Pedagogia, controle simbólico e identidade. Capítulo 5 - Reflexões sobre o Trivium e o Quadrivium: o divórcio do conhecimento em relação ao conhecedor - Basil Bernstein

May 29, 2017 | Autor: Ronai Rocha | Categoria: Identity, Trivium, Pedagogia, Quadrivium, Teoria Curricular
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Pedagogia, Controle Simbólico e Identidade. Teoria, Pesquisa, Crítica - Basil Bernstein Capítulo 5 - Reflexões sobre o Trivium e o Quadrivium: o divórcio do Conhecimento em relação ao Conhecedor •

Receio que este não será um artigo no sentido usual da expressão. Não vou fazer aqui uma apresentação sistemática ou a exposição de uma tese particular, nem um relato de pesquisa, tampouco uma visão geral de uma seção relevante do campo intelectual. Pensei em aproveitar esta oportunidade para explorar algumas ideias que surgiram a partir de alguns trabalhos recentes sobre a natureza do discurso pedagógico. Eu não estou inteiramente seguro de que conseguirei apresentar essas ideias, essas intuições, na forma ordenada com que estamos acostumados. Não digo isso como uma estratégia acadêmica de defesa, mas como uma avaliação precisa do meu estado atual de conhecimento. Você pode perguntar, bem, por que você não guarda isso consigo até que a história esteja pronta? Quem quer ouvir um roteiro onde o enredo não está trabalhado e metade dos personagens está faltando? A única resposta que posso dar é que às vezes um roeiro precisa de um pouco de ajuda e, talvez, que é o que vai acontecer aqui, que ele tenha de ser abandonado. O problema começou há muitos anos atrás, quando eu li a magnífica análise da evolução da educação na França, de Durkheim. Tudo começou com sua análise do discurso, da estrutura social e das relações sociais da universidade medieval. Durkheim estava preocupado em mostrar como o discurso da universidade medieval continha em si uma tensão, mesmo uma contradição, o que proporcionou a dinâmica do desenvolvimento da universidade. Ele viu esta tensão ou contradição como uma representação dos dois discursos sobre os quais a universidade medieval foi fundada, o do cristianismo e o do pensamento grego. Estes dois discursos, ele argumentou, produziram a tensão entre fé e razão, que ele viu como proporcionadora da dinâmica do desenvolvimento da universidade. Durkheim também estava interessado na origem da natureza abstrata do conhecimento e isso não deve ter sido um problema para ele. Afinal, se você recontextualiza o pensamento grego, você deve ter um discurso abstrato, idealizado, essencialista. Certamente Durkheim foi claro sobre a relação, sobre a harmonia entre o cristianismo e as formas selecionadas do pensamento grego. No entanto, ele disse outra coisa que me fez pensar. Para muitos de vocês isso será óbvio. Durkheim disse que o Deus cristão era um deus sobre o qual você tinha que pensar. Ele era um deus que não só era ser amado, mas também para ser pensado. E esta atitude criou uma modalidade abstrata para o discurso. Eu não estou preocupado se Durkheim está certo nisso. Eu acho (a propósito) que ele está certo mas não pelas razões certas. Eu acho que ele está certo, mas sua análise não é suficientemente fundamental. Como muitos problemas abstratos este começou com algo que não parece à primeira vista ser um problema real, •

Esta tradução de capítulos de Pedagogy, Symbolic Control and Identity. Theory, Research, Critique. (Revised

Edition. Rowman & Littlefield Publishers. London, 2000), foi feita com apoio do programa CAPES-PIBID e destina-se apenas a usos não-comerciais, em grupos de estudo e aulas. (Ronai Rocha)



