Paulistas x Cariocas: as Batalhas Narrativas nos Jornais durante a Copa de 1930

May 30, 2017 | Autor: Filipe Mostaro | Categoria: Narrative, Representações Sociais, Futebol, Copas Do Mundo
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Paulistas x Cariocas: as Batalhas Narrativas nos Jornais durante a Copa de 19301 MOSTARO, Filipe Fernandes Ribeiro (doutorando)2 UERJ/ Rio de Janeiro

Resumo: Acreditamos que a mídia impressa atua como porta-voz de determinados grupos que pretendem impor ou manter suas representações como hegemônicas na sociedade. Neste sentido, a poder mobilizador que o futebol adquiriu no início do século XX, o colocou como objeto de disputas simbólicas entre paulistas e cariocas para obter o controle político deste esporte. O presente artigo faz uma análise das narrativas dos jornais Estado de São Paulo, Folha da Manhã, Jornal do Brasil e A Noite sobre a participação da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1930, atentando para a linha narrativa dos veículos paulistas e cariocas que mediaram os embates travados entre as entidades APEA e CBF para definir quem “representava o país.” Nossa principal questão é: quais os mecanismos utilizados pelos jornais paulistas e cariocas ao construir a representação da seleção brasileira nesta competição?

Palavras-chave: narrativas, Copa do Mundo, jornais, representações.

Introdução Acreditamos que a mídia impressa atua como porta-voz de determinados grupos que pretendem impor ou manter sua ideologia. Dentro da ideia de esfera pública de Habermas (1984), os jornais colocam determinados temas em debate, sedimentam e proliferam representações sociais. Assim, suas narrativas vão manejar simbologias importantes na sociedade, buscar definir “quem domina” e compartilhar os sentidos produzidos por esta narrativa jornalística, legitimando discursos. Deste modo, controlar essas narrativas funcionaria como manter “verdades” sobre determinados temas. No presente artigo vamos indicar como o embate de narrativas entre paulistas e cariocas criaram diferentes representações sobre a seleção brasileira durante a Copa do Mundo de 1930. Para isso, vamos investigar as narrativas da sessão de esportes dos jornais A Noite e Jornal do Brasil (cariocas) e Estado de São 1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Impressa, integrante do VI Encontro Regional Sudeste de História da Mídia – Alcar Sudeste, 2016. 2 Doutorando pelo PPGCOM –UERJ com bolsa CAPES. Mestre pela mesma instituição em 2014. Especialista em Jornalismo Esportivo e Negócios do Esportes (2012) e graduado em Comunicação Social – Jornalismo em 2006 pela UFJF. Pesquisador do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME) da UERJ vinculado ao CNPq.

Paulo e Folha da Manhã (paulistas) atentando para as escolhas jornalísticas dos periódicos que moldaram a representação da seleção de acordo com a ideia hegemônica apregoada pelo jornal, entendida como linha editorial. Na primeira parte do artigo apresentaremos um breve histórico do contexto nacional que proporcionou ao futebol edificar uma simbologia importante na definição do que seria “o nacional”. Como objeto de mobilização popular, a polarização entre paulistas e cariocas em diferentes campos que visavam controlar determinadas representações também teve no futebol um objeto de disputas. Consideramos a competição de 1930 como o ápice desta batalha de narrativas que pretendiam destacar a seleção nacional como extensão da supremacia de um destes dois centros políticos e econômicos no Brasil pré-Era Vargas. Logo em seguida indicaremos a base teórica que nos norteará no entendimento das representações sociais e narrativas jornalísticas para chegar à análise dos periódicos. Nosso corpus compreenderá o início dos treinos da equipe que representou o Brasil na competição (8 de maio), até o desembarque dos jogadores cariocas após o torneio (31 de julho).

