Pedagogia, controle simbólico e identidade. Capítulo 2 - O dispositivo pedagogico Bernstein.pdf

May 29, 2017 | Autor: Ronai Rocha | Categoria: Pedagogia, Currículo
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Pedagogia, Controle Simbólico e Identidade. Teoria, Pesquisa, Crítica - Basil Bernstein Capítulo 2 - O Dispositivo Pedagógico •

Introdução A minha pergunta é: existem princípios gerais subjacentes à transformação do conhecimento em comunicação pedagógica, quer o conhecimento seja intelectual, prático, expressivo, conhecimento oficial ou conhecimento local? A questão pode, à primeira vista parecer desnecessária. Temos estudos sobre sistemas de ensino em muitas sociedades diferentes sob diferentes condições econômicas, históricas e ideológicas. Temos uma crescente compreensão das interrelações complexas dos sistemas educacionais com outros sistemas, econômicos e culturais, nacionais e internacionais. Temos uma infinidade de estudos que mostram a função da educação na reprodução das desigualdades de classe, gênero, raça, região, religião. As salas de aula têm sido objeto de inúmeras descrições, incluindo o seu papel na legitimação de algumas identidades e na deslegitimação de outras. Sob todas essas perspectivas a comunicação pedagógica é muitas vezes vista como um veículo, uma retransmissora de mensagens ideológicas e de relações de poder externas, ou, ao contrário, como um veículo aparentemente neutro ou retransmissor de habilidades de vários tipos. Nos termos de minhas perguntas, se existem princípios gerais subjacentes à pedagogização do conhecimento e sobre aquilo que torna a comunicação pedagógica possível, a maioria dos estudos têm estudado apenas o que é veiculado ou retransmitido, eles não estudam a constituição da própria transmissão (relay). Temos estudos das mensagens pedagógicas e de sua base institucional e ideológica, mas não temos muitos estudos sobre a gramática social sem a qual nenhuma mensagem é possível. Portanto, eu gostaria de explorar as possibilidades de elaboração da natureza sociológica do conhecimento pedagógico, oficial ou local. Inicialmente quero deixar clara a distinção entre o transmissor (relay) e o transmitido (relayed). Para fazer isso eu vou primeiro comparar o dispositivo linguístico e o que chamarei de dispositivo pedagógico. Em segundo lugar, vou descrever as regras do dispositivo pedagógico. Em terceiro lugar, vou oferecer uma elucidação de cada uma das três regras e de suas inter-relações e implicações.

O dispositivo linguístico e o dispositivo pedagógico •

Esta tradução de capítulos de Pedagogy, Symbolic Control and Identity. Theory, Research, Critique. (Revised

Edition. Rowman & Littlefield Publishers. London, 2000), foi feita com apoio do programa CAPES-PIBID e destina-se apenas a usos não-comerciais, em grupos de estudo e aulas. (Ronai Rocha)



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Se olhamos para o dispositivo linguístico, vemos que se trata de um sistema de regras formais que regem as várias combinações que fazemos quando falamos ou escrevemos. O dispositivo funciona em uma série de diferentes níveis. Há controvérsias sobre as origens desse dispositivo. Alguns argumentam, a partir de uma perspectiva chomskiana, que o dispositivo tem a sua base em duas condições: uma sensibilidade inata para a aquisição das regras do dispositivo e uma condição interativa. Sem esta última a aquisição não é possível. Observe que a partir dessa controversa perspectiva de Chomsky, as regras deste dispositivo, a aquisição deste dispositivo e as suas possibilidades criativas são independentes da cultura. Em outras palavras, ele existe no nível do social, mas não ao nível do cultural. De um ponto de vista evolutivo isto é assim porque não podíamos deixar um dispositivo tão crítico como este à imprecisão e vicissitudes da cultura. Podemos dizer a partir deste ponto de vista que a aquisição deste dispositivo, que é fundamental, é ideologicamente livre, mas não as suas regras, como veremos. O modelo apresentado na Figura 2.1 mostra, muito simplesmente, que existe um significado potencial fora do dispositivo linguístico e este significado potencial ativa o dispositivo, e o resultado é a comunicação. Além disso, a comunicação gera uma realimentação sobre o significado potencial, quer de uma forma limitada ou melhorada. As regras que nós indicamos como proporcionadoras de um entendimento na comunicação em seu contexto são necessariamente regras contextuais. Por exemplo, as regras distintas de comunicação que teríamos se estivéssemos tomando uma bebida ou se estivéssemos falando com um professor, variariam de acordo com o contexto. Assim, são necessárias regras contextuais para compreender a comunicação local que o dispositivo torna possível. As regras que constituem o dispositivo são relativamente estáveis, mas elas não são inteiramente estáveis ao longo do tempo. Não se trata aqui de mudanças fundamentais, mas de uma série de pequenas alterações. As regras do dispositivo são relativamente estáveis, e as regras que regulam a comunicação feita a partir dele são contextualmente reguladas.

