Paulo Coelho - Uma História da Música Popular de Porto Alegre - Capítulo VIII

September 20, 2017 | Autor: Arthur de Faria | Categoria: Música Popular Brasileira
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Paulo Coelho, o rival de si mesmo

Sabe lá o que era ser o pianista exigido pela maior cantora do Brasil sempre que ela vinha a Porto Alegre? Carmen Miranda, né, ô? Toda cidade – principalmente as mais periféricas em relação às decisões da indústria cultural – tem suas figuras musicais lendárias, mais lembradas pela lenda do que por registros concretos do que fizeram. Porto Alegre tem várias dessas. Mas talvez nenhuma maior que o pianista e compositor Paulo Coelho. Nascido dia 11 de fevereiro de 1910, na então bucólica região do Alto da Bronze (na parte alta do centro de Porto Alegre), Paulo de Almeida Coelho teve uma iniciação musical tão sólida quando semelhante a de outros gênios da mesma geração, como Radamés Gnatalli (de 1906) e Dante Santoro (1904). Seu pai, Luís Machado Coelho, era professor de violoncelo. Sua mãe, Dona Aspásia, dava aulas de piano. E seu padrinho de batismo e primeiro professor era o já então respeitado compositor erudito José Araújo Vianna – de quem, aliás, herdaria o piano de estimação. O menino começara a dedilhar as teclas com apenas cinco anos. Antes de completar a primeira década de vida, estava estudando na melhor academia de piano da cidade, dirigida por outro respeitado compositor erudito: Tasso Corrêa. Mas mesmo antes disso, divertia os amigos músicos de seus pais decifrando, nota a nota, qualquer acorde que se tocasse no piano. Mesmo que fosse um mero deixar cair de mãos sobre o teclado. Muitas lendas são contadas sobre esse período de formação. Lendas cujo fundo de “verdade” está em algum lugar entre o

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acontecido e o delírio, mas que valem ser lembradas. O pioneiro multimídia Nilo Ruschel, no seu livro de memórias Rua da Praia, enumera umas tantas. Como a de que, aos cinco anos, Paulo teria sido levado por um modesto professor até a Casa Mariante (importante loja de música e editora de então), para que mostrasse seus dotes ao prestigiado professor e concertista mineiro Guilherme Fontainha, então radicado na cidade e guru de Radamés Gnatalli. O menino teria tocado um minueto trocando o tom da música na hora, já que o piano de sua casa tinha uma afinação diferente e era o que ele tinha na cabeça. Daí ter sido encaminhado imediatamente para o Conservatório. Honrando a fama da sua geração, foi mais um de seus geniozinhos precoces: com nove anos compôs sua primeira valsa. Aos 15, estava formado em piano, com diploma de honra ao mérito – na mesma escola onde Radamés se consagrara com grau máximo cinco anos antes. Só que Paulo já não era mais um menino: desde o ano anterior, assumira o posto de homem da casa. Seu pai morrera, ele mal conseguira terminar o conservatório, compensando as muitas faltas com o que tinha de talento. Mas guardou o diploma na gaveta, mudou-se com a família pra casa de uma tia e teve de se virar pra ajudar nas contas. Foi fazer o que sabia: o primeiro emprego fixo foi em 1927 como pianista da Confeitaria Central e do restaurante Rosicler – eram separados por um vão de escada onde ficava a orquestra. Além disso, trabalhava em festivais beneficientes, bailes e companhias de teatro de revista. Encarar a música popular como fonte de renda aos 15 anos não chegou a ser um baque. Dificilmente o cara se transformaria no concertista que estudava pra ser. Como aconteceu com Radamés Gnatalli, tinha um espírito solto demais pra se conformar aos cânones acadêmicos e logo descobriria um imenso talento para a música popular – e mesmo pra novidade do jazz, que começava timidamente a dar suas caras na capital gaúcha. Gnatalli estava focado ainda na música de concerto, aí Paulo pegou fácil o posto de maior pianista popular da cidade. E, dizem, dos maiores do Brasil na sua época: grande improvisador, cheio de técnica, repleto de suíngue. A diferença entre os dois é que Radamés foi embora: gravou, viajou e viveu para contar e ser contado. De Paulo, restou pouco mais do que o que contaram seus contemporâneos. Estes, com o histórico bairrismo gaúcho, o alcunharam de O pianista popular número um do Brasil. Se nunca quis ir para o Rio de Janeiro, Capital Federal, já aos 17 anos o Rio veio até ele. Na sua mais completa tradução 2