Futebol, Sociedade e a disputa de sentidos Consideramos a interações entre os campos (Bourdieu, 2004) e suas disputas internas a matéria-prima para a produção de sentidos. Este autêntico “jogo” entre campos pode ser exemplificado com os sentidos proporcionados com a chegada do futebol no Brasil. Victor Andrade de Melo (2009) ressalva que, a migração favoreceu e induziu a prática esportiva no país. Juntamente com os portos, fábricas e ferrovias trazidas pelas empresas britânicas, penetravam nos países sob sua influência fenômenos sociais e culturais ingleses. A ideia de modernidade era recebida com este conjunto de condutas que logo foram adicionados pelas elites nacionais a seus costumes. O esporte chegava com um sentido de sofisticação e civilidade, evidenciando uma posição social de destaque ao praticante e, sobretudo, um status de modernidade. (SILVA, 2014) Melo (2009, p.46), destaca a simbiose da vontade dos estrangeiros em continuar o padrão de sociabilidade através dos jogos, modelo comum a eles, com o desejo dos brasileiros em reproduzir hábitos culturais europeus. Portanto havia uma predisposição para que estes

diferentes campos entrassem em contato e fossem mutuamente influenciados. Falamos aqui de um jogo de trocas entre os imigrantes e os brasileiros por entendermos que, apesar do contexto favorável, a absorção de tais práticas não foi totalmente passiva, e sim, repleta de constantes resignificações e disputas em torno de sua legitimação. Dentro dos sentidos provocados pela doutrina esportiva inglesa, a ideia do corpo como algo impuro é rejeitada pelas ideias iluministas. Este pensamento foi um dos primeiros embates existentes no Brasil da época, já que sendo um país agrário e com heranças ainda intensas do escravismo, associava-se o corpo modelado e forte ao trabalho pesado e consequentemente às classes subalternas. Apesar dos jovens brasileiros, que iam estudar na Inglaterra, aprenderem nas escolas tais práticas esportivas como higienistas, foi preciso tornar comum esta ideia do corpo esportivo como algo distinto para a sociedade na época. Notamos aqui que a construção social de uma representação passa por uma ideologia que pretende ser dominante e tornar familiar o que não era familiar para a sociedade (MOSCOVICI, 2012). Essas disputas entre campos e subcampos na elaboração de sentidos, que vão respaldar grupos sociais, foram intensas ao longo da consolidação do futebol no Brasil. É interessante notar que a mesma prática higienista provocou mudanças no cenário da capital federal. Foram removidos morros e cortiços na acepção de tornar a cidade “mais habitável” e os banhos de mar passaram a ser acolhidos como solução para problemas de saúde, provocando um desenvolvimento na região da Zona Sul da cidade, que era margeada pelo Atlântico3 e pela Baía de Guanabara. Esta “aceitação” da praia propiciou também o surgimento e crescimento dos clubes náuticos, que dariam origem a departamentos de futebol, como por exemplo, Vasco, Flamengo e Botafogo. Essa fundação de associações esportivas designavam, em alguns casos, a influência dos imigrantes em manter suas práticas esportivas e ajudaram a fomentar os esportes no Brasil. Mais do que isso, os esportes ingleses viam imbricados do sentido de modernidade, o qual a sociedade brasileira pretendia adentrar. O espírito amador,

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Para melhor entendimento deste processo e suas significações na sociedade carioca ao longo da primeira metade do século XX, destacamos o trabalho de Julia O’Donnell, A Invenção de Copacabana (2013).

cavalheirismo e o fair play regiam tais significados, ao mesmo tempo em que procuravam suprimir outros setores sociais da prática deste “esporte da elite”. As classes populares que eram excluídas da vida política nacional eram igualmente alijadas do esporte bretão. Questões raciais comumente endossavam os argumentos de uma aristocracia que não pretendia dividir espaços sociais e políticos com outros atores sociais vindos do interior do país, operários, imigrantes ou recém-libertos da escravidão. Com isso, os clubes de futebol iam se formando com filhos da elite nacional. Também neste período, a presença de jogadores oriundos de classes populares em equipes de futebol e o sucesso das mesmas, como o caso do Vasco em 1923, propiciava discussões em torno da suposta distinção social do amadorismo e do presumível caráter integrador do profissionalismo4. Os demais clubes acusavam o Vasco de “amadorismo marrom” ao empregar jogadores nas empresas e comércio dos sócios do clube. Os atletas, negros e brancos semi-analfabetos, poderiam se ausentar do emprego para treinar. A crítica dos outros clubes era que com melhor preparo físico que os adversários, eles venciam as partidas. Notamos aqui como a ideia de preparação para a partida era rechaçada pelos setores que defendiam o amadorismo. A crise teve reflexos importantes no cenário do futebol carioca, com a não inclusão do Vasco na Associação Metropolitana de Esportes Amadores (AMEA), que foi criada em 1924 pelos demais clubes, sob a alegação de não possuir um estádio próprio5. (PRONI, 2000) O futebol aquela altura já tinha se transformado em um mobilizador social eficiente. As fábricas agora financiavam as equipes com o intuito de criar uma unidade e agregar os funcionários em torno de uma coletividade. Alguns empresários passaram a subsidiar clubes e pagar salários aos atletas. Jovens vindos de camadas populares viam no futebol uma oportunidade de ascensão social. Aliado ao início das transmissões esportivas pelo rádio e da intensificação das notícias esportivas, capitaneadas por Mario Filho no Rio de Janeiro e Thomaz Mazzoni em São Paulo, o esporte se transforma em 4