Figura 2.1.



Isto levanta uma questão muito interessante: o dispositivo de linguagem é em si mesmo neutro, o sistema de regras que constituem este dispositivo é neutro em relação ao significado potencial e, portanto, neutro em relação ao que vem de fora? A questão é a seguinte: as regras e os sistemas de classificação incorporados no dispositivo de alguma



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forma regulam o que vem de fora? E se esse é o caso, então o veículo da comunicação, de alguma forma fundamental, está regulando o que é veiculado. Halliday (1978, 1993) argumenta fortemente, e eu concordo, que as regras do dispositivo linguístico não são ideologicamente livres, mas que elas refletem ênfases sobre o potencial significado criado por grupos dominantes. Assim, a partir deste ponto de vista, a relativa estabilidade das regras pode muito bem ter a sua origem nos interesses dos grupos dominantes. A linguagem e a fala devem ser considerados como um sistema de sistemas dialeticamente interligados. Eu não vou entrar nos meandros deste problema porque ele é muito complexo e há pontos de vista contraditórios sobre o assunto. No entanto, isso levanta a questão de que o dispositivo não é neutro, e que o dispositivo propriamente dito pode ter alguma função reguladora intrínseca. No nível mais mundano isso é claro, porque o dispositivo inclui em seu sistema algumas classificações muito fundamentais, em particular as classificações de gênero. Por exemplo, a oposição à discriminação de gênero é dificultada pelo sistema de classificação da própria linguagem. Pode ser muito difícil suspender ou substituir as distribuições de classificação feitas na língua. Não é fácil substituir a palavra “domínio” (mastery) por uma outra menos enviesada em gênero. Fizemos uma distinção entre “o veiculador” (the carrier) (ou transmissor –relay) e “o veiculado” (o que é retransmitido). “O veiculador” tem regras relativamente estáveis e “o veiculado” tem regras contextuais. Nenhum dos conjuntos de regras é ideologicamente livre. De uma maneira similar, eu quero apresentar o dispositivo pedagógico. Esse dispositivo tem normas internas que regulam a comunicação pedagógica que o dispositivo torna possível. Tal comunicação pedagógica atua seletivamente sobre o significado potencial. Significado potencial significa simplesmente o discurso potencial que está disponível para ser pedagogizado. O dispositivo pedagógico regula fundamentalmente a comunicação que ele torna possível, e, desta forma, atua seletivamente sobre o significado potencial. O dispositivo regula continuamente o universo ideal de significados pedagógicos potenciais, de maneira a restringir ou aumentar as suas realizações. Embora existam diferenças, o dispositivo pedagógico assemelha-se ao dispositivo da linguagem em vários modos. Sua estrutura formal (veja a Figura 2.1) é semelhante. O aparelho pedagógico torna possível um grande âmbito potencial de resultados de comunicação semelhantes ao dispositivo de linguagem. As formas de realização do dispositivo pedagógico, como as formas de realização do dispositivo linguístico, estão sujeitas a regras que variam de acordo com o contexto. As diversas formas de realização do dispositivo pedagógico podem restringir ou aumentar o discurso potencial disponível para ser pedagogizado. Vou sustentar que as regras intrínsecas do dispositivo pedagógico, da mesma forma que as regras intrínsecas do dispositivo linguístico são relativamente estáveis. Estas regras, como as regras do dispositivo linguístico, não são ideologicamente livres. Com efeito, as regras do dispositivo pedagógico estão essencialmente implicadas na distribuição na restrições das várias formas de consciência. Tanto o dispositivo linguístico e o dispositivo pedagógico tornam-se locais de apropriação, conflito e controle. Ao mesmo tempo, existe uma diferença fundamental entre os dois dispositivos. No caso do dispositivo pedagógico, mas não no caso do dispositivo linguístico, é possível ter um resultado, uma forma de comunicação que pode subverter as regras fundamentais do dispositivo.