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no fim das contas. O problema começou com o primeiro deslocamento no conhecimento oficial europeu, com a primeira classificação, a primeira, em termos de Foucault, falha arqueológica na continuidade do conhecimento oficial. Um deslocamento que teve consequências profundas para a cultura, uma especialização de dois discursos em diferentes períodos de tempo, a primeira progressão ou sequenciamento do conhecimento oficial. É claro que estou aqui me referindo à especialização, ao agrupamento de conhecimento chamado de Trivium e à especialização diferente do conhecimento chamada de Quadrivium. O Trivium consistia em gramática, lógica e retórica e o Quadrivium consistia em aritmética, astronomia, geometria e música. Durkheim oferece um relato muito interessante sobre como a ênfase nos elementos do Trivium mudou com o desenvolvimento de uma nova burguesia na Renascença. Mas esta não é a nossa preocupação aqui. Durkheim argumentou que esta classificação, deslocamento, limite, representou uma ruptura entre o Trivium como a exploração da palavra e do Quadrivium como a exploração do mundo; a palavra e o mundo eram mantidas em conjunto pela unidade do cristianismo. Claro que isso não é inteiramente correto. Não é tanto a Palavra, mas os meios de compreender os princípios por trás da palavra e sua realização. Da mesma forma, não é o Mundo, mas os princípios de compreensão do mundo material. Era também o caso que o Trivium era estudado em primeiro lugar e depois o Quadrivium. A Palavra antes do mundo, em termos de Durkheim. Minha versão será mais forte, nenhum mundo antes da palavra. Pareceu-me que Durkheim havia formulado e conceituado o problema, mas que não tinha explicado. Por que o Trivium em primeiro lugar, qual foi a modalidade de abstração que o cristianismo deu ao discurso oficial? E foi por aí que comecei. Por que o Trivium em primeiro lugar? Pode-se argumentar que o Trivium foi o primeiro por razões pedagógicas ou materiais; por exemplo, você deve primeiro saber como pensar antes de aplicar o pensamento. Foi também interessante que, na celebração anual os professores do Quadrivium lideravam o desfile da universidade e os professores do Trivium vinham por último. Seria uma materialização metafórica do ditado que os últimos serão os primeiros. No entanto, também era o caso que o Trivium dominava a universidade. Os professores do Trivium tinham o poder. Agora, sobre a orientação abstrata do conhecimento, é o suficiente dizer: se você ensina os gregos você ensina abstração - você ensina que a palavra está vazia e não é senão um ponteiro para um conceito? Não tenho certeza se alguma dessas explicações é adequada, e também não tenho certeza se o que eu vou oferecer também é totalmente adequado. Vou começar onde Durkheim parou em sua discussão do Trivium/Quadrivium e levar sua análise adiante. Vou propor que há um outro nível inferior ao da palavra e do mundo. Vou propor que o Trivium não é simplesmente sobre a compreensão da palavra, dos princípios que lhe estão subjacentes, da mecânica da linguagem e do raciocínio, mas que ele está ligado com a constituição de uma forma particular de consciência, de uma modalidade distinta do eu, para definir limites para essa forma de consciência, para regular a modalidade do self. Para constituir o self na Palavra, sim, mas a Palavra de Deus. Um deus particular. O Deus Cristão. Em outras palavras, o Trivium está lá para criar uma forma particular do exterior (o mundo). O deslocamento entre o Trivium e o Quadrivium, então, é um deslocamento entre interior e exterior. Um deslocamento como uma condição prévia para uma nova síntese criativa entre o interior e o exterior gerado pelo cristianismo. Talvez mais do que isso. O Trivium vem em primeiro lugar, porque a construção do interior, um interior válido, o verdadeiro interior, é uma condição necessária para que a compreensão do mundo também seja válida, também seja verdadeira, também seja aceitável, também seja legítima em termos do discurso do cristianismo. A sacralidade do mundo é garantida ou deveria ser garantida pela construção adequada do interior, de um self verdadeiramente cristão. Assim, enquanto a forma aparente do discurso é grega, a mensagem é cristã. Mais do que isso, a gramática profunda do Trivium, Quadrivium, ou seja, suas características paradigmáticas e sintagmáticas, é uma metáfora do novo deslocamento entre interior e exterior que o

