Pavimentos Pé de Moleque na Rua da Constituição

May 31, 2017 | Autor: Anderson Garcia | Categoria: Arqueología urbana
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Cadernos de Educação Patrimonial em Arqueologia

Arqueologia nas Ruas do Rio

CADERNOS DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL EM ARQUEOLOGIA

ARQUEOLOGIA NAS RUAS DO RIO

Rio de Janeiro, junho de 2016

Cadernos de Educação Patrimonial em Arqueologia Arqueologia nas Ruas do Rio Uma publicação do PROGRAMA DE MONITORAMENTO E SALVAMENTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARQUEOLÓGICO NA ÁREA DE IMPLANTAÇÃO DO SISTEMA VEÍCULO LEVE SOBRE TRILHOS VLT – ETAPA II, CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Coordenação Cientifica MaDu Gaspar Coordenação Executiva Iramar Venturini Coordenação Pedagógica Cilcair Andrade Gerente Financeiro Vicente Linhares Edição Cilcair Andrade Gabriela Saba Consultorias Francyla Bousquet Gina Bianchini Pedro Heitor Venturini Linhares Sílvia Puccioni Assistente de Pesquisa Hilda Maria Gaspar Técnico de Segurança Gilmar de Melo Passos Apoio Carlos Eduardo da Silva Tone Luiz Nobre de Souza

Equipe de Campo Coordenação da Pesquisa de Campo Débora Barbosa Suzana Bulcão Arqueólogos Anderson Garcia Cassandra Ribeiro Cleide Trindade Danielle Dias Diogo Borges Gustavo Brito Henrique Vences Jacqueline Amorim Vanessa Meneguci Foto da Capa Vanessa Meneguci

Apresentaçã o A Artefato Arqueologia e Patrimônio apresenta a publicação Cadernos de Educação Patrimonial em Arqueologia. Uma edição especial dedicada a incentivar os educadores a abordarem as pesquisas arqueológicas em suas práticas pedagógicas. A ideia de publicá-la surgiu em meio aos debates entre arqueólogos, historiadores e profissionais da educação que integram as pesquisas realizadas para o PROGRAMA DE MONITORAMENTO E SALVAMENTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARQUEOLÓGICO NA ÁREA DE IMPLANTAÇÃO DO SISTEMA VEÍCULO LEVE SOBRE TRILHOS – VLT – ETAPA II, CIDADE DO RIO DE JANEIRO. O programa que apoia esta publicação chama-se EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: A ARQUEOLOGIA NAS RUAS DO RIO, um

projeto realizado em cumprimento à legislação que rege as pesquisas arqueológicas – neste caso, a Instrução Normativa do IPHAN Nº 01/2015. A pesquisa arqueológica que originou o programa de Educação Patrimonial foi desenvolvida em uma região que apresenta diversos registros da ocupação da cidade do Rio de Janeiro, desde o início da colonização no século XVI. Recentemente, determinadas vertentes da Educação Patrimonial em Arqueologia vêm se destacando ao desenvolver projetos com perfil dialógico e que concentram um público participante na construção do conhecimento. Neste contexto, a escola é considerada um espaço apropriado para realizar ações que permitam a reflexão acerca de conceitos, como identidade e memória, que podem ser construídos através do conhecimento proporcionado pelas pesquisas arqueológicas. Diante disso, nossa equipe espera provocar muitos debates e estruturar diversas atividades que tenham a Arqueologia como ponto de partida para as práticas docentes. Maria Dulce Gaspar Coordenadora Cientifica da Pesquisa Arqueológica