As regras do dispositivo pedagógico



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Para começar vou sugerir que o dispositivo pedagógico proporciona a gramática intrínseca do discurso pedagógico (ou seja, a gramática em um sentido metafórico). Vou então considerar a gramática intrínseca do discurso pedagógico que o dispositivo fornece, essencialmente através de três regras inter-relacionadas: regras de distribuição, regras de recontextualização e regras de avaliação. Estas regras estão em uma relação particular entre elas mesmas. Ou seja, essas regras são hierarquicamente relacionadas, no sentido de que as regras de recontextualização são derivadas das regras de distribuição, e as regras de avaliação são derivadas das regras de recontextualização. Há uma inter-relação necessária entre essas regras e há também relações de poder entre elas. Direi muito brevemente o que são essas três regras. Em primeiro lugar, a função das regras de distribuição é a de regular as relações entre poder, grupos sociais, formas de consciência e prática. As regras de distribuição especializam as formas de conhecimento, as formas de consciência e as formas de prática para grupos sociais. As regras de distribuição distribuem formas de consciência através da distribuição de diferentes formas de conhecimento. Em segundo lugar, as regras de recontextualização regulam a formação do discurso pedagógico específico. Em terceiro lugar, as regras de avaliação constituem qualquer prática pedagógica. Qualquer prática pedagógica específica está lá para um propósito: para transmitir critérios. A prática pedagógica é, de fato, o nível que produz uma régua para a consciência. Vou examinar estas três regras passo a passo. Regras de distribuição As regras de distribuição distinguem entre duas classes diferentes de conhecimento que vou argumentar que estão necessariamente disponíveis em todas as sociedades. Eu acredito que essas duas classes de conhecimento são intrínsecas à própria linguagem; é a própria natureza da linguagem que faz com que essas duas classes de conhecimento sejam possíveis. Vou chama-las de classe pensável e classe impensável. Assim, em todas as sociedades existem pelo menos duas classes básicas de conhecimento; uma classe de conhecimento que é esotérico e outra que é mundano. Temos o conhecimento do outro e temos a alteridade do conhecimento. Temos o conhecimento de “isto é assim” (o conhecimento do possível), diante da possibilidade do impossível. A linha de separação entre essas duas classes de conhecimento é relativa a um dado período de tempo. O que é esotérico em um período pode tornar-se mundano em outro. Em outras palavras, o conteúdo dessas classes varia historicamente e culturalmente. Uma breve comparação entre pequenas sociedades não-alfabetizadas, com divisões simples de trabalho e as sociedades letradas que têm divisões complexas de trabalho ilustrará este ponto. Se olhamos para estas sociedades de pequena escala com divisões simples de trabalho, há uma divisão entre o pensável e o impensável. O impensável nas sociedades de pequena escala não-alfabetizadas é gerido e controlado por seus sistemas, organizações, agentes, práticas religiosas e pelas cosmologias a que elas dão origem. Na sociedade moderna de hoje (esta é realmente uma simplificação muito brutal que vou desenvolver mais tarde), o controle do impensável reside essencialmente, mas não totalmente, nos níveis superiores do sistema educacional. Isso não significa que o controle do impensável não pode ocorrer fora do sistema educacional, mas sim que a maior parte do controle e gerenciamento do impensável é realizado pelos órgãos superiores de educação. Por outro lado, o pensável nas sociedades complexas modernas