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próprio cristianismo introduziu e resolveu. Vou argumentar que é esta nova relação mediada entre interior e exterior que é a origem da necessária orientação abstrata do cristianismo, um cristianismo que se apropriou do pensamento grego para a sua própria mensagem. É possível ilustrar tanto esta orientação abstrata e o deslocamento anterior do interior e do exterior, tão essenciais para a formação do self cristão, através da análise do processo de conversão. Nos estágios iniciais do desenvolvimento e da difusão da fé, a conversão não exige uma mudança de nacionalidade. Ela não exigia uma mudança de cultura. Ela não exigia nem mesmo uma mudança de prática. Ela exigia uma revolução da interioridade, um giro para o reconhecimento de Cristo, do significado de Cristo. Note-se aqui que o cristianismo toma um ponto fora da cultura e da prática daqueles a serem convertidos como base para esta conversão e, em seguida, coloniza a partir de dentro. O cristianismo coloca uma cunha entre a prática interior e exterior. Ele cria uma brecha que se torna o local para uma nova consciência. Pensar e sentir fora de sua cultura e prática é intrinsecamente uma orientação abstrata. Claramente, no entanto, o novo sentimento e pensamento estará confinado nos termos da nova modalidade. Assim, o deslocamento do interior e do exterior, para abrir um novo eu existencial, é intrínseco ao cristianismo. Não é grego. Há deslocamentos no pensamento grego, questões de justiça distributiva entre indivíduo/sociedade, a palavra e o conceito, a forma ideal e a representação particular, mas eu não incluiria a reflexão sobre o eu deslocado e sua nova síntese. Para realçar ainda mais estas proposições experimentais, quero fazer algumas comparações entre o judaísmo e o cristianismo que vão me trazer mais para perto do título desta palestra. Eu diria que a característica fundamental do judaísmo é menos do que ser uma fé monoteísta e mais que o Deus é invisível. O Deus somente pode ser ouvido. O Deus judaico, ao contrário do cristão, é temporal e não visual. Se o Deus judaico é invisível, então a distância entre Deus e as pessoas é máxima. Não há nenhuma maneira pela qual as pessoas possam tornar-se Deus, e Deus tornar-se humano. A distância é intransponível por ambos. Como as pessoas se relacionam com este Deus invisível? Como o intransponível é transposto? Através da relação a um atributo de Deus. A santidade. E como é que a santidade deste Deus torna-se material, torna-se palpável? A santidade se torna material, torna-se palpável através dos ciclos diários de oração, do ritual e por meio das classificações da lei. A santidade é realizada na oração, no ritual e nas classificações que estabelecem a natureza fundamental do vínculo social entre os homens, as mulheres e a comunidade. A santidade, o atributo do Deus invisível, estabelece a unidade de Deus e das pessoas através da natureza do vínculo social. Não há deslocamento do interior e do exterior no judaísmo. Isso não significa dizer que o judaísmo não fala com o interior – os Salmos são testemunho suficiente aqui - somente que não há deslocamento do self. Em vez disso, há a comunidade completa e perfeita estabelecida pela oração, ritual e classificação. A comunidade perfeita é a realização final do Deus judaico. Vamos um pouco mais adiante neste assunto antes de comparar o discurso do judaísmo e do cristianismo. Uma consequência do Deus Judaico Invisível é que não há exemplares do mesmo. Você não pode ter um exemplar de algo que é invisível. O Judaísmo, ao contrário do Cristianismo, é uma religião não-exemplar. O Deus judaico não quer mediação através de figuras exemplares. É uma religião não mediada, há apenas dois termos: Deus e Homem, enquanto que o Cristianismo, mais tarde, fornece uma metáfora de três. Se consideramos o Antigo Testamento, vemos que as narrativas das principais figuras, Moisés, Davi, Salomão, os grandes profetas Elias, Eliseu parecem ser baseado em uma regra - tudo deve ser mostrado como falível. Todas as grandes figuras das grandes narrativas cometem grandes erros de julgamento e prática. A regra de que tudo deve ser mostrado como falível é o outro lado da regra, “Não haverá exemplares”. Essa regra enfatiza, declara, só há uma perfeição, aquela do Deus invisível.



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No entanto, há uma implicação aqui - Deus é absoluto – o Homem é relativo, nenhum homem tem a verdade – Deus é o principio de todas as coisas. Quero agora brevemente olhar para o Judaísmo como discurso. No Judaísmo temos uma religião não-exemplar, mas com um texto incompleto. Isto requer alguma explicação. Existe a lei escrita, a Torá, que é não só um modelo do universo, mas é um guia para os detalhes mais mundanos e menores da vida, no qual cada detalhe se conecta com o todo. O particular carrega a santidade do todo. Por meio de interpretação, aplicação e significação adequada, qualquer contingência pode ser revelada. Assim, a lei escrita está sujeita a interpretações sem fim, interpretações que proíbem a generalização, que procede de um particular para outro. Para a generalização, o princípio santo está vivo em cada particular. Assim, no judaísmo, uma religião nãoexemplar com um texto incompleto, a interpretação ocorre através da elaboração contínua de dados e a generalização é abominada. Tal elaboração só é possível por causa da certeza da fé. Assim, no judaísmo, temos uma religião não-exemplar, um texto incompleto, mas uma sociedade perfeita, aperfeiçoada pela Torá. O Cristianismo, por outro lado, é uma religião exemplar, na qual o texto está completo e perfeito em Jesus, onde a generalização e a metáfora abrangem o abstrato. No entanto, também é uma fé que não pode ser considerada um dado adquirido; ela deve ser constantemente reconquistada, revitalizada, renovada. Assim, o eu cristão, ao contrário do eu judaico seguro em sua certeza, está sujeito à duvida, ao questionamento, ao interrogatório. Neste sentido o cristianismo cria uma modalidade especial de linguagem, um modo interrogativo que separa o eu de seus atos, a intenção da prática. Ao mesmo tempo a própria linguagem pode tanto revelar e enganar. O próprio meio de comunicação pode levar a revelação ou o engano. Não é de admirar que a linguagem, a comunicação, seja tão central para o cristianismo pois ela forma a relação autêntica e os seus meios de questionamento, e, assim, o verdadeiro eu na fé. Podemos agora finalmente retornar ao deslocamento Trivium/Quadrivium e às intuições de Durkheim. Tentei mostrar que a orientação abstrata e o deslocamento dos dois discursos fundamentais da universidade medieval têm suas raízes no Cristianismo, no deslocamento original do eu que o cristianismo engendrou como a condição principal para a suas próprias boas novas, a nova de Cristo. Sugeri que esse deslocamento do interior e do exterior, a condição para o estabelecimento do eu verdadeiramente cristão, não é um deslocamento que pode ser encontrado no pensamento grego. Mas o pensamento grego foi seletivamente apropriado pelo cristianismo e levado adiante de modo a tornar seguro o pensamento grego. Nisso ele não teve êxito. Finalmente, agora quero fazer uma rápida passagem do princípio da organização do discurso no período medieval para os princípios subjacentes à organização do discurso oficial hoje. Tentei mostrar que no período medieval tivemos dois discursos especializados diferentes, um para a construção do interior, um para a construção do exterior – o mundo material. A construção do interior era a garantia para a construção do exterior. Podemos encontrar nisso a origem das profissões. Durante os próximos quinhentos anos houve uma substituição progressiva do fundamento religioso do conhecimento oficial por um princípio secular humanizador. Quero argumentar que temos, pela primeira vez, um princípio desumanizador para a organização e a orientação do conhecimento oficial. O que estamos vendo é o desenvolvimento crescente das disciplinas especializadas do Quadrivium, e as disciplinas do Trivium tornaram-se as disciplinas de controle simbólico - as ciências sociais. Em certo sentido, o Trivium foi substituído pelas ciências sociais para a gestão de sentimentos, pensamentos, relações e práticas. Agora há menos deslocamento do conhecimento. A engenharia genética e a ciência cognitiva operam entre as ciências naturais, biológicas e sociais. Qual é o princípio subjacente ao novo discurso? Hoje, por toda a Europa, liderada pelo USA e no Reino Unido, há um novo princípio orientador da mais recente transição do capitalismo. Os princípios do mercado e seus gestores são cada vez mais os gestores da política e das práticas da educação. A relevância para o mercado está se tornando o critério