O VLT Carioca é um projeto que resgata para a cidade do Rio de Janeiro o espaço deixado pelo bonde na década de 1960, quando o município possuía mais de 500 km de linhas, promovendo a integração entre os diversos bairros de uma forma bem mais sustentável que a atual. O trânsito caótico, a poluição e a deterioração da qualidade de vida das pessoas são questões que há tempos afligem a maioria dos administradores das grandes metrópoles do mundo e, em especial, o centro do Rio de Janeiro. Entretanto, as propostas para solução deste tema sempre passaram por opções caras ou por soluções inadequadas do ponto de vista da sustentabilidade. Então, como conciliar a melhoria da qualidade de vida com o crescimento das cidades? Esta resposta, apesar de aparentemente trivial, pois já é adotada em algumas cidades do mundo é o transporte público por meio do antigo bonde elétrico, o atual Veículo Leve sobre Trilhos - VLT ou TRAM. Ocorre que, apesar do investimento ser menor que outros modais e o ganho ambiental ser infinitamente superior a qualquer outro movido a combustível fóssil, a inserção urbana do VLT não é algo corriqueiro, pois interage com as pessoas, com os bens tombados e com o subsolo da cidade que, no caso do centro do Rio do Janeiro, possui, pelo menos, 500 anos de história. Relação impossível e/ou incompatível? Não! Jamais! Podemos dizer difícil, mas, de forma alguma, impossível e, muito menos, incompatível. Com o devido compromisso das partes envolvidas, pelo lado do empreendedor de fazer o máximo para preservar o patrimônio e pela parte dos agentes públicos de aceitar que a preservação do patrimônio deve ter uma abordagem mais ampla, isto é, que o termo “preservar” pode significar resgatar e registrar, de forma a assegurar que as gerações futuras irão poder contextualizá-lo, entender a sua origem e a sua importância histórica. E foi assim que a Concessionaria do VLT Carioca, em parceria com os agentes públicos e o auxílio de profissionais extremamente qualificados, entre os quais arqueólogos, historiadores, arquitetos, engenheiros, urbanistas, carpinteiros, pedreiros, soldadores, entre outros, realizou a implantação de 28 km de vias férreas, em pleno centro histórico do Rio de Janeiro, preservando, regatando e registrando, pisos pé-de-moleque, canhões, artefatos, poços e diversas estruturas da época do Brasil Império. Um resgate histórico imensurável e um legado para as futuras gerações que poderão usufruir de um meio de transporte de qualidade. Carlos Baldi Diretor Presidente da Concessionária do VLT Carioca

PAVIMENTOS PÉ DE MOLEQUE NA RUA DA CONSTITUIÇÃO Anderson Garcia Cassandra Ribeiro

A Rua da Constituição foi aberta no final do século XVIII, entre a atual Praça Tiradentes e o Campo de Santana, no centro do Rio de Janeiro. Naquele momento essa rua se chamava Rua dos Ciganos devido a grande presença de pessoas desse grupo que ali viviam. Esta rua, bem como as atuais Praça Tiradentes e a Rua Sete de Setembro, eram consideradas áreas de periferia da cidade que tinha como limite urbano formal a atual Rua Uruguaiana, onde havia uma muralha que a cercava. Desde sua abertura, estava relacionada às práticas comerciais, dentre as quais a de escravos africanos, uma das principais atividades adotadas pelos ciganos assentados no Rio de Janeiro na virada século XVIII para o XIX, sobretudo nessa rua. Durante as obras de infraestrutura no centro da cidade para a instalação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), foram encontrados vestígios arqueológicos da primeira pavimentação dessa área urbana, um tipo de calçamento feito com pedras de tamanhos variados construído por africanos escravizados, conhecido como Pé de Moleque. Geralmente, é feita analogia entre o nome desse tipo de pavimento e o doce de amendoim em razão de suas semelhanças visuais, contudo o nome Pé de Moleque pode ter uma origem nem tão lúdica. Pesquisadores argumentam que a expressão “muleke” – assim como “mulato(a)” – tem sua origem na palavra “mula”, animal híbrido entre jumentos e éguas, sendo assim uma comparação pejorativa com os filhos bastardos de brancos com negras escravizadas. Junto a essa questão, sugerem que o nome “Pé de Moleque” dado a esse tipo de calçamento seria uma expressão popular usada devido as marcas que ficavam dos pés descalços e feridos dos filhos de escravos que andavam sobre calçamentos desse tipo. Com o acompanhamento das atividades de escavação da rua para a construção das lajes de concreto que irão sustentar os trilhos do VLT, foram ainda evidenciados, imediatamente abaixo do asfalto, conjuntos de trilhos e dormentes de madeira usados pelos bondes elétricos até meados do século XX. O pavimento Pé de Moleque esteve, em média,

