Paulo Otávio Barreiros Gravina LEITURAS DO FANTÁSTICO: Um estudo de caso -J. J. Veiga Dissertação de Mestrado

May 24, 2017 | Autor: Paulo Gravinacisve | Categoria: Mimesis, Fantastic Literature, Literatura Fantástica, Theory of Mimesis, José J. Veiga
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Descrição do Produto

 

   

Paulo Otávio Barreiros Gravina

LEITURAS DO FANTÁSTICO: Um estudo de caso - J. J. Veiga      

Dissertação de Mestrado    

Dissertação de Mestrado apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras do Departamento de Letras da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientadora: Profa. Pina Maria Arnoldi Coco        

Rio de Janeiro Março de 2009

 

Paulo Otávio Barreiros Gravina

LEITURAS DO FANTÁSTICO: Um estudo de caso - J. J. Veiga

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de PósGraduação em Letras do Departamento de Letras do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profa. Pina Maria Arnoldi Coco Orientadora Departamento de Letras – PUC-Rio

Profa. Miriam Sutter Medeiros Departamento de Letras – PUC-Rio

Prof. Sergio de Souza Salles UCP

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 24 de março de 2009    

 

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e da orientadora.  

Paulo Otávio Barreiros Gravina

Graduou-se em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 2005 e fez diversos cursos nas áreas de Letras e Filosofia que o conduziram ao presente mestrado e a esta proposta de dissertação.

                                                                                                              Ficha Catalográfica              

Gravina, Paulo Otávio Barreiros LEITURAS DO FANTÁSTICO: um estudo de caso – José J. Veiga / Paulo Otávio Barreiros Gravina ; orientadora: Pina Maria Arnoldi Coco. – 2009. 95 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Inclui bibliografia

     

1. Letras – Teses. 2. Fantástico. 3. Mimesis. 4. Ditadura. 5. Narrativa. 6. Emulação. 7. Simulação. 8. Identidade. 9. Veiga, José J. I. Coco, Pina Maria Arnoldi .II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. IV. Título. CDD: 800

   

 

A todos que me ajudaram nesse momento.

   

 

Agradecimentos

Ao meu pai, por ter me apoiado de todas as maneiras possíveis durante esses longos anos de mestrado. À minha mãe, pelo apoio e por ter sido uma leitora atenta e paciente. À minha irmã Patrícia, por ter estado sempre ao meu lado. À minha irmã Paula, pelos bons conselhos. À Caroline, com todo o carinho, pelos doces momentos. À minha orientadora, Pina Coco, por ter me conduzido ao mundo das letras. À Miriam Sutter, por ser a professora mais dedicada que conheci. Aos meus leitores (minha mãe, minha orientadora, Miriam Sutter, Lucas Viriato & Nastassja Pugliese) pela atenção que muitas vezes eu não tive. Aos meus amigos, por simplesmente me ouvirem. A CAPES, pelos auxílios concedidos.

   

 

Resumo

Gravina, Paulo Otávio Barreiros; Coco, Pina Maria Arnoldi (Orientador). LEITURAS DO FANTÁSTICO: Um estudo de caso - J. J. Veiga. Rio de Janeiro, 2009. 95p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O presente trabalho se ocupa de fazer uma releitura da obra do escritor goiano José J. Veiga com base nas diversas revisões que têm ocorrido no conceito de fantástico dentro da literatura e na noção de realidade nas obras de alguns filósofos. É uma revisão geral da obra de Veiga, inclusive retornando à leitura original que muitos críticos fizeram do autor no contexto da ditadura e destacando os principais elementos que aparecem na maior parte da obra do autor.

Palavras-chave Fantástico, mimesis, releitura, crítica, ditadura, narrativa, emulação, simulação, identidade, visão, José J. Veiga.

             

 

Abstract    

Gravina, Paulo Otávio Barreiros; Coco, Pina Maria Arnoldi (Advisor). READINGS OF THE FANTASTIC: A case study of J. J. VEIGA. Rio de Janeiro, 2009. 95p. MSc Dissertation – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The present study engages itself in read anew the work of José J. Veiga, a brazilian writer from Goiás. This reading is based on several reviews that have been made to the concept of fantastic literature and to the notion of reality in the work of some philosophers. It is a general reexamination of Veiga’s works, which includes a return to the original readings made by most critics during the period of dictatorship in Brazil. The main elements of most of his work will be recollected.

Keywords Fantastic, mimesis, rereading, criticism, dictatorship, narrative, emulation, simulation, identity, vision, José J. Veiga.  

                       

 

Sumário    

Introdução.............................................................................................................. 10 1. A crítica ............................................................................................................. 12 Por que reler a obra de José J. Veiga? ................................................................... 12 As opiniões de alguns críticos ............................................................................... 14 A crítica da crítica ................................................................................................. 24 2. O fantástico........................................................................................................ 26 A definição do fantástico....................................................................................... 26 O fantástico na literatura ....................................................................................... 27 A volta aos gêneros ............................................................................................... 29 Um gênero fantástico? ........................................................................................... 36 O elemento fantástico ............................................................................................ 39 3. A mimesis .......................................................................................................... 44 O contexto ............................................................................................................. 44 O conceito.............................................................................................................. 46 A mimesis narrativa ............................................................................................... 49 A abertura da mimesis............................................................................................ 54 4. A releitura .......................................................................................................... 59 Metodologia........................................................................................................... 59 O autor ................................................................................................................... 62 A obra .................................................................................................................... 66 “Eles só existem aqui em Platiplanto”................................................................... 73 “A máquina chegou uma tarde...”.......................................................................... 82 “Será que as nossas tempestades também são brincadeira?” ................................ 86 Conclusão .............................................................................................................. 89 Referências Bibliográficas..................................................................................... 92    

   

 

“Lera muito sobre as coisas reais e conversara com uma infinidade de pessoas. Filósofos bem-intencionados haviam lhe ensinado a examinar as conexões lógicas das coisas e a analisar os processos que formavam suas idéias e fantasias. O encantamento se fora e ele havia esquecido que a vida toda não passa de um conjunto de imagens no cérebro, entre as quais não se diferenciam as que resultam de coisas reais e as que nascem de sonhos interiores, e que não há motivo para valorizar mais umas do que outras. O hábito entorpecera seus ouvidos com uma supersticiosa reverência por tudo que tivesse uma existência física e tangível e o tornara intimamente envergonhado de viver num mundo fictício. Os sábios lhe haviam dito que suas fantasias ingênuas eram fúteis e infantis e ainda mais absurdas porque seus atores persistiam em fantasiá-las como cheias de significado e propósito enquanto o cego cosmos batalha cegamente do nada para algo e de algo para o nada sem se importar ou tomar conhecimento dos anseios ou da existência das mentes que bruxuleiam por um instante ocasional na escuridão. Haviam-no aprisionado a coisas que são e depois explicaram-lhe o funcionamento dessas coisas até o mundo perder todo o seu mistério. Quando se queixava almejando fugir para os reinos crepusculares onde a magia molda todos os pequenos fragmentos vívidos e as associações privilegiadas da mente em visões de ansiada esperança e ávido deleite, arrastavam-no para os recém-descobertos prodígios da ciência, instando-o a encontrar magia na voragem do átomo e mistério nas dimensões do céu. E, quando não conseguiu encontrar essas dádivas nas coisas cujas leis são conhecidas e mensuráveis, disseram-lhe que lhe faltava imaginação e maturidade porque preferia as ilusões oníricas às ilusões de nossa criação física.” — H. P. Lovecraft, A Chave de Prata.

   

Introdução

José J. Veiga é um caso raro na literatura brasileira, pois começa a ser esquecido justamente no momento em que a literatura fantástica, tão predominante em sua obra, começa, mais do que nunca, a ser apreciado tanto no Brasil quanto no resto do mundo. Enquanto Gabriel García Marquez e Jorge Luis Borges lotam as estantes de livrarias e são discutidos em aulas de literatura, Veiga fica sobrando como algo já passado, como um primeiro representante no Brasil, mas ainda muito incipiente, de um gênero que só agora atinge sua maturidade no continente Sul-Americano. Embora sua obra tenha começado antes e terminado depois do período da ditadura (seu primeiro livro, “Os Cavalinhos de Platiplanto”, foi publicado em 1959 e o seu último, “Objetos Turbulentos”, é de 1997), Veiga acabou sendo muito associado a esse período, algumas vezes por interesse maior da crítica do que dele próprio. Sua fama maior se deu no final da década de 60 e nas décadas de 70 e 80 — época em que ele se transformou em uma espécie de moda. Com o fim da ditadura, em 1985, a obra de Veiga começou a perder seu fôlego, sendo mais lida em relação à época, de maneira que tudo de fantasioso que havia em seus escritos não passaria de um modo de vencer os bloqueios da censura ou de satirizar, através da caricatura, o regime militar. A maior parte da crítica até hoje ainda sustenta essa posição sobre sua obra, por vezes nem mesmo o considerando um autor fantástico e situando-o no contexto dos movimentos de resistência e protesto. A importância política desses movimentos foi e é enorme, mas eles acabam, enquanto crítica literária, perdendo muito da sua força nos dias de hoje, já passados mais de 20 anos do fim da ditadura, que os justificava e dava fundamento. A meu ver, isso explica, em grande parte, o desinteresse que rodeia o nome do autor desde então, um desinteresse que creio ser injustificado, pois há outros elementos tão ou mais importantes em sua obra e que podem ser claramente discernidos em um contexto literário mundial. Este trabalho será uma releitura de sua obra nesse sentido.

  11

Também, devido a novas possibilidades de leitura desenvolvidas desde então, creio que será possível traçar uma nova abordagem mais abrangente e compreensiva da obra de Veiga, que permita o equilíbrio, em termos de leitura, dos elementos fantásticos e realistas de sua obra, sem privilegiar nenhum dos dois. Para isso, serão vistas as idéias sobre o fantástico nos trabalhos de Tzvetan Todorov e Christine Brooke-Rose e, com maior importância, as novas idéias sobre o conceito de mimesis (termo normalmente traduzido como “representação” ou “imitação”) principalmente nas obras de Paul Ricoeur e, mais recentemente, de Cláudio Veloso, que propõem uma atualização do pensamento de Aristóteles. O primeiro capítulo do trabalho, portanto, avaliará as opiniões dos críticos e teóricos de literatura sobre Veiga, levando em consideração se houve uma progressiva mudança de foco, do seu lado fantástico para o seu lado político, nas leituras do autor. O segundo lidará com o estado da questão da literatura fantástica, seguindo uma linha lógica de raciocínio que vai dos trabalhos de Northrop Frye até Christine Brooke-Rose. O terceiro, como já mencionado, analisará as releituras do conceito de mimesis nas obras de Paul Ricoeur e Cláudio Veloso, que virão auxiliar uma interpretação mais elaborada e delineada da obra de Veiga, já que as noções desses teóricos permitem uma leitura das vias do imaginário que não ignora o contexto social. O quarto e último capítulo fará uma análise direta da obra de Veiga com os conceitos supracitados, considerando se a releitura tentada foi ou não bem sucedida. Haverá também uma leitura mais profunda dos contos “Os Cavalinhos de Platiplanto”, “A Máquina Extraviada” e “Diálogo da Relativa Grandeza”. Termino essa introdução com uma citação do próprio José J. Veiga, extremamente elucidativa no que diz respeito à sua obra: Mas resumir o assunto de uma história, de um livro, é tirar-lhe o sangue. Pode-se resumir Moby Dick, por exemplo, dizendo que é a história de perseguição a uma baleia branca; ou que o Dom Quixote é a história de um cavaleiro espanhol que atacava moinhos de vento a lançadas. Uma história, ou um livro, quando bem realizados, já são resumos da aventura humana na terra.1                                                              1

Em entrevista no prefácio do livro “O Trono do Morro”. VEIGA, 1988, pg. 5. 

   

1 A crítica

Por que reler a obra de José J. Veiga? Se Homero fosse lido como um propagandista contrário ao povo troiano, provavelmente não sobreviveria ao tempo. Embora pareça ridículo comparar Homero com Veiga, tal comparação é capaz de lembrar como todos os autores, por melhores que sejam, estão sujeitos às infinitas contingências do tempo. Seja para Homero ou para Veiga não é diferente. Mas o caso de Veiga é ainda pior, já que o autor é normalmente associado, mesmo indo contra suas próprias declarações e vários elementos de sua obra, a um contexto político passado. “O homem é por natureza um animal político”, disse o próprio Aristóteles2, mas está claro que ele — o homem — não é só isso e nem tampouco é só política a obra de José J. Veiga. Dessa maneira, há uma certa tensão na maioria das leituras da obra de Veiga, uma que acentua o “real”, ou seja, que considera sua obra como uma reflexão documental de uma época e outra que privilegia o “imaginário” dando primazia aos elementos fantásticos e muitas vezes deixando de lado a época em que ele escreve. Quando este trabalho pretende uma releitura da obra de Veiga, não é para resolver essa tensão, que penso ser inconciliável quando os dois termos são colocados no mesmo plano. A análise é justamente no sentido de diferenciar o que há de crítica política e de construção ficcional, localizando os elementos que apontam para uma via e para a outra de maneira a revelar os aspectos de sua obra que podem identificá-lo como um dos pioneiros da literatura fantástica no Brasil. No decorrer da análise, ficará bem clara a presença desses elementos também na obra de outros escritores do século XX, o que demonstra, talvez, que Veiga estivesse bem menos engajado do que se pensava e bem mais consciente de seu próprio projeto literário do que a maior parte da crítica pôde reconhecer no contexto da ditadura. Nesse sentido, se a leitura estiver correta, creio que há quase                                                              2

Conquanto nunca se deva esquecer que, para Aristóteles, a frase tinha o sentido de que o homem é um animal capaz de constituir e conviver na polis.  

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que uma necessidade de reler a obra de Veiga como sendo possivelmente o primeiro representante brasileiro de um movimento literário que se impôs durante todo o século passado na Europa e nos EUA e só agora começa a ser lido com mais cuidado e a ser mais bem compreendido: o fantástico. A tensão entre o real e o imaginário, ou entre o real e o ficcional, já bastante presente no século XIX, ganhou uma nova intensidade e uma nova direção no início do século passado, sobretudo a partir de Kafka3. Compreender essa tensão significa abrir inúmeras possibilidades de novas leituras para a obra de José J. Veiga, e não só dele, e dar um novo sentido a todo o pensamento e à cultura de uma época. Voltando ao real e o imaginário, Aristóteles, no “De Anima”, questiona:

Se a imaginação é aquilo segundo o que dizemos que nos ocorre uma imagem — e não no sentido em que o dizemos por metáfora —, seria ela então alguma daquelas potências ou disposições segundo as quais discernimos ou expressamos o verdadeiro ou o falso?4

O questionamento de Aristóteles, e sua resposta5, conduz o pensamento por um caminho bem interessante: se o imaginário pode expressar o verdadeiro e o falso, repensar o imaginário significa rever todo o conceito de realidade6 e, como sempre se está imaginando, também a própria idéia de realidade está sempre sendo revisada por cada um.

                                                             Conforme diz Milan Kundera: “A imaginação adormecida do século XIX foi subitamente despertada por Franz Kafka, que conseguiu o que os surrealistas postularam após ele, sem realmente realizar: a fusão do sonho e do real. Na verdade, esta é uma antiga ambição estética do romance, já pressentida por Novalis, mas que exige a arte de uma alquimia que somente Kafka descobriu cem anos mais tarde. Essa enorme descoberta é menos o acabamento de uma evolução que uma abertura inesperada que faz saber que o romance é o lugar onde a imaginação pode explodir como num sonho e que o romance pode se libertar do imperativo aparentemente inelutável da verossimilhança.” KUNDERA, 1988, pgs. 19-20. 4 ARISTÓTELES, 2006, pg. 110. 5 Ele conclui que a imaginação deriva do ato de perceber, que se divide em três partes: percepção dos objetos sensíveis próprios (que é verdadeira ou minimamente falsa), percepção da correspondência entre objeto e nome (que pode ser falsa) e percepção dos objetos em relação a outros objetos (que também pode ser falsa). Portanto, a imaginação é verdadeira no primeiro sentido e pode ser falsa nos outros dois. Cf. ARISTÓTELES, 2006, pgs. 112-113. 6 Na percepção das relações entre objeto e nome e entre vários objetos, mas não na simples apreensão dos objetos por cada sentido.  3

   

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Assim, se faz necessário reler a obra de José J. Veiga porque o imaginário de nossa época, e com isso toda a recepção e leitura, mudou completamente em relação ao da geração passada. As opiniões de alguns críticos

Wilson Martins, em 1968, antes dos “anos de chumbo” da ditadura faz uma leitura de Veiga como um autor fantástico. A análise de Martins é de enorme discernimento, defendendo que o fantástico “não pertence à literatura”7, pois “exige por parte do leitor uma adesão que não se obtém por meios propriamente literários.”8 Seguindo isso, ele diferencia o fantástico da literatura, afirmando que o grande escritor da literatura fantástica deve tomar o fantástico como uma possibilidade de literatura e não o contrário. Assim, Martins considera os livros “Os Cavalinhos de Platiplanto” e “A Máquina Extraviada” duas obras de um grande criador da literatura fantástica, excluindo somente “A Hora dos Ruminantes”, como uma obra puramente ideológica o que, para ele, afastaria a natureza mágica da narrativa. Depois, por coincidência seguindo distinções aristotélicas, Martins afirma que “o fantástico só tem compromissos com a magia literária e se realiza por meio da verossimilhança.”9 Por isso, para ele: na literatura não se trata do que ocorre, mas do que poderia ocorrer; e, como a vida tem a sua parcela inegável de supra-real, a tarefa do escritor fantástico é captar o mistério e transformá-lo em realidade virtual pelos meios habitualmente postos à sua disposição, reconduzindo o que poderia existir fora da literatura para a plena existência dentro dela.10

Daí, Martins parte para comentários de admiração sobre os contos de Veiga e, depois, faz uma leitura do fantástico como possível de ser reconhecido pelo estilo e pela visão:

                                                             7

MARTINS, 1994, pg. 97. Idem. 9 Idem. 10 Idem.  8

   

  15 No conto realista, a parcela do que o leitor ignora é conhecida de todos ou de alguns personagens e, sem dúvida, conhecida do autor; no realismo mágico, todos sentem a existência mediúnica desse fator, todos percebem que a ele se deve, precisamente, a realidade tal como se configura aos nossos olhos e, entretanto, ninguém seria capaz de captá-lo, de exprimi-lo em termos narrativos. Na verdade, a captação se faz sutilmente graças ao estilo, graças a um tipo de visão que nos transmite o mundo a ‘n’ dimensões, para além das fronteiras euclidianas em que a ficção geralmente se situa. Aqui se revela a diferença substancial entre o contista de peripécias e o contista de atmosfera. No primeiro caso, a solidez do conto repousa na intriga, no relevo dos caracteres, na surpresa do desfecho, na originalidade da história; no segundo, ainda que todos esses elementos devam existir da mesma maneira, acresce-lhes um ‘contexto’ que deles não depende. Assim, José J. Veiga pode escrever uma história absolutamente ‘realista’, como ‘Onde andam os didangos?’ ou ‘Na estrada Amanhece’ e vencer, desde a primeira linha, a servidão ingrata do real sem perder nenhuma das virtualidades do verossímil.11

A leitura de Martins do fantástico coincide em diversos sentidos com a desta dissertação. Faltaria só a Martins determinar mais exatamente a localização do real e do fantástico — pois Martins é relativamente obscuro na explicação de como o leitor capta o fator do fantástico, mesmo quando o relaciona com questões estilísticas — na obra de Veiga. Martins termina seu ensaio reclamando que “José J. Veiga ainda não alcançou a larga reputação a que tem direito, nem o reconhecimento generalizado de sua estatura entre os contistas brasileiros mais importantes do período.”12 Como escreveu em 1968, Martins não podia saber que “Os Cavalinhos de Platiplanto” teria três edições publicadas só no ano de 197413, e que o autor ainda lançaria mais onze títulos até 1997, com um total de 500 mil exemplares vendidos14 — o que não foi o bastante para dar-lhe o merecido reconhecimento por parte do público. Martins atribuiu, na época, a falta de reconhecimento ao fato de que sua arte seria “aristocrática pela qualidade”15. Com o endurecimento da ditadura, as análises posteriores vão cada vez mais se voltando para o social e ideológico na obra de Veiga, saindo do fantástico e entrando no real, saindo do mágico e entrando no crítico, saindo do, por assim                                                              11

Idem, pg. 98. A leitura de Martins, nesse caso, parece aproximar José J. Veiga de Kafka, conforme será visto no quarto capítulo. 12 Idem, pg. 99. 13 Vide GOMES, 1977, pg. 507. 14 Segundo CASTELLO, 1997. 15 Obra citada, pg. 99.

