Paul Celan e Peter Weiss: Para uma Estética de Resiliência

September 27, 2017 | Autor: Peter Hanenberg | Categoria: German Literature, Paul Celan, Peter Weiss
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Paul Celan e Peter Weiss: Para uma Estética de Resiliência1 Peter Hanenberg Centro de Estudos de Comunicação e Cultura, Universidade Católica Portuguesa

A obra de Paul Celan, caracteriza-se, muitas vezes, como hermética, sombria, a caminho do desespero e do silêncio. Mas esta caracterização não quer dizer que, a esta poesia, falte mundo e experiência. Pelo contrário, e num certo sentido, é um excesso de experiência do mundo que motiva a fala hermética, sombria, a caminho do desespero e do silêncio. Já na sua palestra em agradecimento pelo prestigiado Büchner-Preis, Celan fez questão de salientar que a sua poesia tem referências muito concretas e que não deve ser lida como fora da história e do mundo: “Talvez se possa dizer que em cada poema fica inscrito o seu '20 de janeiro'? Talvez seja o novo nos poemas que hoje se escrevem, exatamente isto: que aqui se tenta claramente manter a memória daquelas datas” (Celan 1996: 54). O 20 de janeiro é uma alusão dupla: por um lado refere-se ao famoso início da novela "Lenz" de Georg Büchner, a história do poeta deprimido Jakob Michael Reinhold Lenz: "Den 20. [Jänner] ging Lenz durch’s Gebirg" (Büchner 1988: 137 534), "a 20 de Janeiro Lenz saiu pelas montanhas". A referência ao texto de Büchner entende-se não só pelas circunstâncias da palestra, mas pela própria força poética da frase em questão que é, sem dúvida, uma das frases mais emblemáticas da literatura alemã: reclamando as condições de concretismo do texto literário, a sua fundamentação no tempo e no lugar, o seu carácter de experiência concreta, situada, localizada e temporal. Büchner não quer descrever um caso qualquer de depressão e desespero, mas sim, as circunstâncias concretas e sentidas do caso verídico. É, por isso, que Büchner baseia a sua novela em documentos históricos, relatórios autênticos que transforma num ensaio literário de uma profundeza, de uma sensibilidade e de uma complexidade extraordinárias. É difícil decifrar os documentos que, por ventura, deram origem aos poemas de Paul Celan. Mas é isso que a referência do "20 de Janeiro" quer sugerir, que se procurem as referências no tempo e no lugar, que se entenda que a poesia não é hermética no sentido de um significado não identificável. Pelo contrário, Celan defende que talvez seja o novo nos poemas que hoje se escrevem, exatamente isto: que aqui se tenta claramente manter a memória daquelas datas. No caso do 20 de 1

Conferência proferida no Goethe-Insutut, Lisboa, 18/10/2012, no âmbito do colóquio “Paul Celan. Da Ética do Silêncio à Poética do Encontro”.

