Pedaços do Caminho: uma antologia de passagens religiosas

June 13, 2017 | Autor: André Bueno | Categoria: Religion, Philosophy, Philosophy Of Religion, Religious Studies, Orientalism, Oriental Studies
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André

PEDAÇOS DO CAMINHO Antologia de passagens religiosas

Rio de Janeiro Verão, 2016

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André [André Bueno] Pedaços do Caminho. Rio de Janeiro, Ebook, 2016. ISBN: 978-85-65996-35-8

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Índice Introdução, 7 Antologia, 13 Mesopotâmia,15 Egito, 22 Pérsia, 29 Índia, 33 China, 43 Japão, 54 Tibete, 59 Gregos e Romanos, 69 Israel, 73 Cristianismo, 76 Islamismo, 83 Yorubá, 87 Tupi, 87 Referências, 96

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Introdução

Em chinês, a palavra Dao [Tao] 道 significa “Caminho, Via, Método”. Não é, porém, um Caminho qualquer: é O Caminho para uma visão maior e mais ampla do mundo. Na acepção dos antigos pensadores chineses do século -6, esse Dao constituía uma espécie de especulação filosófica e religiosa sobre as coisas. É dessa condição que extraio a analogia do Caminho; presente em todos os lugares e culturas, uma via percorre o pensamento humano desde o tempo que podemos rastrear, por meio de seus textos antigos. É a via do divino, do pensar metafísico, que contempla uma dimensão maior da vida, tentando explicar o papel da humanidade em meio à natureza e a potências inteligentes que, muitas vezes, estão além de sua compreensão. A construção dessa antologia se deu de modo espontâneo, percorrendo textos diversos para colher imagens do Caminho. Não há qualquer tipo de pretensão finalista aqui, mas tão apenas, de ilustrar o sentimento humano de angústia, dúvida, crença e fé em algo maior. Mas, dentro da visão imperfeita, pois que humana, a pretensão a explicar o aspecto transcendental da existência acaba sempre ficando incompleta, restrita ao ângulo da qual parte. Não necessariamente equivocada, mas sempre inacabada; pois os pedaços do Caminho vão levando ao Caminho, que cabe ao estudioso juntar. Zhuangzi explicava isso em uma de suas parábolas:

O Príncipe Mou recostou-se na mesa e suspirou. Depois ergueu os olhos para os céus e sorrindo disse - "Nunca ouviu falar do sapo na fontezinha? O sapo disse à tartaruga do Mar Oriental - "Que vida boa a minha! Pulo até a ribanceira que cerca a fonte e vou descansar no buraco de alguns tijolos. Nadando, flutuo sobre os sovacos, pondo meu queixo justamente fora d'água. Mergulhando na lama, enterro meus pés até as curvas e nenhum dos

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mariscos, caranguejos ou rãs que vejo ao meu redor, conseguem fazer o mesmo. Além disso, morar em tal charco sozinho e possuir o recanto da nascente - ser feliz como ninguém mais pode sê-lo. Por que não vem visitarme?" - Ora, antes que a tartaruga do Mar Oriental tivesse descansado no chão a perna esquerda, o joelho direito já tinha se enterrado profundamente na lama e ela o retirou depressa, recuando e pedindo desculpas. Contou depois ao sapo muita coisa sobre o mar, dizendo - "Mil li [milhas] não dariam para medir sua largura. nem mil braças darão para medir-lhe a profundidade. Nos dias do Grande Yu havia nove anos de cheia, em dez: porém isso nada acrescentava a ele. Nos dias de Tang, havia sete anos de seca, em oito; porém isso não fazia com que suas praias recuassem. Não ser atingido pelo perpassar do tempo e nem sofrer pelo aumento ou pela diminuição d'água - tal é a grande felicidade do Mar Oriental". Ante essa narração, o sapo da fonte ficou profundamente surpreso e sentiu-se muito pequeno, como alguém que se tivesse perdido.

Como simpáticos sapinhos, ainda pululamos no mesmo lago em que habitamos. Cantamos para a Lua, saudamos a chuva, abençoamos as luzes dos vaga-lumes. Mas são as tartarugas – velhas, encarquilhadas, com o rosto marcado pelo tempo, e o casco cheio de cicatrizes – que alcançaram a experiência libertadora de conhecer o mundo. Quem, pois, embarca na aventura da descoberta do Caminho? Os pedaços aqui coletados são os mais diversos, e vem desde o passado bastante remoto. No início, temos a sabedoria das civilizações mesopotâmicas, na Epopeia de Gilgamesh e no hino da criação, o Enuma Elish. Provenientes, talvez, do século -20, nascem junto com o povo da Suméria, dando origem a uma multidão de tradições do Oriente Médio. Depois, dois Hinos do Egito, e um trecho de um livro de Sabedoria [As instruções de Merikara] com destaque para o hino de Aton, do século -14. Passamos aos Persas, que no século -9 ou -8 se deslumbraram com a sabedoria de Zaratustra, o primeiro pensador a falar de livre-arbítrio.

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Os indianos nos trouxeram o Rig Veda, em algum momento do século -15, cujos hinos proporcionam suas primeiras elaborações transcendentais sobre a reencarnação. Mas é um hino sobre a criação que nos interessa nele. No seguir, a magnífica peça do Bhagavad Gita, a Canção do Senhor, no qual Krishna conversa com Arjuna sobre a Sabedoria e a vida eterna da alma. A Índia testemunhou também a vinda de Buda, no século -6, que nos fala da busca ideal do Sábio. Trazemos ainda um trecho do magnífico Milinda Panha, o famoso diálogo entre o rei grego Menandro e o sábio Budista Nagasena – um fabuloso encontro intercultural na antiguidade. Da China, As Memórias da Cultura – Liji – nos explicam o Céu como fundamento de tudo. Confúcio, do século -6, nos fala brevemente sobre forças espirituais; no texto do Wenzi, Laozi, contemporâneo de Confúcio, nos fala da importância de nos desprendermos e retornarmos a uma natureza original humana. Zhuangzi [séc. -4], um de seus continuadores, nos revela gostosamente a prática desse desprendimento. Ademais, o pensamento budista chinês preservou e difundiu o Lankavatara sutra, um texto fundador do Chan [em japonês, Zen]. Nele, vislumbramos uma detalhada explicação sobre o que é nossa mente. Ali, bem de perto, trazemos as máximas do Xintoísmo Japonês, um código de vida do Japão pré-búdico. Do mesmo país, a maravilhosa experiência do Koan, uma história curta e rápida, nos revela a rapidez sem barreiras da mente zen. E não se pode esquecer o roteiro da boa morte, o Bardo Thodol, do Budismo tibetano. Embora bastante posterior, ele está aqui, para ser lido e apreciado, posto que inserido nessa tradição. Gregos e romanos... Não se poderia deixá-los de lado. Mas essa antologia é particular. Por isso, dois trechos sobre a questão da divindade: Epicuro e Aristóteles. Sêneca, invocado, nos fala brevemente sobre a constância do Sábio; Marco Aurélio, o imperador, medita sobre o sentido da vida, e de como vivenciá-la. Seus caminhos poderiam divergir dos outros – e