musical daqueles anos de 1920: Pixinguinha (olha ele de novo metido na história da música de Porto Alegre). Como já se comentou, o guri pianista impressionou fortemente o compositor e agora saxofonista, que ia diariamente conferir suas performances na Confeitaria Central e no Café Colombo e insistiu o quanto pôde pra que o garoto fosse embora com ele. Não foi. Preferiu seguir na Colombo, onde atraía cada vez mais gente com seu grupo formado por ele ao piano, Boquinha no violino, Carlos Naya no bandoneon, Alcides “Perna Dura” Oliveira no trompete, Marino dos Santos no sax, Juca Carvalho no contrabaixo e Américo na bateria. Uma formação mista entre típica de tango e jazz. E que, sempre que presenciava a passagem do governador Flores da Cunha indo a pé para o Palácio, atacava a música preferida do caudilho: o tango Recuerdo – o que lhes rendia invariavelmente uma gorjeta amiga. Fez, isso sim, o caminho geograficamente inverso: em plena Revolução de 30, foi contratado pela Companhia de Revistas Conchita Vila para uma excursão pelos países do Prata. Ficou quase um ano viajando. Voltou a Porto Alegre em 1931, mas, logo em seguida, se mandou de novo, agora como líder de um grupo que vai se apresentar pelo Uruguai, Argentina, Chile e Paraguai. Acaba se fixando na cidade argentina de Córdoba, onde se casa em 1933 com uma mocinha da sociedade local. E aí uma tragédia: a moça morre no parto do primeiro filho do casal. Em estado de choque, Paulo abandona o bebê com os avós maternos, volta pra Porto Alegre – onde sua mãe o esperava, muito doente – e passa a se dedicar com afinco a três obsessões: beber, engordar e destilar um humor particularmente sádico. Estamos em 1935 quando ele já faz por merecer o apelido de Gordo, com aquela silhueta que ficou para a posteridade: bigodinho à Clark Gable, óculos redondos de aro preto, cabelos e terno um tanto quanto desalinhados, muitos quilos. E o começo de uma coleção de estórias dignas de um anedotário (talvez de um bestiário). As piores envolvem o músico cego Arthur Elsner. Numa delas, Coelho passa uma noite inteira perguntando o que Arthur tinha, já que sua cabeça estava terrivelmente inchada. O baile vai seguindo e, a cada intervalo, Paulo tenta assustar mais Elsner. Este, que já sabia onde estava metido, ficou frio: só podia ser mais uma sacanagem do amigo. Só que, no final da função, vai pegar seu chapéu e o dito não entra na sua cabeça! O pobre cego surtado

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não podia ver que Paulo tinha colocado uma camada de jornais por baixo da forração. A orquestra veio abaixo. Outra anedota envolve Arthur e outro bom músico cego: o bandoneonista Juvenal de Paula Guedes. Num intervalo de um ensaio, Paulo puxa Elsner pra um canto e lhe conta que Juvenal, tremendamente mulherengo, andava se engraçando pros lados da mulher de Arthur. Não era verdade, claro. Mas foi o suficiente pra que os dois começassem a trocar gentilezas e tabefes, sabe lá Deus como. A coisa só parou quando Paulo, afetando susto, gritou: – Ah, não! De faca, não!!! Mais inofensivas eram as clássicas empulhações com músicos que se ofereciam para dar uma canja com a orquestra. Paulo cedia até seu lugar ao piano se fosse o caso. Depois de alguns compassos, combinados precisamente, eles se embretavam nas mais complicadas variações, que derrubariam qualquer acompanhante ou solista desavisado. Com o tempo, isso se tornou uma das diversões preferidas não só da orquestra como de muitos dos habitués que os seguiam em suas apresentações nos cafés e confeitarias e sabiam o que estava acontecendo. Entre esses admiradores mais próximos, havia uma supercasta: a dos que tinham acesso às nascentes Jam Sessions (Jazz After Midnight). Não chamavam assim aqui, mas a ideia era a mesma dos jazzistas americanos: depois que os lugares fechavam para os simples mortais, os músicos, sem plateia a agradar, se punham a improvisar furiosamente madrugada a dentro. Assistidos em delírio pelos poucos eleitos. * * * Logo que voltara da Argentina, Paulo retomara seu posto tanto na Confeitaria Central quanto no Café Colombo. E não demorou a misturar os melhores músicos de cada grupo na Orquestra de Paulo Coelho (também conhecida como o JazzBand de Paulo Coelho ou mesmo o Jazz de Paulo Coelho). Cujo núcleo, ressalvemos, não vinha nem da Central nem do Colombo – mas sim da limpa que deu no Jazz Cruzeiro. Todos os convidados aceitavam, numa inequívoca mostra da moral do rapaz de 25 anos de idade. A nova formação já fazia a transição entre os jazz dos anos 1920 e as nascentes big bands. E soava muito moderno. Tinha até guitarra elétrica! Em 1935! Na cidade, foram os primeiros a contar 4