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Janeiro a referência é central para toda a obra de Paul Celan: a 20 de Janeiro de 1942 começa em Berlin a chamada Conferência de Wannsee que determinou o extermínio dos judeus na Europa e consequentemente a máquina de terror que hoje recordamos na cifra de Auschwitz e nas imagens herméticas da "Fuga de morte". Revindicando o 20 de janeiro para a sua poesia significa não só reclamar que a poesia deve ser lida concreta e dedicadamente, mas que a referência pretende ser histórica e situada no tempo e no lugar. A poesia de Paul Celan insere-se nas múltiplas tentativas do pós-guerra de encontrar palavras e imagens para poder lidar com uma experiência que parecia ultrapassar todas as palavras e todas as imagens. Theodor W. Adorno formulou muito cedo um veredito que se revelou uma posição radical no debate. A famosa afirmação que escrever um poema depois de Auschwitz seria bárbaro, continua com uma segunda frase, em que o próprio pensamento sobre o assunto se põe em causa: "nach Auschwitz ein Gedicht zu schreiben, ist barbarisch, und das frisst auch die Erkenntnis an, die ausspricht, warum es unmöglich ward, heute Gedichte zu schreiben" (Adorno 1977: 30), (escrever um poema depois de Auschwitz, é bárbaro, e este também atinge o reconhecimento que exprime, porque se tornou impossível escrever poesia hoje.) Não se trata de proibir poesia, não se trata de negar a sua necessidade. Trata-se do reconhecimento que todo o pensamento, toda a produção de sentido, todos os significados perderam o seu fundamento. Depois de Auschwitz, o pensamento, as palavras, as imagens atingiram os limites do suportável. Perante o ato de barbaridade, a própria cultura perdeu a sua sustentabilidade. É essa a questão que Adorno quis colocar e que mesmo os seus críticos nunca puseram em causa: a necessidade de repensar radicalmente o projeto da cultura. A "Vergangenheitsbewältigung", a "Trauerarbeit", o trabalho de luto, a pergunta "How to como to terms with it" são, de facto, os lugares culturais de excelência no pós-guerra, e coube aos escritores e poetas o papel de marcar os momentos de viragem neste processo. Ruth Klüger, a sobrevivente de Auschwitz que tornou a sua biografia conhecida num livro publicado nos anos noventa, dizia que já não é só a história do Nacional-socialismo e do crime contra os judeus que merecia a nossa atenção, mas também a história das formas e maneiras em que se tentou recordar este tempo depois de 1945. Uma história da memória do holocausto é hoje tão necessária como a própria memória do holocausto. (Klüger 1992: 198)

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Paul Celan e Peter Weiss ocupam lugares opostos nesta história de memória. 2 É entre as opções destes autores que as várias formas e maneiras de praticar a memória se desenvolveram – contribuindo ambos para o esforço infinito e impossível "to come to terms with it". Permitam-me recordar só alguns dos momentos na história da memória do holocausto e do nacional-socialismo, começando ainda, em 1939, com Ernst Wiechert Der Totenwald (A floresta da morte), depois já, em 1947, Thomas Mann Doktor Faustus, um ano mais tarde Ilse Aichinger Die größere Hoffnung (A esperança maior), a "Todesfuge" escrita ainda antes, mas conhecida na sua edição em Mohn und Gedächtnis de 1952, Heinrich Böll: Billard um halbzehn (Bilhar às nove e meia), Günter Grass: Die Blechtrommel (O tambor), em 1959, Max Frisch: Andorra, 1961, Ilse Losa: Sob céus estranhos (trad. alemã 1991) um ano depois, Rolf Hochhuth: Der Stellvertreter (O vigário) em 1963, Hannah Arendt sobre Eichmann em Jerusalém em 1964, depois Peter Weiss: Die Ermittlung, 1967 o famoso livro sobre a incapacidade de luto do casal Mitscherlich ou o romance Jakob der Lügner (Jacob o mentiroso) de Jurek Becker em 1969. Todos estes livros são marcos importantes na tentativa de experimentar maneiras de pensar e dizer o que aconteceu em Auschwitz e com os judeus no nacional-socialismo. Em 1979, surge a série de televisão americana com o título "Holocaust" – mais um marco nesta história da memória – um marco que definitivamente trouxe o assunto a todas as casas e que introduziu a própria palavra "Holocaust" no sentido que lhe damos hoje, tanto na língua alemã como na língua portuguesa. A história não acaba aqui – claro. Mas com a série de televisão o discurso sobre o Holocausto abriu um caminho novo que até lá parecia não viável, ou mesmo repugnável no sentido ético. O veredito de Adorno formulava uma reserva em relação à possibilidade de "captar" literariamente a crueldade dos factos que se fundava em argumentos simultaneamente éticos e estéticos – uma posição que se inscreve em muitos dos textos literários que contradissem o veredicto em si. Se, mais tarde, em filmes como A lista de Schindler, A queda ou, mais recentemente, O leitor se coloca a questão do "bom alemão" ou da dimensão humana dos agressores, estamos a falar de um discurso que era de facto inimaginável e impossível nos tempos de Paul Celan e Peter Weiss. O grande desafio dos escritores de pós-guerra era a necessidade de encontrar uma linguagem nova, justa, adequada que – na medida dos possíveis pudesse fazer jus ao sofrimento e às vítimas. Como Brecht disse que nesses tempos uma conversa 2

