Paulo Mendes Campos, um poeta da poesia

June 2, 2017 | Autor: Claudio Willer | Categoria: Literatura Comparada
Share Embed


Descrição do Produto

Paulo Mendes Campos, um poeta da poesia
Claudio Willer
Que a reapresentação deste artigo, originariamente na revista
digital Agulha em 2007, reaproveitando algo que já havia
publicado no Jornal do Brasil, caderno Idéias na década de 1990,
seja entendida não apenas como exame das qualidades de Paulo
Mendes Campos como poeta, mas como reclamação ou cobrança por
sua poesia não haver sido reeditada. Apenas a coletânea Melhores
poemas (Global) pode ser encontrada em sebos. É pouco.

A crônica é tida como gênero menor. No entanto, sendo o principal ponto de
encontro entre literatura e jornalismo, o espaço mais propriamente
literário na imprensa periódica, ensinou muita gente a ler, e certamente
estimulou alguns a escrever. Tivemos poetas que também foram cronistas, a
exemplo de Drummond, e, reciprocamente, cronistas poéticos, como Paulo
Mendes Campos. Sua coletânea O amor acaba - Crônicas líricas e existenciais
(Civilização Brasileira, 1999 e reedições) começa com uma exuberante prosa
poética e termina com epigramas irônicos. No prefácio, seu organizador,
Flávio Pinheiro, promete mais edições de sua obra; subentende-se, assim,
que na seqüência viria também sua poesia propriamente dita. Enquanto esta
não chega, retomo algo que escrevi em 1991, logo depois de sua morte (no
caderno Idéias do Jornal do Brasil). Lá, observava que, já no primeiro dos
poemas de O domingo azul do mar (obra incluída em Poemas de Paulo Mendes
Campos, Civilização Brasileira/INL, 1979), intitulado "Os domingos",
encontramos argumentos em favor da sua qualificação como poeta importante.
São imagens de uma poesia visual, descrições de paisagens fantásticas onde
"as pétalas caíam no dorso das campinas", e nos deparamos com "os vidros
fáceis das horas preguiçosas", enquanto, entre outros paradoxos, "a noite
aclarava sofrimentos".
Imagens como essas lembram Pierre Reverdy, o primeiro Paul Eluard,
surrealista lírico, ou um Murilo Mendes menos agônico. São recorrentes em
Paulo Mendes Campos, assim como o domingo de seu poema-título,
especialmente em "Os dias da semana":
Só o domingo não é um dia da semana,
Só o domingo é
Alto e anterior ao calendário,
Só o domingo pertence
Ao que é invisível ao homem,
Só o domingo se põe como um cavalo vermelho
Sobre as nuvens do Rio de Janeiro.
Este poema está em uma das partes de O domingo azul do mar intitulada "O
tempo da palavra", assim mostrando que o dia não-útil da semana é uma
metáfora do "outro tempo", dos instantes privilegiados da poesia, bem
distantes do prosaico dos dias úteis, embora neles a poesia também se faça
presente: "Quinta, quinta há de ter insetos na serra", pois "Os dias da
semana são crivados de enigmas".
Como poeta, e como personagem e protagonista de sua própria obra, vivendo o
que escrevia e escrevendo sobre sua vida, Paulo Mendes Campos quis que os
domingos invadissem o restante da semana, impregnando-a com seus temas e
obsessões: a morte, o amor, a memória, a experiência do poético, a leitura
da poesia.
Ainda a observar, neste poema inicial, outras das suas qualidades
literárias, o modo como terminava poemas, com uma frase curta a interromper
o fluxo das imagens, sintetizando-as e fechando-as: "Eu, prisioneiro, lia
poemas nos parques,/ Procurando palavras que espelhassem os domingos./ E
uma esperança que não tenho". Ou no lírico "Poema de dezembro: "Nós
adoramos a praia e ficamos eternos". Esse talento para fechar poemas,
talvez o houvesse adquirido na leitura de Paul Eluard. Não há mais como
esclarecer isso, mas quando ele termina "Sentimento do tempo" afirmando que
"O tempo é meu disfarce" lembra um pouco Capitale de la douleur, onde
Eluard encerra com "Le temps se sert des mots comme l´amour".
Ele nos dá muitos outros exemplos de poetização do calendário. No "Poema de
dezembro" há um jogo ou confronto entre uma referência temporal, o mês do
título, e a anulação do tempo através da experiência poética. Dela faz
parte a presença do mar, recorrente neste que talvez tenha sido o mais
carioca dos escritores mineiros, não só por sua participação na vida
literária do Rio de Janeiro, mas também pelo modo como, em crônicas e
poemas, celebrou sua paisagem, suas cenas urbanas, seus crepúsculos à beira-
mar. Há nele um Rio de Janeiro até implícito, pois seu "O bêbado"
certamente vagava por Copacabana, enquanto via que "já vomita no mar a lua
pálida".
Virando a página dessa esgotada e inencontrável edição de O domingo azul do
mar, vemos, coexistindo no mesmo espaço, dois poemas bem distintos. Um
