Europa, no Piauí esses modelos chegaram já adaptados ao país, no século XX. A base da arquitetura dessa tipologia no estado foi a estação do tipo chalé rural, difundida nos manuais europeus desde o século anterior. As primeiras edificações ferroviárias do estado foram as estações das cidades do norte, de Luís Correia a Piracuruca, construídas entre 1920 e 1923. A quase totalidade delas consiste em aplicações do modelo de estação intermediária unilateral, com configuração de chalé e programa de necessidades e fluxos organizados da mesma forma que os exemplos europeus. A estação de Parnaíba (Figura 51) é ilustrativa da distribuição desse programa, composto por uma área de espera, uma agência (espaço para administração e venda de bilhetes), um espaço para o serviço de telégrafo, disponível para a população, e o restante destinado à armazenagem de produtos.

120 Figura 51 – Planta aproximada da estação de Parnaíba em 1959.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, 2016, a partir de planta produzida pela Inventariança da RFFSA em 1959, presente na Estação João Pessoa, em São Luís – MA, e publicada em VIEIRA, 2010.

Também nas formas e materiais essas primeiras estações reproduziram os chalés rurais. Sua volumetria prismática simples, a partir da planta retangular disposta paralelamente aos trilhos, recebe cobertura em telhado de duas águas, com amplos beirais protegendo as plataformas. Os embasamentos, cunhais e molduras das aberturas apresentam relevos reproduzindo as formas de grandes blocos de alvenaria. Todas as estações da linha apresentam um dístico no frontão, composto geralmente pela sigla EFCP, o nome da estação e o ano em que se supõe que tenha sido construída. As estações de Parnaíba e Luís correia apresentam frontão com entablamento de cornijas, em formato triangular, com o dístico ou centro; já Cocal e Piracuruca estendem o mesmo acabamento das demais paredes ao frontão. As esquadrias, em madeira, frequentemente apresentavam almofadas ou venezianas. Em Parnaíba e Piracuruca, as aberturas são em arco pleno, apresentando bandeiras com fechamento em gradil ou madeira. Em Cocal e Luís Correia, as esquadrias têm vergas retas. Nessas construções, foram empregados materiais industriais até então novos no estado, como o tijolo maciço de cerâmica cozida e a telha plana (conhecida como telha Marselha ou telha Pará). O aspecto de chalé era reforçado também, pelo menos no caso de Parnaíba, por lambrequins aplicados ao longo dos beirais nos quatro lados da estação, hoje perdidos. Esses materiais e o cromatismo amarelo, que foram adotados ao longo da linha, influenciaram a arquitetura das residências particulares das cidades por onde passou.

121 Figuras 52 a 55: As primeiras estações da EFCP, construídas entre 1920 e 1923. A partir de cima, à esquerda, e em sentido horário: Piracuruca, Parnaíba, Cocal e Luís Correia.

Fontes: Foto de Piracuruca: acervo de Neuza Melo, 2014. As demais: acervo de André Castelo Branco, 2016.

Destoa do conjunto a estação de Floriópolis (Figuras 56 a 58), construída em Parnaíba entre a sede daquela cidade e Luís Correia, também nesse primeiro trecho. Estudos do IPHAN apontam que sua construção se iniciou ainda na década de 1910, possivelmente entre 1916 e 1920, e sua inauguração foi em 1922. A edificação apresenta algumas peculiaridades. Tem estrutura em concreto armado, sendo um dos primeiros exemplos do uso do material no Piauí. A armação do concreto é feita com trilhos, como evidenciado por um pequeno pedaço remanescente de uma viga que colapsou. Apesar de sua pequena dimensão, com configuração semelhante às haltes dos manuais europeus, Floriópolis recebeu um acabamento bastante elaborado, com argamassa marmorizada, relevos que antecipam alguns elementos Déco, fachada com motivos geométricos remetendo ao clássico e simetria rígida, além de pinturas em seu interior e do piso em ladrilho hidráulico (IPHAN, 2008b). Por esses elementos significativos, a estação passou em 2010 por uma intervenção para restauro e consolidação estrutural, em que se recebeu tratamento como monumento contemplativo pela dificuldade de dar uso à sua pequena área. Foi construída uma área pavimentada no seu entorno imediato, com a instalação de bancos. Não se conseguiu levantar

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a informação precisa de como teria sido sua cobertura original, de modo que se construiu uma cobertura metálica que marcasse o caráter de adição posterior. Para conhecimento do bem, foi instalado em sua frente um painel contando sua história, hoje arrancado. Ainda em frente à estação, encontra-se a casa onde residiu o engenheiro Miguel Furtado Bacelar, responsável pela construção da linha, que foi ocupada posteriormente pelo chefe da estação. Esta casa também é única no conjunto das residências da EFCP, pela referência às tradicionais casas de fazenda piauienses na sua grande varanda que faz a transição entre o exterior e o interior em toda a sua frente. Figuras 56 a 59: A Estação de Floriópolis e a Casa do Agente próxima.

Fonte: Acervo de Frederico Castelo Branco, 2016.

A estação de Piripiri apresenta dimensões e características formais semelhantes às anteriores, enquanto Capitão de Campos tem dimensões menores, dístico simplificado e é despojada de elementos decorativos. Seu programa também apresenta mudanças, por não haver o cômodo maior destinado à armazenagem de mercadorias e aqueles existentes serem distribuídos com áreas mais uniformes. A estação de Campo Maior apresenta volumetria que remete à de Teresina, na conformação de volumes prismáticos com alteamento central e nas pequenas tacaniças das extremidades da cobertura, mas completamente desprovida de

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elementos decorativos e sem ritmo marcado das aberturas. Altos é ainda mais simplificada, com a peculiaridade de ter a cobertura da plataforma alpendrada, mas próxima à do corpo do edifício. Já as estações da linha da RVC são mais simples que a de Altos, contando com beirais curtos, alpendre estruturado por trilhos apenas de um lado, aberturas com vergas retas e sem ritmo demarcado. Figuras 60 a 63 – As estações de Piripiri, Capitão de Campos, Campo Maior e Altos.

Fontes: Capitão de Campos: Acervo de Frederico Castelo Branco, 2016. As demais: http://www.estacoesferroviarias.com.br/. Acesso em: 31 out. 2016.

A estação de Teresina foi edificada também nos anos 1920, constando em sua fachada o ano 1926, mas só recebeu trens na década seguinte, após a inauguração da Ponte João Luís Ferreira. Sua composição seguiu o modelo da parte central alteada, com torre encimada por abóbada, com um óculo onde se acredita que seria instalado um relógio. Originalmente, o térreo contava com espaços para administração, serviços para passageiros, telégrafo, correio, enfermaria, dormitórios e depósitos, enquanto o pavimento superior contava com mais dormitórios e, no terceiro piso, há um terraço descoberto. Essa distribuição foi alterada ao longo das mudanças de uso do edifício principal (IPHAN, 2010). Os diferentes volumes prismáticos que compõem a forma do edifício têm coberturas independentes, com telhas planas, e é possível que tenha sido um dos primeiros exemplos na

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cidade a empregar esse material. Há esquadrias altas, em madeira e vidro, com venezianas, o piso é de ladrilho hidráulico e as escadas são de madeira. Seu cromatismo amarelo e marrom, bem como os novos materiais, foi assimilado pela arquitetura local. Compõem o conjunto os dois armazéns, locados também paralelos à linha, a casa do agente, no lado oposto aos trilhos, e a oficina, próxima ao limite norte do terreno. A área livre, que não foi empregada na expansão do pátio, recebeu o Parque Estação Cidadania, inaugurado em 2016. Figuras 64 e 65: A estação de Teresina; os armazéns da estação.

Fonte: IPHAN, 2010.

As relações de trabalho nas ferrovias piauienses eram hierarquizadas, havendo operários especializados, como gráficos, maquinistas, fundidores, assistentes de manutenção, pintores, funileiros e pedreiros. Maquinistas eram os profissionais que dirigiam as locomotivas e zelavam pelo seu funcionamento, cuidando de sua lubrificação, estoque de combustível, funcionamento dos freios, entre outros. Os responsáveis pela manutenção da via eram chamados de artífices de via permanente e realizavam trabalhos braçais, que incluíam tratamento, instalação e substituição de dormentes, disposição de lastro de brita, assentamento de trilhos e fixação com cravos, carga e descarga, roço do leito da linha, impulso de trolleys, entre outros. Trabalhavam expostos às intempéries, em jornadas de oito horas diárias, e manuseavam ferramentas como pás e picaretas (VIEIRA, 2010). As residências construídas para os ferroviários, nos locais onde era necessário instalar permanentemente uma turma de trabalhadores, refletiam essa hierarquização. Os artífices de via permanente residiam nas construções mais despojadas e de menores dimensões, enquanto feitores, mestres de linha e agentes de estação residiam em edificações maiores e com repertório decorativo das fachadas mais elaborado. Porém, mesmo as residências mais simples desses conjuntos costumavam receber um tratamento diferenciado das casas que comumente havia no estado à época. Eram empregados os mesmos materiais industrializados das estações, como tijolos, esquadrias e telhas, e as fachadas recebiam elementos decorativos

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seguindo a mesma linguagem, varandas com balaustradas, além de serem bastante sólidas e alteadas em relação ao solo, garantindo proteção contra a água das chuvas. Figuras 66 e 67: Vila ferroviária em Parnaíba; vila ferroviária no povoado Miradouro, em Campo Maior – PI.

Fontes: IPHAN, 2008a; 2008b.

Nos anos 1920, a conjuntura econômica mudou a níveis internacional, nacional e estadual. O Ciclo da Borracha chegava ao fim, freando o desenvolvimento da região Norte do país. As exportações piauienses também começaram a declinar, conforme ilustrado pela Tabela 02, não confirmando completamente as expectativas de indução do desenvolvimento e de impulsionamento da economia que se faziam presentes nos discursos de apologia à sua construção. A movimentação financeira da EFCP nesses primeiros anos não podia ser corretamente avaliada, porque o pessoal e o material rodante foram empregados tanto no serviço regular quanto na construção, mas em 1922 registrou-se que as receitas só cobriram 92% das despesas com tráfego e locomoção, gerando déficit. Além disso, após a chegada da indústria automobilística ao país em 1919 e o Congresso das Municipalidades de 1922, também no Piauí se iniciou a construção de estradas de rodagem, que tiveram expansão rápida. Em 1924, a administração das ferrovias da RVC foi devolvida ao Ministério da Viação e Obras Públicas (IPHAN, 2008b; VIEIRA, 2010). Tabela 02 – Movimento da EFCP entre 1927 e junho de 1930.

Ano

Passageiros

Bagagens e encomendas (kg)

Animais

Mercadorias (kg)

1927

51.023

264.892

3.998

6.177.661

1928

39.352

218.137

1.616

4.491.146

1929

26.648

117.490

802

3.697.174

1930 (até junho)

12.821

54.352

365

1.804.289

Fonte: VIEIRA, 2010.

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Nos anos 1930, iniciou-se um novo ciclo no país, com a chegada de Getúlio Vargas ao poder central. A Crise de 1929 se fez sentir no país e as consequências para o setor ferroviário foram relevantes. O governo federal, comandado por Getúlio Vargas de 1930 a 1945, realizou a estatização de diversas linhas para mantê-las em funcionamento, mudou o foco dos investimentos para a rodovia e incentivou a industrialização do país (VIEIRA, 2010). No Piauí, nessa década, houve a lenta expansão da EFCP. O projeto original, publicado em mapa pelo Ministério da Viação e Obras Públicas em 1913, previa que os trilhos seguissem de Piracuruca para oeste, passando pelas cidades de Batalha, Barras e Campo Maior. Desse modo, percorreriam a zona produtora de carnaúba do vale do Rio dos Matos e regiões com fazendas importantes próximas ao Rio Longá. As razões da mudança de traçado em direção ao sul, servindo as cidades de Brasileira e Piripiri, não são conhecidas, embora seja provável que estejam relacionadas ao papel desta última cidade como região concentradora de produção (papel que ainda cumpre, como entroncamento rodoviário) e pela sua expressiva produção agrícola própria, também no vale do Rio dos Matos (IPHAN, 2008b). O trecho em Brasileira e Piripiri foi entregue em 1937 e passou mais de duas décadas tendo ali sua ponta de linha. A EFSLT, que havia chegado a São Luís a partir de Caxias em 1915, foi finalmente concluída em 1939 com a inauguração da Ponte João Luís Ferreira sobre o Rio Parnaíba, entre Teresina e Timon. A linha Petrolina – Teresina da VFFLB, cujo primeiro trecho (entre Petrolina e Pau Ferro, em Pernambuco) havia sigo inaugurado em 1923, chegou às cidades piauienses de Acauã e Paulista (hoje Paulistana) em 1936 e 1938, respectivamente. Ao longo da década, o protagonismo de Parnaíba no comércio do estado começou a declinar, com a produção sendo gradativamente reorientada para os estados vizinhos através das rodovias, ao invés do litoral. No fim dos anos 1930, o Piauí contava com 191 km da EFCP e cerca de 40 km da VFFLB, enquanto a rede rodoviária do estado havia chegado a 7.324 km em 1937. No mesmo ano, foram entregues 181,5 km da rodovia que ligaria Teresina a Fortaleza, chegando até Campo Maior. Previa-se que a estrada chegaria a Piripi em 1940 (IBGE, 1954; VIEIRA, 2010). Nos anos 1940, a rede ferroviária do estado não foi mais expandida. Após a ligação férrea entre Teresina e São Luís ser efetivada em 1939, a EFCP foi vinculada administrativamente à EFSLT, permanecendo com sede na capital maranhense até 1946. Nesse período, o complexo ferroviário de Parnaíba começou a ser expandido, com a construção de um posto médico, novos armazéns e, posteriormente, um almoxarifado e novo escritório. A importância das cidades do norte do estado para o comércio começou a diminuir,

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por motivos que incluíam as mudanças nos mercados internacionais após o fim da 2ª Guerra Mundial (1939-1945), a possibilidade de escoar cargas a partir de Teresina para São Luís e a crescente importância e penetração da rede rodoviária (IPHAN, 2008b). O projeto do trecho ferroviário que passa em Piripiri, Capitão de Campos, Cocal de Telha e Campo Maior foi elaborado pelo Departamento Nacional de Estradas de Ferro (DNEF) e aprovado em 1943. Sua construção ficou a cargo da representação do DNEF no Piauí, sendo executada por empreitada a partir de 1947. Em 1955, através de um convênio firmado entre o Ministério da Guerra e o Ministério da Viação e Obras Públicas, os trabalhos foram entregues ao 4º Batalhão de Engenharia de Construção (BEC), sediado em Crateús – CE e, posteriormente, ao 2º BEC, instalado em 1958 em Teresina (VIEIRA, 2010). Na década de 1950, paralelamente ao investimento na indústria automobilística e na expansão da malha rodoviária do país, o governo de Juscelino Kubitschek (1956 – 1961) buscou modernizar o sistema ferroviário brasileiro, que gerava custos para os cofres públicos pelo seu déficit. Para isso, criou a RFFSA em 1957, através da fusão de diversas linhas regionais, incluindo a RVC, a EFSLT e a EFCP. A nova empresa buscava, através da centralização da gestão e do planejamento alinhado às estratégias globais do governo federal, modernizar a rede e torná-la eficiente e rentável. Uma das medidas tomadas foi a identificação dos ramais antieconômicos, que seriam desativados (VIEIRA, 2010). Em pronunciamento de 1955, o senador piauiense Mendonça Clark fez um apanhado dos problemas que acometiam a EFCP, citando as baixas velocidades desenvolvidas, a pouca potência das locomotivas a vapor, que limitavam sua capacidade de carga, e as más condições de conservação das linhas e do material rodante, causados pelo estrangulamento dos recursos investidos. A rede rodoviária do Piauí contava, em 1956, com 9.555 km de estradas ao todo, quase inteiramente apenas com revestimento primário. Em 1959, um estudo realizado a pedido da União recomenda a construção de uma rodovia federal paralela ao traçado da EFCP, mas sem sua desativação imediata, que poderia prejudicar o comércio das ceras e óleos naturais, que permanecia relevante. Como a linha vinha sendo considerada antieconômica, o engenheiro Alberto Silva, então seu diretor, elaborou em 1961 um estudo com o objetivo de reivindicar junto ao governo a compra de duas locomotivas a diesel, que contribuiriam para sanear as contas da linha (VIEIRA, 2010). Em 1962, com o início da operação do trecho Piripiri – Campo Maior, o 2º BEC publicou um relatório dos trabalhos realizados ali, entre 1955 e 1961. Segundo o documento, foram edificados 77,398 km de via, 11 pontes, 39 casas para funcionários agrupadas em 7 pontos (Tabocas, São Joaquim, Estação de 4ª Classe de Capitão de Campos, Cocal de Telha,

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Posto Telegráfico de Sambaíba, Angelim e Estação de 3ª Classe de Campo Maior), cada um incluindo poço tubular e caixa d’água (2º BEC, 1962 apud VIEIRA, 2010). O 2º BEC prosseguiu com as obras da EFCP, entregando os trechos Campo Maior – Altos em outubro de 1965 e Altos – Teresina em março 1969. Este último conta com 41,7 km de extensão, redes telefônica e telegráfica, a Estação de 3ª Classe em Altos (contendo casas de trabalhadores, casa de força, caixa d’água e poço), quatro grupos de casas (em Caranguejos, Alegria, Vista Alegre e Todos os Santos) e a obra de arte de maior vulto da linha: a ponte ferroviária em concreto armado sobre o Rio Poti, em Teresina, com 201,9 m de comprimento. A inauguração do trecho Altos – Teresina coincidiu também com a aquisição de duas locomotivas a diesel para a linha, transformando alguns aspectos das relações de trabalho, tornando diversos reservatórios de água obsoletos e aumentando substancialmente a capacidade de carga e a velocidade desenvolvida pelas composições. Em Altos, o 2º BEC executou o triângulo para entroncamento da linha da EFCP com a Teresina – Oiticica. Os dados sobre a cronologia precisa desse trecho são esparsos, mas sabe-se que a inauguração final ocorreu em 1972, possibilitando então tráfego São Luís – Teresina – Fortaleza e daí para as demais regiões da costa leste brasileira (2º BEC, 1962 apud VIEIRA, 2010). A Figura 68 ilustra todos os trechos de ferrovia que a RFFSA teve no estado, bem como os municípios por onde passam. É importante frisar que alguns desses municípios foram desmembrados depois da chegada da ferrovia e nem todos contam com estações ou paradas. Da mesma forma, havia diversas outras paradas intermediárias, devido à já mencionada necessidade de abastecer constantemente as locomotivas a vapor. Optou-se por não registrálas na imagem, devido ao seu número. O trecho que parte de Teresina para Demerval Lobão e Lagoa do Piauí destinava-se à ligação com a linha que chegava a Paulistana, mas mesmo nesses municípios as obras nunca foram concluídas.

129 Figura 68: Toda a rede que a RFFSA instalou no estado e os municípios por onde passa.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, 2016, a partir de IPHAN, 2008b.