Por isso, são escassas as ocasiões em que se comparam os dois autores. O único ensaio contrastivo que conheço foi apresentado por Vogt 1995.

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sobre árvores seria quase um crime (Brecht 1988: vol. 12, 85), tratava-se de recuperar as palavras e as imagens que não estavam inviabilizadas pela própria dimensão do terror. A poesia hermética de Paul Celan tem aqui a sua origem: "É tempo que a pedra se decida florir" (Celan 1993: 15), escreve Paul Celan no poema "Corona" – e é esta transformação das palavras e das coisas, a transformação da própria natureza que os seus poemas experimentam e sugerem. "a cicatriz do tempo/abre-se/ e afoga a terra em sangue" (Celan 1993: 55) – uma transformação que respeita a perca irrecuperável de qualquer naturalidade e de qualquer confiança em certezas culturais. "Verde-bolor é a casa do esquecimento" (Celan 1993: 7) Apesar de hermética (ou talvez: por ser hermética), a linguagem de Paul Celan é forte, expressão de uma autonomia surpreendente que se opõe aos mandamentos dos factos. Transformando as certezas em irritações, a poesia do terror resiste ao próprio terror. O “20 de Janeiro” está lá – transformado, invisível, disfarçado, silencioso, imagens autónomas sem referência como se tratasse do retrato puro da dor e do luto – um processo sem tribunal, sem nenhuma instância para recorrer. "Esta é uma palavra que marchou com as palavras, / uma palavra à imagem do silêncio" (Celan 1993: 41). Peter Weiss optou por uma outra estratégia. Perante os cenários de morte e da barbaridade não quis criar a sua própria linguagem, mas documentar a linguagem da crueldade, e como tal, não quis transformar as experiências em imagens herméticas mas apresentá-las expressa- e claramente. O início da carreira literária de Peter Weiss parece estar longe de uma literatura empenhada ou mesmo influenciada pelas circunstâncias da sua origem judaica e do exílio ao qual os nazis tinham obrigado a sua família. No chamado MicroRoman Der Schatten des Körpers des Kutschers (A sombra do corpo do cocheiro) Weiss apresentou uma linguagem descritiva e experimental que lembra mais o Nouveau Roman do que qualquer tentativa de enfrentar literariamente os traumas dos anos 30 e 40. O êxito tardio deste texto, publicado em 1960, levou o autor para um trabalho autobiográfico, publicado em dois volumes, um documento extraordinário de uma autoconstrução de uma biografia como artista e escritor. Só no segundo volume Fluchtpunkt (Ponto de fuga), o narrador começa a desenvolver uma consciência dos crimes e do sofrimento que o exílio lhe poupou. Será em torno do chamado processo de Auschwitz entre 1963 e 1965 que Weiss coloca a questão do holocausto como referência central da sua vida e da sua obra. Num documento impressionante relatou a sua visita ao campo de concentração que efetuou no âmbito do referido processo. Pedido, em 1965, para contribuir para um volume chamado "Atlas", em que os autores deveriam descrever as terras de maior importância para eles, Weiss decide escrever sobre Auschwitz, “Meine 4

