\"Pedaços\" da nova guerra mundial

May 28, 2017 | Autor: Moisés Sbardelotto | Categoria: Iglesia Católica, Igreja Católica, Papa Francisco
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Religião Francisco

“Pedaços”

DA NOVA GUERRA MUNDIAL Moisés Sbardelotto *

V

ivemos em um mundo em guerra, por toda a parte. Para o papa Francisco, a situação da humanidade hoje é extremamente grave e delicada: “Estamos na Terceira Guerra Mundial, mas ‘em pedaços’”. Era ainda 2014 quando o pontífice usou essa expressão, ao retornar da sua viagem à Coreia. Com o passar do tempo, a frase não apenas adquiriu ainda mais sentido, mas também, infelizmente, encontrou inúmeras outras confir54 revista família cristã

mações concretas de que os frutos dessa “terceira guerra mundial em pedaços” envolvem sempre “realidades de martírio, de sofrimento”, segundo Francisco. Ao usar tal expressão pela primeira vez, o papa Francisco articulou-a com outras duas terríveis palavraschave para compreender o mundo contemporâneo. A primeira é crueldade. Segundo o papa, “antigamente, falava-se de uma guerra convencional. Hoje, isso não conta. Não digo

que as guerras convencionais sejam uma coisa boa… não! Mas, hoje, chega a bomba e mata o inocente com o culpado, a criança com a mulher, com a mãe... mata todos. Mas nós devemos parar e pensar um pouco no nível de crueldade a que chegamos. Isso deve nos assustar!”. A segunda palavra é tortura. “Hoje, a tortura é um dos meios, eu diria, quase comuns dos comportamentos dos serviços de inteligência, dos processos judiciais... E a tortura é

E não se pensa nas crianças famintas nos campos de refugiados, não se pensa nos deslocamentos forçados, não se pensa nas casas destruídas, não se pensa nem sequer nas tantas vidas ceifadas um pecado contra a humanidade, é um crime contra a humanidade. E, aos católicos, eu digo: torturar uma pessoa é pecado mortal, é pecado grave! Mais ainda: é um pecado contra a humanidade.” “Paz no futuro” – Para além da metáfora, a expressão “terceira guerra mundial em pedaços” encontra uma forte e dura concretude no mundo de hoje. Nas suas duas últimas mensagens Urbi et Orbi, no Natal de 2015 e na Páscoa de 2016, o papa listou diversos fatos que revelam que essa guerra não é apenas discurso: a “gravíssima situação humanitária da exausta população” da Síria; as “graves divisões e violências” na Líbia; as “atrocidades que (…) ainda

ceifam inúmeras vítimas, causam imensos sofrimentos e não poupam sequer o patrimônio histórico e cultural de povos inteiros”, como no Iraque, Iêmen, África subsaariana; os locais “atingidos por hediondos atos terroristas” e outros massacres, como o Egito, Beirute (Líbano), Paris (França), Bamaco (Mali), Túnis (Tunísia); o terrorismo, “forma de violência cega e brutal que continua derramando sangue inocente em diversas partes do mundo”, como na Bélgica, Turquia, Nigéria, Chade, Camarões, Costa do Marfim; as “tensões políticas e sociais” na África, de modo particular no Burundi, Moçambique, República Democrática do Congo, Sudão do Sul. Essa guerra pulverizada pelo globo

inteiro, segundo Francisco, traz como fruto podre as “multidões de homens e mulheres que são privados da sua dignidade humana e, como o Menino Jesus, sofrem o frio, a pobreza e a rejeição dos homens”; as “crianças-soldado, as mulheres que sofrem violência, as vítimas do tráfico de seres humanos e do narcotráfico”; as “pessoas que fogem da miséria ou da guerra, viajando em condições tantas vezes desumanas e, não raro, arriscando a vida”; os “mais vulneráveis e os que sofrem perseguição por motivos étnicos e religiosos”; além dos “grupos cada vez mais numerosos de migrantes e refugiados, entre os quais muitas crianças, que fogem da guerra, da fome, da pobreza e da injustiça social”. outubro de 2016 55