Consta nos guias ferroviários que o tráfego de passageiros nas linhas de Teresina a Luís Correia e a Fortaleza ocorreu até o ano de 1979, embora outras fontes coloquem a data de 1987. A antiga pretensão parnaibana do porto e da ferrovia como obras irmãs que impulsionariam o comércio a partir do norte do estado nunca se concretizou. O porto marítimo de Luís Correia foi projetado nos anos 1960 e as obras iniciaram em 1976, sendo paralisadas em 1986, retomadas em 2008 e paralisadas novamente em 2011. Há diversas denúncias de irregularidades e muitos materiais e equipamentos deixados no local sofreram deterioração. A RFFSA foi incluída no Programa Nacional de Desestatização dos anos 1990, sendo realizado o leilão da malha nordeste em 1997. No ano seguinte, começou a operar a Companhia Ferroviária do Nordeste (CFN), atual Ferrovia Transnordestina Logística (FTL), que tem a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) como um dos principais acionistas. Atualmente, as concessões são reguladas pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) (IPHAN, 2010; VIEIRA, 2010). A linha entre Teresina e o litoral teve o serviço interrompido e os funcionários foram desmobilizados em 1994. A FTL segue operando desde então no transporte de cargas entre os

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estados do Maranhão, Piauí e Ceará, utilizando os trilhos da EFCP até Altos e dali seguindo pelos municípios de Coivaras, Alto Longá, Novo Santo Antônio, Castelo do Piauí e Buriti dos Montes, alcançando então Crateús, no Ceará, e chegando a Fortaleza através de Sobral (Figura 69). A partir dali, a rede também concedida à FTL alcança o estado da Paraíba e, a partir dele, também o Rio Grande do Norte, Pernambuco e Alagoas. Com exceção de Altos, a via piauiense da FTL não passa por dentro dos principais núcleos urbanos. Figura 69 – Parte da malha em operação pela FTL, nos estados do Maranhão, Piauí e Ceará.

Fonte: http://www.csn.com.br/irj/go/km/docs/csn_multimidia/ftl/imagens/Mapa.jpg. Acesso em: 31 out. 2016.

Segundo relatório da ANTT, os principais produtos transportados pela FTL entre 2014 e agosto de 2016 foram óleo diesel, cimento acondicionado, gasolina, produtos siderúrgicos e minério de ferro. A quantidade de carga transportada decaiu entre 2007 e 2013, apresentando pequena melhora deste então. Dentre as concessionárias do país, a FTL está entre as que transportam menos cargas, recebem menos investimentos, possuem menos locomotivas em operação e pessoal mobilizado e apresentam maiores índices de acidentes (ANTT, 2016). A FTL realizou em 2002 estudos para expansão da malha na região, iniciando em 2006 as obras para construção de uma nova rede, conhecida como Ferrovia Transnordestina, interligando o cerrado piauiense aos portos de Pecém, no Ceará, e Suape, em Pernambuco (Figura 70). Os objetivos incluem impulsionar o agronegócio focado na exportação de commodities para a Europa e a mineração em jazidas próximas ao traçado. Inicialmente prevista para começar a operar em 2010, a obra sofreu diversos atrasos, adiamentos e aditivos orçamentários, chegando a 56% de conclusão em fevereiro de 2016.

131 Figura 70 – Projeto da Transnordestina.

Fonte: http://www.csn.com.br/irj/go/km/docs/csn_multimidia/transnordestina/imagens/mapaTLSApeq.jpg. Acesso em: 31 out. 2016.

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5 A FERROVIA EM CAPITÃO DE CAMPOS

As informações sobre a cidade de Capitão de Campos são esparsas, assim como sobre o advento da ferrovia no local. Sabe-se que a povoação no local teve origem na fazenda de Jovita de Sousa Barros, à qual se seguiram as casas de Sesoste Manoel de Araújo e de Manoel Lopes. Em 1935, o comerciante Acelino Coelho de Rezende, vindo de Piripiri, instalou-se na região e estabeleceu um comércio, que prosperou. Após o traçado da rodovia BR – 343, em 1943, seu empreendimento foi ampliado para abranger farmácia, bar, posto de gasolina e um outro galpão livre. A povoação cresceu, com a vinda de mais pessoas, e prosseguiu-se às articulações para sua emancipação como município, instalado em 1957 (IBGE, 2016b; IPHAN, 2008b). Capitão de Campos foi servida pela rodovia antes da ferrovia, que foi implantada ali antes da emancipação do município. A via que passa pela cidade faz parte do trecho Piripiri – Campo Maior, construído pelo DNEF a partir de 1947 e depois pelo 2º BEC a partir de 1955, encerrando-se os trabalhos em 1961. Segundo o relatório dos trabalhos e o termo de recebimento do trecho, elaborados pelo 2º BEC, o conjunto de Capitão de Campos é caracterizado como de 4ª Classe, está situado no quilômetro 28 do trecho e conta com a Estação de Passageiros (155,76 m²), uma Casa de Agente (85,07 m²), uma Casa de Feitor (61,33 m²), uma Casa de Guarda-Chave (61,33 m²), quatro casas para outros trabalhadores (totalizando 221,92 m²), uma caixa d’água de 25.000 L e um poço tubular com bomba (2º BEC, 1962 apud VIEIRA, 2010). Para a realização da pesquisa, realizou-se uma entrevista com o senhor Pedro Veras, funcionário aposentado da RFFSA. Natural de Luís Correia, Veras foi contratado pela Rede e lotado em Capitão de Campos em 1962, quando a ferrovia foi implantada no local, tendo trabalhado na manutenção da estrada de ferro desde então e permanecido na função até 1994, quando a empresa encerrou suas operações. Segundo Veras, havia 10 funcionários trabalhando na estrada de ferro naquela localidade, sendo oito responsáveis pela manutenção, um feitor, que coordenava o trabalho dos oito, e um mestre de linha, responsável pelos oito e pelo feitor. Os oito funcionários deslocavam-se até 10 km acima ou abaixo da estação em trolleys, em grupos de quatro, enquanto o mestre de linha contaria com um trolley próprio, diferenciado. Por vezes, o veículo, que pesaria cerca de 60 kg, precisaria ser tirado manualmente dos trilhos pelos trabalhadores para evitar colisões com um trem que se aproximava. Um dos oito operários seria um manobrista, encarregado de mover, também manualmente, os trilhos que fariam o

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trem seguir por uma ou outra via das duas que havia no pátio. A via seria duplicada dessa forma para acomodar trolleys e um “trem de lastro”, que operaria na manutenção da linha. Ainda segundo o ex-ferroviário, havia dois trabalhadores na estação de passageiros: um guarda, responsável pela segurança, e um agente, responsável pela venda de bilhetes, operação do telégrafo e demais operações relativas aos passageiros. No trem, haveria três funcionários responsáveis por carregar bagagens e conferir bilhetes, dois guarda-freios responsáveis pela frenagem, um foguista responsável por abastecer a caldeira e um maquinista responsável pela operação da locomotiva. Com o advento da locomotiva a diesel, o foguista teria sido substituído por mais um maquinista. Para evitar incêndios, as casas com cobertura de palha teriam sido proibidas e as já existentes, demolidas na faixa de domínio da ferrovia, que seria de 15 m. Os trens seriam diários, de segunda a sábado, fazendo o percurso de Teresina a Luís Correia em um sentido num dia e no sentido oposto no dia seguinte. As composições teriam em média oito vagões, sendo metade para carga e metade para passageiros. Veras se recorda de trens carregando gado, mas não babaçu ou carnaúba (que, na sua lembrança, seria transportada majoritariamente por caminhões). Quando do fim da operação da RFFSA no local, em 1994, Veras relata que os operários da Rede foram removidos das residências, que permaneceram fechadas. Ao longo dos anos seguintes, algumas pessoas teriam pedido a uma pessoa ligada à Rede (um engenheiro, segundo Veras) para se instalar temporariamente nas residências dos ferroviários, enquanto não conseguissem construir uma residência para si. Teriam obtido essa autorização “informal”, permanecendo, desde então, instaladas ali. No mesmo dia, foi também realizada uma entrevista com Maria Luana Freitas, moradora local, que relatou a construção de diversas residências e pequenos comércios no entorno do conjunto ferroviário, mas em momento posterior à sua implantação. Na residência de seu pai, vizinha à estação de passageiros, vê-se ainda uma das estacas de madeira do cercamento original da faixa de domínio, bem como os vestígios de uma placa, possivelmente de indicação quilométrica. Atualmente, tanto a estação de passageiros quanto as cinco residências estão ocupadas irregularmente por famílias, a casa de bomba está em ruínas e o abrigo de ferramentas anexo à estação é usado para criação de animais.

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6 ESTUDO DE CASOS SEMELHANTES

Além do referencial teórico, buscou-se fundamentar a proposta também através do estudo de casos semelhantes, tratando de outros bens patrimoniais ferroviários que sofreram intervenções e que apresentam características relevantes para o trabalho. A metodologia do estudo de caso parte da noção de que é possível adquirir conhecimento sobre um fenômeno a partir da exploração intensa de um caso específico, de modo a obter o maior número possível de informações detalhadas, por diferentes técnicas de pesquisa, para que se possa apreender a totalidade da situação e a complexidade do caso. Este método busca revelar as particularidades do caso específico, suas características desviantes da média; aí reside sua maior diferença em relação aos métodos estatísticos. A observação direta utilizada permite uma análise minuciosa e prolongada do objeto de estudo, que pode durar, às vezes, muitos anos. Não existem regras específicas para o método, que emprega diversas técnicas de acordo com as especificidades da pesquisa; o pesquisador deve estar aberto à possibilidade de lidar com vários problemas teóricos, descobertas inesperadas e mesmo a necessidade de reorientar o estudo, uma vez que é possível que surjam questões novas que se tornem mais relevantes que o problema inicial. É necessário, porém, ter cautela em um aspecto: mergulhar nas particularidades do caso sem afogar-se nelas, realizando a generalização ao entender o caso particular como tal. Para isso, é necessário que se empregue o método comparativo, que possibilita firmar o caso particular como apenas um dos possíveis (GOLDEMBERG, 2004). Apresenta-se, aqui, o Cincinnati Union Terminal, estação erigida na cidade de Cincinnati, que foi parcialmente demolida e recebeu diversos equipamentos culturais; o Complexo Cultural e Memorial Ferroviário de Santos Dumont – MG, proposta acadêmica que acrescenta novos usos diversificados a um conjunto que continua em operação e já recebeu intervenção anterior para abrigar órgãos da administração pública; e o Parque Estação Cidadania, em Teresina - PI, implantado em área que faz parte do conjunto ferroviário da cidade, em que o IPHAN atuou junto à Prefeitura Municipal de modo a garantir a preservação do patrimônio juntamente com a viabilização dos equipamentos de esporte, lazer e cultura previstos para o espaço.

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6.1 CINCINNATI UNION TERMINAL (OHIO, EUA)

A cidade de Cincinnati, cuja ocupação iniciou-se no final do século XVIII, é atualmente a terceira maior cidade do estado de Ohio, no meio-oeste dos Estados Unidos, com população de pouco menos de 300 mil habitantes em 2014. Está situada na margem norte do Rio Ohio, na fronteira com o estado de Kentucky (ao sul). Figuras 71 e 72: A localização de Cincinnati (ponto vermelho) nos EUA; vista do Union Terminal com o jardim, o saguão de passageiros e as plataformas

Fontes: http://metro-cincinnati.info/. Acesso em: 15 out. 2016. http://library.cincymuseum.org/. Acesso em: 15 out. 2016.

Ao longo do século XIX, a cidade passou por rápido crescimento, tornando-se o maior assentamento do interior do país e um importante centro de ligação entre as regiões nordeste, sul e oeste dos EUA, através da navegação fluvial e, posteriormente, da ferrovia. Na virada para o século XX, sete linhas chegavam às cinco estações existentes, apresentando o inconveniente da necessidade de baldeações de pessoas e cargas, além de constantes inundações pelas águas do Rio Ohio. Em 1928, as sete companhias chegaram a um acordo com a municipalidade para a construção do novo terminal, cujas obras começaram no ano seguinte segundo projeto do escritório nova-iorquino Fellheimer and Wagner, já com experiência com projetos ferroviários, e com consultoria do arquiteto francês Paul Cret (CINCINNATI HISTORICAL SOCIETY, 2002; CINCINNATI MUSEUM CENTER, 2014). A obra mobilizou mais de dois mil trabalhadores numa área total de mais de um milhão de metros quadrados, que incluía viaduto, estação de arrefecimento, oficina, estação geradora, rotunda, entre outras edificações. O edifício do terminal, uma das últimas grandes estações feitas naquele país, apresenta uma fachada de linhas Art Déco em pedra e vidro com um grande arco ao centro, ladeado por dois grandes murais em relevo representando transportes e comércio. Nas extremidades, duas alas de planta em arco foram projetadas para receber três rampas de acesso: uma para carros e táxis, uma para ônibus e outra para bondes (a operação destes últimos nunca aconteceu). À frente, há um jardim com fonte luminosa,

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cascata e espelho d’água com linhas geométricas, dialogando com o edifício. O arco da fachada é uma espécie de tímpano da rotunda central do edifício, um meio-domo de quase 55 metros de diâmetro, que era o único do hemisfério ocidental e o maior do mundo à época de sua construção (hoje superado pela Sydney Opera House), cujo tambor é revestido internamente por dois grandes mosaicos representando a história dos transportes e da cidade de Cincinnati. Os trilhos estavam implantados paralelamente ao volume formado pela rotunda e pelas alas laterais; o acesso às oito plataformas com capacidade para 216 trens diários se dava por um saguão perpendicular, decorado com 16 grandes mosaicos em pastilha de vidro, cada um representando um setor da economia importante para a cidade. O complexo incluía salão de beleza, livraria, cinema, loja de brinquedos, banca de jornal, lanchonete, sala de chá, salas de jantar, lounges com banheiros, entre diversas outras amenidades que geraram a alcunha de “uma cidade dentro da cidade” (CINCINNATI HISTORICAL SOCIETY, 2002; CINCINNATI MUSEUM CENTER, 2014; SKARMEAS, 2008).

137 Figuras 73 a 77 – Fachada do Cincinnati Union Terminal; o interior da rotunda; o interior do lounge das mulheres; detalhes de dois dos mosaicos do saguão.

Fontes: CINCINNATI HISTORICAL SOCIETY, 2002; http://www.cincymuseum.org/unionterminal/experience. Acesso em: 13 maio 2016.

O terminal foi impulsionador da ocupação da zona oeste da cidade, funcionando como “âncora” inicial, além de também ser considerado um “portão de entrada” para o oeste do país. Constituiu-se num marco na paisagem, com sua fachada característica aparecendo em cartões postais, anúncios, entre outras representações da cidade. Porém, foi inaugurado num contexto diferente daquele de sua concepção, pois a Grande Depressão de 1929 atingira as ferrovias de maneira contundente nos EUA e a demanda por esse transporte diminuiu nos

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anos seguintes. O número de passageiros veio a subir novamente na década de 1940, quando soldados ativos na 2ª Guerra Mundial deslocavam-se através da estação para os diversos teatros de operações, chegando ao pico de 34 mil passageiros diários em 1944, incluindo os civis sujeitos a racionamentos de combustível. O momento de prosperidade pós-guerra ocasionou a disseminação do automóvel e, com a consolidação do sistema de rodovias interestaduais e o crescimento do transporte aeroviário, a ferrovia entrou em declínio novamente. Em 1953, o terminal recebia 51 trens diários, número que diminuiu para 24 em 1962 e para apenas dois em 1972 (CINCINNATI HISTORICAL SOCIETY, 2002; CINCINNATI MUSEUM CENTER, 2014; SKARMEAS, 2008). Buscaram-se alternativas para viabilizar economicamente a continuidade da edificação ainda nos anos 1950, com a primeira proposta de reuso parcial realizada em 1968, o Cincinnati Science Center, que instalou exposições ao longo da área sul do saguão de passageiros. Em 1971, foi criada nos EUA a estatal Amtrak, que assumiu o controle das ferrovias do país e operou o terminal naquele primeiro ano, até construir uma estação menor em outra área da cidade, encerrando então as atividades do edifício histórico. A estação foi incluída no Registro Nacional de Lugares Históricos em 1972 e declarado um marco histórico nacional em 1977. Em 1974, a empresa Southern Railway comprou a área mais a oeste do terreno, incluindo o saguão de passageiros, que foi quase inteiramente demolido para dar lugar a um pátio de manobras para carga. Diversas associações se mobilizaram e custearam a transferência dos 14 mosaicos da área demolida para o Aeroporto Internacional de Cincinnati, de onde nove deles foram novamente transferidos, em 2015, para o Duke Energy Convention Center, na mesma cidade (CINCINNATI HISTORICAL SOCIETY, 2002; CINCINNATI MUSEUM CENTER, 2014; MONK; MAY, 2015; SKARMEAS, 2008). A municipalidade comprou o restante do complexo em 1975 e alugou o local para um shopping center em 1980, ideia que também não se sustentou, fechando as portas em 1984. A proposta de ocupação que terminou por proporcionar uma alternativa mais sustentável surgiu quando o Cincinnati Museum of Natural History e a Cincinnati Historical Society firmaram parceria com o governo do estado, o município e diversas empresas e entidades e se instalaram no local, dando origem ao Cincinnati Museum Center (CMC). O novo espaço, aberto em 1990, reúne deste então o Cincinnati History Museum, a Cincinnati Historical Society Library, o Museum of Natural History and Science e o cinema OMNIMAX. Naquele mesmo ano, a Amtrak voltou a operar uma linha de trens de passageiros para Washington no terminal e, em 1997, o Duke Energy Children’s Museum juntou-se às demais instituições,

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completando então o quadro de atrações que opera ali atualmente (CINCINNATI HISTORICAL SOCIETY, 2002; CINCINNATI MUSEUM CENTER, 2014). O CMC rapidamente se firmou como uma das principais instituições culturais da região, tendo recebido cerca de 1,47 milhão de visitantes e gerado 75,6 milhões de dólares para a economia local ainda no ano de 2001. Em 2004, os habitantes da cidade aprovaram um subsídio público de cinco anos para a instituição. Em 2009, essa verba financiou o Project One, uma restauração “experimental” que buscou atender deficiências em todas as partes da ala sul do edifício, incluindo fundações, estrutura, cobertura, alvenaria, esquadrias, instalações de iluminação e ar-condicionado e revestimentos e obras de arte internos. Os trabalhos foram realizados de maneira ampla numa área pequena do complexo de modo a fornecer insights sobre os custos e know-how necessários para suprir todas as demandas da edificação, que receberá um novo trabalho do tipo a partir de 2016 (CINCINNATI HISTORICAL SOCIETY, 2002; CINCINNATI MUSEUM CENTER, 2014).