Ortschaft” (A minha terra). O final deste texto revela-se muito importante para entender a literatura depois de Auschwitz e as dificuldades de lidar com a memória: "Passado algum tempo, também aqui rege o silêncio e o entorpecimento. Um vivo chegou, e perante este vivo fecha-se o que acontecera aqui. O vivo, que chega aqui, de um outro mundo, não tem mais do que o seu conhecimento de números, de relatórios escritos, de testemunhos, que fazem parte da sua vida, que ele suporta, mas só pode compreender, o que lhe acontece a ele próprio. Só quando ele próprio for atirado de uma mesa para baixo, se for encadeado, se for maltratado, chicoteado, sabe, o que é. [...] Agora só está num mundo afundado. Aqui já não pode fazer mais nada. Durante algum tempo rege o silêncio máximo. Depois sabe, que isso ainda não chegou ao fim." 3 Perante o local dos crimes e da presença da memória chegam o silêncio e o entorpecimento, palavras que caracterizam também a poesia de Paul Celan. O visitante em Auschwitz sente que é impossível fazer jus ao sofrimento, que é impossível entender o que aconteceu e encontrar palavras justas para o dizer. É o respeito pelas vítimas que torna impossível qualquer atitude adequada dos vivos. Entre os mortos e os vivos há um fosso impassável. É este fosso que Paul Celan tentou ultrapassar na sua poesia, e é este fosso para o qual Weiss procura pontes seguras. E acrescente-se que esta procura não acaba – tal como o sofrimento, a dor e a morte não acabaram com aqueles que aqui sofreram e morreram. "Depois sabe, que isso ainda não chegou ao fim." A memória tem uma dupla perspetiva: o respeito pelos mortos e a condição vital dos vivos. Esta dupla perspetiva implica, por isso, um olhar para trás, mas também para frente, um cuidado para com o passado e uma atenção cuidadosa com o presente. É precisamente esta dupla perspetiva que Weiss adapta nas suas obras, tanto no teatro como na prosa. O drama Die Ermittlung (A investigação) é o segundo drama alemão que se dedica ao campo de concentração Auschwitz. Ao contrário do seu antecessor Der Stellvertreter (O vigário) de Rolf Hochhuth, Weiss não tenta colocar Auschwitz em cima do palco (uma tentativa que falhou na peça de Hochhuth), mas escolhe o próprio processo sobre Auschwitz em Frankfurt como cena da peça. A realidade do campo de concentração surge, por isso, mediada em várias instâncias: mediada pela cena do tribunal (em que os agressores são réus e as vítimas são

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Weiss 1968: 124. Todas as citações da obra de Weiss em tradução de PH.

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testemunhas), mediada pela estrutura de um oratório em 11 cantos e mediada pelas vozes dos testemunhas e réus. Numa nota introdutória o autor avisa: "Na encenação deste drama não se deve tentar reconstruir o tribunal em que o processo sobre o campo teve lugar. Nos olhos do seu autor, uma tal reconstrução parece tão impossível como seria a apresentação no palco do campo em si. Centenas de testemunhas entraram em cena no tribunal. A confrontação de testemunhas e réus bem como as falas e contra falas estavam sobrecarregadas de forças emocionais. De tudo isto no palco só pode ficar um concentrado do depoimento. Este concentrado não deve conter mais do que os factos como foram formulados no tribunal. As experiências e confrontações pessoais devem dar lugar ao anonimato." (Weiss 1991: V, 9) Ao contrário do que observámos em Paul Celan que procura uma linguagem própria e transformadora em relação à própria linguagem, Weiss pede a linguagem emprestada às vozes autênticas. Não é Peter Weiss que fala, nem uma voz imaginada, mas são as palavras documentadas que compõem a imagem do terror que aqui se apresenta. E parece até que a própria dimensão emocional das palavras é rejeitada em favor do depoimento factual. Não pode haver contraste mais drástico em relação à poesia de Paul Celan. Mas o apreço pelos factos em Peter Weiss não é outra coisa do que o reverso da mesma moeda. Também para Peter Weiss o terror de Auschwitz é tão grande que impede qualquer linguagem explicadora ou racional. A realidade de Auschwitz não é acessível aos vivos e por isso deve-se rejeitar qualquer dimensão emocionante ou moralizante. Enquanto Celan se distancia do terror pela linguagem hermética, Weiss procura distanciamento na linguagem factual. Enquanto Celan disfarça o seu 20 de Janeiro – sem, entretanto, permitir que a poesia deixe de se lhe referir – Weiss explicita o 20 de Janeiro em depoimentos concretos e autênticos. Com vista a esta peça, e às chamadas peças documentais que se seguem (entre as quais uma quase esquecida peça sobre o colonialismo português (Hanenberg 2002), Weiss publicou um pequeno texto chamado "Notas sobre o teatro documental" (Weiss 1971: 91-104) onde explica qual a conceção literária na base destas peças. "O teatro documental abstém-se de qualquer invenção, utiliza material autêntico e transmite esse material no palco – inalterado no conteúdo, mas trabalhado na forma" (Weiss 1971: 91-92); "o teatro documental ocupa o lugar do observador, do analítico" (Weiss 1971: 97), preocupa-se não com o singular e o individual, mas com o que pode ser considerado "exemplar" (Weiss 1971: 99), e toma "partido dos oprimidos" (Weiss 1971: 99). "Por isso", conclui 6