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Leite Lopes (1994) destaca que o jornalista Mario Filho defendia o profissionalismo como meio de emancipação dos negros na sociedade. No nosso entendimento, tal posição foi evidenciada em suas colunas, alavancando o debate em torno do tema. Aqui é meritório destacar o significado coletivo que o esporte proporciona. Os sócios do Vasco se mobilizaram em uma campanha de arrecadação para a construção de um estádio próprio e em 1927, São Januário foi inaugurado com um status de “maior da América do Sul” com capacidade para 35 mil torcedores. (Franco Jr, 2007)

um campo de forte influência na vida social, política e econômica no país. Segundo Melo (2009), ao ampliar a possibilidade participação popular, a prática esportiva se insere na lógica da cultura de massa, “e os populares começam a também poder praticar, não somente assistir” (MELO, 2009, p.73). Neste ponto, indicamos que o campo esportivo adquire uma força que o faz exercer influência em outros campos e seus agentes passam a possuir um significado mais contundente em outras esferas. Os jogadores se tornam ídolos nacionais, atingindo a esfera social, e também garotospropaganda, no caso de Leônidas da Silva6, invadindo o campo econômico, por exemplo. Para nós o papel dos meios de comunicação de massa nesta robustez do campo esportivo é decisivo.

Representações midiáticas Um autor essencial em nosso estudo sobre as representações é Erving Goffman (2007). Do seu pensamento, utilizaremos a forma com que as representações são construídas e sustentadas. De saída nos interessa a ideia de que através da “região de fachada” elaboradas pelos jornais sobre a seleção brasileira, apresenta-se aquilo que reforçará a representação que se deseja arquitetar, ocultando possíveis elementos que possam destruir a representação na chamada “região de bastidores”. Como um dos recursos utilizados para manter uma representação, Goffman (2007) cita a equipe, que seria um grupo de indivíduos que cooperam na encenação de uma rotina particular. Destacamos em nossa investigação o papel inusitado da imprensa como parte da equipe, ao contribuir decisivamente com a representação sobre a seleção nacional. Como Goffman (2007, p.132), deixa claro: "O objetivo geral de qualquer equipe é manter a definição da situação que sua representação alimenta". Outro “papel” da mídia seria o que Goffman chama de farol, que seria alguém que parece ser apenas um membro genuíno da plateia e que usa sua sofisticação não aparente em favor da equipe que está representando. Estamos falando do mito da imparcialidade jornalística

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Com a repercussão da Copa de 1938, onde Leônidas ganhou o apelido de “diamante negro” pelos franceses (anfitriões do evento), a empresa brasileira Lacta fechou um contrato com o jogador para comercializar um chocolate com seu apelido. Esta é considerada a primeira experiência do marketing esportivo nacional.