com o instrumento que havia começado a ser comercializado nos Estados Unidos, sua terra natal, apenas três anos antes. Seu pioneiro local foi Antoninho Gonçalves, um dos famosos irmãos Gonçalves (Alcides Gonçalves, por exemplo, era o crooner de todos os grupos de Paulo desde 1927 – além de pianista, violonista e futuro parceiro de Lupicínio Rodrigues). Antoninho foi um dos pioneiros do instrumento no Brasil, já que o primeiro guitarrista de que se tem notícia no país é Henrique Brito (ex-Bando dos Tangarás) que, em 1932, voltara dos Estados Unidos com a novidade, e jurando que a invenção era dele. Ao longo da década de 1930, não houve páreo para eles. A formação oscilou muito, os locais onde tocavam também, mas os empregos mais frequentes eram no chiquérrimo cabaré e cassino Club dos Caçadores, no Bar Americano, e nos Cafés Vera Cruz e Florida. Vários cantores passaram pelo posto de crooner. Não por acaso, os melhores: além de Alcides, o catarinense Nuno Roland, Sady Nolasco, Nilo Rushel e Caco Velho. Este, que faria uma longa carreira (que você conferirá em outro capítulo), era vendedor de cigarros no Café Florida – daqueles de tabuleiro e barrete vermelho. Tanto passava pela orquestra batucando no tabuleiro que um dia Paulo lhe deu um pandeiro e botou pra tocar. Em seguida, uma chance como cantor, na qual arrasou e virou notícia de jornal. O resto foi talento e iniciativa. Como aconteceu também com Horacina Corrêa. * * *

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A foto 'oficial' mais conhecida de Horacina

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Uma rara foto da mulata bonita Porto-alegrense nascida Horacina Corrêa de Lima em 11 de outubro de 1913, por vezes grafada (erroneamente) como Oracina e/ou Correia, ela era uma mulata abençoada por Deus e bonita por natureza. Com um estilo vocal que por vezes lembra Dalva de Oliveira, outras, Carmen Miranda (chegou a fazer shows vestida de Carmen), antes mesmo de se destacar na orquestra, sua privilegiada goela adolescente já era assunto entre os blocos carnavalescos de Zé Pereira. Afinal, podia ser ouvida a uma quadra de distância, mesmo cercada de bumbos. Horacina era a solista do bloco Divertidos e Atravessados, que chegava a reunir 500 pessoas em seus desfiles. Logo, era uma estrela local de tal brilho, que em oito de outubro de 1936 a Rádio Farroupilha – onde cantava com o jazz de Romeu Fossati – transmite ao vivo seu casamento com o também músico Oscar Fortunato Corrêa.

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Outra pérola, na época do 'redescobrimento' de Noel A cerimônia se dá à volta de um microfone, ladeada por uma mesa cheia de sanduíches e aguardada do lado de fora por um enxame de curiosos para ver de perto seus astros. Nenhum imaginaria que a fama não vinha com grana, e que essa mesma starlet ganhava a vida como… doméstica. Depois da morte de Paulo Coelho, desfeita a orquestra, Horacina fez sucesso nas rádios locais cantando muitoLupicínio Rodrigues e com Segura o Bonde, de Alberto Carusinho Dias. Ainda na década de 1940, se muda pro Rio, é contratada pelo empresário Walter Pinto pro elenco do Teatro Recreio e grava três 78 rpm para a Continental.