140 Figuras 78 a 83 – O Duke Energy Children’s Museum; o Cincinnati Historical Museum; o Museum of Natural History & Science; o cinema OMNIMAX; o salão de jantar antes da restauração de 2009; o salão após a restauração

Fonte: http://www.cincymuseum.org/union-terminal/experience. Acesso em: 13 maio 2016

Ao longo dos mais de 80 anos de história, o Cincinnati Union Terminal firmou-se como importante marco na cidade por diversas razões, que incluem sua arquitetura característica, suas grandes dimensões, as inovações técnicas que incorporou, as amenidades que oferecia aos passageiros, o papel que cumpriu no transporte de soldados para a 2ª Guerra Mundial, o envolvimento da população com as iniciativas que pretenderam assegurar sua preservação e, hoje, como equipamente cultural relevante no contexto regional. Ao longo dessa trajetória, constituiu-se em patrimônio cultural significativo, representando diversos valores: histórico, pelo envolvimento nesses períodos marcantes e pela memória das atividades e do trabalho realizados ali; técnico, por todas as soluções de urbanismo, arquitetura e engenharia incorporadas ao complexo, além de toda a infraestrutura envolvida na operação da ferrovia; estético, pela sua arquitetura e rica decoração Art Déco; urbanístico, por

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seu papel no desenvolvimento da cidade; social, pelo envolvimento das pessoas e instituições com sua preservação; de uso, pelos equipamentos que abriga; econômico, pela renda que gera. As diversas intervenções realizadas nem sempre tiveram bons resultados do ponto de vista da preservação, uma vez que ocorreu inclusive uma demolição da maior parte do concourse, o saguão de passageiros, além do pátio com os trilhos. Também foram transferidos quase todos os grandes mosaicos. Porém, a instalação de um conjunto de equipamentos culturais, que proporcionam atividades variadas e geram engajamento com um ampla diversidade de públicos, foi uma ação positiva, que efetivamente garantiu a preservação da edificação pelos últimos 25 anos, reforçando os laços da população e criando alternativas para viabilizar seu uso, sustentabilidade econômica e as necessárias obras de manutenção e restauro da matéria do edifício. Ressalta-se como relevante para o embasamento deste trabalho o enfoque no envolvimento da comunidade e a diversidade de usos e de público contemplados, características que se buscará também na intervenção para o conjunto de Capitão de Campos.

6.2 COMPLEXO CULTURAL E MEMORIAL FERROVIÁRIO DE SANTOS DUMONT (MG)

O município de Santos Dumont está localizado na Zona da Mata mineira, cerca de 207 km ao sul de Belo Horizonte, próximo a Juiz de Fora. O desbravamento da região foi relacionado à abertura do Caminho Novo, realizado por Garcia Rodrigues Pais para a penetração dos bandeirantes vindos do litoral em direção à região mineradora. O município conta com área de 637,373 km² e população estimada de 47.560 habitantes (IBGE, 2016a).

142 Figuras 84 e 85 – Localização de Belo Horizonte (laranja) e Santos Dumont (vermelho) em Minas Gerais; a estação de Santos Dumont (então Palmyra) em 1930.

Fontes: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/a/a6/MinasGerais_Municip_SantosDumont.svg/420pxMinasGerais_Municip_SantosDumont.svg.png. Acesso em: 06 nov. 2016. http://www.estacoesferroviarias.com.br/efcb_mg_linhacentro/fotos/sandumont9301.jpg. Acesso em: 06 nov. 2016.

Ao longo do Caminho, a Metrópole concedeu terras a sesmeiros interessados em cultivá-las, de modo a garantir o abastecimento para os bandeirantes durante a jornada. Em 1709, foi outorgada no território do atual município uma sesmaria a Domingos Gonçalves Ramos, que se estabeleceu ali com os genros Pedro Alves de Oliveira e João Gonçalves Chaves. João Gomes Martins, pai do inconfidente José Aires Gomes, adquiriu parte das terras de João Gonçalves Chaves em 1728, instalando ali ranchos para a hospedagem de visitantes, plantações e criações de animais. Suas terras passaram a ser conhecidas como Roça de João Gomes e correspondem ao bairro de João Gomes Velho da cidade atual. A antiga capela de São Miguel e Almas, protetor dos bandeirantes, foi removida da margem do Caminho Novo e instalada na Roça de João Gomes em 1788, voltando a ser erguida no local original em 1827. Essa nova capela teria patrimônio doado por uma filha de João Gomes, chamada Palmyra (IBGE, 2016a). Em 1847 foram doadas as terras para o arraial e, em 1867, foi criada a paróquia. Nessa época, avançava a construção da futura Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB), que, vinda do Rio de Janeiro, chegou a Juiz de Fora em 1875 e a João Gomes em 1877. O arraial passou por expressivo crescimento e desenvolvimento com a chegada dos trilhos, sendo elevado a município em 1889, instalado no ano seguinte com o nome Palmyra. A cidade recebeu fábricas de laticínios a partir da década de 1880, tornando-se importante exportadora desses gêneros. Em 1932, seu nome foi alterado para Santos Dumont, em homenagem ao aviador nascido ali. Atualmente, sua economia é baseada no setor de serviços, que responde por 64%

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do Valor Adicionado Bruto (VAB) do capital privado do município. A indústria responde por 33% e a agropecuária, pelos 3% restantes (IBGE, 2016a; LUCIANO; SOUZA, 2013). A estação ferroviária de Santos Dumont, componente da Linha Centro da EFCB e, posteriormente, da RFFSA, sofreu algumas alterações ao longo da sua história, sendo a mais marcante a demolição do segundo pavimento do edifício sede nos anos 1970. Os trilhos do lado oeste da estação permanecem em uso por trens cargueiros, enquanto aqueles do lado leste, onde está implantado o projeto, foram desativados. A edificação foi cedida à Prefeitura em 2004, que instalou ali o Centro Cultural Paulo de Paula. Como remanescentes, existem no local uma edícula, onde funciona a Associação dos Ferroviários, a gare e a estação sede, que abriga o Centro Cultural, o Arquivo Municipal e a divisão de Patrimônio Cultural (LUCIANO; SOUZA, 2013). O projeto em estudo é uma proposta de intervenção para o conjunto desta estação e seu entorno imediato, produzido por Ayesha de Oliveira Luciano como Trabalho Final de Graduação (TFG) em Arquitetura e Urbanismo no Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora em junho de 2012 e apresentado no 4º Encontro Internacional Arquimemória sobre preservação do patrimônio edificado em 2013. A autora identifica nessas edificações um importante valor cultural a preservar e, na proximidade com os trilhos desativados e com a Rua Maquinista João Mendes (chamada de Rua da Feira por receber essa atividade, além de comícios, eventos culturais, entre outros), a possibilidade de articulação de usos (LUCIANO; SOUZA, 2013). Figura 86 – Edificações remanescentes.

Fonte: LUCIANO; SOUZA, 2013.

Em seu diagnóstico, as autoras identificaram os usos praticados nos imóveis da área, verificando que predominam o residencial, comercial e misto ao longo da Rua da Feira, enquanto a estação e a edícula imediatamente ao norte apresentam uso institucional. As diretrizes adotadas para a intervenção previram consolidação dos usos atuais para a Rua da Feira, a estação sede e a edícula, considerados positivos para a preservação do patrimônio, além do tratamento paisagístico para a Rua Antonio Ladeira, que cruza perpendicularmente o

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conjunto, e a proposição de novos usos para o entorno imediato da estação, conforme ilustrado pela Figura 87. Figura 87 – Diagnóstico dos usos da área do projeto e entorno, bem como setorização da intervenção.

Fonte: LUCIANO; SOUZA, 2013.

O raciocínio desenvolvido pela autora partiu da permanência das edificações ilustradas pela Figura 86, que constituem vestígios da cultura industrial, portadores de significado. Em seguida, o diagnóstico identificou os usos e as morfologias de ocupação presentes no entorno e na área de intervenção imediata. O projeto partiu então da definição da estação ferroviária como espaço de passagem e de parada, ao mesmo tempo movimento e permanência. O elemento que mais fortemente está imbuído dessa carga simbólica são os trilhos, dos quais se tomou partido, juntamente com o relevo acidentado. A autora identificou uma carência de equipamentos culturais na cidade, que a intervenção poderia contribuir para sanar. Decidiu-se pela manutenção das características formais das edificações remanescentes, recomendando apenas o seu restauro, de modo a preservar a memória de que são portadoras (LUCIANO; SOUZA, 2013).

145 Figuras 88 a 90 – Vistas aéreas da implantação da proposta; usos propostos da intervenção.

Fonte: LUCIANO; SOUZA, 2013.

Em seguida, a autora realizou sua proposta, sintetizada na Figura 90. A Rua da Feira teve esse uso consolidado, bem como o estacionamento e a passagem em nível, adjacentes a ela. O edifício da estação, considerado o protagonista, teve seu uso cultural consolidado, bem como o uso institucional da edícula. O espaço sinalizado para criação de novos usos na Figura 90 recebeu cinco praças diferentes e dois anexos, um para o café/livraria e outro para o memorial ferroviário.

146 Figuras 91 a 94 – Vistas aéreas da proposta para o edifício da estação; planta baixa do centro cultural; corte AA, mostrando o centro cultural, gare e praças. Desconsiderar indicação de escala.

Fonte: LUCIANO; SOUZA, 2013.

O edifício da estação recebeu restauro de seus elementos característicos que estavam danificados. Nele foram previstos espaços para exposições, arquivo público municipal, sanitários e loja de souvenires e bilheteria que serviriam ao Expresso Pai da Aviação, um percurso ferroviário turístico que a autora propôs para a linha férrea operacional. Os dois lados da gare receberam praças que exploram conceitualmente a dicotomia simbólica entre percurso e parada expressa pela estação. Entre ela e a estação está implantada a Praça dos Trilhos, em que estes são literalmente interrompidos em diversos pontos por decks em madeira. Dessa forma, o usuário do espaço produz em seu próprio movimento intermitente pelo espaço a dinâmica de movimento e paradas da ferrovia. Suas extremidades têm contorno recortado, criando uma estética de “encaixe imperfeito” com o terreno. Do lado oposto da gare, há a Praça Linear, que faz a transição entre esta e o limite do terreno, um aclive arborizado. Esta praça agencia diversos elementos, como o mobiliário, e as diferentes pavimentações, para produzir também um desenho recortado, dessa vez ao longo de seu lado

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maior, realizando a transição entre intervenção humana e terreno natural de maneira irregular, não claramente definida. Figuras 95 a 97 – Vista aérea da Praça dos Trilhos; vista aérea da Praça Linear; planta baixa da gare e das praças.

Fonte: LUCIANO; SOUZA, 2013.

Na extremidade norte da Praça Linear, o aclive limítrofe ao terreno foi aproveitado para a implantação de um teatro de arena. Destaca-se a solução de acessibilidade adotada na arquibancada, disposta ao longo do terreno naturalmente inclinado. Dispôs-se rampas ao longo de toda a arquibancada, intercalados com os bancos propriamente ditos, formados pelo prolongamento dos seus patamares. Ao centro e na extremidade sul, foram colocadas escadas. Os três elementos, escadas, rampas e bancos/patamares, recebem um mesmo material, a madeira, o que reforça o caráter unitário que a solução formal busca. A área reservada às apresentações está no nível mais baixo, integrada a todas as praças do projeto.

148 Figuras 98 e 99 – Planta do Teatro de Arena; vista do Teatro de Arena.

Fonte: LUCIANO; SOUZA, 2013.

Na porção mais ao norte da proposta, estão implantados a Praça da Estação, a edícula onde funciona a Associação dos Ferroviários, os dois anexos que receberão o café/livraria e o Memorial Ferroviário, o Jardim Expositivo e a Praça Escalonada. Figura 100 – Planta da porção norte da proposta.

Fonte: LUCIANO; SOUZA, 2013.

A Praça Escalonada está implantada ao lado do Teatro de Arena, também no aclive, como sugere o nome. Trata-se de uma sucessão de jardins em terraço, com acesso por rampas

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e patamares sucessivos, semelhantes aos do Teatro de Arena. Assim, torna-se possível a utilização dessa porção da encosta e sua integração com o café, implantado logo em frente, que conta com mesas na área externa contígua. Figuras 101 e 102 – Área externa do café e rampas; Praça Escalonada.

Fonte: LUCIANO; SOUZA, 2013.

O café/livraria foi instalado num novo anexo proposto, um volume prismático de planta retangular que dialoga com a estação nessa volumetria simples, enquanto o sistema de fixação dos painéis de fechamento e as aberturas verticais evocam a forma dos trilhos. O programa contemplado por este edifício inclui o café/livraria, banheiros e depósitos. Figuras 103 a 105 – Planta baixa do café/livraria; corte BB; fachada frontal.

Fonte: LUCIANO; SOUZA, 2013.

O segundo anexo, destinado ao Memorial Ferroviário, tem como programa um espaço único, aberto, destinado a exposições de naturezas diversas. A expografia é mantida em aberto, a ser acomodada no espaço de acordo com as necessidades específicas de cada

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exposição ou atividade desenvolvida ali. Sua volumetria e fachadas são as mesmas do primeiro anexo, gerando uma unidade nos acréscimos propostos. Está, ainda, integrado a um jardim expositivo na extremidade norte da área de intervenção, que oferece uma área ao ar livre para exposições diversas ao mesmo tempo em que faz o fechamento da área do projeto em traçado orgânico, em continuidade com o princípio dos limites não regulares colocados nas praças e no Teatro de Arena ao longo de toda a margem leste da proposta. Figuras 106 e 107 – Planta baixa do anexo; corte DD.

Fonte: LUCIANO; SOUZA, 2013.

O último elemento trabalhado na proposta é a Praça da Estação, único espaço aberto que recebeu tratamento com limites bem demarcados. Tal tratamento tem origem tanto na sua implantação, confinada entre duas linhas férreas, quanto no formato da praça original (vista na Figura 85). Sua forma dialoga com a Praça Linear nos materiais empregados (madeira, pedra, concreto e grama) e no tratamento formal dado à paginação de pisos. As faixas de piso são rompidas pelo mobiliário, constituído por banco e vaso conjugados, em madeira. Figura 108 – Vista da Praça da Estação.

Fonte: LUCIANO; SOUZA, 2013.

O projeto do Complexo Cultural e Memorial Ferroviário de Santos Dumont foi escolhido como estudo de caso por diversos fatores além do fato de ilustrar o processo de um TFG que emprega intervenção com adaptação de uso no patrimônio ferroviário. Considera-se que a análise prévia realizada, que identificou usos consolidados que seria interessante

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manter, valores culturais decorrentes desses usos e da significação do espaço e potencialidades da área, foi bastante positiva e proporcionou embasamento consistente para a intervenção. A proposta propriamente dita esteve em todos os momentos lastreada na análise prévia, tanto no tratamento dispensado às preexistências (restauro e manutenção do máximo de características originais) quanto nas novas edificações propostas (volumetria prismática simples e aberturas evocando as formas dos trilhos), adotando, portanto, a postura prescrita pelo Restauro Crítico. Os usos colocados foram justificados e são compatíveis com os vestígios materiais. Por fim, todos os novos elementos formais colocados, como os traçados, paginação de piso e materiais, foram embasados pela análise prévia, buscando um diálogo com as referências materiais e imateriais preexistentes, e também pela intenção plástica da autora, condizente com o caráter de ato criativo do projeto de intervenção. Todos esses pontos fornecem subsídios para a proposta desenvolvida para o conjunto de Capitão de Campos.

6.3 PARQUE ESTAÇÃO CIDADANIA (TERESINA, PI)

O Parque Estação Cidadania está implantado em parte da área do conjunto ferroviário de Teresina, capital do Piauí. Figura 109 – Localização do Parque Estação Cidadania em Teresina.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, 2016, com imagem de Google Earth, 2016.

A cidade de Teresina foi planejada para ser a nova capital do Piauí, substituindo Oeiras, e foi fundada em 1852. Sua malha urbana original, de traçado retilíneo com 12 quadras de largura e 18 de comprimento, foi implantada entre os Rios Parnaíba e Poti. O desenvolvimento inicial da cidade se deu no eixo norte-sul, paralelamente ao curso do Rio Parnaíba, cujo cais cumpria função importante no comércio e abastecimento da cidade, além

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de proporcionar acesso ao litoral pela navegação. Um dos fatos que impulsionou inicialmente a expansão da malha urbana a leste foi a construção da Igreja São Benedito, localizada no limite da malha à época. O grupo de voluntários mobilizado para a edificação do templo no último quartel do século XIX acabou por abrir um caminho vicinal em direção ao Rio Poti, onde iam buscar material. Esse movimento levou à primeira ocupação da via, por chácaras e quintas (IPHAN, 2010). Na década de 1920, Teresina recebeu uma grande obra estruturante, que transformou seu traçado urbano: a ferrovia. Objetivando a posterior ligação com São Luís, ponta da linha férrea que então já levava a Timon, na margem esquerda do Rio Parnaíba. Os trilhos foram dispostos na cidade segundo um traçado aproximadamente semicircular, coincidente com a Avenida Miguel Rosa, construída concomitantemente, externo à malha urbana da época (IPHAN, 2010). Figura 110 – Sobreposição do traçado original de Teresina sobre o atual.

Fonte: Elaborado por OP Arquitetura, 2008, e publicado em IPHAN, 2010.

Além da implantação dos trilhos, a ferrovia recebeu nesse primeiro momento uma estação, no cruzamento das avenidas Miguel Rosa e Frei Serafim. Trata-se de uma edificação

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construída segundo os modelos desenvolvidos e maturados na gênese da arquitetura ferroviária ao redor do mundo. Sua volumetria é simétrica, distribuída a partir da torre central, na qual se previa a instalação de um relógio. Assim como ocorreu em outros lugares, a estação foi a responsável pela introdução de um novo repertório formal, de matriz eclética e referência no chalé europeu, e de materiais industrializados, como tijolos maciços e telhas planas do tipo francesa (IPHAN, 2010). A ferrovia passou a ter atividade mais constante na cidade a partir de 1939, quando a ligação com São Luís passou a funcionar com a inauguração da Ponte Metálica João Luís Ferreira, sobre o Rio Parnaíba. A travessia dos trens sobre a Avenida Frei Serafim se deu em nível até os anos 1970, quando a via férrea foi rebaixada como parte de uma ampla reforma empreendida naquela avenida, que coincidiu com um momento de transformações do movimento ferroviário em que foi inaugurada a ligação com Fortaleza e a se buscou revitalizar a ligação com o litoral do estado, que já apresentava intermitências pela baixa demanda. A rede na cidade foi adaptada para receber o metrô na década de 1980, compartilhando os trilhos com trens de carga que permanecem em operação atualmente (IPHAN, 2010). O espaço que originalmente formava o pátio de manobras da estação e a reserva para expansão da rede sofreu algumas alterações ao longo da sua trajetória. Inicialmente, a porção mais a leste recebeu a sede do 2º BEC e o Hotel de Trânsito de Oficiais, com outras porções sendo depois retiradas com os taludes de corte do rebaixamento da via e a construção da estação do metrô, vizinha à estação de passageiros. O espaço restante, em sua maior parte livre (contendo apenas as ruínas da oficina, a casa do agente e a seu anexo), permaneceu sem utilização (exceto pela residência do agente) com o fim da operação da EFCP. O espaço da estação e dos armazéns, na margem oeste da via rebaixada, passou a receber atividades culturais, sendo posteriormente tombado a níveis estadual e federal e inscrito na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário. Por fim, foi construído o Parque Estação Cidadania nesse espaço subutilizado, sendo inaugurado em 2016.

154 Figura 111 – Pré-existências no conjunto ferroviário de Teresina antes da implantação do parque.

Fonte: Elaborado por OP Arquitetura, 2008, e publicado em IPHAN, 2010.