ao realizar agendamentos e enquadramentos do que ficará evidente (fachada) ou será encoberto (bastidores) na representação. Deste modo, qualquer informação destruidora da representação fica na região de fundo, o que a plateia vai captar é definido pelos meios de comunicação. Aqui, fica bem claro a ideia de estabilizar algo instável. Ao escolher o que será mostrado e o que será esquecido os meios de comunicação selecionam a parte do campo que no momento é conveniente, plasmando as representações como “verdades” sobre a conjuntura apresentada. São essas elaborações narrativas, que julgamos divergentes, sobre a seleção durante a Copa de 1930 que vamos investigar. Aqui é pertinente trazermos as considerações de Paul Ricoeur acerca da construção da narrativa. As ações de determinados atores sociais são contadas através do que Ricoeur (2010) chama de intriga. Em suma, a intriga pode ser entendida como a escolha de ações humanas que vão tornar a narrativa compreensível, com início, meio e fim e que lhe darão determinado sentido de acordo com o que é contado e aquilo que não é contado, através de escolhas e angulações. Já Luiz Gonzaga Motta (2007), por sua vez, ressalta que nenhuma narrativa é ingênua, ela cumpre um determinado propósito, com ações estratégicas na constituição de significações em contextos. A narrativa jornalística procura apagar marcas de subjetividade e interpretação do jornalista na construção da intriga, como se o fato falasse por si só, criando o “efeito de real”, colocando a notícia e seu relato como uma voz narrativa recheada de poder simbólico definindo a “realidade” da situação social. Todavia, a análise de narrativa está atenta para tais movimentos, compreendendo que aos selecionar os acontecimentos já se interfere na narrativa, almejando determinada significação (MOTA, 2013). Deste modo, nossa principal questão é: quais os mecanismos utilizados pelos jornais paulistas e cariocas ao construir a representação da seleção brasileira nesta competição?

Cariocas x Paulistas No processo de tentativa de unificação do controle do esporte nacional com a criação da CBD, destacamos a vigorosa disputa entre os dois principais centros esportivos do país. Antes de seu reconhecimento pela FIFA, em 28 de dezembro de

1916, e até mesmo após esta data, a entidade permanecia com um embate entre paulistas e cariocas que tentavam estabelecer uma hegemonia dentro da organização. Pereira (2000) destaca que os repetidos jogos entre as seleções paulistas e cariocas durante este período ocasionaram um aumento na já acirrada disputa entre os dois estados. Tal confronto também se observava no âmbito político, social e econômico. No âmbito econômico e político, a imagem de São Paulo como a locomotiva que carregava o país, despertava nas disputas ideológicas o desejo de simbolizar a modernidade que o país estava prestes a adentrar com o Estado Paulistano, em contraponto a uma imagem (também construída no âmbito dos embates entre ideologias) de que a Capital Federal, o Rio de Janeiro, repleto de belezas naturais não motivava o trabalho. Era a presumida velocidade paulistana contra uma suposta morosidade carioca. Além dessas disputas, outras questões dividiam os paulistas e cariocas na busca pelo predomínio em diversos campos no panorama brasileiro da época. Entre elas a hegemonia na política nacional, o que resultou na “Revolução Constitucionalista” de 1932, onde os paulistas tentaram tomar o poder e destituir o governo de Vargas, mas sem sucesso. Em suma, os paulistas pleiteavam de forma aguda tanto o controle do esporte, quanto da política nacional7. Um capítulo importante desta disputa foi a Copa do Mundo de 1930. O “representar o país” no primeiro torneio mundial de seleções foi um palco que refletiu a tentativa de absorver a simbologia de “autêntico representante nacional”, principalmente pelo apelo popular que o esporte suscitava na sociedade. Manejar este simbolismo era direcionar a narrativa levando em conta os interesses de cariocas ou paulistas. Duas entidades CBD (Confederação Brasileira de Desportos) e APEA (Associação Paulista de Esportes Atléticos) foram os porta-vozes de cada estado neste embate. O principal desdobramento foi a não ida dos atletas paulistas à competição. Apontaremos a seguir as linhas narrativas encontradas no corpus, indicando a formação da intriga em cada um dos jornais. A cobertura do Mundial começou muito tempo antes da estreia do Brasil na 7

A ambição paulista de permanecer no governo vai ocorrer de forma clara em 1929, quando o candidato Júlio Prestes foi indicado pelo presidente Washington Luís como candidato oficial do governo, rompendo o acordo com Minas Gerais, que esperava ocupar a presidência da república. O embate resultou no apoio mineiro à candidatura do gaúcho Getúlio Vargas, que mesmo derrotado nas eleições, assumiu o poder após a Revolução de 1930.