Weiss, "o teatro documental opõe-se à dramaturgia, que faz do seu desespero e da sua raiva o seu tema principal e que cultiva a conceção de um mundo absurdo sem cura. O teatro documental defende a alternativa que a realidade, tão inentendível que se faça aparecer, é explicável em todos os pormenores." (Weiss 1971: 104) Esta atitude observadora, analítica e explicativa é exatamente o oposto do olhar hermético e desesperado de Paul Celan. Mas a realidade a que se refere é a mesma – e Weiss não tinha de maneira nenhuma a ilusão de que poderia ser fácil encontrar a análise e a explicação adequada. Mesmo tomando partido pelo socialismo no mundo dividido – como Weiss defende num polémico texto sob o título "10 pontos para o trabalho de um autor no mundo dividido" (Weiss 1971: 14-23) – o autor sabe que as forças contraditórias não permitem um entendimento livre de dogmatismos. O projeto de Peter Weiss é entender o mundo e encontrar uma maneira de realizar literariamente este entendimento. Os últimos dez anos da sua vida (entre 1971 e 1982) dedica-os a uma obra monumental que acabou por ser o romance mais ambicioso na reconstrução da resistência ao nacional-socialismo e fascismo. Die Ästhetik des Widerstands (A estética da resistência) é um romance quase enciclopédico, denso nas informações, desafiante nos debates intelectuais, autêntico nas figuras e acontecimentos que refere, exato na linguagem que aplica. O romance, escrito na 1ª pessoa de um narrador sem nome, percorre o Berlim dos anos 30, a Guerra Civil em Espanha, o exílio na Suécia, a resistência do grupo "Capela Vermelha" contra o regime de Hitler – e confronta as experiências históricas com expressões artísticas desde o Altar de Pérgamo do 2º século antes de Cristo e da Balsa da Medusa de Théodore Géricault até ao desespero da escritora sueca Karin Boye. Em todos os seus momentos o romance cria imagens envolventes, em que questões do poder e da resistência se entrecruzam com expressões artísticas numa linguagem simultaneamente realista, complexa e precisa. O famoso primeiro parágrafo é prova disto. Medias in res, sem qualquer introdução, o leitor mergulha juntamente com o narrador e os seus dois amigos na explicação estética e política do Altar de Pérgamo: "A volta de nós os corpos ergueram-se da pedra, pressionados em grupos, envolvidos uns nos outros ou dispersos em fragmentos, indicando a sua forma num torso, num braço que se apoia, numa anca partida, num pedaço corcundo, sempre nos gestos da luta, afastando-se, dobrando para trás, atacando, protegendo, elevado ou curvado, extinto aqui e acolá, mas ainda com um pé livre e esticado, umas costas viradas, o contorno de um perónio, recolhido num único movimento conjunto." (Weiss 1991: III, 7) 7