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é gerido pelos sistemas de ensino primário e secundário. Esta é, contudo, uma simplificação muito grosseira e muito crua. Quero sugerir que há uma profunda semelhança entre as sociedades simples e as sociedades complexas. Isto não implica as mesmas comparações paternalistas que algumas pessoas sugerem ao dizer que as sociedades “simples” têm sistemas de conhecimento complexos e procedimentos de navegação, apesar do fato de serem simples e não-alfabetizados. Mas quero sugerir que há uma semelhança fundamental na estruturação do significado tanto nas sociedades “simples” como nas sociedades muito complexas. Esta semelhança refere-se a uma ordem particular de significados. No entanto, esta ordem particular de significados não deve ser considerada apenas como abstrata. É certo que ela é abstrata, mas é inadequado aqui falar em abstrato como oposto a concreto. Todos os significados são abstratos; não é o fato da abstração, mas a forma que a abstração assume. Vou sugerir que a forma que abstração assume e que une as sociedades simples e complexas, é uma forma de abstração que postula e relaciona dois mundos. Ela relaciona o mundo material e o mundo imaterial, ela relaciona um mundo cotidiano mundano a um mundo transcendente. Esta é uma especialização muito interessante do significado, que cria dois mundos e os relaciona, por exemplo, a religião. Quando olhamos mais de perto para esta ordem de significado, a forma que esses significados tomam deve ser uma forma com uma relação indireta entre os significados e uma base material específica. E a razão para isso é muito clara: se os significados têm uma relação direta com uma base material, esses significados são totalmente consumidos pelo contexto. Esses significados são tão incorporados no contexto que eles não têm referência fora desse contexto. Esses significados não são apenas dependentes do contexto, eles são necessariamente limitados ao contexto; e os significados que são limitados ao contexto não podem se unir a qualquer coisa diferente de si mesmos. Eles não têm o poder de relação fora de um contexto, porque eles são totalmente consumidos por esse contexto. Neste sentido, os significados que criam e unem dois mundos devem ser sempre significados onde há uma relação indireta entre esses significados e uma base material específica: há uma divisão social específica de trabalho e um conjunto específico de relações sociais dentro dessa divisão da trabalho. Se estes significados têm uma relação indireta a uma base material específica, os significados-se criam uma brecha (gap) ou um espaço. Se os significados são consumidos pelo contexto e totalmente incorporados no contexto, não há espaço. Mas se esses significados têm uma relação indireta a uma base material específica, porque eles são indiretos, deve haver uma brecha. Intrínseco a estes significados é o potencial de uma brecha, (um espaço), que eu vou chamar uma brecha discursiva potencial (potential discursive gap) Não se trata de um deslocamento do significado, trata-se de uma brecha. O que está em potencia aqui? Quero sugerir que esta lacuna ou espaço pode tornar-se (nem sempre) um lugar para possibilidades alternativas, para realizações alternativas da relação entre o material e o imaterial. A própria brecha pode mudar a relação entre o material e o imaterial. Esta lacuna potencial ou espaço, vou sugerir, é o local para o impensável, o lugar do impossível, e este lugar pode ser claramente benéfico e perigoso ao mesmo tempo. Esta lacuna é o ponto de encontro da ordem e da desordem, da coerência e da incoerência. É o lugar crucial do ainda não pensado. Qualquer distribuição do poder tentará regular a realização desse potencial. Vou sugerir que parte da razão pela qual as regras deste dispositivo são estáveis é que esta brecha será sempre regulada. Os modos de regulação serão diferentes, mas a brecha será sempre regulada. Qualquer distribuição de poder irá regular o potencial dessa lacuna no seu próprio interesse, porque a própria lacuna tem a possibilidade de uma ordem alternativa, uma sociedade alternativa e uma relação de poder alternativa.



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Para as sociedades “simples”, é claro, esta regulação é afetada pelo sistema religioso e cosmologias aos quais ela dá acesso e controle. Historicamente, no período medieval, esta lacuna foi regulamentada por sistemas religiosos na primeira institucionalização do conhecimento. Uma vez que há um sistema de significados, que tem esse potencial de criar relações entre dois mundos, a brecha pode produzir diferentes relações entre esses mundos. Isto é um paradoxo. As regras de distribuição tentam regular aqueles que têm acesso a este lugar e desta forma controlam possibilidades alternativas, mas, paradoxalmente, o dispositivo não pode fazer isso de forma eficaz. O controle sobre o acesso ao lugar é feito por uma seleção dos agentes que foram anteriormente legitimamente pedagogizados. Mas em tal processo as contradições e os dilemas raramente são totalmente suprimidos. Além disso, o próprio processo pedagógico revela a possibilidade da brecha e molda a forma da sua realização. Assim, o controle ou a tentativa de controlar as realizações do fosso, deve necessariamente revelar os modos que fazem as ligações entre os dois mundos. As relações de poder, que são transmitidas pelas regras de distribuição, ficam então necessariamente sujeitas a alterações. As relações de poder distribuem o impensável e o pensável, e diferenciam e estratificam grupos gerados pelas regras de distribuição (ver Figura 2.2). Pode ver-se que as regras distributivas se traduzem sociologicamente no campo da produção do discurso. Sociologicamente falando, as regras distributivas criam um campo especializado de produção do discurso com regras de acesso especializadas e controles de acesso especializado. Este campo é controlado mais e mais hoje pelo próprio estado. Podemos agora ir adiante, das regras para as estruturas ou campos.