   

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dizer, “aristocrático”, ou ligado a recursos literários e imaginários apenas reconhecidos pelos leitores treinados, e entrando no dia-a-dia do cidadão brasileiro da época. A palestra de Antonio Candido, apresentada em uma conferência nos EUA em 1972, sobre o que estava ocorrendo de literatura no Brasil até aquela data já começa a refletir essa mudança de foco. Segundo Candido: Aqui, não podemos falar de memórias, nem de relato, nem de ficção, nem de poesia, nem mesmo de estilo. É a literatura anti-literária, traduzindo uma espécie de erupção inconformista. Falar em inconformismo nos leva à presença da política na literatura brasileira dos últimos anos. O atual regime militar do Brasil é de natureza a despertar o protesto incessante dos artistas, escritores e intelectuais em geral, e seria impossível que isto não aparecesse nas obras criativas, por mais interessadas que estejam em experimentos de fatura.16

Claramente aqui a política e o inconformismo passam a tomar, em geral, o primeiro plano na análise das obras dos escritores brasileiros. Mas, para Candido, essa é ainda apenas uma tendência entre muitas outras na literatura da época.17 Ele não chega a citar Veiga na palestra, só que as tendências políticas ganham, na exposição, uma abrangência imensa, que chega até a explicar o motivo da construção de realidades interiores e imaginárias: existe em escala nunca vista antes a repressão sobre os indivíduos; ela levou milhares de intelectuais à prisão, à expatriação, à privação de cargos e funções; ela leva dezenas de milhares, cada dia e cada minuto, ao que se chamou no tempo do nazismo de ‘migração interior’, isto é, a fuga para dentro de si mesmo, o silêncio, a auto-repressão. Este estado de coisas foi grave de 1964 a 1967, abrandou em 1968, mas no fim desse ano entrou numa fase que dura até hoje e pode sem exagero ser qualificada de terrível.18

Alfredo Bosi, em um livro de 1976 que trata do conto brasileiro da época, indo contra a leitura de Martins dos dois livros de contos de Veiga, coloca o real e o imaginário já no mesmo plano nessas obras:                                                              16

CANDIDO, 1981, pg. 25.  Candido destaca também outras questões de igual importância às questões políticas, afirmando, por exemplo, que as tendências da vanguarda “não estão mais interessadas na transposição do mundo, e sim em criar pequenos mundos autônomos, que podem lembrar mais ou menos a realidade do mundo que conhecemos.” Idem, pg. 24. 18 Obra citada, pg. 25. 17

   

  17 Mas não é o mistério tematizado e, até certo ponto, feito de propósito para produzir perfis de estranheza, como o que se dá no conto espectral de Murilo Rubião ou no conto anfíbio, meio documento, meio fantasia, de José J. Veiga, mineradores ambos dos veios insólitos da experiência. O fantástico irrompe, nestes, como o intruso no ritmo do cotidiano; e o evento novo, que poderia soar apenas imprevisto e aleatório, passa a exercer, na estrutura profunda da trama, a função de revelador de um processo inexorável na vida de um grupo (‘A Usina atrás do morro’, de J. J. Veiga), ou na vida de um homem (‘A Flor de Vidro’, de Murilo).19

O fantástico de Veiga vai passando então a ser um processo social, uma interrupção em um tipo de convívio, algo mais ou menos semelhante à instituição do próprio regime ditatorial. Essa interrupção, para Bosi, alcança também o nível da linguagem: Quanto aos exploradores do insólito, os que entre nós têm perseguido com maior insistência a nota do fantástico, um Murilo Rubião e um J. J. Veiga, diferem bastante no modo de enfrentar o trabalho da forma. Que é mais neutra e opaca em J. J. Veiga, mais complacentemente literária em Murilo Rubião. A diferença de processos talvez se deva à das filiações. O autor dos Cavalinhos de Platiplanto encrava situações de estranheza em um contexto familiar, que evoca discretamente os costumes e cenas regionais. São contos que compõem a alegoria do destino, pessoal ou coletivo, com as peças de um realismo verbal sóbrio no trato das personagens e dos fatos, tudo organizado em um sistema narrativo bastante veraz e conseqüente, mas afinal cheio de surpresa. A palavra intrusa, nessas histórias contadas com tanta naturalidade, se parece com a hora da morte, que pode cortar a vida em qualquer tempo, mas é sempre a inesperada.20

É possível interpretar o fantástico, para Bosi, como a quebra do “ritmo do cotidiano”, do “realismo verbal sóbrio” e do “sistema narrativo bastante veraz”, que estariam ligados a uma construção narrativa ou “estrutura profunda” montada para causar surpresa e estranhamento no leitor. Isso seria algo mais ou menos próximo de alguns contos de Edgar Allan Poe. Este trabalho, ao contrário, acentuará o fantástico em Veiga como a continuidade do elemento estranho no cotidiano, como a sua perfeita adaptação e convivência com o dia-a-dia dos personagens, algo muito mais próximo de Kafka21 do que de Poe.                                                              19

BOSI, 1976, pg. 14. Idem, pgs. 20-21.  21 Segundo Camus, em um ensaio sobre Kafka: “Um ator imprime ainda maior força a um personagem trágico se se abstém de exagerá-lo. Se ele é comedido, o horror que suscita será descomedido. A tragédia grega, quanto a isso, é rica de ensinamentos. Numa obra trágica, o destino sempre se faz perceber melhor sob as faces da lógica e do natural. O destino de Édipo é 20

   

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No entanto, quando a leitura de Bosi começa a ler Veiga privilegiando uma estrutura narrativa (e social) fechada, isso vem a ser prejudicial, porque contradiz alguns elementos presentes nos escritos de Veiga, para a obra como um todo. Por exemplo, a idéia de um “realismo verbal sóbrio” vai contra a imitação por parte do narrador de vozes infantis, que não trazem nenhum traço de sobriedade e freqüentemente aparecem sobretudo nos contos de Veiga. No ano seguinte, em 1977, Maria Consuelo da Cunha Campos destaca algumas leituras do conto brasileiro da época e revela que a visão social já estava cristalizada na análise de alguns autores. Ela transcreve, por exemplo, uma apresentação de Dirce Riedel, que situa o seguinte ponto como principal no conto brasileiro nos últimos dez anos: Nos últimos dez anos, tem predominado, no conto brasileiro, um compromisso com a realidade sócio-econômica e com a condição humana, compromisso que de certa maneira retoma o primeiro modernismo de 22 e o regionalismo social de 30, acentuando o experimentalismo e o humor lúcido e cruel do primeiro, assim como o engajamento do segundo quase sempre sem o seu tom doutrinário.22

A “realidade sócio-econômica”, então, passa para o primeiro plano e todas as demais questões são entendidas em relação a ela. Como um ponto secundário, aparece: Não raro, a realidade mais profunda, porque desconhecida ou temida, apresentase pela via do absurdo e do surrealismo.23

Essa “realidade mais profunda” serve apenas como uma maneira de ressaltar a tensão político-econômica presente em uma ditadura onde a censura impede que a verdade seja dita ou revelada.

                                                                                                                                                                    antecipadamente anunciado. Está sobrenaturalmente decidido que ele cometerá o homicídio e o incesto. Todo o esforço do drama é mostrar o sistema lógico que, de dedução em dedução, vai consumar a infelicidade do herói. Anunciar-nos apenas esse destino inusitado quase não é apavorante, pois é inverossímil. Mas se a necessidade daquilo nos é demonstrada no quadro da vida cotidiana, da sociedade, do Estado, da emoção familiar, aí o pavor se consagra. Nessa revolta que sacode o homem e o faz dizer: ‘Isso não é possível’ já existe a certeza desesperada de que ‘isso’ é possível.” CAMUS, 1989, pgs. 152-153. 22 CAMPOS, 1977, pg. 9.  23 Idem.

   

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Maria Consuelo também diz que, na visão de Affonso Romano de Sant’Anna, a tendência do fantástico nos contos “corre paralela aos latinoamericanos e utiliza-se da sofisticada técnica de montagens, explorando o fantástico com intenções políticas”24. As duas visões destacadas por Maria Consuelo são já completamente sociais e apresentam, na falta de maiores explicações, algumas incoerências. A realidade mais profunda que seria a própria realidade política do Brasil na época já fora considerada no primeiro ponto como o compromisso engajado e direto da maioria dos escritores, não podendo ser “desconhecida ou temida”. Ademais, não creio que seja possível definir uma via do absurdo e do surrealismo, pois ambos os conceitos são abertos e possuem compreensão ilimitada. Já no caso da leitura de Sant’Anna, a idéia de explorar o fantástico não parece compatível com intenções políticas, uma vez que o fantástico é propriamente uma forma de saída da realidade concreta. Poderia até se usar o fantástico, enquanto metáfora, com intenções políticas, o problema está só em explorá-lo, já que explorar o fantástico seria afastar-se do concreto e, portanto, também do político. Em 1979, Silviano Santiago coloca a censura como motivo principal da escolha do fantástico: Ora, na medida em que existe um sintonizador que é jovem e que está só lendo obras que se exprimem adequadamente pelo realismo dito mágico, obras tanto nacionais (é o caso de Murilo e J. J. Veiga, por exemplo) quanto estrangeiras (é o caso do romance latino-americano e em particular de García Marquez e Cortázar), passa a haver uma única forma literária que é predominante entre os estreantes na literatura. Neste nível, sim, é que poderíamos ver como a censura — sem intuito programático algum, é claro — operou restrição formidável entre as opções de escrita ficcional que tinham os jovens escritores. Não é por coincidência que o boom da forma conto na década de 70 se dá através do realismo dito mágico.25

Ele explica melhor essas idéias em um ensaio posterior (de 1988):

                                                             24

Idem, pg. 8. Infelizmente, os textos originais tanto de Dirce Riedel quanto de Affonso Romano de Sant’Anna não puderam ser encontrados, mas aqui esses autores servem apenas como exemplos ilustrativos da visão social que predominava em algumas leituras da época. 25 SANTIAGO, 1982, pg. 53. 

   

  20 Estilisticamente, a literatura brasileira pós-64 pôde, por um lado, retomar uma lição do passado, ajustando-se — após a obra genial de Guimarães Rosa e o esforço universalista dos vários concretismos — a princípios estéticos fundamentados pelo realismo dos anos 30. Pôde também, por outro lado, aproximar-se da literatura hispano-americana que lhe é contemporânea, abrindo mão do naturalismo na representação, em virtude de problemas graves de censura artística. Neste segundo caso, adentra-se o texto literário por uma escrita metafórica ou fantástica, até então praticamente inédita entre nós. Valendo-se, pois, de uma escrita realista ainda comprometida ou de uma outra comum aos latino-americanos, a literatura pós-64 guarda sempre a obsessão temática a que nos referimos26

Santiago é um dos raros críticos que, nessa época, relaciona a literatura de Veiga com realismo mágico latino-americano e com outros autores estrangeiros e nacionais. Só que, claramente, sua análise está muito mais preocupada com a censura como definidora da escolha dos escritores do que com qualquer outra coisa. Aqui se bate nas portas da intenção autoral e não se pode fazer isso fora do terreno da pura especulação — a não ser que sustentado por declarações do próprio autor. A ditadura já ocupa aqui todos os recantos públicos e privados das criações literária e ficcionais e parece censurar e influenciar mais a crítica do que propriamente a literatura. Depois, em 1981, José J. Veiga passa a ser lido — em um livro de Antonio Hohlfeldt que relaciona algumas leituras e análises do autor — como um autor que retrata “relações bem objetivas com realidades brasileiras”27, passa a ser um homem “achacado e invertido pela sociedade que o rodeia”28, seu tipo de conto passa a ser “‘alegórico’ e não ‘fantástico’ ou ‘maravilhoso’”29 e seus símbolos passam a refletir realidades brasileiras da época, como “aquela do conto ‘O Galo impertinente’ com a construção da Transamazônica, por exemplo”30. A leitura de Hohlfeldt já é totalmente social e fechada, trazendo alguns elementos do estruturalismo e retomando alguns conceitos já apontados por Bosi: o escritor mantém-se, porém, sempre fiel aos mesmos enredos e às mesmas preocupações: de um lado o confronto entre um mundo conservador, fechado, relativamente equilibrado, e outro que vem romper a sua tranqüilidade, invadindo-o, contestando-o, destruindo-o, extensão de um universo oposto,                                                              26

SANTIAGO, 1989, pgs. 12-13. HOHLFELDT, 1981, pg. 95. 28 Idem, pg. 96 29 Idem, pg. 97 30 Idem, pg. 95. 27

   

  21 situado no ambiente urbano; este tema se imbrica a outro, dele decorrente ou a ele ampliando: a relação ecológica do ser humano, seja entre outros seres humanos, seja em relação à paisagem ou aos objetos que nos rodeiam. Neste sentido, poderse-ia mesmo afirmar que a obra de Veiga, ao mesmo tempo em que anuncia, de um lado, a destruição de um espaço — e conseqüentemente de um tempo — reflexiona também escatologicamente em torno da construção de um novo universo, se bem que não chegue a visualizá-lo com grande otimismo. Talvez que esta perspectiva ainda não tenha sido suficientemente estudada por toda a multiplicidade dos que, ao longo dos anos, vêm-se ocupando da obra do escritor goiano.31

Já John Parker, em 1982, analisando o romance “Aquele Mundo de Vasabarros”, aprofunda, politicamente, esse tipo de leitura: Trata-se, evidentemente, duma sátira política, alegoria cuja feição humorística desempenha a função formal de ridicularizar um regime podre e caquéctico, já sem credibilidade, mas que continua a arrastar-se levado por uma espécie de momentum próprio, adquirido através do aperfeiçoamento dos instrumentos de repressão, que são a sua característica mais marcada.32 (grifo do autor)

O romance deve ser o mais próximo de uma alegoria que Veiga escreveu.33 Mas ainda que fosse apenas lido assim, não fica claro no romance se é uma alegoria do Brasil como um todo ou somente da ditadura militar. O próprio ensaio de Parker aponta para essa contradição quando ele aproxima o nome Vasabarros do Vasabarris de “Os Sertões”. Mas Parker continua buscando no romance e em outras obras de Veiga aproximações quase sempre um tanto forçadas com a realidade brasileira da época. Ele compara, por exemplo, a “Companhia” do romance “Sombra de Reis Barbudos” à CIA, agência de inteligência norte-americana. Ele também afirma que certas descrições de Vasabarros “contêm uma lembrança maliciosa da actual capital federal, plantada no meio do cerrado.”34 Em um momento, as comparações atingem até a biografia do autor:

Mas a verdade é que o A. [autor] parte duma visão, que nasce do seu compromisso com a própria realidade, em que se encontra integrado por nascimento e educação, e satiriza nela os aspectos contrários à posição ideológica                                                              31

Idem, pg. 94.  PARKER, 1983, pg. 102. 33 Junto talvez com “Os Pecados da Tribo”. 34 Idem, pg. 103. 32

   

  22 do grupo (social, intelectual, político) a que ele pertence. José J. Veiga, cuja vida desde a adolescência até a idade madura decorreu sob a influência dominante da política de Vargas, estreou no gênero fábula com o conto ‘A usina atrás do morro’ (Os Cavalinhos de Platiplanto, 1959), que reflecte seguramente a tensão entre a ideologia nacionalista sustentada por Kubitschek e a crescente interferência estrangeira, que o seu programa de industrialização acelerada não pôde excluir.35

Claramente o autor pensa um traço autobiográfico para sustentar a sua leitura. No fim do regime Vargas, em 1945, Veiga passou quatro anos trabalhando na Inglaterra como tradutor e comentarista da rede BBC. Seria arriscado deduzir que os anos Vargas ou Kubitschek fossem mais importantes em seu primeiro romance do que os anos na Inglaterra, o que Parker acaba fazendo por conta de sua leitura política. A leitura alegórica vai sendo usada por praticamente todos os críticos que analisam o autor. Luiz Costa Lima, no seu ensaio “O Conto na Modernidade Brasileira”, publicado em um livro de 1982, tenta fazer uma defesa de uma leitura mais aberta das alegorias: a solução do fantástico se encontra no alegórico. Mas o alegórico contém uma dificuldade específica: se ele permitir a pura transcrição tipo ‘isso significa aquilo’, o isso, ou seja a narrativa, se torna inútil, casca de fruta que se joga fora. Para assumir significação, o fantástico necessita criar uma curva que reconecte com o mundo. Se, entretanto, esta curva tornar-se única, persistirá a significação com o apagamento da sua fonte. Para se manter, a alegoria precisa ser plural. (...) Se a alegoria não tivesse esta mobilidade, antes de matar seu autor, teria esterilizado a obra de Kafka.36

Infelizmente, o privilégio da “alegoria plural” não é reservado a José J. Veiga, já que Costa Lima afirma, no parágrafo seguinte:

Conclusão contrária parece caber à obra também pequena de J. J. Veiga, cujos livros seguintes aos Cavalinhos de Platiplanto (1959) reiteram a alegoria política básica, sem o acréscimo doutras significações. Mas por ausência de espaço conveniente este não é um juízo definitivo.37

                                                             35

Idem, pg. 103.  COSTA LIMA, 1983, pgs. 207-208. 37 Idem, pg. 208. 36

   

  23

Na opinião de Flora Süssekind, em um livro de 1985, parte do comentário de Costa Lima e acaba sendo mais extrema:

Mas as alegorias tanto dos romances-reportagem neonaturalistas, quanto do fantástico, dão bem pouca margem à pluralidade. A significação do texto é determinada autoritariamente. Às vezes antecede inclusive a leitura. Pouco importa o texto em questão, sabe-se, ao lê-lo, que se deve ampliar sua abrangência e ver em cada história particular toda a História brasileira recente. O mesmo acontece com parábolas como a de Érico Veríssimo e as de J. J. Veiga, e com os romances jornalísticos de Aguinaldo Silva e José Louzeiro. A mesma chave mestra político-referencial abre todas as portas. E une naturalismo e fantástico num idêntico projeto estético: o de uma literatura cujo eixo é a referência e não o trabalho com a linguagem, a consciência da própria materialidade verbal, é o recalque da ficcionalidade em prol de um texto predominantemente documental.38 (grifos da autora)

Por fim, Malcolm Silverman em um livro de título sugestivo (“Protesto e o novo romance brasileiro”), de 1995, que trata da literatura da época, conclui que Veiga e diversos outros autores

enfatizam um regionalismo brasileiro indefinido, apesar de reconhecível, ou a loucura urbana, aliada com a imprecisão cronológica. O resultado é a criação do sentido didático de missão tão parte do romance utópico, usando a fábula a serviço do debate ideológico. Uniformemente apocalípticos e quase sempre zoomórficos na sua franqueza alegórica são A hora dos ruminantes, Sombras de reis barbudos, Os pecados da tribo e Aquele mundo de Vasabarros, todos de José J. Veiga (...)39

Mais na frente, dirá ele:

Nas seis narrativas longas de José J. Veiga (algumas mais novelas que romances, outras não), há uma persistente tendência de questionar os parâmetros filosóficos das realidades universais, bem como parodiar, na verdade, parabolizar, a repressão e a opressão brasileiras desde 1964. O estilo limpo e enganosamente simples do autor reúne, em vários graus, o regionalismo (de Goiás), a introspecção sombria, atmosfera asfixiante, e uma fantasia enigmática que prova ser mais satírica que escapista. Seu estilo se inclina na direção de um desenvolvimento rudimentar na trama, poucos personagens individuais e uma contenção estrutural dentro de um estilo lacônico — todos apontando rotineiramente para a fábula política.40

                                                             38

SÜSSEKIND, 2004, pgs. 103-104. SILVERMAN, 1995, pg. 231.  40 Idem, pg. 236. 39

   

  24

Aqui, Silverman mal cita o elemento fantástico de Veiga, estando este “a serviço do debate ideológico” ou como “fantasia enigmática que prova ser mais satírica que escapista” e grande parte da obra de José J. Veiga é unificada como sendo simples “fábula política”. Através dos críticos e teóricos citados, é possível ver uma quase linearidade das análises de Veiga com a passagem dos anos, indo do fantástico em direção ao social e, posteriormente, ao político. Este trabalho, portanto, pretende voltar às primeiras leituras da obra de Veiga, mas sem ignorar as últimas, levando em consideração, sem destaques ou hierarquias, ambos os elementos — tanto o mágico quanto o ideológico — em sua obra.

A crítica da crítica A proposta deste trabalho também é de explicar porque esse tipo de crítica — social e política — é insuficiente para compreender a obra de Veiga. Essa falta de compreensão por grande parte da crítica se deve na maioria das vezes à falta de diferenciação entre as instâncias da mimesis, o que quer dizer, da representação ou imitação da realidade. Segundo Paul Ricoeur, a mimesis se diviria em três níveis: a pré-compreensão narrativa (mimesis I, o mundo real da ação), a composição narrativa (mimesis II, o mundo da ficção) e refiguração narrativa (mimesis III, o mundo da interpretação). Ocorreu, então, em considerável parte da crítica, uma falta de percepção e, em alguns casos, até de confusão do ficcional em sua relação com o real. A composição narrativa, embora parta do real, pode apenas atingi-lo enquanto, no máximo, tentativa de ser a realidade, ou emulação. Nunca um discurso, e ainda mais um discurso ficcional, equivalerá à realidade já que esse está sempre em uma instância abaixo do real, a qual Paul Ricoeur chama convenientemente de mimesis II (narração).41 Mais sobre isso será dito na apresentação do pensamento de Paul Ricoeur e Cláudio Veloso

                                                             41

Também aqui será seguida a nomeclatura do próprio Paul Ricoeur (1984, 1985 & 1988) que divide a mimesis em três conceitos distintos: mimesis I, mimesis II e mimesis III.

   

  25

O trabalho da crítica seria o de reconstruir as relações entre o real e o ficcional, voltar do imaginário aos fatos, da narrativa para a realidade, da mimesis II para a mimesis I. A crítica parte do que Ricoeur chama de mimesis III (o mundo da interpretação) que, em certo sentido, equivale ao mundo real (mimesis I) por estar fora do terreno da configuração narrativa. Entretanto, a preocupação da maior parte da crítica não foi de descrever ou de ler, mas de protestar o que, para o filósofo, estaria na esfera mimética do narrar (mimesis II), porque, no caso do protesto, parte-se da realidade brasileira da época e não dos escritos do autor. Não é tanto José J. Veiga que é ideológico e sim grande parte da crítica da época que o analisou. No capítulo 3, as teorias sobre a mimesis serão vistas em detalhes. Agora, será estudado o que alguns teóricos têm a dizer do fantástico.

   

2 O fantástico

A definição do fantástico O termo “fantástico” vem originalmente do radical grego phaós que significa brilhar ou aparecer (cf. Odisséia, XIV, 502). Do radical pha- é derivada a forma phaíno — que significa mostrar, trazer à luz, aparecer, tornar visível ou mostrar-se — e outras formas como phásis “aparência”; phásma “aparição”, “fantasma”, “signo premonitório”; phasmatiáo “ter alucinações”. As formas que utilizam phan- são em geral posteriores e incluem phané ou phanós, “tocha”. Já a forma phant- reúne phántos “visível”; phantáksomai “tornar visível”, “aparecer” ou às vezes “imaginar”; phantákso “tornar visível” , “representar” (tardio); phántasma “aparição”, “imagem” e “fantasma”; phantasmós “aparição”, “imagem mental”; phántasis “aparição”, “signo”, e phantasía “aparência”, “imagem” (sobretudo distinto de áisthesis “percepção”), “imaginação”. A palavra grega phantastikós vem, portanto, dessa raiz e está relacionada a todos esses termos, significando “que recebe imagens” e, em Platão e Aristóteles, relaciona-se a algo capaz de formar imagens ou representações; à imaginação como um todo. O termo latino usado como correspondente à phantasía era imaginor “imaginar”, “representar na imaginação” ou imaginatio “imaginação”, “imagem”, “representação”, “visão”. Este termo possui o mesmo radical de palavras como imago “imagem” e imitor “imitar”. Posteriormente, consagrou-se a forma latina phantasia, -ae, que entrou na linguagem popular através da expressão proverbial phantasia, non homo, “não é um homem, é uma fantasia” (usada pela primeira vez por Petrônio). Essa forma ganhou força na época imperial e, remetendo ao grego phantasía, acabou persistindo nas línguas românicas. A evolução do vocábulo em palavras como phantasiare, phantasticus e fantasia, acabou resultando na designação “fantástico”.

  27

O termo pode ser definido como a faculdade de criar imagens ou representações mentais, ou de combiná-las em determinada seqüência42. Durante grande parte da época moderna, essa faculdade imaginativa ficou sendo considerada uma atividade menor, sujeita e subordinada à razão, concepção que em parte se manteve até os dias de hoje. Diversos filósofos e autores retomaram o termo na época do romantismo, por vezes diferenciando a fantasia (ou faculdade de fantasiar) e a imaginação. Para eles, a imaginação seria um mecanismo superior de investigação e conhecimento da realidade, uma espécie de reprodução do mundo. Já a fantasia seria algo como um devaneio ou uma criação ilusória, uma atividade mental no limite entre o sonho e a magia, o que representaria um uso caracteristicamente baixo da imaginação. Embora a definição normal do termo ainda se aplique, o estudo sobre o fantástico realizado nesse trabalho tenderá a afastá-lo das concepções moderna e romântica que consideravam-no simplesmente um delírio inconsciente. Tentarei, dessa forma, retornar às concepções clássicas do termo, que ressaltavam a importância do imaginário em sua totalidade, entendendo a imaginação na sua relação com o real, seja de aproximação ou de afastamento. Além disso, analisarei, em maior profundidade, o uso do fantástico na literatura, considerando os diversos contornos e complexidades assumidas pelo conceito na composição ficcional. O fantástico na literatura No campo da literatura, o termo normalmente é usado para designar a estrutura de um conjunto contos populares que já existiam no século XVIII, principalmente no romantismo alemão — por exemplo, em escritores como Hoffmann e Eichendorff43 — , mas que vieram a ganhar força no século XIX com o escritor norte-americano Edgar Allan Poe. Poe entendia a variedade dos discursos, o que remete à idéia de gêneros, como a construção de um efeito harmônico e completo construído pelo autor na                                                              42 43

Cf. MOISÉS, 1978. Vide CALVINO, 2004.

