Patrimônio, Museus e Paisagens Culturais

June 3, 2017 | Autor: A. Fonseca de Castro | Categoria: Patrimonio Cultural, Museus, Paisagem Cultural
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Patrimônio, Museus e Paisagens Culturais

Adler Homero Fonseca de Castro [1] Segundo a Convenção de Florença, de 2000, “paisagem designa uma parte do território, tal como é apreendida pelas populações, cujo caráter resulta da ação de fatores naturais e/ou humanos e de suas e inter-relações”–uma frase que deve ter sido repetida à exaustão nesta revista, mas que consideramos vital revisitar. Isso por que ela trás uma questão que consideramos indispensável frisar: toda e qualquer paisagem é, necessariamente, cultural. As paisagens resultam da atividade antrópica, “os fatores humanos e suas inter-relações”, nem que seja pela apreciação de suas características específicas, sejam elas quais forem. Tal fato é uma característica importante, pois de outra forma estaríamos trabalhando com conceitos distintos ao de paisagem, como os da ecologia. Neste, a presença humana não é só dispensável, como também pode ser negativa se pensarmos em ações de preservação do meio ambiente natural. Então, porque se considerou necessário um termo específico, como o de paisagem cultural, que em princípio seria um pleonasmo? A resposta pode ser vista na origem da expressão, a UNESCO, em 1992, aprovou uma convenção visando divulgar e proteger esse tipo de patrimônio. A ação do órgão tinha origens e motivadores que eram inerentes à sua formação de entidade internacional, que lida com problemas originários de definições e propostas adotadas em diferentes países, às vezes com características contraditórias. Por exemplo, nos Estados Unidos o sistema nacional de proteção ao patrimônio, o National Park Service, surgiu de uma demanda governamental pela preservação de áreas naturais por seu valor primordialmente natural.O primeiro parque nacional do país, o de Yellowstone, foi escolhido pela excepcionalidade de suas florestas e seus monumentos naturais. Isso tem suas implicações, pois se o fator humano foi relevante na escolha do bem, os aspectos ecológicos eram mais importantes para eles. Por outro lado, houve países que criaram sistemas de preservação em que os aspectos humanos eram vistos com tanta, ou até mais, importância que os naturais. Por exemplo, o Brasil, desde 1925, com o regulamento do Serviço de Proteção Florestal, possuía uma legislação de proteção visando à preservação do meio ambiente, inclusive em seus aspectos paisagísticos. Mas em 1937, foi implantado um novo serviço: o de proteção ao patrimônio histórico e artístico (SPHAN, atual IPHAN), com a previsão de também tratar de paisagens. Um dos livros do tombo do Serviço, onde seriam inscritos os bens a

serem protegidos, era o “Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico”. Isso não representava uma competição de esforços com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão sucessor do Serviço de Proteção Florestal de 1921, responsável pela criação dos primeiros parques nacionais do Brasil, os de Itatiaia (1937), Serra dos Órgãos e o do Iguaçu, ambos de 1939. A ideia do IPHAN sempre foi que sua área de atuação giraria em torno da ação humana, o decreto que implantou a proteção ao patrimônio citava a proteção de bens de feição notável da natureza ou “agenciados pela indústria humana”. Foram tombadas várias paisagens nos anos iniciais do Instituto, a seleção refletia uma clara opção por bens “não naturais”: nos primeiros cinco anos da instituição foram escolhidos para proteção três conjuntos arquitetônicos, dois jardins e uma cidade, a de Congonhas do Campo. Dessa forma, se entendia haver uma diferença fundamental no sentido do que seria uma paisagem. Em alguns países havia a visão de que esta seria fundamentalmente ecológica, enquanto em outros, incluindo o Brasil, a paisagem era tratada de forma menos restrita, em seu sentido mais amplo, o de território, tal como apreendido pelas populações, a presença de um “meio ambiente natural” não sendo obrigatória. A UNESCO teve que compatibilizar essas diferenças, tendo em vista que há paisagens que são importantes, mas que não se enquadram nos critérios mais tradicionais de bens naturais de natureza ecológica. Assim se entende as primeiras inscrições como paisagens culturais, os Parques Nacionais de Tongario (Nova Zelândia)e de Uluru-Kata Tjuta (Austrália), que eram formações naturais que recebiam valores culturais, sendo bens cultuados por sociedades locais. O terceiro bem inscrito pela UNESCO, os terraços para agricultura de arroz das Filipinas, é um exemplo ainda mais claro, pois mostra claramente que a paisagem, neste caso, não pode ser considerada, de forma alguma, como “natural”, sendo o resultado de uma longa tradição de convivência entre o homem e a natureza ou, como colocado pela própria UNESCO, era oriundo de “técnicas específicas de uso sustentável do solo” – algo que o IPHAN chamava de bens “agenciados pela indústria humana”. É possível notar claramente, no caso da UNESCO, uma ampliação dos conceitos tradicionais de paisagem, que foi consolidada na convenção de Florença com uma definição bem ampla, que permitia sua aplicação em diferentes casos.O Brasil teve participação nesse processo de alargamento dos conceitos ao apresentar a proposta de inscrição do Rio de Janeiro como paisagem cultural, uma ideia que enfrentou certa resistência por parte dos técnicos enviados pela UNESCO para avaliar a proposição, justamente por se tratar de uma paisagem com características bem diferentes quanto ao “uso sustentável” do solo, fugindo da visão que os bens teriam que ser rurais, sistemas agrícolas tradicionais ou bens naturais de valor simbólico ou religioso. A proposta de incluir a cidade nas listas da UNESCO foi aceita, abrindo mais possibilidades de ação na proteção desse tipo de patrimônio, algo que não deveria ser visto como novidade, pois há décadas, esta já era a forma de agir em alguns países. Sendo assim, a questão dos diferentes usos e as paisagens culturais não deveriam ser um problema, a preservação de aspectos culturais de um território não é nova, pelo contrário. O princípio de que a terra foi trabalhada e incorporada pelas diferentes sociedades sempre foi de fundamental importância para o entendimento das diferentes culturas, nem que seja pelo aspecto vital da agricultura. Por outro lado, há inegáveis