Figura 2.2.



Regras de recontextualização: o discurso pedagógico Dissemos que as regras de recontextualização constituem discursos pedagógicos específicos. As regras distributivas marcam e distribuem aqueles que podem transmitir o quê para quem e sob quais condições, e elas tentam colocar os limites exteriores do discurso legítimo. O próprio discurso pedagógico está baseado em regras que criam comunicações especializadas mediante as quais os sujeitos pedagógicos são selecionados e criados. Em outras palavras, o discurso pedagógico seleciona e cria sujeitos pedagógicos através de seus contextos e conteúdos. O que é o discurso pedagógico? Vou primeiro descrevê-lo para depois tentar explicar como ele surge. Inicialmente vou definir o discurso pedagógico como uma regra que engloba e combina dois discursos: um discurso técnico sobre habilidades de vários tipos e de suas relações umas com as outras, e um discurso de ordem social. O discurso pedagógico inclui regras que criam habilidades de um tipo ou de outro e regras que regulam a relação de umas com as outras, e regras que criam uma ordem social.



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Chamaremos o discurso que cria habilidades especializadas e suas relações de discurso instrucional, e o discurso moral que cria ordem, relações e identidade de discurso regulador. Podemos escrever isso da seguinte forma: Discurso Instrucional DI _________________________ ____ Discurso Regulador DR Isso mostra que o discurso instrucional é incorporado no discurso regulador, e que o discurso regulador é o discurso dominante. O discurso pedagógico é a regra que leva à incorporação de um discurso em outro, para criar um texto, para criar um discurso. Muitas vezes as pessoas nas escolas e nas salas de aula fazem uma distinção entre o que elas chamam de “transmissão de competências” e “transmissão de valores”. Elas são sempre mantidas separadas, como se houvesse uma conspiração para disfarçar o fato de que há apenas um discurso. Na minha opinião, há apenas um discurso, não dois, porque a voz secreta deste dispositivo tem que disfarçar o fato de que há apenas um. A maioria dos pesquisadores estão continuamente estudando os dois, ou pensando como se houvesse dois: como se a educação fosse sobre valores, por um lado, e sobre competência, por outro. Na minha opinião não há dois discursos, há apenas um. De um certo ponto de vista, o discurso pedagógico parece ser um discurso sem discurso. Parece que não ele não tem um discurso próprio. O discurso pedagógico não é física, química ou psicologia. Seja o que for, ele não pode ser identificado com os discursos que ele transmite. Então, qual é a natureza e o princípio desse discurso? Para começar, vou sugerir que o discurso pedagógico é um princípio, não um discurso. É o princípio pelo qual os outros discursos são apropriados e levados a um relacionamento especial uns com os outros, com a finalidade de sua transmissão seletiva e aquisição. O discurso pedagógico é um princípio para a circulação e o reordenamento dos discursos. Neste sentido, não é tanto um discurso quanto um princípio. Veremos mais tarde que este princípio não dá origem a um discurso especializado. Nesta fase, no entanto, ele é visto apenas como um princípio para deslocar um discurso, para realocá-lo, para refocalizá-lo, de acordo com seu próprio princípio. Agora, neste processo de deslocamento de um discurso (manual, mental, expressivo), isto é, de tomar um discurso de seu local original de eficácia e movê-lo para um lugar pedagógico, cria-se uma lacuna ou melhor, um espaço. Na medida em que o discurso se move de seu local original para o seu novo posicionamento como discurso pedagógico, ocorre uma transformação. A transformação ocorre porque cada vez que um discurso se move de uma posição para outra, há um espaço que a ideologia pode ocupar. Nenhum discurso se move sem que a ideologia em jogo. Na medida em que esse discurso se move, ele é ideologicamente transformado; não é mais o mesmo discurso. Vou sugerir que, na medida em que esse discurso se move, ele é transformado, de um discurso real, de um discurso sem mediação, em um discurso imaginário. Na medida em que o discurso pedagógico se apropria de vários discursos, discursos não mediados são transformados em discursos mediados, discursos virtuais ou imaginários. Deste ponto de vista, o discurso pedagógico cria seletivamente sujeitos imaginários. Antes de definir o discurso pedagógico mais especificamente, vou dar um exemplo. Quando eu estava na escola, passei três anos em uma sala grande, com bancos de madeira e com bancos laterais com serras, martelos e cinzéis. Depois de três anos, eu tinha uma pilha de lascas de madeira tão alta quanto o próprio banco. Mas o que eu estava fazendo? Bem, o que eu estava fazendo era isto: do lado de fora da pedagogia havia carpintaria, mas dentro da pedagogia havia trabalho em madeira. Em outras palavras, aqui havia uma transformação de um discurso verdadeiro chamado de