competição. O jornal Folha da Manhã já trazia em sua edição do dia 8 de maio a preparação da seleção com ênfase à presença massiva dos jogadores paulistas na equipe. No dia 15 de maio, o jornal anunciou que os jogadores paulistas foram os primeiros a realizar exames médicos minuciosos para a Copa. Nota-se uma tentativa de direcionar a opinião de que os paulistas eram realmente os melhores jogadores do Brasil e deveriam ser a base do time nacional. Tal proposição foi aumentando com o tempo e criando expectativas em todo o público do Estado. Mesmo antes da convocação final, alguns jogadores paulistas como Bisoca, já eram dados como certos no Uruguai. Esta elaboração traz para a fachada a atuação dos atletas paulistas, e joga para os bastidores os atletas cariocas, o que podemos inferir como uma intenção de enfatizar que os paulistas seriam os “representantes” do Brasil. Por outro lado os cariocas não criticavam os paulistas e em nenhum momento demonstraram insatisfação com a presença deles nos treinos. As narrativas cariocas passavam a impressão de que o time ficaria mais forte se o Brasil levasse para o Mundial o que tinha de melhor nos dois Estados. Detalhe que apenas uma vez a comissão técnica treinou atletas de outros estados. Foi no início de maio, em um treino entre cariocas e mineiros. A convocação final teria apenas jogadores de Rio e São Paulo, reforçando uma construção de que estes dois centros resumiriam a nação e seriam os únicos legitimados a representar o país. Após um treino em São Paulo, o número de jogadores paulistas convocados foi maior e os jornais paulistas exploraram a ideia de que até os cariocas tinham “se rendido ao seu talento”. O detalhe é que o Vasco não tinha liberado alguns de seus atletas para viajar à capital paulista e treinar. A imprensa paulista bombardeou os cariocas achando um absurdo eles não comparecerem ao treino. A insatisfação dos paulistas com alguns atletas como Fausto, jogador do Vasco, que seria eleito o melhor meia da Copa e apelidado de “maravilha negra”, era evidente e com críticas pesadas. Fausto se defendia afirmando que os paulistas não lhe passavam a bola. Aqui notamos uma escolha clara de fatos que contribuiriam para fortalecer os atletas paulistas e depreciar os cariocas. Para o treino seguinte, no Rio de Janeiro, convocou-se 15 paulistas contra 12 cariocas. A imprensa paulista elogiou a CBD, afirmando que ela era imparcial ao

convocar realmente os melhores atletas do país que, por acaso, eram paulistas. Porém, o que aconteceu foi que oito atletas de São Paulo não foram ao treino. Até os jornais paulistas criticaram, a Folha da Manhã foi contundente: “Porque não se pode conceber que estes elementos não se compenetrem da responsabilidade que lhes pesa sobre os ombros como os representantes de um país que se preza de ser um dos mais adiantados em matéria de futebol do continente sul-americano” (VIDA ESPORTIVA, 1930, 28/05, p.8). Aqui notamos a tentativa dos jornais de estimular opiniões que julgavam corretas. A APEA suspendeu os jogos para os times que cederiam jogadores a seleção e nos jornais de ambos os Estados as equipes titulares e reservas eram consideradas certas. Apenas alguns comentários sobre o pouco tempo de preparação da seleção destoavam em meio a confiança sobre o bom desempenho do Brasil na Copa. Todavia, a CBD não chamou, entre os 15 convocados de São Paulo, o atleta Feitiço, para os dois últimos treinos no Rio de Janeiro. Começou então uma guerra de narrativas para colocar os atletas preferidos dos paulistas na seleção, enquanto os cariocas preferiam, em algumas posições, os atletas que jogavam em seus clubes. A Folha da Manhã estampou em suas manchetes que a APEA deveria intervir frente à CBD e exigir a convocação de Feitiço, e aproveitou para pedir a convocação de Ministrinho e Gogliardo, jogadores que o jornal julgava serem os melhores. Citou também que a Associação não tinha nenhum representante na comissão técnica da CBD e era dever da entidade colocar membros paulistas já que a maior quantia para a viagem tinha sido fornecida pela APEA. Analisou a convocação do carioca Luisinho como absurda e a creditava a Cunha Bueno, dirigente do futebol carioca. A CBD passou a ser injusta na convocação. Os paulistas passaram a exigir um membro na comissão técnica com voz ativa nas decisões de convocações e escalação dos atletas. Aqui, fica nítido a papel do jornal em fomentar essa discussão na esfera pública com o objetivo de reivindicar e criticar a autoridade (CBD) para ter suas aspirações atendidas. Os cariocas, que já tinham total controle dessa comissão, não aceitaram e começou um jogo de culpas entre os dois estados sobre quem tinha mais razão, quem era mais patriota e quem tinha os melhores jogadores. A ideia de nação e integração nacional pelo futebol era esvaziada pela narrativa de que o “outro” Estado não poderia