Fala a verdade: tu não contratava? E ainda cantava pacas! Quando começam os anos de 1950, está circulando pela Europa como lady-crooner da orquestra do Maestro Fon-Fon. É ela, 8

por exemplo, a solista do disco Brazilian Rhythms, de 1951, gravado na Inglaterra para o selo London, e que é o primeiro LP de uma orquestra brasileira. Mas não dá sorte: mais um grupo seu que se desfaz pela morte do líder. E lá vem ela de volta, desta vez pro Rio de Janeiro. A partir daí, integra como freelancer o elenco da Rádio Nacional e participa de meia dúzia de longas-metragens, como É Com Esse Que Eu Vou e O Cortiço. Em 1954 e 56, acompanhada pela Orquestra de Leo Peracchi, lança, pela Musidisc e pela Sinter, seus dois únicos LPs: Noel Rosa eCanções Brasileiras, ambos de 10 polegadas, sendo que o primeiro só com músicas do compositor que acabava de ser redescoberto.

O lendário disco gravado pela orquestra de Fon-Fon para o mercado europeu, Horacina de crooner A partir daí, correm lendas. O certo é que foi pro mundo. Segundo alguns, acabou na Argentina. Segundo outros, passou uns tempos em Paris e depois mudou-se para o Cairo, no Egito. Onde, dizem, teria comprado um Hotel e se dedicado a gerenciá-lo. Mas há ainda os que defendem a tese de um fabuloso casamento com um conde italiano! De certo, duas coisas: sim, seu rastro se perdeu. E seja qual for a versão, de tédio é que ela não morreu. * * * Estávamos lá, na recém-fundada orquestra de Paulo. O esquema era corrido, mas não puxado: tocavam nos cafés e confeitarias de segunda a sexta, das seis da tarde à meia-noite, com intervalo pra um pulo na Rádio Gaúcha. Tudo perto, Rua da Praia (rebatizada oficialmente de Rua dos Andradas, artéria central do centro da cidade) e imediações. No máximo, um pulo até o bairro do Moinhos de Vento, nas cercanias, onde ficava a sede da rádio.

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Se um turno de seis horas com intervalo lhe parece muito, é bom saber como funcionava a coisa: tocavam uma música, davam uma descansadinha, tocavam outra. Uma música de cada vez – o que hoje, ou mesmo poucos anos depois de Paulo, seria impensável. No sábado, paravam pelas 22h30 e dali saíam direto pra algum baile, que geralmente começava às 23h (tudo era realmente perto naquela Porto Alegre). Chegavam em cima da hora sem problema. Afinal, não custa lembrar, não existia ainda aquela desalentadora experiência humana chamada passagem de som. Era tudo acústico. Um microfone pra voz, se tanto. Nos bailes, não perdiam chance de fazer uma média que sempre impressionava. A música de abertura era sempre a mesma, a chamada característica (hábito, aliás, mantido pelas orquestras até os anos de 1960). Já a segunda, invariavelmente, era o hino do clube onde estavam tocando. Uau! Mas e se o clube não tivesse hino? Fácil: Paulo compunha um, dava de presente e ganhava gratidão eterna – e novos contratos. Em 1935, a Rádio Farroupilha estreia como a terceira emissora da capital (antes dela, nascera a Difusora), querendo tudo do bom e do melhor. Isso inclui o grupo que estava na Gaúcha. Passam a ganhar bem melhor na nova rádio, fechando um contrato de exclusividade no qual já constam como as grandes atrações na transmissão inaugural, ao lado de Mário Reis e Carmem Miranda, que vieram de hidroavião do Rio de Janeiro pra ocasião. Falando em Rio, pouco antes do polpudo contrato com a Farroupilha, Paulo finalmente aceitara um convite carioca. Com seu fiel escudeiro, Marino dos Santos, assina com o Cassino Atlântico, assumindo o piano da prestigiadíssima orquestra de Romeu Silva. E ali, numa das principais orquestras da Capital Federal, era apresentado como nada menos que “o melhor pianista brasileiro”. Romeu é logo contratado para apresentar-se no pavilhão do Brasil na Feira Mundial de Nova York. E aí, creiam, bate a inefável saudade do pago. Nova York? Paulo não topa, e volta pra Porto Alegre junto com Marino. Entre 1936 e 37, ele se associa eventualmente ao também bandleader paulista Clóvis Mamede, radicado em Porto Alegre, montando o Jazz de Paulo Coelho – Clóvis Mamede. É por essa época que passam a chamá-lo de Paul Whiteman gaúcho (Whiteman era um dos maiores bandleaders da música americana de então. Branco, gorducho e de bigodinho, como Paulo, estava popularíssimo graças ao filme The King of Jazz, onde o king era ele). 10

