Peça radiofônica e plasticidade verbal: investigação e composição de experimentos radioteatrais

July 26, 2017 | Autor: Lucas Martins Néia | Categoria: Radio, Teatro, Radio Drama, Elocution, Theater, Radiotheatrical experiments
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LUCAS MARTINS NÉIA

PEÇA RADIOFÔNICA E PLASTICIDADE VERBAL INVESTIGAÇÃO E COMPOSIÇÃO DE EXPERIMENTOS RADIOTEATRAIS

LONDRINA 2013

LUCAS MARTINS NÉIA

PEÇA RADIOFÔNICA E PLASTICIDADE VERBAL INVESTIGAÇÃO E COMPOSIÇÃO DE EXPERIMENTOS RADIOTEATRAIS

Trabalho desenvolvido para conclusão do curso de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Londrina; apresentado como requisito para obtenção do título de Bacharel em Artes Cênicas. Orientadora: Prof.a Dr.a Heloisa Helena Bauab

LONDRINA 2013

LUCAS MARTINS NÉIA

PEÇA RADIOFÔNICA E PLASTICIDADE VERBAL INVESTIGAÇÃO E COMPOSIÇÃO DE EXPERIMENTOS RADIOTEATRAIS

Trabalho desenvolvido para conclusão do curso de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Londrina; apresentado como requisito para obtenção do título de Bacharel em Artes Cênicas.

BANCA EXAMINADORA ________________________________________ Prof.a Dr.a Heloisa Helena Bauab Departamento de Música e Teatro (MUT – UEL) ________________________________________ Prof.a M.e Sandra Parra Furlanete Departamento de Música e Teatro (MUT – UEL) ________________________________________ Prof.a Dr.a Sonia Pascolati Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas (LET – UEL)

Londrina, 28 de novembro de 2013.

A todos aqueles que, de alguma forma, já se lançaram ao desafio de tornarem reais os seus devaneios. (Se obtiveram sucesso ou não, aí já é outra história...)

AGRADECIMENTOS Aos

meus

amados

pais,

Antônio

Néia

e

Margarida

Martins Néia, que não só me incentivaram e estiveram ao meu lado nestes quatro intensos anos, como por toda uma vida; este trabalho é o fruto da nossa vitória! Ao meu querido Pic, que iniciou

esta

jornada

comigo,

mas,

infelizmente,

não

pode

chegar até aqui. E à minha Magali, companheirinha inseparável e remédio para meus males quando estou em Jacarezinho. À minha prima, Maria Lúcia Giavina de Almeida Leite, pela amizade e cumplicidade

de

velha

data



e

que

se

manteve

mesmo

a

distância. À minha orientadora, Heloisa Bauab. Não somente pelo empenho e afinco com que se dedicou a este trabalho, mas por ter sido meu alicerce no curso de Artes Cênicas desde meu primeiro ano de graduação e ter me permitido estar ao seu lado em projetos e monitorias. Imensurável é o aprendizado que tive contigo, Bauab – equivalente a toda a admiração que tenho por ti! À

professora

Sandra

Parra,

imprescindível

na

construção deste trabalho; por estar sempre disposta a ouvir minhas pelas

inquietações; palavras

pela

sempre

generosidade

francas

e

de

sinceras

suas –

e

respostas por

dar

e à

Clarinha o título de primeiro bebê que peguei no colo! À professora Sonia Pascolati, responsável por minha primeira incursão na pesquisa acadêmica; por sempre me receber com um abraço afetuoso e confiar no meu trabalho – apesar de meus procedimentos caóticos. À Janete El Haouli, por ter me recebido de braços abertos na TOCA e me fornecido vasto material para pesquisa acústica. Aos grandes e queridos professores que marcaram tanto a minha trajetória na Universidade quanto o meu coração – sim, sou

descaradamente

piegas:

ao

José

Francisco

Quaresma,

à

Raimunda de Brito Batista e à Adriane Gomes, pessoas que não me

deixaram

esmorecer

em

momentos

de

dificuldade.

À

Ceres

Vittori, à Fátima Carneiro dos Santos, ao Jailton Santana, à Thais

D'Abronzo,

docentes

também

ao

Mauro

importantes

Rodrigues nesta

e

à

jornada.

Cláudia À

Saito,

Silvia

Maria

Rodrigues, pelas conversas, risadas e acolhidas constantes na secretaria do MUT. À Camila Sanae, ao Jeferson Mendes, à Otávia Silla, à Paula Regina e à Vanessa de Campos, meus queridos colegas e grandes amigos, sempre dispostos a ajudar no que der e vier. Às que não chegaram até aqui de "corpo presente", tenham a certeza de que muito deste trabalho tem um pouquinho de vocês, minhas lindas. A toda a gente louca que eu conheci nessa Londrina falabelliana: à Luciane Pedroso, à Sheila Mariano, à Leticia Botelho, à Melina Uchida; à Nádia Ferrari de Abreu – que diria que nos reencontraríamos nestas circunstâncias, minha filha? Ao Giovanni Orsi. Ao Alan Macedo Gomes. Ao

Alef

Garcez,

à

Amanda

Tamarozzi,

à

Carol

Martineli, à Gisele Brito, ao Lucas Brandão, à Renata Torres e à Thay Alves, companheiros da Primeiro Encontro. Ao Riccardo Paglia, a quem muito devo pela oportunidade de estágio, e à grande

Edna

teatral.

À

Aguiar, Meire

belíssima

Valin,

referência

sempre

doce

e

na com

minha um

formação

sorriso

de

esperança para nos dar. À minha turminha do Colégio José de Anchieta, que me deu a oportunidade de encenar um Shakespeare –

e

aos

queridos

Amanda

Micheletti

e

Leonardo

Capeletti

Ferreira. E, por último – mas nunca, jamais menos importante (pelo contrário!): a todos os colegas atores que aceitaram participar dessa empreitada comigo. À Amarilis Irani, à Ananda Ribeiro, à Camila Sanae – olha ela aí de novo! –, ao Danilo Gomes

Neiva,

ao

Gabriel

Franco

Rodrigues,

ao

José

Paulo

Brisolla, à Julia Versoza, ao Marco Antonio Paixão, à Mary

Delgado, Mehuta.

à

Sofia

Este

Pellegrini,

trabalho

não

à

seria

Tainara

Caroline

absolutamente

e

nada

à

Tica

sem

a

dedicação, a disponibilidade e o carinho de todos vocês. À Anna Dulce, uma querida que caiu de paraquedas na minha vida e me ensinou diversos exercícios de voz e respiração. À Nani Vasques, pelo delicado olhar sobre o trabalho – demonstrado através das ilustrações. Ao João Lopes, grande figura da Rádio UEL, sempre receptivo para as gravações e para uma boa prosa sobre os tempos em que ele mesmo produzia radionovelas! Ao Eddy Ieger, por nos ter aberto as portas do Estúdio de Música da

UEL.

E

ao

Bruno

Cardial,

estagiário

do

Laboratório

de

Radiojornalismo da UEL, que chegou aos quarenta e cinco do segundo tempo para auxiliar na edição de As rubianadas. A todos, enfim, com quem cruzei por estas estradas – ora tortuosas, ora de tijolos amarelos. E continuo a busca pelo pote de ouro ao final do arco-íris!

Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Manoel de Barros

NÉIA, Lucas Martins. Peça radiofônica e plasticidade verbal: investigação e composição de experimentos radioteatrais. 2013. 98 p. Trabalho de conclusão de curso (graduação em Artes Cênicas) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2013. RESUMO A peça radiofônica, na condição de território de exploração da plasticidade verbal, é a proposta desta pesquisa. Investiga-se tanto o histórico do gênero e seus preceitos estéticos como, na prática, a composição de experimentos radioteatrais a partir de diferentes materiais textuais. Nesse ínterim, tomase a palavra como elemento plástico: palavra que pode ser esculpida, moldada, trabalhada como ação via elocução – resultado do encontro do vocábulo com o universo peculiar de seu emissor. Palavras-chave: Peça radiofônica. Experimentos radioteatrais. Elocução.

NÉIA, Lucas Martins. Radio drama and verbal plasticity: research and composition of radiotheatrical experiments. 2013. 98 p. Trabalho de conclusão de curso (graduação em Artes Cênicas) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2013. ABSTRACT The proposal of this research is the radio drama while being explored in the field of verbal plasticity. It is investigated the historic of the genre and its asthetical precepts, as well the composition of radiotheatrical experiments from diferent textual materials. In the meantime, the word is taken as a plastic element: the word that can be carved, molded and worked as action by elocution - the result of the gathering between the word and the particular universe of its transmitter. Key-words: Elocution.

Radio

drama.

Radiotheatrical

experiments.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Pedi o oceano ..................................

49

Figura 2 – Janela para Juparassu ..........................

70

Figura 3 – Telegrama ......................................

76

Figura 4 – Ba-o-Bárbara ...................................

85

Figura 5 – Azul como a, azul como a .......................

90

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................

12

1 FICÇÃO RADIOFÔNICA: UM APANHADO HISTÓRICO ...............

16

1.1 A FICÇÃO RADIOFÔNICA

BRASIL .............................

27

2 ELOCU(A)ÇÃO: DELÍRIOS DE UMA VOZ-CORPO ..................

33

2.1 PARA QUE

VOZ .......................

34

MUNDOS .........................

36

2.3 SOPROS .................................................

41

2.4 RÉQUIEM PARA SÔNIA .......................................

45

3 RUBIANADAS ..............................................

50

3.1 ACERCA

RUBIÃO .........................................

51

3.2 DA ADAPTAÇÃO ............................................

52

2.2 PALAVRA

E

DE

O

NO

CORPO SONHE

VOZ,

O

3.3 DO TRABALHO COM 3.4 DOS RECURSOS

EM

ENCONTRO

OS

FORMA DE

DE

ATORES .................................. 58

TÉCNICAS ACÚSTICOS ...........................

59

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................

63

REFERÊNCIAS ...............................................

65

APÊNDICES .................................................

69

APÊNDICE A – TEXTO AS RUBIANADAS ...............................

71

E

APÊNDICE B – CARTAZ AS RUBIANADAS ............................... 95 APÊNDICE ACÚSTICO .........................................

96

APÊNDICE ACÚSTICO A – AS RUBIANADAS .............................

97

INTRODUÇÃO [...] me vejo em torno de um antigo aparelho de rádio ouvindo e imaginando personagens, situações, cenários, tempos e histórias (SPRITZER, 2005, p. 19).

Este trabalho nasceu de minhas inquietações acerca do mundo da palavra. No curso de Artes Cênicas, creio que só tomei um contato mais denso com este universo em momentos pontuais;

exemplos

destes

momentos:

as

aulas

de

Literatura

Dramática, ministradas pela professora Sonia Pascolati em meu primeiro

ano;

novamente

Sonia

a

iniciação

em

minha

científica

vida,

agora

que como

desenvolvi



orientadora!



acerca de elementos da poética do dramaturgo italiano Luigi Pirandello presentes no texto dramático Pirandello nunca mais, do

brasileiro

Ricardo

Hofstetter;

e

quando

ingressei

na

Oficina de Dramaturgia e Roteiro, coordenada pela professora Heloisa

Helena

Bauab.

Nestas

instâncias,

comecei

a

me

interessar pelo métier da carpintaria do verbo. A Oficina fora meu "bálsamo benigno" durante três anos de graduação. Por muitas vezes, sentia-me deslocado das propostas

sugeridas

nas

disciplinas

regulares;

ali,

no

entanto, encontrava-me impelido a mergulhar sem culpa no mundo das palavras. Foi aqui que constatei que não há uma receita a ser seguida para dar forma a um devaneio. As palavras têm sua própria voz, ditam seu ritmo; não devemos domá-lo – nem nos é dado este poder -, mas sim navegar para além dele; buscar o extracotidiano das palavras: eis um dos desafios.

13

Veio ao encontro destas ideias uma citação feita pela professora

Sandra

Parra

Furlanete

durante

uma

conversa

informal em determinada rede social – isto quando eu ainda moldava

o

palavras

projeto em

deste

determinadas

estudo



situações:

sobre

como

elas

são

lidar

com

deliciosas;

as é

necessário, porém, saber ouvir seu fluxo para, aí sim, tentar enquadrá-las em propostas e pensamentos. Não é uma questão de domínio, mas de compreensão e troca. Muitos destes pontos só se tornaram evidentes para mim no correr de 2012, quando cursava a terceira série de Artes Cênicas. Passei a me interessar por esse jogo de sedução com as palavras e suas proposições de articulações poéticas devido

às

disciplinas

Direção

Teatral

I

e

Iluminação;

ao

pensar em um mapa de luz para cena desenvolvida durante a primeira matéria citada, lancei-me ao desafio de compô-lo a partir dos acontecimentos e situações presentes na estrutura a qual eu possuía. Para tal, iniciei uma escrita cênica. Com este exercício, acredito que expandi meus horizontes no que tange a questões ligadas a dramaturgia e composição. Meu desafio, então, era: como partir da palavra para construção de algo vinculado às Artes Cênicas que justificasse este trabalho? Ao

refletir

sobre

o

assunto,

veio-me

à

mente

o

trabalho da professora Bauab vinculado ao meio radiofônico. Ora, o rádio me pareceu um meio extremamente propício aos meus anseios, ao teor desta pesquisa no universo das palavras – além de, a mim, soar extremamente atraente toda a aura "retrô" que paira sobre o veículo. Segundo Bauab (1990, p. 106), o ouvinte radiofônico está inserido em um tempo-e-espaço autônomo: não há um objeto específico ligado ao que está sendo dito para ser contemplado pela visão, o que acarretará em um trânsito livre de imagens e sensações. É exatamente por incitar isto que os sons têm o poder de ir à mais obscura gaveta da memória.

14

Este fenômeno, esta característica primordial do rádio, me apaixona. Esta possibilidade de falar a cada um com a sua particularidade e ao mesmo tempo a todos que estão ouvindo rádio. E na certeza de que estes muitos não ouvem a mesma coisa, não ouvem a mesma voz, não veem o mesmo corpo e se sentem provocados nas suas memórias e nas suas imagens, de maneiras totalmente diversas (SPRITZER, 2005, p. 21).

Foi

por

estes

aspectos

que

me

vi

estimulado

a

articular para as ondas radiofônicas uma "engenharia do verbo e do som" (BAUAB, 1990, p. 105) enquanto experiência estética. Ansioso como sou, recrutei doze atores e os dividi em três práticas,

visando

a

um

composição

de

diferentes

referências,

alicerce

dos

peças

mesmo

objetivo

radiofônicas

trabalhos.

diferentes O



para

partindo,

materiais

percurso,

as

três:

porém,

textuais

percalços

e

a de

como

resultados

destas experiências estão devidamente relatados nas próximas páginas. No

primeiro

capítulo

deste

trabalho,

traça-se

um

histórico da ficção radiofônica, abordando seu desenvolvimento na Europa em diversas instâncias, o terror causado nos Estados Unidos por A guerra dos mundos, versão de Orson Welles, e o Brasil

das

lacrimosas

radionovelas

e

dos

experimentos

artístico-sonoros desenvolvidos a partir da década de 1970. No segundo capítulo, são introduzidas as já citadas práticas, elaboradas por meio de reflexões acerca do encontro da

palavra



particular ao

em

todas

as

suas

camadas



com

o

universo

seu emissor; tem-se a noção de palavra como

elemento plástico: palavra que pode ser esculpida, moldada, trabalhada enquanto ação via elocução – poética resultante do encontro anteriormente citado. Por fim, bloco contendo relato do processo de As rubianadas, peça radiofônica construída e elaborada por mim a partir de jogos e improvisações realizados entre três atores estimulados

por

tramas

e

personagens

de

contos

de

Murilo

15

Rubião;

o

material

acústico

resultante

desta

empreitada,

levado a público no dia 28 de novembro de 2013 no Centro Cultural SESI/AML, encontra-se no CD – apêndice acústico – que acompanha este trabalho. Ainda como apêndices, estão dispostos a versão final do texto radiodramático As rubianadas e o cartaz do evento da apresentação supracitada. Que a leitura, enfim, seja agradável!

1 FICÇÃO RADIOFÔNICA: UM APANHADO HISTÓRICO Esta seção se propõe a levantar um histórico acerca das

ficções

radiofônicas;

seu

escopo

reside

nas

obras

que

procuraram forjar um elo entre ouvintes e aparelho de rádio por meio da voz de um emissor, tais como peças radiofônicas, radionovelas e radioseriados; poemas sonoros, para os quais a classificação

"ficção"

pode

soar

inadequada,

também

serão

pontualmente abordados.1 Historicamente, os primeiros escritos, experiências e registros de autores interessados na criação de uma gramática dramática específica para o rádio datam da Alemanha da década de 1920, quando o veículo vive ainda sua "primeira infância". (MONTAGNARI, 2004, p. 147). A considerada

comedy a

of

primeira

danger obra

(1924), de

ficção

de

Richard

criada

Hughes,

é

expressamente

para o meio radiofônico; como sua ação se passava em uma mina de carvão, a sonoplastia se aproveitava de explosões, passos, barulho de água e efeitos de eco. Era um primeiro passo para o que se chamaria de Dunkelstil, estilo "no escuro", no qual as personagens

se

encontravam

em

uma

situação

dramática

cuja

visão lhes era privada; representavam-se realisticamente os 1

Adota-se, aqui, classificação proposta por Mirna Spritzer (2005, p. 45-46), na qual a categoria ficcional abrigaria os gêneros radionovela, seriado e peça radiofônica; dentro deste último, estariam contidos esquetes, contação de histórias, leituras dramatizadas, radiodramas (peças radiofônicas dramáticas de cunho realista), peças radiofônicas épicas, monólogos interiores, poemas sonoros e criações experimentais.

17

sons, poupando os ouvintes de maiores esforços ou devaneios imaginativos. (BAUAB, 1990, p. 107). Na obra SOS Rao-Rao-Foy (1928), de Friedrich Wolf, é utilizado pela primeira vez um recurso que ficaria famoso posteriormente com Orson Welles e sua A guerra dos mundos: a dramatização de uma reportagem transmitida ao vivo. (CORONATO; COLLAÇO, 2008, p. 3). Em 1930, Alfred Döblin, mestre da literatura alemã, vê sua obra Berlin Alexanderplatz – Die Geschichte vom Franz Biberkopf

(Berlim

Biberkopf)

alcançar

Alexanderplatz significativa



A

história

repercussão

ao

de

Franz

adaptá-la

para o veículo radiofônico. Esta peça se tornaria um marco para a nascente radiofonia alemã. (LEÃO, 2003, s/p). Döblin, conforme Heloisa Bauab (1990, p. 108), acreditava que o rádio solicitava uma espécie de retomada do meio acústico, matriz de toda a literatura. O avanço tecnológico obtido nos anos seguintes entre os alemães, ao abrir perspectivas criativas para as técnicas de

gravação,

consolidará

e

colocará

no

ar

as

intenções

inovadoras e artísticas da peça radiofônica, gênero que, "ao reunir em si os elementos do audível, para além do material musical, busca[rá] uma gramática própria que a diferencie de outras

linguagens."

(MONTAGNARI,

2004,

p.

147).