deles, o soneto "Auto-retrato", além de curto, é conciso. O outro, longo,
em prosa, é o importante "Poema das aproximações", com seu turbilhão de
imagens afins ao surreal, e com mais paradoxos: "Dos deuses movia-me o
pensamento a crueldade nativa". Há, aqui, um manifesto romântico em favor
da imaginação, da plena liberdade de criação: "Deixai que eu fale. Permiti-
me a ventura. O verbo copia a alma. Tudo o que a alegria consente é bom.
Deixai que eu fale. Calai a palpitação da máquina".
Os dois poemas, "Auto-retrato" e "Poema das aproximações", lado a lado, na
mesma seqüência, evidenciam outra qualidade da poesia de Paulo Mendes
Campos, sua natureza plural. Como poucos, até mais que seu amigo Vinícius
de Moraes, foi capaz de trafegar dos mais delirantes poemas em prosa,
passando pela dicção coloquial, até belos sonetos, formalmente impecáveis,
como "Amor condusse noi ad una morte", "Tempo-Eternidade" e o denso "O
Visionário".
Disponível no mercado, encontrável em livrarias, existe a coletânea Os
melhores poemas de Paulo Mendes Campos (Editora Global, 1990) avalizada por
Guilhermino César, que a preparou e prefaciou. Pode ser um viés de
apreciador, querendo que o impossível, que tudo conste de uma antologia,
mas é uma pena que nela não esteja incluído o "Poema das aproximações", nem
estejam a "Elegia 1947", também com ecos surreais. E "Sentimento do Tempo",
especialmente interessante pelo modo como, em seu interior, acomoda-se a
pluralidade, passando da forma aberta à metrificada e rimada, sem quebrar o
equilíbrio:
[...]
Mas há imagens que não podia explicar; me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer por que deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer por que o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
E um coração ardente em coisa fria.
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
[...]
Esse caráter plural da obra de Paulo Mendes Campos – "fonte de muitas
vozes", no dizer de Fábio Lucas - talvez explique porque ele foi tão
conhecido como cronista, e por fazer parte de uma confraria mitológica de
mineiros radicados no Rio, todos excepcionais cronistas (Fernando Sabino,
Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino, acrescidos ainda do capixaba Rubem
Braga), e relativamente pouco reconhecido como poeta, com uma crítica ainda
reduzida, aquém de sua qualidade.
Estudiosos e comentaristas de literatura gostam de classificar e catalogar,
transformando a história da poesia em uma série temporal de movimentos e
tendências. E Paulo Mendes Campos é difícil de ser classificado e
catalogado. Pode, ou não, ser tido como integrante da Geração de 45. De um
lado, há sua poesia metrificada, coerente com a restauração tradicionalista
de 45 em seu sentido mais estrito, especialmente nos sonetos. De outro, o
que sua obra tem de desarrumado e anárquico. E não apenas pelas imagens
afins ao surrealismo. Há, ainda, ressonâncias do primeiro modernismo, de
22, e uma propositada confusão entre poesia e crônica, evidente nos textos
em prosa que inseria em seus livros de poesia, sobretudo em "O tempo da
palavra". Reciprocamente, muito do que ele publicava na revista Manchete e
em outros lugares em que colaborou, e que está nessa edição da Record, era
poesia em um espaço para crônicas.
Enfim, pode ter sido tudo, menos um poeta sectário, preso a uma só matriz
ou ideário. Isso fica mais evidente ainda pela amplidão de suas escolhas de
traduções e paixões literárias, bem documentadas na interessantíssima
coletânea Diário da Tarde (Civilização Brasileira/Massao Ohno, 1981),
também merecedora de releitura e reedição, na qual, sempre no modo
coloquial, vai do futebol e dos roteiros de bares a Christian Morgenstern e
Borges, passando por Dante, Cummings, Eluard, Montale, Auden e tantos
outros.
Voltando ao roteiro por sua poesia, sempre acompanhando a seqüência de O
domingo azul do mar, chegamos à "Ode a Federico García Lorca", importante
para que se entenda a própria poética de Paulo Mendes Campos. Essa
homenagem a Lorca é quase toda uma montagem de citações de seus poemas,
articulados em um fluxo, em algo contínuo. É interessante como ele deu
preferência a passagens do Poeta em Nova York, obra mais anárquica do
andaluz, e a mais pautada por um confronto entre vida e morte
(inicialmente, Lorca quis chamá-la de Introdução à Morte). Ao valorizar o
Poeta em Nova York, antecipou-se a estudiosos e comentaristas modernos como
Ian Gibson, que a consideram sua obra mais importante, matriz para a
compreensão do restante. Diferiu da visão, corrente nos anos 40, quando
escreveu esse texto, que deixava de lado o aspecto mais radical e