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“carpintaria” em um discurso imaginário chamado “trabalho com madeira”. Este é apenas um exemplo deste movimento, da mesma forma que a física na escola é uma física imaginária, que discutirei mais adiante. Quero afinar o conceito do princípio que constitui o discurso pedagógico, sugerindo, formalmente, que o discurso pedagógico é um princípio de recontextualização. O discurso pedagógico é elaborado por meio de um principio de recontextualização que seletivamente apropria-se, relocaliza, refocaliza e relaciona outros discursos para constituir a sua própria ordem. Neste sentido, o discurso pedagógico não pode ser identificado com qualquer um dos discursos que ele recontextualiza. Podemos agora dizer que o discurso pedagógico é gerado por um discurso de recontextualização, da mesma forma que dissemos que as regras distributivas traduzem, em termos sociológicos, campos de produção de conhecimento com as suas próprias regras de acesso. O princípio de recontextualização cria campos de recontextualização, cria agentes com funções de recontextualização. As funções de recontextualização, em seguida, tornam-se o meio pelo qual um discurso pedagógico específico é criado. Formalmente, passamos de um princípio de recontextualização a um campo de recontextualização com agentes com ideologias em prática. O campo da recontextualização tem uma função crucial na criação da autonomia fundamental da educação. Podemos distinguir entre um campo de recontextualização oficial (CRO) criado e dominado pelo Estado e seus agentes e ministérios selecionados, e um campo pedagógico de recontextualização (CPR). Este último é composto por pedagogos nas escolas e faculdades e departamentos de educação, revistas especializadas, fundações de pesquisa privadas. Se a CPR pode ter um efeito sobre o discurso pedagógico independentemente do CRO, então há tanto uma certa autonomia e luta sobre o discurso pedagógico e suas práticas. Mas se há apenas o CRO, então não há nenhuma autonomia. Hoje, o estado está tentando enfraquecer o CPR através do seu CRO, e assim, tenta reduzir a autonomia relativa sobre a construção do discurso pedagógico e sobre os seus contextos sociais (ver capítulo posterior).

O domínio do Discurso Regulador É fundamental no meu argumento que o discurso regulador é o discurso dominante. Em certo sentido, isso é óbvio, porque é o discurso moral que cria os critérios que dão origem ao caráter, forma, conduta, postura, etc. Na escola, é ele que diz às crianças o que fazer, onde elas podem ir, e assim por diante. É bastante claro que o discurso regulador cria as regras de ordem social. No entanto, eu também quero argumentar que o discurso regulador produz a ordem no discurso instrucional. Não há discurso instrucional que não seja regulado pelo discurso regulador. Se isto é assim, toda a ordem no interior do discurso pedagógico é constituída pelo discurso regulador. Se tomamos a física como um exemplo, vamos distinguir entre a física como atividades no campo da produção de um discurso e a física como um discurso pedagógico. É bastante possível ver as atividades dos físicos no campo no qual a física é produzida, e às vezes é difícil de acreditar que o que todo mundo faz é física. Este não é o caso com a física como um discurso pedagógico. Um livro didático diz o que a física é, e é óbvio que ele tem um autor. O ponto interessante, no entanto, é que os autores de livros didáticos de física raramente são físicos que estão praticando no campo da produção da física; eles estão trabalhando no campo da recontextualização. (Nota 2) Na medida em que a física é apropriada pelos agentes de recontextualização, os resultados não podem ser formalmente derivados da lógica daquele discurso. Independentemente da lógica intrínseca que constitui o discurso especializado e as atividades chamadas de física, os agentes da recontextualização vão selecionar a partir