integrar a “representação nacional”. O estopim que culminou no rompimento entre as entidades aconteceu no dia 12 de junho. A CBD enviou um telegrama a APEA pedindo a convocação dos jogadores paulistas. A APEA alegou não ter recebido a tempo o telegrama, fato que foi desmentido pela CBD, com o aval da empresa de telégrafos. A APEA dizia que não tinha condições dos atletas viajarem e se ausentarem de seus empregos de forma tão repentina, pois todos tinham afazeres para tratar e uma licença no serviço de um mês para a disputa do Mundial não se conseguiria do dia para a noite, além de não poderem deixar a família. A CBD ficou indignada com o não comparecimento dos atletas paulistas para o último treinamento antes do embarque. Um único fato passou a ter diferentes visões dos jornais cariocas e paulistas. A não ida se tornou um escândalo e uma afronta aos interesses da pátria nas narrativas dos jornais pesquisados no Rio de Janeiro e se tornou totalmente compreensível em São Paulo, tendo em vista os problemas dos atletas em deixar seus empregos. A ideia de verdade jornalística e de relatar os fatos com isenção e imparcialidade, noções mitológicas da construção do jornalismo, se esfacelaram ao confrontarmos as narrativas dos periódicos. A narrativa não era ingênua e tinha um propósito bem claro: defender abertamente um lado na disputa política entre as entidades. Imediatamente a CBD exigiu a presença dos atletas e a APEA respondeu que só enviaria se tivesse as suas exigências cumpridas. Nenhum dos lados cedeu. Os paulistas se indignaram com os cariocas por terem feito o treino da seleção com os jogadores cariocas no lugar dos paulistas e isso foi enfatizado nos jornais como a “gota d’água”. A CBD enviou uma nova lista por telégrafo à FIFA com os novos inscritos e os jornais cariocas passaram a tentar animar seu leitor com estatísticas de que quando a seleção jogou somente com cariocas se saiu muito bem. O sul-americano de 1923 era o mais lembrado e colocado na fachada, afirmando que os cariocas já sabiam jogar no Uruguai e que esta fora a melhor colocação dos brasileiros jogando fora de casa (segundo lugar). A representação da seleção com cariocas começava a se moldar e se distinguir da ideia de “equipe nacional”. Já os paulistas desdenhavam a seleção, noticiando positivamente apenas as

outras seleções do torneio, trilhando o rumo narrativo de escolher os pontos negativos da equipe, numa clara intenção de associar a sua “falta de força” a não presença paulista. Culpavam os dirigentes cariocas e afirmavam que já tinham aguentado “muita coisa calados durante muito tempo”, mas as “atitudes intempestivas da CBD” não seriam toleradas dessa vez. Chamavam os cariocas de mesquinhos e autoritários e não se esqueciam de criticar Fausto a todo o momento, sempre se lembrando da não convocação de Bisoca. Segundo o Estado de São Paulo eram “protegidos da CBD que moram no Rio” (SPORTS, 15/6/1930). Também afirmavam que os jornais cariocas faziam um complô contra os paulistas e execravam publicamente a APEA: “os paulistas não se submeterão aos caprichos da Capital Nacional” (SPORTS, 15/6/1930). O Estado de São Paulo declarou que Brasil não estava só no Rio e rebateu as acusações do jornal A Noite que acusou os paulistas de não serem patriotas: “Não nos falem os cariocas em patriotismo e outros sentimentos nobres. Eles não tem autoridade nenhuma para fazê-lo, porque, em todos os seus atos, apenas procuram defender seus interesses particularíssimos, as suas vaidades e suas ambições”(SPORTS, 15/6/1930, p.8). A Folha da Manhã noticiou de forma irônica a informação do número de pessoas que a delegação brasileira levaria. Entre os roupeiros e cozinheiros, satirizavam que, com o dinheiro de São Paulo, levariam até os auxiliares de servente, sub serventes e serventes, além de cachorros e papagaios cariocas para o Uruguai. Qualquer noticia era motivo para cutucar o Estado vizinho. Enquanto apenas os cariocas treinavam no Rio, os titulares venceram os reservas por 9 a 0. Os jornais paulistas avultaram o quanto era fraco o grupo de jogadores, enquanto os cariocas culpavam os paulistas por não reforçarem o time. O Jornal do Brasil alfineta, um dia depois, o time paulista, que já sabendo que não embarcaria para a Copa fez um treinamento entre eles. O placar de 6 a 2 para os reservas fez o jornal destacar: “Mas deus é justo e se encarregou de tapar a boca desses perdedores de boas ocasiões de ficar calados” (DIÁRIO ESPORTIVO, 18/6/1930). Com todo esse clima, a Seleção embarcou no dia 2 de julho. Segundo os jornais cariocas a multidão fez uma festa para a seleção, com banda de música, execução do Hino Nacional e Hino da Bandeira e, com escolta da Marinha Armada até o “vapor”