Janete

El

Haouli (2002, s/p) afirma que os conceitos de rádio-arte ou arte

acústica

são

decorrências

diretas

da

intervenção

de

artistas de vanguarda daquele período da República de Weimar: Fruto de uma simbiose entre arte e técnica, as peças radiofônicas experimentariam um florescimento ímpar naquele país, chegando a ser sistematicamente criadas por literatos, dramaturgos, diretores de teatro e pelos próprios diretores das primeiras rádios alemãs.

Esta preocupação revela a concepção do rádio como um meio de efetiva comunicação, pressuposto que Bertolt Brecht assinalou com muita clareza em seus escritos. O autor realizou diversas adaptações de suas obras para o veículo radiofônico.

18

No entanto, sua obra dramática escrita especificamente para o rádio se resume à cantata Der ozeanflug (O voo sobre o oceano, 1928); com músicas do compositor Kurt Weill, a peça tratava sobre a primeira travessia aérea do Atlântico realizada por Charles Lindenbergh em 1927. Os estudos teóricos de Brecht sobre o rádio revelam claramente o posicionamento do dramaturgo acerca de um veículo cuja vocação está na comunicação, não apenas na transmissão de informações

de

efetivação

forma

desta

unilateral;

vocação

o

passa,

processo

de

plena

necessariamente,

pela

consolidação da linguagem radiofônica a partir da exploração de seus próprios recursos expressivos. (SILVA, 2005, s/p). Será

a

exploração

desses

recursos

que

marcará

o

Hörspiel — "jogo ou peça para o ouvido" em tradução literal ou, mais propriamente, "peça radiofônica" – alemão. Descobriuse, por exemplo, o poder simbólico que os sons possuíam ao exercitar a imaginação do ouvinte. El Haouli (2002, s/p) cita o exemplo de Der Narr mit der Hacke (O tolo e o picareta), peça de 1930 escrita por Eduard Reinacher. japonês

cava

granito

de

obstinadamente

uma

montanha

um

que

túnel

isola

Nela, um monge

através

do

mundo

da

face

de

exterior

um

vilarejo da costa. Por anos, o único sinal que os habitantes têm do monge é o som da sua picareta, que é ouvido como um leitmotiv através de toda a peça. Quando o monge consegue abrir, com suas últimas forças, a passagem que servirá para o povo

do

vilarejo,

descobrimos

que,

em

sua

juventude,

esse

trabalhador solitário matou um homem com aquela picareta. "O trabalho é a expiação de seu pecado, e o som da picareta contra a pedra é o símbolo acústico de sua culpa", explicita El Haouli (2002, s/p). Experimentos definitivo

o

mais

conceito

radicais,

de

contudo,

Hörspiel.

marcariam

Algumas

em

práticas,

enxergando a peça radiofônica como meio para experimentações sonoras

de

fato,

romperam

com

a

literatura

convencional

e

19

propuseram uma expansão do meio rádio. Peça com transmissão datada de outubro de 1924, em Frankfurt,

Zauberei auf dem

Sender (Microfone mágico), de Hans Flesch, desafiava as então nascentes

convenções

de

transmissão

radiofônica

com

interrupções, efeitos sonoros e distorção dos tempos musicais, demonstrando aos ouvintes as propriedades "mágicas" do novo meio. (EL HAOULI, 2002, s/p). Em 1926, a peça radiofônica Der tönende Stein (A pedra sonora), de Alfred Braun, então diretor da Rádio Berlim, é denominada por ele de "filme acústico" – "cinema sonoro" ou "cinema para ouvidos". Neste campo, também merece destaque o cineasta alemão Walther Ruttmann, que apresentaria a obra mais bem-acabada

do

gênero:

Wochenende

(Fim

de

semana),

cuja

gravação foi comissionada em 1928 por Hans Flesch; a peça se vale

da

registrar montagem

banda sons

sonora

da

produzidos

primorosa;

seria

película em

cinematográfica

estúdio

então

e

para

manipulá-los

apresentado

em

especialmente

através de radiodifusão. (EL HAOULI, 2002, s/p). Do repertório de

Ruttmann,

destaca-se

ainda

Berlin,

Symphonie

einer

Grosstadt (Berlim, sinfonia de uma grande cidade, 1927), banda sonora

que,

composta

para

documentário

fílmico

homônimo,

também fora transmitida no rádio. É, aliás, do cinema – conforme bem frisa Bauab (1990, p. 107) – que o rádio toma termos e técnicas emprestados para a composição de ficção radiofônica, tais como fade in, fade out, fusão e flashback, além do próprio conceito e prática de montagem. Isto ocorreu à medida que a peça radiofônica "foi se libertando da forte herança teatral que fazia por confinar a todos – personagens e ouvintes – no espaço fixo de um palco imaginário."

(BAUAB,

1990,

p.

107).

El

Haouli

(2002,

s/p)

corrobora este apontamento ao afirmar que o cinema ajudou a alargar o conceito de Hörspiel e a lançar as bases para o surgimento de uma linguagem e uma estética da arte acústica.

20

A dramaturgia de Wochenende é um bom exemplo disso: estimulava a imaginação auditiva do ouvinte, fazendo-o criar espaços onde a ação do filme sonoro transcorre. "O ouvinte percebe a transição de um atordoante dia de trabalho para um suave dia de descanso (um domingo) ao ar livre. Terminado o repouso semanal, volta-se à dura realidade do trabalho numa barulhenta metrópole moderna." (EL HAOULI, 2002, s/p). Tudo isso ocorria através da lógica da montagem cinematográfica, via cortes, fusões e justaposições. Em Bischoff,

1928,

Hans

comissionaria

Flesch, um

junto

segundo

a

Friedrich

trabalho

na

Walther

linha

dos

filmes acústicos: Hallo! Hier welle Erdball! (Alô! Aqui fala Rádio

Terra!),

"sinfonia

sonora"

de

acordo

com

o

próprio

subtítulo. Conforme aponta El Haouli (2002, s/p), a julgar pelas

informações

remanescentes,

a

obra

era

um

mosaico

acústico mais voltado a demonstrações estéticas e técnicas do novo veículo, porém sem a mesma envergadura do trabalho de Ruttmann. Ainda na Alemanha do período, destaca-se o trabalho e o

pensamento

do

filósofo

Walter

Benjamim

sobre

o

veículo.

Autor de cinco peças radiofônicas, dentre as quais O que os alemães liam enquanto seus clássicos escreviam se apresenta como a de maior expressão, Benjamim foi responsável por uma espécie de "ensaios ao microfone", dirigidos aos adolescentes e abordando os mais variados temas: de mitologia a teatro de marionetes, passando até mesmo por experiências próprias de sua

infância

e

juventude.

Benjamim

acreditava

que

a

popularização do rádio seria um importante meio para dirigir o público ao saber. (BAUAB, 1990, p. 108). Nos Estados Unidos, são os anos 1930 que registram os primeiros radiodramas. É neste período e local que florescem as pioneiras radionovelas, baseadas nos fragmentos de romances publicados nos rodapés de jornais diários. Era o início das soap operas (óperas de sabão), afinal, eram patrocinadas por

21

empresas de produtos de limpeza. (MONTAGNARI, 2004, p. 147). Aprofundar-nos-emos

sobre

o

gênero

posteriormente,

ao

discorrermos sobre seu desenvolvimento na América Latina. Também é dos Estados Unidos a peça radiofônica de maior impacto de todos os tempos: The war of the worlds (A guerra

dos

mundos),

"livre

adaptação"

de

Orson

Welles

do

romance homônimo de H. G. Wells. Na noite de 30 de novembro de 1938,

durante

companhia

de

o

programa

teatro

Mercury

comandada

por

theater Welles



–,

homônimo transmitido

da a

partir de Nova Iorque pela CBS, parte considerável do público ouvinte de todo o país entrou em pânico ao acreditar que a terra estava realmente sendo invadida por marcianos – assunto da ficção científica armada por Wells. (MONTAGNARI, 2004, p. 146). A

transmissão

se

iniciou

com

o

aviso

de

que

se

tratava apenas de uma peça; em seguida, a emissão foi retomada normalmente, tendo sido interrompida por boletins de notícias cada vez mais frequentes, que davam conta dos impressionantes acontecimentos

que

estavam

a

ocorrer.

As

intervenções

de

vários "peritos" e o verniz dramático com que foram levadas a cabo contribuíram para a credibilidade da reportagem. A CBS calculou na época que o programa foi ouvido por cerca de seis milhões de pessoas, das quais metade passaram a sintonizá-lo quando já havia começado, perdendo a introdução que informava tratar-se do radioteatro semanal. Pelo menos 1,2 milhões tomaram a dramatização como facto verídico [...]. E, desses, meio milhão tiveram certeza de que o perigo era iminente, entrando em pânico (LÉ, 2012, p. 43-44).

Na França da década de 1940, destaca-se a censura a Antonin Artaud. Em novembro de 1947, o diretor das emissões dramáticas

e

literárias

da

Radio

France,

Fernand

Pouey,

encomendou a Artaud uma emissão para o ciclo intitulado Voz dos

poetas;

garantira

total

liberdade

na

elaboração

do

trabalho. O contundente título, Pour en finir avec le jugement

22

de

Dieu

(Para

escolhido

à

acabar

etapa

de

vez

com

o

da

aceitação

do

Glossolalias

perpassam

toda

juízo

de

projeto.

Deus),

(JORGE;

fora

GOMES,

1975, p. 161-162). a

obra,

cujo

conteúdo

abarca guerra, crueldade, repressão, fecalidade e dicotomias tais como o finito e o infinito, o Cristo que aceitou viver sem corpo, o invisível, a consciência, o desejo sexual; ao fim, um caminho possível: a emasculação e a evisceração do homem. (PROFETA, 2006, s/p). As palavras e locuções utilizadas não

se

usual

apresentam ou

através

alinhavaria

toda

para de

a

serem

uma

interpretadas

trama

tessitura

específica

acústica,

em que

mas

seu

sentido

supostamente

são

trabalhadas

enquanto potências poéticas e sonoras, tão pungentes quanto o próprio conteúdo. Após janeiro

de

regravações.

a

escuta

de

1948

–,

Artaud

A

emissão,

uma

no

primeira

realizou

entanto,

montagem pontuais

programada





em

cortes

e

para

02

de

fevereiro de 1948, não foi ao ar por determinação da direção da

Radio

France



expedida

horas

antes

da

estreia.

Curiosamente, a data é aproximadamente um mês anterior à morte de Artaud. (LEÃO, 2003, s/p). A Alemanha do pós-guerra veria – ou melhor, ouviria – o renascimento da peça radiofônica literária em 1947, com o extraordinário sucesso de Draussen vor der Tür (Do lado de fora da porta), drama de Wolfgang Borchert sobre um soldado alemão que retorna à sua casa. Em 1951, o Hörspiel teria novo impulso com a produção de Träume (Sonhos), de Günter Eich, que encabeçaria uma leva de criação de "peças-sonho" de outros artistas. Durante os anos 1950 e início dos anos 1960, surgem textos

de

Friedrich

Günter

Eich,

Dürrenmatt,

Ilse

Ingeborg

Bachmann,

Aichinger,

Heinrich

Max

Frisch,

Böll,

Peter

Hirche, Fred von Hoerschelmann, Wolfgang Hildesheimer, Leopold Ahlsen e Wolfgang Weyrauch, entre muitos outros escritores, cujos trabalhos foram discutidos enquanto obra literária. Tem-

23

se,

aqui,

a

era

clássica

da

peça

radiofônica

alemã.

(EL

HAOULI, 2002, s/p). Expoente do teatro, Samuel Beckett também desenvolveu um profícuo trabalho no território das peças radiofônicas. Sua primeira experiência no gênero data de 1956: All that fall (Todos os que caem), escrita a pedido da BBC. Words and music (Palavras e música), de 1961, se apresenta, segundo Heloisa Bauab (1990, p. 107), como uma fabulação perfeita do processo criador em rádio (ou em poesia?) Inicialmente, Palavra e Música, personagens típicos do universo do autor, são confrontados em sua solidão e mútua intolerância. Intervém uma espécie de diretor - seu senhor (poeta) - que não apenas lhes implora para "entrarem num acordo" como, para isso, lhes fornece um instrumento de grande utilidade: o tema. O tema, o próprio Beckett o oferece ao compositor que deverá preencher "as falas" de Música - nada além de música - enquanto o autor irlandês segue o mote proposto, se incumbindo de Palavras. [...] A cantata de Words and music, porém, só se efetiva nos momentos finais, depois de acompanharmos cada etapa de sua construção a partir do jogo dialético entre as palavras e a música, motivos celulares de qualquer emissão radiofônica.

Voltando à Alemanha, a partir dos anos 1960, a peça radiofônica seria repensada em seus fundamentos, passando a abrigar diferentes correntes de pesquisa. Surgia assim o Neues Hörspiel, ou a nova peça radiofônica. (BAUAB, 1990, p. 107). Alguns

acontecimentos

foram

determinantes

para

a

retomada das discussões em torno do Hörspiel. O primeiro, em 1961,

foi

a

publicação

de

Das

Hörspiel:

Mittel

und

Möglichkeiten eines totalen Schallspiels (A peça radiofônica: meios e possibilidades de uma peça sonora total), livro de autoria

do

instituição modelo

austríaco do

Hörspiel

estava

exaurido

Friedrich clássico. por

se

Knilli Knilli tratar

que

abalaria

afirmava de

um

que

a tal

discurso

eminentemente literário, e não genuinamente sonoro, alertando para a necessidade da criação de um peça radiofônica total.

24

Diante desse "ataque", críticos e praticantes tradicionais do Hörspiel

reagiriam

com

desdém,

considerando

Knilli

um

mero

apologista dos ideais de Friedrich Wolf e Bertolt Brecht. (EL HAOULI, 2002, s/p). Outro acontecimento que contribuiu para a retomada das discussões sobre o Hörspiel foram as experimentações de Paul Pörtner. Entre 1964 e 1969, Pörtner realizaria os seus Schallspielstudie, estudos de jogos sonoros — obras nas quais, de acordo com El Haouli (2002, s/p), [Pörtner] se valia de processos de compressão, extensão e abstração de sons não-verbais a partir de material verbal (palavras), filtrando-os, modulando-os, permutando-os em técnicas de manipulação sonora como material acústico puro. Assim, Paul Pörtner abria um novo leque de possibilidades criativas, bem como rompia, na base, com a tradição literária, ao desconstruir a semântica e o discurso verbal organizado.

Em 1968, a Rádio Sudoeste Stuttgart transmitia Fünf mann

menschen

(Cinco

homens

humanos),

de

Ernst

Jandl

e

Friedericke Mayröcker, que receberia o importante Prêmio dos Cegos de Guerra para Peça Radiofônica. (EL HAOULI, 2002, s/p). Jandl

e

Mayröcker

eram

autores

do

concretismo

alemão;

por

vezes, engajaram-se diretamente na produção e gravação de seus poemas fonéticos e sonoros. (BAUAB, 1990, p. 107). Os jogos de linguagem, a poesia sonora, princípios da colagem, citações, ready-made acústicos e uma nova relação com a

língua,

o

ruído

e

o

som

se

tornariam

ferramentas

à

disposição de dramaturgos, críticos e literatos praticantes do Neues

Hörspiel.

experimentações

Era

a

poéticas

peça da

radiofônica poesia

dialogando

concreta,

que

com

tem

as

como

expoentes os brasileiros Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos e o suíço Eugen Gomringer. (EL HAOULI, 2002, s/p). A partir daí, a peça radiofônica passou a contar com a

contribuição

de

compositores

atraídos

por

essa

nova

dramaturgia sonora não-dogmática. El Haouli (2002, s/p) afirma

25

que, "para alguns compositores de Música Nova, a criação de peças radiofônicas era algo imediato, um ato quase instintivo devido

às

inestimáveis

contribuições

de

Pierre

Schaeffer

e

John Cage". Por volta de 1970, a cidade de Colônia era polo de experimentação do Hörspiel e também de música experimental. No Seminário de Música Nova de Colônia, promovido em conjunto com o departamento de Hörspiel da WDR, Mauricio Kagel discorreria sobre

o

tema

"Música

como

peça

radiofônica",

defendendo

o

apagamento das fronteiras entre as duas formas artísticas para benefício de ambas. Kagel, na verdade, atualizava o que Kurt Weill já havia dito em 1925: a busca, através da paisagem acústica

como

denominados

de

um

todo,

música

de

ou

fontes

sons



e

a

meios



quer

sejam

fim

de

estruturar

diretor

do

setor

(1980,

p.

172)

sua

própria arte. (EL HAOULI, 2002, s/p). Acústica

Caberia,

entretanto,

da

Klaus

WDR,

ao

Schöning

de

Arte

cunhar

o

conceito para a nova peça radiofônica: No conceito de peça radiofônica cabem muitos aspectos. A peça radiofônica funde os gêneros tradicionais. Nela se fundem a literatura, a música, a arte dramática. A peça radiofônica pode ser a realização acústica de texto e partitura. Mas também a montagem de materiais acústicos originais (documentários): a literatura de fita magnética. Nela diluem-se o lírico, o épico, o dramático. Nela fundem-se fala, ruído, música. A peça radiofônica como produto artístico autônomo e também desligável do meio de comunicação em que nasceu.

Como exímia síntese de linguagens para a radiofonia, Bauab ressalta o trabalho de Heinz von Cramer, compositor, dramaturgo e diretor que habilmente fundia palavra, música, ruído

e

tecnologia

do

som.

Na

avant-garde

das

grandes

renovações estéticas submetidas ao gênero por mais de quatro décadas na Europa, Heinz dedicou-se à adaptação de clássicos da

literatura

mundial



até

o

brasileiro

Morte

e

vida

26

severina,

de

João

Cabral

de

Melo

Neto,

mereceu

tratamento

acústico em 1972. Essa transição da literatura para o rádio ocorria como uma espécie de tradução sonora, dramatúrgica e oral;

ou

seja,

"ao

invés

de

empobrecer

o

código

poético

daquelas obras, ele fez por bem valorizá-lo." (BAUAB, 1990, p. 108). El Haouli (2002, s/p) aponta que, a partir dos anos 1980, a peça radiofônica alemã começaria a ganhar relevância na vida e na consciência sociocultural das pessoas, merecendo um

status

semelhante

ao

da

literatura,

dos

filmes

ou

dos

programas televisivos. Colônia manteria por muito tempo o status de núcleo experimental. Bauab (1990, p. 107-108) dá como exemplo dois trabalhos veiculados pela WDR como arte acústica: Le Corpsbis (O Corpobis), de Henry Chopin - referência francesa no que tange à poesia sonora -, é uma cadeia de sons provindos do corpo e da boca ("poesia física", segundo o próprio); e Ponte Sonora Colônia-São Francisco, do norte-americano Bill Fontana, experimento que mixou ao vivo sons captados de ambientes de ambas as localidades. Em novembro de 1989, representantes de emissoras de rádio estatais da Europa, América e Austrália se comprometeram a

desenvolver

e

pesquisar

a

linguagem

artística

do

rádio.