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paradoxalmente, mais uma razão para estarem aqui, pois todos são pedaços do Caminho... A cultura judaica nos brinda com o belíssimo Livro da Sabedoria de Salomão – que provavelmente não foi escrito por Salomão, mas quem liga pra isso? A sabedoria está lá, e o autor, modesto, preferiu prestar tributo a um dos maiores pensadores de sua cultura. Tempos depois, Mateus – ou provavelmente, alguém em seu nome – escreveu uma das mais belas páginas da história humana, o Sermão da Montanha. Dois comentários sobre o Sermão da Montanha resumem sua apreciação universal: Um dos monges do mestre Gasan visitou a universidade em Tokyo. Quando ele retornou, ele perguntou ao mestre se ele jamais tinha lido a Bíblia Cristã. "Não," Gasan replicou, "Por favor leia algo dela para mim." O monge abriu a Bíblia no Sermão da Montanha em São Mateus, e começou a ler. Após a leitura das palavras de Cristo sobre os lírios no campo, ele parou. Mestre Gasan ficou em silêncio por muito tempo. "Sim," ele finalmente disse, "Quem quer que proferiu estas palavras é um ser iluminado. O que você leu para mim é a essência de tudo o que eu tenho estado tentando ensinar a vocês aqui." [Koan Zen] “Se se perdessem todos os livros sacros da humanidade, e só se salvasse o Sermão da Montanha, nada estaria perdido”. [Mahatma Gandhi] Embora essas duas menções possam ser apócrifas, não vi qualquer um que as negasse – a tradição de sua repetição as tornou verdades. Essa belíssima passagem é completada por aforismos do Evangelho de Tomé – esse sim, um texto ‘apócrifo’ de fato – mas que é considerado por alguns como a ‘fonte original’ dos evangelhos. Não estou preocupado com isso. A questão é que ele mantém a estrutura ‘oriental’ de máximas curtas para a reflexão, e nos apresenta trechos profundamente bonitos.

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Os deuses ficaram para trás, disse Maomé [século +7], e só há um Deus verdadeiro. A visão monoteísta não admite – no Judaísmo, Cristianismo e Islamismo – a existência de outras imagens espirituais e divindades. O Islã, pode-se dizer, conclui esse processo. Três pequenas passagens [como os Koan Zen], chamadas Hadiths, completam a apresentação do fragmento do Alcorão. Mesmo assim, muitas tradições estão vivas. Como pedaços desse pensamento transcendente, eles se espalham, se fundem, ou apenas sobrevivem. Da cultura Yorubá, um lindo fragmento, salvo por Pierre Verger, nos conta uma passagem sobre a criação pelos Orixás. Por fim, os Tupis nos contam, pela boca do inestimável antropólogo e indianista Orlando Villas Boas [+2002], a cerimônia do Kuarup. Em comparação com outras antologias por mim realizadas anteriormente, muito mais científicas e tematicamente definidas, o presente texto parece solto, desconexo, ajuntando passagens sem um fio condutor definido. Quem pensar isso está correto. Esse conjunto de textos é uma coleção, antes de tudo, de imagens do Caminho. Não tem pretensão maior do que a de divulgar esses textos, esse saberes. Leiam, apreciem, viagem nos pedaços, e contemplem sua beleza, sua singela sabedoria. Tão distintos que são, entre si, não se pretendem indicar qualquer unidade, senão, de que são pedaços de algo maior.

Verão de 2015 Em meio ao voo das mariposas

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A Antologia

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Mesopotâmia

A angústia da Vida na Epopéia de Gilgamesh Enquanto isso, Utnapishtim, confortavelmente instalado, observava tudo a distância e, dentro de seu coração, meditava: "Por que o barco navega por aqui sem seu mastro e sem equipamento? Por que foram destruídas as pedras sagradas, e por que o barco não é conduzido por seu capitão? Aquele homem que chega não é um dos meus; vejo um homem coberto com pele de animais. Quem é este que vem pela praia atrás de Urshanabi, pois certamente que não é um dos meus homens?" Utnapishtim então olhou para ele e disse: "Qual é o teu nome, tu que chegas vestido de pele de animais, com as bochechas famintas e o rosto abatido? Aonde vais com pressa? Por que razão fizeste uma jornada tão longa, atravessando mares cuja passagem é tão difícil? Dize-me a razão de tua vinda." Ele respondeu: "Gilgamesh é meu nome. Sou de Uruk, da casa de Anu." Utnapishtim então disse a ele: "Se és Gilgamesh, por que tens as faces tão encovadas e o rosto tão abatido? Por que trazes o desespero em teu coração, e por que teu rosto lembra o de alguém que chega de uma longa jornada? Sim, por que tua face está queimada pelo calor e pelo frio, e por que chegas aqui vagando pelos pastos à procura do vento?" Gilgamesh disse-lhe: "E por que meu rosto não haveria de estar encovado e abatido? Trago o desespero em meu coração; meu rosto lembra o de alguém que chega de uma longa jornada e foi queimado pelo calor e pelo frio. Por que não haveria de vagar pelos pastos à procura do vento? Meu amigo, meu irmão mais novo, que capturou e matou o Touro do Céu e derrubou Humbaba na floresta de cedro, meu amigo, alguém que me era caríssimo e que enfrentou muitos perigos ao meu lado, Enkidu, meu irmão, a quem