O texto exige muito. Exige concentração e imaginação, exige a capacidade de seguir o olhar e de ver atrás das cenas a dimensão humana dos seus atores. Todo o texto é uma tentativa de perceber e explicar uma luta contínua entre opressão e resistência, uma luta, em que a arte dedica a sua força própria a representação das forças do poder e dos seus oponentes. A linguagem do romance parece ser factual e quase técnico – e acaba por proporcionar uma intensidade reflexiva cujos efeitos tanto pretendem ser políticos como estéticos. O romance abre um panorama diversificado de respostas às ameaças da opressão e da violência: enquanto o narrador mantem a sua luta, os seus amigos ficam vítimas da máquina de terror nazi – ou vítimas do seu próprio desespero, como é o caso da mãe do narrador e da escritora Karin Boye. O romance cultiva uma escrita exata, explicadora, esclarecedora – mas simultaneamente envolve o leitor num ambiente de morte, terror e desespero. O romance exige do leitor o trabalho da memória, de reflexão e de luto que os próprios protagonistas reconhecem como o desafio central: na política como na estética. Peter Weiss deu a este romance o título "Estética da resistência": é a consequência de uma experiência histórica em cujo centro está a exaltação total da violência. A mesma experiência levou Paul Celan a uma estética hermética e sombria, motivada nas políticas do século XX, mas sem motivos políticos. Peter Weiss mantem a confiança no projeto do esclarecimento e da luta estético-político. Um tal projeto não estava ao alcance de Paul Celan. Mas ambos os autores deixaram aos seus leitores testemunhos de como exprimir uma dimensão de terror que se situa além de todas as dimensões humanas. Os leitores saem reforçados da sua leitura, não reconfortados, nem tranquilizados. Como se os autores tivessem reconquistado o poder da palavra, o poder de uma resiliência capaz de suportar a experiência da violência, capaz de não quebrar perante o poder. O século XX obrigou os autores a optar entre estratégias de resiliência, uns encontraram-na na resistência, outros no silêncio. Nós, os leitores, encontramos em ambos uma estética de resiliência indispensável: dar voz humana às experiências de terror além do humano.

Literatura citada Adorno, Theodor W. (1977), Kulturkritik und Gesellschaft. In: Gesammelte Schriften, Band 10.1: Kulturkritik und Gesellschaft I,. Frankfurt/M., Suhrkamp. 8

Brecht, Bertolt (1988), Werke. Große kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe, Frankfurt/M., Suhrkamp. Büchner, Georg (1988), Werke und Briefe. Münchner Ausgabe, München: dtv. Celan, Paul (1993), Sete rosas mais tarde. Antologia poética, selecção, tradução e introdução de João Barrento e Y.K. Centeno, Lisboa, Cotovia. Celan, Paul (1996), Arte Poética, O meridiano e outros textos, trad. João Barrento, Lisboa, Cotovia. Hanenberg, Peter (2002), "Der Lusitanische Popanz". O colonialismo português num drama alemão, in: Marília dos Santos Lopes (coord.), Os Descobrimentos Portugueses nas Rotas da Memória. Viseu: Universidade Católica Portuguesa, 215-228; doc. electrónico. Klüger, Ruth (1992), Weiter Leben: eine Jugend. Göttingen: Wallstein. Vogt, Jochen (1995), Treffpunkt im Unendlichen? Über Peter Weiss und Paul Celan, in: Peter Weiss Jahrbuch 4, 101-121. Weiss, Peter (1968), Rapporte, Frankfurt/M., Suhrkamp. Weiss, Peter (1971), Rapporte 2, Frankfurt/M., Suhrkamp. Weiss, Peter (1991), Werke in sechs Bänden, Frankfurt/M., Suhrkamp.

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