Nascia, assim, o grupo Ars Acustica, fórum internacional de investigação,

produção

e

difusão

de

arte

acústica,

apoiado

pela European Broadcasting Union–EBU. Atualmente, os avanços tecnológicos permitem a mais variada gama de experimentações. Ora, qualquer um, munido de um gravador, computador ou celular, pode gravar sons e editálos

com

programas

proliferam

sites

quantidade

se

assim

encontram

se

de

com

fácil

manutenção.

experimentos

sobrepõe

enormemente

materiais

sonoros à

Pela –

obviamente

qualidade,

interessantes,

internet, mas

alguns

a

ainda mais

27

antigos

e

que,

graças

a

este

recurso,

têm

seu

acesso

compartilhado. Nesse panorama, o estabelecimento de uma espécie de tipologia

das

poéticas

radiofônicas,

como

esboça

Mirna

Spritzer (2005, p. 44-47), se torna uma tarefa cada vez mais delicada. Se já na análise de diversas das obras mencionadas neste panorama histórico deparamo-nos com certa dificuldade ao tentar

enquadrá-las

em

gêneros

específicos

de

ficção

radiofônica, na contemporaneidade, cujas formas artísticas são fortemente

marcadas

pelo

hibridismo

e

por

diálogos

multimídias, muitos dos termos utilizados outrora podem soar demasiadamente reducionistas.

1.1 A FICÇÃO RADIOFÔNICA O Unidos,

gênero

ganhava

NO

BRASIL

das

radionovelas,

contornos

cubanos

surgido

ao

nos

Estados

privilegiar

o

"lado

trágico e lacrimoso da vida" – já se desenhava o estilo que seria adotado em quase toda a América Latina. (MONTAGNARI, 2004, p. 147). No

Brasil,

inicialmente,

foram

as

produções

radiofônicas de natureza melodramática realizadas "ao vivo" que fizeram a popularidade do radioteatro. Essas irradiações conquistaram

enorme

popularidade

nos

anos

1940,

1950

e,

a

partir dos anos 1960, em melodramas que construíram o padrão e o sucesso das radionovelas. Estas, inspiradas nos folhetins dos

jornais,

tornaram-se

as

grandes

mentoras

das

atuais

telenovelas. (CALABRE, 2006, p. 31-36). Neste tipo de radiodrama, os autores evidenciavam os dramas

amorosos.

Os

ruídos

como

pano

de

fundo

possuíam

a

função de instigar a imaginação do ouvinte; eram eles que faziam a ligação entre o texto e a imaginação: prendiam a atenção,

chamavam

o

ouvinte

a

continuar

participando

da

28

radionovela, provocando-lhe a imaginação para tornar "real" na mente,

pelos

ouvidos,

a

história

que

se

passava.

(VENSON,

1991, p. 20). A Rádio Nacional foi, à sua época, a emissora mais importante do país. Com uma ação homogênea, chegou a atingir uma audiência de 50,2% em 1952. A PRE8 (prefixo da emissora) alcançou seu ápice entre os anos de 1945 a 1956. Durante este período,

possuía

uma

infraestrutura

financeira

e

administrativa invejável; com verbas publicitárias, tinha uma capacidade para manter uma equipe extraordinária, com salários excelentes. (GOLDFEDER, 1980, p. 20). Durante os anos em que ocupou o primeiro lugar de audiência,

a

Rádio

Nacional

manteve

em

seu

corpo

de

funcionários um contingente de 8 diretores, 240 funcionários administrativos, 10 maestros e arranjadores, 30 locutores, 124 músicos,

55

radioatores,

40

radioatrizes,

50

cantores,

45

cantoras e 18 produtores. (CALABRE, 2006, p. 126-127). Nesse quadro de funcionários, estavam nomes como Amaral Gurgel, Max Nunes,

Haroldo

Gracindo,

Barbosa,

ator

Mário

bem-amado

Lago,

muito

Elza

antes

de

Gomes

e

Paulo

protagonizar

a

telenovela homônima. Paulo Gracindo fora alçado, em 1951, ao status de estrela

nacional

ao

protagonizar

o

retumbante

sucesso

O

direito de nascer. De autoria do cubano Felix Caignet, a trama se arrastou por diversos capítulos ao contar a história de Albertinho Limonta, homem que, criado por uma escrava negra, saía em busca de sua verdadeira mãe e descobria que a mesma se encontrava enclausurada num convento. A mesma trama ganharia três

versões

produzidas

pela

televisão

brasileira

posteriormente. No

entanto,

como

frisa

Rudyard

Leão,

não

foram

somente os "folhetins para senhouras" que alçaram o sucesso nas

rádios

aventura,

brasileiras saídos

do

daqueles

mundo

da

tempos. pulp

Os

fiction

seriados –

e

de

ainda

29

majoritariamente importados – atraíam ouvintes masculinos. O sombra, do escritor Walter Brow Gibson, foi um dos títulos que mais

chamou

a

sobrenaturais

atenção

dos

adquiridos

homens:

no

dotada

Oriente,

a

de

poderes

personagem-título

conseguia simular invisibilidade – característica favorecida pela exibição radiofônica –, infiltrando-se nos esconderijos dos bandidos.

Nos Estados Unidos, o Sombra recebeu a voz de

Orson Welles; em São Paulo, coube ao radialista Octávio Gabus Mendes. O programa se iniciava com a indefectível epígrafe: "quem sabe o mal que se esconde nos corações humanos? O Sombra sabe..." (LEÃO, 2003, s/p). Seriados proliferar

nos

policiais

mais

e

variados

de

aventura

horários,

passaram

buscando

a

capturar

a

audiência masculina. Nesta safra, destacam-se As Aventuras de Dick e Peter, radioseriado de Jerônymo Monteiro iniciada em 1937, e O anjo (1948), de Álvaro Aguiar. (LEÃO, 2003, s/p). Também merece atenção o título Jerônimo, o herói do sertão,

criação

nacional

de

Moysés

Weltman

fortemente

influenciada pelo faroeste americano. A trama, criada para a Rádio Nacional em 1953, permaneceu 14 anos no ar; ganhou, ainda,

duas

adaptações

televisivas

no

formato

novela

nas

décadas de 1970 e 1980. Outras autoras que possuíam destaque no

universo

das

radionovelas

eram

Janete

Clair

e

Ivani

Ribeiro; ambas migraram para a televisão e reeditaram, com o advento do vídeo, diversos dos títulos que lhes outorgaram prestígio à época do rádio. O declínio da Rádio Nacional marca o esvaziamento do período áureo do rádio no Brasil. Para Miriam Goldfeder (1980, p. 22), "a falta de apoio do governo Kubitschek e a utilização de formas demasiadamente repetitivas, tornando-as exaustivas, culminaria em um processo lento de decadência." Aos poucos a emissora foi perdendo a infraestrutura que

sustentava

tanto

as

radionovelas

como

os

programas

de

auditório e humorísticos. Com isso, a mais famosa rádio dos

30

anos 1950 teve sua ascensão e queda marcadas pelas mudanças políticas

e

pelo

aparecimento

da

televisão,

que

conseguiu

absorver o contingente profissional e as fórmulas que fizeram o mito da rádio PRE8 - mais um claro sinal a demonstrar que a televisão

brasileira

tem

suas

raízes

intrinsecamente

arraigadas no rádio. (CALABRE, 2006, p. 213-218). O produto ideológico vendido e transmitido para o público foi, durante o auge da Rádio Nacional, as ideias e concepções

políticas

do

Governo

que

sustentava

seu

arsenal

produtivo. (VENSON, 1991, p. 18). Em primeiro lugar estava o nacionalismo

exagerado

de

Vargas,

junto

com

seu

intervencionismo estatal e o populismo como base de governo; depois Dutra, que não trouxe grandes modificações. A Rádio Nacional

continuou

Juscelino

recebendo

Kubitschek

consideráveis,

é

que

revelando,

suas as

então,

verbas.

verbas uma

Somente

sofreram

estrutura

com

cortes

abalada

da

PRE8. (CALABRE, 2006, p. 215). Ainda merece destaque o desenvolvimento do rádio no Rio

Grande

do

Sul,

onde

foi

profícua

a

produção

de

radioteatros, principalmente nos idos da década de 1940. O período mereceu terna e saudosa análise por parte de Mirna Spritzer no livro Bem lembrado, histórias do radioteatro em Porto Alegre (2002). Segundo

El

Haouli

(s/d,

s/p),

as

primeiras

experiências artísticas em rádio no Brasil datam da década de 1970, a partir da realização de seminários e concursos de peças radiofônicas com a colaboração e o apoio do Instituto Goethe,

Grupo

Opinião

e

Fundação

Konrad

Adenauer.

Como

resultado desta iniciativa, os dramaturgos Fernando Peixoto, Germano Blum e João das Neves foram convidados a estudar o gênero peça radiofônica na Alemanha (Westdeutscher Rundfunk WDR, Colônia). Em

1985,



com

a

realização

do

IV

Concurso

Brasileiro de peças radiofônicas, a peça Noturno a duas vozes,

31

escrita, gravada e produzida por Heloisa Bauab, foi premiada em primeiro lugar. (EL HAOULI, s/d, s/p). A atriz, diretora e dramaturga, então, também recebeu da Fundação Konrad Adenauer – uma das promotoras do concurso – uma bolsa para estagiar por um

ano

na

Berthold

emissora Zilly,

retransmitida emissora

de

por

alemã.

Lá,

produzida várias

Colônia,

ensaio/documentário

a

e

peça

traduzida

transmitida

emissoras

Heloisa

foi

do

ainda

radiofônico

país.

escreveu

sobre

pela

a

WDR

e

convite

da

produziu

um

A e

por

poesia

concreta

brasileira. Ao retornar ao Brasil, ministrou diversas oficinas e coordenou, ainda, o projeto AUdioFICções&ritMOS, núcleo de Linguagem Radiofônica das Oficinas Culturais Três Rios. Outra radiomaker

contribuição

Regina

Porto,

importante

que

trabalhou

é

a

da

11

musicista

anos

na

e

Radio

Cultura FM de São Paulo e foi comissionada, em 2002, para fazer a peça Metrópole - São Paulo, um retrato acústico da cidade de São Paulo, para a WDR. El Haouli (s/d, s/p) ainda ressalta

as

importantes

produções

radiofônicas

de

Julio

de

Paula, Roberto D'Ugo, Cynthia Gusmão, entre outros, da Rádio Cultura FM de São Paulo. No Rio de Janeiro, tem-se o reconhecido trabalho de Lilian Zaremba, produtora do programa Rádio Escuta, produzido e apresentado pela Rádio MEC. Há, ainda, as iniciativas de Mauro Costa no trabalho com rádio comunitária. E, em 2003, surge,

por

parte

da

radialista

Núcleo

de

Rádio

Marques,

o

produção

radiofônica

que

e

Arte,

desenvolve

idealizadora coletivo projetos

de

Francisca pesquisa

nas

áreas

e de

documentação, radiodramaturgia, ecologia sonora e design de som. (EL HAOULI, s/d, s/p). Também é muito importante ressaltar o trabalho de dramaturgos que buscaram a renovação da linguagem radiofônica, entre eles as já citadas Heloisa Bauab e Mirna Spritzer, além de

Bosco

Brasil,

Sylvia

Lohn,

Mara

Lúcia

Cardoso,

Ricardo

Milan, Jorge Rein, entre outros. Como ressalta El Haouli (s/d,

32

s/p), imprescindíveis foram as parcerias com as rádios alemãs, que

ofereceram

financiamento

para

produção

de

peças

radiofônicas e de arte acústica. Ressalta-se, ainda, o trabalho da própria Janete El Haouli, uma das pesquisadoras-pilares deste capítulo – como bem se pode observar nas citações. Na década de 1990, Janete foi convidada pela WDR - Studio Akustische Kunst para realizar o

projeto

Stratosound,

retrato

acústico

do

pesquisador

e

performer da voz Demetrio Stratos. Em 1999, a DeutschlandRadio de Berlin a convidou para desenvolver a peça de arte acústica intitulada

Brasil

brasileiro

Hermeto

universo,

em

parceria

Pascoal

com

a

e

com

coprodução

o da

músico WDR

de

Colônia. A participação de artistas-criadores empenhados nas mais diversas experimentações acerca do som se faz vital para a manutenção – e até mesmo a reforma – do espaço radiofônico enquanto

meio

aliado

à

arte.

Daí

a

importância

de

práxis

vinculadas ao tema. "Só assim, talvez, os conteúdos poderão ser transformados, deixando o rádio de funcionar como mero escravo do capitalismo globalizante, do trabalho e do lazer cronometrados". (EL HAOULI, 2001, p. 251).

2 ELOCU(A)ÇÃO: DELÍRIOS DE UMA VOZ-CORPO As

páginas

a

seguir

contemplam

as

fundamentações-

guias para as três práticas que propus ao decorrer deste meu último ano de graduação em Artes Cênicas. Todas tiveram um mesmo

ponto

de

partida

conceitual

exercícios radioteatrais entanto,

partiu-se,

2

no

que

tange

a

jogos

e

propostos nos primeiros ensaios – no

em

cada

grupo,

de

diferentes

textos

literários; possuíam, ainda, um mesmo objetivo: a composição de peças radiofônicas. Devido a imprevistos, falta de tempo e curvas no meio do caminho, entretanto, algumas questões foram readaptadas

para

a

obtenção

e

finalização

de

materiais

acústicos de qualidade até o término deste ano. Com o primeiro grupo, desenvolveram-se experimentos a partir

de

diferentes

materiais

textuais



escolhidos

pelos

próprios atores; o relato do processo e resultados obtidos estão dispostos no tópico Sopros. Outro grupo tomou Valsa n° 6, peça teatral de Nelson Rodrigues, como alicerce – a parte que lhe tange é abordada no subcapítulo Réquiem para Sônia. O terceiro e último grupo – único no qual prevaleceu a proposta inicial da concepção de uma peça radiofônica – teve como base três

contos

de

Murilo

Rubião;

este

trabalho

merecerá

aprofundamento no capítulo subsequente. Mesmo necessário 2

partindo

frisar

que

as

de três

proposições práticas

equivalentes,

sofreram

é

constantes

Acerca dos procedimentos da prática, o ator "apoia-se na estrutura criativa que o teatro lhe oferece para ousar o acontecimento da voz." (SPRITZER, 2005, p. 51).

34

adaptações

conforme

necessidades

para

além

de

questões

relativas a tempo ou a número de ensaios: levaram-se em conta os componentes do grupo em sua individualidade artística e no estabelecimento de uma identidade coletiva; desde o início, a intenção não era sistematizar um método a ser aplicado a todo e qualquer ator/grupo que venha a trabalhar com rádio, mas sim,

a

partir

de

práticas

e

procedimentos

radioteatrais,

investigar as possibilidades de um corpo que, no dizer de Mirna Spritzer (2005, p. 55), "sonha em forma de voz" a partir de materiais textual, sonoro, imagético ou audiovisual que lhe servissem de impulso. Não se fixaram técnicas: suscitaram-se estímulos

que

incentivaram

os

atores

a

desenvolverem

seu

próprio caminho no que se refere à identidade do grupo no qual estavam

inseridos



identidade

gerada

pelo

encontro

dos

materiais pertinentes a cada núcleo (aos atores apresentados e/ou por eles coletados) com o universo particular de seus integrantes e através dos jogos e relações estabelecidos entre eles em salas de ensaio. Neste

sentir,

este

trabalho,

como

também

propõe

Spritzer (2005, p. 26), reconhece "a oralidade como expressão individual e como experiência criativa coletiva".

2.1 PARA QUE

O

CORPO SONHE

EM

FORMA

DE

VOZ

Em sua tese de doutorado, intitulada O corpo tornado voz, Mirna Spritzer aponta que, se no palco há um corpo a explorar

todas

as

suas

potencialidades,

no

rádio

a

única

corporeidade presente, acessível ao espectador (ouvinte), é a voz. Pensa-se, portanto, nesta voz como senhora absoluta da ação;

deve-se

trabalhá-la

de

modo

a,

através

de

sua

manifestação física, representar todos os signos e identidades visuais relativos ao corpo presentes em um espetáculo teatral. (SPRITZER, 2005, p. 22).

35

Spritzer

(2005,

p.

24-26)

crê

que

a

experiência

radiofônica propicia aos atores a sensibilização da voz; esta sensibilização proporciona um conhecimento vocal voltado para o

"efeito

da

voz,

sua

dimensão

temporal

e

espacial,

e

o

estatuto de corpo que [a voz] assume nessa instância". Ao abordar questões relativas ao dizer e ouvir, a autora frisa as potências existentes por trás da fala: dizer é reinventar o real e afirmar a palavra enquanto acontecimento criativo; inclui o gesto, a melodia dos vocábulos, um olhar... Existe um dizer no corpo, como há, também, um corpo no ouvir. Isto se torna evidente no exercício radiofônico, no qual a mera elocução e articulação de sons estabelece um mundo para o ouvinte; um mundo sonhado através do acontecimento concreto da voz. (SPRITZER, 2005, p. 29-30). As

práticas

radiofônicas

tornam

clara

a

impossibilidade de pensar e trabalhar a voz como um elemento separado

do

corpo,

afinal

o

ator

será

confrontado

à

necessidade de ser presença através do ato da elocução. Será através desta busca pela presença, da necessidade de manter a fala viva, que o ator, ao mergulhar em seu próprio mundo à procura de substratos particulares que sustentem as palavras, criará um texto feito de carne, sons, silêncio, movimento, respiração e sangue. [...] O ator é um artista que precisa da intimidade das palavras. Palavra-corpo, dizer-corpo, escuta-corpo, voz-corpo (SPRITZER, 2005, p. 54).

"Não há dizer sem corpo e nem ouvir descarnado." (SPRITZER, 2005, p. 35). A partir desta máxima, pressupõe-se o dizer enquanto resultado do encontro da palavra com o universo peculiar ao seu emissor. Procurar-se-á, agora, investigar a noção de palavra como elemento plástico: palavra que pode ser esculpida, moldada, trabalhada enquanto ação via elocução.

36

2.2 PALAVRA

E

VOZ,

O

ENCONTRO

DE

MUNDOS

Os procedimentos sugeridos para o início de todos os experimentos práticos residiam na investigação das palavras – palavra que, na definição de Armin P. Frank (apud KLIPPERT, 1977, p. 59), é "um campo de forças complexo e multipolar, que se estende entre as suas funções de corpo sonoro, denotação conceitual, evocação imagética e carga afetiva". Nestas investigações, propôs-se o estabelecimento de variados jogos com as palavras a fim de explorar seus mais diversos

níveis:

forma,

sonoridades,

memória,

conceituação,

abstração e tudo o que surgisse disso – outros sons, imagens, até mesmo outras palavras. [...] existe uma relação do ator com a palavra que antecede o veículo, que não pressupõe necessariamente a cena. [...] as experiências da fala expressiva oportunizam exercitar uma voz-corpo que é constitutiva do ofício do ator. Exatamente por ter como sua arte o saber sensível dos sentidos e fazê-los significar em seu corpo instrumento, o ator possui a vocação para a palavra, para o dizer, para encontrar, na composição das frases, a beleza dos sons e dos andamentos (SPRITZER, 2005, p. 51).

