Patrimônio vivo, patrimônio mutável: Reflexos da atividade turística em fazendas históricas (versão em português)

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VERSÃO EM PORTUGUÊS

Original em espanhol: ROSADA, Mateus; BORTOLUCCI, Maria Ângela P. C. S. Patrimonio vivo, patrimonio

mutable: consecuencias de la actividad turística en haciendas históricas. La dimensión Social del patrimonio.

PATRIMÔNIO VIVO, PATRIMÔNIO MUTÁVEL: REFLEXOS DA ATIVIDADE TURÍSTICA EM FAZENDAS HISTÓRICAS Mateus Rosada, Maria Ângela P. C. S. Bortolucci Universidade de São Paulo, Escola de Engenharia de São Carlos, Depto. de Arquitetura

Hacienda Ibicaba en 1890: terreros llenos de café. Actualmente las haciendas de la región de Limeira cultivan el bastón de azúcar e algunas dedican se a el turismo histórico.

...Esse patrimônio está em perigo. Ele está ameaçado pela ignorância, pela antiguidade, pela degradação sob todas as formas, pelo abandono (...). A tecnologia contemporânea, mal aplicada, destrói as antigas estruturas. As restaurações abusivas são nefastas. Afinal e principalmente, as especulações financeira e imobiliária tiram partido de tudo e aniquilam os melhores projetos. 1 A recente atividade turística nas antigas fazendas de café da região de Limeira (Estado de São Paulo, Brasil) vem acarretando em algumas modificações do espaço construído dessas propriedades. Este trabalho busca justamente discutir as posturas de atuação perante um bem histórico, o conflito entre o interesse financeiro e o interesse histórico e a necessidade da educação patrimonial. É de um dos desdobramentos da pesquisa de iniciação científica “Estruturação Espacial das Fazendas de Café de Limeira e Região”, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Aborda a influência do turismo na arquitetura de antigas propriedades cafeeiras entre as cidades de Limeira e Rio Claro, no Estado brasileiro de São Paulo, ambas, cidades que foram importantes centros cafeicultores no final do século XIX e inicio do XX.

A importância do café, o período de construção. O café foi o produto mais significativo na história econômica de São Paulo. A Província, até o advento da cafeicultura, era uma das mais subdesenvolvidas do Brasil e passou, com o ciclo cafeeiro, a ser a mais prósperas

delas. A sociedade, a cultura e a arquitetura modernas de São Paulo se moldaram com bases na cafeicultura e na imigração européia. Por ser umas das commodities mais rendosas do planeta naquele período, o café trouxe enorme riqueza e prosperidade à região. O fastígio do ciclo cafeeiro possibilitou a contratação de mão-de-obra assalariada num país onde quase toda a força de trabalho ainda era escrava. Assim, grandes levas de imigrantes portugueses, alemães e italianos, assalariados, trabalharam lado a lado com os escravos africanos até a proibição do regime servil no Brasil, em 1888. O capital gerado com o café também resultou em incessantes investimentos nos transportes, nos maquinários e nas técnicas construtivas e de produção. Acarretou ainda na sofisticação dos modos de vida e, principalmente, da arquitetura. Com o advento da cafeicultura, as fazendas da região de Limeira, que inicialmente cultivavam a cana-de-açúcar, sofreram profundas modificações em seus espaços para se adaptarem às novas necessidades.

A crise da cafeicultura, o período de destruição. A pujança do período cafeeiro (de 1850 a 1930) fez com que o espaço construído se mantivesse em constante alteração, mas a crise do sistema (desencadeada pela quebra da Bolsa de Nova York, em 1929) forçou a reestruturação das atividades da região em novas bases apoiadas na indústria. Com isso, as cidades passaram a ser o centro da economia e o capital migrou do campo para a cidade. As fazendas perderam muito de sua autonomia e se tornaram muito mais dependentes das áreas urbanas. Foram, aos poucos, erradicando seus pés de café e arrendando suas terras para grandes usinas de álcool: a cana de açúcar, mais uma vez, passa a dominar o cenário rural. Muitos trabalhadores rurais perderam o emprego e se mudaram para a cidade. A diminuição das atividades também acarretou em novas alterações nas edificações, em abandonos e destruições. Houve casos de fazendas inteiras que foram demolidas pelas usinas, fruto do descaso com o patrimônio rural. Nos anos 60 e 70, já praticamente todos os investimentos econômicos se destinavam às área urbanas e, enquanto as construções rurais sofriam com o abandono, as cidades passavam por um vertiginoso processo de transformação, de demolições e novas construções. As muitas demolições do patrimônio construído realizadas no meio urbano causaram um grande sentimento de perda na população, que se refletiu em uma revalorização das coisas antigas, reabilitando a importância das edificações históricas.