ganhar o oceano. “O Conte Verde transpunha a barra levando em seu bojo os depositários da esperança de todos os verdadeiros sportmen de nossa pátria” (JORNAL do BRASIL, 3/07/1930). A narrativa enfatiza que os “verdadeiros” esportistas nacionais estavam a bordo, em uma clara manutenção do embate contra os paulistas. Em uma parada em Santos, Araken embarcou, o único atleta paulista no time. Porém, Araken já estava em negociação com o Flamengo, após ter sido dispensado do Santos e só faltava a APEA “passar” os documentos para o Flamengo para ele se regularizar no rubro-negro carioca. Acredita-se que daí vem o nome “passe” a qualquer transação de jogadores. Após uma entrevista ao jornal A Noite (publicada no dia 12 de julho de 1930), a bordo do SS Conte Verde (navio que levava europeus e brasileiros para o Uruguai), o presidente da FIFA e idealizador do torneio, Jules Rimet, falou que só tinha visto o futebol brasileiro uma única vez. Foi durante uma excursão do Paulistano, e afirmou que se os jogadores jogassem com o mesmo entusiasmo que o povo despediu deles no Brasil, seriam campeões. Os paulistas se deliciaram com a declaração e estamparam manchetes afirmando que somente o futebol de São Paulo era conhecido pelo presidente da FIFA, enquanto os cariocas depositavam esperanças no time dizendo que o terceiro lugar seria a pior colocação do Brasil. Os paulistas enfatizavam que o futebol carioca não sabia atuar em jogos internacionais, e que não tinha se preparado para o mundial: “tem o prazer de deixar margem para que, no futuro, justifiquem os possíveis fracassos” (SPORTS, 12/7/1930). A estreia brasileira foi amplamente divulgada nas duas capitais, mas o tom dos paulistas no dia seguinte indicava o que os cariocas afirmavam: os paulistas torceram contra. O Brasil foi derrotado pela Iugoslávia por 2 a 1. O frio e os “fujões” que deveriam estar lá defendendo a pátria e não foram, os paulistas, foram os maiores culpados, segundo o jornal A Noite. Fausto foi o melhor jogador do Brasil no jogo, segundo os jornais cariocas. Já os jornais paulistas não falaram nada de seu desafeto, apenas que o julgamento de quem estava certo em toda a polêmica, se era a APEA ou a CBD, foi feita dentro de campo. Também encontramos a declaração do presidente da FIFA, Jules Rimet, que “o Brasil não estava completo”, fazendo alusão ao único time que o presidente da entidade conhecia, o Paulistano (ESTADO 15/7/1930), escolhendo a