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orientador chave para a seleção dos discursos, para as relações mútuas, suas formas e suas pesquisas. Este movimento tem implicações profundas da escola primária à universidade. Isto pode ser visto na ênfase sobre as competências básicas mensuráveis no nível primário, nos cursos profissionais e especializações no nível secundário, na descentralização espúria, e nos novos instrumentos de controle do Estado sobre ensino superior e pesquisa. De fundamental importância, há um novo conceito de conhecimento e de sua relação com aqueles que o criam e usam. Este novo conceito é um conceito verdadeiramente secular. O conhecimento deve fluir como dinheiro para onde quer que ele pode criar vantagem e lucro. Na verdade o conhecimento não é como dinheiro, ele é dinheiro. O conhecimento está divorciado das pessoas, de seus compromissos, de sua dedicação pessoal. Estas tornam-se impedimentos, restrições sobre o fluxo de conhecimento, e introduzem deformações no funcionamento do mercado simbólico. Movimentar o conhecimento, ou até mesmo criá-lo, não deve ser mais difícil do que em movimentar e regulamentar o dinheiro. O conhecimento, depois de quase mil anos, está divorciado da interioridade e literalmente desumanizado. Uma vez que o conhecimento está separado da interioridade, de compromissos, da dedicação pessoal, a partir da estrutura profunda do eu, então as pessoas podem ser movimentadas, substituídas umas pelas outras e excluídas do mercado. Esta orientação representa uma ruptura fundamental na relação entre o conhecedor e aquilo que é conhecido. No período medieval os dois estavam necessariamente integrados. O conhecimento era uma expressão externa de uma relação interna. A relação interna era uma garantia da legitimidade, integridade, da preciosidade e do valor do conhecimento e do estatuto especial do conhecedor como cristão. Sabemos, no entanto, como esse estatuto especial, por sua vez limitava e distorcia o conhecimento, mas este não é o ponto aqui. Hoje o princípio do mercado cria um novo deslocamento. Agora temos dois mercados independentes, um de conhecimento e outro dos potenciais criadores e usuários do conhecimento. O primeiro deslocamento entre o Trivium e Quadrivium constituiu a interioridade como uma condição prévia do saber; o segundo deslocamento, o deslocamento contemporâneo, desconectou o interior do exterior, como uma précondição para a constituição do exterior e sua prática, de acordo com os princípios de mercado da Nova Direita. Durkheim afirmou que havia uma contradição no coração da universidade medieval, entre fé e razão, e esta foi a chave para o desenvolvimento tanto do conhecimento e da universidade. Hoje, talvez o que há não é tanto uma contradição quanto uma crise, e o que está em jogo é o próprio conceito de educação.



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