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da totalidade de práticas daquilo que é chamado de física no campo da produção da física. Há uma seleção. Há uma seleção na forma como a física deve ser relacionada a outros assuntos, e em seu sequenciamento e ritmo (ritmo é a taxa de aquisição esperada). Mas essas seções não podem ser derivadas a partir da lógica do discurso da física ou das suas diversas atividades no campo da produção do discurso. Independentemente de saber se existe uma lógica intrínseca à física, as regras para a sua transmissão são fatos sociais. E se elas são fatos sociais, existem princípios de seleção. Estes serão ativados por um componente do discurso regulador. Ou seja, as regras de ordem da física na escola (seleção, relação, sequência e ritmo) são uma função do discurso regulador. Portanto, eu sustento que o discurso regulador oferece as regras da ordem interna do próprio discurso instrucional. Se este argumento é bom, mais pode ser derivado da noção que temos um discurso e que o discurso regulador é dominante. Finalmente, o principio recontextualizador não apenas recontextualiza o o quê do discurso pedagógico, qual discurso vai se tornar objeto e conteúdo da prática pedagógica. Ele também recontextualiza o como; isto é a teoria da instrução. Isto é crucial, porque a seleção da teoria da instrução não é inteiramente instrumental. A teoria da instrução também pertence ao discurso regulador e contém em si um modelo do aprendiz e do professor e da relação. O modelo do aprendiz nunca é inteiramente utilitário; ele contém elementos ideológicos. O principio recontextualizador não apenas seleciona o quê mas também o como da teoria da instrução. Ambos são elementos do discurso regulador. Regras de avaliação Descrevemos o discurso pedagógico como discurso instrucional inserido no discurso regulativo. Nosso próximo problema consiste em transformar esse discurso em uma prática pedagógica. Farei isso por meio de uma série de transformações, começando no nível mais abstrato e depois indo, passo a passo, até o nível da própria sala de aula. No nível mais abstrato, o discurso pedagógico especializa o tempo, um texto e um espaço, colocando-os em uma relação especial um com o outro (veja a Figura 2.3). Portanto, o discurso pedagógico especializa significados no tempo e no espaço. Esse discurso pode elaborar relações categoriais muito fundamentais com implicações para os mais profundos níveis culturais. Tudo a partir deste nível terá uma consequência cognitiva e cultural. Este nível de especialização de tempo, texto e espaço nos marca cognitivamente, social e culturalmente.

Qualquer discurso pedagógico pontuará o tempo, ele vai deslocar o tempo. Às vezes ele irá deslocá-lo em apenas dois períodos. Às vezes ele vai produzir uma pontuação muito precisa, desde a pré-cópula até a pós-ressurreição. O tempo

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transforma-se em idade. Cada discurso pedagógico irá produzir uma pontuação no tempo de modo que teremos fases etárias que são inteiramente imaginárias e arbitrárias. O texto é transformado em um conteúdo específico, e o espaço será transformado em um contexto específico. É importante, deste ponto de vista, entender que por trás desse verdadeiro nível mais evidente fica o primeiro nível abstrato.







Finalmente podemos transformar a idade, o conteúdo, o contexto, ao nível das relações sociais da prática pedagógica e as características cruciais da comunicação. A idade é transformado em aquisição. O conteúdo é transformado em avaliação. O contexto é transformado em transmissão. Assim:

Podemos ver que a chave para a prática pedagógica é a avaliação contínua. Se colocamos as relações horizontais e verticais em conjunto, obtemos a prática pedagógica (veja a Figura 2.3). É disso que trata o dispositivo. A avaliação condensa o significado de todo o dispositivo. Estamos agora numa posição onde podemos derivar toda a finalidade do dispositivo. A finalidade do dispositivo consiste em proporcionar uma régua simbólica para consciência. Daí podemos ver as origens religiosas do dispositivo: a religião foi o sistema fundamental tanto para criar e para controlar o impensável, o princípio fundamental para relacionar dois mundos diferentes, o mundano e o transcendente. Eu acho que podemos ver as origens do aparelho pedagógico nesta última fase da análise.