A matéria de página inteira na Folha da Tarde de três de junho de 1936, intitulada Paulo Coelho fala à “Folha da Tarde” sobre o seu próximo plano de acção, dá a dimensão da sua importância naquele momento: Uma figura curiosa sob todos os aspectos, Paulo Coelho. Bohemio, dessa bohemia que não conhece preconceitos, o Gôrdo vive apaixonadamente voltado para a sua arte. Depois que o jazz venceu em todo mundo, com grave escândalo para os inadaptados dos novos tempos, Paulo tornou-se um líder da matéria. Hoje, no Brasil, difficilmente haverá quem lhe arrebate o título de Príncipe da música leve. As suas excursões periódicas aos principaes centros da America Latina lhe valem por uma afirmação de valor sem artifício. Na Argentina, o homem domina o tango e arrebata leigos e profissionaes. No Rio, o notável pianista deixa seu nome firmado entre os expoentes da nossa música, como intérprete seguro e expontaneo. E, entretando, apezar de todas as tentações elle vem sempre terminar no Rio Grande, onde installou seu Quartel General e de onde não faz questão de sair. Paixão pela terra? Conveniência do profissional? Não. Desejo apenas de ficar á vontade, movimentando-se entre os seus, sem protocollos nem attitudes forçadas. O Gordo é, acima de tudo, um campeão da malandragem. Prefere viver no meio dos que lhe comprehendem e não lhe azucrinam os ouvidos com leis e regulamentos de sociabilidade. É preciso, porém, tomar a malandragem no bom sentido do termo: no sentido de viver de accordo com os impulsos do seu temperamento, sem freios nem pôses estudadas. Fazer aquillo que lhes agrade, como lhe agrade a quando lhe agrade. E isso não é fácil. Pelo menos, traz conseqüências nem sempre agradáveis. Mas Paulo Coelho é elle mesmo e nunca se desfigura. Na regência de um jazz, diga-se tudo que se quizer, mas vamos tirar o chapéo deante do talento do rapaz. Porque elle é braço de verdade.

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"A" Foto Na reportagem, Paulo fala também sobre como passou a tocar jazz e fox, além de sambas e marchas, porque o público pediu. E anuncia a nova formação da orquestra, que ficaria eternizada numa fotomontagem espetacular. Em fusão contra um fundo negro, vemos no alto, à esquerda, o contrabaixista Flávio Corrêa. A seu lado, no centro, o baterista Americo, cujo bumbo ostenta um close da redonda cara de Coelho. Cara que se repete no canto direito superior, de perfil. Bem ao centro, empertigadíssimo, Antoninho Gonçalves, com cara de assustado, empunhando sua guitarra. No canto inferior esquerdo, Flamarion no trombone e os dois trompetistas – Ernani Oliveira e Clóvis Mamede – tocam seus instrumentos apontando para o ar, mirando Antoninho (que talvez por isso pareça tão assustado). A seu lado, um microfone – então uma novidade, lembre-se –, em big close. Por fim, no canto inferior direito, quatro figuras que parecem homens-banda, com variados saxofones pendurados ao pescoço e clarinetes na boca: Zacharias, Maurício, Marino dos Santos e Matte. Um jazz e tanto. Que precisava, com tanta gente, de arranjos escritos na nova linguagem das big bands americanas, naipes e tal. E aí uma das questões da reportagem: como era muito difícil conseguir os arranjos originais, importados dos Estados Unidos, Paulo começava a escrever os seus. O que o aponta como um precursor, ao lado do mais famoso colega de geração: Tenho certeza de que se procurássemos estylizar a nossa música o successo seria outro. Radamés Gnatalli, no Rio, já pretendeu fazer isso mas parece que não lhe compreenderam (em 1936, Radamés ainda era um quase anônimo pianista da recém-inaugurada Rádio Nacional, depois de ter passado por várias emissoras cariocas). Tenho idéa de aproveitar todos os sambas antigos, dos melhores, e actualizal-os dentro desse critério. Será uma tentativa, não por falta de repertório, mas pelo desejo de fazer alguma coisa nova. (…) Não há dúvida que os conjunctos regionaes são interessantes. Aquella coisa de flauta, dos violões, dos cavaquinhos, da cuíca, do pandeiro, porem, não offerece margem para integrar a nossa musica no rytemo moderno. São sempre a mesma coisa. Com o jazz já a coisa muda de figura. É a orchestra do século. Elle resolve todas as situações. Infelizmente, quando a geração de Paulo estava no seu auge, já não existiam a Casa A Electrica e seus Discos Gaúcho. O 12