Conforme ilustrado pela Figura 111, o conjunto ferroviário contava com a estação de passageiros, dois armazéns, a casa do agente com seu anexo, a oficina/serraria e a estação do metrô, primeiro grande acréscimo, cuja cobertura desenvolve-se transversalmente à via rebaixada. Na imagem, fica claro que a estação de passageiros e os armazéns estão implantados a oeste da via, enquanto a casa do agente e a oficina/serraria estão a leste. Foi essa área de terreno a leste da via rebaixada que se destinou à implantação do parque. Figura 112 – Planta do parque.

Fonte: Prefeitura Municipal de Teresina, 2014.

A Figura 112 traz uma planta baixa em que se pode observar a implantação do Parque da Cidadania, como é conhecido. À direita, na imagem, vê-se a Avenida Frei Serafim,

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principal via de ligação entre o centro da cidade e a zona leste, além do Rio Poti. Trata-se de uma avenida bastante movimentada, servida por diferentes modais de transporte coletivo e frequentada por diferentes públicos, o que favorece a frequência de pessoas no parque. Aí se encontra o acesso principal, através da "esplanada passeio 'portal do viajante'", como é denominada no projeto, constituída por área calçada em torno de um espelho d'água ladeado por carnaúbas (indicada pelo número 17 na imagem). O fluxo é direcionado para um espaço com pergolado (10) e um acesso (22) para a área entre os armazéns e a estação de passageiros da RFFSA (em cinza). Seguindo para norte, vê-se a casa do agente e seu anexo (16 e 15), que foram alvo de intervenção de consolidação estrutural e adaptação a novo uso para abrigar a administração do parque. Toda a porção mais a norte do parque, além da casa do agente, diferencia-se da área mais ao sul pelos equipamentos que recebeu, como pista de skate (14), desenvolvida com assessoria da Associação dos Skatistas local; anfiteatro (13); playground (12); academia da terceira idade (11); pergolados (10); quiosques (02); e mirador (04). Compondo o paisagismo, foi edificado um lago (07), com traçado orgânico, sobre o qual foi prevista uma passarela (08). A oficina/serraria (09) também sofreu intervenção para consolidação e adaptação a novo uso, recebendo o Museu de Arte Santeira. Na área externa à extremidade norte (01), foi implantado um estacionamento, com pavimentação diferenciada que objetiva criar o efeito de traffic calming, a diminuição na velocidade do tráfego de veículos. Por se tratar de uma área componente de um bem patrimonial valorado e objeto de diferentes instrumentos de salvaguarda a níveis estadual e federal, a implantação do parque foi acompanhada pelo IPHAN. O Instituto colocou alguns condicionantes, de modo a diminuir a interferência do projeto com a apreensão do conjunto ferroviário, que, apesar de já bastante modificado pelo rebaixado da via férrea, ainda mantém o esquema de implantação do pátio ferroviário, com a estação e os armazéns, paralelos à linhas, de um lado, e a casa do agente de outro. Este "núcleo" deveria permanecer visível e livre de interferências, enquanto a Companhia Metropolitana de Transporte Público (CMTP), responsável pela operação do metrô, colocou exigências de altura para as passarelas que atravessariam a linha. As exigências feitas pelas duas instituições resultaram em aditivos orçamentários e alterações de projeto. Assim, de modo a respeitar a visibilidade dos bens tombados, foi retirada a academia coberta e a cobertura da arquibancada do anfiteatro, que também foi reduzida, além do pergolado que era previsto para construção ao lado da casa do agente. O Instituto determinou, também, que fossem feitas as intervenções no Museu de Arte Santeira e na casa do agente, além do alargamento da rua na extremidade norte do projeto e da adoção

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do traffic calming. Por último, o corpo de bombeiros exigiu a construção de reservatórios subterrâneo e elevado na área, que não estavam inicialmente previstos. Figura 113 – Vista aérea do parque, como construído.

Fonte: Google Earth, 2016.

Na Figura 113, em que se vê uma imagem de satélite do parque tal como construído, é possível perceber as alterações demandadas pelos dois órgãos à prefeitura. Os acessos sobre a via rebaixada não foram executados, hoje sendo possível entrar no parque apenas pela esplanada junto à Avenida Frei Serafim e pelo estacionamento a norte. A arquibancada do anfiteatro é reduzida em relação à prevista na planta da Figura 112, enquanto o traçado do lago foi simplificado, eliminando o mirador e a passarela, e os reservatórios de água foram edificados. Figuras 114 e 115 – Vista da esplanada de entrada, com a estação ao fundo; arquibancada do anfiteatro.

Fonte: http://180graus.com/geral/conheca-o-parque-da-cidadania-que-inaugura-nesta-sexta-24-na-capital. Acesso em: 30 nov. 2016.

157 Figuras 116 e 117 – Vista da pista de skate; interior do Museu de Arte Santeira.

Fontes: http://180graus.com/geral/conheca-o-parque-da-cidadania-que-inaugura-nesta-sexta-24-na-capital. Acesso em: 30 nov. 2016. http://www.portalodia.com/noticias/piaui/parque-da-cidadania-sera-inaugurado-hojecom-museu-de-arte-santeira-274169.html. Acesso em: 30 nov. 2016.

O Parque da Cidadania apresenta diversos pontos positivos para o embasamento deste trabalho. A própria destinação do espaço para este fim é um deles, uma vez que, após o fim da operação da RFFSA, cogitou-se leiloar o imóvel para quitar dívidas trabalhistas. Considera-se que a intervenção para implantar um parque urbano seja compatível com seu caráter patrimonial, uma vez que a configuração do pátio ferroviário, bem como seus eixos visuais, não foi descaracterizada pelo projeto (ainda que já houvesse recebido alterações com o rebaixamento da via e a construção da estação de metrô). Além disso, especialmente no edifício do Museu de Arte Santeira a questão ferroviária foi trabalhada poeticamente, na preservação de um trecho de trilhos em uma de suas entradas, evocando o fato de que para aquele espaço se deslocavam locomotivas e vagões para manutenção. Trilhos também foram empregados no mobiliário, compondo as superfícies de exposição no vão central (onde também evocam o antigo uso) e no mezanino. Figuras 118 e 119 – Vista da expografia do Museu, com emprego de trilhos; trilhos na entrada do Museu.

Fontes: http://www.capitalteresina.com.br/noticias/teresina/prefeito-visita-obras-do-parque-cidadania-einspeciona-boxes-no-mercado-central-41872.html. Acesso em: 30 nov. 2016. http://www.imgrum.net/media/1281546586325584431_380470799. Acesso em: 30 nov. 2016.

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A atuação do IPHAN junto à Prefeitura Municipal de Teresina foi fator determinante para isso, uma vez que o Instituto analisou todos os projetos (às vezes levando até 120 dias para emitir parecer, segundo documento da Secretaria Municipal de Planejamento) e demandou alterações, como a retirada da cobertura da arquibancada, para garantir que a visão da casa do agente ficasse desimpedida. O órgão também exigiu da municipalidade intervenções para consolidação tanto da residência e seu anexo quanto da oficina/serraria, que, por sua própria natureza, demonstram que havia ameaça à integridade dessas edificações. Desde sua inauguração, em junho de 2016, o parque apresenta público expressivo. Diversos fatores contribuem para tal, como sua localização num dos principais eixos viários da cidade, servido por metrô e grande número de linhas de ônibus; a diversidade dos equipamentos, que permitem versatilidade de público e utilização; e a cessão de um dos quiosques ao Coletivo Salve Rainha, organização que desenvolve agenda cultural constante no espaço. Na proposta pensada para o conjunto de Capitão de Campos, busca-se a mesma sinergia entre preservação do patrimônio, integração ao contexto urbano, diversidade de usos e incentivo à economia local.

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7 DIRETRIZES PARA PRESERVAÇÃO INTEGRADA

As diretrizes desenvolvidas para o conjunto ferroviário de Capitão de Campos estão estruturadas de acordo com a metodologia empregada, referenciada no Restauro Crítico. Primeiramente, realizou-se a etapa de identificação, conhecimento e diagnóstico. Solicitou-se ao IPHAN o material do Inventário de Conhecimento sobre a malha ferroviária do Piauí, realizado em 2008, especificamente a parte que trata da Linha 01, correspondente à EFCP. O material recebido consiste em: mapa geral da rede ferroviária do Piauí, contendo as linhas construídas; mapas da rede ferroviária do Piauí, com desenhos detalhados de 23 municípios; Ficha Índice da estação, da vila ferroviária, da caixa d’água e da casa de bomba de Capitão de Campos; fichas de Registro Fotográfico das edificações dos conjuntos de Capitão de Campos, Campo Maior, Boqueirão do Piauí, Demerval Lobão, Nossa Senhora de Nazaré, Altos, Teresina e Lagoa do Piauí; fichas de Registro Gráfico das edificações do conjunto de Capitão de Campos, contendo o levantamento métrico do conjunto e formado por planta de situação do conjunto, planta baixa, fachadas frontal e lateral direita, corte transversal e planta de cobertura da estação e planta baixa, fachadas frontal e lateral, corte transversal e planta de cobertura de uma casa; Ficha Síntese Consolidada da rede ferroviária piauiense, contendo breve histórico e índice das fichas das três linhas; Fichas de Levantamento de Campo das edificações da Linha 01; volume com as Fichas Índice consolidadas das três linhas; mapa esquemático e breve síntese histórica da Linha 01; Relatório Técnico, contendo breve histórico e índice de fichas referentes à Linha 01; Relatório Síntese do Inventário de Conhecimento da Linha 01, documento mais extenso e completo que contempla toda a história e os impactos da ferrovia no Brasil, no Nordeste e no Piauí, com textos de análise histórica do trecho Luís Correia – Piripiri da EFCP. De posse desse material, realizou-se uma visita ao local, objetivando aprofundar o conhecimento sobre esse patrimônio e o contexto em que está inserido, atualizar o levantamento métrico e registrar sua condição atual. A estação de passageiros e duas das residências encontravam-se fechadas naquele dia, enquanto os moradores das outras três não permitiram a entrada ou a fotografia mais próxima dos imóveis e não concordaram em dar depoimentos. O registro das condições materiais desses bens ficou, assim, limitado. Continuou-se então o processo de análise e formulação da proposta. Entende-se que o conhecimento e o raciocínio construídos acerca dos bens em estudo ao longo de todas as etapas deste trabalho constituem, por si só, uma contribuição ao conhecimento da significação do patrimônio ferroviário piauiense e do conjunto ferroviário de Capitão de Campos em

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particular. Além disso, explicita-se aqui a relevância desse conjunto em relação aos demais do estado, expresso no fato de sua ambiência estar largamente preservada e com poucas interferências de edificações próximas no entorno, bem como no fato de sua vila ferroviária apresentar características formais que a distinguem das mais antigas (como a de Parnaíba) e das mais recentes (como as de Altos e Campo Maior). Ainda na visita, através de conversas com residentes foi possível identificar elementos importantes sobre a significação desses bens para a população envolvente, além de diversos fatos sobre a cultura da cidade e os principais eventos e iniciativas do poder público. Registrou-se essas informações e mapeou-se os equipamentos urbanos relevantes para a proposta, bem como os principais eixos viários da cidade. De posse dessas informações, prosseguiu-se à elaboração da análise propriamente dita, expressa no tópico 7.1, que abrangeu os contextos histórico e urbano dos bens, sua arquitetura, identificação e análise dos valores patrimoniais, entre outros aspectos. Partiu-se, então, para a delineação da proposta, apresentada no tópico 7.2, elaborada a partir da análise e da demarcação de diretrizes e potencialidades do conjunto, sempre tendo como norteador seu caráter de patrimônio cultural.

7.1 IDENTIFICAÇÃO, CONHECIMENTO E DIAGNÓSTICO

A primeira parte da análise crítica consiste na identificação, conhecimento e diagnóstico das pré-existências do bem patrimonial e do contexto em que ele está inserido, incluindo sua localização, dimensões, histórico, valores, significação, análise tipológica e estilística, identificação dos materiais empregados, alterações sofridas e estado de conservação. Trata-se de uma etapa de especial importância para o trabalho. A Carta de Nizhny Tagil afirma que "todas as coletividades territoriais devem identificar, inventariar e proteger os vestígios industriais que pretendem preservar para as gerações futuras" (TICCIH, 2003, p. 05). Os inventários e a elaboração de tipologias são parte fundamental do estudo do patrimônio industrial, que permitem conhecer a amplitude e as características desse patrimônio. Por essa razão, devem ser aprofundados, amplos, tratar de toda a gama de aspectos relacionados e devem ser realizados antes de qualquer intervenção. Recomenda-se que o inventário inclua descrições, desenhos, fotografias e registros em vídeo, além da importância da memória dos que ali trabalharam. A Carta afirma também que é necessário empreender estudos arqueológicos (TICCIH, 2003).

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Destaca-se também a importância da investigação sobre esse patrimônio, que tem o papel de fundamentar as políticas de proteção ao patrimônio. Nelas, é necessário adotar uma perspectiva internacional, que auxilie na identificação dos sítios e seus tipos. Deve-se também definir e publicar critérios claros para avaliação desses bens, baseados na investigação apropriada, que também determinará os sítios de valor mais significativo e, sobretudo, as diretrizes para futuras intervenções. É necessário também "explicar ativamente" o significado e o valor desses sítios, através de publicações, exposições e diversas mídias (TICCIH, 2003). Além da Carta de Nizhny Tagil, os Princípios de Dublin também recomendam a documentação e o conhecimento sobre o patrimônio industrial como fundamentais para o entendimento deu seus valores e significação, assumindo importância crítica para sua conservação. A pesquisa e documentação deve abranger dimensões histórica, tecnológica e socioeconômica, proporcionando uma base integrada para conservação e gestão. A apresentação e comunicação da dimensão patrimonial desses bens, como a realizada através de trabalhos acadêmicos, possibilita que cumpram seu papel de fonte de conhecimento e levam ao reconhecimento como patrimônio cultural (ICOMOS; TICCIH, 2011).

7.1.1 Localização

7.1.1.1 Contexto Municipal

O município de Capitão de Campos está situado no estado do Piauí, região Nordeste do Brasil, a 118,5 km a nordeste de Teresina, capital do estado. Pertence à Mesorregião do Centro-Norte Piauiense e à Microrregião de Campo Maior (IBGE, 2016b). Figuras 120 e 121 – Localização de Capitão de Campos no Piauí; localização da mancha urbana, ferrovia e BR343 no município de Campitão de Campos.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, 2016, com informações de IBGE, 2016b, e Google Earth, 2016.

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A Tabela 03 apresenta um comparativo de dados estatísticos entre o estado do Piauí, a capital Teresina e o município de Capitão de Campos, com o objetivo de oferecer nuances à compreensão da realidade local. Tabela 03 – Dados estatísticos do Piauí, de Teresina e de Capitão de Campos.

Área (2015) População (2010) População estimada (2016) Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) (2010) Densidade demográfica estimada (2016)

Piauí

Teresina

Capitão de Campos

251.611,934 km² 3.118.360

1.391,981 km² 814.230

592,167 km² 10.953

3.212.180

847.430

11.205

0,646

0,751

0,583

12,766 hab/km²

608,79 hab/km²

18,922 hab/km²

681.055 (83,64 %) 2.050.959 767.557 (65,77 %) (94,27 %) 1.067.401 46.673 (34,23 %) (5,73 %) R$ 629,30 R$ 420,00 R$ 219,66 R$ 207,33 R$ 31.239.986.000 R$ 14.803.635.192 (0,59 % do BR) (47,39 % do PI) R$ 9.811,04 R$ 17.697,64 R$ 13.020.683.000 R$ 7.655.757.785 (41,68 %) (51,72 %) R$ 1.775.689.000 R$ 41.259.249 (5,68 %) (0,28 %) R$ 3.438.068.000 R$ 2.403.530.510 (11,01 %) (16,24 %)

6.985 (63,77 %) 6.347 (57,95%) 4.606 (42,05%) R$ 255,00 R$ 136,40 R$ 48.479.887 (0,16 % do PI) R$ 4.524,47 R$ 12.739.011 (25,20 %) R$ 2.390.136 (4,73 %) R$ 1.366.350 (2,70 %)

PIB (2013) – Administração e Serviço Públicos

R$ 9.572.866.000 (30,64 %)

R$ 2.583.016.376 (17,45 %)

R$ 31.753.472 (62,81 %)

PIB (2013) - Impostos

R$ 3.432.681.000 (10,99 %)

R$ 2.120.071.272 (14,32 %)

R$ 2.302.918 (4,56 %)

População alfabetizada (2010) População urbana (2010) População rural (2010) Renda per capita urbana Renda per capita rural Produto Interno Bruto (PIB) (2013) PIB per capita (2013) PIB (2013) – Serviços PIB (2013) – Agropecuária PIB (2013) – Indústria



Fontes: IBGE, 2016b; 2016c; 2016d.

Os dados do Censo 2010 permitem constatar que Capitão de Campos é um município de povoamento espraiado: apesar de apresentar densidade demográfica superior à do estado, a

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sua é 30 vezes menos que a teresinense. Esse dado tem relação com sua origem rural, assim como com a origem urbana de Teresina, além da matriz econômica dos dois municípios. Teresina apresenta população majoritariamente urbana (94,27 %), em proporção bastante superior aos índices estadual (65,77 %) e nacional (84,36 %), enquanto Capitão de Campos apresenta divisão mais próxima da metade, com 57,95 % da população no meio urbano e 42,05 % no rural. Capitão de Campos apresenta, também, indicadores abaixo da média do estado e dos da capital em termos de IDH (ambas estão na faixa média do Índice, mas nos polos opostos), população alfabetizada e renda per capita, nos meios urbano e rural. O Piauí apresenta o fenômeno de macrocefalia urbana, em que uma cidade é muito maior que as demais; isso está expresso em termos populacionais (Teresina possui 26,38 % da população do estado, enquanto os demais 223 municípios respondem pelos 73,62 % restantes), mas, principalmente, econômicos (a capital concentra 47,39 % do PIB estadual). Da mesma forma, percebe-se a amplitude da economia capitãocampense no universo do Piauí, em que seu PIB representa 0,16 % do total do estado e seu valor per capita é próximo da metade da média estadual. A composição do PIB local também demonstra particularidades da economia do município, uma vez que o setor agropecuário é proporcionalmente maior que o da capital, mas ficando ainda abaixo da média estadual, enquanto os setores de serviço e indústria são bem menos expressivos que as médias piauiense e teresinense. Essa composição do PIB, aliada aos demais índices mostrados, compõe um diagnóstico comum em cidades do interior do estado, em que a população não migrou para o meio urbano na mesma proporção que o país em geral (o que sugere características de agricultura familiar e com pouco emprego de tecnologia e maquinário no ambiente rural), o acesso aos serviços públicos, como saúde e educação, não é universal e o Estado é provedor direto do sustento de parcela significativa da população.

164 Figura 122 – Contexto urbano do conjunto ferroviário de Capitão de Campos.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, com imagem de Google Earth, 2016.