Diversas

experimentações

rondaram

o

fenômeno

da

palavra no início do século XX. Klippert (1977, p. 58-73) faz um interessantíssimo apanhado histórico, rememorando desde a radicalidade do Movimento Futurista italiano de 1909 – imbuído do ímpeto da desconstrução agressiva da sintaxe – às operações com os vocábulos utilizadas em peças radiofônicas alemãs de caráter experimental desenvolvidas no correr da última metade do século. Nestas peças, como explanado no primeiro capítulo, buscava-se

não

explorar

uma

história

linear,

composta

de

situações e personagens, e sim um mundo próprio às palavras – teoria

presente

no

tratado

Rundfunkdrama

publicado por Arthur Pfeiffer em 1942.

und

Hörspiel,

37

Bachelard (1976, p. 115), ao discorrer sobre o sonho da linguagem impele-nos

e

a

sugerir uma analogia entre palavra e casa,

trafegar

pelos

mais

diversos

"cômodos"

dos

vocábulos: As palavras – eu o imagino frequentemente – são pequenas casas com porão e sótão. O sentido comum reside no nível do solo, sempre perto do "comércio exterior", no mesmo nível de outrem, este alguém que passa e nunca é um sonhador. Subir a escada na casa da palavra é, de degrau em degrau, abstrair. Descer ao porão é sonhar, é perder-se nos distantes corredores de uma etimologia incerta, é procurar nas palavras tesouros inatingíveis.

Ao citar o exemplo do Poema das trincheiras, "peça radiofônica curta" de Ernst Jandl, Klippert (1977, p. 69-72) sinaliza para o desaparecimento da separação entre a palavra e o que ela denota; o que se quer dizer apresenta-se de forma acústica – o propósito da teoria de Pfeiffer. O instrumento dessa concretização é a voz do autorleitor, o qual, através dela, não invoca apenas a porção do universo em questão, mas também transmite, ao mesmo tempo, a sua posição diante da mesma. Desta forma, embora não surja um jogo de papéis, de personagens, surge um jogo com os sons da fala, que "corporificam" um mundo, diante do qual o autor assume uma posição de representação e valorização (KLIPPERT, 1977, p. 71-72).

Esta posição citada por Klippert vai ao encontro das ideias de Gaiarsa tangentes ao sentido universal e singular da palavra.

Cada

palavra

diversos

níveis;

de

possui

acordo

seu com

universo, o

modo

desdobrável

como

ela

é

em

dita,

contudo, revelando a existência de um emissor, apresentará um significado particular, tangente àquele que a alçou à dimensão da fala. (GAIARSA, 2010, p. 321). O

autor

prossegue:

considera

que

nenhuma

palavra

exista sem contexto. A partir do momento em que ela toma forma –

seja

sob

o

signo

da

escrita,

da

voz

ou

até

mesmo

do

38

pensamento

–,

estará

subjugada

a

uma

série

de

mecanismos

relativos àquele universo. A abstração da mesma também não se livra

disso:

é

a

palavra

simplesmente

explorada

em

outra

"realidade", a qual funciona sob regras e parâmetros próprios. (GAIARSA, 2010, p. 321). Klippert também só vê a palavra a vivenciar toda a sua

capacidade

linguísticos,

na

elocução.

inserida

em

Mesmo uma

subordinada frase

aos

sistemas

pré-modulada,

ela

apresenta algo de próprio quando dita. (KLIPPERT, 1977, p. 7576). A elocução é o encontro, a convergência de aspectos universais da palavra a aspectos particulares do interlocutor; é a palavra a preencher toda a definição de Armin P. Frank citada anteriormente; é letra-música-dança, mágica que ocorre a partir de um centro: o ser humano. A partir do ser humano que trafega do porão ao sótão. APENAS Palavras. São letras – palavras articuladas. São música – pontuação – entonação... São dança – gestos – caras – atitudes Numa cena. A palavra, pois, está – ou pode estar – no corpo todo, e então ela se faz seu espírito – na letra; sua alma – na música; seu modo de estar no mundo – na atitude∙gesto∙dança Numa cena! O centro – inspirador... (GAIARSA, 2010, p. 332-333).

A palavra que se torna concreta, material através da voz. Palavra que, por meio da elocução, transforma-se em ação. Na unidade da palavra e da voz, a palavra se torna um elemento funcional de categoria especial. Ela aparece como tendo sido escolhida por esta voz, em combinações realizadas por esta voz. [...] No ato de uma tal fala, a palavra torna-se acontecimento.

39

Ultrapassa o anonimato do sistema de línguas e passa a ser palavra de expressão, que é falada a partir do centro de uma pessoa. Assim, pode tornarse palavra-ação, seja que apenas o processo de manifestação dessa voz apareça como ação, seja que também tenha um efeito "exterior" ou procure tê-lo, na medida em que ordena, adverte, solicita, admoesta, promete, etc (KLIPPERT, 1977, p. 76).

O

termo

Aristóteles;

para

juntamente

com

espetáculo

e

consenso

na

o

a

o

elocução



filósofo

fábula,

canto,

literatura

grego,

os

os

aparece a

na

elocução

caracteres,

seis

o

elementos

teatral

que

a

Poética

de

constitui,

pensamento,

o

tragédia.

É

da

elocução

envolve

o

sentido do texto pronunciado pelo ator; a este texto, o ator empresta uma enunciação. (PAVIS, 2001, p. 121). O pensamento de Marlene Fortuna acerca do trabalho do ator

com

a

oralidade

caminha

por

vias

muito

próximas

às

reflexões de Klippert, Bachelard e Gaiarsa: ela recomenda o aprofundamento significado

na

"essência"

naquele

da

contexto

–,

palavra



termo

que

seu

verdadeiro

designa

como

significante, "no qual o ator vai especular causas, objetivos, gêneses, consequências, circunstâncias propostas, cronogramas e fluxogramas da expressão." (FORTUNA, 2000, p. 119). Neste sentido, o ator deve se deixar levar por um "estado

de

entrega"

em

que

se

portará

como

uma

criança

a

desvendar os primeiros vocábulos; a procurar o entendimento destes no jogo com sons, ritmos e os objetos que o originaram. (FORTUNA, p. 119-120). Uma espécie de dissecação das palavras pela

qual

os

experimentos

práticos



citados

ousaram

se

aventurar. Esta é a mola propulsora para que o ator ultrapasse uma interpretação equivocada do vocábulo naquele contexto e obtenha

uma

visualização

ou

corporeidade

do

significante,

momento em que o ator faz convergir seu ritmo interno com o resgate da sonoridade poética do texto – tudo a realizar-se, assim, de forma orgânica.

40

Trabalhar com a visualização do sensório-verbal é, enfim, predispor-se à criação de um fecundo campo magnético em que a expressividade sonoro-vocal advém da transformação oportuna da palavra em elemento plástico. Daí vincular-se a gestualidade corporal à imagética da palavra, em que o caráter da visualização é complementado pela expressão corporal (FORTUNA, 2000, p. 122).

Como apresentar

no

é

rádio

a

a

sonora,

única

expressão

deve-se

corporal

aprofundar

esta

a

se

questão

plástica da palavra. Ora, a palavra é material do ator; é necessário, portanto, dilacerar seu "mero efeito decorativo [...] para geri-la em ações viscerais." (FORTUNA, 2000, p. 119). Trabalhando-a enquanto ação, pode-se esculpi-la, moldála. Sobre (2000,

p.

a

122)

visualização aconselha

o

do ator

investigar sons que possam ser

sensório-verbal, a

"ouvir"

Fortuna

imagens

e

a

representados corporalmente,

vivenciados sensorialmente e reproduzidos diagramaticamente – o

que

é

possível

por

meio

da

vinculação

da

gestualidade

corporal à imagética das palavras. Algumas destas proposições foram abordadas nos exercícios práticos de modo a se pensar como

estes

sons

podem

se

refletir

no

corpo

e,

após,

manifestarem-se pela voz – não a mera reprodução do que foi ouvido, mas como um som torna-se voz após todo este processo. Fortuna (2000, p. 122) ainda considera que "o ator deve falar com tamanha luz, como se estivesse pintando uma tela – imagem cromática viva – em sua mente, projetada na mente

do

outro

(plateia)";

o

discurso

necessita,

portanto,

produzir imagens, o que só será possível se este discurso for proferido de forma viva e vigorosa. Nos

ensaios

das

práticas,

foi

utilizado

o

termo

"leitura cromatizada do texto", que consiste justamente nesta leitura viva, no entendimento das sístoles e diástoles das palavras, da pulsação e do ritmo próprios daquele discurso,

41

das

sentenças

e

períodos

a

serem

explorados

por

todos

os

melismas da voz – não se esquecendo dos jogos com as palavras anteriormente

propostos,

muito

pelo

contrário,

sempre

procurando aprofundá-los. O colorido e a matização obtida serão únicos, pois se trata do encontro do universal e do particular, referente ao momento mágico vivenciado por palavra-e-ator: a elocução.

2.3 SOPROS Esmiúça-se, neste tópico, o trabalho realizado com o grupo

cujos

textuais.

componentes

Nossas

escolheram

reuniões

os

semanais

em

próprios salas

de

materiais ensaio

se

iniciaram em março de 2013 e tiveram um fim em junho deste mesmo ano. O objetivo era, no decorrer do processo, encaminhar as

práticas

para

a

formulação

e

gravação

de

uma

peça

radiofônica. O tempo, no entanto, foi escasso. E conduzir seis vozes não é tarefa das mais fáceis! Os exercícios

procedimentos de

escuta

de

foram

os

material

mais

diversos:

radiofônico,

de

desde

sons

do

ambiente – no caso, a praça do CECA, UEL – e, obviamente, o trabalho a partir dos textos. A intenção era investigar todos os níveis da palavra, decompô-la, se preciso, para a busca por sonoridades. O trabalho com sons de objetos também ocorreu. Improvisações

em

grupo

e

no

escuro

também

foram

proposições executadas. O interessante é notar que os atores pouquíssimas vezes trabalharam parados, fixos somente em um lugar da sala. Os exercícios no escuro foram excelentes no início

ao

grupo

para

permitirem explorarem

certa suas

desinibição

dos

vozes-corpos,

componentes e

eles

não

do se

limitaram a pequenos espaços: trafegaram por toda a sala e passaram por diversos níveis.

42

Foi por meio destas improvisações que passaram a se estabelecer

ligações

entre

os

textos

individualmente

trabalhados; de anotações realizadas durante os ensaios, foi possível

visualizar

aproximações,

afinidades

e

até

mesmo

contraposições entre os integrantes do grupo e suas formas de trabalho. Os atores, então, passaram a desenvolver "leituras cromatizadas" – a leitura viva destacada no tópico anterior – dos textos que escolheram. Minha função aqui era investigar o método

de

trabalho

de

cada

um

em

particular

para,

assim,

orientá-los na elocução, na expressão sonoro-verbal do texto de forma que esta soasse como o efetivo encontro de mundos citado anteriormente – o do texto e o do ator. Para isso, por intermédio da observação de seus métodos de trabalho e de uma apurada leitura dos relatos produzidos em sala, mergulhei em seus universos com o intuito de descobrir elementos poéticos intrínsecos a cada um e como estes elementos dialogavam com os textos trabalhados. A atriz Amarilis Irani optou por trabalhar com um trecho

do

poema

Tabacaria,

de

Fernando

Pessoa.

Em

sua

articulação, contrapôs uma menina e uma pessoa mais velha, ambas defronte às sensações causadas por um chocolate. Em seus escritos, revelava certa agonia ao procurar os sons, além de ter se dedicado a uma espécie de classificação das risadas dos transeuntes

do

CECA

quando

realizou

a

escuta

do

ambiente;

revelou-se com medo, angústia diante do assovio do vento e, em outro

momento,

manifesta

no

chegou escuro.

à

conclusão

Propus

de

que,

que para

o

metafísico

desenvolver

se seu

experimento, ela procurasse se aproveitar da facilidade que possuía

para

transformar

escuta

em

imagem

poética

na

articulação do som. Camila Sanae selecionou o texto O amor acaba, de Paulo

Mendes

escritos,

Campos,

Camila

se

como

objeto

questionava

de

sobre

trabalho. sua

Em

capacidade

seus de

43

elocução; sentia que esta caminhava a passos minúsculos, tal qual uma proposição do primeiro encontro do grupo. No entanto, foi no escuro que as coisas lhe pareceram claras e ela pôde explorar sua própria voz. Na desarmonia das vozes-corpos que se

manifestavam

na

escuridão,

enxergou

o

sentido

do

caos;

sentia vontade de sua voz e da voz do outro, do som do outro. O texto de Paulo Mendes Campos pontuava momentos nos quais o amor parecia se findar para algumas pessoas – mas não do ponto final para o mergulho no abismo eterno do silêncio, e sim no traçar

de

um

novo

começo.

Sugeri-lhe

que

explorasse

esta

sensação de finitude e o medo de um recomeço no jogo das palavras,

avivando

esta

sensação

concretamente

no

plano

da

elocução ao descobrir cada palavra, cada nuance. Danilo Neiva, em seus escritos, demonstrava a ânsia por personificar devaneios – devaneios que se manifestavam em formas de vozes, muitas vozes ou imagens áridas; e o som do vento. O texto sobre o qual se debruçou consistia na letra de uma

música:

Eternas

personificar

ondas,

devaneios

de



através

Ramalho. de

sua

Poderia,

então,

voz;

poderia

personificar o vento. Como seria a ação do mesmo expressa por palavras áridas? Como o vento passa a influenciar os outros membros do grupo? – foram indagações que lancei ao ator. Estrada, de Alexandre Sansão, foi o texto pinçado de um blog

da internet por Gabriel Franco Rodrigues. Tanto o

texto citado quanto os escritos de Gabriel – bem como suas experimentações subjetividade

e

sonoras

em

salas

de

ensaio

fluxos

de

pensamento;



jogavam

mencionou,

em

com

certo

escrito, um mundo vastíssimo explorado pelo pensamento, mas longe do alcance tangível. Propus ao ator que se deixasse levar pelo fluxo das palavras na leitura, brecando naquelas que mais o instigavam para uma investigação das mesmas. Julia Versoza selecionou Circuito fechado, de Ricardo Ramos, como objeto de estudo prático. O texto é construído somente por substantivos, narrando um cotidiano que parece se

44

repetir ad eternum. Paradoxalmente, seus escritos manifestavam uma enorme vontade de se expressar para além do tangível, ou do que pode ser mensurado. Em um de seus primeiros textos, aponta que é um privilégio grande demais somente sua "cabeça" ter voz; ansiava por abrir a boca que possuíra no pé – e isto ia ao encontro do exercício que sugeria investigar como a voz ressoava pelas mais diversas partes do corpo (como seria uma voz "de cuca", "da barriga", "do joelho"...). O caminho que optou

por

guiar

sua

elocução

é

dos

mais

interessantes:

manifestava as sensações da pessoa por trás deste cotidiano – uma pessoa aprisionada às palavras e que sonha se libertar. O

grupo

contou,

ainda,

com

Mariana

Delgado,

que

infelizmente se desligou do trabalho por motivos pessoais. Sua participação,

contudo,

foi

determinante

para

traçar

uma

identidade ao conjunto, e muitos dos jogos que desenvolveu com os outros atores permaneceram. Já ausente nos últimos ensaios, escolhera fragmento de Eu não, de Samuel Beckett, para estudo. Não foi possível, porém, um desenvolvimento a contento deste trabalho de elocução no curto período em que Mariana ainda frequentou as práticas. Cheguei

a

formular

uma

pequena

sinopse

para

desenvolvimento de peça radiofônica a partir do material que o grupo me fornecera. Intitulada Te espero na estrada, procurei traçar

uma

linha

dramática

que

unisse

e

justificasse

o

trabalho de lapidação anterior de leitura dos textos. Questões como a personificação do vento e o fascínio (e medo) que este exerce sobre as pessoas – ainda mais em uma alma inocente e que anseia por poesia procuram

uma

abstração – esperança

espécie

– de

seriam fuga

contrapostas

do

cotidiano

a pessoas que através

de

uma

pessoas que querem se transformar em vento. A que

antagônicos,

pode

residir

considerando

esse

ao fim

fim um

destes

recomeço

processos e

uma

nova

chance. O enigma, a aflição e o prazer existentes em não saber o que se passou: se uma combustão de corpos ou o leve toque de

45

uma brisa. Tudo isto seria organizado não em atos, mas em sopros,

efêmeros

acontecimentos

como

o

próprio

intangíveis

vento

grandes



enxergava

nestes

possibilidades

de

exploração em um veículo acústico. No entanto, a constatação de que o tempo seria escasso para a obtenção de um resultado satisfatório me fez abortar a ideia. Infelizmente, houve um único contato dos atores com o microfone, ainda no início do processo – abril de 2013. Os registros, anteriores aos caminhos que propus a cada um na exploração de seu material textual, apresentam leituras cruas, que

pouco

evidenciam

sugerida

pela

significativa

a

questão

elocução.

melhora

nos

do

"encontro

de

Posteriormente, trabalhos,

porém

mundos"

houve o

uma

prazo

que

havíamos acordado para a finalização das atividades já havia expirado, e todos tiveram que se desligar deste núcleo de pesquisa para se dedicar a outros compromissos da graduação. Um último fator ainda a se destacar deste conjunto é o

desenvolvimento

textos trabalhados

do –

conceito

de

"tipografia

poética"

dos

como a elocução, em sua forma plena,

seria traduzida em verbo (ou mesmo em traços)? Vê-se aqui uma aproximação do conceito de "partitura" para a sonorização que Haroldo de Campos enxergava na poesia concreta – "o que foi depois confirmado pelas inúmeras versões musicais de poemas concretos

e

pelas

edições

orais/musicais/sonoras

em

feitas

CD

pelos

de

interpretações

próprios

poetas."

(MACHADO, 2000, p. 218).

2.4 RÉQUIEM

PARA

O

SÔNIA

grupo

encarregado

de

trabalhar

Valsa



6

foi

formado por três atrizes: Ananda Ribeiro, Tainara Caroline e Tica Mehuta. Devido a incontáveis imprevistos, os ensaios se deram praticamente de forma mensal entre março e setembro de

46

2013.

Por

meio

das

práticas,

o

objetivo

era

pensar

na

transposição de um texto dramático para o veículo radiofônico; o que motivava o trabalho era pensar em como se dariam as mudanças de códigos e signos no trânsito teatro-rádio. Segundo Mariana Oliveira, Valsa n° 6 se propunha mais a levantar questões acerca da fábula do que a construí-la de forma convencional, visto que a peça apresenta elementos recorrentes de perturbação que atrapalham a leitura a partir da chave dramática tradicional: há inúmeros cortes, fragmentações e mudanças repentinas de assunto que interrompem o fluxo da recepção (OLIVEIRA, 2010, p. 80-81).