   

  28

obra com a intenção de despertá-lo no leitor.44 Ele chega a admitir outras possibilidades de construção ficcional, mas acha que a sua própria seria a mais acertada, por conter o “vastamente importante elemento artístico: a totalidade ou unidade de efeito.”45 Definido o efeito, Poe então constrói um modelo de construção estrutural, uma filosofia da composição, para que se alcance o efeito intentado: A Verdade, de fato, demanda uma precisão, e a Paixão, uma familiaridade (o verdadeiramente apaixonado me compreenderá) que são inteiramente antagônicas daquela Beleza que, asseguro, é a excitação ou a elevação agradável da alma. De modo algum se segue, de qualquer coisa aqui dita, que a paixão, e mesmo a verdade, não possam ser introduzidas, proveitosamente introduzidas, até, num poema, porque elas podem servir para elucidar ou auxiliar o efeito geral, como as discordâncias em música, pelo contraste; mas o verdadeiro artista sempre se esforçará, em primeiro lugar, para harmonizá-las na submissão conveniente ao alvo predominante e, em segundo lugar, para revesti-las, tanto quanto possível, daquela Beleza que é a atmosfera e a essência do poema.46 (grifo do autor)

O fantástico seria, então, segundo a conclusão de Poe, um efeito final de ruptura com a realidade, refletido em uma inquietação por parte do leitor na medida em que sai do cotidiano, inquietação essa que ocasiona uma experiência de medo. Algo mais ou menos nos termos de Roger Caillois:

Tant le fantastique est rupture de l’ordre reconnu, irruption de l’inadmissible au sein de l’inaltérable légalité quotidienne, et non substitution totale à l’univers réel d’un univers exclusivement miraculeux. 47

Por muito tempo, a leitura estética de Poe foi considerada e usada por alguns autores e críticos como modelo de construção do fantástico e como sua

                                                             44

O que não combinaria, na leitura de Veloso, com a idéia aristotélica de gêneros, embora Poe não chegue a usar esse termo. Segundo Veloso: “a constituição de um gênero dá-se no interior de uma contrariedade. Como aparece no livro Iota da Metafísica, são os extremos de uma contrariedade a delimitar um gênero, o qual deve, assim, ser concebido como um segmento fechado.” VELOSO, 2004, pg. 80. Sobre o prazer estético, ou efeito, em Aristóteles, diz Veloso: “o prazer é algo que sobrevém a uma atividade (...).” VELOSO, 2004, pg. 68. Contrastando as duas leituras, jamais, portanto, em uma leitura aristotélica, um efeito poderia definir uma atividade ou mesmo um gênero. 45 POE, 2001, pg. 913. 46 Idem, pg. 914.  47 CAILLOIS, 1976, pg. 174.

   

  29

definição enquanto gênero e projeto literário48. Conquanto brilhante, essa leitura é problemática por ser extremamente subjetiva, por desconsiderar o papel do leitor também como construidor da obra49 e por ser, enfim, uma leitura poética e não teórica do fantástico. A abertura para novas leituras do conceito de gêneros na literatura e para uma nova compreensão do fantástico, veio a se dar com o livro “Anatomy of Criticism” do teórico canadense Northrop Frye, no final da década de cinqüenta.

A volta aos gêneros A definição dos vários gêneros literários apresentada por alguns grandes teóricos da literatura ajuda a esclarecer, como veremos adiante, a formulação do fantástico como gênero literário. Tzvetan Todorov, um dos principais teóricos do assunto, destaca que a obra de Northrop Frye é uma das mais importantes tentativas de retorno à idéia de gênero literário após o quase abandono deste conceito por parte de vários teóricos. Segundo Todorov:

Frye ocupa hoje um lugar predominante entre os críticos anglo-saxões e sua obra é, sem dúvida alguma, uma das mais notáveis na história da crítica desde a última guerra. Anatomy of criticism é ao mesmo tempo uma teoria da literatura (e                                                              Por exemplo, na análise do escritor H. P. Lovecraft: “Atmosphere is the all-important thing, for the final criterion of authenticity is not the dovetailing of a plot but the creation of a given sensation. We may say, as a general thing, that a weird story whose intent is to teach or produce a social effect, or one in which the horrors are finally explained away by natural means, is not a genuine tale of cosmic fear; but it remains a fact that such narratives often possess, in isolated sections, atmospheric touches which fulfill every condition of true supernatural horror-literature. Therefore we must judge a weird tale not by the author's intent, or by the mere mechanics of the plot; but by the emotional level which it attains at its least mundane point. If the proper sensations are excited, such a ‘high spot’ must be admitted on its own merits as weird literature, no matter how prosaically it is later dragged down. The one test of the really weird is simply this -- whether of [sic.] not there be excited in the reader a profound sense of dread, and of contact with unknown spheres and powers; a subtle attitude of awed listening, as if for the beating of black wings or the scratching of outside shapes and entities on the known universe's utmost rim. And of course, the more completely and unifiedly a story conveys this atmosphere the better it is as a work of art in the given medium.” In: http://gaslight.mtroyal.ca/superhor.htm 49 Sobre isso, diz Stella Caymmi: “A partir da Estética da Recepção, é possível uma compreensão histórica da literatura, baseada na experiência estética do leitor. O leitor realiza a atualização (...) da obra a partir das suas molduras. (...) Esse leitor, bem entendido, não é o leitor comum; é a comunidade de leitores que compartilha o mesmo horizonte de expectativas circunscrito em uma época específica de uma determinada sociedade.” CAYMMI, 2008, pg. 27.  48

   

  30 portanto dos gêneros) e uma teoria da crítica. Mais exatamente, este livro se compõe de dois tipos de textos, uns de ordem teórica (...), os outros, mais descritivos; é aí precisamente que se encontra descrito o sistema dos gêneros caracterísco de Frye. Mas para ser compreendido, o sistema não deve ser isolado do conjunto (...).50

O sistema crítico de Northrop Frye parte de alguns postulados, daí construindo alguns modelos que são parte teóricos (ou seja, abstraídos da realidade) e parte históricos (ou seja, baseados na história da literatura até aquela época), chegando depois, com base nos modelos, a algumas conclusões de ordem téorica e histórica. Os postulados em geral dizem respeito à possibilidade de uma ciência da literatura. Segundo ele, a crítica para ser considerada uma ciência teria que encontrar seu próprio campo de atuação: Criticism, rather, is to art what history is to action and philosophy to wisdom: a verbal imitation of a human productive power which in itself does not speak. And just as there is nothing which the philosopher cannot consider philosophically, and nothing which the historian cannot consider historically, so the critic should be able to constrict and dwell in a conceptual universe of his own.51

Sobre este universo: As literature is not itself an organized structure of knowledge, the critic has to turn to the conceptual framework of the historian for events, and to that of the philosopher for ideas.52

Uma crítica literária de bases científicas estaria, portanto, entre a filosofia e a história, em diálogo com essas duas ciências e utilizando conceitos de ambas para suas próprias construções. Depois, Frye destaca que:

A theory of criticism whose principles apply to the whole of literature and account for every valid type of critical procedure is what I think Aristotle meant by poetics. Aristotle seems to me to approach poetry as a biologist would approach a system of organisms, picking out its genera and species, formulating the broad laws of literary experience, and in short writing as though he believed                                                              50

TODOROV, 2004, pg. 13. FRYE, 2000, pg. 12. 52 Idem.  51

   

  31 that there is a totally intelligible structure of knowledge attainable about poetry which is not poetry itself, or the experience of it, but poetics.53

Tentando repetir essa experiência, Frye descreve seus postulados:

1. Coerência.

A

literatura

seria

um

corpo

de

conhecimento

completamente inteligível, como uma ciência. Para ele, qualquer ciência única necessita dessa regra da coerência e uma ciência só está realmente madura quando reconhecer seu objeto como totalmente coerente. Caso contrário, a ciência está incluída em algum assunto maior. 2. Ordem. Existe uma qualidade literária na ordenação das palavras que diferencia a literatura dos demais discursos. Assim como existe uma ordem por trás da natureza, afirma ele, que permite o seu conhecimento, há uma certa consistência que diferencia a literatura de qualquer texto escrito. 3. Diálogo. Embora a crítica literária possua sua própria independência, ela está em diálogo com outras ciências vizinhas. Ele explica: “The critic may want to know something of the social sciences, but there can be no such thing as, for instance, a sociological ‘approach’ to literature.”54

Então ele parte para uma análise dos julgamentos de valor dentro da literatura e considera que eles nunca podem fundamentar os estudos literários: “Value-judgements are founded on the study of literature; the study of literature can never be founded on value-judgements.”55 Finalmente, na sua tentativa de conclusão, ele afirma que:

Literature, like mathematics, is a language, and a language in itself represents no truth, though it may provide the means for expressing any number of them. But poets and critics alike have always believed in some kind of imaginative truth,                                                              53

Idem, pg. 14. Idem, pg. 19. 55 Idem, pg. 20. 54

   

  32 and perhaps the justification for the belief is in the containment by the language of what it can express. The mathematical and the verbal universes are doubtless different ways of conceiving the same universe. The objective world affords a provisional means of unifying experience, and it is natural to infer a higher unity, a sort of beatification of common sense. But it is not easy to find any language capable of expressing the unity of this higher intellectual universe. Metaphysics, theology, history, law, have all been used, but all are verbal constructs, and the further we take them, the more clearly their metaphorical and mythical outlines show through. Whenever we construct a system of thought to unite earth with heaven, the story of the Tower of Babel recurs: we discover that after all we can’t quite make it, and that what we have in the meantime is a plurality of languages.56

Já sobre seus modelos, Frye os monta em quatro ensaios que contêm estruturas capazes de classificar um texto literário. Os ensaios servem para mapear o quadro de possibilidades dentro da literatura. O primeiro ensaio, a Teoria dos Modos, elabora uma compreensão de modos literários dividida em dois tipos: modos ficcionais e modos temáticos. Os modos ficcionais incluiriam as narrativas, que se dividem nas trágicas, quando uma história termina com o isolamento do herói da sociedade, e nas cômicas, quando ocorre a incorporação do herói em uma sociedade ou um final feliz. Dentro de cada uma dessas, há, então, cinco categorias do herói, que vão desde a superioridade aos homens normais e ao seu ambiente (o que constituiria o modo do mito) até a inferioridade em relação a nós e à situação proposta (o que seria o modo irônico). Os modos temáticos seriam os não narrativos, e incluiriam a poesia lírica, o ensaio, a sátira etc. O segundo ensaio, a Teoria dos Símbolos, divide as metáforas e símbolos em cinco fases principais: a fase anagógica, em que há identidade total e o símbolo se torna sentido universal; a fase arquetípica, em que o símbolo se torna arquétipo e o individual se torna representação de uma classe; a fase formal, em que o símbolo passa a corresponder a uma imagem de mesma proporção; a fase descritiva, em que o símbolo é semelhante a algo ou é um símile; e a fase literal, em que há justaposição, sendo o símbolo um sinal (ou motif) de algo. Para Frye, essas fases estariam baseadas em dois movimentos contrários que ocorrem simultaneamente em toda leitura: um movimento centrífugo, que busca um sentido único para o texto, e um movimento centrípeto, que busca a diferença e                                                              56

Idem, pg. 354. 

   

  33

considera a literatura como uma estrutura de motifs. As fases seriam análogas às cinco categorias do herói, estando a fase anagógica (de identidade total e sentido universal) em paralelo com o modo do mito e a fase literal em relação direta com o modo irônico. O terceiro ensaio, a Teoria dos Mitos, especifica na literatura duas formas ideais e unitárias em que não há movimento: a forma apocalíptica e a forma demoníaca. A primeira se relaciona com imagens paradisíacas e unitárias construídas pelo imaginário do homem. A segunda forma seria a realidade oposta ao desejo humano, com imagens infernais trazidas de um mundo pré-humano, do desejo insaciável, dos pesadelos ou do trabalho inútil. Entre essas duas instâncias não haveria meio termo ou processo, pois já mostram o fim das coisas, seja na unidade ou na dispersão. Já nas outras cinco formas classificadas em analogia com as categorias do herói, haveria o movimento e a mudança na narrativa, podendo, segundo a classificação do primeiro ensaio, ser trágica, quando realista e se aproximando da forma demoníaca, ou cômica, quando romântica ou se aproximando da forma paradisíaca. Essas cinco formas, chamadas de mitos (ou mythos), seriam a tragédia, mais próxima do demoníaco; a ironia e a sátira; a comédia; e o romance, este mais próximo do paradisíaco. Todos eles funcionariam circularmente, como as estações do ano.57 Por fim, o quarto ensaio, a Teoria dos Gêneros, divide a literatura em quatro tipos principais, dentro de uma escolha entre uma escrita pessoal ou intelectual, e introvertida ou extrovertida. Os gêneros pessoais, que seriam sociais, são o Romance, introvertido, e a Novel, extrovertida. Já os intelectuais, ou filosóficos, seriam a Autobiografia, introvertida, e a Sátira Menipéia, extrovertida, sendo que a Sátira Menipéia de nossos dias é a chamada Anatomia. Esses quatro gêneros também podem, para Frye, se mesclar uns com os outros.

                                                             57

Inclusive, Frye monta todo este modelo dos tipos de mito desempenhando, em termos de visão, uma relação direta com as estações do ano. O romance seria algo próximo do verão, carregando a visão do conflito como uma série de aventuras maravilhosas. A comédia estaria próxima à primavera, contendo a visão do retorno e do reconhecimento. A ironia e sátira seriam algo como o inverno, com a visão da anarquia e ausência do heroísmo. Por fim, a tragédia se aproximaria do outono, nela estando presente a visão da morte e da catástrofe. Todas essas visões funcionariam circularmente em um movimento que vai desde o desejo da visão romântica passando à vontade cômica, depois ao tédio irônico e ao desespero trágico, que, enfim, retornaria ao desejo romântico.

   

  34

Embora só o último ensaio use a designação de gêneros, como todos os ensaios são construídos em relação a uma dupla principal de contrários (o modo do mito e o irônico no primeiro, a fase anagógica e a literal no segundo, o romance e a tragédia no terceiro e o romance e a anatomia no quarto), eles claramente podem ser entendidos como estudos genéricos, seguindo as idéias de Christine Brooke-Rose: I am never happy with a definition of a genre, however ‘theoretical’, which appears to exclude all notion of contamination or, to use a less pejorative word, flexibility.58

E seguindo os critérios de Cláudio Veloso: o fim da divisão em Aristóteles, como já em Platão, não é classificatório, e sim definitório. E toda boa definição é causal (...). A noção de gênero pode até ser classificatória, mas não taxionômica. (...) As noções de gênero e espécie são relativas.59

Depois, explicando melhor:

a oposição poderia ser sim binária, mas não dicotômica. Todo gênero é definido por uma dupla de contrários, os quais definem um intervalo de possíveis gradações intermediárias (...).60

E, citando Aristóteles:

É necessário que todos os contrários estejam ou no mesmo gênero ou em gêneros contrários ou que sejam eles próprios gêneros. Branco e preto estão no mesmo gênero, já que cor é o gênero deles, enquanto justiça e injustiça estão em gêneros contrários, já que da primeira é gênero a virtude e da segunda, o vício. Bom e ruim (...) não estão em um gênero, mas eles próprios se acham ser gêneros de certos entes (...).61

                                                             58

BROOKE-ROSE, 1983, pg. 71. VELOSO, 2004, pgs. 82-83. 60 Idem, pg. 96.  61 Idem, pg. 97. 59

   

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Aristóteles define gênero como aquilo que abarca diferenças62 e depois reforça essa definição na idéia de que as diferenças máximas se encontram entre uma dupla de contrários63. Um gênero, portanto, seria algo que abarca dois contrários e todos os seus elementos, escalas ou espécies intermediárias, de maneira a permitir a compreensão e organização de todas as diferentes qualidades de natureza semelhante dentro de uma só ordem de contrariedade. Essa concepção genérica provavelmente não estaria muito distante das idéias do próprio Frye, já que seu modelo é aberto à compreensão e sua nomenclatura é bastante abrangente. Todos os seus ensaios se constroem a partir de uma dupla principal de contrários, trazendo a possibilidade de espécies intermediárias e combinações não tão definidas. Seu mapeamento da literatura, por ser bem dinâmico, acaba chegando a resultados bem interessantes na medida em concebe a construção literária como uma estrutura de criações possíveis definida entre dois casos-limite, ou uma dupla de contrários, seguindo essa noção aristotélica de gênero. Por reintroduzir o conceito de gênero, a importância de Frye é enorme dentro dos estudos literários e do fantástico. Elas permitiram um retorno a esta noção de gênero, o que quer dizer, à noção de análise da escrita como um esquema de possibilidades da organização de um texto ou de uma narrativa, e foi isto que deu a abertura para os estudos posteriores do fantástico de Tzvetan Todorov. Houve também muitos argumentos contrários ao modelo crítico proposto por Frye (vide, por exemplo, TODOROV, 2004, pgs. 15-24; BROOKE-ROSE, 1983, pgs. 55-61 e RICOEUR, 2000, pgs. 345-347) trazendo muitas questões que não têm sentido discutir nesta dissertação. Aqui, o modelo de Frye não será usado porque tende a tirar de contexto uma obra literária, igualando e planificando textos que foram escritos em períodos e situações diferentes64 e é justamente isso que se está tentando evitar na releitura da obra de Veiga como autor fantástico, ou seja, evitar uma leitura que ignore a época em que ele estava escrevendo, caindo na                                                              62

ARISTÓTELES, 2005, pg. 259. Idem, pgs. 451-452. 64 Embora o próprio Frye, em suas análises críticas, não caia nessa armadilha, fazendo leituras de enorme discernimento e senso histórico.  63

   

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pura abstração filosófica. O objetivo aqui é justamente tentar combinar o concreto e o abstrato, a história e a filosofia. Dessa maneira, para este trabalho, fica a intuição original de Frye de localizar a crítica literária em um meio termo da história e da filosofia, trazendo conceitos de ambas, mas sem estar submetida a nenhuma delas. Também fica a idéia de construir um modelo teórico aberto, com a possibilidade de novas criações e escalas intermediárias.

Um gênero fantástico? A partir do retorno de Frye aos gêneros literários, Tzvetan Todorov vai propor uma leitura do fantástico nesse sentido. Em seu livro “Introdução à Literatura Fantástica”, Todorov define o fantástico como uma hesitação entre uma explicação natural e uma sobrenatural aos eventos da narrativa: Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós. (...) O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra resposta, deixa-se o fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho [com a explicação natural] ou o maravilhoso [com a explicação sobrenatural]. O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural.65

Todorov explica que essa incerteza ocorre tanto na visão das personagem, quanto do leitor, havendo, pois, uma “integração do leitor no mundo das personagens”66. Entretanto, a principal dúvida deve partir do leitor, que, em sua hesitação, deve se identificar com as personagens. Ele admite que, para tal ocorrer, é necessário que o leitor considere o mundo do texto como o seu próprio mundo, é necessária uma “suspensão da descrença”, que pode ser desfeita a qualquer momento em uma interpretação posterior do texto ou na simples não identificação com as personagens:                                                              65 66

Obra citada, pgs. 30-31. Idem, pg. 37.

   

  37 O fantástico implica portanto não apenas a existência de um acontecimento estranho, que provoca hesitação no leitor e no herói; mas também numa maneira de ler, que se pode por ora definir negativamente: não deve ser nem ‘poética’, nem ‘alegórica’.67

Por só aparecer como uma hesitação, Todorov chega a declarar que o fantástico não chega a constituir propriamente um gênero, mas apenas algo que surge “no limite de dois gêneros”68 que seriam o estranho e o maravilhoso. O estranho seria o “sobrenatural explicado”69, algo semelhante à nossa idéia de passado, quando os eventos reduzem-se a fatos conhecidos e ordenados. Já o maravilhoso seria o “sobrenatural aceito”70, semelhante ao futuro, um fenômeno desconhecido ou jamais visto. E o fantástico seria algo como o presente, o puro limite entre passado e futuro, e, para Todorov, “a hesitação que o caracteriza não pode, evidentemente, situar-se senão no presente.”71 Dessa forma, o fantástico seria por natureza “um gênero sempre evanescente”72 pois a hesitação sempre pode ser desfeita com uma explicação racional (o que resultaria no que ele chama de fantástico-estranho) ou com uma aceitação do sobrenatural (que ocasionaria no fantástico-maravilhoso). O fantástico puro, caracterizado pela ambigüidade e indecisão, só ocorreria quando esta sensação se mantivesse mesmo após fechar o livro e após a interpretação:

O fantástico, como vimos, dura apenas o tempo de uma hesitação: hesitação comum ao leitor e à personagem, que devem decidir se o que percebem depende ou não da ‘realidade’, tal que existe na opinião comum. No fim da história, o leitor, quando não a personagem, toma contudo uma decisão, opta por uma ou outra solução, saindo desse modo do fantástico. Se ele decide que as leis da realidade permanecem intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra se liga a um outro gênero: o estranho. Se, ao contrário, decide que se devem admitir novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso. O fantástico leva pois uma vida cheia de perigos, e pode se desvanecer a qualquer instante.73                                                              67

Idem, pg. 38. Idem, pg. 48. A noção de gênero aqui apresentada obviamente não combina com a apresentada na parte anterior. Mais sobre isso será discutido na próxima parte, com as idéias de Christine Brooke-Rose sobre o assunto. 69 Idem.  70 Idem. 71 Idem, pg. 49. 72 Idem, pg. 48. 73 Idem, pgs. 47-48. 68

   

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Essa seria, resumidamente, a teoria geral do fantástico de Todorov, que, no entanto, como ele próprio declara, serviria somente para explicar a literatura fantástica do século XIX, onde havia uma exigência restritiva do real e uma noção representacional da linguagem: O século XIX vivia, é verdade, numa metafísica do real e do imaginário, e a literatura fantástica nada mais é do que a má consciência deste século XIX positivista. Mas hoje, não se pode mais acreditar numa realidade imutável, externa, nem em uma literatura que não fosse senão a transcrição desta realidade. As palavras ganharam uma autonomia que as coisas perderam.74

Contemporaneamente, para Todorov, através dessa autonomia da linguagem, o fantástico tomaria outras feições, como a psicanalítica, quando um relato ou discurso dos tabus que não poderiam ser ditos abertamente na época, ou a da literatura de Kafka. Segundo Todorov: Em que se transformou a narrativa do sobrenatural no século XX? Tomemos o texto mais célebre sem dúvida que se deixa incluir nesta categoria: ‘A Metamorfose’ de Kafka. O acontecimento sobrenatural é trazido aqui em toda a primeira frase do texto: ‘Uma manhã, ao sair de um sonho agitado, Gregório Samsa acordou transformado em seu leito num verdadeiro inseto’ (...). Há, na seqüência do texto, algumas breves indicações de uma possível hesitação. Gregório acredita de início que está sonhando; mas rapidamente se convence do contrário. Entretanto, não renuncia logo à procura de uma explicação racional: dizem-nos que ‘Gregório estava curioso de ver se dissipar pouco a pouco sua presente alucinação. Quanto à mudança de voz, era, segundo sua íntima convicção, o prelúdio de algum resfriado, a doença profissional dos viajantes’ (...). Mas estas sucintas indicações de uma hesitação se afogam no movimento geral da narrativa, onde a coisa mais surpreendente é precisamente a ausência de surpresa diante deste acontecimento inaudito, exatamente como em ‘O Nariz’ de Gogol (‘nunca nos espantaremos o suficiente com esta falta de espanto’, dizia Camus a propósito de Kafka).75

Christine Brooke-Rose parte exatamente dessas brechas deixadas pela teoria de Todorov para uma nova compreensão do fantástico. Serão discutidas agora, na próxima parte, as suas idéias sobre o tema. De Todorov, entretanto, será mantida para este trabalho a sua leitura do fantástico no século XIX quase integralmente e, além disso, serão mantidas suas percepções iniciais, ainda que                                                              74 75

Idem, pg. 176.  Idem, pg. 177.