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tanto amava, a morte o alcançou. Chorei por ele durante sete dias e sete noites, até os vermes tomarem-lhe o corpo. Por causa do meu irmão, tenho medo da morte; por causa do meu irmão, vagueio pelas matas e pelos campos. Seu destino pesa sobre mim. Como posso descansar, como posso ficar em paz? Ele virou pó e também eu vou morrer e ser enterrado para sempre." Gilgamesh tornou a dizer, falando a Utnapishtim: "Foi para ver Utnapishtim, a quem chamamos o Longínquo, que fiz esta jornada. Por isso vagueei pelo mundo, atravessei tantas cordilheiras perigosas, cruzei os mares e me esfalfei viajando; minhas juntas doem e há muito que já não sei o que é uma doce noite de sono. Minhas roupas se esfarraparam antes de chegar à c asa de Siduri. Matei o urso e a hiena, o leão e a pantera, o veado e o cabrito montes, o tigre e todos os tipos de caça, e também as pequenas criaturas dos pastos. Comi sua carne e vesti suas peles; e foi assim que cheguei ao portão da jovem fabricante de vinho, que fechou contra mim seu portão de piche e betume. Mas recebi dela instruções sobre a jornada e cheguei então até Urshanabi, o barqueiro, com quem atravessei as águas da morte. Oh, pai Utnapishtim, tu que te juntaste à assembleia dos deuses, desejo fazer-te algumas perguntas sobre os vivos e os mortos: como encontrar a vida que estou buscando?" Utnapishtim disse: "Não existe permanência. Acaso construímos uma c asa para que fique de pé para sempre, ou selamos um contrato para que valha por toda a eternidade? Acaso os irmãos que dividem uma herança esperam mantê-la eternamente, ou o período de cheia do rio dura para sempre? Somente a ninfa da libélula despe-se da larva e vê o sol em toda a sua glória. Desde os dias antigos, não existe permanência. Como são parecidos os adormecidos e os mortos, eles são como um retrato da morte. O que existe entre o servo e o senhor depois de ambos terem cumprido seus destinos? Quando os Anunnaki, os juízes do mundo inferior, se reúnem com Mammetum, a mãe dos destinos, juntos eles decidem a sorte dos homens. Eles distribuem a vida e a morte, mas o dia da morte eles não revelam."

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A criação do Mundo no Enuma Elish Quando não havia firmamento, nem terra, alturas, profundezas ou sequer nomes, Quando o Apsu estava sozinho, Ele, as águas doces, o iniciador da criação, e Tiamat, as águas salgadas, e útero do universo, quando não existiam os deuses.... Quando as águas doces e as salgadas estavam juntas, misturadas, Os juncos não estavam trançados, ou galhos sujavam as águas, quando os deuses não tinham nome, natureza ou futuro, então a partir de Apsu e Tiamat, nas águas dele e dela, foram criados os deuses, e para dentro das águas precipitou-se a terra [lama], Lahmu e Lahumu, eles foram então chamados; nem bem velhos, nem bem crescidos [eles eram] quando Anshar e Kishar os dominou, e as linhas do céu e da terra se expandiram para onde os horizontes se encontram para separar o que era nuvem do que era terra. Dias seguiram outros dias, anos seguiram outros anos, Até Anu, o firmamento vazio, herdeiro e conquistador, primogênito de seu pai, à imagem de sua própria natureza, fez nascer Nudimud-Ea, intelecto, sabedoria, maiores do que o horizonte dos céus, o mais forte dentre seus pares. Discórdia rompeu entre os deuses, apesar de serem irmãos, e a brigar eles começaram na barriga de Tiamat, fazendo o céu tremer, e se mexer como numa dança frenética, de tal forma que Apsu não pode silenciar o clamor dos jovens deuses, fazer cessar tal mal comportamento, altaneiro e orgulhoso.

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Tiamat, ainda quieta se quedava, quando Apsu, o pai de todos os deuses, chamou por seu conselheiro: - Caro conselheiro, vem comigo até Tiamat. Eles assim o fizeram, e em frente de Tiamat eles se sentaram, falando sobre os jovens deuses, seus filhos primogênitos, sendo que disse Apsu: - Os modos deles me revoltam, dia e noite, sem cessar, sofremos. Minha vontade é destruí-los, todos eles, para que possamos ter paz e dormir novamente. Quando Tiamat isto escutou, ela se sentiu atingida, e se retorceu, em solitária desolação, o coração cheio de paixão mantida em segredo. Disse Tiamat: - Por que devemos destruir os filhos que fizemos? Se os modos deles são o problema, esperemos um pouco mais. Então Mumu aconselhou Apsu, e ele falou com maldade: - Pai, destrua-os todos numa rebelião de monta, e teremos paz durante o dia, e à noite, todos poderemos dormir. Quando Apsu ouviu que os dados haviam sido lançados contra seus filhos e filhas, sua face inflamou-se com o prazer do mal; mas a Mummu ele abraçou, pendurou-se ao seu pescoço, colocou-o nos seus joelhos e o beijou. Esta decisão chegou ao conhecimento dos deuses mais jovens, filhos e filhas de Tiamat e Apsu. Confusão instalou-se, e depois, um grande silêncio, pois eles ficaram extremamente perturbados. O deus que é a fonte da sabedoria, a inteligência brilhante que [tudo] percebe e planeja, Nudimmud-Ea, examinou a questão, fazendo levantar o

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tumulto do caos, e contra este o artífice do universo passou a elaborar um plano. Ele fez um encanto para as águas, e este encanto caiu sobre o Apsu, que caiu em sono profundo. As águas doces caíram em sono profundo, Mummu foi então derrotado, e Apsu, agora tomado por sono eterno, não mais se mexeu. Ea então rasgou o manto de glória flamejante e a coroa de Apsu, apossandose da auréola do rei. Quando Ea prendeu Apsu, ele o matou, e Mummu, o conselheiro traiçoeiro, Ea pegou pelo nariz, aprisionando-o [para sempre]. Ea derrotou seus inimigos, pisando por cima deles. Agora que seu triunfo estava completo, completamente em paz, ele descansou, em seu palácio sagrado, Ea adormeceu. Por sobre o abismo, à distância, ele construiu sua casa e templo, e ali, com toda magnificência, ele foi viver com sua esposa Damkina. Naquela sala, no ponto das decisões onde o que deve vir a ser é prédeterminado, ele foi concebido, o mais sagaz, aquele que veio do poder mais absoluto em ação. No abismo profundo ele foi concebido, Marduk foi concebido no coração do apsu, Marduk foi criado no coração do apsu sagrado. Ea é seu pai e Damkina a ele deu à luz, pai e mãe; ele foi amamentado pelas deusas, suas amas dotaram-no com grande poder. O corpo de Marduk era lindo; quando erguia seus olhos, luzes dele irradiavam, seu passo era majestoso, ele foi um líder desde seu primeiro momento. Quando Ea, seu pai, viu seu filho, ele se alegrou, ele ficou radiante e cheio de felicidade, pois como era perfeito o menino! O grande artífice multiplicou os