Religião Francisco O Brasil – embora “deitado eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo”, cuja bandeira, em seu “verde-louro”, anuncia a “paz no futuro” – também participa, em seu presente mais atual, dessa “terceira guerra mundial em pedaços”. De acordo com o Atlas da Violência 2016, o Brasil lidera a lista de países com a maior taxa de homicídios no mundo: uma em cada dez vítimas de violência letal reside em solo brasileiro. Essa marca recorde corresponde a 59.627 homicídios ocorridos em 2014, uma alta de 21,9% em comparação com 2003. E as principais vítimas ainda são jovens negros e com baixa escolaridade. Hora do pranto – Em outubro de 2014, no Encontro Mundial de Movimentos Populares, em Roma, Francisco ampliou o olhar sobre essa “terceira guerra mundial em pedaços”, indicando os fatores que levam à sua eclosão.“Há sistemas econômicos, que, para sobreviverem, devem fazer a guerra. Então, fabricamse e vendem-se armas, e, com isso, os balanços das economias que sacrificam o homem aos pés do ídolo do dinheiro obviamente estão a salvo. E não se pensa nas crianças famintas nos campos de refugiados, não se pensa nos deslocamentos forçados, não se pensa nas casas destruídas, não se pensa nem sequer nas tantas vidas ceifadas. Quanto sofrimento, quanta destruição, quanta dor! Hoje, queridos irmãos e irmãs, levanta-se de todas as partes da terra, em todos os povos, em cada coração e nos movimentos populares, o grito da paz: nunca mais a guerra!” “Mas por que nos acostumamos com essa realidade?”, questionou-se Francisco no mesmo encontro. A resposta: “Porque nesse sistema, o homem, a pessoa humana foi tirada do centro e substituída por outra coisa. Porque se 56 revista família cristã

“Mas por que nos acostumamos com essa realidade?(...) A resposta: ‘Porque nesse sistema, o homem, a pessoa humana foi tirada do centro e substituída por outra coisa. Porque se presta um culto idolátrico ao dinheiro. Porque se globalizou a indiferença!’” presta um culto idolátrico ao dinheiro. Porque se globalizou a indiferença! A indiferença se globalizou: ‘O que me importa o que acontece com os outros, contanto que eu defenda o que é meu?’. Porque o mundo se esqueceu de Deus, que é Pai. Tornou-se órfão, porque pôs Deus de lado”. A saída, portanto, é “voltar a pôr a dignidade humana no centro e, sobre esse pilar, construir as estruturas sociais alternativas das quais precisamos. É preciso fazer isso com coragem, mas também com inteligência. Com tenacidade, mas sem fanatismo. Com paixão, mas sem violência. E, entre todos, enfrentando os conflitos sem cair na sua cilada, buscando sempre resolver as tensões para alcançar um nível superior de unidade, de paz e de justiça. Nós, cristãos, temos algo muito bonito, um guia de ação, um programa – poderíamos dizer – revolucionário: recomendo-lhes vivamente que leiam as bem-aventuranças que estão no

capítulo 5 de São Mateus e no 6 de São Lucas, e também a passagem de São Mateus 25”. Porque, como afirmou o papa na missa pelo centenário de início da Primeira Guerra Mundial, em setembro de 2014, “Jesus está no mais pequeno dos irmãos, Ele, o Rei, o Juiz do mundo. Ele é o faminto, o sedento, o estrangeiro, o doente, o encarcerado... Quem cuida do irmão entra na alegria do Senhor. (…) Com coração de filho, de irmão, de pai, peço a todos vocês e a todos nós a conversão do coração: passar do ‘a mim, o que me importa?’ ao pranto”. Diante dos terríveis “pedaços” de uma nova guerra mundial, Francisco reconhece que “a humanidade precisa chorar; e esta é a hora do pranto”. * Moisés Sbardelotto é jornalista, mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul, e La Sapienza, em Roma. É também autor de E o Verbo se Fez Bit (Editora Santuário).

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