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Figura 2.3. De um ponto de vista estrutural podemos extrair a homologia entre o campo religioso e o campo educacional. Inspirados em Max Weber, podemos ver um paralelo entre as posições no campo religioso e no campo pedagógico. CAMPO RELIGIOSO CAMPO PEDAGÓGICO Profeta Produtor Padre Reprodutor Laico Adquirente O campo religioso é constituído por três posições que estão em várias relações de complementaridade e oposição. No campo religioso, temos os profetas, os sacerdotes, e os leigos. A regra é que só se pode ocupar uma categoria de cada vez. Os sacerdotes não podem ser profetas, e os profetas não podem ser sacerdotes e os leigos não podem ser nenhum dos anteriores. Existe uma afinidade natural entre os profetas e os leigos, e há uma oposição natural entre profetas e sacerdotes. Estas são as linhas de oposição que estruturam o campo religioso. Se olhamos para a estrutura do campo pedagógico, também temos basicamente três posições que proporcionam análogos aos profetas, sacerdotes e leigos. Os “profetas” são os produtores do conhecimento, (Nota 3) os “sacerdotes” são os recontextualizadores ou reprodutores, e os “leigos” são os adquirentes. Assim, temos a estrutura do campo pedagógico. CONCLUSÃO No modelo mostrado na Figura 2.4 tentei esquematizar a relação entre as regras formais do dispositivo e a estrutura sociológica, práticas e processos a que elas dão origem. O dispositivo pedagógico funciona como um regulador simbólico da consciência; a questão é, regulador de quem, de qual consciência e para quem? É uma condição para a produção, reprodução e transformação da cultura. No entanto, o dispositivo não é determinante nas suas consequências. A eficácia do dispositivo é limitada por duas características diferentes.

FIGURA 2.4. O Dispositivo e suas estruturas





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1. Interna: Não é determinística por uma razão que é intrínseca ao dispositivo: eu já mencionei isso antes. Embora o dispositivo esteja lá para controlar o impensável, no processo de controlar o impensável ele torna disponível a possibilidade do impensável. Portanto, é interno no dispositivo o seu próprio paradoxo: ele não pode controlar o que foi configurado para controlar. 2. Externa: A razão externa pela qual o dispositivo não é determinista é porque a distribuição de poder que fala através do dispositivo cria lugares potenciais de desafio e oposição. O dispositivo cria em suas realizações uma arena de luta entre diferentes grupos para a apropriação do dispositivo, porque quem se apropria do dispositivo tem o poder de regular a consciência. Quem se apropria do dispositivo, se apropria de um lugar crucial para o controle simbólico. O próprio dispositivo cria uma arena de luta para aqueles que querem se apropriar dele. Tentei expor a gramática intrínseca do dispositivo e expor o que poderia ser chamado de a voz oculta do discurso pedagógico. Sugeri que a gramática do dispositivo regula o que ele processa; uma gramática cuja realização codifica ordem e posição e ainda contem o potencial de sua própria transformação. NOTAS 1. A distinção entre o “real” e o “imaginário” é uma distinção feita para chamar a atenção para uma atividade não mediada por qualquer coisa diferente de si mesmo na sua prática e uma atividade onde a mediação é intrínseca à prática. A carpintaria-discurso, na prática da carpintaria, só é mediada por si mesma, mas o discurso pedagógico é mediado por um processo de recontextualização. Quando o discurso se move, através da recontextualização, a partir de seu local original para um lugar pedagógico, o discurso original é abstraído de sua base social, posição e relações de poder. 2. São feitas tentativas para quebrar a forte classificação entre o campo da produção do discurso e do campo da recontextualização, mas raramente há uma circulação institucionalizada entre os campos. Uma exceção notável foi a circulação de pessoal entre a universidade e o liceu na França no caso da aula de filosofia. Os recontextualizadores raramente são os produtores do conhecimento, embora existam anomalias importantes aqui. Um caso notável onde os produtores de conhecimento são recontextualizadores está geralmente nos níveis mais altos da universidade, onde o recontextualizador também pode ser o produtor do conhecimento. No entanto, com os recentes desenvolvimentos no ensino superior, o ensino e a pesquisa pode muito bem estar em diferentes instituições. 3. É importante mostrar que os textos produzidos no campo da produção de conhecimento, como os textos construídos no campo de recontextualização, são imaginários em um aspecto crucial. No caso de textos no domínio da produção do discurso, a intertextualidade do discurso é transformada em intratextualidade. Esperase que um texto neste campo seja original para ter o maior renome. Idealmente, deve ser o primeiro texto de seu tipo e ser o produto de uma única mente ou uma única mente dominante ou um grupo de mentes (como na ciência). Este texto esforça-se para proclamar a sua singularidade e pode conter estratégias que mascaram, borram ou de posicionam de forma diferente seus antecedentes. Desta forma a intertextualidade é transformada em intratextualidade no processo de construção da autoria única.



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