   

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não tão claramente definidas, sobre a obra de Kafka que representaria, por mais estranho que isso soe, uma espécie de anormalidade no fantástico: Reencontramos, portanto, (invertido) o problema da literatura fantástica — literatura que postula a existência do real, do natural, do normal, para poder em seguida atacá-lo violentamente — mas Kafka conseguiu superá-lo. Ele trata o irracional como se fizesse parte do jogo: seu mundo inteiro obedece a uma lógica onírica, se não de pesadelo, que nada mais tem a ver com o real.76

O elemento fantástico A proposta de Christine Brooke-Rose em seu livro “A Rhetoric of the Unreal” é rever as normas do fantástico formuladas por Todorov, encontrando paralelos entre este tipo de literatura e outros modelos literários e analisando algumas obras do século XIX e XX para tentar diferir exatamente quais seriam as qualidades do discurso fantástico. Ela apresenta as idéias já descritas de Todorov e, uma vez evanescente, ela conclui que o fantástico não pode ser um gênero: What it means in effect is that the pure fantastic is not so much an evanescent genre as an evanescent element; the hesitation as to the supernatural can last a short or a long moment and disappear with an explanation.77 (grifo da autora)

Como um elemento, ela sugere que a ambigüidade do fantástico pode aparecer em outros tipos de texto, inclusive fora da literatura fantástica: There is another aspect of the pure fantastic that Todorov does not point out, which is that if its mains constituent feature is total ambiguity between two interpretations, this is a feature it shares with non-fantastic texts.78

Então ela faz mais uma crítica à análise de Todorov. Segundo ela, há apenas dois motivos para postular um gênero teórico: o primeiro é marcar uma distinção entre o tipo principal (ou puro) e os demais e o segundo é prever todas

                                                             76

Idem, pg. 181.  Obra citada, pgs. 63-64. 78 Idem, pg. 65. 77

   

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as possibilidades internas ao gênero. Como a teoria de Todorov não foi capaz de prever, ou explicar, a literatura de Kafka, seu modelo teórico deve ser falho:

It is in this second function that Todorov’s theory seems to be flawed. This can be seen in his treatment of Kafka’s Metamorphosis (…) and indirectly, of Gogol’s Nose (…), which he places in a world apart, as it were proposing in the end a new category. We are in the marvelous since a supernatural event is introduced at the start, yet is accepted at once and provokes no hesitation. The event is nevertheless shocking, impossible, yet becomes paradoxically possible, so that in this sense we are in the uncanny. And Todorov simply concludes that Kafka’s narratives ‘relate both to the marvelous and to the uncanny; they are the coincidence of two apparently incompatible genres’.79

Baseando-se nessa hipótese, ela apresenta a idéia do elemento fantástico como um desenvolvimento histórico já presente na literatura muito antes do século XIX: Or, to put it more generally: is not the pure fantastic, with its absolute ambiguity, a (historical) prefiguring of many modern (non-fantastic) texts which can be read on several and often paradoxically contradictory levels, and which would thus all be modern developments of medieval allegory? Is not the very condition that defines the pure genre (or evanescent element) merely a particular (historical) manifestation of a more general feature (at least two contradictory readings) which can and perhaps should be found in all sophisticated (complex) narrative, at any time, with varying degrees of predominance and various types of manifestation according to the period?80

A idéia de Brooke-Rose sobre o fantástico é sem dúvida muito interessante e instigante e tentarei cumpri-la ao máximo na minha própria leitura do fantástico. De qualquer forma, aqui já aparece a possibilidade de adaptar o fantástico, como elemento, a qualquer tipo de literatura e período histórico, sob a justificativa de que há vários tipos de ambiguidade possível que podem tomar formas várias em tempos e espaços específicos, sem contudo negar que todos os tipos e formas partem de uma fonte comum.                                                              Idem, pg. 66. Depois: “Todorov’s theory, had it existed before Kafka (or Gogol), could not have postulated it, for it would have been logically impossible in the given schema.” E: “The theory does not logically account for Kafka (except by saying that the fantastic stops before Kafka), nor could it logically postulate a work in which (for instance) the area on which the pure uncanny opens out (i.e., all slightly strange but realistic novels) might ‘coincide’ with the pure marvellous.” Idem, pg. 67 para ambas citações.  80 Idem, pg. 71. 79

   

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Antes de analisar algumas das especificidades do fantástico conforme aparecem em alguns autores e romances, Brooke-Rose ainda caracteriza alguns recursos formais e lingüísticos, indo além da idéia puramente temática de Frye e Todorov, presentes no que ela chama de discurso do fantástico e também no discurso realista. No discurso do fantástico, ela traz alguns exemplos de Todorov e os divide em aspectos verbais e aspectos sintáticos. Nos aspectos verbais, ela destaca o uso literal de linguagem figurada e o uso freqüente de narrador em primeira pessoa (o que daria maior ambigüidade ao texto). Já nos aspectos sintáticos estariam, na sintaxe da narrativa, a impossibilidade de que a explicação seja dada no início do texto e a alteração do equilíbrio inicial da narrativa, que levaria à busca de um novo equilíbrio. Essas características parecem bem óbvias para qualquer leitor atento e, como ela afirma, também podem aparecer em outros tipos de narrativa. Os procedimentos do discurso realista são igualmente triviais, divididos em quinze, segundo as teorias de Philippe Hamon81: apelo à memória; motivação psicológica dos personagens; história paralela (ou seja, a narrativa está ligada a uma história maior que lança luz sobre ela); referências culturais com uso de nomes próprios indicando classe, origem etc.; redundâncias, obviedades e uso de recursos visuais; personagens que representam conhecimentos do autor; rotina e previsibilidade dos personagens; narrador como controlador da história (no lugar do autor); discurso sem modalizadores e expressões de dúvida (como “parece”, “como se fosse” e “talvez”); herói desfocalizado (podendo nunca vir a se tornar um sujeito e podendo receber valores negativos até o ponto de borrar sua identidade); redução de ambigüidade; redução da oposição entre ser e parecer; explicação rápida dos mistérios; ritmo da narrativa variando em um ciclo de bons e maus momentos; exagero nas descrições, abarcando tudo aquilo que é indizível e inefável no fantástico. Brooke-Rose chega a criticar alguns desses pontos por invadirem o espaço um do outro, por dependerem de certas escolhas e por aparecerem também no discurso da ficção científica (como as redundâncias, obviedades, uso de recursos visuais e a história paralela). Ainda assim ela adota                                                              81

Por sua vez, esses quinze procedimentos derivariam dos cinco códigos de saída do texto formulados por Roland Barthes e descritos nas páginas 38-41 do livro. 

   

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esse protótipo, adicionando apenas uma característica principal em termos de forma: o uso do passado para dar a idéia de algo que realmente aconteceu (seja através do uso do pretérito mais que perfeito ou do discurso indireto livre, que passa a fala da personagem para o passado e ofusca o narrador). Como os elementos formais do realismo podem estar ligados aos temas do fantástico, Brooke-Rose propõe unir os extremos do modelo linear (MaravilhosoFantástico-Estranho) de Todorov, em um movimento circular que parte de um discurso textual em qualquer ponto do diagrama e que pode ter características de até dois conjuntos nas interseções:

                                Realism         Uncanny                                     Marvellous                                                             Fantastic-       Fantastic-                   uncanny         marvellous   82

Pure-fantastic

Segundo ela, o diagrama resolve o problema da Ficção Científica (que seria o somatório de elementos do maravilhoso com elementos do realismo), mas não o problema de Kafka, pois não há interseção na borda do círculo entre o estranho e o maravilhoso. Este problema, creio, não pode ser resolvido enquanto os termos da questão estão no mesmo plano, já que o modelo de Brooke-Rose, embora não seja mais linear (contendo só os temas do fantástico, como o de Todorov) ainda é bidimensional (pois inclui uma análise temática e formal do fantástico). O modelo de compreensão, para trabalhar com Kafka, deveria ser                                                              82

Idem, pg. 84.

   

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tridimensional, dividindo a representação em três planos distintos, ainda que em relação uns com os outros. Pretendo demonstrar através desse trabalho que as características e qualidades da literatura fantástica, tal como se apresentam nas obras de Kafka, estão também presentes na literatura de José J. Veiga com o mesmo vigor. Para demonstrar essa posição, desenvolverei um estudo sobre os novos estudos da mimesis (representação da realidade), que fazem justamente essa abordagem tridimensional das possibilidades de representação do real. Seguindo essa idéia, tentarei estabelecer o paralelismo de forma da obra de José J. Veiga com o universo kafkiano, crendo serem ambos caracterizados pelo mesmo tipo de discurso fantástico se observados a partir do ponto de vista da representação.

   

3 A mimesis  

O contexto Os estudos da mimesis — que é traduzida normalmente como “imitação” ou “representação” — ganharam, na época recente, renovada importância uma vez que, na visão de muitos teóricos, vive-se uma cisão dos conceitos de verdade e realidade.83 Segundo o professor Hans Ulrich Gumbrecht, em uma apresentação no dia 22/08/2008 na PUC-RJ, os sinais dessa separação podem ser retratados em dois exemplos na virada do século XIX para o XX, que demonstrariam, rudimentarmente, a impossibilidade de se usar na prática o conceito de verdadeiro: 1. O caso do poeta e filósofo alemão Gottfried Benn, que apresenta a diferença entre o real e o verdadeiro como o conceito “demônico” da Europa. A palavra “demônico” pode ser entendida em quatro significados principais: como algo perigoso (ou diabólico), algo fascinante (ou tentador), algo central (ou cosmológico) e algo obsessivo (ou que causa uma possessão, levando todos a falarem disso sem saber o motivo). 2. O caso de duas palestras, ou commencement exercises, na faculdade de Stanford no ano de 1891. Na primeira, o sr. Leland Stanford, fundador da faculdade, falava da universidade como um lugar de produção de realidades práticas cotidianas. Já na segunda, o reitor da universidade falava de verdades em um sentido téorico não prático e não produtivo. Esses dois casos seriam emblemáticos da idéia do real como uma constante revisão de conhecimentos estabelecidos, uma mudança de paradigmas, que conduziria a verdade a parar de tentar representar o real — seja como                                                              Sobre isso, diz Camus: “Se me pergunto em que julgar se uma questão é mais urgente do que outra, respondo que é com as ações a que ela induz. Eu nunca vi ninguém morrer pelo argumento ontológico. Galileu, que detinha uma verdade científica importante, abjurou-a com a maior facilidade desse mundo quando ela lhe pôs a vida em perigo. Em um certo sentido, ele fez bem. Essa verdade não valia a fogueira. Se é a Terra ou o Sol que gira em torno um do outro é algo profundamente irrelevante. Resumindo as coisas, é um problema fútil.” CAMUS, 1989, pg. 23.

83

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adequação à realidade ou como uma relação de retidão com os fatos — e passar a ser um sintoma de incerteza. Diante desse quadro teórico, valeria o real enquanto uso prático, passando-se a ignorar o conceito de verdade como algo que só serve em um dado momento, devido às divergências entre o verdadeiro e o prático. Este quadro combinaria com as noções de perspectivismo84 e relativismo, que dominam o debate atual, trazendo a idéia da impossibilidade de representar um real diante das múltiplas perspectivas e da infinidade de referentes. Conforme afirma o filósofo espanhol Julián Marías:

Ven ustedes (...) como la filosofia ha consistido em mirar a la realidad, en tratar de descubrirla, en cada momento se ensaya uma cierta perspectiva, que lleva a unas conclusiones, que lleva a una imagen de lo real. Si se ensaya una perspectiva distinta — y en el caso de Parménides y Heráclito es la casi total inversión — aparece una realidad distinta; distinta pero en la cual — a última hora — reaparecen los mismos elementos. Entonces esto — que se va a perpetuar a lo largo de toda la historia de la filosofia — nos debe llevar a darnos cuenta del descubrimiento — quizá proprio de nuestra época — de la necesidad de la perspectiva y la insuficiencia de toda perspectiva. Es decir — y esta será quizá la conclusión fundamental del balance filosófico de tantos siglos — que toda perspectiva es válida, es en principio verdadera, pero ninguna es suficiente, ninguna es única, ninguna es excluyente. Y entonces se puede llegar — y a esto quizá estamos llegando en el pensamiento de nuestra época — a trascender de cada perspectiva particular y descubrir — en cierto modo — la insuficiencia de todas ellas y la necesidad de una integración de todas ellas. O sea, que toda perspectiva — que puede ser verdadera, que en principio es verdadera —, ninguna agota la realidad. Es un error cuando decimos A es B y nada más. El error no está en decir que A es B, porque A es B, pero es falso decir “y nada más”, porque A es B y C y D... Y toda verdad es verdadera pero no es la única. Por esto tiene sentido hablar de los estilos de la filosofía y ver justamente en qué consisten esos diferentes estilos, como son ensayos de aproximación a la realidad. El gran error de la manera habitual de considerar la historia de la filosofía es verla como un repertorio de errores, como un catálogo de los errores... ¡No! En definitiva, sería más bien un catálogo de las verdades insuficientes. (…)85

                                                             De acordo com o Dicionário Oxford de Filosofia: “Concepção segundo a qual toda verdade só o é a partir, ou no interior, de uma perspectiva particular. Essa perspectiva pode ser um ponto de vista humano geral, produzido por coisas como a natureza do nosso aparelho sensorial, ou pode ser concebido como algo determinado pela cultura, pela história, pela linguagem, pela classe ou pelo sexo. Já que podem existir muitas perspectivas, existem também famílias diferentes de verdades. O termo é freqüentemente aplicado à filosofia de Nietzsche. (...).” BLACKBURN, 1997, pg. 296. 85 In: http://www.hottopos.com/rih4/mariash.htm   84

   

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É justamente nesse contexto que muitos pensadores se propõem a rever o conceito de mimesis, muitas vezes pretendendo inclusive dar maior fidelidade ao texto original dos filósofos clássicos. O presente estudo se ocupará de duas importantes revisões que seguem esse caminho, não pretendendo, entretanto, apresentar uma solução definitiva às questões citadas, mas apenas observá-las em um outro quadro teórico, que permita uma nova compreensão do domínio da realidade como um todo e, por isso, também da literatura de José J. Veiga.

O conceito O conceito da mimesis é normalmente utilizado para designar a noção clássica de estética e de arte. Há vários teóricos que dão destaque para o fato de o conceito, em realidade, não poder ser confundido com a mera imitação de um objeto, com a verossimilhança, pois o termo atravessa diversas obras clássicas com outros sentidos e em outros contextos. Como relata Maria Luiza Falabella, a respeito de uma concepção realista de arte: No campo da teoria, o conceito que melhor nos parece exprimir essa possibilidade é o conceito de mimesis, que, embora dos mais esquivos e embaraçosos da Estética e da Teoria da Arte, é bastante abrangente, podendo englobar manifestações de diversos complexos artísticos da arte ocidental. Encontramo-lo na Antigüidade aplicados às mais diversas artes, tanto à Pintura como à Escultura, quanto à Música e à Dança, às artes literárias e ao drama. Parece difícil a estudioso de hoje aceitar uma noção de imitação que pressuponha uma correspondência exata entre as artes do espaço e as do tempo e um conceito de verossimilhança que não faça distinção entre as primeiras e as segundas. Basicamente a palavra grega significa ‘imitação’, mas tinha no passado clássico uma série tão diversa de aplicações na linguagem comum, refletida no discurso filosófico, que nenhuma palavra da linguagem atual pode abrangê-las, todas, sem desfigurar o seu uso. Havelock, em Preface do Plato, diz ser ela uma palavra verdadeiramente proteica, englobando os mais variados conteúdos. Seu sentido se dilata e se contrai ao longo da História, sendo aplicado de modo diverso por historiadores, filósofos e poetas.86

Tratando-se especificamente de Platão, os estudiosos tendem a declarar que há um aprofundamento do conceito, segundo a teoria platônica das formas:

                                                             86

FALABELLA, 1987, pg. 8.

   

  47 Um texto capital da República (X, 595 a) permite definir o lugar que ocupam as artes a que mais tarde será reservada a produção da beleza. Sócrates e seus interlocutores fundam, com efeito, uma cidade ideal onde reina a justiça. Chega o momento em que se faz necessário excluir os poetas (398 a, b). A poesia, com efeito, é definida pela mimese, a imitação, que não se deve confundir rapidamente demais com uma concepção naturalista e realista da arte (...). A definição da arte como mimese liga-se, de maneira mais profunda, à concepção grega do ser e da verdade.87

Essa tendência, na visão de alguns especialistas, não seria seguida por Aristóteles, para quem o conceito estaria somente restrito ao campo da Poética:

In Aristotle’s usage, not only does the term ‘imitation’ have a different definition from that which it had for Plato but, much more important, Aristotle’s method of defining terms and his manner of using them have nothing in common with the devices of the dialogues. There is a double consequence of these differences. Whereas for Plato the term ‘imitation’ may undergo an infinite series of gradations of meaning, developed in a series of analogies, for Aristotle the term is restricted definitely to a single literal meaning. In the second place and as a consequence of the first difference, whereas for Plato an exposition of the word ‘imitation’ involves an excursion through all the reaches of his philosophy, ‘imitation’ for Aristotle is relevant only to one restricted portion of the domain of philosophy and never extends beyond it.88

Entretanto há outras leituras que vão na direção oposta, ampliando o sentido da mimesis em Aristóteles e aproximando o conceito na obra dos dois filósofos. No caso de Platão, para Mário Ferreira dos Santos, o conceito estaria próximo da metexis (ou participação) e teria sido aproveitado do pitagorismo:

O modo de ser das formas, para Platão, não é nem singular nem universal. Para Aristóteles é universal. Mas se Platão singularizasse as formas, teria de dar-lhes uma figura, que de certo modo as limitaria. Estas são os poderes do Ser, formas exemplares. O Ser pode tudo quanto pode ser, tudo cuja presença de ser não implica uma contradição intrínseca com o próprio Ser. A roda quadrada é                                                              87

LACOSTE, 1986, pg. 10.  Segundo Richard McKeon. Citado em VELOSO, 2004, pg.15. Sobre as leituras dos conceitos da Poética de Aristóteles, esclarece Roberto de Oliveira Brandão: “Nas inúmeras leituras — traduções, comentários, estudos — que até os nossos dias já se fizeram de seu texto ou por sua inspiração, os conceitos ali emitidos ora são vistos globalmente como problemas a serem resolvidos e esclarecidos, daí o permanente trabalho exegético a que tem sido submetido, com que se procura chegar ao sentido ‘exato’ de suas palavras, ora tais conceitos são encarados isoladamente e aprofundados como formulações definidoras do específico literário enquanto postura teórica preocupada em explicar o funcionamento da literatura, independente do contexto aristotélico original, ora são considerados, no extremo oposto, como soluções práticas que devem orientar tanto a criação quanto a crítica de obras concretas.” In: A Poética Clássica, 2005, pg. 1.

88

   

  48 impossível, porque o ser redondo exclui o ser quadrado. Mas o ser quadrado ou o ser redondo não excluem o ser. Quando alguma coisa pode imitar o quadrado (este quadrado de madeira, ou esta circunferência de uma roda), elas não são nem o quadrado, nem a circunferência como formas. Mas, como são entidades, podem ser tudo quanto pode ser proporcionado à sua natureza. Assim, cada ser pode imitar tudo quanto pode imitar, tudo quanto é proporcionado à sua natureza, cuja afirmativa não o negaria como ser. E esta é a participação platônica. E essa participação é gradativa e formal. Esta madeira participa da circunferência, porque a imita, não é, porém, a circunferência. Compreende-se, assim, que o pensamento platônico da participação (metexis) é perfeitamente adequado ao pensamento pitagórico da imitação (mimesis). Participar é imitar, imitar é participar.89

Mário, em outra parte, explica melhor os conceitos de participação e imitação:

participar, no platonismo, é receber, mas não se inclua nesse conceito a dualidade entre sujeito que recebe, e o recebido. Não há composição da matéria com a forma eidétia. A matéria não a recebe, mas a matéria é disposta de modo a formar uma proporcionalidade intrínseca, que é esta coisa e não aquela. E é através dessa proporcionalidade intrínseca, que é ora isto, ora aquilo. A matéria é, assim, a potência para receber formas (...). E não pertencendo a forma ao mundo da matéria, a que vemos na matéria é apenas uma cópia material do que é formal. O tempo copia a eternidade e a matéria copia as formas (eide). E como aquela é imperfeita, e tanto o é que precisa da forma para se isto ou aquilo, sua cópia é apenas uma similitude da forma, proporcionadamente ao que é, matéria, portanto imperfeita. A forma, na matéria, é apenas uma similitude da forma eidética. Mas, como pode a matéria copiar a forma? Ora, a forma é ser, e a matéria também o é. A aptidão da matéria em ser cópia desta ou daquela forma lhe é dada pelo ser que ela é. O nada absolutamente nada poderia copiar, porque não é. Mas a matéria, porque é, pode copiar o que é. Mas copia, proporcionadamente à realidade que é.90 (grifos do autor)

Ainda explicando melhor as formas e a imitação:

Tenho uma caixa com um punhado de dez esferas de cores diferentes. Com elas posso formar um número imenso de combinações. Mas todas às (sic.) vezes que formo a combinação das cores verde-azul-encarnado, repito essa combinação, esse arithmós. E se reunir três esferas das mesmas cores, mas outras, repetirei a mesma combinação. Esses números (arithmoi) não são mero nada. São possíveis que se atualizam existencialmente, cada vez que as coisas repetem a sua forma.                                                              89 90

SANTOS, 2001, pgs. 263-264.   Idem, pg. 94.