intriga que mais convinha à narrativa paulista. O Estado de São Paulo finaliza afirmando que já estava escrito que se o Brasil perdesse a culpa seria deles, os paulistas. O Jornal do Brasil e A Noite divulgaram um protesto e um abaixo-assinado do Diário nacional “contra a atitude impatriótica e perniciosa dos paredros apeanos, que, vaidosas e egoístas negaram seu valioso auxílio dos jogadores paulistas à Confederação Brasileira de Desportos” (OS SPORTS, 1930, 16/7). Além disso, pediam o embarque imediato dos paulistas para o segundo jogo contra a Bolívia. Chegou-se a falar que o Brasil voltaria antes do segundo jogo, já que esse não valeria de nada, uma vez que a Iugoslávia, vencendo a Bolívia, já estaria classificada. Essa ideia de abandono acabou não se concretizando. Nos outros dias, mais resignados com a derrota e já “vendendo” o próximo jogo, esqueceram-se os problemas e a vitória por 4 a 0 frente à Bolívia, “encheu de orgulho” os cariocas que afirmavam que a derrota na estreia tinha sido um lapso de um grande time. Já os paulistas defenderam os jogadores e acusarem somente os dirigentes cariocas pelo insucesso na estreia. Depois da eliminação do Brasil, as notícias sobre a competição caíram consideravelmente, apenas as semifinais e a final da Copa tiveram destaque, com fotos dos tricampeões do mundo, os uruguaios, em todos os jornais investigados. Mas mesmo com a conquista do Uruguai, o Brasil ainda afirmava ser o melhor do mundo. Essa passagem do A Noite mostrava que as feridas da briga entre paulistas e cariocas demorariam a cicatrizar: Por que venceram eles?Melhores de todos? Sim. Tecnicamente? Talvez não! E por que se fizeram campeões então? Eis o motivo: o Campeonato dos uruguaios devemos à maneira como reuniram os seus melhores elementos, sem quebra do entendimento, da harmonia, de tudo isto que, paulisticamente, nos faltou (OS SPORTS,1930, 31/7).

Essa afirmação, além de criticar os paulistas, indicava uma linha narrativa da imprensa nacional após as derrotas brasileiras em Copas que encontramos até hoje: sempre algum culpado, o Brasil continua sendo melhor, e se jogasse como Brasil venceria a Copa. Um fato que ajudou a reforçar essa hipotética superioridade brasileira foi o amistoso contra a Iugoslávia no dia 10 de agosto, com a vitória brasileira, praticamente com o mesmo time, por 4 a 1.

Considerações finais Já em 1930, o futebol se tornava um estimulador de sentimentos nacionais e patrióticos. Apesar de contar com jogadores amadores e ainda não conseguir reproduzir uma narrativa coesa de representação nacional amplamente difundida pelo país como na Copa de 1938, com a presença decisiva do rádio, a seleção brasileira se tornou objeto de disputas entre campos que divergiam no contexto nacional. Obter a legitimidade do discurso de que seriam os “reais representantes da pátria” em um esporte já consolidado como uma manifestação cultural de grande apelo popular e enraizado no imaginário nacional, era uma posição almejada pelos dirigentes de Rio e São Paulo. Nesta batalha em mobilizar e direcionar a opinião pública, os jornais pesquisados tiveram um papel decisivo. Ambos narraram a mesma competição, os mesmos fatos, com os mesmos personagens, entretanto, suas linhas narrativas ao selecionar o que comporia a intriga e o que seria evidenciado e escondido demonstraram diferentes posições. Os paulistas defenderam abertamente as atuações de seus dirigentes, com o objetivo de mobilizar a opinião pública a favor deste grupo político e pressionar os “rivais”. O mesmo pode ser entendido nas narrativas dos jornais cariocas. Notamos que a tensão existente entre estes dois centros em outros campos, foi também encontrada nas narrativas sobre a seleção. A representação da seleção erigida pelos jornais paulistas seguiu a linha: “sem nós o país (equipe) não avança”, ao passo que os periódicos cariocas inclinaram-se a defender a “capacidade nacional, mesmo sem os paulistas” e acusá-los de egoísmo e falta de patriotismo após a derrota. Quatro anos mais tarde, a querela sobre a profissionalização ou amadorismo também teve como palco principal a seleção brasileira. O resultado foi uma equipe de amadores embarcando para a Itália e que foi eliminada no primeiro jogo da competição pela Espanha ao perder por 3 a 1. Estes rastros comunicacionais nos apontam a importância e a simbologia que a seleção de futebol incorporou ao longo dos anos, até chegar à expressão “pátria de chuteiras” definida pelo dramaturgo Nelson Rodrigues nos anos 1950. Tal construção foi e é, até hoje, recheada de disputas narrativas que visam dominar este notório campo

esportivo. Nossa investigação apresentou o primeiro capítulo desta disputa em Copas do Mundo que nos ajuda a compreender este processo e salientar as nítidas posições das narrativas jornalísticas como porta-voz de quem quer dominar este símbolo nacional.

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