A reabilitação do interesse pelo patrimônio. E como resultado das grandes perdas das décadas anteriores, desde a década de 1980 existe uma crescente preocupação, aparentemente geral, com a história e a arquitetura do passado, como diagnostica a Declaração de Amsterdã: a significação do patrimônio arquitetônico e a legitimidade de sua conservação são atualmente melhor compreendidas. Sabe-se que a preservação da continuidade histórica do ambiente é essencial para a manutenção ou a criação de um modo de vida que permita ao homem encontrar sua identidade e experimentar um sentimento de segurança face às mutações brutais da sociedade.2 Acompanhando o movimento de revalorização do patrimônio, algumas fazendas da área de pesquisa vêm, há pouco mais de uma década, abrindo suas porteiras para a atividade turística. Vêm, com isso, recebendo levas cada vez mais numerosas e constantes de turistas ávidos por um pouco da história regional e de ar do campo, muitos deles, descendentes de imigrantes em busca de indícios de suas origens.

As fazendas hoje, a atividade turística. Embora exista uma imagem de que essas fazendas são representantes incólumes e fidelíssimas do período cafeeiro (os proprietários e agentes turísticos alimentam essa imagem) existem várias alterações posteriores ao tempo do café. Nas visitas a campo foi possível notar que em todas as propriedades, sem exceção, foram feitas sucessivas demolições e novas edificações, desde o primeiro período, de cultivo de cana, passando pelo café até a atualidade, alterando aos poucos a estrutura inicial para a adequação a novas necessidades e tecnologias. Este processo diminuiu em certos períodos, mas nunca cessou por completo, o que é natural, pois a atividade humana altera o ambiente constantemente. É na arquitetura que essa ação de adaptação do espaço se mostra mais latente. Foi possível perceber, nas fazendas visitadas, que os

maiores

períodos

sem

modificações

correspondem às fases em que as edificações estavam desocupadas. Quando estão em uso, existe sempre um processo de alteração, por mínimo que seja. O próprio processo de manutenção

predial

acarreta

em

pequenas

adaptações e inserções, algumas vezes, de materiais até então estranhos à edificação antiga.

Fazenda Santa Gertrudes: tulha em transformação para se tornar salão de festas. Reboco reconstituído com argamassa de cimento, material estranho ao original.

O que ocorre ultimamente é que, com o turismo, o processo de adaptação do espaço vem se intensificando. A nova atividade econômica gera lucros, que implicam em novos investimentos, que acarretam novas modificações no espaço: são construídos quartos de hospedagem, restaurantes e piscinas; as tulhas e senzalas são reformadas internamente para comportarem salões de eventos e restaurantes; os terreiros recebem quadras; edificações pequenas, como casas de colonos e escolas, sem previsão de uso e sem interesse econômico, são demolidas ou simplesmente

Fazenda Tatu: Casa-sede (de 1820) sem interesse de utilização pelos proprietários está fechada há mais de 50 anos, sem conservação.

abandonadas. Constata-se uma ambigüidade: a atividade turística, que trabalha com a construção de uma imagem histórica, de um objeto (fazenda de café) fidedigno de um período econômico significativo na ocupação do território, acaba por depreciar gradativamente este objeto em sua materialidade e imaterialidade. Dessa forma, o turismo é ao mesmo tempo uma fonte de renda que auxilia na manutenção econômica do local e um agente desencadeador de alterações no espaço.

Posturas perante o bem histórico.

Mas as adaptações e manutenções possuem inúmeras maneiras de serem executadas. Outra característica perceptível nas visitas a campo é que os proprietários que realizaram modificações mais criteriosas são os que demonstraram ter um conhecimento mais profundo sobre sua fazenda, sua história e sua significação e, portanto, entendem melhor a importância de cada elemento da propriedade. Suas posturas, comparadas às de outros fazendeiros (com menos conhecimentos ou com menor interesse na manutenção do bem), são as que mais se aproximam das recomendações das Cartas Patrimoniais da UNESCO e do ICOMOS. Mesmo que os proprietários não as conheçam (o que é quase que a generalidade dos casos) os mais interessados pela história buscam auxílio técnico em profissionais e estudiosos da área para realizarem intervenções. Outro caso que facilita na preservação são as fazendas tombadas pelos conselhos de defesa do patrimônio (IPHAN, nacional, e CONDEPHAAT, estadual – são duas na área de pesquisa), quando o acompanhamento técnico das alterações se torna obrigatório. Não somente no âmbito das adaptações do espaço, mas também no afluxo de turistas, as fazendas apresentam questões. Muitas vezes, os turistas querem tocar em objetos que já são muito

Fazenda Morro Azul: Capela. Repare que são colocadas fitas nas cadeiras para que os turistas não se sentem e não danifiquem os móveis antigos conservação.

frágeis e que se deteriorarão mais rapidamente em contato físico ou se apoiar em peças já enfraquecidas pelo tempo. Nesse momento, muitas vezes a atuação dos agentes turísticos (guias, proprietários) se mostra falha e possibilita que os visitantes deteriorem lentamente o bem visitado.