Na Figura 122, construída sobre uma imagem de satélite da cidade, estão demarcados o contorno aproximado da mancha urbana, o centro da cidade, o conjunto ferroviário e os principais eixos viários que orientam a organização do espaço. É possível constatar que a ocupação é bem mais densa no entorno imediato da BR-343, especificamente na margem oeste. É nessa região que se encontra a maior parte da presença institucional, a prefeitura, o mercado, a praça da igreja matriz e as principais escolas. Essa configuração espacial é perfeitamente coerente com a origem do assentamento, nos estabelecimentos comerciais que Acelino Coelho de Resende instalou na margem da rodovia. Percebe-se também o traçado da ferrovia, paralelo à rodovia, com a implantação do conjunto ferroviário deslocado a oeste do centro. Entre estes dois últimos, está a Rua José Fernandes, que se prolonga além dos trilhos e constitui o principal eixo transversal da cidade, orientando a ocupação naquele sentido. É bastante nítida também a relação entre os eixos identificados com o crescimento da mancha urbana, que acontece, como é típico, ao longo dessas vias mais importantes.

165 Figura 123 – Edifícios de uso institucional de Capitão de Campos.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, com imagem de Google Earth, 2016.

A Figura 123 apresenta o mapeamento das edificações de uso institucional existentes na cidade, abrangendo os equipamentos culturais (como o Centro de Arte e Cultura), educacionais (como as escolas e a biblioteca), de esporte e lazer (como o ginásio poliesportivo e a praça de eventos), e da administração pública (como a prefeitura municipal). Incluiu-se ainda o mercado, pelo sentido de “urbanidade” em geral assumido por essa tipologia, devido ao papel que cumpre de indutor de relações pessoais e econômicas travadas tanto no seu interior quanto no seu entorno, e as igrejas (de todas as denominações identificadas), pelo papel que cumprem também na formação de relações interpessoais. Alguns dos principais eventos da cidade acontecem nos lugares assinalados. A feira é realizada aos sábados, na praça do mercado público (11); o campeonato de futebol

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interclasses acontece no ginásio (7); os festejos do Sagrado Coração de Jesus ocorrem no mês de setembro e concentram-se no adro da igreja matriz (5); as festividades do aniversário da cidade, no mês de março, e o carnaval fora de época, em junho, costumam ocorrer na praça de eventos (10). Em janeiro acontecem as festas do Dia de Reis, nas comunidades. Figuras 124 a 129 – Igreja matriz de Capitão de Campos; playground do adro da igreja; prefeitura municipal; biblioteca municipal; ginásio poliesportivo; Praça Acelino Resende.

Fonte: Acervo de André Castelo Branco, 2016.

Também presente na cidade está a Casa de Fazenda da Dona Alemã, provavelmente a edificação mais antiga ainda remanescente na região. Segundo informações da Secult, foi

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construída no final do século XIX, sendo representativa da arquitetura rural piauiense do período. Está implantada numa área alta, em concordância com as demais edificações do tipo, com fachada perpendicular ao vale onde posteriormente foi implantada a rodovia, permitindo a observação de toda a área mais baixa. Sua fachada principal é avarandada, fazendo a transição entre o exterior e o interior, característica também comum nas casas da época. Os materiais empregados são madeira, pedra, barro e seus derivados, como também é comum na região. As paredes são de alvenaria estrutural, observando-se tijolos de adobe em boa parte da sua extensão, e o reboco é de barro. As telhas de barro estão apoiadas em estrutura de madeira, parte aparelhada (com seção retangular) e parte roliça, inclusive com a presença de carnaúba. O piso é de ladrilhos de barro, material também presente em dois fogões a lenha remanescentes no seu interior. Seu estado de conservação é precário. Figuras 130 a 133 – Casa de Fazenda da Dona Alemã.

Fonte: Acervo de André Castelo Branco, 2016.

Esses espaços estão concentrados majoritariamente no centro da cidade, na margem oeste da rodovia, especialmente no entorno da prefeitura municipal. O município é carente de equipamentos públicos: para a prática de esportes, há apenas o estádio municipal e o ginásio; o único parque infantil é aquele anexo ao adro da igreja matriz; além da biblioteca municipal

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(de funcionamento intermitente) há outras duas, nas escolas marcadas com os números 6 e 12 na figura; os espaços públicos que poderiam receber eventos culturais com uma plateia são a praça do mercado e a praça de eventos. Além dessa insuficiência, os edifícios institucionais existentes encontram-se aglutinados no centro, distantes, portanto, do conjunto ferroviário. Figura 134 – Usos do entorno imediato do conjunto ferroviário de Capitão de Campos.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, com imagem de Google Earth, 2016.

A Figura 134 apresenta os usos desenvolvidos nas edificações do entorno do conjunto ferroviário. É possível perceber que a ocupação da região é esparsa, com muitos vazios, e o uso é majoritariamente residencial unifamiliar. Os estabelecimentos comerciais são bares e mercearias, com as únicas exceções de uma barbearia e uma serraria, e, assim como os institucionais, estão concentrados na Rua José Fernandes, eixo orientado a noroeste-sudeste que atravessa os trilhos da EFCP. As seis edificações marcadas com a cor azul claro são a estação de passageiros e as residências da RFFSA, que formam o conjunto ferroviário no qual se irá intervir. Um número significativo dos lotes residenciais da área apresenta também o uso para o cultivo, o que contribui para que toda a área guarde características do meio rural. Percebe-se, também, que a porção do território a leste da ferrovia apresenta arruamento e ocupação

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ordenados, enquanto a oeste dela os lotes estão dispostos ao longo das poucas vias existentes, de traçado irregular, que pode ser decorrente de uma ocupação posterior e não disciplinada pelo poder público.

7.1.1.2 Área do conjunto

O espaço delimitado para o desenvolvimento das diretrizes é uma área de 24.408,54 m², situada pouco mais de 1.100 m a noroeste da Prefeitura Municipal de Capitão de Campos, que contém a antiga estação de passageiros e as residências dos trabalhadores da RFFSA, constituindo o conjunto ferroviário da cidade. Para definir seu contorno, foram adotados os seguintes limites, em sentido horário: a sudeste, a rua sem pavimentação e já com edificações implantadas, a oeste da Rua José Fernandes, e seu prolongamento (que constituem a faixa de domínio da ferrovia, superior ao mínimo de 15 m definido em lei, conforme marco original ainda preservado em um dos lotes limítrofes); a sudoeste, o lote que já conta com uma edificação, mais espaço suficiente para implantação de uma via local com caixa de 12 m de largura; a oeste, o lote que já conta com uma edificação, mais espaço suficiente para implantação de uma via local com caixa de 12 m de largura; a área murada que constitui os quintais das residências dos trabalhadores da RFFSA; a noroeste, o limite do lote que já conta com uma edificação, a oeste da Rua José Fernandes; o limite dos lotes que já contam com edificações implantadas, mais espaço suficiente para implantação de uma via local com caixa de 12 m de largura; a nordeste, o limite do lote que já conta com uma edificação, cujo acesso será feito por esta última via local a ser implantada.

170 Figura 135 – Delimitação do conjunto ferroviário de Capitão de Campos.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, com imagem de Google Earth, 2016.

Conforme exposto na análise do contexto urbano, trata-se de uma área que permanece não integrada completa e organicamente ao centro da cidade, ao qual está ligada apenas pela Rua José Fernandes. Constitui espécie de fronteira entre duas configurações de ocupação do espaço urbano: uma disciplinada, racionalizada pelo poder público e consolidada, a leste dos trilhos, e outra orgânica, de implantação espraiada ao longo de poucos eixos de traçado livre. Sua configuração formal mantém-se a mesma da época de operação da ferrovia, com a faixa de domínio (cujo mínimo legal é de 15 m para cada lado, podendo ser estendida caso a caso) livre, a estação de passageiros implantada de um lado, as residências dos trabalhadores da RFFSA do outro e os trilhos duplicados na região do pátio ferroviário, para permitir manobra e escape de trens e trolleys. O conjunto das edificações que serviram à ferrovia foi construído pelo DNEF e compreende uma estação de passageiros de 4ª classe, com 155,76 m²; uma casa de agente, com 85,07 m²; uma casa de feitor, com 61, 33 m²; uma casa de guarda-chave, com 61,33 m²; quatro casas para trabalhadores, com 221,92 m²; uma caixa d’água em concreto armado, com capacidade para 25.000 L; um poço tubular com bomba a diesel, construído pelo 2º BEC. As casas estão implantadas no limite oeste da faixa de domínio da ferrovia, obedecendo a uma hierarquia que coloca as casas dos funcionários de cargos superiores mais próximas à estação. Assim, a casa do agente, funcionário superior na hierarquia, é maior, mais bem trabalhada e

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está implantada mais próxima da estação de passageiros; as casas do feitor e do guarda-chave, iguais, menores e mais simples, vêm em seguida; e, por último, as quatro unidades habitacionais dos demais trabalhadores, organizadas em duas edificações com duas unidades geminadas cada, de fachada mais simples. Figuras 136 a 139 – A estação de passageiros; a passagem em nível dos trilhos sobre a Rua José Fernandes; a vila ferroviária; a vila ferroviária.

Fonte: Acervo de André Castelo Branco, 2016.

As seis edificações estão ocupadas por famílias de baixa renda, que se instalaram no local após a saída dos funcionários da RFFSA no início dos anos 1990. A configuração dos quintais dessas residências é irregular, com os “lotes” tendo larguras diferentes. Os muros frointeiriços apresentam incongruências de materiais e formas, passando inclusive por baixo da caixa d’água, sugerindo construções em épocas distintas e não determinadas pelos critérios da RFFSA. É possível que os próprios trabalhadores tenham feito essas divisões, como sugerido pelo depoimento de Pedro Veras, que afirmou também que o agente utilizava um espaço anexo à estação de passageiros para criação de animais.

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7.1.2 Levantamento arquitetônico

Após solicitação ao IPHAN do material componente do inventário já realizado sobre o patrimônio ferroviário, foram disponibilizadas pelo Instituto pranchas não editáveis em PDF contendo os seguintes desenhos: planta de situação do conjunto em escala 1:1000; planta baixa, fachadas lateral direita e frontal, corte e planta de cobertura da estação, todos em escala 1:100; planta baixa, fachadas frontal e lateral, corte e planta de cobertura de uma das residências, também em escala 1:100. De posse desse material, prosseguiu-se à visita para atualização do levantamento métrico da arquitetura. O acesso ao interior das edificações para medição não foi possível e, consequentemente, os desenhos elaborados pelo Instituto formaram a base do material gráfico empregado. Confrontando-se estes desenhos com as observações in loco, as fotografias produzidas pelo autor e as imagens de satélite, verificou-se algumas incongruências relacionadas à implantação das edificações e mesmo às suas dimensões. Assim, os desenhos do IPHAN foram reconstruídos, adaptados e corrigidos, para adequá-los à realidade observada e à identidade gráfica adotada. O material resultante, que inclui fachadas das residências que não existem no inventário do Instituto, está em pranchas A1 no Apêndice B.

7.1.3 Contexto histórico

Capitão de Campos teve origem rural, adquirindo características de povoamento urbano com a instalação do comerciante Acelino Coelho de Resende, nos anos 1930. Aquele povoado começou a crescer e a receber outros estabelecimentos comerciais especialmente após a chegada da rodovia, no início dos anos 1940. Era já o fim do primeiro governo Vargas, quando os investimentos na malha rodoviária superaram aqueles destinados à ferroviária no país, e a EFCP, implantada até Piripiri, transportava cargas e passageiros já em número consideravelmente menor do que o que se observou nos seus primeiros anos, devido ao declínio do comércio dos produtos extrativistas. O conjunto ferroviário de Capitão de Campos começou a ser construído pelo DNEF a partir de 1947, por empreitada. O Departamento edificou as cinco residências, a caixa d’água e a estação de passageiros, em cujo dístico consta o ano de 1950, data provável da sua conclusão. O 2º BEC posteriormente construiu o poço tubular que abastece o conjunto, a via permanente, a rede elétrica e telegráfica. Foi um processo diferente do que aconteceu nos trechos anteriores da linha, edificados pelo governo federal com preocupações com a adoção

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dos modelos já consolidados em outras partes do país e busca por uma unidade formal com linhas de outras regiões. Os trechos edificados após Piripiri apresentam formas simplificadas, caso também de Capitão de Campos. Após esse conjunto, diversos outros foram edificados da mesma forma, parte pelo DNEF e parte pelo 2º BEC, até a eventual ligação com a estação de Teresina no fim dos anos 1960. Nessa mesma década, houve a aquisição de duas locomotivas a diesel, o que gerou mudanças nas relações de trabalho. O foguista, profissional responsável por alimentar a caldeira da locomotiva, foi substituído por um segundo maquinista e o trem passou a não ter mais a necessidade de parar a cada 20 km para abastecimento. Os diversos pequenos conjuntos, conhecidos como estações de serviço, que haviam sido edificados ao longo da linha para esse fim perderam então parte de sua função. A EFCP, como outras linhas país afora, apresentava déficit e baixa densidade de passageiros e cargas transportados, que diminuiu ainda mais com a queda acentuada das exportações piauienses após a 2ª Guerra Mundial e a reorientação do comércio estadual para a rede rodoviária. A ligação entre Teresina e Paulistana foi interrompida nos anos 1970, pouco tempo após a ligação com Fortaleza ser concluída em 1972. A EFCP operou de maneira intermitente nos anos seguintes, com o trecho após Parnaíba sendo o primeiro a ser desativado. Houve uma iniciativa de retomar a navegação entre Teresina e Parnaíba nos anos 1980, a chamada Barca do Sal, assim como a operação do trem entre Parnaíba e Luís Correia como um expresso turístico, mas ambas as iniciativas não tiveram sucesso. As fontes são conflitantes sobre a data do encerramento definitivo das operações da linha, mas a maioria afirma que ocorreu nos anos 1980. Os funcionários da RFFSA instalados no conjunto de Capitão de Campos terminaram por ser desmobilizados, segundo depoimento de Pedro Veras, em 1994, quando tiveram que deixar as residências mantidas pela Rede. Segundo o ex-ferroviário, nos anos seguintes, as famílias que hoje habitam o local fizeram contato com um engenheiro da Rede, residente em Teresina, que as autorizou a se instalarem no local provisoriamente, onde permanecem hoje.

7.1.4 Análise tipológica

O conjunto em estudo é composto por seis edificações principais, implantadas de acordo com o esquema da Figura 140. Do lado leste da linha, está a estação de passageiros, de 4ª classe, à direita na figura; do lado oeste, a sul da Rua José Fernandes, encontram-se a casa do agente (1), as casas do feitor e do guarda-chave (2 e 3) e as casas de trabalhador (4 e 5),

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sendo estas últimas em duas edificações com duas unidades geminadas cada. Todas estão implantadas com a fachada principal paralela à linha dos trilhos, configurando assim o conjunto e o pátio ferroviário em seu meio. As residências dos funcionários da RFFSA estão alinhadas entre si pela fachada posterior; assim como a estação de passageiros, todas elas guardam entre si a característica de terem tratamento formal nas quatro fachadas, com diferentes elementos. Figuras 140 e 141 - Implantação do conjunto ferroviário de Capitão de Campos.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, 2016.

Além da configuração do pátio ferroviário na forma do vazio ao longo da via, o conjunto possui ainda uma outra peculiaridade: as massas de vegetação presentes além da faixa de domínio da ferrovia constituem verdadeiras muralhas verdes, que emolduram as edificações ao mesmo tempo em que as incorporam, à semelhança do que costuma ocorrer nas casas de fazenda tradicionais do estado. Essa conformação termina por gerar uma paisagem cultural bastante peculiar, em que o hibridismo entre o elemento vegetal e o elemento industrial/ferroviário é a característica central. Figura 142 - Conjunto ferroviário de Capitão de Campos visto a partir do sul.

Fonte: Acervo de Frederico Castelo Branco, 2016.

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A estação de passageiros segue a configuração de chalé comum à maior parte das estações da EFCP. Trata-se de um volume prismático simples, de planta retangular, com cobertura em telhado de duas águas, de telha plana, paralelo à linha, assentado sobre plataforma com rampas nas extremidades. O telhado se prolonga sobre as plataformas, apoiado em mãos-francesas. Nos frontões dos dois lados menores, há dísticos com o nome Capitão de Campos numa moldura retangular e, acima, o número 1950, provavelmente a data de conclusão da sua construção, numa moldura circular. Figuras 143 a 146 - A fachada sul da estação; o dístico da fachada sul; a fachada oeste; a fachada sul.

Fontes: Acervo de Frederico Castelo Branco, 2016; desenhos elaborados por André Castelo Branco, 2016.

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As paredes são construídas em alvenaria autoportante de tijolos maciços, assentados com argamassa e rebocados. o acabamento é feito em três faixas. A inferior, de 35 cm, é feita em reboco pintado na cor vermelha; a intermediária, de 35 cm até 1,30 m, é em chapisco; segue-se então um elemento saliente, em argamassa, de 8 cm de altura e 2 cm de espessura, e, acima dele, reboco com pintura em todo o resto da parede, na cor amarela característica do conjunto da EFCP. Na fachada oeste, existem dois retângulos ladeando a porta, indicando a posição quilométrica daquela estação na linha e a sua altitude, executados em tinta a óleo, provavelmente para garantir maior durabilidade. Figuras 147 e 148 - As fachadas norte e oeste da estação; a marcação da altitude na fachada oeste.

Fonte: Acervo de Frederico Castelo Branco, 2016.

Ao contrário das estações construídas entre Luís Correia e Piripiri, a estação de Capitão de Campos não adota uma modinatura regular, com cinco vãos de mesma largura, marcados pelas mãos-francesas, nos lados maiores e um só em cada lado menor. No caso em estudo, cada fachada apresenta um número diferente de aberturas. Na fachada oeste, voltada para os trilhos, há três portas iguais, a intervalos irregulares; na fachada sul, há três janelas, sendo uma maior e duas menores, iguais; na fachada leste, há quatro portas, sendo duas simétricas às da fachada oeste e outras duas menores; a fachada norte não apresenta aberturas. A maior parte dessas aberturas passaram por alterações. A edificação apresenta esquadrias variadas, provavelmente instaladas em diferentes momentos. Todas elas são feitas em madeira, em duas folhas, com abertura por giro; algumas apresentam almofadas, enquanto outra tem venezianas, espaços onde houve vidraças e uma bandeira fixa, também em madeira.

177 Figuras 149 e 150 - A fachada sul da estação; abertura central da fachada oeste.

Fonte: Acervo de Frederico Castelo Branco, 2016.

Assim como nos demais conjuntos da EFCP, a cobertura é feita de telhas planas, em dois panos com inclinação de 30° (cerca de 58 %), com cumeeira paralela aos trilhos. Seguindo o normal das estações na tipologia de chalé, o telhado apresenta grandes beirais, uma vez que a própria cobertura da estação também protege a plataforma, sem uma gare especificamente destinada a esse fim. Nos lados maiores, que dão para as plataformas, os beirais são de dois metros, sustentados pelas mãos-francesas, enquanto nos lados menores são de um metro, sustentados apenas pelas terças. Em todo o madeiramento da cobertura que é visível do lado de fora, há vestígios de uma pintura na cor vermelha, assim como em alguns elementos das esquadrias. Figuras 151 e 152 - A cobertura da fachada oeste da estação; vista de uma das mãos-francesas do telhado.

Fonte: Acervo de Frederico Castelo Branco, 2016.