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dons divinos do menino, para ser o primeiro dentre os primeiros, dentre todos, o de maior estatura.. Os membros de Marduk eram imaculados, mostrando um mistério amedrontador além da compreensão, com olhos de visão sem limite que valiam por quatro, com ouvidos de audição tão poderosos também que equivaliam a quatro, quando seus lábios se moviam, uma língua de fogo se projetava. Membros fortes, titânicos, de pé, ele ultrapassava em altura os outros deuses, tão forte ele era, pois vestia a glória de dez [deuses], sendo que raios se projetavam ao redor de Marduk. - Meu filho, meu filho, filho do sol, e do sol do firmamento! A criação do Templo, no Enuma Elish Lá onde todos iremos dormir uma estação do ano, no Grande Festival, quando todos reunidos em Assembléia, iremos construir altares para ti, iremos construir Parakku, o Santuário. Quando Marduk escutou [tais palavras] sua face brilhou como a luz do dia: - A Grande Torre de Babel deve ser construída de acordo com os desejos de todos vocês, os tijolos deverão ser colocados em seus moldes e chama-laemos de Parakku, o Santuário. Os deuses Anunaki pegaram suas ferramentas, e levaram um ano inteirinho para moldar os tijolos [necessários]; no segundo ano, eles levantaram o Esagila, o templo da terra, o símbolo do céu infinito. Dentro, havia quartos para Marduk e Enlil e Ea. Com toda majestade, Marduk tomou seu lugar na presença deles todos, onde o topo do zigurate erguia-se por sobre a base.

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Quando a construção do templo terminou, os Anunaki construíram capelas para si; então todos se reuniram, e Marduk ofereceu a todos um banquete. - Esta é Babilônia, a cidade querida dos deuses, teu amado lar! Em comprimento e amplidão, ela é nossa, nós a possuímos, alegrem-se com ela, pois ela é sua! Quando todos os deuses se sentaram, houve vinho, festa e risos, e depois do banquete no lindo Esagila eles executaram a liturgia, os ritos sagrados, a partir dos quais o universo recebe sua estrutura, onde o oculto é trazido às claras, [pois é] através do universo que aos deuses são atribuídas as suas estações.

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Egito

Ensinamentos de Merikara Sucedem-se as gerações humanas e o Senhor ocultou-se. Olha o ser interno e não despreza a mão do autor. Honra o Senhor em seus caminhos, seja feito de pedras preciosas ou de cobre. Como a onda sucede à onda, não há rio que se possa esconder. A alma ba vai para o seu próprio lugar. Cuida da tua morada no Ocidente, do teu aposento em um cemitério, mediante a retidão e o exercício da justiça. Nisso pode confiar o coração do homem. A virtude do reto coração é agradável ao Senhor, mais do que o boi de quem comete a injustiça. Procede segundo a vontade do Senhor, que há de proceder, pensando em ti também. Isso tem o valor de oferta solene, de abundante oferta no altar e de inscrição que perpetua o teu nome. O Senhor sabe quem age em seu favor. Estão bem providos os homens, que parecem um rebanho do Senhor. Ele fez a terra e o céu para os homens. Repetiu o monstro das águas. Fez a respiração para que as narinas se movam. Os homens são a imagem da pessoa do Senhor,

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que por eles ergue-se no céu. Fez para eles a relva, o gado, os pássaros, os peixes. Matou os inimigos do homem, aniquilou os seus filhos, que desejavam rebelar-se. Fez a luz, percorre os céus, navega nos céus para vê-los. Construiu um santuário. Se os homens choram, o Senhor ouve-lhes o pranto. Gerou os reis, os soberanos para a proteção dos fracos. Deu-lhes a arma da magia, a fim de evitarem o ataque da sorte. Como o Senhor aniquilou os criminosos, durante a noite, durante o dia? O Senhor castiga como um pai castiga um filho por causa do irmão. Sabe o Senhor o nome de cada um. Hino de Akhenaton Irradias beleza no horizonte, Aton, primeiro ser celeste vivo! Levas beleza a toda parte, Quando te levantas. És belo, grande, reluzente! Brilhas por cima de todas as nações! Teus raios se estendem sobre todas as terras, Sobre a tua criação inteira! Estás distante, Mas os teus raios se estendem sobre a terra inteira! Quando te deitas no ocidente, A terra escurece Como se estivesse morta E todos repousam nas camas, A cabeça envolta em um pano. Nenhum vê o outro. Se lhes tirassem o travesseiro, Eles não sentiriam.

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Todos os leões saem da caverna, Todas as serpentes mordem, A terra está silenciosa. Tu, seu criador, escondeste-te no horizonte. A terra ilumina-se, quando surges na manhã. Quando brilhas, Aton, Desaparecem as trevas. Quando soltas os teus raios, As Duas Terras enchem-se de alegria. Todos erguem-se do leito, Ficam de pé, Lavam-se, vestem-se, erguem os braços, Adoram-te. Todos vão para o trabalho, O gado alegra-se no pasto, As árvores, a relva, reverdecem, Os pássaros saem dos ninhos, Louvando-te no adejo das asas. Pulam todos os cordeiros, As aves, todas as criaturas de asas, Vivem por que tu apareces no horizonte. Então os barcos sobem e descem o rio, Abrem-se todos os caminhos, Saltam os peixes na água do rio E os teus raios descem às profundezas do mar. Fazes nascer o fruto das entranhas da mulher. Sustentas vivo o filho no seio materno E, acalentando-o, para que não chore, Tu lhe dás o espírito, Quando ele sai do ventre materno, No dia em que nasce. Tu lhe abres a boca E lhe dás o necessário à sua existência. Quando o pintinho pia na casca do ovo,

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Tu lhe dás o ar para viver, A força para quebrar a casca, De onde o pinto sai piando, A correr pelo chão. São muitas as tuas ações! Criaste a terra segundo o teu desejo! Tu somente criaste a terra, Com os homens, Os animais grandes e pequenos, Todos os que andam com os pés, Todos os que voam com as asas As Terras da Síria, da Núbia, do Egito, Tu criaste-as todas em seu lugar, Tudo quanto de que elas necessitam. Todos nós recebemos o alimento Com nossos dias contados, Falam-se diversos idiomas E os homens têm pele de cor diferente, Sim, tu crias os povos diversos. Criaste o Nilo, no mundo inferior, Fizeste-o fluir, segundo tua vontade, Para os homens se alimentarem, Tu, Senhor de todos nós! Tu criaste as terras longínquas, Colocaste um Nilo na altura Para também irrigar essas terras, Um Nilo de águas altas Como as ondas do mar, Para inundar os seus campos. Senhor da Eternidade, São ótimas as tuas intenções! O Nilo na altura,