cosmopolita de Lorca, em favor da imagem de poeta regional e apolíneo.
Nessa Ode, Paulo Mendes Campos mostra que a criação poética é uma leitura e
um diálogo, mesmo frustrado por ser impossível, pela ausência do
interlocutor: "Devolvo-te meu canto imperfeito no espanto de um menino que
lançasse uma pedra no fundo de um poço e em vão esperasse o baque final tão
cheio de paz". Poeta da intertextualidade, da leitura da poesia, insiste
nisso na "Loa literária do desengano", onde comenta e santifica personagens
de seu amplo leque de preferências, que abrangeu de Dante Alighieri até
Colette, mais as irmãs Brontë, Baudelaire. Ibsen… E no autobiográfico
"Fragmentos em prosa", que se inicia informando: "Nasci a 28 de fevereiro
de 1922, em Belo Horizonte,/ No ano de Ulisses e de The Waste Land,/ Oito
meses depois da morte de Marcel Proust,/ Um século depois de Shelley afogar-
se no golfo de Spezzia". Assim, outros escritores constituem um calendário,
são marcos que conferem sentido à passagem do tempo e à vida.
Referências como essas justificam lembrar a ênfase de Octavio Paz, em seus
ensaios, na afinidade ou nas analogias entre leitura, tradução e criação na
poesia moderna. Por exemplo, em Os filhos do barro, ao dizer que "o poeta
não é o "autor" no sentido tradicional da palavra, porém um momento de
convergência das distintas vozes que confluem em seu texto". E em seus
ensaios sobre tradução, ao insistir que "tradução e criação são operações
gêmeas". Paulo Mendes Campos tinha consciência da relação íntima entre
essas três operações, como fica evidente no já mencionado Diário da Tarde,
pelo modo como alternou, dentro de cada capítulo, artigos, crônicas,
traduções e epigramas. Sob esse aspecto, procedeu corretamente Guilhermino
César, em Os melhores poemas, ao incluir algumas dessas traduções. Além
disso, utilizou como epígrafe da antologia a seguinte frase do poeta-
cronista-tradutor: "Não entendo a poesia; a poesia é que me entende". Não
há como deixar de associar uma frase dessas ao que Octavio Paz havia dito,
em Os filhos do barro, a propósito da "soberania do texto sobre seu autor-
leitor e seus sucessivos leitores", e, em O arco e a lira, na famosa
afirmação de que "o poeta não se serve das palavras: é o seu servidor".
Possivelmente, algo do que Paulo Mendes Campos teve de retraído, avesso ao
exibicionismo, relacionava-se a essa concepção do autor como veículo,
servidor da poesia.
Apesar de reduzida em suas dimensões, sua obra poética, por ser tão plural,
ainda deixa muito a ser comentado. É claro que a presente leitura é algo
enviesada, destacando a imagética, as associações livres mais presentes em
sua obra de juventude. Esses são, contudo, traços de sua poesia
indispensáveis para a compreensão do restante, para se enxergar o quanto a
simplicidade e o tom coloquial de alguns textos de maturidade são o
resultado de uma depuração, uma espécie de ascese literária. Um ensaio mais
extenso também deveria tratar de sua dimensão memorialística, da
recuperação do passado no período final de sua criação literária. E, ainda,
do modo como a memória individual vai se confundindo com a tentativa de
reconstituição de uma memória coletiva, nacional, especialmente em
Testamento do Brasil.
É preciso examinar, sem transformar um ensaio em réquiem, o tratamento dado
por ele ao tema da morte, especialmente no poema-crônica "Em face dos
últimos mortos". Ou em "Os lados", onde diz: "Há um lado em mim que já
morreu./ Às vezes penso se esse lado não sou eu". E, mais ainda, em "A
morte", ao proclamar: "Vai comigo a morte, vou comigo à morte", concluindo:
"Morte, tens em mim tua vitória". Mas não foi um poeta fúnebre ou mórbido,
um Augusto dos Anjos moderno, nem um corroído por um novo mal du siècle.
Esses trechos coexistem com outros de poderosa afirmação, como o "Hino à
vida".
A propósito da complementaridade vida/morte, pode-se voltar a citar Octavio
Paz, ainda em Os filhos do barro: "

Viver no agora é viver cara a cara com a morte. O homem inventou as
eternidades e o futuro para escapar da morte, porém cada um desses
inventos foi uma armadilha mortal. O agora nos reconcilia com nossa
realidade: somos mortais. Só diante da morte nossa vida é realmente
vida. No agora nossa morte não está separada da nossa vida: são a
mesma realidade, o mesmo fruto.
Sem qualquer intenção de sacralizá-lo, reconhecendo que sua obra poética
tinha algo de inconcluso, desigual e às vezes circunstancial, mesmo assim
cabe insistir em que uma edição completa de sua poesia, além de satisfazer
leitores, provavelmente viria estimular críticos e estudiosos.
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.