Ao recompormos os estilhaços que Nelson Rodrigues nos apresenta, constatamos que a trama de Valsa n°6 trata de uma menina de quinze anos, Sônia, que fora assassinada por golpes de faca vindos de seu médico, o "gagá" (RODRIGUES, 1993, p. 212) Dr. Junqueira; sem se lembrar de seu passado, nem mesmo de seu próprio nome, Sônia tenta recordar quem era e o que acontecera, falando consigo mesma durante toda a peça e se debatendo com as lacunas de sua memória. Foi destas lacunas que nos aproveitamos. Os

encontros

se

iniciaram

com

a

investigação

das

possibilidades sonoras presentes no texto de Nelson Rodrigues. Após algumas leituras, cada uma das atrizes foi sublinhando as frases e circunstâncias que mais lhe chamavam atenção; cada uma foi buscando a faceta de Sônia que mais dialogava consigo. Após essa seleção de falas e algumas "leituras cromatizadas", partimos, então, para improvisações no escuro, no intuito de fazer com que aquelas Sônias dialogassem. Para necessitavam partituras

o

desenrolar

andar

pela

corporais



das sala

experimentações, e

exercícios

realizar de

as

meninas

movimentos

caráter

e

puramente

teatral; sentiam-se, assim, mais à vontade para o trabalho de exploração

da

voz:

primeiramente

acessavam

outras

47

corporeidades, deixando, assim, que a voz surgisse no fluxo do movimento e das relações que pouco a pouco iam estabelecendo. No

primeiro

ensaio,

começaram

cercadas

por

um

retângulo dividido em três partes – cada qual ocupava uma; em cada uma destas partes, uma cadeira. Andavam freneticamente, sentavam-se em diversas posições, resignificavam as cadeiras. Em

outro

encontro,

as

cadeiras

foram

dispostas

de

forma

diferente e sem restrições de espaço – as seis, cadeiras e meninas, ocupavam o mesmo local. As luzes estavam apagadas, porém

feixes

incidiam

por

frestas

da

sala;

formou-se

um

verdadeiro umbral por onde se viam almas a vagar à procura de Sônia.

Sons,

cadeiras

a

se

arrastarem...

Não

havia

uma

estruturação de ordem das falas e nem as mesmas seguiam o que originalmente estava posto no texto, mas a atmosfera de Valsa n° 6 ali estava instaurada. Importante o comentário de uma das meninas ao término do ensaio: "parece que conseguimos traduzir todo o texto em sons". Foi neste momento que percebi certo equívoco em minha proposta

original:

ora,

por

que

deveríamos

necessariamente

seguir à risca o texto dramático, obedecendo à ordem postulada e,

quando

possível,

atendendo

às

necessidades

de

suas

rubricas? Acabávamos de encontrar um caminho que ia exatamente ao encontro da proposta maior do trabalho: um corpo que sonha, delira em forma de voz. Com isso, nossa Valsa não seguiria precisamente o texto embrionário do processo. Não podia desperdiçar, ainda, o rico material que possuía em mãos, fruto das anotações de ensaios das meninas. Para além de registros de fala e descrições dos ensaios, ricos devaneios

poéticos

estilhaçou

Sônia

em

foram

construídos:

ainda

mais

cada

facetas

e

uma

desdobrou,

nuances

do

que

pressupunha o texto. Riquezas nas construções de sentenças e encaixes

de

pensamentos

gritavam

que

heresia desperdiçar aqueles materiais.

seria

uma

verdadeira

48

Novos

desencontros

cotidianas, porém,

para

inviabilizaram

ensaios

e

correrias

o registro acústico deste

trabalho em sua etapa final, quando optamos pela construção de uma

pequena

relação

à

contato

das

cena

a

partir

passagem

primeiras

três

de com

"leituras

da

Sônia o

esquizofrenia

deste

mundo

microfone,

cromatizadas"

rodrigueana

para

o



apenas

de

trechos

outro.

esboços do

em Do das

texto

original. Acerca da dramaturgia de Valsa n° 6, [...] o que incita o leitor/público a acompanhar esse jogo é a permanente caminhada por percursos tão deslizantes e movediços. O público quer jogar com essa situação, quer, num movimento ativo, ser parte da narrativa, à medida que vivencia aquela mente conturbada que é o personagem. Interessa menos a sua essência e mais o universo no qual se adentra juntamente ao personagem, quando se povoa, então, outra lógica, a das incertezas (SOUZA DE OLIVEIRA, 2011, p. 88).

A partir disso, para além de fragmentos, frases do texto original empregadas em um ambiente soturno e incerto, tencionava

construir

miscelânea

de

uma

uma das

espécie

de

personagens

mosaico mais

de

Sônia,

instigantes

da

dramaturgia brasileira. Se no texto original vamos, pouco a pouco, desnudando o passado e os acontecimentos que permearam a

vida

de

Sônia

anteriormente

àquele

momento,

em

nosso

processo trabalhávamos o incerto; dúvida que pairava, incidia na vida de todos nós, seres que formavam – e ainda formam – um todo

ilógico

e

fragmentado,

dividido

entre

reminiscências,

lembranças, memórias e devaneios do que nos ocorrera. Afinal, o que é a memória senão estilhaços de acontecimentos e dúvidas que nos levam inconscientemente à fantasia e à reformulação do que de fato acontecera?

49

Figura 1 – Pedi o oceano

Fonte: Ilustração de Nani Vasques realizada especialmente para a peça radiofônica As rubianadas.

3 RUBIANADAS Este capítulo trata da composição da peça radiofônica As

rubianadas,

funções

de

construída

diretor,

por

mim

dramaturgo



e

trafegando

montador,

as

entre

as

quais

se

encaixam na corruptela metteur-en-son (BAUAB, 1985, p. 3) – e por mais três atores: José Paulo Brisolla de Oliveira, Marco Antonio Paixão e Sofia Pellegrini. Ensaios e gravações-piloto ocorreram desde o início do ano pelas salas do Departamento de Música e Teatro e nos estúdios da Rádio UEL FM – contando com a preciosíssima colaboração e disponibilidade do técnico João Lopes. As gravações finais se deram em novembro de 2013 na própria

Rádio

UEL

e

no

Laboratório

de

Radiojornalismo

do

Departamento de Comunicação – aqui sob a supervisão do técnico Bruno

Cardial,

que

gentilmente

me

auxiliou

na

execução

da

montagem sonora. O processo

capítulo de

contempla,

elaboração

da

consequentemente,

obra:

desde

as

todo

o

primeiras

investigações de possibilidades sonoras a partir de tramas e personagens fantásticas de Murilo Rubião às várias etapas de construção do texto radiodramático, passando pelas diversas experimentações práticas – em salas de ensaio e ao microfone – e culminando nos últimos ajustes para as gravações finais; apresenta, ainda, meu trabalho na condução destas etapas e no desenho

de

edição

final

do

material

captado,

além

das

pertinentes intervenções de minha orientadora, Heloisa Bauab.

51

Para tanto, aborda técnicas, recursos e fundamentação teórica utilizados para composição da tessitura acústica. Há, como nos trabalhos já mencionados, uma matriz calcada na palavra. Como ponto de partida da prática, foram selecionados três contos de Murilo Rubião; a cada ator coube um conto específico – por mim escolhido – para as primeiras investigações: O ex-mágico da Taberna Minhota ficou a cargo de Marco Antonio; Bárbara foi designado a Sofia; A noiva da Casa Azul,

a

José

Paulo.

Os

textos

se

apresentavam

como

se

"contados" por um narrador-personagem, fator que contribuiu para

a

escolha

deste

material

e

foi

substancial

para

a

composição. Ora, estes discursos estão, certamente, destinados a alguém – um leitor ou um ouvinte.

3.1 ACERCA

DE

RUBIÃO Sempre aceitei a literatura como uma maldição. Poucos momentos de real satisfação ela me deu. Somente quando estou criando uma história sinto prazer. Depois, é essa tremenda luta com a palavra, é revirar o texto, elaborar e reelaborar, ir para a frente, voltar. Rasgar (RUBIÃO, 1974, p. 5).

Murilo Eugênio Rubião nasceu em Carmo de Minas, sul de Minas Gerais, em 1916, e morreu em Belo Horizonte, em 1991, quatro dias antes da organização de uma exposição sobre sua obra no Palácio das Artes. Formado em Direito, foi um dos fundadores

da

jornalista

e

Gabinete

do

revista ocupou

literária

altos

Governador

cargos

Tendência. públicos,

Juscelino

Trabalhou sendo

Kubitschek

e

como

Chefe adido

do da

Embaixada do Brasil na Espanha. Idealizou, ainda, o Suplemento Literário do jornal Minas Gerais em 1966. Rubião

possui,

no

total,

trinta

e

três

contos

originais. Costuma-se atribuir sua pouca produção ao trabalho meticuloso com a linguagem – uma busca obsessiva pela palavra exata, pela clareza do texto, pelo correto encadeamento dos

52

fatos. Não é à toa que ele tenha reescrito muitos de seus contos em vida: entre reelaborações e republicações, tem-se um total de oitenta e nove textos. (COSTA, MORAIS, 2008, s/p). Os contos de Rubião estão posicionados em um novo conceito

de

fantástico.

séculos

anteriores

Se

as

narrativas

apresentavam

fantásticas

vampiros,

dos

mortos

que

retornavam à vida, demônios – seres diferenciados do humano –, o fantástico do século XX se incumbiu de revelar os mecanismos que afligiam o homem e que se encontravam entranhados em sua consciência

e

em

suas

ações.

É

neste

panorama

que

as

personagens murilianas, aprisionadas a um sistema opressor que as condena ao tédio, à solidão e ao sofrimento, sem chances de fuga, (sobre)vivem. (ALEIXO, 2008, p. 197). Virgínia Carvalho Costa e Márcia Marques de Morais apontam para as lacunas e a transgressão de tempo e espaço no universo

muriliano,

insólito,

no

o

que

entanto,

é

o

aproximará

inserido

no

dos

sonhos;

cotidiano

este

habitual,

construído através de uma primorosa organização semântica e sintática (muito devido à reescritura das obras) – indo na contramão dos sonhos sob a óptica da psicanálise, tendo em vista as dificuldades em se relatar verbalmente e com clareza os

produtos

destes

e

de

outros

processos

do

inconsciente.

(COSTA, MORAIS, 2008, s/p).

3.2 DA ADAPTAÇÃO Segundo a pesquisadora Lidia Camacho, há três formas de adaptação da literatura para o rádio. A primeira é o que ela toma por adaptação literal, e consiste em reproduzir, no meio acústico, a obra original o mais fielmente possível; a segunda

é

nomeada

como

adaptação

livre,

na

qual

o

texto

literário que gerara o processo serve apenas como guia para a tessitura sonora; a terceira recebe o título de transposição

53

radiofônica, e representa a transformação da obra de um meio para o outro através de técnicas análogas – os procedimentos sonoros seriam

escolhidos

para

equivalentes

aos

a

composição

linguísticos

da

obra

radiofônica

utilizados

na

obra

original. Como exemplo deste último tipo de adaptação, Camacho cita A guerra dos mundos de Welles. A autora também reconhece que as adaptações radiofônicas comumente transitam entre as três

formas

registradas,

apresentando,

contudo,

características sobressalentes de uma nomenclatura específica, a qual as classificaria. (CAMACHO, 2000, p. 61-65). No que tange a As rubianadas, inicialmente houve a preservação da integridade de diversos trechos dos contos de Rubião.

Contudo,

ao

decorrer

das

várias

versões

do

texto,

foram necessárias diversas mudanças estruturais – muitas delas recomendadas por Heloisa Bauab, orientadora deste trabalho, diretora mereceu

e

dramaturga

destaque

no

cuja

primeiro

obra

para

capítulo

o

meio

–,

radiofônico

todas

visando

à

elaboração dramatúrgica para junção dos três contos, bem como à construção e à fluidez de diálogos entre as personagens; pode-se

dizer

textual,

ainda

receberam

conseguinte, adaptação

As

que uma

alguns espécie

rubianadas

livre:

diversas

dados, de

se

mínimos

lente

encaixa

de na

situações

no

material

aumento.

Por

categoria

de

foram

criadas

especialmente para a peça, tais como o encontro de personagens de contos diferentes no trem que vai para Juparassu e toda a sequência do pesadelo sonoro. O arraigado

processo às

raízes

de

adaptação

do

dramático;

ainda as

se

apresenta

saídas

muito

dramatúrgicas

utilizadas justificam e dão uma unidade coesa ao todo (mesmo com este todo a se passar no terreno do fantástico). A peça, contudo, foge de certos traços caros a uma obra dramática pura (ROSENFELD, 2000, p. 30), tais como as unidades de tempo e espaço.

54

[...] exige-se no drama o desenvolvimento autônomo dos acontecimentos, sem intervenção de qualquer mediador, já que o "autor" confiou o desenrolar da ação a personagens colocados em determinada situação (ROSENFELD, 2000, p. 30).

Sob

esse

características

prisma,

épicas.

As

Ora,

rubianadas



um

narrador

apresenta a

intervir

constantemente na história apresentada; um mediador a truncar o

desenrolar

da

ação

e

o

desenvolvimento

autônomo

dos

acontecimentos. Percorramos

as

sequências

propostas

por

As

rubianadas, cenas que procuram dar voz e cor aos devaneios da personagem-narradora de A noiva da Casa Azul – conto que serve como

fio

condutor

para

toda

a

adaptação.

No

texto

radiodramático, esta personagem recebe o nome de Pedro. Há maravilhosa

de

"rubianadas" cada

vez

três

Pedro

que,

mais

momentos

no

na

que

busca

conforme

por

seus

onírico.

demonstram sua

a

amada

trajetória

Dalila;

desenvolvimentos,

Optou-se

pela

três

penetram

divisão

destas

rubianadas em sequências – em detrimento do termo cenas –, pois

essas

possibilitam

idas

e

vindas

pelo

tempo

e

pelo

espaço, ainda que apresentem o desenvolvimento de uma só ação. Estas

rubianadas,

gradativamente,

mergulham

no

insólito muriliano. A primeira, ao se passar na repartição na qual Pedro trabalha, apresenta um homem comum, atordoado por uma provável traição de sua noiva, Dalila. A segunda tem como local-base

um

trem;

revela

um

movimento,

e,

como

tal,

apresenta suas consequências: o encontro de Pedro com seres que possuem características maravilhosas. É no trem que Pedro se encontra com a figura de Galateu, seu chefe (na verdade, Galateu é a alcunha de uma personagem do conto O lodo, também de Rubião). Na repartição, Galateu era outro a soar como mais um homem comum a habitar a terra; no entanto, nesta viagem, ele revela que fora mágico e está a se tratar para reobter seus poderes com um tal de dr.

55

Pink (outra personagem originalmente d'O lodo); quando Pedro está prestes a revelar suas desconfianças acerca de Dalila para aquele homem, o trem para no ponto de descida de Galateu; antes de se retirar do vagão, no entanto, o ex-mágico confessa que aquela locomotiva, cheia de criaturas estranhas, saiu do seu próprio bolso. Nesta estação, adentra a robusta Bárbara, carregando junto ao coração o seu filho, "raquítico e feio". Falastrona e mal-educada,

Bárbara

não



voz

a

Pedro

ao

vomitar

sua

história: está a caminho de Juparassu para se encontrar com seu marido, que lhe trará o presente que mais ambiciona: a lua! Bárbara é o conto que maior transformação sofre em sua transposição para o meio acústico. O emissor do conto original

é,

justamente,

o

marido

de

Bárbara;

na

tessitura

acústica, quem narra os fatos ocorridos é a mulher. Para isso, foi realizado um intenso e profícuo trabalho de "mudança de ponto de vista" junto à atriz Sofia Pellegrini, substancial neste câmbio. Outra mudança – mas esta nos rumos da narrativa – é o fato de ela pedir a Lua, sim, ao seu marido, e não mais uma reles estrela. Este detalhe fora transmutado para atender às necessidades da adaptação, principalmente na construção da cena final – quando a Lua, ao se aproximar da Terra, leva as marés para as Minas Gerais. Esta rubianada já adentra no que há de mais insólito no universo muriliano – e nos devaneios de Pedro. Seriam estes seres todos delírios do namorado embriagado pelas lembranças da moça da Casa Azul? "Apesar das coisas me aparecerem com extrema nitidez, espelhando uma realidade impossível de ser negada, resistia à sua aceitação". (RUBIÃO, 2010, p. 167). O mesmo homem atordoado que constatará que a namorada há muito já morrera – mesmo antes de ele cogitar a viagem a Juparassu, mesmo antes de ele conhecê-la adulta! E aquelas personagens

56

curiosas,

peculiares?

Existiriam

ou

seriam

frutos

de

sua

imaginação? A terceira rubianada é, enfim, a imersão definitiva no onírico. Ora, Juparassu é local para o devaneio; "Juparassu é entrelugar do factual e da fantasia, onde presente e passado se confundem, num tempo especial, que pode bem ser o tempo do inconsciente."

(COSTA;

MORAIS,

2008,

s/p).

Será

dentre

os

escombros do passado de Pedro que se consolidará a fantasia engordativa

de

poderes

mágico!

do

Bárbara

e

Será

que esta

voltarão, pequena

em

definitivo,

cidade

do

sertão

os da

Farinha Podre, coração de Minas, invadida pelo mar! Sim, Minas virará mar. "Chuá, chuá, chuá..." Pode-se

dizer,

desta

forma,

que

estas

rubianadas

acompanham o movimento do trem: vão do real ao ilusório em fragmentações

espaciais,

temporais,

tal

qual

o

percurso

do

conto original A noiva da Casa Azul. Costa e Morais (2008, s/p)

comparam

esta

fragmentação

psíquica

do

narrador-

personagem do conto à própria Casa Azul, lugar da verdade e do desejo, mas constituído de fragmentos. Neste personagem seres,

é

que

As

rubianadas,

acentuada podem

ser

a

loucura

através

de

seu

somente

figuras

incessante

contato a

com

imergir

desta outros

de

sua

imaginação. Estas figuras, ainda, apresentam anseio semelhante ao seu: querem alcançar algo. Pedro, narrador de A noiva da Casa Azul e também de As rubianadas, ambiciona "recuperar o desejo

alienado

nos

estilhaços

que

lhe

sobram."

(COSTA;

MORAIS, 2008, s/p); Galateu deseja o mesmo no que tange aos seus poderes; Bárbara é composta pelos seus próprios anseios, sentindo-se incompleta – e realmente perdendo "pedaços", massa corporal, no caso – quando estes não são realizados. Em As rubianadas, essas figuras estilhaçadas se tornam evidentes e, quando alcançam o que querem, o mundo que as abriga já não é mais o mesmo.