A importância da educação patrimonial... A preservação da arquitetura, das técnicas construtivas, em muitos casos, esbarra no conflito com os interesses econômicos que estão envolvidos na exploração turística do bem. A desinformação e o desinteresse pelo arcabouço histórico dessas fazendas são os fatores que mais influem para o embate entre preservação e adaptação. É preciso que exista todo um sistema para a educação patrimonial nas escolas e universidades e que os meios de comunicação divulguem e informem sobre os bens históricos e sua significação. Não que essa informação venha somente no formato da pura necessidade da preservação, mas que traga mesmo conhecimento, que as pessoas realmente conheçam, compreendam o bem e se sintam, de alguma forma, representadas nele. A tomada de consciência em relação à necessidade da salvaguarda deveria ser estimulada pela educação escolar, pós-escolar e universitária e pelo recurso aos meios de informação tais como os livros, a imprensa, a televisão, o rádio e o cinema e as exposições itinerantes. As vantagens, não apenas estéticas e culturais, mas também sociais e econômicas que pode oferecer uma política bem conduzida de salvaguarda dos conjuntos históricos ou tradicionais e sua ambiência deveriam ser objeto de uma informação clara e completa. Essa informação deveria

ser amplamente difundida entre os organismos especializados, tanto privados como públicos, nacionais, regionais e locais e entre a população, para que saiba porque e como seu padrão de vida pode ser melhorado.3 Ao longo do poucos anos (pouco mais de uma década) em que se explora o turismo rural na região de Limeira, é possível perceber que as fazendas mais preocupadas com sua preservação já se apresentam como diferenciadas para os turistas justamente porque conseguem ser mais fidedignas à história que representam. A harmonia entre o patrimônio histórico e as novas necessidades que surgem pode ser alcançada (mesmo dificilmente de forma total e plena) com a educação patrimonial. É preciso conhecer melhor o bem que se tem. Somente se preserva o que se conhece. Os autores: Mateus Rosada é técnico em edificações e cursa atualmente o último ano de Arquitetura e Urbanismo na Universidade de São Paulo (USP). Realiza pesquisas sobre arquitetura rural do período cafeeiro. Maria Ângela P. C. S. Bortolucci é arquiteta e urbanista, formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutora pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professora na área de Desenho Técnico e História da Arquitetura, ministrando aulas nos cursos de Arquitetura, Engenharia Civil e Engenharia Elétrica da USP em São Carlos. É Coordenadora do grupo de pesquisa sobre a Arquitetura do Período Cafeeiro no Departamento de Arquitetura e Urbanismo.

BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Antônio Luiz Dias de. Um estado completo que pode jamais ter existido. São Paulo: 1993. 168p. Tese (doutorado). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. CONSELHO DA EUROPA. Declaração de Amsterdã. Amsterdã: Conselho da Europa, 1975. Disponível na World Web Wide em < http://www.iphan.gov.br>. CONSELHO DA EUROPA. Manisfesto de Amsterdã. Amsterdã: Conselho da Europa, 1975. Disponível na World Web Wide em < http://www.iphan.gov.br>. ICOMOS. Carta de Veneza - carta internacional sobre conservação e restauração de monumentos e sítios. Veneza: ICOMOS, 1964. Disponível na World Web Wide em < http://www.iphan.gov.br >. OEA. Normas de Quito - conservação e utilização de monumentos e lugares de interesse histórico e artístico. Quito: OEA, 1967. Disponível na World Web Wide em < http://www.iphan.gov.br >. PREFEITURA Municipal de Limeira. Plano Diretor de Turismo. Limeira: Prefeitura Municipal, 1999. UNESCO. Carta de Nairóbi - recomendação relativa à salvaguarda dos conjuntos históricos e sua função na vida contemporânea. Nairóbi: UNESCO, 1976. Disp. na World Web Wide em < http://www.iphan.gov.br >. Web Wide em < http://www.defendebrasil.org.br >. http://www.fazendaibicaba.hpg.com.br

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CONSELHO DA EUROPA, 1976, p. 03. CONSELHO DA EUROPA, 1976, p. 10. OEA, 1967, p. 09.

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