Paula Rego e as realidades imperfeitas

June 7, 2017 | Autor: Luisa Arruda | Categoria: Women and Gender Studies
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Paula Rego e as realidades imperfeitas
Luísa d'Orey Capucho Arruda

No ciclo de conferências Arte e Género: mulheres e criação artística, ciclo
organizado pela secção de Ciências da Arte e do Património - Francisco de
Holanda, do CIEBA, regressamos a um tema que nos interessa: a obra e a
personalidade artística de Paula Rego (Arruda, 2011: 156-161).
Dedico esta conferência à Pintora Paula Rego comemorando o primeiro ano do
seu Doutoramento Honoris Causa em Belas Artes pela Universidade de Lisboa,
o primeiro Doutoramento Honoris Causa que a Faculdade de Belas Artes propôs
à Universidade de Lisboa.
Intitulei a minha conferência Paula Rego e as realidades imperfeitas,
reflectindo neste título a perspectiva feminina sobre a realidade na obra
de Paula Rego – a imperfeição da sociedade que oprime, explora e maltrata
os mais fracos, sobretudo as crianças e as mulheres. A imperfeição das
pessoas, quer homens quer mulheres, o mal. Dou uma face ao medo disse Paula
Rego, quando interpelada por um crítico de arte sobre a violência presente
ou implícita em algumas das suas obras.
A luta das mulheres, feministas ou não, constitui um embate constante no
estatuto da mulher como realidade imperfeita na cultura ocidental judaico-
cristã. Eva criada por Deus a partir de uma costela de Adão e não brotando
como este, directamente, da imensa vontade divina. Eva curiosa,
desobediente e tentadora, culpada, provocando a expulsão do primeiro casal
humano do paraíso…
Germain Greer, escritora feminista australiana, académica e jornalista, de
quem Paula Rego fez o seu retrato, Germain Greer Portrait (NPG 6351)
encomendado em 1995 para a National Portrait Gallery de Londres, disse,
numa entrevista publicada na página Web deste museu de Londres que apenas
permitiria ser retratada por alguém que nunca a mostraria de uma forma
condescendente e esse alguém seria, naturalmente, Paula Rego (Howgate,
2012). (Fig.1)
Nesta entrevista, Greer revela-se como sujeito do retrato e, acentuando a
os aspectos sexuais da imagem pintada por Paula Rego, responde a perguntas
directas de Sara Howgate. Manifesta-se a favor do seu género estar
claramente representado na sua imagem, declarando que acharia terrível que
não houvesse uma vertente sexual no retrato pois, quando se consente num
retrato pode estar a consentir-se numa forma de castração (a palavra
inglesa sitter é muito melhor para exprimir a situação passiva do sujeito).
Paralelamente, defende que o facto de estar a formar um buraco com as mãos
no local onde se situa a vagina constitui uma afirmação subtil da
representação do género, não se apresentando como uma provocação vulgar. Em
relação a este tipo representação, argumenta que, de modo consciente ou
inconsciente, é algo encontramos sobretudo em retratos masculinos europeus,
dando exemplos concretos de obras da National Portrait Gallery de Londres.
Imaginamos Paula Rego e Germain Greer a percorrer as galerias deste Museu,
discutindo os retratos, a representação das personagens ao longo dos
tempos, fazendo escolhas para a forma de apresentar Greer.
Germaine Greer dá-nos assim a perspectiva feminina e feminista do retrato,
descodificando, os fundamentos contemporâneos e de vanguarda desta nova
tipologia da arte ocidental: o retrato de uma mulher por uma mulher. Não se
trata de representar uma mulher castrada sexualmente e alheada dos seus
poderes intelectuais e de intervenção social. Neste retrato vê-se a mulher
sexuada e livre e não a mulher vista como objecto sexual ou apenas na sua
função de procriação.
Já é antigo o conhecimento entre as duas personalidades. Num artigo sobre a
primeira retrospectiva da obra de Paula Rego na Serpentine Gallery em
Londres, em 1988, portanto sete anos antes do retrato, Greer comenta a obra
da pintora cujo poder é: 'undeniably, obviously, triumphantly female'
(Greer, 1998: 29).
De facto, ao contrário das visões, por exemplo, de Picasso ou Matisse sobre
o modelo feminino, alimentada pela sexualidade e dominação masculina, Paula
Rego aborda os seus temas subvertendo o clássico olhar sobre as géneros, as
idades da vida, etc, enquanto que, por outro, trata antigos temas da
tradição da pintura com a frescura de um olhar novo (Rosengarten, 2009: 34-
35).
A questão da imagem do feminino e do masculino na obra de Paula Rego não é
absolutamente linear revelando, por vezes, a reversibilidade da condição
feminina e da condição masculina. Paula Rego não nos apresenta visões
unilaterais, nem produz julgamentos definitivos sobre os factos de que nos
fala. O que é a perfeição ou a imperfeição constitui uma questão que muitas
vezes devolve ao espectador, estupefacto, frente à crueza de algumas
imagens.