A estação está assentada sobre uma plataforma de 1,40 m de altura, elemento também comum na linha. Essa plataforma envolve todo o contorno da estação, tendo 2,50 m de largura ao longo dos lados paralelos aos trilhos e 2 m ao longo dos lados perpendiculares. Nesses dois últimos, o acesso era feito por rampas, de 3,45 m de extensão em planta, resultando numa

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declividade de 40,58 %. Na fachada leste, oposta aos trilhos, há uma escada com 6 degraus. As rampas e a plataforma têm fechamento externo em tijolos, confinando o caixão do piso da parte superior, cimentada. Nas faces correspondentes aos lados maiores da estação, as juntas entre os tijolos são preenchidas com elementos salientes em argamassa. Figuras 153 e 154 - A plataforma da estação.

Fonte: Acervo de Frederico Castelo Branco, 2016.

Com relação à configuração interna, a estação de Capitão de Campos apresenta um programa de necessidades semelhante ao de diversas estações anteriores. A porção mais ao norte da planta configura um cômodo que possuía abertura para os dois lados da plataforma e para o espaço central, que possivelmente servia como depósito; a porção central da planta, com aberturas exteriores para os dois lados e distribuição de fluxos para os demais espaços, funcionava como saguão; já a porção mais ao sul da planta se divide entre um escritório (onde eram também vendidos os bilhetes e operado o telégrafo), um banheiro, um depósito e um segundo saguão, menor, com acesso para o exterior. Todo o interior possui piso em cimento alisado.

179 Figura 155 - Planta baixa da estação.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, 2016, a partir de informações de IPHAN, 2008b.

É possível perceber que a estação de Capitão de Campos insere-se no conjunto da EFCP ao adotar o partido do chalé, difundido através dos manuais ferroviários em diversos países desde o século XIX como solução adequada e de baixo custo para proporcionar proteção para a plataforma de embarque, nos casos em que a mesma edificação cumpre as funções de estação de passageiros e gare. A passagem do tempo também se faz presente na diferença entre essa edificação, erguida pelo DNEF entre 1947 e 1950, e as estações anteriores da EFCP: a estação em estudo não adota a modinatura com os cinco vãos de mesma largura no lado maior da planta e um vão só no lado menor, apresentando aberturas de tamanhos e disposições variáveis. Esta tendência de progressivo despojamento formal se confirmaria e aprofundaria nas estações erguidas em trechos posteriores no estado. Dentre as residências dos funcionários da RFFSA que compõem o conjunto, a maior, mais próxima da estação e com arquitetura mais trabalhada é a casa do agente. Segundo o termo de recebimento da obra do trecho, a edificação tem área de 85,07 m² numa planta também prismática, cujo pé-direito alto confere uma característica compacta à forma final, implantada sobre uma plataforma cimentada. Sua estrutura é de alvenaria autoportante de tijolos cozidos, assentados com argamassa, rebocados e pintados originalmente com o

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cromatismo branco e amarelo característico. Na fachada frontal, a transição entre exterior e interior é feita por um alpendre, cercado por balaustrada de alvenaria. As fachadas desta casa contam com diversos detalhes trabalhados em argamassa. A coluna da cobertura do alpendre e o embasamento da balaustrada recebem reboco talhado simulando textura de pedra, enquanto a parede frontal tem diferentes planos moldados no reboco e elementos que simulam uma balaustrada abaixo da janela. Esse trabalho com a configuração de planos na argamassa de reboco se repete nas demais fachadas. A cobertura é de telhas planas, mas o alpendre tem cobertura em telha colonial, que já existia em 2008, quando o IPHAN realizou o seu inventário. Os elementos decorativos em madeira que faziam o fechamento superior do alpendre não existem mais. Figura 156 - A casa do agente.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, 2016.

181 Figuras 157 e 158 - A casa do agente em 2008; a casa do agente em 2016.

Fontes: IPHAN, 2008b; acervo de Frederico Castelo Branco, 2016.

As duas residências seguintes são dois exemplares iguais da mesma tipologia, a casa do guarda-chave e a casa do feitor, que têm área de 61,33 m², segundo o termo de recebimento. São edificações menores que a casa do agente, portanto, e também de formas mais simplificadas. A volumetria é semelhante, exceto pela ausência do alpendre, apresentando também os detalhes no reboco com diferentes planos, o cromatismo branco e amarelo, a característica de elevar o corpo da edificação do solo através da implantação sobre uma plataforma cimentada e a cobertura por telhas planas. Nas duas residências, a entrada se dá diretamente pela porta da sala, que distribui o fluxo para os dois quartos e para a cozinha, de onde se acessa também a despensa e o banheiro. Também esse aspecto é representativo da arquitetura eclética, pois traz a inserção do banheiro no corpo da edificação residencial, inicialmente apenas um para servir a toda a edificação e localizado junto às áreas de serviço. Todos os cômodos apresentam piso em cimento alisado.

182 Figuras 159 a 161 - Casa da tipologia de guarda-chave e feitor, em 2008; planta baixa da casa; fachada da casa.

Fontes: Foto: IPHAN, 2008b; desenhos: elaborados por André Castelo Branco, 2016.

As últimas duas edificações residenciais do conjunto são as casas de trabalhador, quatro unidades habitacionais geminadas duas a duas. Tratam-se de edificações mais simples que as anteriores, com planta retangular e telhado de quatro águas, também feito com telhas planas e também implantadas sobre plataforma cimentada. São feitas em alvenaria autoportante de tijolos maciços cozidos, rebocada e pintada, com esquadrias em madeira. A único decoração das fachadas é feita por um elemento saliente em argamassa que arremata o topo das esquadrias e dá a volta nas edificações.

183 Figuras 162 a 164 - Casas de trabalhador em 2008; casas de trabalhador em 2016; fachada das casas de trabalhador.

Fontes: IPHAN, 2008b; acervo de Frederico Castelo Branco, 2016; desenho elaborado por André Castelo Branco, 2016.

O conjunto conta, ainda, com algumas outras edificações de funções diversas. Entre a casa de guarda-chave/feitor mais ao sul e a casa de trabalhador mais ao norte, está implantada uma caixa d'água em concreto, com capacidade para 25.000 L, construída pelo 2º BEC. O reservatório tem forma de paralelepípedo e está apoiado em quatro pilares de concreto de seção retangular. Aos fundos desta mesma casa de guarda-chave/feitor, encontra-se a casa de bomba, onde havia um motor a diesel que abastecia a caixa com a água de um poço tubular. Esta edificação tem pé-direito baixo, revestimento externo em chapisco, cobertura em telha plana e amplas aberturas horizontais com elementos vazados, como era comum ao longo de toda a EFCP nas oficinas e demais edificações destinadas à operação e manutenção de maquinário em que se precisaria de boas condições de ventilação.

184 Figuras 165 e 166 - Caixa d'água em 2008; casa de bomba em 2008.

Fonte: IPHAN, 2008b.

Por último, há também uma outra edificação, anexa à estação de passageiros, que, segundo depoimento de um morador local, se destinava ao depósito de ferramentas para manutenção da via e das composições. Todas as suas dimensões são menores que as da estação, marcadamente o pé-direito. Apesar disso, seus materiais, sistema construtivo, cromatismo e cobertura são os mesmos da edificação maior, exceto pelo fato de seu telhado ser de quatro águas. Figura 167 - Estação de passageiros e anexo em 2008.

Fonte: IPHAN, 2008b.

Nas proximidades da estação de passageiros, resta um moirão remanescente da cerca da faixa de domínio da ferrovia, feito em madeira com cravos de ferro para fixação do arame, e uma placa de marcação quilométrica, em chapa de ferro.

185 Figuras 168 e 169 - moirão remanescente da cerca da faixa de domínio da ferrovia; placa de marcação quilométrica.

Fonte: acervo de André Castelo Branco, 2016.

É possível perceber que as edificações do local em estudo têm diversos pontos em comum, desde a paleta de materiais e técnicas construtivas (alvenaria autoportante de tijolos cerâmicos maciços coberta com telhas planas, exceto pela caixa d'água em concreto armado) até o cromatismo amarelo e branco com esquadrias em tom marrom avermelhado. As residências foram construídas com materiais de qualidade, estrutura sólida e repertório formal que mesmo atualmente não são plenamente difundidos no entorno, além de contar com instalações hidráulicas que possibilitaram a localização do banheiro no corpo da edificação. A EFCP foi responsável pela introdução de materiais industrializados (como o tijolo maciço cozido e a telha plana, conhecida como Pará, Marselha ou francesa) e do repertório formal eclético nos lugares por onde passou, processo também observado em Capitão de Campos. A prefeitura, a biblioteca municipal e algumas residências adotaram a forma prismática com telhado de quatro águas, por vezes também soltando a edificação dos limites do lote. A estação de passageiros apresenta o emprego da tipologia de chalé, recomendada desde o século XIX para emprego em regiões de menor movimento pelos manuais ferroviários E de emprego quase universal na linha. No entanto, por ter sido edificada por um órgão diferente em momento posterior, cronológica e economicamente distinto, e por ser de 4ª classe, percebe-se que a tipologia foi adaptada. Seu tamanho é reduzido em relação às estações dos trechos entre Luís Correia e Piripiri e suas formas são mais despojadas, o que provavelmente guarda relação com a conjuntura econômica pós-guerra em que foi construída, já durante o declínio aprofundado das exportações do estado. Além disso, a modinatura com cinco vãos de larguras iguais nas fachadas principais também não foi empregada nesse caso, em que cada fachada possui número e tamanhos diferenciados de aberturas.

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Quanto à implantação, as edificações assumem a configuração de pátio ferroviário, em que os edifícios que servem à ferrovia estão colocados ao longo dos trilhos, com sua frente voltada para eles. Desta forma, configura-se um espaço ou "miolo" aberto ao centro, por onde passa a via férrea. No caso específico, esse conjunto está ainda separado em dois agrupamentos menores pelo traçado da Rua José Fernandes, em que as residências, caixa d'água, poço e casa de bomba ficaram ao sul da rua e a estação de passageiros e o anexo ficaram ao norte. Apesar disso, o esquema de implantação das edificações e sua configuração como conjunto permanece perfeitamente preservado, uma vez que o tecido urbano envolvente teve crescimento escasso e pouco compacto, sempre com edificações de pequeno porte e nunca avançando sobre a faixa de domínio da ferrovia.

7.1.5 Análise dos valores e significação

O conjunto ferroviário de Capitão de Campos é um patrimônio cultural relevante, portador de significação e de valores culturais e socioeconômicos. A análise pauta-se no sistema de valores descrito por Figueiredo (2008). Entre os valores culturais, é possível afirmar que os bens apresentam um valor de identidade para a população envolvente, que lembra do trem e relata as memórias que guarda da sua operação. O morador da casa logo em frente à estação, que cresceu no local, se recorda do rastro de fumaça deixado pela locomotiva a vapor no horizonte e do sustos que levava com seu apito quando era criança e brincava ali, que o levavam a bater a cabeça na parede do anexo da estação. Os antigos funcionários da RFFSA ainda vivos moram nas proximidades, como Pedro Veras, que foi entrevistado ao longo da pesquisa, e Seu Doca, antigo feitor. Ambos lembram de diversos episódios das suas trajetórias pela empresa, que tornou-se um fator determinante para eles após os anos que lá passaram. As edificações e a via férrea apresentam valor técnico, pela introdução de materiais como ferro, concreto, tijolos e telhas industrializados, e de técnicas como a perfuração do poço, a moldagem da caixa d'água em concreto, a execução da instalação elétrica e telegráfica relacionada à operação da linha (cujos fios ainda podem ser vistos cruzando os trilhos a grande altura) e a execução da infraestrutura componente, como o bueiro presente no local, e a própria operação e manutenção do material rodante, que envolvia diversas ferramentas. A presença da ferrovia em pequenas cidades e povoados, à semelhança de Capitão de Campos, costuma ser o elemento que foi responsável pela adoção de um horário padronizado para

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todas as atividades, uma vez que a operação do trem seguia uma mesma marcação do tempo ao longo de toda a linha. Apresentam também valor artístico, expresso na arquitetura eclética das edificações, cujo repertório de elementos decorativos é relativamente amplo, bem executado e inclui materiais de boa qualidade. Apesar do despojamento formal dessa estação em relação às mais antigas da mesma linha, percebe-se que houve preocupações estéticas na sua construção, na forma do acabamento dado ao peitoril das janelas, do piso externo em cimento estampado, do acabamento da alvenaria em três faixas distintas, do entalhe trabalhado das peças das mãosfrancesas e das esquadrias. As residências têm um repertório de elementos decorativos significativo, na forma dos diversos detalhes feitos em argamassa que resultam num efeito mural e mesmo volumétrico, em alguns casos, que inclui frisos, textura semelhante a pedra e entalhes simulando aduelas de cantaria. Está presente também o cromatismo amarelo, brando e marrom avermelhado que foi difundido no conjunto da EFCP. Quanto à originalidade, destaca-se que esta vila ferroviária é aquela, dentre os conjuntos da RFFSA remanescentes em meio urbano no Piauí, que apresenta os exemplares de arquitetura mais bem trabalhada. Ainda que a estação de Capitão de Campos seja de 4ª classe, a de Teresina apresente a sede de maior porte e a de Parnaíba apresente um conjunto de edifícios com estética Art Déco marcante, as residências dos funcionários da Rede no conjunto em estudo se destacam das demais da linha pelo seu maior porte e altura, pelo repertório decorativo mural, pelo volume mais assemelhado a um bloco compacto e pela configuração de um pátio ferroviário por sua implantação relativa à estação de passageiros. As demais vilas da linha apresentam residências mais despojadas, com formas menos significativas, muitas vezes são em menor número e em diversos casos não estão implantadas de modo a conformar um pátio. Nas Figuras 170 e 171 é possível observar que as residências das outras estações da EFCP costumam ter formas mais despojadas que as observadas em Capitão de Campos.

188 Figuras 170 e 171 - vila ferroviária de Parnaíba; casa de agente da estação de Teresina.

Fontes: IPHAN, 2008a; 2010.

O valor histórico desse conjunto se faz presente pelo papel que cumpriu num importante ciclo econômico do estado, no transporte dos produtos do extrativismo para exportação. As edificações ali presentes, bem como a via férrea e toda a infraestrutura relacionada, guardam testemunho desse processo, cujas consequências são sentidas ainda hoje. O ciclo do extrativismo transformou diversos aspectos da vida no Piauí; entre eles, a cultura material, uma vez que o aporte de capital e o contato com novos mercados introduziu novas formas de viver e consumir que demandavam novos objetos e novos edifícios. A arquitetura eclética chegou ao Piauí através desse ciclo e foi logo assimilada pela ferrovia, que frequentemente foi o vetor de sua introdução nos lugares onde estabeleceu estações. Apesar de ter sido construído já num momento de declínio desse ciclo e do modal ferroviário no país de um modo geral, o conjunto ferroviário de Capitão de Campos guarda ainda o testemunho dessa conjuntura, do trabalho realizado ali (ainda vivo na memória dos trabalhadores da Rede, residentes no entorno do conjunto) e das formas e características da arquitetura ferroviária desenvolvida no estado. Quanto aos valores socioeconômicos, identifica-se num primeiro momento que o conjunto ferroviário desempenha papel quase nulo na geração de renda. Os trens deixaram de operar ainda nos anos 1990 e as edificações que ficaram estão ocupadas por famílias de baixa renda, com uso residencial. Se há alguma geração de renda, se dá através da criação de alguns animais e do plantio de gêneros alimentícios, como mamão e milho, desenvolvido nos quintais das residências e no entorno imediato da estação de passageiros pelas famílias que ali residem hoje. As residências do conjunto apresentam valor funcional bastante preservado, uma vez que, apesar de demandarem manutenção e alguns reparos, mantém boas condições de uso mesmo com as mudanças nas formas de viver e morar ocorridas nas últimas décadas. A

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desativação da linha, o fim da operação do trem e a extinção da RFFSA tornaram o conjunto obsoleto enquanto abrigo de trabalhadores dedicados à atividade ferroviária, mas o valor daquelas residências como espaço de morar permanece. A estação de passageiros perdeu seu valor enquanto edificação que serve à operação do trem e não há projetos consistentes para retomada da operação da linha; caso venha a ocorrer, é bastante provável que essa retomada demande a execução de infraestrutura completamente nova, devido às más condições de conservação da via em diversos trechos e às necessidades das novas ferrovias que têm sido construídas no país (que têm bitola maior, por exemplo). Assim, não se considera que a estação de passageiros retenha valor funcional para a atividade ferroviária diretamente. Como instrumento de preservação e transmissão da memória que carrega, considera-se que o conjunto possui valor educativo potencial considerável, podendo vir a ser utilizado para rememorar os testemunhos da sua época de operação, do cenário maior no qual ela ocorreu, da atividade ferroviária em geral e no Piauí em particular, além de um período importante da história do estado. Há de se considerar a sua destinação para esse fim. Por último, considera-se que o valor social presente no conjunto seja bastante restrito, uma vez que não há atividades tradicionais desempenhadas ali ou no seu entorno imediato que tenham relação com aquele espaço. O valor político do bem também não é significativo para o estudo. A essa análise, fundamentada na teoria "generalista" do restauro, acrescenta-se outra, fundamentada nos documentos específicos que tratam do patrimônio industrial: a Carta de Nizhny Tagil e os Princípios de Dublin. Segundo a Carta, as razões que justificam a preservação dessa categoria de patrimônio decorrem principalmente do seu caráter de testemunho de atividades humanas que têm profundas consequências históricas. Destaca-se, assim, o valor que o conjunto ferroviário em questão tem como testemunho da operação da ferrovia no Piauí em geral e em Capitão de Campos especificamente. Esse testemunho é diverso, englobando a vivência dos trabalhadores responsáveis pela manutenção e abastecimento, que faziam o roço do entorno, manutenção e troca de trilhos, cravos, dormentes e material de lastro e aterro, limpeza de bueiros, manutenção de locomotivas e vagões, acoplamento das composições, corte e estocagem de lenha, extração e reservação de água, manutenção de ferramentas e equipamentos, estocagem e manutenção de material rodante sobressalente, entre outras; dos funcionários responsáveis pela operação do trem propriamente dito, como foguistas, maquinistas, guarda-freios, carregadores e conferentes; dos funcionários que operavam a estação e as funções relacionadas a passageiros e cargas, como venda de bilhetes, despacho de bagagens e cargas, operação do telégrafo, entre

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outras; dos funcionários administrativos da EFCP e, posteriormente, da RFFSA; dos passageiros e comerciantes que utilizavam os serviços; da população que vivia no entorno do equipamento. São também significativas as experiências daqueles espaços como de vivência, em dois momentos: no primeiro, com os funcionários da RFFSA, que desenvolviam atividades relacionadas à operação da via férrea, e no segundo, com as famílias que ocuparam as edificações após o fim da operação da Rede. Trata-se de uma multiplicidade de experiências e memórias, que extrapola o escopo de um Trabalho Final de Graduação em Arquitetura e Urbanismo, só podendo ser apropriadamente trabalhado por uma equipe multidisciplinar que dê conta das suas inúmeras formas e manifestações, como recomenda toda a teoria do restauro e as cartas patrimoniais. Trabalhos posteriores podem partir do relato do ferroviário Pedro Veras, colhido para este TFG, e dar seguimento ao registro das experiências relacionadas ao conjunto ferroviário de Capitão de Campos futuramente. A Carta de Nizhny Tagil define o valor social de maneira diferente daquela apresentada por Figueiredo (2008). Segundo o documento, este valor consiste no caráter de registro da vida das pessoas que se relacionaram com aqueles bens, assumindo assim um valor identitário (TICCIH, 2003). Trata-se, portanto, de uma articulação entre valores histórico, social e identitário, intimamente relacionado com as atividades desenvolvidas ali. O valor científico e tecnológico também está relacionado ao trabalho, ao maquinário e às ferramentas empregadas ali. Pouco há de vestígios nesse sentido além da memória das pessoas, uma vez que o antigo abrigo das ferramentas hoje tem outra destinação e não há material rodante agregado ao conjunto. O Museu do Trem do Piauí, instalado na estação de Parnaíba, é um exemplo da preservação desses valores, uma vez que guarda objetos, ferramentas e mesmo componentes de locomotivas em seu acervo, ilustrado também com relatos e imagens sobre as atividades desempenhadas pelos ferroviários. Também é digno de nota, nesse sentido, o fato de as edificações relacionadas à ferrovia terem sido pioneiras no emprego de materiais de construção industrializados, como os tijolos, as telhas, o cimento e as tintas, que não eram difundidos como atualmente. Esse aspecto está relacionado ao seu valor estético, pois a sua arquitetura é significativa dentro do conjunto da EFCP pelo trabalho realizado nas fachadas das residências, de qualidade destacada. A Carta de Nizhny Tagil afirma que "estes valores são intrínsecos aos próprios sítios industriais, às suas estruturas, aos seus elementos constitutivos, à sua maquinaria, à sua paisagem industrial, à sua documentação e também aos registos (sic) intangíveis contidos na

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memória dos homens e das suas tradições" (TICCIH, 2003, p. 04). Daí decorre que o conhecimento produzido e registrado sobre os bens materiais desse conjunto, bem como a memória da população que o vivenciou, presentes aqui nesse trabalho, são também um bem patrimonial, dotado de sua própria importância. Isso investe o trabalho de pesquisa e documentação de maior relevância, pois lhe confere caráter também de instrumento de salvaguarda, além de conhecimento.