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Ofereceste-o à terra das montanhas, aos animais que correm com as suas patas, em todas as terras montanhosas. Mas, o Nilo no mundo inferior, Ofereceste-o ao Egito. Criaste as estações Para o renascimento das tuas obras, O inverno para refrescá-las, O verão para que elas gozem de ti. Criaste o céu distante Para subires nele e de lá veres tudo, Tu somente, Quando surges na forma de sol nascente, Subindo radioso, brilhante, Afastando-te, voltando. Tiraste de ti mesmo milhões de formas Cidades, aldeias, prados, estradas, e o rio, Todos te veem como o sol de cada dia. Estás em meu coração, Somente eu te conheço, Eu, teu filho Akhenaton! Tu lhe revelaste os teus desejos, a tua força. Tens a terra e os homens em tuas mãos. Se te levantas, eles vivem. Se te deitas, eles morrem. as a duração da nossa existência E vivemos somente por ti. Todos Os olhos contemplam a tua beleza, Até quando te deitas. Cessa todo trabalho, quando te deitas, Desde que fizeste a terra, Tu criaste os homens,

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Para o teu filho nascido de ti mesmo, Para a sua real esposa bem amada, Que vive e reina para sempre, Eternamente. Hino à Ptah O deus do mar Salve a ti! Tu és venerável, tu és antigo, Tatenen, pai dos deuses, deus primogênito da primeira vez, modelador dos homens, que fez os deuses, que inaugurou a existência como deus primordial, que fez o céu como criação do seu coração, que se ergueu no que sustém Chu, que fundou a terra pela sua própria obra, que rodeia o mundo como Nun e o Muito Verde, que fez a Duat e faz repousar os cadáveres e aí faz circular Rá para que eles sejam revigorados. Ele é regente da eternidade, vida, saúde e força, senhor da perenidade e senhor da vida. Ele faz respirar as gargantas, dá o ar a todos os narizes, faz viver todo o homem pelos seus alimentos. Duradouro de vida, Chai e Renenutet acompanham-no. Vive-se daquilo que sai da sua boca. Ele faz oferendas para todos os deuses na sua manifestação de Nun, o venerável, senhor da eternidade e da perenidade.

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Os sopros de vida para todos os rostos acompanham-no. Ele é o guia do rei para o seu assento venerável no seu nome de rei das Duas Terras.

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Pérsia

Hino à Ahura Mazda Com as mãos estendidas e humildemente oro à ti meu Deus, que através do teu Espírito Santo concede a mim toda honestidade da ação e da boa mente, para que através disso eu possa trazer alegria à alma da Criação. Ahura Mazda, eu em verdade me aproximo de ti, através da mente pura e do coração iluminado. Ó, Criador, conceda-me nos dois mundos, corporal e espiritual, a recompensa que só pode ser alcançada através da verdade e da justiça para que todos os fiéis sejam felizes superando a rivalidade dos inimigos. Ó Mazda, ó Asha (Espírito da Verdade), Ó Vohuman (Espírito do bom pensamento) vou agora cantar músicas que ainda não foram ouvidas por ninguém. Espero que através de vós, e seguindo sempre à vossa vontade, possamos aumentar nossa fé e o nosso auto-sacríficio. Ó, Deus Todo-Poderoso, por favor, aceite os nossos pedidos, venha ao nosso encontro e nos conceda a tua felicidade. Vou levar minha alma para o céu por meio do pensamento puro, e estar bem ciente das bênçãos que o Senhor Todo-Poderoso deixará cair sobre os que praticam boas obras, vou ensinar o povo a lutar pela verdade e à seguir a justiça. O símbolo da honestidade e pureza, quando verei a ti? Ó símbolo do bom pensamento, devo ser capaz de reconhecer-lo através do conhecimento da celestial verdade? Seria, eu, capaz de falar sobre o Todo- poderoso, obedecendo a voz da consciência? Com a proclamação dessas palavras

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sagradas nós devemos fazer com que os maus se voltem amorosamente em direção a tua vontade, ó meu Deus. Ó Meu Deus, venha a nós através do bom pensamento (vohuman) com o duradouro presente do Espírito da Verdade (Asha) concedido nas tuas palavras sublimes. Conceda à Zaratustra e a todos nós Tua graciosa ajuda, ó Senhor, de modo que possamos Superar o mau dos errantes. Concedei-nos ó Espírito da Verdade, o fruto da Boa Mente. Conceda-me, Ó Espírito da Piedade, a mim e aos que nos apoiam (e a Vishtaspa), nosso desejo para efetividade. E conceda, Ó Mazda soberano Senhor, que ao recitar tuas palavras sagradas de revelação eu possa fazer tua feliz mensagem ser compreendida. A ti, Ó Deus, de acordo com o Espirito da Verdade (Asha) peço para mim, para Frashoshta (amigo e discípulo de Zaratustra) e para todos os que buscam o bem o dom da Boa Mente. E abençoados com essas generosidades, nós que temos sempre oferecido canções de louvor a Ti, não queremos magoa-lo, ó Mazda, ou mesmo à vocês Asha (o Espírito da verdade) e o Espírito da Melhor Mente”. Vocês, que são os mais prestativos em promover o Domínio da Bem-aventurança. Aqueles que tu conheces como totalmente dignos por causa de sua Honestidade e da Boa Mente, para estes, Tu faz cumprir a realização de seus desejo, ó Ahura Mazda, Pois eu sei bem que as palavras destas orações se direcionadas aos corretos fins, terão seus felizes efeitos. A doutrina de Ahura Mazda Hei de cantar as bondades de Ahura Mazda, falarei com gosto da Boa Mente e com reverência sobre a vida dos retos. E, assim fazendo, mencionarei os