resultado é que não há registros fonográficos de quase ninguém. Alcides Gonçalves ainda gravou alguns discos. Já Paulo com sua orquestra, um único 78 rpm. Mas que é uma pérola raríssima: a gravação feita em 1938 de seu maior clássico, Alto da Bronze. Esta lá: Horacina Corrêa acompanhada da Jazz-Band de Paulo Coelho. O disco foi feito em Buenos Aires e para a RCA Argentina, invertendo os vetores de uma década antes – quando eram os argentinos que iam a Porto Alegre gravar na Casa A Electrica. O acetato que contém os 2min54s mais raros da discografia gaúcha foi gravado durante a gloriosa aventura da orquestra por terras castelhanas já anunciada na reportagem de dois anos antes:Meu sonho sempre foi voltar a Buenos Aires com uma orchestra que se fizesse respeitar. Excursão que começou da pior forma possível… *

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A turma da orquestra all-star nos anos 1930, não exatamente a formação que foi pra Buenos Aires. Mas nessa foto é fácil achar Paulo, mais - na frente, cheio de charme e malemolência -, Marino dos Santos e seu sax. E, ao lado, a primeira guitarra elétrica destas terras, nas mãos de Antoninho Gonçalves. Embarcaram todos num trem via Uruguaiana. Uma longa viagem, já que só até a cidade fronteiriça são 650 km. Mas valia a pena: haviam sido contratados pra inauguração da Radio Municipal de Buenos Aires. A bem da verdade, nem todos foram (Arthur Elsner, cego, não quis se arriscar em terras desconhecidas). O bando que pegou o trem tinha 11 figuras: Paulo (piano), os irmãos Flávio (contrabaixo) e Oscar Corrêa (bateria), Alcides Gonçalves (crooner), Horacina Corrêa (lady-crooner) – como se viu, mulher de Oscar – Marino dos Santos (sax alto e clarinete), Fritz Preuss (sax tenor), Ernani Oliveira (trompete) e Waldemar Moura (trombone). Por fim, mais irmãos 13