“Escrevem na rua: juntam cuidadosamente palavras pegam-lhes sílaba a sílaba escolhem, unem, completam, tocam ao de leve por cima e continuam. Com o maço e o suor assinam.” A Ignorância da Morte Antônio Osório, 1978

70cm abaixo do asfalto que cobria a Rua da Constituição, localizado a partir de sondagens abertas com o objetivo de mapear possíveis evidências arqueológicas. Após registros gráficos, fotográficos e topográficos, os trilhos e dormentes dos bondes foram removidos. Assim, por meio de escavações mecânicas e manuais, foi possível mapear cerca de 540m² de remanescentes do Pé de Moleque da Rua dos Ciganos, presente ainda em aproximadamente 20% da atual Rua da Constituição, exceto no trecho entre a Praça da República e a Avenida Gomes Freire. Com a limpeza total da área, percebeu-se que o pavimento Pé de Moleque era composto por blocos de rocha com dimensões variadas, onde as superfícies expostas das rochas de maior tamanho ultrapassavam 50x20cm, com eventuais espaços consequenciais do encaixe entre os blocos maiores preenchidos por unidades menores, algumas com superfícies menores que 6x3cm, mas todas com a superfície aparente polida. 15

A espessura dos blocos maiores ultrapassa 55cm e os menores têm, em média, 5cm, com formas predominantemente piramidais seguidas por quadrangulares. No quarteirão entre a Avenida Gomes Freire e a Rua Regente Feijó o pavimento estava presente em uma extensão de 92,5m em sentido Leste-Oeste e com uma largura média remanescente de 3,5m. No quarteirão entre a Rua Regente Feijó e a Praça Tiradentes o pavimento estava presente em uma extensão de 58,5m em sentido Leste-Oeste e com uma largura média de 4m. O calçamento Pé de Moleque possuía em sua porção central uma canaleta para o escoamento das águas pluviais, construída com lajes centrais com 60cm de largura, em média, e com blocos arranjados de aproximadamente 20cm de largura em suas laterais que funcionavam como paredes de contenção. A largura máxima do pavimento foi evidenciada no quarteirão entre a Rua Regente Feijó e a Praça Tiradentes, com medidas de 3,7m entre a borda Sul da canaleta e o limite final de sua ocorrência ao Sul da rua, composto por grandes blocos orientados preferencialmente de Norte para Sul, com unidades menores acomodadas entre as maiores para preencher os espaços e possibilitar maior resistência ao calçamento. Admitindo-se que a canaleta provavelmente estaria centralizada na rua e utilizando a largura mínima de 3,7m entre a borda da canaleta e o limite de sua ocorrência, acredita-se que a Rua dos Ciganos possuía, pelos menos, 8,4m de largura. Tais projeções indicam que essa rua seria uma espécie de “avenida”, com largura superior à de ruas ainda hoje em uso nessa região, sugerindo que a Rua dos Ciganos seria uma das artérias principais dessa área da cidade durante a transição do século XVIII para o XIX.