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dois conceitos que preocupam os sábios. Ouça com seus ouvidos aos melhores conselhos reflita sobre eles com julgamento iluminado, deixe que cada um possa escolher seus credos. Com a mesma liberdade de escolha que todos devem ter em grandes eventos, Ó você, acorde para estes meus anunciamentos. No começo havia dois princípios gêmeos espontaneamente ativos. Esses eram Spenta Maynu(o Bem) e Angra Maynu (o mal) em pensamento, em palavra e ação. Entre esses dois, deixe Mazda escolher o correto. Seja bom, não neutro! E quando estas duas mentalidades Gêmeas vieram juntas elas primeiramente estabeleceram a Vida e a Recusa da Vida; assim deve ser até o mundo durar. A má-aventurança é a consequência de seguir o mal, e o estado da Melhor Consciência a recompensa dos justos. Desses Espíritos Gêmeos (em pensamento, palavra e ação), Angra Maynu escolhe fazer o pior, e o Espírito da Bondade (Spenta Maynu), se veste dos céus eternos, escolhendo a Verdade e a Justiça. E então, qual destes iriam agradar Ahura Mazda com boas ações, realizadas com fé na Verdade? Entre esses dois Espíritos os adoradores das falsas divindades não conseguem discernir o certo, à eles a enganação veio na hora da decisão, e eles assim escolheram a Pior Mente, o medo e o ódio, que é a causa de todas as maldades, de modo a destruir a vida mental das pessoas. Aquele que for dotado de força espiritual, bom pensamento, verdade e pureza, Deverá receber firmeza e estabilidade de corpo de Armaiti (Amor, Fé, Serenidade). Essa pessoa será, sem dúvida, bem sucedida no caminho da vida, e deve ser considerada, ó meu Senhor, como bom teu servo.

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Quando os pecadores recebem penas de seus pecados, ó Ahura Mazda, então eles vão perceber Teu poder através da Boa mente (Vohuman). Eles vão aprender esta verdade a respeito de como eles devem se esforçar para jogar fora a falsidade e a mentira, ajudando, assim a vitória da verdade e da pureza. Que sejamos servos sinceros à Ti como aqueles que fazem o mundo renovado Ó, Senhor da Vida e da Criação. Que possamos desfrutar de tua ajuda através da Verdade (ou Asha), de modo que sempre que renunciemos nossas dúvidas, nossos corações e pensamentos possam estar apontados para ti. A prática do bem é de acordo com a Verdade mesmo quando esta traz sofrimento para o praticante. A prática do mal é destrutiva mesmo ao produzir um proveito aparente. Prosperidade e alegria radiante são fruto de se entender isso. Se vós puderem perceber e compreender as leis da felicidade e da dor ordenado por Mazda, e se vocês aprenderem que os mentirosos e ímpios terão uma punição longa, mas os piedosos e justos gozarão de duradoura prosperidade espiritual, então vocês devem atingir a satisfação da real salvação, graças à este princípio.

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Índia

A Canção da Criação, no Rig Veda Então não existia o não-existente, nem o existente - não havia reino do ar, nem céu além dele. o que encobria, e onde? E o que dava abrigo? Existia água ali, urra profundidade insondável de água? Não existia então a morte, nem coisa alguma imortal - não havia sinal, o divisor do dia e da noite. Aquela coisa única, sem alento, respirou por sua própria natureza - a não ser ela, não existia coisa alguma. Existia treva; de começo oculto na treva, esse Tudo era caos indiscriminado. E tudo quanto existia então era vazio e sem forma - pelo grande poder do calor nasceu aquela unidade. Daí em diante surgiu o desejo no início, Desejo, a semente e germes primevos do espírito. Sábios que buscavam com o pensamento e seus corações descobriram o parentesco do existente no não-existente. Transversalmente sua linha de separação se estendeu - o que estava acima, então, e abaixo? Existiam reprodutores, forças poderosas, ação livre aqui e energia acima, além. Quem realmente sabe e quem pode declarar, de onde nasceu e de onde veio essa criação?

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Os deuses vieram depois da produção deste mundo. Quem sabe, portanto, de onde ele veio pela primeira vez? Ele, a primeira origem desta criação, tenha formado a mesma toda ou não a tenha formado, Cujo olho controla este mundo no céu mais alto, ele realmente sabe, ou talvez não saiba. Não Nos Devemos Lamentar Pelo Imperecível, no Bhagavad Gita O Senhor Bendito disse: Tu lamentas aqueles que não deverias lamentar, e no entanto dizes palavras sobre a sabedoria. Os homens sábios não se lamentam pelos mortos ou pelos vivos. Nunca houve uma época em que eu não existisse, ou tu, ou esses senhores dos homens, nem tampouco virá uma época no futuro em que deixaremos de existir. Assim como a alma vem ter a este corpo através da infância, mocidade e madureza, do mesmo modo ela toma outro corpo. O sábio não fica perplexo com isso. Os contatos com seus objetos, Ó filho de Kunti, dão origem ao calor e frio, prazer e dor. Eles vêm e vão e não duram para sempre, aprendem a resistir, Ó Arjuna. Ó homem que não se perturba com isso, Ó Chefe de homens, que continua o mesmo na dor e no prazer e é sábio, torna se capacitado para a vida eterna. Do não-existente não há vir-a-ser; do existente não há deixar de ser. A conclusão para os dois casos já foi percebida pelos que buscam a verdade. Sabes tu que aquilo pelo qual tudo se acha impregnado é

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indestrutível. Desse ser imutável ninguém pode causar a destruição. Diz-se que esses corpos da alma eterna que é indestrutível e incompreensível chegam a um fim. Por isso, luta, Ó Arjuna. Aquele que pensa que isto mata, e aquilo é morto, deixa de perceber a verdade, pois nem se mata nem se é morto. Ele nunca nasce, nem tampouco morre em qualquer ocasião, nem ainda tendo passado a ser uma vez, cessa de ser. Ele não nasce, é eterno, permanente e primevo. Ele não é morto quando o corpo é abatido. Quem sabe ser ele indestrutível e eterno, incriado e imutável, como poderá abater alguém, Ó Arjuna, ou fazer alguém abater outrem? Assim como uma pessoa deita fora roupas usadas e põe outras novas, a alma deita fora corpos usados e toma outros que são novos. As armas não ferem esse eu, o fogo não o queima, as águas não o molham, nem o vento o faz secar. Ele é indivisível, Ele não pode ser queimado, nem tampouco molhado ou secado. Ele é eterno, presente em tudo, imutável e imóvel. Ele é o mesmo para sempre. Diz-se que é imanifesto, inimaginável e imutável. Portanto, conhecendo-o como tal, tu não deves lamentar. Não Nos Devemos Lamentar Pelo Perecível, no Bhagavad Gita Mesmo que tu penses que o eu nasce e morre perpetuamente, ainda assim, Ó Poderoso, não deves lamentar. Pois para quem nasce, a morte é certa e certo é o nascimento para quem morreu. Pelo que é inevitável, portanto, não te deves lamentar. Os seres são imanifestos em seus inícios, manifestos no meio e novamente imanifestos em seus fins. Ó Arjuna, que existe nisto para lamentar? Há quem O veja como uma maravilha, outro fala d'Ele como uma