   

  49 Pois bem, este exemplo grosseiro permite-nos compreender as formas platônicas. Elas são únicas e sempre as mesmas, mas as coisas as copiam, as multiplicam, por imitação, por mímesis.91 (grifos do autor)

Portanto, a mimesis, para Platão, só seria mera imitação enquanto reprodução das formas. A relação entre o imitador e o imitado funcionaria como uma reprodução de formas fixas (por exemplo, o bem, a justiça, a beleza e também o redondo, o quadrado, etc.), reprodução essa limitada pela natureza e pelo tempo-espaço do imitador e, assim, sempre haveria novidade e originalidade em qualquer imitação, aqui entendida em um sentido amplo tanto como uma obra de arte quanto como uma ação repetida. Dessa maneira, nada obrigaria essa imitação — ou reprodução — a estar submetida a um objeto ou realidade determinada (como se fosse uma cópia exata ou uma duplicação de presença) e nada impediria um lado criativo — ou produtivo — dessa cópia, uma mimesis criativa. Platão, em seu diálogo Sofista, define a mimesis como: Pois a imitação é, na verdade, uma espécie de produção; produção de imagens, certamente, e não das próprias realidades.92

É exatamente desta noção que partirá Paul Ricoeur para chegar à sua própria caracterização da mimesis.

A mimesis narrativa Paul Ricoeur, em suas obras, “A Metáfora Viva” e nos três volumes de “Tempo e Narrativa”, propõe uma releitura do conceito de mimesis. Sua preocupação ao fazê-la é relativa principalmente à configuração narrativa93, o que, em certo sentido, o afasta dos filósofos clássicos. Ele começa, em “A Metáfora Viva”, com uma distinção lingüística importante que atravessará todo o seu pensamento. Partindo do livro “Da                                                              91

Idem, pg. 62. PLATÃO, 1983, pg. 191.  93 Embora a idéia de narrativa deva ser entendida em um sentido mais amplo. Como ele próprio define: “the activity of narrating a story and the temporal character of human experience there exists a correlation that is not merely accidental but that presents a transcultural form of necessity. To put it another way, time becomes human to the extent that it is articulated through a narrative mode, and narrative attains its full meaning when it becomes a condition of temporal existence.” RICOEUR, 1984, pg. 52. 92

   

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Interpretação” de Aristóteles, ele divide a construção linguística (ou léxis) em nove instâncias principais94, das quais destaca a instância do nome (ou ônoma) e a instância do discurso (ou lógos). Ainda seguindo as definições de Aristóteles, Ricoeur pressupõe uma escala hierárquica dessas instâncias em direção ao sentido, sendo o ônoma a primeira unidade dotada de sentido e o lógos, a última e principal. Segundo ele: ele [o nome] é a primeira das entidades enumeradas dotada de significação; diríamos hoje: é a unidade semântica. As quatro partes da léxis que o precedem situam-se abaixo do limiar semântico e são pressupostas pela definição do nome. O nome, com efeito, é em primeiro lugar um som complexo (...).95

Sobre o lógos, citando Aristóteles: O discurso (lógos) é um som vocal que possui uma significação convencional e do qual algumas partes, tomadas separadamente, possuem uma significação como enunciação e não como afirmação (...). Contudo, nem todo discurso é uma proposição, mas somente o discurso no qual se funda o verdadeiro ou o falso, o que não acontece em todos os casos: assim, a oração é um discurso, mas não é verdadeira nem falsa (...)96

Ele relaciona esses dois planos com a instância do verbo, que teria algo em comum com o nome e algo em comum com o discurso. O verbo acompanharia o nome enquanto “som dotado de significado”97 e acompanharia o discurso pois viria composto “com (idéia) de tempo”98. Posteriormente, Ricoeur utilizará a idéia do tempo no discurso para definir a narrativa como a maneira humana de se apropriar do tempo. Seguindo esse raciocínio da organização da léxis, Ricoeur ainda destaca que essas várias instâncias quando articuladas entre si e nessa hierarquia — junto a outros elementos no caso do teatro e da tragédia — formam o enredo (ou mythos) de uma narrativa:                                                              A saber: “letra, sílaba, conjunção, nome, verbo, [artigo], flexão, flexão e locução (lógos)”. RICOEUR, 2000, pg. 25. Possivelmente o termo “flexão” aparece repetido, pois Ricoeur menciona posteriormente apenas oito partes da léxis. 95 Idem, pg. 26. 96 Idem, pg. 27. 97 Idem.  98 Idem. 94

   

  51 Detendo-nos no nível da enumeração dos constituintes do poema trágico, importa, para compreender o papel da léxis, entender a articulação de todos esses elementos entre si. Eles formam, com efeito, uma rede, na qual tudo gira em torno de um fator dominante: o enredo, o mythos.99

Ele afirma que há ainda uma relação essencial entre o mythos e a imitação (mimesis) de acordo com a sua própria interpretação de Aristóteles. Para Ricoeur, o conceito de mimesis teria sofrido uma enorme contração na passagem de Platão para Aristóteles, sendo aplicado somente às ciências poéticas, “distinguidas das ciências teóricas e práticas”100. Ricoeur interpreta a mimesis em Aristóteles como um “fazer” poético, não mais uma forma de participação de idéias, mas como a criação de algo singular: Objetar-se-á que a Poética ‘serve’-se do conceito de imitação, mas não o ‘define’. Isso seria verdade se a única definição canônica fossa dada pelo gênero e pela diferença. Ora, a Poética define de modo perfeitamente rigoroso a imitação ao enumerar suas espécies (poesia épica, tragédia, comédia, poesia ditirâmbica, composição para a flauta e a lira), e ao relacionar posteriormente essa divisão em espécies com a divisão segundo os ‘meios’, os ‘objetos’ e os ‘modos’ de imitação. (...) Desse modo, a imitação é um processo, o processo de ‘construir cada uma das seis partes da tragédia’, desde a intriga até o espetáculo.101

Daí ele destaca que a mimesis aristotélica não pode de forma alguma ser entendida como cópia, já que ela “designa o próprio reino da natureza sobre toda produção”102, com uma referência inicial ao real, que, no entanto, é indissociável da sua dimensão criadora. Portanto, a criação de enredo (ou mythos) e a imitação da realidade (ou mimesis) teriam uma relação íntima e inseparável: Se esta hipótese é válida, compreende-se por que nenhuma Poética jamais poderá terminar com a mímesis, nem com a physis. Em última análise, o conceito de mímesis serve de índice para a situação de discurso. Toda mímesis, mesmo criadora, sobretudo criadora, está no horizonte de um ser no mundo que ela torna manifesto na mesma medida em que a eleva ao mythos. A verdade do imaginário, a potência de revelação ontológica da poesia, eis o que, de minha parte, vejo na mímesis de Aristóteles.103                                                              99

Idem, pg. 63. Idem, pg. 66. 101 Idem, pgs. 66-67. 102 Idem, pg. 69.  103 Idem, pg. 74. 100

   

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Todos esses arranjos são de enorme importância na tripartição da mimesis feita no primeiro volume de Tempo e Narrativa.104 Antes de entrar nesses conceitos, é preciso destacar que Ricoeur entende que existe uma relação direta de identificação entre narrativa e discurso:

The structural analysis of narrative can be considered as one of the many attempts to extend or to transpose this model to linguistic entities above the level of the sentence [lógos], the sentence being the last entity dealt with by linguistics. Beyond the sentence we find discourse in the strict sense of the word, that is, a succession of sentences presenting their own rules of composition. (…) Narrative, as we just said, is one of the broadest classes of discourse, that is, of sequences of sentences put in a certain order. Now, the extending of the structural principles of linguistics may signify diverse kinds of derivations stretching from vague analogy to strict homology. It was this latter possibility that was defended by Roland Barthes during the period of his ‘Introduction to the Structural Analysis of Narrative.’ A ‘narrative is a long sentence, just as every constative sentence is in a way the rough outline of a short narrative’ (…). Taking this idea to its limits he even declared: ‘nor does the homology suggested here have merely a heuristic value: it implies an identity between language and literature’ (…)105

Ou, nas palavras de Maria Villela Petit:

Ambas [as obras “A Metáfora Viva” e “Tempo e Narrativa”] estão às voltas com o desafio hermenêutico lançado pela emergência de novos significados ou, como diz Ricoeur, pela inovação semântica, embora em diferentes níveis: (1) o nível da frase [lógos], onde cabe à metáfora revelar uma nova pertinência semântica, por meio da aproximação ou do choque que opera entre campos semânticos normalmente separados no uso comum da língua; (2) o nível dessas unidades mais amplas do discurso que são as narrativas, as quais, efetuando a síntese de elementos heterogêneos (situações, personagens, ações, circunstâncias diversas, resultados indesejáveis, etc) através da criação de um enredo, conferem um novo e mais inteligível significado a uma série de acontecimentos.106                                                              104

“A Metáfora Viva” ainda discute muitas outras questões importantes que não dizem respeito a esta dissertação. É importante destacar, porém, que Ricoeur se põe contra uma idéia de linguagem totalmente não representativa, presente, por exemplo, em filósofos como o segundo-Wittgenstein e Derrida. Para Ricoeur, seguindo Benveniste: “’A frase é a unidade do discurso [lógos]’ (...) ’É no discurso atualizado em frases que a língua se forma e se configura. Aí começa a linguagem. Poder-se-ia dizer, reproduzindo uma fórmula clássica, nihil est in lingua quod nos prius fuerit in oratione’ (...). A essas duas lingüísticas Benveniste faz corresponder, alguns anos mais tarde, os dois termos, ‘semiótica’ e ‘semântica’, o signo [ônoma] sendo a unidade semiótica, a frase sendo a unidade semântica. (...) Dizer com Saussure que a língua é um sistema de signos não caracteriza a linguagem senão em um de seus aspectos e não em sua realidade total.” Idem, pgs. 111-112. 105 RICOEUR, 1985, pgs. 30-31. 106 PETIT, 2007, pg. 10. 

   

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Considerando a narrativa como a unidade de sentido do tempo e da própria realidade, Ricoeur chega a sua própria conceituação da mimesis, como aquilo que percorre todo o ato narrativo e que está dividido em três partes principais: Mimesis I: pré-figuração narrativa. É o mundo como existe enquanto observado pelo narrador. Este seria o mundo “ético”, ou seja, o mundo real da ação. Aí seria o lugar da referência. Como afirma Eduardo Severino em sua dissertação de mestrado: Devemos considerar, pois, que a narrativa histórica, que é uma composição textual, está enraizada numa pré-compreensão do mundo e da ação, de suas estruturas inteligíveis, de suas fontes simbólicas e seu caráter temporal. Ora, se o fenômeno de concordância discordante somente se produz nos atos de linguagem, no discurso, se a narrativa histórica, que é ato de linguagem, está enraízada numa pré-compreensão do mundo e da ação, de suas estruturas inteligíveis, de suas fontes simbólicas e de seu caráter temporal, entende-se, por conseguinte, que há estreita relação entre a narrativa histórica e a pré-compreensão do mundo e da ação.107

Mimesis II: configuração (ou composição) narrativa. Nela já se está no mundo imaginário e poético da metáfora, o mundo do “como se” fosse real. Toda a questão do imaginário aparece exatamente na mimesis II, na saída da realidade concreta e presente. Nessa saída ocorreria a possibilidade do verdadeiro e falso já mencionada no início do primeiro capítulo, não nos fatos em si, que são necessariamente verdadeiros, mas nas imagens, memórias ou narrativas sobre eles. Aí estaria a “imitação” propriamente dita que, entretanto, para ocorrer requer uma compreensão estrutural, simbólica e temporal das ações (mimesis I). Segundo Ricoeur: “This configurational act consists of ‘grasping together’ the detailed actions or what I have called the story’s incidents.”108 Essa reunião e composição dos eventos seria uma forma essencial para o ser humano conseguir dar sentido ao tempo e às coisas do mundo. Mimesis III: refiguração narrativa. Aí está o mundo da leitura, aparecendo o leitor, que traduz o texto para a sua própria realidade, interpretando-o. Nesta fase, a fase hermenêutica, se verificaria se há alguma relação entre o texto e a realidade (entre a mimesis I e a mimesis II):                                                              107 108

SEVERINO, 2008, pg. 34. RICOEUR, 1984, pg. 66.

   

  54 Generalizing beyond Aristotle, I shall say that mimesis III marks the intersection of the world of the text and the world of the hearer or reader (...).109

Ricoeur destaca que só quando a narrativa atinge este último estágio é que ela cumpre a sua verdadeira função: “narrative has its full meaning when it is restored to the time of action and of suffering in mimesis III.”110 Ele ainda rebate as críticas a uma possível circularidade do conceito. Para ele, seria bem óbvio que os três conceitos são circulares, só que não necessariamente funcionariam em um círculo vicioso, mas em uma espiral virtuosa que, produzindo sentido, retornaria ao mundo com uma nova compreensão, evitando a redundância semântica e a violência interpretativa. Os estudos de Ricoeur são amplamente importantes em diversos sentidos que ultrapassam em muito a literatura. Para esta dissertação, é de vital importância a tripartição da mimesis de maneira a incluir a realidade (ou mimesis I) e a leitura (ou mimesis III) no âmbito da imitação. É essa compreensão que guiará a combinação do real (mimesis I), do imaginário (mimesis II) e da crítica (mimesis III) em minha releitura da obra de José J. Veiga. Entretanto, a análise de Ricoeur não está completa, pois considera apenas a realidade (seja como mundo da ação ou da leitura, mimesis I ou mimesis III) enquanto uma forma de possibilidade narrativa. Cláudio Veloso, em sua obra monumental “Aristóteles Mimético”, talvez dê uma outra saída para a questão, propondo uma volta aos clássicos e uma abertura da mimesis.

A abertura da mimesis Cláudio Veloso, em seu livro “Aristóteles Mimético” propõe uma releitura absolutamente inovadora do conceito, observando os diversos sentidos do radical “mimo” conforme aparece não só nas obras de Platão e Aristóteles, mas de todos os textos gregos da época que chegaram até nós. Para Veloso, a mimesis teria um sentido completamente diferente nas obras dos clássicos gregos, sentido esse que seria inteligível para qualquer autor                                                              109 110

Idem, pg. 71. Idem, pg. 70. 

   

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da época. Após a análise de muitos autores clássicos e de muitos estudiosos do assunto, Veloso chega a três sentidos principais da mimesis e dos termos da mesma família: identidade (ou ser, o que significa o estado atual de uma realidade), emulação (ou tentar ser, o que quer dizer se aproximar de uma realidade imitando-a) e simulação (ou parecer, o que se distancia do real, apenas imitando-o por ter alguma semelhança com ele). Segundo ele: existem, por assim dizer, três modos de fazer a mesma coisa: ‘parecer fazer o mesmo’, ‘tentar fazer o mesmo’ e ‘fazer (efetivamente) o mesmo’. Simulação, emulação e identidade definem o campo semântico da família de miméomai. O terceiro, na verdade, é um caso-limite, na medida em que quem faz a mesma coisa que outrem viria a ser idêntico a esse outrem, e outrem não seria, pelo menos nisso. A não coincidência — nesse sentido, a inexatidão — entre imitante e imitado seria, tanto no caso da simulação como no da emulação, a própria condição para que possa haver imitação, e não identidade justamente. Por outro lado, quem simula e quem emula necessariamente, sob algum aspecto, fazem o mesmo que o simulado e o emulado, respectivamente.111

Nesse caso, a mimesis abarcaria toda a realidade, já que a própria identidade, o próprio modo de ser das coisas, estaria incluída na imitação. Diante dessa percepção, Veloso chega a questionar se haveria alguém que não imita: Se não é possível pensar sem uma aparição, não é possível pensar sem um mímema. Ora, quem não imita nem mesmo pensa, já que não se pensa sem imitação. A esse ponto é mesmo o caso de perguntar: quem não imita?112

Definido o conceito, o esforço de Veloso passa a ser de conciliar esse novo sentido da mimesis com os demais conceitos na obra de Aristóteles, aproximandoo, inclusive, do sentido visto em Platão, e também o de propor uma reinterpretação113 das passagens em que o termo aparece no texto do filósofo114.                                                              111

VELOSO, 2004, pg. 174. Idem, pg. 152. 113 Por exemplo, ele sugere que quando Aristóteles define a tragédia como imitação da ação de homens superiores e a comédia dos inferiores, estaria tanto falando dos artistas como de nós mesmos, já que nós mesmos podemos ser, igualmente, cômicos ou trágicos: “Agindo dramaticamente, os atores, as personagens, agem, ou melhor, parecem agir também eticamente. E o papel de alguém superior parece ser ele mesmo superior. Não ao suposto modelo daquela sua ação-imitação, mas ao papel inferior. O que surpreende em Poet. 2 é que — aparentemente — não há distinção — do ponto de vista ético — entre pessoas e personagens. É significativa a parte final do trecho, onde tragédia e comédia são apresentadas como duas pessoas: uma difere da outra como uma pessoa superior difere de uma pessoa inferior. Por outro lado, não há diferença entre agentes e atores sob o 112

   

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Com essa releitura, Veloso também retorna radicalmente à idéia de uma arte — e de uma realidade, por assim dizer — representativa: A pintura de um atleta ou de Sócrates não é decerto um atleta ou Sócrates, mesmo que tenham a mesma cor e figura. Mas nós, espectadores, que, por meio da pintura, reconhecemos um atleta ou Sócrates, tomamo-la como se fosse um atleta ou Sócrates. Com efeito, toma-se um ‘isso’ — que decerto não é ‘aquilo’ — como se o fosse. Ceci n’est pas une pipe, como ensina René Magritte. No entanto, é justamente diante do simulacro de um cachimbo que nós dizemos que isso é um cachimbo.115 (grifo do autor)

E também, citando a “Retórica” de Aristóteles, volta à possibilidade uma linguagem representativa:

As palavras (onómata), com efeito, são imitações (mimémata) e, desde o início, por natureza, esteve à nossa disposição a voz, também, a mais imitativa (mimetikótaton) de todas as nossas partes.116

Os estudos de Veloso fornecem uma visão inteiramente nova da realidade e suas contribuições teóricas, no que diz respeito tanto aos clássicos quanto aos dias de hoje, ainda estão para serem estimadas. É justamente dessa visão — a da representação do real em três planos distintos, conquanto próximos — que se partirá para uma releitura da obra de José J. Veiga. Em uma entrevista, tratando de outro assunto117, quando perguntado sobre a importância da revisão dos clássicos para a atualidade, Veloso responde que:

Esse é o tipo de pergunta que, no fundo, embaraça todo estudioso do pensamento antigo. Por um lado, ele é obrigado a insistir na imensa distância histórica que nos separa dos autores antigos e na grande cautela que é preciso ter na leitura deles afim de não ser vítima de falsas familiaridades ou de não tomar por uma obviedade algo que pode sê-lo para nós mas que não o era na época em que o texto foi escrito; no caso da "Poética", esses riscos são ainda mais concretos do que com outras obras, inclusive porque historicamente ela foi descontextualizada do resto do corpus aristotélico. Por isso mesmo, fazem-se traduções com notas e                                                                                                                                                                     aspecto material. Quem age (eticamente), na medida em que se manifesta como tal, ou seja, que se faz reconhecer como tal através de seus movimentos corpóreos, de algum modo imita, não diversamente de quem atua dramaticamente.” Idem, pg. 218. 114 Veloso fornece uma lista completa das aparições da família do termo no corpus aristótelico nas páginas 824-828. 115 Idem, pgs. 144-145. 116 Idem, pg. 131. 117 A saber: a presença ou ausência do conceito de catarse na obra de Aristóteles.

   

  57 comentário. Mas, por outro lado, o estudioso não se pode furtar à questão da atualidade do pensamento antigo, sob pena de ver seu trabalho ignorado pelo leitor contemporâneo, que, em geral, não tem o mesmo interesse de antiquário que ele; além do mais, como convencer uma editora a publicar traduções e comentários desses textos ou até mesmo justificar seu cargo de pesquisador e professor perante a sua instituição e a sociedade? E mais, por que ele mesmo se interessa por essas coisas? Sem querer subtrair-me à pergunta que me é feita, não sei se cabe a mim, pelo menos enquanto estudioso da antiguidade, falar da relevância da "Poética" para a crítica de arte atual, mas, enquanto leitor de obras teóricas contemporâneas, posso assegurar que, com razão ou não, de maneira explícita ou implícita, o conceito-chave da "Poética", o de mímēsis (imitação, simulação ou representação), que se acreditava morto até poucas décadas atrás, reapareceu no debate, se é que chegou a desaparecer. Aristóteles está igualmente presente no debate contemporâneo sobre o estatuto do discurso ficcional e sobre a reação emocional de seu leitor. Enquanto filósofo, posso acrescentar que quem quiser refletir seriamente sobre, por exemplo, o que é, afinal, arte (questão que a um certo momento também foi desqualificada, mas que me parece inevitável) não vai deixar de tirar proveito da leitura da "Poética". E, se posta na correta relação com as noções de passatempo intelectual e lazer do livro VIII da "Política" a que me referi acima, a "Poética" também pode ajudar a sair da dupla educaçãobrincadeira, duas faces da mesma medalha da infantilização do ser humano adulto que assombra a reflexão estética desde seus primórdios. Bem entendido, a sociedade que Aristóteles defende nos livros VII-VIII da "Política" é marcada pela exclusão, já que nega o direito de cidadania a toda a classe dos produtores, assimilados a escravos, para não falar dos escravos propriamente ditos e das mulheres... Todavia, até onde consigo enxergar, seu caráter de exclusão não deriva do fato de ela pôr o passatempo intelectual e o lazer ao centro de sua organização; simplesmente, Aristóteles acredita dever excluir disso a maior parte da população. Nada impede, contudo, conceber uma sociedade em que toda a população esteja engajada na produção dos bens necessários, participe da ação política em pé de igualdade e se dê como fim último o lazer, ao qual servem tanto a ciência (em seu sentido amplo) quanto aquilo que chamamos de arte. É claro, aqui não me refiro mais à atualidade, mas a uma mudança radical na arte, na crítica e na sociedade atuais.118

Embora essa posição pareça à primeira vista insustentável, vê-se que a idéia de Veloso não é a de ignorar o sentido que temos dado à realidade — ou aos conceitos — até agora e passar a observá-la de uma forma completamente diferente, esquecendo toda a história que nos trouxe até aqui. Bem entendida, a proposta de Veloso é a de tentar estabelecer um diálogo entre nossa própria visão de mundo e a dos gregos clássicos, assumindo a visão do outro de uma maneira radical — tanto histórica quanto filosófica — para tentar entender e repensar a atualidade. E isso, obviamente, não deve ocorrer seguindo automaticamente o                                                              118

In: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/post.asp?t=claudio_veloso_a_catarse_na_poetica_de_aristotel es&cod_post=120136&a=96

   

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texto clássico em seu sentido original, se é que é possível reconstruí-lo, mas dentro do nosso quadro de referências e de nossas possibilidades de pensar e interpretar o real, concebido seja como identidade, emulação ou simulação.