Devido à posição dessa estrutura Arqueológica em meio a um centro urbano densamente povoado, o Pé de Moleque acabou sendo impactado uma série de vezes entre os séculos XIX e XX, com a abertura de valas longitudinais em sua porção Norte para instalar redes de telefonia e, em sua porção Sul, para acomodar redes de esgoto, gás e água, tendo sido essa última desviada para cima da canaleta do Pé de Moleque no quarteirão entre a Rua Regente Feijó e a Praça Tiradentes. A partir dessas interferências por obras de infraestrutura, outros cortes menores transversais também foram abertos, principalmente para ligar as redes de gás e água até as casas de meados do século XIX ainda presentes na Rua da Constituição. Além deste calçamento Pé de Moleque relacionado à primeira pavimentação da Rua do Ciganos, na transição do século XVIII para o XIX, um outro tipo de Pé de Moleque, possivelmente de meados do século XIX, foi evidenciado em uma área de 23m², o que corresponde a menos de 1% da área da atual Rua da Constituição, próximo à esquina com a Rua Regente Feijó. Este Pé de Moleque foi construído diretamente sobre o anterior, a partir de blocos de rocha angulosos, sem polimento em sua porção aparente e com dimensões mais padronizadas, onde as superfícies expostas dos maiores chegam a 40x20cm e dos menores a 10x5cm. O remanescente desse pavimento possuía 8m de extensão em sentido Leste-Oeste e largura média de 3m.

Porção do pavimento Pé de Moleque, entre a Rua Regente Feijó e a Praça Tiradentes. Fotografia: Anderson Garcia

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Porção do pavimento Pé de Moleque superior, próximo à esquina entre a ruas da Constituição e Regente Feijó Fotografia: Anderson Garcia

Ilustração dos calceteiros, trabalhadores escravizados que assentavam blocos de rocha como os identificados na Rua da Constituição. Obra de Debret (1824), Calceteiros. (O Rio de Janeiro de Debret. Coleção Castro Maya. Rio de Janeiro: Centro Cultural dos Correios. Museu Castro Maya/ IBRAM/ MinC, 2015)

Construído sobre o anterior, este segundo Pé de Moleque tinha espessura média de 15cm em sua extremidade Norte e 30cm em sua extremidade Sul, diferença atribuída ao declive do pavimento mais antigo, que tinha sua canaleta central como a porção mais baixa da rua, possibilitando o escoamento das águas da chuva até ela. Com a construção do segundo Pé de Moleque esse declive foi modificado, tornando a rua mais plana com a adição de blocos sobrepostos ou mais espessos nas áreas próximas à canaleta do primeiro pavimento, como pode ser observado na imagem acima.

Somando as informações sobre esses dois pavimentos de Pé de Moleque encontrados na Rua da Constituição com o conjunto de trilhos e dormentes dos bondes, as camadas de sedimentos e as redes de tubulações encontradas, foi possível criar um esquema estratigráfico ilustrativo que apresenta a profundidade e disposição dessas duas estruturas arqueológicas apresentado a seguir.

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Esquema estratigráfico da Rua da Constituição mostrando os pavimentos Pé de Moleque e as camadas da rua, desde a areia natural até o asfalto. Produção: Anderson Garcia

A partir da pesquisa arqueológica é possível verificar as modificações entre as camadas de sedimento, como a sobreposição dos pavimentos da área e as transformações que ocorreram desde a preparação de um terreno arenoso para a construção do primeiro pavimento, até o asfalto recente que cobria a Rua da Constituição no início das obras para a implantação do VLT. Análises como essa ajudam a perceber a dinâmica de grandes cidades, como é o caso do Rio de Janeiro, a partir dos registros materiais que revelam uma sequência ininterrupta de modificações do espaço pela população. As áreas urbanas são dinâmicas e estão repletas de transformações espaciais ao longo do tempo. Entre estas transformações está a recolocação de 15m² do calçamento Pé de Moleque mais antigo que pavimentou a Rua dos Ciganos, entre as atuais Praça Tiradentes e a rua Regente Feijó, junto aos trilhos do VLT na Rua da Constituição. O pavimento ficará exposto de forma permanente ou até que novas mudanças ocorram neste espaço que vem sendo ocupado e modificado ao longo de, pelo menos, três séculos.

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