Nos anos oitenta a obra de Paula Rego atravessa uma nova fase em que se
revela a sua paixão pelo desenho de modelo vivo, um desenho absolutamente
fundador pela nova visão sobre o corpo feminino e também o corpo masculino.
O corpo feminino ganha uma monumentalidade poderosa enquanto que o corpo
masculino é visto sob a perspectiva feminina, questionando o seu poder.
Vejam-se a este propósito a série do Crime do Padre Amaro, onde encontramos
um Padre Amaro frágil, Entre as Mulheres, título de uma das obras desta
série em que Paula Rego reflecte sobre a problemática do aborto em
Portugal, numa época em que precisamente se referendava a possibilidade de
abortar livremente e com apoio social.
É nesta época que adopta como modelo a sua empregada portuguesa Lila quem
tem uma relação profundíssima e que funciona, como um alter ego ou mesmo
como um reflexo de Paula Rego. Na série a Mulher Cão, a pintora questiona
efectivamente a condição feminina, na submissão, raiva contida, solidão e
ao mesmo tempo a expressão de uma tremenda força e nobreza que a pintora
consegue emprestar à atitude agachada, pronta a atacar ou a defender das
Mulher Cão. No entanto, numa entrevista, relata que esta série constitui
uma forma de reviver a sua história de amor com o marido, o pintor Victor
Willing, não como forma de ilustração, mas cada pintura funcionando como
equivalente emocional, de uma determinada situação, como afirma em
entrevista (Fortnum, 2007: 159).
A Casa das Histórias Paula Rego em Cascais recebeu, em 2011 um exposição My
Choice em que a artista passa de autora a curadora. Na colecção do British
Council, Paula Rego escolheu uma série de obras de arte que definem por um
lado o seu gosto e o seu profundo entendimento da arte britânica. De facto,
Paula Rego estudou e deu aulas na Slade School e vivendo desde 1975 quase
permanentemente em Londres. No entanto, o mais importante nesta exposição
são as cumplicidades de Paula Rego com os artistas e as obras, na visão de
pessoas e factos. Logo a primeira e triunfante imagem que escolheu para
cartaz da exposição e capa de catálogo e que se podia ver em todas as
entradas de Cascais - Machine Worker in Summer, (inv. P 7010) obra de
Madame Yevonde (1893-1975), nome artístico da fotógrafa inglesa Cumbers
Yevonde. (Fig. 2) Datando de 1937 apresenta-nos a extraordinária imagem
fotográfica (método perma print) de uma jovem nua costurando à máquina, uma
cena cromática e formalmente irrepreensível e ao mesmo tempo inquietante e
desconcertante, pela provocante candura da jovem, absolutamente concentrada
no seu trabalho enquanto se dá a ver na sua nudez total - uma imagem em
rosas e azuis. Através do imenso poder desta fotografia Paula Rego
questiona padrões de gosto e sobretudo afirma a mulher na liberdade da sua
nudez, questionando também a sociedade portuguesa muito marcada ainda por
uma visão castradora e machista da mulher. Uma imagem perfeita na sua
beleza e que ao mesmo inquietante: 'uma imagem tão deslumbrante como
incongruente, de uma mulher nua que faz um enorme véu de gaze numa velha
máquina de coser manual' (Freitas, 2011).
Outra fotografia, nesta mesma exposição, revela um dos maiores fotógrafos
ingleses, Cecil Beaton (1904-1980) muito ligado à moda, e aos retratos de
personalidades da Sétima Arte e da Casa Real Inglesa. My sister as a
Bridsmaid (inv. P.4494), de 1920, uma obra de juventude do fotógrafo, de
grande qualidade estética, apresenta a sua irmã irradiando beleza juvenil,
com um tratamento de luz sobre o vestido, o toucado e as flores brancas, em
pastilhas brancas, que empresta à imagem um carácter mágico, como uma
aparição. Paula Rego escolhe uma imagem de uma menina fada, suspensa no
tempo, inquietante, como contraponto à Machine Worker in Summer.
Absolutamente oposta a esta imagem, observe-se a pintura de Tony Bevan
(n.1957), Tender Possessions, (inv. P 5424) em que uma mulher fuma e segura
ou esconde objectos, olhando desconfiada para o espectador (Fig.3). Trata-
se de uma figura em que o género não está claramente distinto, vestida de
amarelo ouro e vermelho, pintada sobre um fundo laranja, cores do infernal,
da maldade, provavelmente do sofrimento, dados pela plasticidade dos
pigmentos naturais usados pelo pintor. Bevan revela influências dos
expressionismos germânicos que aliás se reflectem claramente nesta
personagem.
A recente exposição de Paula Rego na Casa das Histórias trouxe-nos um
impressionante aparato, obra entre a escultura e a pintura - Oratório que
resulta de uma encomenda para exposição no Fundling Museum (instituição que
guarda a memória do Fundling Hospital) em conjunto com Matt Colishaw e
Tracy Emin, que se realizou entre Fevereiro a Abril de 2010 (Freitas, 2011)
(fig.4).