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maravilha, outro ouve falar d'Ele como uma maravilha, e mesmo depois de ouvir, ninguém O conheceu. O morador no corpo de todos, Ó Arjuna, é eterno e jamais pode ser morto; portanto, não te deves lamentar por criatura alguma. As Características do Sábio Perfeito, no Bhagavad Gita Disse Arjuna: Qual é a descrição do homem que possui essa sabedoria firmemente fundada, cujo ser é firme em espírito, Ó Krishna? Como fala o homem de inteligência estabelecida, como se senta, como anda? O Senhor Bendito disse: Quando um homem põe de lado todos os desejos de sua mente, Ó Arjuna, e quando seu espírito está contente em si próprio, então se chama estável em inteligência. Aquele cuja mente não se perturba em meio às tristezas e está livre do desejo ansioso entre prazeres, aquele de quem a paixão, medo e raiva se afastaram, a este se chama um sábio de inteligência estabelecida. Aquele que não tem afeição em qualquer lado, que não se rejubila ou detesta ao ter o bem ou o mal, tem uma inteligência firmemente estabelecida na sabedoria. Aquele que retira os sentidos dos objetos do sentido em todos os lados, assim como uma tartaruga recolhe seus membros ao casco, tem uma inteligência firmemente estabelecida na sabedoria. Os objetos do sentido se afastam da alma corporificada que se abstém de alimentar-se deles, mas o gosto por eles continua. Até mesmo o gosto se afasta quando o Supremo é visto. Embora um homem possa esforçar-se pela perfeição e mostrar-se dono de discernimento, Ó Filho de Kunti, seus sentidos impetuosos arrastarão sua mente à força. Tendo posto todos os sentidos sob controle, ele deve permanecer firme no intento Yoga em Mim, pois aquele cujos sentidos se acham

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sob controle teia uma inteligência firmemente estabelecida. Quando, em sua mente, um homem presta atenção aos objetos do sentido, produz-se sua ligação aos mesmos. Dessa ligação surge o desejo, e do desejo vem a raiva. Da raiva nasce a confusão, e desta a perda de memória; dessa perda de memória vem a destruição da inteligência e desta ele perece. Um homem de mente disciplinada, no entanto, que se move entre os objetos de sentido com os sentidos sob controle e livre de ligação e aversão, atinge a pureza de espírito. E nessa pureza de espírito produz-se para ele um fim de toda tristeza; a inteligência de um homem de espírito puro assim logo se estabelece na paz do eu. Não existe inteligência para os incontrolados, nem tampouco para os incontrolados existe o poder de concentração, enquanto para aquele que não tem concentração não há paz, e como pode haver felicidade para quem não tem paz? Quando a mente persegue os sentidos nômades, leva consigo a compreensão, assim como o vento impele um navio sobre as águas. Aquele cujos sentidos estejam retirados de seus objetos, portanto, Ó Poderoso, tem sua inteligência firmemente estabelecida. O que é noite para todos os seres é o momento de despertar para a alma disciplinada, e o que é momento de despertar para todos os seres é a noite para o sábio que vê. Aquele em quem todos os desejos entram como águas no mar e que, embora sendo sempre enchido, está sempre em movimento, atinge a paz e não Aquele que se abraça a seus desejos. Aquele que abandona todos os desejos e age livremente da saudade ou desejo, sem qualquer sentido de propriedade egoísta ou egoísmo, atinge a paz. Esse é o estado divino, Ó Arjuna, onde tendo chegado não há mais confusão e fixo nesse estado, na hora da morte, pode-se alcançar a

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ventura de Deus. A busca ideal no Budismo Indiano, no Mojjhima – Nikaya Quando estais reunidos, ó monges, de duas coisas uma podeis fazer: seja falar do dhamma, ou guardar o silêncio nobre. Estas, monges, são as duas buscas: a busca nobre e a busca não-nobre. Em que consiste a busca nãonobre? Tomai o caso de um homem que, sujeito ao nascimento, devido ao eu, busca o que é igualmente sujeito ao nascimento: uma mulher e filhos, escravos de ambos os sexos, ovelhas, cabras, galos e porcos, elefantes, gado, cavalos e égua, ouro e prata; e que, sujeito à velhice, ao declínio, à morte, à dor, à impureza, sempre devido ao eu, busca o que está igualmente sujeito a estes estados [enumeração como esta acima, exceto o ouro e a prata que são omitidos dos casos de declínio, de morte, e de dor]. Eis aí a busca nãonobre. E qual, é, então, a busca nobre? Neste caso um homem sujeito ao nascimento devido ao eu, mas tendo percebido o perigo no que é igualmente sujeito ao nascimento, busca o não-nascido, a mais absoluta segurança contra a escravidão, o nirvana. Um homem, sujeito à velhice devido ao eu...busca o que não envelhece, a mais absoluta segurança contra a escravidão, o nirvana. Um homem sujeito, à dor devido ao eu... busca o que não conhece a dor, a mais absoluta segurança contra a escravidão, o nirvana. Um homem sujeito à impureza devido ao eu, tendo visto o perigo no que é igualmente sujeito à impureza, busca ó imaculado, a mais absoluta segurança contra a escravidão, o nirvana. Eis aí a busca nobre. Eu também, monges, antes do meu total despertar, quando era ainda bodhisatta, não totalmente desperto, e pelo fato de que estava sujeito ao nascimento, devido ao eu, buscava o que estava igualmente sujeito ao nascimento, etc. Veio-me esta ideia: Por que, sujeito ao nascimento devido ao eu, busco o que é igualmente sujeito ao nascimento?.. etc. Se [sendo] sujeito ao nascimento devido ao eu, tendo percebido o perigo no que é igualmente sujeito ao nascimento, buscasse o não nascido, a segurança absoluta contra a escravidão, o nirvana; E se, sujeito à velhice, à morte, à