57

O mais importante: toda esta articulação não se deu na mera associação de ideias enquanto pensamentos intangíveis a

serem

postos

realizadas

em

em

um

papel,

e

sala

de

ensaio:

sim da

através

relação

das

que

práticas

os

atores

propuseram para as personagens nos experimentos é que surgiram os encontros destes seres e seu alinhavo na dramaturgia. E as possibilidades nascidas no plano da escrita foram testadas em sala de ensaio para se firmarem em definitivo como parte da obra. O diálogo com a orientadora também foi vital para a construção da peça. Conforme já explanado, Bauab me aconselhou a quebrar as enormes sequências literárias que eu trazia dos textos de Rubião nas primeiras versões de As rubianadas; desta forma, eu poderia criar e fazer fluírem diálogos e situações que não cansassem os ouvintes. Também sugeriu, para não soar tão óbvio, que os sons e ruídos não fossem ilustrados, somente apresentados no momento de sua menção, e sim que surgissem em outros pontos da peça – conferindo-lhe, assim, maior riqueza acústica. Como

exemplo

concreto

desta

criação

próprio texto radiodramático, em constante primeira

versão

foi

concebida,

após

coletiva,

o

aprimoramento. A

vários

encontros

e

trabalhos radioteatrais, a partir dos contos de Murilo e das primeiras experimentações dos atores; após revisão de Heloisa Bauab, voltei a trabalhar com o grupo, que ora me fornecia subsídios

para

entregava

novos

solucionar! trabalho

a

de

Houve

resolução materiais momentos

dramaturgo



de

antigas

brutos em

não

que de

– foi

alguém

questões novos

ora

me

problemas

a

necessário que

e

um

apenas

real

coleta

material e o organiza, mas que também concebe elementos para melhor articulação do todo. E assim formou-se a tríade atoresautor-supervisora, responsável pelo resultado final.

58

3.3 DO TRABALHO COM A

ATORES

OS

intensa

participação

dos

atores

durante

todo

o

processo teve como finalidade a manutenção da identidade do trabalho deste grupo específico, e aí se enquadra a questão da elocução como encontro único entre enunciador e enunciado – tão

alardeada

no

capítulo

anterior.

Fosse

este

trabalho

realizado desde o início com outros atores, não só o resultado final seria diferente, mas certamente o seriam também diversas passagens do texto radiodramático. Ora, não foi um trabalho de composição realizado somente a partir dos textos de Rubião, mas sim de todas as possibilidades trabalhadas pelos atores, do material levantado por aqueles indivíduos em ensaios. Ou seja, não fui somente eu como dramaturgo que "rubianei": os atores também sonharam concretamente Murilo Rubião através dos sons. Os

atores

começaram

o

processo

brincando

com

as

estruturas e sonoridades das palavras e frases articuladas dos contos murilianos, trabalhando a partir daquelas referências e jogando, estabelecendo contato um com o material do outro. Foi do ensaio que surgiu o barulho do trem, a decisão por adaptar o conto Bárbara sob a óptica da personagem-título. Iniciei o caminho de composição das personagens na contramão

do

que

o

próprio

Murilo

Rubião

propunha

em

sua

poética: a objetividade de sua linguagem e a constante busca da

clareza

literatura

acabavam (ALEIXO,

por

intensificar

2008,

p.

191);

o ou

fantástico seja,

ele

em

sua

tomava

potências distintas na forma e no conteúdo justamente para acentuar o insólito. Sempre propus que os atores trabalhassem no limiar do exagero,

do

rebuscado,

a

fim

de

que

fossem

construídas

caricaturas com as vozes. Acreditava que isso soaria bem na exploração das variadas possibilidades acústico-teatrais que o

59

fantástico abrange; o resultado ao microfone, porém, não ficou a contento. Por sugestão da orientadora, os atores desceram um pouco o tom carregado das personagens; por vezes, a palavra não precisa ser sublinhada no plano da expressão para se fazer entender – já possui potência suficiente no fluxo do texto. Optou-se, então, por se trabalhar com o tom natural dos atores pontuado por momentos de exagero – exagero este que chega ao máximo na sequência do pesadelo sonoro. Outra sugestão de Heloisa Bauab foi a escalação de outros atores para darem conta da polifonia de personagens. No desenho inicial do trabalho, pensava que os três estudantes poderiam se responsabilizar por todas aquelas vozes em um jogo com o farsesco e o exagero; quando esta articulação estética caiu, porém, este jogo não mais se justificava, e José e Sofia –

conforme

alertou

Bauab

–,

possuem

timbres

muito

característicos, o que poderia confundir o público se os dois aparecessem

repetidamente,

mesmo

em

personagens

com

uma



fala. Recorri, então, a nomes que me acompanharam nos outros experimentos e não me negaram assistência.

3.4 DOS RECURSOS A

E

TÉCNICAS ACÚSTICOS

miscelânea

de

formas

de

composição

acústica

proposta por As rubianadas – ora a peça é guiada pela fala, ora somente por música, ora por ruídos – procura destoar do que se cristalizou como ficção radiofônica devido à herança das radionovelas. O exagero proposto pontualmente no plano da expressão sublinha algumas características murilianas, enquanto a opção por evidenciar alguns ruídos – a música do circo, o barulho do mar – vindos de fonte sonora humana, deixando assim explícito

60

o

fato

de

que

toda

aquela

ilusão

é

artificial,

marca

a

exposição dos dispositivos de composição radiofônica. Para

a

edição

final,

conforme

sugestão

da

orientadora, procurou-se a espacialização das personagens no espectro

sonoro;

cada

personagem

e

cada

situação

dramática

também mereceu um tratamento acústico diferenciado. A narração de Pedro se localiza ao centro – conforme modelo tão caro às peças radiofônicas clássicas. Seu discurso enquanto vivencia os

fatos

narrados,

no

entanto,

está

posicionado

ao

lado

esquerdo do espectro (o lado da lógica e da razão no cérebro humano), enquanto personagens como Galateu e Bárbara estão ao lado direito (o lado da criatividade e das artes). Quando tomam a posição de narradores de suas histórias, Galateu e Bárbara vão para o centro do espectro. O trem trafega pelos polos esquerda-direita, o que, além de indicar o movimento do veículo, dá a ideia de que o mesmo

é

uma

espécie

de

elo

entre

esses

dois

mundos:

o

concreto, crível aos ouvidos humanos, e o insólito. Há, ainda, sobreposições de discursos quando estes estão em consonância – ou, por vezes, até mesmo em dissonância, como no estonteante prólogo. Como exemplo mais claro deste efeito, o momento da leitura que Pedro faz da carta deixada por Dalila – aqui, percebe-se que o discurso é idêntico no plano da forma, mas não referente às intenções dos emissores, já que Pedro, em um primeiro

momento,

mesmo

desconfiado

de

que

Dalila

ficara

balançada ao encontrar o ex-noivo, não vê maldade no ato de ela ter dançado com o cavalheiro por educação, enquanto que, através da elocução de Dalila, já localizada no "plano do fantástico"

do

espectro

acústico,

nota-se

claramente

certa

perfídia no aceite do convite. As diversas variações de polo no espectro por parte de Pedro se tornam constantes quando, atordoado

pelas

figuras

com

que

trombou

no

decorrer

deste

caminho, por todas as informações que lhe foram despejadas

61

sobre Dalila e sobre si mesmo, ocorre o que está intitulado no roteiro como "pesadelo sonoro". Quanto

à

exploração

das

diversas

formas

de

composição, é bom ressaltar que não há uma intenção meramente expositiva: cada movimento foi pensado de forma a se construir uma dramaturgia sonora, pertinente – obviamente – ao universo muriliano e às peculiaridades de cada conto e personagem. No que

tange

à

parte

"elucubrações

do

ex-mágico,

circenses",

optou-se

também por

intitulada

apresentar

de

aquela

história como um grande espetáculo de circo, com direito a plateia, risos, exagero na forma da expressão, construção de momentos de tensão, a música e outros elementos ora a ilustrar exatamente

o

que

está

se

dizendo

na

fala



momentos

de

melodrama circense –, ora a ditar o ritmo da mesma, ora a se contrapor

ao

discurso.

"Da

voluptuosidade

ou

do

apetite

desenfreado da vida" é muito forte nos jogos de palavras, surgidos

a

partir

do

improviso

dos

atores.

As

partes

conduzidas por Pedro variam entre momentos de extrema lógica e racionalidade



tradicionais,

na

elaboração

da

tessitura

acústica – a puros devaneios sonoros. Nesta fusão (e confusão!) entre o que é o real ou ilusório para Pedro, são expostos os recursos acústicos na forma da expressão: é notório, conforme já frisado, que as vozes dos atores são as responsáveis pelo trem – vozes que se convertem processo

no de

barulho fusão,

realisticamente chuááá"

da bem

mostradas,

pronunciado.

Há,

máquina como ora

propriamente

as

ondas

não

ainda,

passam

diversas

do de

dito mar um

por ora

um são

"chuááá,

interrupções

de

ruídos que remetem ao (des)sintonizar e às mudanças de estação de um antigo aparelho de rádio, o que não deixa o público se esquecer de que está a acompanhar uma ficção radiofônica. A opção pela utilização destes recursos, muito característicos do meio acústico, reforça a ideia de que se está contando algo.

62

Ao final, o encontro definitivo: a voz de Pedro passa por

um

processo

de

transformação,

como

se

o

mesmo

fosse

gradativamente aprisionado a um aparelho radiofônico – o que acontece de fato! Aqui não haveria mais dúvidas de se estar ouvindo uma tessitura acústica para rádio, de estar-se vivendo uma ilusão. Seria o equivalente, se estivéssemos falando de teatro,

à

teatrais

explicitação –

definitivo. contínua acústica.

de

no Sim,

da

decorrer, os

caixa em

ouvintes

devaneios

preta

pequenas foram

articulados

e

dos

dispositivos

porções;

expostos

agora

em

a

uma

pulsão

traduzidos

sob

forma

CONSIDERAÇÕES FINAIS Infelizmente não consegui cumprir a meta inicial que tracei para cada um dos três grupos. O quarto ano de Artes Cênicas, por si só, muito exige dos alunos – bem como os outros anos, e dez destes atores eram discentes regulares do curso. Vistos estes percalços, não há Hércules que enfrente os desafios aos quais me propus de maneira satisfatória em um ano letivo. Devo,

no

entanto,

muito

a

todos

os

atores

que

integraram os experimentos práticos. Nos momentos de maiores angústias e em espinhosas encruzilhadas teóricas, pegava-me a refletir

sobre

discussões

-

nossas e

práticas

assim

e

conseguia

nossas visar

tão

frutíferas

caminhos

viáveis;

diversas das frases que eles disseram, muitas em um ímpeto pós-exercício, foram essenciais para me guiar nesta jornada. Além

de

me

ajudarem

a

compreender

a

voz

como

potência

artística e criativa plena e a elocução como ação legítima a ser

investigada

no

trabalho

do

ator,

não

recuaram

em

me

auxiliar por uma última vez nas etapas finais das gravações de As rubianadas. Descobri que não precisava elucubrar ou ir muito além para escrever estes relatos; não foi necessário sistematizar métodos

que

radiofônicos

servirão -

até

de porque

guias isso,

para além

outros de

trabalhos soar

muito

pretensioso, é algo que não existe; cada processo, por mais que se aproveite de conceitos já estabelecidos, apresenta suas

64

singularidades (assim como as palavras!) e traça seu próprio caminho. Bastou, então, que eu me concentrasse nas práticas em andamento para que todos estes escritos surgissem. Este trabalho, portanto, também é de responsabilidade dos

atores;

atores

que

compartilharam

comigo

este

fascínio

pelas palavras e pelo meio acústico. Os tijolos desta casa foram eles que produziram; fui apenas um pedreiro a passar cimento para interligá-los. E, graças à realização de As rubianadas, pude tomar contato com a gramática acústica e seus meandros: a partir da convergência e articulação de signos sonoros – voz, música e ruídos –, procurei explorar as possibilidades do rádio como veículo de arte acústica em todas as suas dimensões. Apesar de o ponto de partida ser a palavra escrita – e eu correr o risco de ela

se sobrepor como recurso mais

significante

na obra

final devido a isso –, busquei integrá-la aos outros elementos sonoros de forma a obter uma sintaxe radiofônica plena.

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66

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da

oralidade

teatral.

e

a

São

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Anatol.

RUBIÃO, Murilo. Letras, 2010.

O

Obra

teatro

épico.

completa.

São

São

Paulo:

Paulo:

Perspectiva,

Companhia

das

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APÊNDICES

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Figura 2 – Janela para Juparassu

Fonte: Ilustração de Nani Vasques realizada especialmente para a peça radiofônica As rubianadas.

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APÊNDICE A

AS RUBIANADAS

peça radiofônica de LUCAS MARTINS NÉIA a partir de tramas e personagens fantásticas de MURILO RUBIÃO e jogos e improvisações dos atores JOSÉ PAULO BRISOLLA DE OLIVEIRA MARCO ANTONIO PAIXÃO SOFIA PELLEGRINI supervisão dramatúrgica HELOISA BAUAB

(Versão original gravada em novembro de 2013 nos estúdios da Rádio UEL FM e do Laboratório de Radiojornalismo do Departamento de Comunicação, Centro de Educação, Comunicação e Artes da Universidade Estadual de Londrina, Brasil.)

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AS RUBIANADAS PRÓLOGO: JANELA PARA JUPARASSU PRIMEIRA RUBIANADA: NA REPARTIÇÃO SEQUÊNCIA I – TELEGRAMA SEGUNDA RUBIANADA: NO TREM E EM OUTRAS FRAÇÕES DE MUNDO SEQUÊNCIA II – PARTIDA DA ESTAÇÃO SEQUÊNCIA III – ESTRANHOS PASSAGEIROS SEQUÊNCIA CIRCENSES

IV



O

EX-MÁGICO

DA

TABERNA

MINHOTA

OU

ELUCUBRAÇÕES

SEQUÊNCIA V – BÁRBARA OU DA VOLUPTUOSIDADE E DO APETITE DESENFREADO DA VIDA SEQUÊNCIA VI – INQUIETAS SOMBRAS TERCEIRA RUBIANADA: EM JUPARASSU SEQUÊNCIA VII – (LEMBRANÇAS DE) DALILA MOÇA SEQUÊNCIA VIII – A VOLTA À TERRA MÃE SEQUÊNCIA IX – TOUS LES GARÇONS... SEQUÊNCIA X – A CASA AZUL EPÍLOGO: PESADELO SONORO (CÂNTICO DOS CÂNTICOS)

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PERSONAGENS/VOZES POR ORDEM DE ENTRADA GALATEU BÁRBARA PEDRO CARTEIRO COLEGA DE TRABALHO DALILA DONO DO RESTAURANTE LOCUTOR DO CIRCO GAROTO-PROPAGANDA DO CIRCO UMA MULHER JORNALISTA MOÇA DE SORTEIOS POLICIAL PASTOR ESPECTADORA ESPECTADOR UMA COLEGA DE TRABALHO CHEFE SEGISMUNDO (IMITADO POR BÁRBARA) AGENTE DA ESTAÇÃO COLONO E AINDA VOZES E SONS DE AUDITÓRIO E PLATEIA ONOMATOPEIAS DE UMA CRIANÇA PEQUENA FRANÇOISE HARDY

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ao metteur-en-son: Não se furte em acrescentar ruídos de sintonia e/ou interferências em algumas pechas; lembremos de que se trata de uma tessitura acústica a ser transmitida por uma estação qualquer e cujo meio material na qual permanece registrada está sujeito à danosa ação do tempo.

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PRÓLOGO: JANELA PARA JUPARASSU OUVE-SE O SINTONIZAR DE UM RÁDIO – COMO SE ALGUÉM ESTIVESSE A TRAFEGAR POR DIVERSAS ESTAÇÕES; NESTE ÍNTERIM, SINTONIZAM-SE FRAGMENTOS DOS SEGUINTES DISCURSOS – ORA A FALA DE UM, ORA A FALA DE OUTRO, ORA FALAS EM CONCOMITÂNCIA –, EXCLAMADOS EM UM CRESCENTE ÍMPETO DE LOUCURA E PERMEADOS POR MÚSICAS RETUMBANTES, BEM COMO TRECHOS FAMILIARES AOS OUVIDOS DO PÚBLICO – TAIS COMO O TOQUE DO REPÓRTER ESSO OU A ABERTURA DE A VOZ DO BRASIL... GALATEU – ...concluí que somente a morte poria termo ao meu desconsolo. Firme no propósito, tirei dos bolsos uma dúzia de leões e, cruzando os braços, aguardei o momento em que seria devorado por eles. No entanto, nenhum mal me fizeram! Rodearam-me, farejaram minhas roupas, olharam a paisagem e se foram... BÁRBARA – ...meu marido me levava ao cinema, aos campos de futebol. O menino sempre ia carregado nos braços, pois, ano após o seu nascimento, continuava do mesmo tamanho, sem crescer uma polegada. E eu só desejava, nessas ocasiões, ou máquina de projeção ou a bola com a qual se entretinham os jogadores... PEDRO – ...Juparassu surgiria no cimo da serra, mostrando a estaçãozinha amarela. Deixei que a ternura me envolvesse e a imaginação fosse encontrar, bem diante dos olhos, aqueles sítios que representavam a melhor parte da minha adolescência... EIS QUE, NO AUGE DA RETUMBÂNCIA DE MÚSICAS, VOZES E TONS, HÁ UMA BRUSCA MUDANÇA DE ESTAÇÃO. OUVEM-SE APENAS ALGUNS ACORDES AO FUNDO – MERO RASCUNHO DOS RUFARES ANTERIORES. COMO SE PROVIESSEM DE DENTRO DE UM RÁDIO, AS PALAVRAS ABAIXO: PEDRO - ...azul como a; azul como aaa; azul como a, azul como a, azul como a...

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Figura 3 - Telegrama

Fonte: Ilustração de Nani Vasques realizada especialmente para a peça radiofônica As rubianadas.

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PRIMEIRA RUBIANADA: NA REPARTIÇÃO SEQUÊNCIA I – TELEGRAMA UMA REPARTIÇÃO. MÁQUINAS DE ESCREVER A TODO VAPOR. CARTEIRO – Telegrama. O BARULHO DAS MÁQUINAS CESSA AO FINDAR DA FALA ACIMA; À FALA ABAIXO, OUVE-SE UM RASGAR DE ENVELOPE E UM DESDOBRAR DE PAPEL. PEDRO (NARRADOR) – Não foi dúvida, e sim a raiva quem me possuiu quando, de posse daquela carta, tomei conhecimento de seu conteúdo. COLEGA DE TRABALHO – O que é? PEDRO – É de Dalila. COLEGA DE TRABALHO – O que está escrito? PEDRO – Que dançara ontem algumas vezes com o ex-noivo. (PEQUENO ACORDE DE TANGO) Encontrou-se com ele em uma festa, (OUTRO ACORDE, MAIS INTENSO) cortejou-a, (ACORDE AINDA MAIS INTENSO) e ela não o repelira por simples questão de cortesia. (UM ÚLTIMO ACORDE, A FINDAR O TANGO) E, hoje pela manhã, partiu de volta a Juparassu no primeiro badalar do sino.

DALILA – ...encontrei-me com ele em uma festa, (PERFÍDIA NA VOZ A SE ACENTUAR A CADA ACORDE DO TANGO) cortejou-me e não o repeli para dançar por simples questão de cortesia.

COLEGA DE TRABALHO – E o que você vai fazer agora? PEDRO (NARRADOR) – Não titubeei: saí às pressas da repartição com destino à estação de trem. O meu destino era certeiro.