7.1.6 Modificações e situação atual

Como dito, as edificações do conjunto encontram-se atualmente ocupadas por famílias de baixa renda, que não permitiram a entrada para realização de registro e documentação adequados do seu interior. Assim, conta-se com o registro detalhado apenas de uma das residências de feitor/guarda-chave e da estação de passageiros, cujas plantas baixas foram produzida pelo IPHAN como parte do seu Inventário de Conhecimento sobre o sistema ferroviário no Piauí, de 2008. A análise das demais edificações ficou, portanto, restrita à sua volumetria e a seu exterior. Figura 172 - Planta baixa da estação.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, com informações do IPHAN, 2008b.

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Através da observação do exterior da estação, foi possível observar que este encontrase nas mesmas condições de alteração encontradas pelo IPHAN em 2008, quando da elaboração do inventário de conhecimento. A volumetria encontra-se, em geral, íntegra, com modificações nas aberturas. Na fachada oeste, as duas aberturas mais externas foram entaipadas; a da direita, completamente, enquanto na da esquerda foi instalada uma janela. Na fachada sul, os vãos encontram-se preservados, enquanto as esquadrias são diferentes entre si (cf. Figuras 146 e 167), sugerindo alterações ao longo da história. Aquela que mais guarda relação com as esquadrias das residências é a do banheiro. A fachada leste apresenta entaipamento de dois vãos, em que foram instaladas esquadrias de janela. O vão que dá acesso ao saguão, originalmente uma janela, foi parcialmente ampliado, sendo instalada uma folha de porta na sua metade direita. Já o vão de acesso ao depósito (que originalmente era um banheiro, segundo inscrição remanescente acima da abertura) teve sua esquadria retirada. A condição das divisórias internas não pôde ser auferida e, portanto, a planta baixa baseou-se naquela produzida pelo IPHAN. Figuras 173 e 174 - Planta baixa da residência de tipologia de feitor/guarda-chave; foto do acréscimo.

Fontes: desenho elaborado por André Castelo Branco, 2016; foto do acervo de Liana Lima, 2008.

A residência de feitor/guarda-chave a cuja planta se teve acesso apresenta algumas alterações em divisórias internas, executadas em alvenaria de tijolos de seis furos, o que resultou em paredes mais esbeltas, marcadas na Figura 173. As paredes originais, executadas em alvenaria de tijolos maciços, estão marcadas em cor mais escura. Além disso, é nítido que houve o acréscimo posterior do volume que abriga a despensa e o banheiro, que apresentam volumetria, materiais e ornamentação diferentes. Não foi possível, porém, precisar quando as alterações foram realizadas e nem como seria a planta original, pela falta de registros. Além desses dois casos específicos, em que se teve acesso a plantas produzidas pelo IPHAN, foi possível observar apenas modificações externas nas residências. As duas

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residências de trabalhador, com duas unidades geminadas cada, apresentam também um acréscimo na sua porção posterior, onde as famílias instalaram suas cozinhas. nesses volumes, é também possível observar a diferença de pé-direito, materiais e acabamento em relação ao corpo principal da edificação. Figuras 175 e 176 - O acréscimo nas residências de trabalhador.

Fonte: elaborado por André Castelo Branco, 2016.

Todas as residências apresentam a troca parcial ou total das esquadrias externas, observando-se diversos modelos. Figuras 177 a 179 - Diferentes esquadrias observadas no conjunto.

Fonte: acervo de Liana Lima, 2008.

194 Figuras 180 a 182 - Diferentes esquadrias observadas no conjunto.

Fonte: acervo de Liana Lima, 2008.

Todas as edificações estão atualmente ocupadas por famílias de baixa renda, que cercaram áreas em volta para constituir lotes, em que realizam o plantio de gêneros alimentícios e a criação de animais como porcos e cabras. Um acervo mais completo de desenhos sobre as alterações sofridas por essas edificações encontra-se no Apêndice C.

7.1.7 Mapeamento de danos

Todas as edificações apresentam danos significativos, decorrentes da falta de manutenção adequada e da exposição às intempéries. Os desenhos com o mapeamento de danos encontram-se no Apêndice C. A estação de passageiros apresenta perda de cobertura nos beirais dos lados menores, a norte e a sul, em que apenas as terças permanecem, e estas encontram-se danificadas pela exposição às intempéries. O restante da cobertura, em telhas cerâmicas do tipo francesa, apresenta perdas de algumas pequenas porções e o madeiramento está gasto pela falta de manutenção, apresentando xilófagos em alguns pontos.

195 Figura 183 - Planta de cobertura da estação.

Fonte: elaborado por André Castelo Branco, 2016.

Figura 184 - Planta baixa da estação.

Fonte: elaborado por André Castelo Branco, 2016.

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As paredes são feitas em tijolos cerâmicos maciços cozidos, assentados com argamassa; os blocos e a argamassa de assentamento estão razoavelmente íntegros. O reboco, cuja cor sugere ser a base de cal, está danificado pela umidade, exposição às intempéries e falta de manutenção. Sua pintura está manchada e borrada em diversos lugares (o que sugere que não se trata de caiação, uma vez que esta resulta numa membrana rígida que se solta em forma de placas com a exposição à umidade) e algumas seções do reboco se perderam, desprendendo-se da alvenaria. A plataforma apresenta fissuras e o afundamento em sua superfície, além do desaprumo das paredes de contenção em alvenaria, o que sugere perda de material. Figura 185 - Fachada oeste da estação.

Fonte: elaborado por André Castelo Branco, 2016.

Figura 186 - Fachada norte da estação.

Fonte: elaborado por André Castelo Branco, 2016.

As residências apresentam menos danos, mas todos também causados pela falta de manutenção e exposição às intempéries. Todas apresentam a mesma paleta de materiais da

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estação de passageiros, assim como os mesmos danos: perda de partes do reboco e da cobertura, manchas por umidade. Figuras 187 e 188 - Fachadas frontal e lateral esquerda da casa de agente.

Fonte: elaborado por André Castelo Branco, 2016.

Figuras 189 e 190 - Fachadas frontal e lateral esquerda da casa de feitor/guarda-chave.

Fonte: elaborado por André Castelo Branco, 2016.

Figuras 191 e 192 - Fachadas frontal e lateral esquerda da casa de trabalhador.

Fonte: elaborado por André Castelo Branco, 2016.

7.1.8 Legislação incidente

Por se tratar de um conjunto de imóveis construídos pelo governo federal e de propriedade anterior da RFFSA, foi necessário consultar a legislação pertinente a bens imóveis ferroviários.

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A Lei nº 11.483/2007, que extingue a RFFSA, transfere a propriedade de seus bens imóveis para a União. O artigo 8º da lei transfere ao DNIT os bens imóveis operacionais e os não operacionais que compõem a reserva técnica necessária à expansão e ao aumento da capacidade de prestação de serviço ferroviário (BRASIL, 2007). O Decreto nº 7.929/2013 regulamenta a Lei nº 11.483/2007, no que se refere à avaliação da vocação logística dos imóveis não operacionais da RFFSA. O artigo 1º do decreto define como faixa de domínio da ferrovia "[...] a porção de terreno com largura mínima de quinze metros de cada lado do eixo da via férrea [...]" (BRASIL, 2013, p. 01). Porém, o artigo 2ª da mesma lei, em seu inciso IV, afirma que não constituem reserva técnica os imóveis "inseridos em trechos erradicados não integrantes do Sistema Federal de Viação" (BRASIL, 2013, p. 01). Este é o caso da EFCP, uma vez que ela foi desativada e não faz parte do Subsistema Ferroviário Federal do Sistema Nacional de Viação (SNV). Desta forma, é possível concluir que os imóveis do conjunto ferroviário de Capitão de Campos não constituem reserva técnica do SNV. O conjunto não tem salvaguarda estatal enquanto bem patrimonial. Não é tombado a nível federal (IPHAN, 2016) ou estadual (PIAUÍ, 2016) e não está inscrito na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário (IPHAN, 2015). Porém, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 216, determina que "o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação" (BRASIL, 2016). Trabalhos como esse contribuem para a preservação ao colocar a produção acadêmica a serviço da salvaguarda desse patrimônio, investigando, produzindo e incentivando o conhecimento sobre o bem. Propostas como a delineada aqui, que incluem a proposição de novos usos para bens culturais ferroviários não operacionais, têm também o potencial de abrir uma nova frente para a preservação do patrimônio ao contribuir para sua eventual inscrição na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, uma vez que esse instrumento só é aplicado pelo IPHAN com a cessão de uso para um interessado que desenvolverá atividades ali.

7.2 DIRETRIZES PARA PRESERVAÇÃO INTEGRADA

Após a análise anterior, prosseguiu-se à definição das diretrizes para preservação integrada desse patrimônio. Partiu-se da teoria do restauro, conforme analisada no referencial teórico, para identificar os valores patrimoniais a preservar e as potencialidades desse espaço.

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Realizou-se extensa e aprofundada análise, consolidada no tópico 7.1. Essa atividade assumiu condição prioritária, uma vez que se apurou que o conhecimento e a produção acadêmica sobre o tema ainda são incipientes no Piauí. Além disso, esse trabalho de conhecimento, análise e reflexão, com difusão dos resultados, constitui, por si só, um importante instrumento de preservação, fato que é reforçado pelos teóricos do restauro e consolidado em diversas cartas patrimoniais e no artigo 216 da Constituição Federal. Na análise de valores, conduzida segundo a metodologia prescrita pelo restauro crítico, percebeu-se que esse bem apresenta valores culturais e socioeconômicos relevantes, relacionados ao seu papel na história da ferrovia e do estado do Piauí, ao modal de transporte ferroviário, à arquitetura do conjunto, à sua utilização e ao seu contexto. Manoela Rufinoni (2013) afirma que o bem patrimonial industrial urbano deve ser analisado tanto à luz da sua rede de relações horizontais (no seu contexto urbano) quanto na rede de relações verticais (na conjuntura econômica), além de colocar que a utilização continuada deve ser encarada apenas como meio para garantir a preservação, não como fim; essa preservação deve ser também uma premissa do planejamento, não acessório. Tendo em mente a teoria de Rufinoni (2013), analisou-se as relações horizontais, em que se concluiu que o conjunto ferroviário em estudo está localizado em área distante do centro, com pouco acesso a equipamentos de educação, lazer, cultura e esporte e cuja ocupação se dá de forma desordenada, esparsa e ao longo de vias de traçados e larguras irregulares, sem pavimentação. A cidade tem economia dependente do setor público, que responde por mais da metade do PIB local, e todos os outros setores da economia são menores que a média do estado. Quanto às relações verticais, esse conjunto faz parte de um trecho ferroviário desativado, construído em antecipação a uma demanda econômica que não se concretizou, e que serviu a um mercado (a exportação de produtos extrativistas) que declinou, assumindo proporção muito menor à original e reorientando-se para a malha rodoviária, em torno da qual a própria cidade de Capitão de Campos surgiu e se desenvolveu. Dentre esses produtos, a carnaúba mantém especial relevância, uma vez que se concentra especialmente nos estados do Ceará, Piauí e Maranhão e sua cera, com inúmeras aplicações industriais, é extraída e beneficiada de modo artesanal nesses estados. Assim, considerou-se que esse conjunto apresenta potencialidades para suprir as demandas locais por equipamentos urbanos, infraestrutura educacional, de lazer, esporte e cultura e incentivos ao setor produtivo. Como diretrizes, buscou-se preservar os valores patrimoniais através da preservação tanto dos seus vestígios materiais (as edificações propriamente ditas) quanto do esquema de implantação e dos eixos visuais desimpedidos,

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uma vez que a conformação do pátio ferroviário, em que todas as edificações estão reunidas em torno de um espaço livre, tendo os trilhos ao centro, constitui também patrimônio relevante. Buscou-se também resgatar o caráter de espaço de trabalho, tão relevante para o patrimônio industrial, através das seguintes medidas: reinserção na economia da carnaúba, em que outrora foi relevante, através da criação de um espaço para capacitação de pessoal e beneficiamento do pó de carnaúba, para produção da cera; criação de um espaço para capacitação de pessoal e produção de bordados, atividade importante para a economia local e que já conta com incentivos da prefeitura; e estabelecimento de um Memorial Ferroviário no edifício da estação de passageiros. Delimitada a área de atuação e as linhas gerais (preservação dos valores patrimoniais, suprimento de demanda por equipamentos e incentivo à economia solidária), decidiu-se por diretrizes para preservação integrada que configuram a forma de um parque urbano, compatível com a escala, o contexto e a morfologia do conjunto. A planta explicativa está no Apêndice D. Figura 193 - Zoneamento proposto para o conjunto.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, 2016.

Decidiu-se, primeiramente, delimitar a área de atuação sobre o conjunto com a previsão de ruas locais, com caixa de 13 m. A seguir, previu-se a edificação de mais uma residência, logo à esquerda das pré-existentes, para a acomodação da família que atualmente ocupa a estação de passageiros, de modo a garantir o seu direito à moradia, sua permanência na região e seu beneficiamento com as ações propostas. Locou-se na área ao sul da Rua José Fernandes espaços para uma quadra poliesportiva, uma pista de skate, um bloco com banheiros, lanchonetes, áreas de convivência, academias ao ar livre para adultos com a locomoção preservada e para cadeirantes e playground infantil. Recomenda-se que a área

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imediatamente à frente das residências dos ferroviários seja mantida livre, preservando a conformação do pátio ferroviário e possibilitando a visão desimpedida do conjunto. A via férrea propriamente dita, elemento que corta a área de intervenção de norte a sul, devem receber papel de destaque. Sugere-se a instalação de um deck em madeira, facejando a face superior dos trilhos, em toda sua extensão. Dessa forma, restabelece-se o ato de percorrer a via, agora a pé, ao longo de todo o espaço, tornando os trilhos o elemento de ligação de toda a proposta. Ao mesmo tempo, o deck é uma solução reversível e que preserva a legibilidade, uma vez que não é confundível com elementos originais e permite a visão dos trilhos e da extremidade dos dormentes. Figura 194 - Deck em via férrea de Jerusalém.

Fonte: http://www.haaretz.com/2.203/jerusalem-s-new-park-turns-old-train-tracks-into-an-urban-oasis-1.423874. Acesso em: 01 dez. 2016.

Na área ao norte da rua pré-existente, decidiu-se manter o entorno imediato da estação, especialmente logo ao sul dela, desimpedido, de modo a manter a implantação original isolada e as vistas desimpedidas. O edifício deverá ser restaurado através de procedimentos como uma lavagem a pressão de toda sua superfície, recomposição do reboco e da pintura no cromatismo amarelo, reabertura dos vãos entaipados, troca de todas as esquadrias por novas, em madeira, seguindo uma mesma identidade visual, revisão completa da cobertura, com troca das terças e das telhas comprometidas por outras, artesanais, de mesmo modelo. Todos os elementos em madeira (esquadrias e madeiramento da cobertura) devem receber acabamento em cera de carnaúba, que é durável e está em conformidade com as diretrizes da proposta. Recomenda-se que o piso da plataforma seja removido, a alvenaria de contenção

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reaprumada, o material de aterro recomposto e compactado hidraulicamente e, por fim, que seja edificado novo piso em concreto estampado, com paginação igual à original. Deve ser instalada uma rampa em madeira, também reversível, para acessibilidade a partir da fachada oeste, conforme planta. As divisórias internas permanecerão e o piso será recomposto, alisado e encerado. Figura 195 - Proposta para a estação.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, 2016.

Figura 196 - Proposta para a fachada oeste da estação.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, 2016.

203 Figura 197 - Proposta para a fachada leste da estação.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, 2016.

Figura 198 - Proposta para a fachada sul da estação.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, 2016.

Figura 199 - Proposta para a fachada norte da estação.

Fonte: Elaborado por André Castelo Branco, 2016.

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Na extremidade nordeste, prevê-se espaço com palco para apresentações musicais e teatrais e, na extremidade noroeste, espaços para capacitação de pessoal e produção de cera de carnaúba e de bordado, além da administração dos dois primeiros. Sugere-se, para esses espaços, edificações com volumetria semelhante à da estação, de modo a compor um conjunto, mas cuja escala não ultrapasse a dela, de modo a garantir a apreensão adequada da edificação mais importante do conjunto. Uma possibilidade é utilizar uma cobertura única em telha termoacústica e esquadrias em alumínio e vidro, garantindo a legibilidade. Sugere-se que todas as calçadas recebam pavimentação em blocos intertravados de concreto sem finos, drenante, enquanto as áreas de convivência, academias e playground sejam pavimentadas em pedra natural de Castelo, produto local, durável e que também fez parte da história da ferrovia como um dos materiais transportados pela EFCP. Para a pista de skate, recomenda-se pavimentação em granilite. Para as demais áreas, grama resistente à insolação intensa da região. As palmeiras previstas são todas carnaúbas, utilizadas como elemento de marcação, e as demais árvores, utilizadas para sombreamento, são espécies nativas, como o oiti e o ipê. Espera-se, assim, compor uma paisagem em conformidade com as pré existências, ao mesmo tempo em que se garante a preservação do patrimônio cultural e se atende às demais necessidades da população.