Gonçalves: Antoninho (guitarra), Juvenal e Walter (ambos na percussão). A primeira surpresa foi quando chegaram a Buenos Aires e descobriram que o prédio da emissora não tinha nem sido terminado! E pior: pelo contrato, até a inauguração não poderiam tocar em nenhum outro lugar. Nem rádio, nem cabaré, nem confeitaria… Quem segurou as pontas foi Marino, que conseguiu um bico numa orquestra – mesmo que escondido, e com um sax emprestado, já que os instrumentos estavam retidos pelo contratante como garantia de que não se apresentariam mesmo em outros lugares. Máfia total. Mas com a graninha levantada por Marino conseguiam pelo menos comer e enrolar o pessoal do hotel. Vista aos olhos de hoje, a situação parece totalmente absurda. Mas na época… …também era. É quando entra em cena o jornalista Rivadávia de Souza. Foi ele que, de Porto Alegre e não se sabe como, chorou as pitangas com o diretor da futura emissora. Chorou bonito: depois de muito argumentar, conseguiu uma licença provisória pros rapazes fazerem uns bicos, a liberação dos instrumentos e até um adiantamento de cachê. Rivadávia de Souza: um talento desperdiçado pelo nosso corpo diplomático. A partir daí, se a coisa começou mal, terminou gloriosa. Arrebentaram na inauguração da rádio, tocando ao lado de atrações mundiais, como o francês Maurice Chevalier, e locais, como Hugo Del Carril. A partir de então, estavam liberados pra se apresentar onde quisessem, e os convites choviam. Inclusive da poderosa Radio El Mundo, a mais importante da Argentina e uma das mais importantes do Planeta, escutada nos cinco continentes – com especial ênfase no Rio Grande do Sul, onde o pessoal escutou ao vivo, em ondas curtas, o sucesso dos porto-alegrenses. Da El Mundo partem para o Tabaris, então o mais importante cassino-nightclub-cabaret da América do Sul. Só faltava a glória de gravar um disco. Pois é justamente aí que pinta a proposta da RCA argentina. De um lado, registrariam uma canção de Paulo, Alto da Bronze. Do outro, uma marcha de um compositor argentino (marcha e autor cujos nomes se perderam), interpretada pela orquestra. Alto da Bronze era uma das parcerias com o letrista Plauto de Azambuja Soares, jornalista da Folha da Tarde, que atendia pelo apelido de Foquinha e morreu aos 23 anos de idade durante uma reportagem participativa (demais) sobre corridas de carros. A letra, em 1938, já falava da melancolia de uma época perdida. Virou 14

imediatamente hino da cidade, homenagem aos tempos idos e àquele canto da colina onde Porto Alegre nasceu – perto da Praça da Matriz, rumo à Usina do Gasômetro, centrado por uma praça: Alto da Bronze, cabeça quebrada, praça querida Sempre lembrada, a Praça 11 da molecada Praça sem banco, do rato branco e do futebol Da garotada endiabrada das manhãs de sol És a eterna lembrança Do tempo feliz em que eu era criança Tempo em que essa era da minha infância a grande quimera Hoje, eu, pobre profano, me lembro de ti e dos meus desenganos Oh, meu Alto da Bronze dos meus oitos anos… A música que embala tais versos é um belo tema de andamento médio, entre o samba-canção e o samba-choro, orquestrado nas regras da arte do final dos anos de 1930. Seu lançamento oficial havia sido em 19 de novembro de 1937, ao vivo, na Farroupilha. Horacina a cantara ao meio-dia e Alcides Gonçalves deu repeteco à noite, com sucesso imediato. Durante o primeiro minuto da gravação, clarinete, sax alto, sax tenor, trombone e trompetes com surdina alternam-se entre o tema e seus contracantos, tocando toda a melodia. Aí, uma bela sucessão de modulações encerrada por uma cascata de notas de Paulo entrega a bola pra Horacina. Ela, cheia de bossa, canta a canção na íntegra, duas vezes, com uma cama de sopros ao fundo. Enquanto isso, a cozinha de bateria, percussões e baixo conduz com sutil malemolência e o piano pinta e borda. Ao final, a orquestra modula de novo, repete a última volta da melodia e desemboca num final grandiloquente, digno de filme da Metro (só o que nunca aparece, de jeito nenhum, é a tão comentada guitarra elétrica que, então, Antoninho tocava pioneiramente no Rio Grande do Sul – o que se ouve é um cavaquinho). Algo de que pouca gente se dá conta é que são raros os exemplos de sambas dessa época que, como Alto da Bronze, fogem da estrutura estrofe-refrão. Curare e Da Cor do Pecado são os exemplos clássicos, ambos de Bororó. Alto da Bronze poderia estar nessa lista, se fosse conhecida fora dos limites de sua cidade natal. Outros detalhes que chamam a atenção são as pequenas surpresas da melodia, com algumas peculiares dissonâncias em finais de frases. Isso, sem falar na orquestração, na qual os sopros já prenunciam a revolução que Radamés Gnattali faria no ano 15