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SEGUNDA RUBIANADA: NO TREM E EM OUTRAS FRAÇÕES DE MUNDO SEQUÊNCIA II – PARTIDA DA ESTAÇÃO INICIA-SE, PROGRESSIVAMENTE, O BARULHO DE UM TREM. VOZES HUMANAS SE ALTERNAM COM RUÍDOS DE UMA MARIA FUMAÇA REAL E COM TRECHOS DE O TRENZINHO DO CAIPIRA, DE VILLA-LOBOS. A VOZ DE PEDRO, AO MENCIONAR O SEU DESTINO, TRANSFORMA-SE PAULATINAMENTE NO APITAR DO TREM. PEDRO – Juparassuuuuuuuuu! SEQUÊNCIA III – ESTRANHOS PASSAGEIROS PEDRO (NARRADOR) – Ao adentrar o vagão de número três do trem que atravessaria as Minas Gerais, deparei-me com criaturas exóticas: um senhor de aparência fúnebre, tão pálido que eram notórias todas as suas veias; uma senhora magra e esguia com o olhar fixo em um eterno horizonte... Até mesmo um coelho, um coelho a proferir grunhidos humanos a seu acompanhante. E qual não foi minha surpresa ao avistar o senhor Galateu, chefe da repartição na qual trabalho, a penetrar aquele mesmo vagão? INICIA-SE A AMBIÊNCIA DO TREM, SEMPRE INTERROMPIDA EM MOMENTOS DE NARRAÇÃO. GALATEU – Ora se não é o destino um grande gozador? Sempre a cruzar o caminho daqueles mais suscetíveis a alguns milagres do mundo. PEDRO (NARRADOR) – Foi com estas palavras que ele sentou-se à minha frente. Muitas palavras, pouca estatura. O homem chamava a atenção pelo fraque velho e batido que trajava e pela enorme cartola em sua cabeça. Começou a discorrer sobre tudo: do tempo às questões políticas do país... GALATEU – ...e este não é o maior problema! Desde que aquele nanico assumiu a presidência que as Minas não mais recebe atenção nos setores que lhes são vitais para pujança econômica... (MUDANÇA DE TOM) Aborreço-te, Pedro? PEDRO – Não, senhor! Só estou um pouco enfastiado com o movimento do trem... GALATEU – Mas sua fisionomia indica que algo muito maior que este balançar atinge-lhe. Responda: está satisfeito com teu emprego? PEDRO – Oh, mas é claro, senhor! Não tenho do que reclamar. GALATEU – Pode se abrir comigo, meu caro. Não me veja como aquele homem do escritório que só sabe falar em burocracias! Sei o quão penosa é a vida em uma repartição pública. O destino de todo homem, ao atingir certa idade, é enfrentar uma avalaaanche do tédio e da amargura. E, mesmo acostumados às vicissitudes desde a meninice, através de um longo processo de dissabores, alguns não conseguem encarar esta vida com a devida sobriedade.

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TROMBETAS COMO A ANUNCIAR UMA PRÓXIMA ATRAÇÃO. GALATEU – Eu fui um destes. Um dia, dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos num espelho... No espelho da Taberna Minhota. PEDRO – (ESPANTO) O senhor já trabalhou em uma taberna? GALATEU – Posso dizer... Que nasci em uma taberna. (MELANCOLIA) Posso dizer que nasci naquele momento. Ali fui atirado à vida, sem pais, sem infância ou juventude. Sem estar preparado para o sofrimento. CESSA, DE VEZ, A AMBIÊNCIA DO TREM. SEQUÊNCIA CIRCENSES

IV



O

EX-MÁGICO

DA

TABERNA

MINHOTA

OU

ELUCUBRAÇÕES

GALATEU – (ASSUME A POSIÇÃO DE NARRADOR) A descoberta daqueles fios brancos não me espantou, e tampouco me surpreendi ao retirar do bolso... (RISADA) O dono do restaurante! Sim, o dono do restaurante! Ele sim, perplexo, me perguntou... DONO DO RESTAURANTE – Como pôde ter feito isso? Tirar-me do seu bolso? Como vim parar aqui? GALATEU – O que eu poderia responder nessa situação? Eu, uma pessoa que não encontrava a menor explicação para minha presença no mundo! (APLAUSOS DO AUDITÓRIO) Disse-lhe que nascera cansado e entediado. Sem meditar na resposta, ofereceu-me emprego; passei a divertir a freguesia (RISADAS DIVERSAS E PALMAS DA ASSISTÊNCIA A PERDURAREM ATÉ O FINAL DA FRASE) da casa com meus passes mágicos. O homem, entretanto, não gostou da minha prática de oferecer aos espectadores almoços gratuitos, (PALMAS SE INTENSIFICAM) que eu extraía misteriosamente de dentro do paletó. Querendo de mim se livrar, apresentou-me ao empresário do... PRATOS E RUFAR DE TAMBORES. LOCUTOR DO CIRCO – O Circo-Parque Andaluz! MÚSICA DE CIRCO. GAROTO-PROPAGANDA DO CIRCO – Venham, venham! Sensacional atração: o mágico da Taberna Minhota! Venham, venham... GALATEU – O público, em geral, me recebia com frieza. (BOCEJO) Ao contrário dos dias de hoje, àquela época não me apresentava de casaca ou de cartola. Mas, quando, sem querer, começava a extrair do chapéu coelhos, cobras, lagartos, os assistentes vibravam. Sobretudo no último número, em que eu fazia surgir, por entre os dedos, um jacaré! Em seguida, comprimindo o animal pelas extremidades, transformava-o numa sanfona. E encerrava o espetáculo tocando... LOCUTOR DO CIRCO – O Hino Nacional da Cochinchina.

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TOCA-SE O HINO, QUE ACOMPANHARÁ A PRÓXIMA FALA. PEDRO – Juparassuuuuuuuuu... UMA MULHER – Pam-pam, pã-rã-rã-rã-rã-pam-pam... GALATEU – Os aplausos vinham de todos os lados, sob o meu olhar distante. Não me tocavam nem os elogios das criancinhas que iam às matinês de domingo. (HINO VAI DESAPARECENDO AOS POUCOS, MERGULHANDO A FALA EM UM SILÊNCIO PERTURBADOR) Por que me emocionar com aqueles rostos inocentes, destinados a passar pelos sofrimentos que acompanham o amadurecimento do homem? Muito menos me ocorria odiálas por terem tudo que ambicionei e não tive: um nascimento e um passado. (PAUSA) Com o crescimento da popularidade, a minha vida tornou-se insuportável. JORNALISTA – Com o crescimento da população mundial, o Instituto de Análise Demográfico-Sentimental informa... MOÇA DE SORTEIOS – O número de hoje é... GALATEU – A minha vida tornou-se insuportável! MOÇA DE SORTEIOS – Seis... JORNALISTA – Sete bilhões de pessoas no mundo. MOÇA DE SORTEIOS – Sete... JORNALISTA – Sete bilhões de pessoas sem rumo. MOÇA DE SORTEIOS – Zero. GALATEU – (DE FORMA RÁPIDA E SINCOPADA) Quase sempre, ao andar pela rua, provocava o assombro dos pedestres ao sacar um lençol do bolso – só queria um lenço para assoar o nariz! Se eu mexia na gola do paletó, logo aparecia um urubu. Em outras ocasiões, indo amarrar o cordão do sapato, das minhas calças deslizavam cobras! (GRITOS DE MULHERES E CRIANÇAS) Situação cruciante. PEDRO – Situação... Cruciante. GALATEU – (DESOLADO) Nada fazia... PEDRO – Cru-ciante. GALATEU – Olhava para os lados... PEDRO – Cru. GALATEU – ...e implorava com os olhos por um socorro! PEDRO – Cru. GALATEU – Que não poderia vir de parte alguma. (RÁPIDA PAUSA; SOM DE SIRENE E BARULHO DE AGLOMERAÇÃO) Vinham guardas, ajuntavam-se

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curiosos, um escândalo. Tinha de comparecer à delegacia e ouvir a autoridade policial vociferar: POLICIAL – É proibido soltar serpentes em vias públicas! GALATEU – Tímido e humilde, mencionava a minha condição de mágico, reafirmando o propósito de não molestar ninguém! Também, à noite, costumava acordar sobressaltado com um pássaro ruidoso a bater as asas ao sair do meu ouvido. (REVOAR DE PÁSSARO) GALATEU (PASSADO) – Saia do meu ouvido, seu pássaro imundo!!! Vá bater as asas na casa da Cacilda! GALATEU – Numa dessas vezes, disposto a nunca mais fazer mágicas, mutilei as mãos. Não adiantou! Ao primeiro movimento que fiz, elas reapareceram novas e perfeitas nas pontas dos tocos de braço! (PAUSA) Concluí que somente a morte poria fim ao meu desconsolo. UMA MULHER – (EM TOM DE LITURGIA) Uuuh... GALATEU – Afastei-me da zona urbana e busquei a serra. Ao alcançar o ponto mais alto... UMA MULHER – Uh, uuuh... PASTOR – E o diabo tentou o Senhor: pula, que teu Pai mandará dois anjos para lhe salvar. GALATEU – Abandonei o corpo ao espaço. BARULHO DO VENTO. UMA MULHER – Uh, uuuh... PASTOR – E o senhor mandou teus anjos. GALATEU – Senti apenas uma leve sensação da morte. Logo me vi amparado por um paraquedas. (CESSA O VENTO) Com dificuldade, machucando-me nas pedras, sujo e estropiado, consegui regressar à cidade, onde a minha primeira providência foi adquirir... Uma pistola!!! ESPECTADORA – (ASSUSTADA) Ah! Não faça isso! ESPECTADOR – É agora. É agora! GALATEU – Em casa, estendido na cama, levei a arma ao ouvido. ESPECTADORA – Não, que é isso? Você não pode fazer isso. Não, não... Tenha cuidado.

ESPECTADOR – É agora, é agora; isso, vai. É a hora. É, é, você consegue!

GALATEU – Puxei o gatilho, à espera do estampido, a dor da bala penetrando na minha cabeça.

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ESPECTADOR – Isso, vai; isso!!! ESPECTADORA – Não!!! O SOM DE UM TIRO BRUSCAMENTE CORTADO. GALATEU – Não veio o disparo nem a morte: a arma se transformara num lápis! A PLATEIA O OVACIONA, TRIUNFANTE!!! GALATEU – (COM PESAR) Rolei ao chão soluçando! Eu, que podia criar outros seres, não encontrava meios de libertar-me da existência! (PAUSA; MUDANÇA DE TOM) Eis que uma frase, uma frase que escutara por acaso na rua, trouxe-me nova esperança de romper em definitivo com a vida... JORNALISTA – O Instituto de Análise Demográfico-Sentimental informa: ser funcionário público é suicidar-se aos poucos. GALATEU – Não me encontrava em condições de escolher qual forma de suicídio seria melhor: se lenta ou rápida. Por isso me empreguei na Secretaria do Estado! (BARULHO DO DATILOGRAFAR DE MÁQUINAS A DITAR O RITMO DAS FALAS SUBSEQUENTES; INICIA-SE EM UMA VELOCIDADE NORMAL) 1930, ano amargo, mais longo que os posteriores à minha primeira manifestação de vida ante o espelho da Taberna Minhota. Não morri, conforme esperava. Maiores foram minhas aflições e maior o meu desconsolo. (PARAM AS MÁQUINAS) Quando era mágico, pouco lidava com os homens. O palco me distanciava deles... Agora/ UMA COLEGA DE TRABALHO documento por documento!



Tem

uma

pilha



pra

você

assinar



GALATEU – (VOLTAM AS MÁQUINAS DE ESCREVER; O DATILOGRAFAR, BEM COMO A VELOCIDADE DAS FALAS, CADA VEZ MAIS ACELERADO) Obrigado à proximidade de meus semelhantes, necessitava compreendê-los, disfarçar a náusea que me causavam. E toda aquela situação levou-me à revolta contra a falta de um passado! PEDRO – (COMEÇA A GAGUEJAR, NEURASTÊNICO) Da-dadadada-dada... GALATEU – Por que somente eu não tinha alguma coisa para recordar? O amor? (AQUI CESSAM AS MÁQUINAS) O amor me veio por uma funcionária/ PEDRO – (AO PRENÚNCIO DA PALAVRA "AMOR", AGORA A BALBUCIAR EM UM TOM DOCE) Da-dadada-Dalila! GALATEU – (CONTINUA, SEM DAR MUITA ATENÇÃO AO DRAMA DE PEDRO) ...vizinha de mesa de trabalho. Ela me distraiu um pouco dos meus tormentos. (VOLTAM AS MÁQUINAS; O DATILOGRAFAR MAIS RÁPIDO QUE NUNCA) Cedo, no entanto, retornou o desassossego, e eu me debatia em incertezas: como me declarar à minha colega se eu nunca tivera sequer uma experiência sentimental?... (O FINDAR DO BARULHO AS MÁQUINAS) 1931 entrou triste, com ameaças de demissões coletivas na Secretaria e a recusa da datilógrafa em me aceitar. Ante o risco de ser posto na rua, procurei acautelar meus interesses. Fui ao chefe

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da seção e lhe declarei que não podia ser dispensado, afinal aqueles dez anos de casa eram sinônimo de estabilidade no cargo! CHEFE – (COMO SE TOSSISSE) Dez! Dez. Dez, dez, dez... (SARCÁSTICO) O seu cinismo é surpreendente. Jamais poderia esperar que um reles empregado com um ano de trabalho tivesse a ousadia de afirmar que está na labuta há dez anos... GALATEU – Para lhe provar não ser leviana a minha atitude, procurei nos bolsos documentos que comprovassem a veracidade do que eu dizia. Só achei um papel amarrotado, fragmento de um poema inspirado nos seios da datilógrafa. Dez anos... (TOM MELANCÓLICO) Confiara demais na faculdade de fazer mágicas e ela fora anulada pela burocracia. VOLTA A AMBIÊNCIA DO TREM. PEDRO – Que história incrível, senhor Galateu! GALATEU – (NÃO MAIS SOB O STATUS DE NARRADOR) Sem os antigos dons de mago, não consegui abandonar a pior das ocupações humanas... PEDRO – O senhor me perdoe, mas... Como conseguiu chegar à chefia da repartição? GALATEU – Ora, para alguma coisa estes vinte anos – que alguns julgam quatro ou cinco – me serviram! Por mais curioso que possa parecer, o mesmo homem que me taxara de cínico indicou meu nome para seu substituto quando se aposentou da chefia. Você sabe que algumas ocupações exigem certa frieza e comportamentos não muito ortodoxos... (RETOMA A CONDIÇÃO DE NARRADOR) Até hoje suspiro alto e fundo. Não me conforta a ilusão: serve somente para aumentar o arrependimento de não ter criado todo um mundo mágico. (REPENTINA MUDANÇA; VOLTA O HINO NACIONAL DA COCHINCHINA) Mas estou ciente de que ainda posso fazê-lo! De que voltarei a arrancar do corpo lenços vermelhos, azuis, brancos, verdes... De que encherei a noite com fogos de artifício! E serei ovacionado, coberto dos aplausos dos homens de cabelos brancos, das meigas criancinhas! (OUVEM-SE APLAUSOS, ASSOVIOS E GRITOS) PEDRO – (A CORTAR A ILUSÃO) Como o senhor tem tanta certeza disso? GALATEU – Porque estou a caminho de mais uma consulta com o famigerado doutor Pink da Silva e Glória, conhece? Ele possui uma clínica bem no meio da estrada para Juparassu. Bem no meio do nada... O sujeito consegue recuperações milagrosas aos olhos da medicina e está particularmente empenhado em meu caso. Ele disse que todos os meus poderes acabaram atolados no lodaçal que possuo dentro de mim. O que ele faz é drenar a lama que ali está para desafogar toda a mágica. Já obtivemos progressos bem interessantes. PEDRO – É mesmo? GALATEU – (CONVICTO) Sim! (PAUSA) Posso confessar-lhe uma coisa? (EM TOM DE LOUCURA) Este trem... Eu o retirei do meu bolso. FORTE APITAR DO TREM.

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PEDRO (NARRADOR) – Armou o picadeiro, contou sua história e foi-se embora. SEQUÊNCIA V – BÁRBARA OU DA VOLUPTUOSIDADE E DO APETITE DESENFREADO DA VIDA TREM A PROSSEGUIR SEU CAMINHO. PEDRO (NARRADOR) – Eu estava estupefato! Sabia que ser funcionário público era padecer no inferno, mas não desconfiava, até então, do poder de alguns demônios. Quando pensei que poderia fugir de todas aquelas elucubrações, um novo ser chamou-me a atenção – não só a minha, mas a de todos naquele vagão. (RECLAMAÇÕES DOS PASSAGEIROS) Adentrou pela porta uma senhora farta de carnes, que mal conseguia se locomover pelo estreito corredor dentre os bancos. Sentou-se à minha frente e, apesar da cara de poucos amigos, não pude deixar de alertá-la que alguma coisa se movia incessantemente no bolso localizado junto a seu regaço. BÁRBARA – Oh, não se preocupe! É meu filho, que carrego junto ao peito. PEDRO – Ele está no seu bolso? BÁRBARA – Sim. É pequeno o suficiente para tal. Se você me visse no período de gestação, não acreditaria. Meu ventre se dilatara de forma tão assustadora que eu chegava a ficar escondida atrás daquela barriga colossal! PEDRO – A senhora me perdoe, mas... Como é sua graça? BÁRBARA – Bárbara. PEDRO – Bom, dona Bárbara, perdoe-me a indelicadeza, mas é um pouco difícil imaginá-la maior do que está. BÁRBARA – Não, não: eu murchara! A barriga é que crescera. Temia que, do meu ventre, saísse um gigante ou um monstro! Para meu desapontamento, no entanto, nasceu um ser raquítico e feio, pesando um quilo. (O CHORO DO BEBÊ NO PARTO) Já possui oito anos, e não cresceu sequer um milímetro desde o nascimento... Aí tenho que carregá-lo para todos os lados. Oh, como é difícil lidar com algo que não encomendamos. PEDRO – Presumo que a senhora seja... Casada. BÁRBARA – Sou, sou sim. Por um infortúnio do destino, confesso. Era companheira inseparável de Segismundo na meninice. Namoramos, noivamos e, um dia, nos casamos. PEDRO – Ah, os encantadores amores da juventude... BÁRBARA – Agora, porém, não passamos de simples companheiros. Meu marido não consegue... (COM MALÍCIA) Atingir-me satisfatoriamente.

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Figura 4 – Ba-o-Bárbara

Fonte: Ilustração de Nani Vasques realizada especialmente para a peça radiofônica As rubianadas.

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PEDRO – Como? BÁRBARA – Atingir... Meu coração de forma satisfatória. PEDRO – (ENVERGONHADO) indiscrição.

Oh,

sim,

sim,

entendi...