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8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho buscou contribuir para o conhecimento da questão ferroviária no Piauí e para a preservação do seu patrimônio cultural em várias frentes. Definidos os recortes de espaço e de tempo, identificou-se o referencial teórico pertinente para a melhor compreensão do objeto de estudo; buscou-se estudar de forma ampla a produção teórica sobre cidade, arquitetura e sítio histórico, que tratam da natureza do objeto; em seguida, passou-se ao estudo da teoria do restauro, que embasou todo o tratamento, análise e conhecimento dos bens em estudo, desde a compreensão do estatuto do bem patrimonial até os princípios norteadores da ação sobre ele; fez-se então um apanhado de toda a prática preservacionista institucionalizada, no Brasil e no Piauí, de modo a estabelecer um diálogo entre a teoria e a prática que fosse compatível com a realidade local. Após a delimitação do horizonte teórico e de atuação, lastreado na realidade local, passou-se ao trabalho propriamente dito, que teve como eixo inicial a construção de conhecimento sobre a tipologia da qual os bens são constituintes: edifícios, objetos arquitetônicos. Empreendeu-se, assim, um estudo consistente da trajetória da arquitetura ferroviária, primeiro como objeto funcional, depois como objeto funcional e estético e, por último, como objeto pós-funcional, situação em que se encontra hoje, com o declínio desse modal de transporte. Essa etapa trouxe contribuições significativas para os estudos sobre o patrimônio ferroviário piauiense, uma vez que o tema é de interesse recente e, apesar de já ter sido objeto de algumas pesquisas por parte de historiadores, os vestígios materiais da ferrovia no estado e também os espaços urbanos que constituem carecem de produção que leve ao reconhecimento dos seus valores patrimoniais e a propostas para sua conservação integrada ao planejamento urbano, devidamente embasados na teoria do restauro. Com essa base sólida, partiu-se para o conhecimento e análise do bem específico, a partir de uma ampla gama de vieses, de modo a levantar aspectos múltiplos do seu modo de estar no mundo. Estudou-se, assim, a sua arquitetura, sua história, sua funcionalidade, a relação que tem com os contextos urbano e econômico, a identidade que a população tem com ele, entre outros. Essa etapa constituiu também uma contribuição fundamental ao corpus de produção acadêmica sobre o patrimônio ferroviário no Piauí, uma vez que o único trabalho anterior nesse sentido foi o inventário do IPHAN, que buscou um conhecimento de grande número de bens (a rede piauiense em sua totalidade) num curto espaço de tempo, levando inevitavelmente à superficialidade do produto final. Buscou-se, com esse trabalho, contribuir

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para a superação dessa superficialidade, através do estudo mais aprofundado da sua história, arquitetura, valores patrimoniais e contextos urbano e socioeconômico. Por fim, (e em conformidade com as cartas patrimoniais estudadas), partiu-se do conhecimento construído sobre o conjunto ferroviário de Capitão de Campos para o passo seguinte, a elaboração de diretrizes que orientem sua preservação integrada ao planejamento, que se adequassem aos valores identificados nas etapas de conhecimento e análise e à dupla rede de relações (urbanas e econômicas) em que esses bens estão inseridos, conforme a recomendação de Rufinoni (2013). Chegou-se a uma proposta de linhas gerais, que deverá subsidiar futuras intervenções e a gestão do espaço, sugerindo alguns usos baseados na observação e nas diretrizes a que se chegou durante a fase de conhecimento. Ao longo do trabalho, foi possível perceber a multiplicidade de sentidos que bens patrimoniais industriais ferroviários como esses carregam e de realidades de que fazem parte, através das redes de relações mencionadas. O estudo empreendido aqui possibilitou a construção de conhecimento relevante sobre esses bens e a elaboração de diretrizes para a conservação integrada de bens dessa natureza, como parte integrante do planejamento urbano e explorando potencialidades de ordens distintas, sem entrar em conflito com a preservação. Os resultados obtidos são relevantes pelo ineditismo do tema, pela abrangência da abordagem, pela metodologia empregada e pelo caminho que permite vislumbrar à frente, para que futuros trabalhos possam dar prosseguimento às pesquisas sobre o patrimônio ferroviário piauiense de modo a promover conhecimento e atuar de forma responsável e efetiva sobre ele.

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APÊNDICE A – BENS PROTEGIDOS NO PIAUÍ

Tabela 04 – Bens materiais tombados a nível estadual no Piauí até 08/2016.

Ano de Inscrição no Livro do Tombo

Município

Bem

Oeiras Oeiras Oeiras

Casa do Cônego Sobrado dos Ferraz Sobrado do Major Selemérico Companhia Editorial do Piauí – COMEPI Casa Odilon Nunes Usina Maria Bonita Clube dos Diários Casa dos Azulejos Casa do Visconde da Parnaíba Igreja de Nossa Senhora do Rosário Casa do Barão de Gurguéia Porto das Barcas Igreja de Nossa Senhora das Mercês

1980 1980 1981

Fábrica de Laticínios

1990

Casa de Fazenda da Dona Alemã

1992

Casa do Padre Marcos Memorial Tertuliano Brandão Filho Igreja de Santo Antônio Casa da Dona Carlotinha Fazenda Olho D’Água dos Pires Biblioteca Estadual Des. Cromwell de Carvalho Cine Rex Edifício Chagas Rodrigues - DER Casarão do Embaixador Casa da Antiga Intendência de Piracuruca Casa da Antiga Intendência de Teresina Casa Grande de São Domingos Sobrado de Dona Auta

1992 1992 1992 1992 1997

Teresina Amarante Floriano Teresina Amarante Oeiras Oeiras Teresina Parnaíba Jaicós Campinas do Piauí Capitão de Campos Padre Marcos Pedro II Jerumenha Teresina Esperantina Teresina Teresina Teresina Piripiri Piracuruca Teresina José de Freitas Parnaíba

1981 1985 1985 1985 1986 1986 1986 1986 1987 1989

1997 1997 1997 1998 2000 2000 2001 2006

216

Aroazes Oeiras Parnaíba União Teresina Teresina Teresina Teresina Teresina Teresina Teresina Teresina Teresina Teresina

Fazenda Serra Negra Casa de Fazenda Canela Sobrado Simplício Dias Casarão da Praça Barão de Gurguéia Museu do Piauí Escola Normal Antonino Freire Estação Ferroviária de Teresina Igreja São Benedito Palácio de Karnak Theatro 4 de Setembro Grupo Escolar Mathias Olympio Grupo Escolar Gabriel Ferreira Floresta Fóssil do Rio Poti Casa Prof. Valter Alencar Fonte: PIAUÍ, 2016.

2006 2006 2008 -

217 Tabela 05 – Bens do Piauí inscritos na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário até 15/12/2015.

Município

Bem

Ano de inscrição na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário

Teresina Teresina Teresina Teresina Teresina Piracuruca Piracuruca Parnaíba Parnaíba Parnaíba Parnaíba Parnaíba Parnaíba Parnaíba Parnaíba Parnaíba Parnaíba Parnaíba Parnaíba Parnaíba Parnaíba Parnaíba Parnaíba Parnaíba Parnaíba Parnaíba Parnaíba

Pátio Ferroviário de Teresina Estação Ferroviária de Teresina Armazém 1 Armazém 2 Casa do Agente com Anexo Estação Ferroviária de Piracuruca Esplanada de Piracuruca Cx D’água em concreto Casa do Motor Bomba Antiga Lanchonete Antiga Cooperativa Antigo Armazém Isolado Antiga Casa do Agente Estação Ferroviária de Parnaíba Antiga Carpintaria Antigo Arquivo Antigo Posto Médico Antigo Prédio da Administração Antigo Posto telefônico e Estação de Rádio Antigo Escritório de Locomoção Antiga Garagem de Veículos e Depósito Antigo Banheiro Central e Depósito Antigo Almoxarifado Antiga Tipografia Antiga Oficina Ferroviária Galpão Garagem Esplanada de Panaíba

2008 2008 2008 2008 2008 2009 2009 2013 2013 2013 2013 2013 2013 2013 2013 2013 2013 2013 2013 2013 2013 2013 2013 2013 2013 2013 2013

Fonte: IPHAN, 2015.

218 Tabela 06 – Bens materiais tombados a nível federal no Piauí até 11/05/2016.

Município

Bem

Ano de inscrição no Livro do Tombo

Campo Maior Oeiras Oeiras Oeiras Piracuruca Teresina São Raimundo Nonato Teresina Teresina Parnaíba Teresina Oeiras Piracuruca

Cemitério do Batalhão Sobrado João Nepomuceno Ponte Grande Igreja Matriz de Nossa Senhora da Vitória Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo Igreja de São Benedito

1938 1939 1939 1940 1940 1940

Parque Nacional da Serra da Capivara

1993

Ponte Metálica João Luís Ferreira Floresta Fóssil no Rio Poti Conjunto Histórico e Paisagístico de Parnaíba Conjunto da Estação Ferroviária de Teresina Conjunto Histórico e Paisagístico de Oeiras Conjunto Histórico e Paisagístico de Piracuruca Estabelecimento das Fazendas Nacionais do Piauí: Fábrica de Manteiga e Queijo, no Município de Campinas do Piauí Estabelecimento das Fazendas Nacionais do Piauí: Estabelecimento Rural São Pedro de Alcântara, no Município de Floriano Igreja Nossa Senhora de Lourdes Fazenda São Joaquim Prédio Sede do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí

2011 2011 2011 2013 2013 2013

Campinas do Piauí Floriano Teresina Teresina Teresina

Fonte: IPHAN, 2016.

2015

2015 2008 (Provisório) Instrução em 2016 Instrução em 2016

219

APÊNDICE B – LEVANTAMENTO ARQUITETÔNICO DO CONJUNTO

PLANTA DE SITUAÇÃO ESC 1:500

VISTA DAS RESIDÊNCIAS ESC 1:200

INSTITUTO CAMILLO FILHO CURSO: ARQUITETURA E URBANISMO

TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO EM CAPITÃO DE CAMPOS - PI PROPOSTA DE ADAPTAÇÃO A NOVO USO PARA O CONJUNTO FERROVIÁRIO

ORIENTADOR:

NEUZA BRITO DE ARÊA LEÃO MELO ALUNO:

ANDRÉ MENDES DE CARVALHO CASTELO BRANCO CONTEÚDO

LEVANTAMENTO - SITUAÇÃO DO CONJUNTO

ESC:

1:200 E 1:500 DATA:

02/12/2016

01

08

A

A

PLANTA BAIXA ESC 1:100 A

PLANTA DE COBERTURA ESC 1:100

CORTE A ESC 1:100

1950

1950

CAPITÃO DE CAMPOS

CAPITÃO DE CAMPOS

FACHADA NORTE ESC 1:100

FACHADA SUL ESC 1:100

INSTITUTO CAMILLO FILHO CURSO: ARQUITETURA E URBANISMO

TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO EM CAPITÃO DE CAMPOS - PI PROPOSTA DE ADAPTAÇÃO A NOVO USO PARA O CONJUNTO FERROVIÁRIO

FACHADA OESTE ESC 1:100

FACHADA LESTE ESC 1:100

ORIENTADOR:

NEUZA BRITO DE ARÊA LEÃO MELO ALUNO:

ANDRÉ MENDES DE CARVALHO CASTELO BRANCO CONTEÚDO

LEVANTAMENTO - ESTAÇÃO DE PASSAGEIROS

ESC:

1:100 DATA:

02/12/2016

02

08

FACHADA FRONTAL CASA DE AGENTE ESC 1:100

FACHADA LATERAL ESQUERDA CASA DE AGENTE ESC 1:100

FACHADA LATERAL DIREITA CASA DE AGENTE ESC 1:100

PLANTA BAIXA CASA DE AGENTE ESC 1:100

FACHADA FRONTAL CASA DE FEITOR/GUARDA-CHAVE ESC 1:100 PLANTA BAIXA CASA DE FEITOR/GUARDA-CHAVE ESC 1:100

FACHADA LATERAL ESQUERDA CASA DE FEITOR/GUARDA-CHAVE ESC 1:100

FACHADA LATERAL DIREITA CASA DE FEITOR/GUARDA-CHAVE ESC 1:100

FACHADA POSTERIOR CASA DE FEITOR/GUARDA-CHAVE ESC 1:100

PLANTA DE COBERTURA CASA DE FEITOR/GUARDA-CHAVE ESC 1:100

INSTITUTO CAMILLO FILHO CURSO: ARQUITETURA E URBANISMO

PLANTA DE COBERTURA CASA DE TRABALHADOR ESC 1:100

FACHADA FRONTAL CASA DE TRABALHADOR ESC 1:100

FACHADA LATERAL ESQUERDA CASA DE TRABALHADOR ESC 1:100

FACHADA POSTERIOR CASA DE TRABALHADOR ESC 1:100

TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO EM CAPITÃO DE CAMPOS - PI PROPOSTA DE ADAPTAÇÃO A NOVO USO PARA O CONJUNTO FERROVIÁRIO

ORIENTADOR:

NEUZA BRITO DE ARÊA LEÃO MELO ALUNO:

ANDRÉ MENDES DE CARVALHO CASTELO BRANCO CONTEÚDO

LEVANTAMENTO - RESIDÊNCIAS

ESC:

1:100 DATA:

02/12/2016

03

08

223

APÊNDICE C – DIAGNÓSTICO E MAPEAMENTO DE DANOS

1950

CAPITÃO DE CAMPOS

FACHADA OESTE ESTAÇÃO ESC 1:100

FACHADA SUL ESTAÇÃO ESC 1:100

PLANTA BAIXA ESTAÇÃO ESC 1:100

PLANTA DE COBERTURA CASA DE FEITOR/GUARDA-CHAVE ESC 1:100

PLANTA BAIXA CASA DE FEITOR/GUARDA-CHAVE ESC 1:100

FACHADA FRONTAL CASA DE AGENTE ESC 1:100

PLANTA DE COBERTURA CASA DE AGENTE ESC 1:100

FACHADA LATERAL ESQUERDA CASA DE FEITOR/GUARDA-CHAVE ESC 1:100

FACHADA POSTERIOR CASA DE FEITOR/GUARDA-CHAVE ESC 1:100

INSTITUTO CAMILLO FILHO CURSO: ARQUITETURA E URBANISMO

TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO EM CAPITÃO DE CAMPOS - PI

PLANTA DE COBERTURA CASA DE TRABALHADOR ESC 1:100

FACHADA POSTERIOR CASA DE TRABALHADOR ESC 1:100

FACHADA LATERAL ESQUERDA CASA DE TRABALHADOR ESC 1:100

PROPOSTA DE ADAPTAÇÃO A NOVO USO PARA O CONJUNTO FERROVIÁRIO

ESC:

1:100 DATA:

ORIENTADOR:

NEUZA BRITO DE ARÊA LEÃO MELO ALUNO:

ANDRÉ MENDES DE CARVALHO CASTELO BRANCO CONTEÚDO

DIAGNÓSTICO - ALTERAÇÕES

02/12/2016

04

08

PLANTA BAIXA ESTAÇÃO ESC 1:100

PLANTA DE COBERTURA ESTAÇÃO ESC 1:100

1950

CAPITÃO DE CAMPOS

FACHADA OESTE ESTAÇÃO ESC 1:100

FACHADA OESTE ESTAÇÃO ESC 1:100

FACHADA FRONTAL CASA DE AGENTE ESC 1:100 PLANTA DE COBERTURA CASA DE AGENTE ESC 1:100

FACHADA LATERAL ESQUERDA CASA DE AGENTE ESC 1:100

INSTITUTO CAMILLO FILHO CURSO: ARQUITETURA E URBANISMO

TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO EM CAPITÃO DE CAMPOS - PI PROPOSTA DE ADAPTAÇÃO A NOVO USO PARA O CONJUNTO FERROVIÁRIO

ESC:

1:100 DATA:

ORIENTADOR:

NEUZA BRITO DE ARÊA LEÃO MELO ALUNO:

ANDRÉ MENDES DE CARVALHO CASTELO BRANCO CONTEÚDO

DIAGNÓSTICO - DANOS

02/12/2016

05

08

PLANTA DE COBERTURA CASA DE FEITOR/GUARDA-CHAVE ESC 1:100

FACHADA FRONTAL CASA DE FEITOR/GUARDA-CHAVE ESC 1:100

FACHADA FRONTAL CASA DE TRABALHADOR ESC 1:100

FACHADA LATERAL ESQUERDA CASA DE FEITOR/GUARDA-CHAVE ESC 1:100

FACHADA POSTERIOR CASA DE FEITOR/GUARDA-CHAVE ESC 1:100

FACHADA POSTERIOR CASA DE TRABALHADOR ESC 1:100

FACHADA LATERAL ESQUERDA CASA DE TRABALHADOR ESC 1:100

PLANTA DE COBERTURA CASA DE TRABALHADOR ESC 1:100

INSTITUTO CAMILLO FILHO CURSO: ARQUITETURA E URBANISMO

TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO EM CAPITÃO DE CAMPOS - PI PROPOSTA DE ADAPTAÇÃO A NOVO USO PARA O CONJUNTO FERROVIÁRIO

ESC:

1:100 DATA:

ORIENTADOR:

NEUZA BRITO DE ARÊA LEÃO MELO ALUNO:

ANDRÉ MENDES DE CARVALHO CASTELO BRANCO CONTEÚDO

DIAGNÓSTICO - DANOS

02/12/2016

06

08

227

APÊNDICE D – DIRETRIZES PARA PRESERVAÇÃO INTEGRADA

PLANTA BAIXA - ZONEAMENTO ESC 1:500

INSTITUTO CAMILLO FILHO CURSO: ARQUITETURA E URBANISMO PLANTA BAIXA - EQUIPAMENTOS ESC 1:500

TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO EM CAPITÃO DE CAMPOS - PI PROPOSTA DE ADAPTAÇÃO A NOVO USO PARA O CONJUNTO FERROVIÁRIO

ORIENTADOR:

NEUZA BRITO DE ARÊA LEÃO MELO ALUNO:

ANDRÉ MENDES DE CARVALHO CASTELO BRANCO CONTEÚDO

PROPOSTA - ZONEAMENTO E EQUIPAMENTOS

ESC:

1:500 DATA:

02/12/2016

07

08

PLANTA BAIXA ESTAÇÃO ESC 1:100

PLANTA DE COBERTURA ESTAÇÃO ESC 1:100

FACHADA OESTE ESTAÇÃO ESC 1:100

FACHADA LESTE ESTAÇÃO ESC 1:100

1950

1950

CAPITÃO DE CAMPOS

CAPITÃO DE CAMPOS

DETALHE DA PORTA ESC 1:20

INSTITUTO CAMILLO FILHO CURSO: ARQUITETURA E URBANISMO FACHADA SUL ESTAÇÃO ESC 1:100

FACHADA NORTE ESTAÇÃO ESC 1:100

TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO EM CAPITÃO DE CAMPOS - PI PROPOSTA DE ADAPTAÇÃO A NOVO USO PARA O CONJUNTO FERROVIÁRIO

ESC:

1:100 DATA:

ORIENTADOR:

NEUZA BRITO DE ARÊA LEÃO MELO ALUNO:

ANDRÉ MENDES DE CARVALHO CASTELO BRANCO CONTEÚDO

PROPOSTA - ESTAÇÃO

02/12/2016

08

08

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