seguinte, usando-os para dar balanço ao arranjo e, oficialmente, definindo o que seria a orquestração no samba. Na verdade, Alto da Bronze já é um samba bastante (bem) orquestrado, sob todos os aspectos. A gravação é a culminância do ano que o grupo passa na terra de Gardel. Como se viu, parte dos seus feitos era escutada em Porto Alegre através das rádios argentinas. E, aí, no retorno à cidade, em julho de 1938, quatro meses depois, só faltou tapete vermelho na estação do trem: foram aclamados como verdadeiros heróis locais. Contratados imediatamente pelo Dancing Oriente viram a banda da casa de um dos melhores night-clubs dos anos 1930 e 40 na capital gaúcha. Segue fixo na Farroupilha, mas na noite e no futebol Paulo é pouco fiel: toca em todos os melhores dancings e cabarets – chega a ter um bar na Rua da Ladeira, que faliu por falta de organização. E, sempre frenético torcedor, a conselho de amigos colorados troca o Grêmio pelo Internacional. Estamos em fins de 1940 e começaria a melhor fase da vida do Jazz-Band de Paulo Coelho, com um Alcides Gonçalves recém-voltado de temporadas cheias de moral em Buenos Aires e no Rio de Janeiro (pelas peculiaridades anatômicas de ambos, até tinham preparado números em nome da dupla O Gordo e o Magro) e muitos contratos pela frente. Não fosse por um detalhe: Paulo estava doente. Mas não deixava abater, como anunciava a coluna rádio da Folha da Tarde de 9 de agosto de 1940: Paulo Coelho, depois de uma longa enfermidade, voltou às suas atividades ao microfone da “mais poderosa” e nas reuniões do Club do Commercio. Não duraria muito.

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22 de setembro de 1941. Duas páginas da Folha da Tarde... Gordíssimo – 120 quilos –, dia 21 de setembro de 1941 estava indo ver um jogo do seu amado Internacional quando, três da tarde, foi fulminado por um ataque cardíaco no meio da rua. Estava a poucos metros da sua casa, na João Abbott, 58, no bairro Petrópolis. Segundo alguns, morreu ali. Segundo o jornalista Carlos Reverbel, ainda foi socorrido por um táxi, mas morreu no veículo. Tinha 31 anos, um dia antes tinha tocado pela última vez na Farroupilha. Onde era, então, o maior salário do rádio gaúcho, o maior nome do showbizz local. Alto da Bronze acabava de ser regravada em Buenos Aires, por uma orquestra local, e fora um sucesso no Carnaval. O pesquisador gaúcho Marcello Campos descobriu que o que ele tinha, na verdade, era tuberculose. Só que não parecia tuberculoso aquele homem gordo que, pouco tempo antes, levantara da cama para passar para a partitura sambas de um jovem compositor de Santiago do Boqueirão, chamado Túlio Piva (Túlio bateu na porta, ele atendeu de pijamas, e fez o serviço na hora).

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... para marcar a morte do herói local Mas é o que está no atestado de óbito assinado pelo dr. Maurício Kothlar – detalhe: ex-saxofonista de uma das formações da orquestra de Paulo. Causa mortis: tuberculose pulmonar. Síncope cardíaca. Foi sepultado no cemitério da Santa Casa de Misericórdia com velório e enterro pagos pela Farroupilha. Se sua fama como compositor e bandleader era de respeito, a maior reputação era mesmo como pianista. Há anos não havia ninguém para competir com ele pela pole position local. Desde 1937, os jornais aclamavam: não há em Porto Alegre e mesmo no Brasil – não é exaggero – quem não o conheça. Os speakers das rádios completavam: Paulo Coelho, o rival de si mesmo! Eventualmente, ainda se dava ao luxo de fazer concertos de piano solo indo de Beethoven a Liszt. Oferecendo, de brinde, exibições gratuitas de destreza, como tocar dois pianos ao mesmo tempo – ah, essa é fácil: com dois pianos a mão, num ângulo favorável, qualquer pianista faz isso. Só que ele tocava uma música diferente em cada um.

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Em abril de 1961, 20 anos de morte de Paulo, ...

... a então prestigiadíssima Revista do Globo faz...

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... uma histórica matéria de 4 páginas sobre o então...

... quase esquecido pianista e compositor

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