   

4 A releitura  

Metodologia Após este longo percurso, finalmente é possível propor uma nova compreensão da obra de José J. Veiga. Creio, no entanto, que esse percurso foi absolutamente necessário para essa nova compreensão da obra de Veiga de maneira a não trair a antiga regra que dita que a natureza do objeto deve determinar o método de investigação. Por isso, procurou-se ao longo desse trabalho uma definição de realidade. Por meio dela é possível alcançar uma delimitação do fantástico, reconhecendo as principais possibilidades desse elemento aparecer em relação ao real e aproximando, então, uma dessas possibilidades da literatura de Veiga, de forma que isso não venha a negar a presença de outros elementos — ainda que, na minha opinião, os demais elementos sejam apenas secundários em relação ao elemento fantástico. Portanto, somente com algum entendimento do real, reconhece-se o terreno da fantasia. Paul Ricoeur entende o real como a mimesis I, ou a pré-compreensão narrativa. Esse conceito seria algo próximo ao conceito de identidade (ou ser) de Cláudio Veloso119. A grande novidade de Veloso, porém, seria de dividir a representação, compreendida como mimesis II para Paul Ricoeur, entre emulação (ou linguagem cotidiana) e simulação (linguagem metafórica). A emulação seria a tentativa de ser alguma realidade, a simulação apenas carregaria uma semelhança com alguma realidade. Vê-se aqui que uma literatura realista ficaria mais próxima da emulação, enquanto uma literatura fantasiosa ficaria mais próxima da simulação. Mas Todorov define o fantástico — e Christine Brooke-Rose o segue, apenas entendendo o fantástico como um elemento e não um gênero — como uma hesitação entre uma explicação real e uma fantástica da narrativa. Nesse caso,                                                              119

Essa aproximação conceitual parte de minhas próprias idéias sobre o assunto e não é autorizada por nenhum dos dois autores. Entretanto, fica muito claro que são conceitos bem próximos pois ambos se referem ao mundo atual da ação.

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acredito que o elemento fantástico se dá justamente na tensão entre a emulação e a simulação, ainda que em planos diferentes, conforme a visão de Christine BrookeRose, que divide as possibilidades do fantástico tanto em termos de conteúdo, quanto em termos de elementos discursivos. Quando Edgar Allan Poe escreveu seus primeiros contos fantásticos, ele usava uma linguagem objetiva, jornalística e científica (ou emulativa — mais ligada ao sentido, ao lógos) para expressar um conteúdo fabuloso e imaginoso (ou simulativo). Aí subsistiria o fantástico em sua obra: na tensão entre uma linguagem emulativa e um conteúdo simulativo. Já Kafka, em algumas de suas obras, faz exatamente o processo inverso: usa uma linguagem extremamente poética, metafórica e simbólica (ou simulativa — mais ligada aos jogos de nomeação, ao ônoma) para expressar um conteúdo extremamente prosaico, banal e cotidiano (ou emulativo). O fantástico em Kafka, então, seria a tensão entre uma linguagem simulativa e um conteúdo emulativo. Há, porém, alguns casos, como em “A Metamorfose”, em que Kafka cai na pura simulação, a não ser que se interprete a transformação de Gregor Samsa em barata como símbolo de alguma outra coisa habitual do nosso dia-a-dia. Cito esses dois como os primeiros autores — e seguidos por muitos outros — em que essas duas possibilidades de tensão aparecem claramente como projetos literários, mesmo que em direções opostas, e nunca negando a presença de diversos outros elementos na obra de ambos. Finalmente chego à minha própria definição de fantástico: o fantástico é uma tensão entre ciência e poesia. Essa definição é puramente retórica e pode ser substituída por qualquer outra semelhante mais conveniente a cada caso120. Ela simplesmente expressa o conteúdo de uma tensão narrativa entre emulação e simulação em relação a uma realidade dada, segundo a conceituação de narrativa como apropriação humana do tempo de Paul Ricoeur e de realidade como identidade de Cláudio Veloso. O melhor dessa definição é que ela é aplicável a qualquer autor em qualquer momento no tempo e espaço mas é aberta a releituras e reinterpretações.                                                              Por exemplo: o fantástico é uma tensão entre essência e aparência, ou o fantástico é uma tensão entre percepção e imaginação, ou o fantástico é uma tensão entre a função referencial e a poética, ou o fantástico é uma tensão entre história e ficção etc.

120

   

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“A Ilíada” de Homero, se interpretada como uma emulação poética da guerra de Tróia121, é tão fantástica quanto o “O Senhor dos Anéis” de J. R. R. Tolkien, se interpretado como uma emulação simbólica da Segunda Guerra Mundial, o que os diferencia é o contexto, o momento histórico, a realidade que estão imitando (no âmbito da mimesis I, mundo real da ação). Ao mesmo tempo em que o elemento fantástico, como descrito por Todorov, continua sendo evanescente por ser dependente do leitor (no âmbito da mimesis III, ou da interpretação do texto) e pode ocorrer de características emulativas (realistas) de uma narrativa passarem a ser simulativas e vice-versa. Por exemplo, se fosse descoberta a existência de seres extraterrestres, a interpretação de uma parte das novelas de ficção científica poderia, automaticamente, deixar de ser fantástica, porque passaria a ser emulativa e não mais simulativa. Além disso, tal definição e toda essa metodologia não estão restritas somente à literatura, sendo aplicáveis a todas as demais artes produtivas e à própria imaginação humana, conforme a concepção clássica original. Inclusive seria possível fazer uma revisão bem interessante da pintura e do cinema no século XX com as idéias apresentadas. Esta dissertação, entretanto, tratará apenas da releitura da obra de José J. Veiga com os conceitos citados. Sob o prisma da representação, a análise da obra de vários escritores da América Latina e do mundo122 revelaria, na maioria dos casos, a combinação de uma linguagem metafórica com um conteúdo realista. Da mesma forma, a maior parte da literatura de Veiga associa esse mesmo tipo de construção do fantástico, conciliando uma visão crítica da realidade — em relação aos fatos concretos da ditadura brasileira — com uma linguagem simbólica123, através da qual a crítica aparece e se revela. Por isso, como já mencionado, a literatura de Veiga aproximase do projeto kafkiano.

                                                             121

Embora “A Ilíada” só trate de um episódio do nono ano da guerra de Tróia. O que não muda nada para a validade dessa argumentação. 122 Por mais que cada um trate de seu próprio contexto e de sua própria esfera de interesse na realidade dos fatos, seja ela política, social, econômica, filosófica, psicológica etc. 123 Ainda havendo também os casos de pura simulação, de histórias sem qualquer relação com a realidade da ditadura.

   

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O autor Seguindo a idéia inicial desta dissertação de revisitar a obra esquecida de José J. Veiga, torna-se necessária, antes de partir para minha análise, uma apresentação do autor e de sua obra. José Jacintho Pereira Veiga nasceu em 2 de fevereiro de 1915 em um sítio entre Corumbá e Pirenópolis (GO). Ele perde a mãe ainda criança e vai para Goiás morar com parentes e continuar seus estudos. No Liceu de Goiás, na antiga província que era capital do estado, Veiga estudou humanidades e mudou-se, com 20 anos, para o Rio de Janeiro. No Rio, ele trabalhou no comércio (como propagandista de laboratórios farmacêuticos). Em 1936, Veiga começou a trabalhar como locutor na Rádio Guanabara, experiência que ele conta ter mudado sua vida. Como seu horário na rádio ia apenas de 8 até às 10 da manhã, Veiga teve tempo para fazer o curso jurídico na Faculdade Nacional de Direito. Em 1940, após um acordo com a embaixada alemã que proibia na rádio discussões sobre a Segunda Guerra Mundial, Veiga abandonou seu emprego e passou no concurso de redator da Revista do Serviço Público. Em 1945, ele foi contratado pela BBC de Londres para trabalhar como comentarista e tradutor de programas para o português. Ele retorna ao Brasil em 1949, trabalhando como jornalista para O Globo, depois para a Tribuna da Imprensa e, após, nas Seleções do Reader’s Digest. Nas Seleções do Reader’s Digest, onde ficou até 1971, ele ocupava o cargo de supervisor, organizador e revisor das obras condensadas traduzidas do inglês para o português e ele próprio traduziu do inglês obras de Rudyard Kipling e de Ernest Hemingway. Depois disso, coordenou o Departamento Editorial da Fundação Getúlio Vargas. Veiga conta ter sido um leitor assíduo desde criança:

A literatura me perseguia desde os tempos de estudante, ainda em Goiás. Havia uma biblioteca, o Gabinete Literário Goiano, que promovia saraus, palestras, declamações e de que eu era um freqüentador assíduo. E passei a ler Camilo Castelo Branco, Machado, Aluísio Azevedo, José de Alencar. Mas minha primeira grande descoberta literária aconteceu no Rio, no dia em que li pela primeira vez um romance de Eça de Queirós.124                                                              124

CASTELLO, 1997.

   

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Veiga tinha uma vida cultural intensa, convivendo com Graciliano Ramos, Manuel Bandeira e José Lins do Rego, embora admitisse que não tinha coragem de falar com eles, mas ele era amigo pessoal e teve muitas histórias relacionadas com Guimarães Rosa. Em suas obras e entrevistas, ele costuma citar os mais diversos autores — Cervantes, Melville, Balzac, Papini, Maulraux, M. Delly, Henri Ardel, Machado de Assis, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Ortega y Gasset, Thomas Mann, Amok, Stefan Zweig, Edgar Wallace, Rex Stout, Conan Doyle, Agatha Christie, H. G. Wells, George Bernard Shaw, Joseph Conrad, Rudyard Kipling, Edgar Allan Poe125, entre outros. Veiga conta que sempre se sentiu atraído pela leitura: A trama começa atraindo a pessoa para a leitura. Quando ela já está viciada, não conseguindo mais passar um dia sem ler, começa a entrar na fase da crítica. Discute com ela mesma os motivos que a levaram a gostar desse livro e a não gostar daquele. Depois vem a fase da insatisfação: a pessoa se afasta dos livros por algum tempo por não encontrar neles nada que o prenda. Aí vem a loucura final. Se ninguém está escrevendo os livros que ele gostaria de ler, por que não os escreve ele mesmo? Foi assim que caí na armadilha.126

Sendo desde jovem um leitor assíduo, ele confessa em uma entrevista127 que escrevia secretamente já com seus “25, 26 anos”. Ele ainda conta que nos anos 1940

encontrou seu verdadeiro estilo, após ler “Clarissa”, de Érico

Veríssimo: Encontrei um texto muito próximo da linguagem falada, sem literatices, sem palavras difíceis. E passei a escrever do mesmo modo, a imitar essa liberdade. Nessa mesma época, comecei a estudar inglês e passei a ter acesso à literatura estrangeira, o que me abriu muitos horizontes.128

Entretanto, seu primeiro livro, “Os Cavalinhos de Platiplanto”, foi publicado somente em 1959, quando o autor tinha 44 anos129. Veiga decidiu abreviar o “J” de seu segundo nome na assinatura do livro por sugestão de                                                              125

Ainda que disfarçadamente, como o detetive “Edgar Pahl”, do livro “Relógio Belisário”. Em entrevista no prefácio do livro “O Trono do Morro”. VEIGA, 1988, pg. 4. 127 CASTELLO, 1997. 128 CASTELLO, 1997. 129 Ainda que sua estréia tenha realmente se dado no ano anterior, com alguns contos publicados no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. 126

   

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Guimarães Rosa, que estudava numerologia e lhe afirmou que o “J” lhe traria muita sorte:

[Guimarães Rosa] Estudava a astrologia ou até mesmo a numerologia, como atesta a história que envolve o amigo José J. Veiga. Conta-se que foi Joãozito quem aconselhou Veiga a publicar sob o nome J. J.Veiga depois de fazer cálculos numerológicos: ‘Vai te dar muita sorte!’, teria avisado ele.130

O livro recebeu o Prêmio Fábio Prado e foi distinguido com menção honrosa pela Comissão Julgadora do Prêmio Monteiro Lobato, mas demorou algum tempo para “Os Cavalinhos de Platiplanto” alcançarem algum sucesso entre o público, tendo uma segunda edição em somente em 1969 — quando o autor já havia publicado “A Hora dos Ruminantes” e “A Máquina Extraviada”. É na década de 1970 que o autor alcança realmente a fama, tendo quatro edições de seu primeiro livro publicadas131, três em 1974, ano em que também foi publicada a segunda edição de “A Máquina Extraviada”. Todos os seus livros foram e são até hoje publicados pela editora Civilização Brasileira/Bertrand Brasil, e venderam mais de 500 mil exemplares, sendo que o mais vendido é “Sombras de Reis Barbudos”, com mais de 150 mil cópias, logo seguido por “Os Cavalinhos de Platiplanto” e “A Hora dos Ruminantes”, que ultrapassaram 100 mil. Suas histórias também foram além do Brasil sendo exportadas para os Estados Unidos132, Inglaterra, México133, Portugal134, Espanha135, Dinamarca136, Suécia137 e Noruega138. Seus livros entre as décadas de 1970 e 1980 se tornaram moda entre os jovens e foram adotados, em diversas regiões do Brasil, pelas Secretarias de

                                                             130

COSTA, 2006, pg. 32. Pelo menos até 1977. Vide GOMES, 1977, pg. 507. Hoje o livro já possui mais de 20 edições, inclusive uma ilustrada do conto. 132 Nas edições “The Misplaced Machine and Other Stories”, de 1970, e “The Three Trials of Manirema” de 1970 e 1979. 133 Na edição “Los Caballitos de Platiplanto”, de 1972. 134 Na edição “Sombras de Reis Barbudos”, de 1976. 135 Na edição “Sombras de Reyes Barbudos”, de 1978. 136 Na edição “Drøvtyggertimen”, de 1979. 137 Na edição “Idisslarnas Timme”, de 1979. 138 Na edição “Drøvtyggernes Time”, de 1979. 131

   

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Educação das diversas redes de ensino municipais e estaduais e também por muitas universidades. Na década de 1990, uma seleção de seus melhores contos, publicada pela primeira vez em 1989, foi três vezes republicada, mas os seus demais livros já não mantinham o mesmo fôlego nas vendas139 e nem o mesmo reconhecimento por parte dos leitores. Em 1997, um ano antes da publicação de “Objetos Turbulentos”, seu último livro, Veiga recebeu da Academia Brasileira de Letras o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra140. Ele morreu dois anos depois, em 1999, tendo um câncer no pâncreas, por complicações causadas por uma anemia. Hoje, a rodovia que liga Corumbá a Goiânia tem o seu nome. Sobre sua obra, Veiga afirma que não escreveu nada de que tenha se arrependido:

Acho que fiz bem em não ter pressa para publicar. (...) Assim não tenho livros de que deva arrepender-me.141

Sua obra ainda é muito importante e reconhecida, mas se tornou praticamente esquecida depois do ano 2000, com edições escassas e escondidas nas estantes de livrarias e sebos e com um desconhecimento quase total por parte de estudantes e leitores em geral. Acredito que esse esquecimento se deve em grande parte ao fato de ele ter sido envolvido no conjunto dos grandes escritores deixados de lado após cumprirem bem o seu papel de desmascarar o regime ditatorial. Com isso, ficou relegada ao segundo plano uma obra de alto nível de qualidade da literatura fantástica no Brasil.

                                                             139

Exceto talvez por “Sombras de Reis Barbudos”. Veiga também ganhou o prêmio Jabuti pelos livros “De Jogos e Festas”, “Aquele mundo de Vasabarros” e “O risonho cavalo do príncipe”, além de, em 1973,a menção honrosa pelo Concurso Nacional de Literatura com “Sombras de reis barbudos”. 141 CASTELLO, 1997. 140

   

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A obra •

Os Cavalinhos de Platiplanto (1959)

Esta foi a primeira obra e é uma das mais famosas de José J. Veiga. O livro reúne doze contos que podem ser classificados como fantásticos porque sustentam a tensão entre o “real” e o “imaginário”. O conto que dá título ao livro será analisado em profundidade mais à frente, juntamente com o conto “A Estranha Máquina Extraviada” por serem bem representativos da obra do autor, no sentido de darem um bom alcance às suas histórias segundo a releitura aqui tentada. O primeiro — o conto “Os Cavalinhos de Platiplanto” — por estar mais próximo da simulação e o segundo, por estar mais próximo da emulação. Esses seriam duas demarcações dos limites em que se define a obra de Veiga, de maneira que todo o restante estaria inscrito nessas duas extremidades. A pura simulação seria algo próximo do “maravilhoso” de Todorov e a pura emulação estaria próxima do “estranho” e, dessa forma, toda a obra de Veiga seria fantástica, pois esses dois limites não estariam nem na pura simulação e nem na pura emulação, mas sustentariam a tensão entre as duas instâncias, necessária ao fantástico. Desde a epígrafe de Pablo Neruda, Veiga já revela esse caráter de sua obra: “Hablo de cosas que existen. Dios me libre inventar cosas cuando estoy cantando!”142

Mesmo sendo escrito antes da ditadura e da censura, há contos desse livro que contém críticas sociais (como o já citado “A usina atrás do morro”) e que portanto se aproximariam mais da emulação, entretanto, em geral, os contos aqui se aproximam mais da simulação e costumam deixar o final em aberto, chegando até a casos extremos, como o do conto “Professor Pulquério”, em que não se sabe o motivo do desaparecimento do professor no fim do conto. •

A Hora dos Ruminantes (1966)

Neste livro, o tema da invasão estrangeira (como o de “A usina atrás do morro”) é retomado. Como foi escrito depois de 1964, possivelmente ele pode ser entendido como uma crítica à ditadura ou uma alegoria das preocupações que ela causava na época. Entretanto, a simulação imaginária — e portanto o fantástico da                                                              142

VEIGA, 1972, abertura.

   

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obra — permanece na visão do narrador sobre os estrangeiros e sobre os fatos ali ocorridos naqueles tempos. O relógio da igreja aparece como um símbolo do real, uma espécie de contraponto a essa visão simulativa dos estrangeiros por parte do narrador e dos personagens; o livro termina: O relógio da igreja rangeu as engrenagens, bateu horas, lerdo, desregulado. Já estavam erguendo o pêso, acertando os ponteiros. As horas voltavam, tôdas elas, as boas, as más, como deve ser.143



A Máquina Extraviada (1968)

Segundo livro de contos do autor. Dessa vez ele faz a reunião de catorze contos que misturam emulação e simulação. Mas, possivelmente por influências da ditatura, aqui a emulação tende a se tornar mais forte, havendo referências mais claras e específicas, como talvez à Transamazônica no já mencionado conto “O Galo Impertinente” e ao soldado no conto “Uma pedrinha na ponte”. Ainda assim, a simulação ainda permanece forte em contos como “Onde andam os didangos?” e “Os Cascamorros”. De uma forma bem interessante, o conto “Diálogo da relativa grandeza” pode ser interpretado como uma metáfora do próprio fantástico, ou de uma visão imaginária contraposta ao reconhecimento do real. Isso será visto em detalhes na análise posterior do conto. •

Sombras de Reis Barbudos (1972)

Este é o mais famoso livro de Veiga e seu primeiro romance narrado em primeira pessoa. O tipo de narrativa é importante para destacar a visão infantil dos fatos, que será ressaltada mais profundamente na análise de “Os Cavalinhos de Platiplanto”. No livro, a Companhia aparece como, novamente, um invasor estrangeiro que muda a rotina dos habitantes de uma cidade. Ela pode ser interpretada como uma referência à CIA ou à ditadura, o que traria o aspecto emulativo da obra. O aspecto simulativo ficaria na visão e linguagem do narrador, de como explica e como apresenta os fatos:

                                                             143

VEIGA, 1966, pg. 101.

   

  68 Nossa vida voltou à triste rotina de fitar muro, contornar muro, praguejar contra muro — e esperar por algum acontecimento indefinido que nos tirasse desse molde. Os dias se emendavam iguais, de tão iguais se confundiam e pareciam um só. Tínhamos caído em um desvio onde a idéia de tempo não entrava, a vida era uma estrada comprida sem margens nem marcos, estar aqui era o mesmo que estar ali, o hoje se confundia com o ontem e o amanhã não existia nem em sonho; nós esperávamos qualquer coisa, mas já nem sabíamos se era para adiante ou para trás. A única novidade que notávamos em volta era um cheiro cada vez mais forte de mato, de planta, e as pessoas também iam apanhando uma cor esverdeada, víamos isso em nossas mãos e braços, e no rosto quando olhávamos em espelho. Mamãe dizia que estávamos virando capim, e um dia seríamos comidos por bois e cavalos.144



Os Pecados da Tribo (1976)

Neste livro, Veiga se aproxima mais da alegoria, com referências muito mais claras à situação política, ao exército e às drogas, por exemplo. Entretanto nunca são símbolos muito exatos para representar uma alegoria, de maneira que ainda há um grau enorme de simulação, o que segundo a classificação aqui seguida, tornaria esse um romance fantástico, ainda que mais próximo da emulação do que os demais. Há aqui também muita ironia e o uso de certas caricaturas, possivelmente para ridicularizar o novo regime, a mudança dos tempos e a visão do povo sobre isso tudo: Não falei de minha suspeita a ninguém porque ultimamente ando muito cauteloso. Se me perguntarem por que tanta cautela, não saberei responder. Talvez seja faro, sexto sentido. A grande maioria do povo está como que enfeitiçada pelo Umahla, para eles é o Sol no céu e o Umahla na terra, julgam-no incapaz de transgredir qualquer dos Quatrocentos Princípios, baixados por ele mesmo quando tomou as rédeas depois de evaporar o Umahla antigo. Por isso acho melhor fazer de conta que penso como todo mundo, para poder continuar pescando e comendo o bom pacu, que felizmente ainda pula em nossos rios e lagos; o que não me impede de tomar precauções para não ser confundido com os bate-caixa de hoje; e na medida do possível pretendo ir anotando certas coisinhas que talvez interessem ao novo Umahla que há de vir, se eu gostar do jeito dele; mas vou fazer isso devagar, sem afobação nem imprudências, e sem alterar o meu sistema de vida.145

Outra novidade, ou pelo menos algo que aparece bem mais explícito nesse romance, é a noção de um final esperançoso, ou de uma esperança no futuro,

                                                             144 145

VEIGA, 1972, pgs. 51-52. VEIGA, 1976, pg. 2.

   

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provavelmente esperança compartilhada pelo próprio Veiga na época de haver um fim da ditadura ou mudanças políticas e sociais no Brasil:

Isso aconteceu ontem, e ainda me sinto como se o sonho continuasse. Entendo que o encantamento que baixou ontem sobre o território, espontaneamente e sem aviso, foi uma amostra do que poderemos ter sempre — quando merecemos.146



O Professor Burrim e as quatro calamidades (1978)

O livro faz parte da obra infantil de Veiga e, ainda que tenha elementos de emulação de conteúdo e simulação de linguagem, está fora de minha análise, tendendo mais a ser uma fábula moral do que uma história de tensão entre elementos contrários, que induziria ao fantástico. •

De Jogos e Festas (1980)

O livro contem duas novelas e um conto: ¾ De Jogos e Festas De novo surge a idéia da emulação de uma realidade segundo a visão de um certo narrador que os apresenta metaforicamente ou, aqui nesse caso, de forma suspeita. Os fatos não são apresentados por completo e o narrador não tem pleno conhecimento deles, apresentando-os de uma maneira tensional, possível de ser reconhecida pelo leitor. De qualquer maneira, essa novela, embora envolva questões sociais, sai dos problemas políticos dos quais Veiga parecia vir tratando. ¾ Quando a terra era redonda Aqui parece haver um retorno aos problemas políticos com uma linguagem que simula a jornalística, sendo justamente um conto fantástico. Volta-se também à ironia e ao ridículo, quando se trata das mudanças que supostamente ocorreram na cabeça das pessoas quando a terra se tornou quadrada: O Professor Santiago, especialista em psicobiologia, propõe a tese arrojada de que a Terra nunca deixou de ser redonda. (Por favor, não riam enquanto não conhecerem a tese do Professor Santiago.) Segundo ele, a Terra continua redonda                                                              146

Idem, pg. 122.