Oratório apresenta-se sob a forma da peça de mobiliário de madeira de cerca
de 3 metros de altura, móvel de interior, comum nas casas nobres
portuguesas, com portas de fechar e abrir, recobertas de imagens pias
pintadas, onde se expunham os Santos da devoção dos donos da casa,
sobretudo da senhora da casa. Substituindo os Santos por personagens, dando-
lhes a terceira dimensão sob a forma de bonecos ou esculturas de trapo, a
pintora substitui as imagens das histórias da bíblia por cenas vividas por
pessoas actuais. De facto, sob convite de uma instituição inglesa e
partindo da sua experiência, a artista narra um tema dramático em
Inglaterra e não apenas naquele país: a sorte das crianças abandonadas ou
órfãos entregues a uma instituição. Paula Rego expõe o sofrimento com uma
violência de imagens difícil de suportar.
Elaborando sobre o mesmo tema, Marlene Dumas (n. 1953), recria em pintura
uma fotografia de arquivo das crianças de um orfanato de Milão – Le
Stelline , com a sua técnica de pintura – tinta muito transparente como
aguarela, usando preto e branco, com leves pontuações de cor. Esta peça é
talvez a mais importante da Sorte, exposição temporária (Março -Junho 2012)
exactamente no local desse orfanato, hoje Fundazione Stelline.
A obra de Dumas não transforma a fotografia, apenas a expõe em formato
maior e 'repassada' pelo seu método da pintura, constituindo uma recriação
da existência fotográfica das meninas, congeladas na imagem, que intitula
também Sorte, numa situação abstracta e inquietante, que não se vê, apenas
é suposta. Sorte constitui absolutamente o oposto da intenção de Paula Rego
com o Oratório onde nos exige que enfrentemos o mal e a violência que
rodeava e rodeia ainda, como sabemos, a sorte dos meninos não desejados. A
Sorte será o destino, que pode ter uma via aberta para a redenção enquanto
no Oratório o destino será apenas a martirização.
Ruth Rosengarten observou a profunda inter-relação entre o atelier e a obra
de Paula Rego, mostrando como o seu espaço de trabalho, os materiais, as
atitudes da pintora e até a sua interacção com os modelos e as cenografias
que cria no interior do ateliê, situações que surgem representados na
pintura (2009: 28-46).
Com Rosalind Krauss, Rosengarten explora as características do campo
bidimensional da Pintura de Paula Rego, caracterizado pela sua
singularidade e reprodutibilidade, em contraponto ao campo alargado da
escultura (e de alguma arte actual) no qual é expandido o seu território
conceptual dos modos mais inesperados e híbridos. Pode olhar-se para O
Oratório como uma obra de arte desse campo alargado, híbrido, não só como
existência física da peça de mobiliário, escultura e pintura, como num
campo alargado e aterrador de interpretação de significados.
Finalmente olhemos a imagem de uma mulher que nos remete para a
existência humana na obra de Paula Rego, A Deposição. (Fig.5) Que
perspectiva que sentimentos que papel das mulheres na paixão de Cristo?
Será Maria ou Madalena a mulher que sofre o pior dos martírios: a morte de
um filho ou a morte de quem se ama. Neste quadro a pintora apenas
representa uma mulher e a escada que serviu para retirar o corpo de Jesus
da Cruz. Uma imagem poderosa, inacabada, maravilhosa e plasticamente
inacabada. A imagem artística como uma realidade (in) perfeita da vida.


Bibliografia
Arruda, Luísa (2011). 'A figura feminina em Paula Rego'. In Cristina Pratas
Cruzeiro e Rui Oliveira Lopes (ed.). Arte e Sociedade, Lisboa: Faculdade de
Belas-Artes da Universidade de Lisboa: 156-161.
Freitas, Helena de (ed.) (2011). My Choice, Cascais: Casa das Histórias
Paula Rego.
Capucho, Teresa, d'Orey (2001). Paula Rego: o desenho como ponto de
referência: o desenho como factor de mudança. [Dissertação de Mestrado em
Teorias da Arte]. Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.
Fortnum, Rebecca (2007). Contemporary British women artists in their own
words, London: Taurus & Co.
Freitas, Helena de (2012), Oratório [Em linha]. [Consult. 29 Maio, 2012].
Disponível em WWW: http://www.casadashistoriaspaularego.com/.
Greer, Germaine (1998). 'Paula Rego'. Modern Painters, (nº 3): 29-34.
Howgate, H, Howgate interview Germain Greer [Em linha]. [Consult. 29
Maio, 2012]. Disponível em WWW: http://www.npg.org.uk).
Krauss, Rosalind (1991). The originality of the avant-garde and other
modernist myths, Cambridge: The Mit Press.
Rosengarten, Ruth (2009). 'A Artista no seu atelier'. In Dalila Rodrigues
(ed.). Casa Das Histórias Paula Rego. Colecção. Cascais: Casa das Histórias
Paula Rego.
Rosengarten, Ruth (2006). Narrating the Family Romance: Love and Authority
in the Work of Paula Rego (1987-2004). PhD diss., London University.
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