Perdão

pela

BÁRBARA – Se bem que eu seria injusta se dissesse que ele não procura me agradar. Desde a nossa juventude que ele satisfaz todas as minhas vontades. Levara tantos tombos ao subir em árvores pra pegar frutas por minha causa; (COM PRAZER) apanhara tanto dos meninos que eu pedia pra ele agredir! Ao fim, sempre consigo dele o que quero, seja com uma palavra afetuosa ou com um doce olhar. E, a cada pedido realizado, eu engordo um pouco. PEDRO – Imagino que seu marido, então, seja extremamente devotado à senhora. BÁRBARA – Houve uma época na qual, temeroso pela minha saúde e por meu peso, ele se fez duro. Ameaçou até abandonar-me ao primeiro pedido que recebesse! Mergulhei, então, em uma tristeza sem fim. Todos diziam que minha angústia contagiava o ambiente. Acabei por definhar, e meu ventre a crescer assustadoramente – foi aí que constatamos a gravidez. (COM TERNURA) Quando meu marido me viu magra, pálida, ficou com medo de que aquilo fosse prenúncio de grave moléstia. Temia que nosso filho morresse em meu ventre! Suplicou-me, então, para que eu lhe pedisse algo. (TOMA A POSIÇÃO DE NARRADORA) Pedi o oceano. Chuááá, chuááá, chuááá... NESTE MOMENTO, FUNDEM-SE O SOM DA VOZ DE BÁRBARA E O SOM REAL DO MAR. PEDRO AFOGA-SE EM SUAS LEMBRANÇAS POR DALILA. PEDRO – (AFOGANDO-SE) Da... Dalila! Daliiila! Daaa... Dalilaaa. CORTE BRUSCO. BÁRBARA – Dalila? (PAUSA) Quem é Dalila? PEDRO – Dalila... Dalila é minha namorada. BÁRBARA – Oh! E ela estará te esperando na estação, não é? PEDRO – Não! Ela não sabe que vou a seu encontro. Não vejo a hora de beijá-la, abraçá-la! Não vejo a hora de olhar para seus olhos e dizer: "vim de surpresa para ficarmos noivos". Seus olhos... Azuis como o céu, azuis como a... Azuis como o mar! BÁRBARA – Um amor da juventude... Estes mares costumam excessivamente tormentosos e padecer de terríveis ressacas.

ser

PEDRO – (SÉRIO, COMO A MUDAR DE ASSUNTO) A senhora conseguiu o mar? BÁRBARA – (PINGOS D'ÁGUA) Segismundo trouxe-me uma pequena garrafa contendo água do oceano. O senhor tem razão... (COM FASCÍNIO) A água do mar é azul como o céu, é cristalina! Passei a dormir com a garrafinha entre os braços – o menino não era nem nascido ainda...

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Sempre, ao acordar, eu provava um pouco da água. Mas o líquido pouco durou... Depois, legitimamente mãe, pedi a meu marido um ba-o-bá, plantado no terreno ao lado do nosso. Acredita que, primeiramente, Segismundo me veio com um galho da árvore? Cheguei até a fazer troça de toda a situação... BÁRBARA (PASSADO) – (A VOCIFERAR) Idiota!!! Não lhe pedi um galho! SEGISMUNDO (IMITADO POR BÁRBARA) – Ma, ma, mas... Bárbara, o baobá é demasiado frondoso, é muito grande! BÁRBARA – Acredita que meu marido se assustou com meu tom de voz!? Segismundo é muito tolo, até hoje não sabe diferenciar um chiste de algo mais sério... Como o dono do imóvel se recusou a vender a árvore separadamente, tivemos que adquirir toda a propriedade por um preço exorbitante, acredita? PEDRO – Mas você o retirou da terra? Por que não deixou o baobá fincado no chão de origem? BÁRBARA – Por que não deixa sua namorada a vagar pelo mundo em paz? (TOQUE SINISTRO) Por vezes, necessitamos que certos seres se curvem a nossas vontades. Eu só queria... Eu só queria colocar meus pés naquele tronco. Chegar ao topo do baobá, sentir a maciez de suas folhas... Coisa que não conseguiria com a árvore em pé. PEDRO – (ENGRAÇADINHO) Até porque ela não ficaria em pé se a senhora a escalasse, não é? BÁRBARA – (IGNORANDO-O) Fechado o negócio, contratamos o serviço de alguns homens que, munidos de pás, picaretas e um guindaste, arrancaram o baobá do solo e o estenderam no chão. (MUDANÇA DE TOM) Como era rijo aquele tronco; todo aquele tronco à minha mercê... Senti-me uma normalista quando lá desenhei um coraçãozinho com o meu nome e o nome de Segismundo... (BARULHO DE VENTO) Só que as folhas murcharam, o colorido foi desaparecendo... Secou. Ficou feio. Não servia mais pra nada. Nada mais me servia... (CESSA O VENTO) E o fedelho, mesmo minúsculo, sempre a espernear, a torrar minha paciência com seu choro, suas gritarias... PEDRO – Mas por que pedidos tão grandiosos? BÁRBARA – Ora, eu necessito de algo que me complete! O senhor... Como é seu nome? PEDRO – O meu? É Pedro. BÁRBARA – ...o senhor Pedro há de convir que não é qualquer coisa que se equipara a uma mulher de minha envergadura, não é? (TOMA A FUNÇÃO DE NARRADORA) Já estava me sentindo vazia, fraca quando encontrei novamente a garrafinha... A garrafinha da água do mar! Mesmo vazia, ela me encheu de vontade... E uma lâmpada acendeu no meu estômago! APITO DE UM NAVIO.

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BÁRBARA (PASSADO) – Seria tão feliz se possuísse um navio. SEGISMUNDO (IMITADO POR BÁRBARA) – Ma, mas... Bárbara, meu bem, ficaremos pobres, não teremos como comprar alimentos. O garoto morrerá de fome! BÁRBARA – Com doçura, persuadi Segismundo. BÁRBARA (PASSADO) – (A VOCIFERAR) Não importa o garoto!!! Teremos um navio, que é a coisa mais bonita do mundo. BÁRBARA – Lá foi Segismundo novamente para o litoral. (BARULHO DO MAR) O quão amável ele é quando quer satisfazer as minhas vontades... Dentre os transatlânticos ancorados no porto, (OUTRO APITO DE NAVIO) escolheu o maior! Mandou que o desmontassem e o transportassem à nossa cidade. Ah, quando, na estação, chegou um trem carregado somente com as partes do navio, meus olhos se encheram de lágrimas! (RISADA DA CRIANÇA) Até um gracejo fiz para meu pequeno, que acompanhara o pai na empreitada! Quando o barco ficou pronto... Oh, eu não desci mais a terra! Passava os dias e as noites no convés; sentia-me plena ao desfilar pela nau. PEDRO – E por que desceu a terra e pegou este trem? BÁRBARA – Um dia, comecei a olhar fixamente para o céu. Repentinamente, Segismundo se prostrou diante de mim desesperado, pedindo que eu parasse de admirar as estrelas. Tentou até puxar-me pelo braço, mas não contava com minha força. Quem acabou arrastandoo fui eu. Foi então que eu pedi... PEDRO – (CURIOSO) O quê? BÁRBARA – A lua. PEDRO – A lua!? BÁRBARA – Sim, a lua. (TOQUE CELESTIAL) E eu a terei hoje! Hoje, eu me completarei com a lua. PEDRO – Seu marido? Seu marido... BÁRBARA - Ele me prometeu que nos encontraríamos em Juparassu. Ele com o meu presente e eu com todo o amor que possa caber dentro de mim. PEDRO – Haja amor, minha senhora. Haja amor... SEQUÊNCIA VI – INQUIETAS SOMBRAS APITAR DO TREM. PEDRO (NARRADOR) – (RONCO DE BÁRBARA) Sentia-me exausto. Todas aquelas histórias na minha cabeça... Eu não conseguia dormir! Bárbara somente virara de lado e caíra nos braços de Morfeu. Um sono profundo, que chegava a emudecer o barulho do trem. Eu não mais via

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a face daquela mulher, e sim um amontoado de manchas a compor uma tela de proporções gigantescas. Não sabia mais quem era Bárbara, quem era Galateu... Por alguns instantes, tudo parecia fruto de uma febre, uma febre inebriante que me fazia clamar mais e mais por Dalila, mergulhar nos retalhos de memória que deformavam meu inconsciente. Só conseguia mergulhar em Dalila... UMA MULHER – (EM TOM DE LITURGIA) Uh, uuuh...

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Figura 5 – Azul como a, azul como a...

Fonte: Ilustração de Nani Vasques realizada especialmente para a peça radiofônica As rubianadas.

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TERCEIRA RUBIANADA: EM JUPARASSU SEQUÊNCIA VII – (LEMBRANÇAS DE) DALILA MOÇA APITAR DO TREM. PEDRO (NARRADOR) – Juparassu! Juparassu surgia ante os meus olhos, no alto da serra. Mais quinze minutos e estaria na plataforma da estação, aguardando condução para casa, onde mal jogaria a bagagem e iria ao encontro de Dalila. Da Dalila da Casa Azul! Da Dalila que, em menina, tinha o rosto sardento e era uma garota implicante, rusguenta. Não a tolerava e os nossos pais, por questões de divisas de terras, se odiavam. Mas, certo verão, por ocasião da morte de meu pai, os moradores da Casa Azul, assim como os ingleses das duas casas de campo restantes, foram levar-me suas condolências, e tive dupla surpresa: (INCIDE MÚSICA ROMÂNTICA) Dalila perdera as sardas, e seus pais, ao contrário do que pensava, eram ótimas pessoas! Trocamos visitas e, uma noite... Beijei Dalila. (AQUI A MÚSICA ATINGE O ÁPICE) Beijei Dalila. Nunca Juparassu apareceu tão linda e nunca as suas serras foram tão azuis. (MUDANÇA DE ESTAÇÃO; COMO SE A VOZ DE PEDRO SAÍSSE DE UM APARELHO DE RÁDIO) Azul como aaa, azul como a; azul como a, azul como a, azul como a... TOQUES DE PIANO QUE CONDUZEM A UM METAL PESADO. PEDRO – (LOUCO, DESVAIRADO) Eu beijei... Dalila. Eu beijei Dalila. Eu beijei Dalila! Eu beijei Dalila! Eu beijei Dalila. Eu beijei Dalilaaa! CORTE SECO DA MÚSICA. PEDRO (NARRADOR) – E quanto a Bárbara... Bárbara não mais roncava. PEDRO – Bárbara? Barbarata? Barbarella? Barbazul? PEDRO (NARRADOR) – Bárbara havia desaparecido. SEQUÊNCIA VIII – A VOLTA À TERRA MÃE FORTE APITAR DO TREM. AMBIÊNCIA DE UMA ESTAÇÃO: DESCEREM, FUNCIONÁRIOS A DESCARREGAREM OS VAGÕES.

PASSAGEIROS

A

AGENTE DA ESTAÇÃO – O senhor é o engenheiro encarregado de estudar a reforma da linha, não? Por que não avisou com antecedência que chegaria? Arrumaríamos o nosso melhor quarto. PEDRO – Ora, meu amigo, não sou engenheiro e nem pretendo ver obra alguma. AGENTE DA ESTAÇÃO – Então o que veio fazer aqui? PEDRO – Tenciono passar as férias em minha casa de campo.

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AGENTE DA ESTAÇÃO – Hum. Não sei como poderá, pois... Acontece que as casas de campo estão em... Ruínas. ACORDE DE SUSPENSE. PEDRO – (DESCONCERTADO) Quem me alugaria um cavalo para dar umas voltas pelas vizinhanças? AGENTE DA ESTAÇÃO – Mas não há cavalos por aqui. Ao menos não em um raio de cem quilômetros. E para que cavalos se nada há de interessante para ver nos arredores? PEDRO – (RETOMA FÔLEGO POUCO A POUCO) É que, é que há muitos anos não venho por estas paragens. Queria só rever alguns lugares por onde passei a um... A um par de anos atrás! AGENTE DA ESTAÇÃO – O senhor me assustou! Pensei que conversava com um paranoico. Quer que eu lhe acompanhe neste passeio para melhor direcioná-lo? PEDRO – Não, obrigado. Deixa que eu vou sozinho. UM RUÍDO ENSURDECEDOR DE VENTO. SEQUÊNCIA IX – TOUS LES GARÇONS... PEDRO (NARRADOR) – Não caminhara mais de vinte minutos quando, próximo ao local de minha casa, fui tomado por uma música... Uma música saída diretamente da minha juventude. A primeira música que eu dancei com Dalila! OUVEM-SE SONS A SIMBOLIZAR UM ANTIGO RÁDIO A SER SINTONIZADO E INICIA-SE A MÚSICA TOUS LES GARÇONS ET LES FILLES, NA VOZ DE FRANÇOISE HARDY. EM DETERMINADO TRECHO DA MÚSICA, OUVE-SE DALILA A SUSSURAR, SÁDICA, ALGUNS VERSOS DE OUTRA FORMA: FRANÇOISE HARDY – [...] oui mais moi je vais seule par les rues l'âme en peine oui mais moi je vais seule car personne ne m'aime mes jours comme mes nuits sont en tous points pareils sans joies et pleins d'ennuis personne ne murmure "je t'aime" à mon oreille

DALILA – oui mais vous il va seul par les rues l'âme en peine oui mais vous il va seul car personne ne vous aime

personne ne murmure "je t'aime" à son oreille

AO TÉRMINO DESTE TRECHO, VOLTAM AS INTERFERÊNCIAS NO RÁDIO. COLONO – Porcaria de rádio!

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SEQUÊNCIA X – A CASA AZUL TOQUE RÁPIDO A CAUSAR SUSPENSE. PEDRO – (ESTARRECIDO) Meu Deus! PEDRO (NARRADOR) – De repente, estaquei aturdido: da minha casa restavam somente as paredes arruinadas, a metade do telhado caído, o mato invadindo tudo... Eu me recusava a acreditar em tudo aquilo! COLONO – Deixe Deus fora disso, meu filho. PEDRO – O senhor mora aqui há muito tempo? COLONO – Desde menino. PEDRO – Certamente conheceu esta casa antes dela se desintegrar. O que houve? Foi um tremor de terra? COLONO – Nada disso aconteceu. Sei da história toda, contada por meu pai. (TOMA A POSIÇÃO DE NARRADOR) Há muito tempo, toda a região foi assolada por uma epidemia de febre amarela que perdurou por muitos anos. A partir daí, ninguém mais se interessou pelo lugar. Os moradores das casas de campo sobreviventes nunca mais voltaram, nem conseguiram vender as propriedades. E o rapaz que vivia nessa casa aí foi levado para a capital com a saúde precááária... Nem sei se ele resistiu à doença. PEDRO – E... Dalila? BARULHO DO VENTO. PEDRO (NARRADOR) – (UM SUPLÍCIO DE ESPERANÇA) Dalila! COLONO – Não conheço ninguém com esse nome não, senhor! PEDRO – A moça... A moça da Casa Azul. COLONO – Ah! A noiva do moço desta casa? (PAUSA) Morreu. INTERFERÊNCIAS NA TRANSMISSÃO. PEDRO (NARRADOR) – (TOM FANTASMAGÓRICO; VENTOS QUE, GRADATIVAMENTE, FICAM MAIS FORTES) Fiquei siderado ao ver ruir a tênue esperança que ainda alimentava. Sem me despedir, retomei a caminhada. Os passos trôpegos, divisando confusamente a vegetação na orla da estreita picada... Ao subir até uma pequena colina, avistei as ruínas da Casa Azul. Avistei-as sem assombro, sem emoção. Cessara toda a minha capacidade emocional. Senti meus passos se tornaram firmes novamente e me muni de coragem: de dentro daqueles escombros eu iria retirar a minha amada. RAJADAS DE VENTO.

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EPÍLOGO: PESADELO SONORO (CÂNTICO DOS CÂNTICOS) É NO CONTATO DE PEDRO PODERES EM DEFINITIVO E ENGORDATIVA: A LUA. E A TORMENTAS TERRÍVEIS NOS MINAS GERAIS!

COM O PASSADO QUE GALATEU RECUPERA SEUS BÁRBARA TEM REALIZADA SUA GRANDE FANTASIA CHEGADA DO SATÉLITE EM JUPARASSU CAUSARÁ MARES; CONCRETIZA-SE A CHEGADA DO MAR ÀS

GALATEU – A lua. A luuuuuua. A luuuuuuuuua... BÁRBARA – Eu quero a lua! GALATEU – É ela! É ela, é ela... PASTOR – E era Noé da idade de seiscentos anos, quando o dilúvio das águas veio sobre a terra. INTERRUPÇÃO NA TRANSMISSÃO. JORNALISTA – Senhores ouvintes, nosso boletim meteorológico informa: qualquer modificação nas estações da lua pode causar algum tipo de tormenta nas marés. Bruscas modificações são capazes de provocar ondas gigantes. VOLTAMOS À NOSSA PROGRAMAÇÃO NORMAL. BÁRBARA – Eu quero... O oceano. Chuááá. Chuááá. Chuááá... O MAR TOMA TODO O ESPECTRO ACÚSTICO. GALATEU – O mar... O mar nas Minas Gerais! PEDRO – Dalila!!! Eu vi Dalila! Eu vi Dalila!!! BÁRBARA – Dalila veio com o mar! PASTOR – E aconteceu que, passados sete dias, vieram sobre a terra as águas do dilúvio. PEDRO – (AFOGANDO-SE) Dalila! Eu vou... Eu vou ao teu encontro! Da, Daaa, Daliiila! Daaa... Dalilaaa. PASTOR – E durou o dilúvio quarenta dias sobre a terra. E cresceram as águas e levantaram a arca, (INTERFERÊNCIA NA TRANSMISSÃO) e ela se elevou sobre a terra. PEDRO – (COMO SE ESTIVESSE PRESO A UM APARELHO DE RÁDIO) Da minha casa restavam somente as paredes arruinadas, a metade do telhado caído, o mato invadindo tudo... Eu me recusava a acreditar em tudo aquilo! BÁRBARA – Chuááá... Chuááá... Chuááá... Chuááá...

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APÊNDICE B

APÊNDICE ACÚSTICO

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APÊNDICE ACÚSTICO A

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AS RUBIANADAS (versão original gravada em CD) Três instâncias oníricas. A busca de um homem por sua misteriosa amada; as reminiscências de um ex-mágico a clamar pela volta de seus poderes; a ânsia e voracidade de uma mulher que engorda desenfreadamente a cada pedido que lhe atendem. Trajetórias que se cruzam no trem a caminho de Juparassu, local onde tudo pode acontecer... Rubianeie conosco através dos sons! FICHA TÉCNICA intérpretes AMARILIS IRANI (Espectadora)

LUCAS MARTINS NÉIA (Colega de Trabalho, Pastor)

DANILO GOMES NEIVA (Chefe) GABRIEL FRANCO RODRIGUES (Espectador, Agente da Estação)

MARCO ANTONIO PAIXÃO (Galateu, Carteiro, Dono do Restaurante, Locutor do Circo, Garoto-Propaganda do Circo, Policial, Colono)

JOSÉ PAULO BRISOLLA DE OLIVEIRA (Pedro, Jornalista)

SOFIA PELLEGRINI (Bárbara, Uma Mulher, Moça de Sorteios, Segismundo)

JULIA VERSOZA (Uma Colega de Trabalho)

TAINARA CAROLINE (Dalila)

texto, direção e produção LUCAS MARTINS NÉIA técnicos de som BRUNO CARDIAL JOÃO LOPES edição BRUNO CARDIAL LUCAS MARTINS NÉIA peça radiofônica gravada nos estúdios do LABORATÓRIO DE RADIOJORNALISMO e da RÁDIO UEL FM realização UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA (Depto. de Música e Teatro e Depto. de Comunicação – CECA) NOVEMBRO DE 2013

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