   

  70 como sempre foi. O que aconteceu foi que as pessoas, geração após geração, foram condicionadas desde pequenas a aceitar o dogma de que vivem numa Terra chata; e como só viam formas chatas por toda parte, acabaram se convencendo.147

¾ O trono do morro Esta novela foi depois republicada em 1988, em uma edição própria. Na segunda edição, há no prefácio uma entrevista de Veiga em que ele admite fazer em “O trono do morro” uma sátira social em linguagem metafórica:

Essa história vinha freqüentando minha mente há muito tempo, como que pedindo apra (sic.) ser escrita. Mas eu achava o tema remoto, filosófico, frio, em suma. Um dia, pensando na realidade política que vivemos, o modelo se encaixou. Era o espetáculo bufo-trágico do exercício do poder no Brasil nos últimos decênios. O tema portanto nada tinha de remoto, era até muito atual. E de que trata “O trono do morro”? Muito resumidamente, trata de uma delusão humana muito comum, principalmente no mundo subdesenvolvido: a das pessoas que pensam que são importantes só porque conseguiram sentar-se numa cadeira alta.148



Aquele mundo de Vasabarros (1982)

Este romance, junto com “Os Pecados da Tribo”, possivelmente é o mais próximo de uma alegoria que José J. Veiga escreveu. Como afirma PARKER [1983], há claras referências à situação social do Brasil e à situação política da época149. Há também, novamente, o uso da sátira e da ironia usados quase certamente como forma de criticar o quadro político e social. Porém, na minha opinião, ao contrário de “Os Pecados da Tribo”, em que a crítica parece ser bem mais política, a crítica aqui é bem mais social, tratando do Brasil como um todo, não apenas na época da ditadura. Ainda assim, ambos saem da alegoria por possuírem muitas referências sem correspondente exato na realidade brasileira, havendo ainda, nos dois casos, grandes doses de simulação. De qualquer forma, claramente é possível reconhecer no romance a visão de Veiga sobre o Brasil e, de novo, suas esperanças no futuro:

                                                             147

VEIGA, 1980, pg. 78. VEIGA, 1988, pg. 5. 149 Inclusive a referência à tortura e ao seqüestro, que aparecera anteriormente em “Os Pecados da Tribo”, por exemplo, aqui aparece de forma bem contundente. 148

   

  71 Aprenda uma coisa, Mogui. Este lugar tem uma maldição, e quem nos diz que não a levamos se sumirmos? O melhor é ficar e tentar decifrar a maldição, assim quem sabe a gente consegue desmanchá-la para os nossos netos ou bisnetos? Eu não fui capaz, tudo o que fiz dessorou. Mas enquanto eu viver, ajudo você.150



Torvelinho Dia e Noite (1985)

Nesta história, publicada na época de redemocratização, há uma invasão de uma cidade, chamada Torvelinho, por fantasmas “bons” que se organizam para se livrar dos “maus” fantasmas. É um romance muito importante e interessante, que carrega bem menos da carga política e social dos anteriores. Esse tenderia mais à simulação, embora ainda tenha muito de emulação, pois os fantasmas, ou pelo menos os “bons”, não se diferenciam em nada dos demais personagens. Acredito que Veiga, nesse romance, também oferece uma importante chave de leitura de sua obra: O Sr. Abreuciano, que estava encostado no balcão, de pernas cruzadas, cruzou os braços também, e disse pensadamente que a maioria das pessoas se contenta com ver só a parte do mundo que lhes é imediata. Outras, mais curiosas, olham mais longe e mais fundo e assim ampliam o campo de conhecimento e conseguem perceber coisas que a maioria não percebe. Ele achava que nem sempre foi assim: os homens antigos viam o mundo em sua totalidade e participavam dele totalmente. A partir de certa época, alguns homens foram se embaraçando em assuntos menores e com isso perdendo em capacidade de visão. Como o domínio desses assuntos menores davam aos que se concentravam neles uma ilusão de poder, essas pessoas passaram a ser invejadas, e conseqüentemente imitadas, e se tornaram maioria. Os poucos que recusaram a ilusão de poder e se mantiveram ligados, conseguiram transmitir a alguns o interesse pelo mundo total, mas aí já eram uma minoria excêntrica e marginalizada. Até hoje esses excêntricos, também chamados de místicos, isto é, os que freqüentam as zonas do mundo onde a maioria não se aventura, seja por medo ou por não saber como, são olhados com uma mistura de desprezo e inveja, racionalizada na velha filosofia de poder, que foi a causadora da separação inicial.151



Tajá e sua gente (1986)

Segundo livro infantil de Veiga que também não será analisado pelos mesmos motivos, embora pareça bem fantástica a idéia de um menino paralítico que anda em um carro levado por um carneiro e enriquece negociando objetos.

                                                             150 151

VEIGA, 1983, pg. 143. VEIGA, 1993, pg. 162.

   

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A Casca da Serpente (1989)

O caso deste romance, que alcançou enorme fama em sete edições, é o de recontar a narrativa de Canudos, a partir de seu fim, como se Antônio Conselheiro não tivesse morrido. Talvez Veiga atinja aqui a perfeição de sua linguagem simulativa e carregada de regionalismos. A mistura entre o documental (ou emulação) e imaginário (ou simulativo), confere a presença do fantástico no romance: Alegria é como gravatá, uma fruta gostosa encastoada num arranjo cercado de folhas espinhentas. O Conselheiro ficara alegre ao saber que o estratagema de passar por morto tinha pegado; mas saber o fim final dos derradeiros defensores da praça o deixara consternado. Que a resistência desesperada foi bonita, foi; mas teria sido útil a morte dos guerreiros? É verdade que eles ficaram porque quiseram, e contra a vontade do Conselheiro. O consolo então era reconhecer que foi bonito. E se tivesse chegado até ele o relato do repórter Pimenta da Cunha, na correspondência que mandou para o seu jornal, mais consolado ficaria ao saber que Canudos não se entregou; precisou ser tomado palmo a palmo pelos atacantes, e que os últimos guerreiros a tombar foram três homens, um deles já idoso, e um menino. Pena que não se ficou conhecendo os nomes deles.152



Melhores Contos (1989)

Reunião dos mais famosos contos publicados nos livros “Os Cavalinhos de Platiplanto” e “A Máquina Extraviada”, com nove contos do primeiro e onze do segundo. •

O Risonho Cavalo do Príncipe (1992)

Um dos últimos romances de Veiga que começa fazendo uma brincadeira com nomes e trazendo um universo infantil, para depois a história se transformar em uma simulação de uma tradução feita pelas mãos de três personagens, aonde um deles resolve fazer críticas sociais ao Brasil. A brincadeira com os nomes permanece mesmo na tradução, usando a dimensão do ônoma para dar sentido, analisar e compreender melhor a realidade em que vivemos. O romance termina: — Outra coisa, tia. Esses reinos existiram mesmo? Galimátias, Morivene, Chapaqua? — perguntou Mem. — Nunca li nada sobre eles. Na parte que eu fiz, eu não dei nome ao reino. — Bem, vocês não me contrataram para rever, corrigir, dar uns retoques? Colaborei nisso. Dentro da história eles existem. O País das Maravilhas de Alice                                                              152

VEIGA, 2003, pg. 48.

   

  73 existiu? Agora existe. No livro. E digo mais. Os nomes desses reinos não entraram aí por acaso. Entraram pelo som das palavras e também por malícia. Sem muito esforço vocês vão perceber. — Eu é que não vou esquentar a cabeça. Gostei dos nomes, e basta — disse César. Basília e Mem concordaram. Afinal, um livro é apenas um livro; e por melhor que seja, a vida tem preferência, e César e Mem tinham muito o que fazer, tinham a escola, as brincadeiras e a vida os chamando para que eles a descobrissem, cada um à sua maneira. E tinha muitos livros para ler nos intervalos.153



Relógio Belisário (1995)

O último romance de Veiga se aproxima do anterior por haver uma ruptura na narrativa, mas também mostra semelhanças com seu último livro de contos — “Objetos Turbulentos” — por usar um relógio como elemento tensional do fantástico. O relógio carrega, exteriormente, uma fama e um requinte, ou seja, um nome sustentado por documentos e pessoas que realmente existiram (por emulação) e carrega, dentro de si, uma narrativa fantástica que simula a realidade e envolve o detetive Sherlock Holmes no Brasil em uma investigação com personagens reais do passado e fatos de época. •

Objetos Turbulentos (1997)

Último livro de José J. Veiga, que inclui contos com objetos que são fantásticos normalmente por possuírem um poder sobrenatural, o que não nega, entretanto, sua presença no mundo e nos fatos reais.

“Eles só existem aqui em Platiplanto” “Os Cavalinhos de Platiplanto” é um conto do livro de mesmo título, primeiro da obra de José J. Veiga. A idéia de uma voz de menino, infantil, atravessada pela linguagem de adultos está presente no conto inteiro. A história é narrada por um menino que nem sempre compreende o que se passa à sua volta e propõe respostas que trazem as palavras e o discurso dos adultos, mas permeadas por sua própria visão e imaginação.

                                                             153

VEIGA, 1998, pgs. 120-121.

   

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Christine Brooke-Rose, falando do conto “The Turn of the Screw”, faz uma longa análise dessa tensão entre texto e narrador: But in all this art, this duty as narrator to convince, to keep up the suspense, to lead and mislead, does she not (in the fiction of character as narrator) ‘arrange things?’ Alternatively, with the fictional time elapsed, does she not, in ‘arranging things’, make the odd slip, or contradict herself?154

O caso de “Os Cavalinhos de Platiplanto” é um pouco diferente, pois o que está em jogo é o preenchimento da realidade por parte do menino diante de uma linguagem inadequada — porque é a dos adultos e não a sua — para expressar o que se passa. Reconhece-se aí, na minha interpretação, a tensão que sustenta o elemento fantástico no conto: uma linguagem que simula a voz dos adultos contra uma visão infantil que emula a realidade155. Isso aparece desde o início do conto: O meu primeiro contato com essas simpáticas criaturinhas deu-se quando eu era muito criança. O meu avô Rubém havia me prometido um cavalinho de sua fazenda do Chove-Chuva se eu deixasse lancetarem o meu pé, arruinado com uma estrepada no brinquedo de pique. Por duas vezes o farmacêutico Osmúsio estivera lá em casa com sua faixa de ferrinhos para o serviço, mas eu fiz tamanho escarcéu que ele não chegou a passar da porta do quarto. Da segunda vez meu pai pediu a Seu Osmúsio que esperasse na varanda enquanto ele ia ter uma conversa comigo. Eu sabia bem que espécie de conversa seria; e aproveitando a vantagem da doença, mal ele caminhou para a cama eu comecei novamente a chorar e gritar, esperando atrair a simpatia de minha mãe e, se possível, também a de algum vizinho para reforçar. Por sorte vovô Rubém ia chegando justamente naquela hora. Quando vi a barba dele apontar na porta, compreendi que estava salvo pelo menos por aquela vez; era uma regra assentada lá em casa que ninguém devia contrariar o vovô Rubém. Em todo caso chorei um pouco mais para consolidar minha vitória, e só sosseguei quando ele intimou meu pai a sair do quarto.156

Desde o princípio a voz do menino é atravessada pela linguagem do vovô Rubém, do farmacêutico Osmúsio, do pai e das regras assentadas na casa. Sua visão dos fatos, porém, é única, o que está claramente expresso na primeira e nas duas últimas frases dessa passagem.                                                              154

BROOKE-ROSE, 1983, pg. 201. Embora o conto também possa ser interpretado como pura simulação se a visão do menino for considerada demasiado fantasiosa e exagerada, ou simulativa. 156 VEIGA, 1972, pgs. 27-28. 155

   

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De maneira muito interessante também, Veiga se utiliza de um advérbio de intensidade para falar do passado em um tempo quase mítico em que ele era “muito criança”. Aí nota-se claramente que a sua maneira de se apropriar do tempo — o que para Paul Ricoeur significa narrar — não é cronológica, mas baseada em critérios subjetivos segundo sua própria visão e experiência pessoal de mudança e amadurecimento. Finalmente, há o uso de regionalismos, como, neste primeiro parágrafo, “estrepada” e “assentada”, que refletem igualmente um discurso marcado por palavras alheias de realidades bem brasileiras, com as quais o narrador não se identifica totalmente porque pertencem à cultura e não ao indivíduo. O discurso desliza da voz do adulto para a infantil, do momento presente do narrador para o seu passado, do discurso formulado para o íntimo, da emulação para a simulação, e isso ocorre muitas vezes na mesma frase, como na terceira frase do texto que usa um título: “farmacêutico Osmúsio”, seguido de uma descrição pessoal: “com sua caixa de ferrinhos”. A sutileza desse mecanismo é de começar uma narrativa a partir de uma memória mais adulta do passado que desliza e se mescla com o ponto de vista infantil. É um narrador adulto com palavras apropriadas a uma criança, é uma linguagem infantil na boca de um adulto. Ademais, a idéia de um narrador que sustenta que aquele fora “seu primeiro contato”, dá uma impressão de necessidade de retorno àquela mesma experiência infantil em outras fases da vida — inclusive na própria narrativa da qual estamos tratando. Ao narrar o conto, retorna-se à Platiplanto, seja como experiência imaginária do passado, ou como a continuidade no mundo de um símbolo que não morre e não deixa nunca de ser presente enquanto existir para o narrador. O conto segue trazendo linguagens de outros, mas partindo da percepção do narrador, segundo sua própria ênfase: Vovô sentou-se na beira da cama, pôs o chapéu e a bengala ao meu lado e perguntou porque era que meu pai estava judiando comigo. Para impressioná-lo melhor eu disse que era porque eu não queria deixar seu Osmúsio cortar o meu pé. — Cortar fora?157                                                              157

Idem, pg. 28.

   

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A voz do menino a partir daqui torna-se ainda mais interessante pois ele passa de uma posição de quem tem plena ciência dos fatos para um simples narrador menino que cai nos artifícios do avô: — É exagero deles. Não é preciso cortar nada. Basta lancetar.158

O menino não percebe o engenho do avô e acaba caindo na cilada:

Ele deve ter notado o meu desapontamento, porque explicou depressa, fazendo cócega na sola do meu pé159

E, finalmente, para convencer o menino, o avô propõe pela primeira vez o cavalinho e surge o desejo: — Mas nessas coisas, mesmo sendo preciso, quem resolve é o dono da doença. Se você não disse que pode, eu não deixo ninguém mexer, nem o rei. Você não é mais desses menininhos de cueiro, que não têm querer. Na festa do Divino você já vai vestir um parelhinho de calça comprida que eu vou comprar, e vou lhe dar também um cavalinho para você acompanhar a folia. — Com arreio mexicano? — Com arreio mexicano. Já encomendei ao Felipe. Mas tem uma coisa. Se você não ficar bom desse pé, não vai poder montar. Eu acho que o jeito é você mandar lancetar logo.160

Todo conto então passa a girar em torno do desejo do menino: Enquanto mamãe fazia os curativos eu só pensava no cavalinho que ia ganhar. Todos os dias quando acordava, a primeira coisa que eu fazia era olhar se o pé estava desinchando. Seria uma maçada se vovô chegasse com o cavalinho e eu ainda não pudesse montar. Mamãe dizia que eu não precisava ficar impaciente, a folia ainda estava longe, assim eu podia até atrasar a cura, mas eu queria tudo depressa.161

Esse desejo cria depois uma enorme decepção do menino por não ter montado o cavalinho:

                                                             158

Idem. Idem. 160 Idem, pgs. 28-29. 161 Idem, pg. 29. 159

   

  77 Mas quando a gente é menino parece que as coisas nunca saem como a gente quer. Por isso é que eu acho que a gente nunca devia querer as coisas de frente por mais que quisesse, e fazer de conta que só queria mais ou menos. Foi de tanto querer o cavalinho, e querer com força, que eu nunca cheguei a tê-lo.162

Essa passagem também reflete toda a tensão entre desejo e realidade, entre interior e exterior, que percorre todo o conto. O avô do menino adoece e, por isso, não cumpre a sua promessa, mas a única preocupação do menino é com o cavalinho, que certamente não é compartilhada por nenhum dos outros personagens. Essa percepção do menino do cavalinho como substituto dos fatos de realidades bem humanas como a da doença e da morte — emuladas na mimesis II — carrega todo o elemento fantástico do conto. O menino chega inclusive a dar um nome ao cavalinho: Um dia eu fui no Jurupensem com meu pai e vi lá um menino alegrinho, com o cabelo caído na testa, direitinho como o de um poldro. Perguntei o nome dele ele disse que era Zibisco. Estipulei logo que o meu cavalinho ia se chamar Zibisco.163

Dar um nome — na dimensão do ônoma — na leitura de Paul Ricoeur seria pela primeira vez dar sentido a uma coisa, o que quer dizer perceber, diferenciar, dar vida. O nome Zibisco representa toda a experiência, única e incompreensível para qualquer outro, com a qual o menino está se defrontando. Esse nome carrega o desejo, a frustração, a doença, a morte, a saudade e tudo mais em uma só unidade de sentido de acordo com a visão do menino. É um nome fantástico. A desilusão do menino vai aumentando à medida que o avô não volta e com a descoberta de que ele não mais retornará, assim como também cresce sua distância dos fatos concretos, imposta pelos adultos:

Depois chegou outra carta, e eu vi mamãe chorando no quarto. Quando entrei lá com uma desculpa de procurar um brinquedo ela me chamou e disse que eu não ficasse triste, mas vovô não ia mais voltar. Perguntei se ele tinha morrido, ela disse que não, mas era como se tivesse. Perguntei se então a gente não ia poder vê-lo nunca mais, ela disse que podia, mas não convinha.                                                              162 163

Idem. Idem, pg. 30.

   

  78 — Seu avô está muito mudado, meu filho. Nem parece o mesmo homem — e caiu no choro de novo.164

É esse estado de dúvida e incerteza que cria a necessidade imaginativa de Platiplanto. É um lugar narrado pelo menino, passo a passo desde sua partida do mundo real, para dar sentido ao que está vivendo segundo sua própria visão. Platiplanto mistura a infância do menino que tinha medo de tocar bandolim, a vetustez do major (talvez uma imagem duplicada do avô), a presença do avô Rubém pairando sobre toda a experiência, o medo dos bichos-feras e os cavalinhos conforme só podem ser descritos em uma imaginação de criança: Os cavalinhos pulavam na água de ponta, de costas, davam cambalhotas, mergulhavam, deitavam-se de costas e esguichavam água pelas ventas fazendo repuxo.165

Provavelmente foi apenas um sonho do menino após um dia cansativo de trabalho:

Não sei se foi nesse dia mesmo, ou poucos dias depois, eu fui sozinho numa fazenda nova e muito imponente, de um senhor que tratavam de major. A gente chegava lá indo por uma ponte, mas não era ponte de atravessar, era de subir. Tinha uns homens trabalhando nela, miudinhos lá no alto, no meio de uma porçoeira de vigas de tábuas soltar. Eu subi até uma certa altura, mas desanimei quando olhei para cima e vi o tantão que faltava. Comecei a descer devagarinho para não falsear o pé, mas um dos homens me viu e pediu-me que o ajudasse. Era um serviço que eles precisavam acabar antes que o sol entrasse, porque se os buracos ficassem abertos de noite muita gente ia chorar lágrimas de sangue, não sei por que era assim, mas foi o que ele disse. Fiquei com medo que isso acontecesse, mas não vi jeito nenhum de ajudar. Eu era muito pequeno, e só de olhar para cima perdia o fôlego. Eu disse isso ao homem, mas ele riu e respondeu que eu não estava com medo nenhum, eu estava era imitando os outros. E antes que eu falasse qualquer outra coisa ele pegou um balde cheio de pedrinhas e jogou para mim. — Vai colocando essas pedrinhas nos lugares, uma depois da outra, sem olhar para cima nem para baixo, de repente você vê que acabou. Fiz como ele mandou, só para mostrar que não era fácil como ele dizia — e era verdade! Antes que eu começasse a me cansar o serviço estava acabado.166

                                                             164

Idem. Idem, pgs. 34-35. 166 Idem, pg. 31. 165

   

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É interessante perceber nessa passagem a idéia de que, até aquele momento, até a entrada em Platiplanto, o menino estava “imitando os outros”, o que tenho interpretado até aqui como a linguagem e visão imposta pelos adultos com a qual, embora simule, ele não se identifica. Também é interessante notar a necessidade de realismo na expressão “— e era verdade!” imediatamente antes ou durante o abandono do real por parte do menino e a entrada em seu próprio mundo onírico. Sempre a imaginação precisa de uma confirmação na realidade, toda emulação e simulação precisa de uma identidade. Entretanto se foi apenas um sonho do menino, a narração não o confirma, daí a dúvida entre uma percepção simulativa ou emulativa por parte do narrador, mas o conto deixa bem claro que Platiplanto não pode ser encontrado em qualquer lugar — no tempo e no espaço — do mundo, apenas na visão única de um menino que se extraviou: Mas depois fiquei meio triste, porque me lembrei do que o major tinha dito — que ninguém podia tirá-los dali. — É verdade — disse ele em confirmação, parece que adivinhando o meu pensamento. — Levar não pode. Eles só existem aqui em Platiplanto.167

A idéia de um sonho compensatório, porém, não é a única leitura possível, havendo outras possibilidades que não a negam e podem até ajudar a compreender outros elementos também presentes no conto. Se for seguida a idéia de jornada heróica de Christopher Vogler [2006], em que a realização do herói segue o seguinte percurso: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9.

Mundo Comum Chamado à Aventura Recusa do Chamado Encontro com o Mentor Travessia do Primeiro Limiar Testes, Aliados, Inimigos Aproximação da Caverna Oculta Provação Recompensa (Apanhando a Espada)

                                                             167

Idem, pg. 35.