dificuldades de tratar com o território, vastas áreas, em um espaço museológico que normalmente sofre limitações. Não se pode construir uma vitrine para colocar toda uma tradição técnica ou um objeto natural cultuado, mesmo que fosse aceitável remover esse bem de seu meio. É possível recolher ou construir recursos museográficos ligados à paisagem e a seus aspectos sociais, por exemplo, o Museu Histórico Nacional tem em suas coleções ferramentas ligadas à atividade agrícola, em uma visão tradicional de que uma parte pode representar o todo, assim como um objeto que pertenceu a uma personalidade, um artista, político ou um militar poderia representar a própria pessoa. No entanto, essa visão tradicional, se aplicada a uma paisagem, seria apenas um pálido reflexo da realidade, ainda mais quando esta é tão complexa quanto uma área geográfica que reflete a interação humana. Deve-se dizer que, independente da questão da paisagem cultural, este é um desafio que os museus urbanos terão que enfrentar em uma realidade moderna, pois as pessoas estão cada vez mais afastadas de um ambiente rural – 84% da população brasileira vive em centros urbanos cada vez mais uniformes e monótonos, distante do meio ambiente global em que todos vivemos. Não é uma situação desesperadora, há soluções simples para se tratar o problema em museus, algumas muito antigas. A própria musealização da paisagem atenderia, de certa forma, à necessidade de preservação. Isso não deixa de ser o caso de alguns parques nacionais, como o que os norte-americanos fazem com os campos de batalha da Guerra Civil (Gettysburg, Antietam e outros). Nesses casos, se procura preservar a imagem do que seria aquele território, não somente no momento em que ocorreu a batalha, mas também sua própria aparência original, a ponto de se permitir a presença de agricultores na área protegida, desde que estes aceitam plantar as mesmas colheitas que havia no momento do evento histórico celebrado. Uma proposta especificamente voltada para a preservação de uma dada paisagem cultural, apesar de ser uma ação estática, uma cenografia. Alguns museus a céu aberto, e certamente os ecomuseus, seriam outra opção para trabalhar em um ambiente museológico as questões de paisagens culturais, o que não énenhuma novidade, já que se faz isso há muito tempo. No Brasil, o IPHAN apoiou um projeto em Santa Catarina: o Museu ao Ar Livre de Orleans. A proposta da instituição era criar uma coleção que reunisse diversos objetos de grande porte ligados à atividade agrícola dos imigrantes da região, como máquinas hidráulicas (rodas d’agua, moinhos, forjas etc.) inseridas em um espaço geográfico “cenográfico” que se aproximasse de suas condições naturais. Uma concepção avançada para a época, pois os proponentes do museu percebiam que aquelas máquinas eram representativas de um modo de vida que estava desaparecendo na década de 1970, merecendo a preservação não só dos equipamentos, mas também dos registros do modo de vida associado a elas. O IPHAN chegou a propor o tombamento nacional do bem, mas não concluiu o processo. Um dos problemas dos ecomuseus está relacionado à sua localização: como atendem comunidades específicas no interior, torna-se difícil transpor a ideia para um grande centro urbano. Este último ponto nos leva ao que acreditamos ser o maior desafio dos museus em trabalhar com paisagens culturais já que estão associadas às culturas vivas, de outra forma seriam bens arqueológicos. Logo, as populações que vivem nessas paisagens causam inevitáveis transformações ao longo do tempo, o que se opõe à visão tradicional de preservação, que seria manter as características de uma coisa as mais estáticas

possível. Este é o mesmo problema que se vive com as cidades tombadas– exatamente o mesmo –, já que essas são formas de paisagens culturais, porém urbanas. Não há uma solução fácil e pronta, a não ser “congelar” o bem, transformando-o em um museu sem pessoas vivendo nele e/ou transformando-o em um cenário de teatro, como os living museums nos Estados Unidos tal como Williansburg, uma cidade “recriada” com atores simulando a vida nela. Isso está longe de ser o ideal, nem que fosse pelo fato de retirar o aspecto autossustentável da paisagem, que é uma questão central da paisagem, como definido pela UNESCO. O IPHAN, que trabalha com essa questão há 80 anos, não encontrou uma forma de ação que funcionasse sem problemas, no que tange aos centros urbanos, se aceita a transformação como algo inevitável, mesmo que isso represente perdas culturais. Então, como os museus poderiam responder a essa questão que, sem dúvida, é complexa? Confessamos nossa ignorância, deixando que os profissionais habilitados, os museólogos, reflitam sobre o assunto. Algumas soluções criativas já foram encontradas, como os ecomuseus e os museus a céu aberto, mas isso não significa que não haja outras ainda mais eficientes a serem apresentadas. [1] Historiador, Pesquisador do IPHAN.

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