   

  80 10. Caminho de Volta 11. Ressureição 12. Retorno com o Elixir168

Pode-se ver que o conto segue perfeitamente essa estrutura narrativa. O narrador começa em seu mundo adulto e é chamado à aventura infantil com a entrada do farmacêutico, pelo delizamento do discurso com o uso da “caixa de ferrinhos”. Inicialmente ele recusa o chamado, até aparecer o avô, que é o principal mentor da história. O movimento em direção à aventura, ou a Travessia do Primeiro Limiar, se dá com a ida para a fazenda, em que a criança rompe com o tempo e com a possibilidade descritiva (“Não sei se foi nesse dia mesmo, ou poucos dias depois...”), indo “sozinho” para uma fazenda “nova e muito imponente”. Daí, os Testes, Aliados e Inimigos são muitos, como atravessar a ponte, colocar as pedrinhas e, entre os aliados e inimigos, o menino que tinha medo de tocar bandolim e os bichos-feras. A região intermediária entre o centro da aventura (Platiplanto, o mundo infantil) e sua fronteira (o real, o mundo adulto), ou a Caverna Oculta, se dá no encontro com o major, que aparece como um novo mentor. Na fase de Provação, há o confronto e a perseguição do menino, que no conto é caracterizada pelos “homens de Nestor Gurgel”, que “estão com ordem de pegar você vivo ou morto”169; aqui, enfim, o narrador de defronta com a falta do avô e com o sonho dos cavalinhos. A Recompensa seria o encontro propriamente dito com os cavalinhos, seguido do caminho de volta para o real, que é caracterizado por um momento de morte e renascimento, em que o narrador retorna ao mundo com uma nova personalidade: Devo ter caído no sono em algum lugar e não vi quando me levaram para casa. Só sei que de manhã acordei já na minha cama, não acreditei logo porque o meu pensamento estava longe, mas aos poucos fui chegando. Era mesmo o meu quarto — a roupa da escola no prego atrás da porta, o quadro da santa na parede, os livros na estante de caixote que eu mesmo fiz, aliás precisava de pintura. Pensei muito se devia contar aos outros, e acabei achando que não. Podiam não acreditar, e ainda rir de mim; e eu queria guardar aquele lugar perfeitinho como vi, para poder voltar lá quando quisesse, nem que fosse em pensamento.170                                                              168

VOGLER, 2006, pgs. 52-53. A teoria de Vogler aparece aqui apenas como apoio para complementar a leitura do conto, não tendo, entretanto, nenhuma relação direta com as teorias anteriores usadas na metodologia. 169 VEIGA, 1972, pg. 33. 170 Idem, pg. 35.

   

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Como o narrador pode retornar lá quando quiser, não causa nenhum problema o fato de ele sair de Platiplanto ou de os cavalinhos só existirem lá, o que significa que houve o Retorno com o Elixir. Sobre o Elixir, Vogler nos diz: “a jornada não tem sentido se ele não trouxer de volta um Elixir, tesouro ou lição do Mundo Especial”171. Qual seria a lição de Platiplanto? Além da maturidade, seguindo a interpretação aqui adotada, a recompensa de ir à Platiplanto é exatamente o auto-conhecimento que permite o reconhecimento do real, ou seja, a saída da simulação e da emulação para entrar no ser, na identidade. O herói sempre está em busca de si mesmo, não apenas segundo sua imaginação simulativa ou a visão emulativa do mundo, mas buscando uma espécie de meio termo que vai além dessas duas instâncias. O herói, depois de descobrir o mundo (ou o “outro”) e de reconhecer a si mesmo, finalmente pode viver na tensão entre essas duas instâncias, a qual todos nós vivemos, que é justamente a tensão do fantástico. O uso de arquétipos no conto reforçaria essa leitura, usando o avô e o major como mentores, o tio e a doença como espécies de “sombras”, ou opositores do herói, e os cavalinhos como recompensa. Além disso, há alguns aliados, testes e inimigos também presentes, de acordo com a terminologia de Vogler. Se o conto também pode ser lido como um relato social, essa leitura se justifica em uma espécie de ética protestante de salvação pelo trabalho e no valor das pequenas tarefas, que proporcionaria ao trabalhador uma espécie de lugar utópico, ou “Platiplanto”. É possível relacionar tal leitura talvez com um otimismo presente no Brasil antes da ditadura, mas dificilmente se relacionará esse conto com alguma situação política da época. Por fim, o conto pode ser interpretado como a própria tensão da criação poética, em que, partindo do mundo (ou da identidade), é necessário ajustar sua visão externa (ou emulativa) e interna (ou simulativa) para criar algo que tenha alguma capacidade de comunicação. A tensão da criação, aqui não só poética e narrativa, mas artística em geral, é exatamente o fantástico, tão presente nesse conto de Veiga.                                                              171

Idem, pg. 65.

   

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“A máquina chegou uma tarde...”

“A Máquina Extraviada” é um pequeno conto do livro “A Estranha Máquina Extraviada”, obra publicada pela primeira vez em 1968, quando a ditadura já era uma realidade no Brasil, mas ainda no início dos anos de chumbo e da censura (o Ato Institucional nº 5 foi decretado nesse mesmo ano, em 13 de dezembro). O conto já começa simulando a linguagem de um diálogo ou uma carta: Você sempre pergunta pelas novidades daqui deste sertão, e finalmente posso lhe contar uma importante.172

Praticamente nenhum dos personagens, nem o narrador e nem o destinatário, são nomeados no decorrer do conto, o que sugere estar falando-se de uma realidade geral, que atinge a todos, não um local ou uma classe específicos. O narrador, junto com todos “deste sertão”, revela-se “bestializado”173 com a instalação naquela região da máquina, para a qual ninguém conseguia dar um significado ou um uso: A máquina ficou ao relento, sem que ninguém soubesse quem a encomendara e nem para que servia.174

Essa máquina, na leitura de Paul Ricoeur, estaria somente no domínio do ônoma, do nome, pois ninguém consegue intuir um discurso, um lógos, sobre ela, ninguém consegue lhe dar sentido. A idéia do diálogo, ou da carta, surge aí com grande importância, pois através do diálogo é que se pretende chegar a uma conclusão sobre a máquina. O próprio narrador, quase certamente uma simulação do próprio José J. Veiga, ainda abalado pela ditadura, tenta compreender a máquina descrevendo-a de maneira a se apropriar dela segundo seu próprio entendimento. Paul Ricoeur diz que a narrativa é a maneira humana de se                                                              172

VEIGA, 1997, pg. 90. Exatamente como Silviano Santiago, seguindo Aristides Lobo, que era um dos propagandistas do república brasileira, descreve a reação do povo diante da Proclamação da República no texto “Os Bestializados — I & II”, em que trata da incompreensão da história de Canudos e inclusive cita José J. Veiga. SANTIAGO, 2004, pg. 93. 174 Idem, pg. 91. 173

   

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apropriar do tempo, portanto o narrador e o próprio Veiga estão aqui tentando assimilar a mudança dos tempos. E a única maneira que encontram para isso, pois ainda estão próximos e surpresos demais com o evento, é pela conversa, distinguindo o que se sabe e o que se está por descobrir da máquina, que é uma emulação da ditadura:

Ninguém passa pelo largo sem ainda parar diante da máquina, e de cada vez há um detalhe novo a notar.175

Em vários momentos o narrador dá indícios de estar falando de uma realidade política e social: é de admirar que ninguém tenha brigado ainda por causa dela, a não ser os políticos.176 A máquina chegou uma tarde (...) e foi descarregada na prefeitura.177 Você se lembra que antigamente os feriados eram comemorados no coreto ou no campo de futebol, mas hoje tudo se passa ao pé da máquina.178 Já existe aqui um movimento para declarar a máquina monumento municipal — por enquanto.179 Ninguém sabe mesmo quem encomendou a máquina. O prefeito jura que não foi ele, e diz que consultou o arquivo e nele não encontrou nenhum documento autorizando a transação. Mesmo assim não quis lavar as mãos, e de certa forma encampou a compra quando designou um funcionário para zelar pela máquina.180

O narrador também destaca o respeito e deferência que todos tinham pela máquina, provavelmente uma simulação da realidade brasileira de cordialismo e submissão às pequenas autoridades que legislam por si próprias, fatos com os quais Veiga devia se confrontar todos os dias: as crianças simplesmente se apaixonaram pela tal máquina.181                                                              175

Idem. Idem, pg. 90. 177 Idem. 178 Idem, pg. 93. 179 Idem, pg. 94. 180 Idem, pg. 92. 181 Idem, pg. 91. 176

   

  84 Até as velhinhas de igreja, que passam de madrugada e de noitinha, tossindo e rezando, viram o rosto para o lado da máquina e fazem uma curvatura discreta, só faltam se benzer. Homens abrutalhados, como Clodoaldo seu conhecido, que se exibe derrubando boi pelos chifres no pátio do mercado, tratam a máquina com respeito (...)182

Há somente uma resistência efetiva, a do vigário, que surge como uma espécie de pregador do que está por vir: A única pessoa que ainda não rendeu homenagem à máquina é o vigário, mas você sabe como ele é ranzinza, e hoje mais ainda, com a idade. Em todo caso, ainda não tentou nada contra ela, e ai dele. Enquanto ficar nas censuras veladas, vamos tolerando; é um direito que ele tem. Sei que ele andou falando em castigo, mas ninguém se impressionou.183

O narrador também dá sinais da truculência dos instaladores da máquina: Muita gente se amontoou na porta, mas ninguém teve coragem de se aproximar dos estranhos porque um deles, percebendo essa intenção dos curiosos, de vez em quando enchia a boca de cerveja e esguichava na direção da porta.184

E chega até a sugerir um episódio de tortura pela máquina: Até agora o único acidente de certa gravidade que tivemos foi quando um caixeiro da loja do velho Adudes (aquele velhinho espigado que passa brilhantina no bigode, se lembra?) prendeu a perna numa engrenagem da máquina, isso por culpa dele mesmo. O rapaz andou bebendo em uma serenata, e em vez de ir para casa achou de dormir em cima da máquina. Não se sabe como, subiu à plataforma mais alta, de madrugada rolou de lá, caiu em cima de uma engrenagem e com o peso acionou as rodas. Os gritos acordaram a cidade, correu gente para verificar a causa, foi preciso arranjar uns barrotes e labancas para desandar as rodas qu estavam mordendo a perna do rapaz. Também dessa vez a máquina nada sofreu, felizmente.185

Ocorre que o conto pode ser uma maneira de descrever a situação brasileira na época para alguém de fora ou da resistência, burlando os limites impostos pela censura, quer sendo ela oficialmente instituída ou quer sendo uma simples obrigação imposta pela coletividade. Também ocorre que o conto pode                                                              182

Idem, pgs. 91-92. Idem, pg. 93. 184 Idem, pg. 91. 185 Idem, pg. 93. 183

   

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ser uma maneira, e o diálogo com o leitor provoca isso, de criar um imaginário coletivo que abarque o estado dos fatos de um regime ditatorial que era tomado como a salvação de todos os males. O próprio narrador tem um respeito imenso pela máquina, o que reflete o respeito que todos os brasileiros têm — e provavelmente na época tinham mais do que nunca — por um Estado paternalista que paira sobre suas cabeças e cuida, à sua maneira, de todos os problemas. A mistificação do Estado e da ditadura, que certamente é também uma fuga da realidade, é um dos temas principais do conto. Ali está refletido todo o resultado trágico desse processo, ocorrido a partir de dezembro daquele mesmo ano, causando a tortura e morte de alguns em nome de algo que não existe, porque não é uma realidade, apenas uma simulação. Veiga emula literariamente a realidade dos brasileiros que na época viviam essa simulação, sem compreendê-la em sua concretude de violência e violação dos direitos. Todo esse aspecto simulativo, por sua vez, está refletido na voz do narrador, provavelmente parecida com a de muitos cidadãos da época. Eis a tensão do fantástico no conto, que é exatamente a mesma tensão em que vivia grande parte dos brasileiros da época em seu mundo imaginário e, por isso, desventuroso. Desventuroso exatamente porque não se está reconhecendo o real, apenas um simulacro, e, diante disso, reage-se não aos fatos, mas à imagem falsa que cada um tem deles. Esse conto merece mais do que nunca ser revisto nos dias de hoje, pois creio que, seguindo essa interpretação, muito pouco mudou desde aqueles tempos. Não importa em qual época, a imaginação sempre precede a ação186. Entretanto Veiga termina o conto com alguma esperança de uma desmistificação. Uma esperança de que, quando o Estado — ou a ditadura naquele período — mostrar-se em suas verdadeiras engrenagens, de violência, desrespeito, de desprezo, de incompetência, de censura, de tortura e de morte, tudo possa vir a mudar:

                                                             186

Com isso quero dizer que a formulação do quadro de referências do pensamento e do imaginário delimita nossas possibilidades de ação e não que a ação humana imita o pensamento, o que seria uma inversão completa de tudo que vem sendo dito até aqui.

   

  86 O meu receio é que, quando menos esperarmos, desembarque aqui um moço de fora, desses despachados, que entendem de tudo, olhe a máquina por fora, por dentro, pense um pouco e comece a explicar a finalidade dela, e para mostrar que é habilidoso (eles são sempre muito habilidosos) peça na garagem um jogo de ferramentas, e sem ligar a nossos protestos se meta por baixo da máquina e desande a apertar, martelar, engatar, e a máquina comece a trabalhar. Se isso acontecer, estará quebrado o encanto e não existirá mais máquina.187

“Será que as nossas tempestades também são brincadeira?” “Diálogo da Relativa Grandeza” é outro conto do livro “A Estranha Máquina Extraviada”, que é dos mais importantes e mais interessantes no que diz respeito à minha leitura da obra de Veiga. O conto narra a história de dois irmãos, Doril e Diana, e embora não expresse isso, deixa claro, por meio da apresentação dos personagens, que ele é mais velho que ela, uma vez que os pensamentos e conhecimentos do irmão são mais maduros: — Sabe aquele livro de história que o Mirto ganhou? [Diana] — Que Mirto, seu. É Milllton. Mania! [Doril]188

No entanto, a partir da seguinte frase (que estaria no domínio do lógos ou do sentido) da irmã: — Amolar um bicho tão pequenininho é o mesmo que judiar.189

Doril começa a se perguntar sobre o tamanho das coisas, questionando e apresentando uma visão simulativa do mundo, ou fundada na aparência e na relatividade das coisas sem lastro de identidade e de realidade: Doril não disse mais nada, qualquer coisa que ele dissesse ela aproveitaria para outra acusação. Era difícil tapar a boca de Diana, ô menina renitente. Ele preferiu continuar olhando o louva-a-deus. Soprou-o de leve, ele encolheu-se e vergou o corpo para o lado do sopro, como faz uma pessoa na ventania. O louva-a-deus estava no meio de uma tempestade de vento, dessas que derrubam árvores e arrancam telhados e podem até levantar uma pessoa do chão. Doril era a força                                                              187

Idem, pg. 94.  VEIGA, 1997, pg. 46.  189  Idem, pg. 47.  188

   

  87 que mandava a tempestade e que podia pará-las quando quisesse. Então ele era Deus? Será que quem manda elas olha para nós como Doril estava olhando para o louva-a-deus? Será que somos pequenos para ele como um gafanhoto é pequeno para nós, ou menores ainda? De que tamanho, comparando — do de formiga? De piolho de galinha? Qual será o nosso tamanho mesmo, verdadeiro?190

Em certo momento, ele discute com a irmã, que busca fundamentos reais, ou pelo menos emulativos, que consigam expressar a relação de tamanho: — Você nem sabe qual é o seu tamanho — insistiu ele. — Então não sei? Já medi e marquei com um carvão atrás da porta da sala. Pode olhar lá, se quiser. Ele sorriu da esperada ingenuidade. — Isso não quer dizer nada. Você não sabe o tamanho da marca.191

A tensão entre os dois irmãos, uma defendendo uma visão emulativa e outro uma visão simulativa do real, se sustenta até o final do conto, uma vez que o diálogo termina com ela pedindo uma autoridade para comprovar a visão do irmão e ele termina defendendo sua posição e descoberta. A própria idéia de um diálogo já é representativa de duas posições contrárias que podem ou não se resolver no final e, nesse caso, a resolução se dá exatamente pela tensão, o que quer dizer, pelo fantástico. O conto então pode ser interpretado como uma metáfora de todo o elemento fantástico segundo a minha leitura, ou seja, de uma visão da realidade em confronto com a própria realidade factual das coisas, um confronto, não necessariamente no mesmo plano, entre simulação e emulação, entre Doril e Diana, que também não estão no mesmo plano pois possuem idades e raciocínios diferentes. Mais para o fim do conto, a cobrança de uma autoridade por parte de Diana acaba sendo recompensada pela aparição da mãe, que seria como a guardiã do real, da identidade e do ser das coisas; o que parece fazer prevalecer a visão emulativa dela. Mas é justamente através da linguagem, do metafórico, que a presença da simulação retorna no final do conto, mantendo a tensão entre uma

                                                             190 191

Idem.  Idem, pgs. 48-49. 

   

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visão e outra, entre a visão individual e simulativa de Doril e a visão de todos e emulativa de Diana: Diana correu também, mais para não ficar sozinha do que para competir. Pularam uma bacia velha, simples tampa de cerveja emborcada no chão. Pularam o fio de linha que Diana tinha pensado que era um rego d’água. Doril tropeçou num balde furado (isto é, um dedal com alça), subiu de um fôlego os dentes do pente que servia de escada para a varanda e entrou no caixotinho de giz onde eles moravam. A mãe, uma formiguinha severa de pano amarrado na cabeça, estava esperando na porta com uma colher e um vidro de xarope nas mãos, a colher uma simples casquinha de arroz. Doril abriu a boca, fechou os olhos e engoliu, o borrifo de xarope desceu queimando a garganta de formiga.192

Pois o fantástico, a partir de Kafka, revela-se como tratando exatamente disso, de um confronto de visões, e esta questão aparece com uma força enorme na obra de José J. Veiga.

                                                             192

 Idem, pgs. 51-52. 

   

Conclusão

A análise efetuada comprovou, com o devido embasamento teórico, que a obra de José J. Veiga é representativa, com valor indiscutível, do modelo mais aceito universalmente de literatura fantástica. Nesse sentido, Veiga pode ser considerado um pioneiro do fantástico no Brasil. No plano teórico, sua literatura só pode ser compreendida através da divisão da representação em três planos distintos, o que lhe confere um conhecimento de seu próprio projeto literário semelhante ao de Kafka, de maneira que sua literatura consegue ao mesmo tempo nos aproximar e nos afastar do real. O fato de essa obra, cuja análise comparativa poderia ser de enorme interesse para os estudos literários atuais, ter caído no esquecimento por parte da maioria dos leitores e estudiosos pode ser atribuído propriamente ao viés de sua crítica sobre a realidade brasileira: o tom metafórico do discurso fantástico associado à denúncia concreta do cerceamento das liberdades individuais que impossibilitariam a visão crítica dos anos de chumbo da ditadura. O fato de a maioria dos críticos só terem atentado para o segundo aspecto de sua obra acabou por torná-lo um autor datado, quando a realidade brasileira apresentada por Veiga em diversos sentidos é ainda a mesma até os dias de hoje. A proposta desta dissertação foi a de fazer uma releitura de José J. Veiga retornando às suas raízes fantásticas. Entretanto, como na filosofia de Aristóteles e em toda filosofia que pretende ter alguma validade prática, chegou o momento de prestar contas ao real, já que foi certamente dele que partiu a visão fantástica de Veiga. Se, como afirma Oswald de Andrade193, a poesia existiria nos fatos, não existiriam nos fatos igualmente as diversas visões de mundo194, as reflexões                                                              193

Em seu “Manifesto Pau-Brasil”. In: http://www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/manifpaubr.html 194 Sobre a importância da visão, diz Aristóteles no início da “Metafísica”: “Todos os homens, por natureza, tendem ao saber. Sinal disso é o amor pelas sensações. De fato, eles amam as sensações por si mesmas, indepentemente da sua utilidade e amam, acima de todas, a sensação da visão. Com efeito, não só em vista da ação, mas mesmo sem ter nenhuma intenção de agir, nós preferimos o ver, em certo sentido, a todas as outras sensações. E o motivo está no fato de que a visão nos proporciona mais conhecimentos do que todas as outras sensações e nos torna manifestas numerosas diferenças entre as coisas.” ARISTÓTELES, 2005, pg. 3. Julián Marías comenta essa passagem do filósofo: “en definitiva es un estilo visual, es un pensamiento visual.

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íntimas de cada um e, inevitavelmente, todos os problemas não resolvidos e todas as nossas contradições internas? Se a linguagem e a filosofia possuem uma parcela criativa e criadora, não seria o caso de tentarmos também observar o que exatamente se está criando para nós mesmos e para o nosso futuro? A filosofia de Paul Ricoeur tende a generalizar o significado de narrativa como aquilo que dá sentido ao mundo. Narrar, para ele, seria construir um mundo próprio e, dentro desse mundo, se localizaria a história de cada um, com um sentido próprio. Cláudio Veloso conclui que a imitação conduziria, em certo momento, à própria identidade do imitador com o imitado. Então não seria de vital importância uma revisão constante de nossas narrativas e de nossos modelos, para tentar dar um sentido a nosso mundo e também tentar descobrir a quem exatamente estamos imitando? A literatura de José J. Veiga abre espaço para todas essas reflexões e quase sempre termina com uma esperança no futuro. Mas essa esperança só existe se confrontada com a capacidade de observar o que há de fantástico, de estranho e de maravilhoso — e também de identidade, de emulação e de simulação — em nossos próprios hábitos e convívio. Veiga tentou ao máximo narrar o que via diante de si na imagem de um Brasil, de muitos brasis. Aproveitando-me da visão ao mesmo tempo crítica e fabulosa de José J. Veiga, termino esta releitura

                                                                                                                                                                    No toda la filosofía es visual. La mayor parte de la filosofía no se ha hecho visualmente, yo he dicho a veces, parece un poco broma, que cuando un filósofo dice algo que no está viendo, ya dejó de interesarme: no está viendo. Ustedes leen, por ejemplo, a muchos autores que no están viendo lo que dicen, lo están razonando, están articulando silogismos..., pero no lo están viendo. Olvidaron a algo muy importante: y es que evidentemente, las mayores de los silogismos no se piensan, proceden de algo de intuición, de una visión, que es justamente lo sabe muy bien Aristóteles. Precisamente por eso dirá que la forma suprema del conocimiento, la sabiduría, la sophia, es epistéme kai nous, ciencia y visión. La visión es capital, es justamente lo que nos inclina a la realidad y nos obliga a trabajar sobre ella. Pero si no hay esa visión capital, falta el elemento fundamental. Si ustedes toman la historia del aristotelismo, verán cómo eso es paradójico: se ha hecho un uso mínimamente visual de Aristóteles. La mayor parte de lo que se ha hecho utilizando Aristóteles, en nombre suyo, desarrollándolo, no era visual. Sería importante preguntarse por qué, por que razones. En definitiva, porque los intereses de los que lo manejaban, a parte de que el conocimiento, insisto, ha sido deficiente, ha sido indirecto, ha sido en traducciones en la mayor parte de la historia. Pero aparte de eso, qué es lo que se buscaba, qué es lo que importaba: se utilizaba Aristóteles como un instrumento. Hay, naturalmente, el uso de su lógica, que es fantástico. Sí, pero la lógica es simplemente un instrumento, es un instrumento para buscar la verdad, es un instrumento para encadenar las verdades, para inferir unas de otras, eso es importante. Es importante, sí, pero no se olvide el nous, no se olvide esa visión.” In: http://www.hottopos.com/mirand11/jmariast.htm

   

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propondo uma revisão do nosso dia-a-dia depois de resgatar a obra de um escritor que olhou para as ruas, e descobriu o fantástico.

   

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