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dor, à impureza devido ao eu, tendo percebido o perigo no que está igualmente sujeito a estes estados, eu buscasse o que é sem velhice, sem morte, sem dor, sem mácula, a segurança absoluta contra a escravidão, o nirvana? Então abandonei meu lar para viver sem lar, em busca do que é bom, buscando a incomparável vereda da paz. Eu me dirigi primeiro para junto de Alãra Kãlãma, depois para Uddaka Rãmaputta; mas do dhamma e da disciplina destes dois [mestres] compreendi o seguinte: este dhamma não conduz à indiferença, à impassibilidade, à cessação, à tranquilidade, ao conhecimento superior, ao despertar, ao nirvana, mas somente com Alãra, até o plano de aniquilamento do eu; com Uddaka, até o plano de nem percepção nem não percepção. Então, buscando o que é bom, buscando a incomparável vereda da paz, e percorrendo a pé o Magadha, terminei por chegar a Uruvelã, a Povoação do Campo. Ali eu vi uma deliciosa extensão de terreno plano, um bosque encantador, um rio que corria com águas bem claras; não muito longe havia uma aldeia onde era possível viver. Pensei: a um jovem que está resolvido a fazer esforços, que mais necessitaria para seus esforços? Sentei-me, pois, ali, achando o local conveniente para meus esforços. Então, ó monges, sujeito ao nascimento devido ao eu, tendo percebido o perigo no que está igualmente sujeito ao nascimento, e procurando o não-nascido, a segurança absoluta contra a escravidão, o nirvana, encontrei meu caminho até o não nascido, até a segurança absoluta contra a escravidão, o nirvana... procurando o que não envelhece... o que não morre... o que é sem dor... encontrei meu caminho até o que não conhece nem velhice, nem morte, nem dor. Então sujeito à impureza devido ao eu, tenho percebido o perigo no que está igualmente sujeito à impureza, buscando o imaculado, a segurança absoluta contra a escravidão, o nirvana, consegui o imaculado, a segurança absoluta contra a escravidão, o nirvana. Conhecimento e visão surgiram em mim: inabalável é minha liberdade, este meu último nascimento, não mais existe novo porvir.

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Como atingir a iluminação, no Mojjhima – Nikaya Príncipe, existem cinco fatores de esforço. Quais são? Eis um religioso de fé no Despertar do Descobridor da Verdade; ele pensa: "Em verdade, este senhor é um Perfeito, um totalmente Desperto, dotado de saber e da boa conduta, caminhando no bem, conhecendo os mundos, incomparável, condutor dos homens que devem ser domados, mestre dos devas e dos homens, é o Desperto, é o Senhor". O religioso é sem doenças, sem indisposições; dotado de uma boa digestão que não é fria nem muito aquecida, mas média, favorável aos esforços. Ele não é nem velhaco nem enganador, mostra-se tal como é verdadeiramente a seu mestre ou a um companheiro inteligente no caminhar com Brahma. Segue seu caminho empregando energia para afastar os maus estados e para estabelecer bons; é fiel, poderoso no esforço, perseverante na busca dos estados que são bons. Chega a ser sábio, dotado de uma sabedoria que é nobre, do discernimento no que concerne à origem e ao término, e isto leva à destruição completa de todo o mal. Tais são, ó príncipe, os cinco fatores do esforço. Dotado destes cinco fatores do esforço, o religioso que toma o Descobridor da Verdade por guia, que compreendeu pelo seu saber superior este fim supremo do Caminhar com Brahma, para o qual os jovens têm razão de abandonar o lar e de se tomarem sem lar, este religioso, afirmo, pode caminhar para o seu objetivo. A Sabedoria, no Milinda Panha ― Nagasena, quais são as características da sabedoria? ― A cisão, à qual já me referi, e a iluminação. ― Como? ― A sabedoria dissipa as trevas da ignorância, produz a clareza da ciência, faz brilhar a luz do conhecimento, revela as santas verdades. Por ela o asceta adquire o perfeito entendimento da impermanência, da dor e da impersonalidade.

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― Dá uma comparação. ― Se entrarmos em uma casa com uma luz acesa, a luz dissipando as trevas produz a claridade no interior da casa, de forma que se mostram as coisas que estão lá. Assim procede a sabedoria. [...] ― Nagasena, esses estados de alma diversos produzem um mesmo resultado? Sim, todos têm por objetivo destruir as paixões. ― Como assim? Dá um exemplo. ― Assim como os diversos elementos de um exército concorrem para um só resultado, a derrota do inimigo, do mesmo modo os diferentes estados de alma têm um único objetivo: a destruição das paixões. [...] ― Nagasena, quem renasce? A mesma pessoa ou outra? ― Nem a mesma pessoa, nem outra. Dá-me uma comparação. ― Quando criança frágil, eras como hoje, que estás grande? ― Não, Venerável. Eu era outra pessoa. ― Sendo assim, não tens nem pai, nem mãe, nem preceptor. Não pudeste aprender as artes, adquirir virtudes, sabedoria! Haverá pois uma mãe para cada fase do embrião, uma mãe para a criança, outra para o homem feito. Quem se instrui é uma pessoa, quem se instrui é outra. Um é o autor do crime, outro o indivíduo a quem se cortam as mãos e os pés. ― De modo nenhum, Venerável. E tu que dizes? ― Já fui criança e agora sou homem, eu mesmo. O ser humano, em suas diversas fases, tem sua unidade no corpo. ― Dá uma comparação. ― Quando se acende um facho, este pode queimar a noite inteira?

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― De certo. ― E a chama da última noite é a mesma da segunda, esta a mesma da primeira? ― Não. ― Há então um facho diferente em cada noite? ― Não, o mesmo facho queimou a noite inteira. ― Assim, Maharajá, o encadeamento dos Kharmas é contínuo. Um surge, quando o outro desaparece. De algum modo, não há nem antecedente, nem consequente. Portanto, não é o mesmo, nem o outro, que acusa o último ato de consciência. ― Dá outro exemplo. ― Quando o leite transforma-se em coalhada, manteiga fresca, depois manteiga refinada, pode-se dizer que o leite fresco é o mesmo que a manteiga ou a manteiga refinada? ― Não, mas todos procedem do mesmo leite.

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China

O Céu como fundamento de tudo – Memórias da Cultura (Liji) Portanto Li [cultura] baseia-se no Céu, padroniza-se na Terra, trata do culto aos espíritos e estende-se aos rituais e cerimônias fúnebres, sacrifícios em honra aos ancestrais, arco e flecha, condução de veículos, investidura, núpcias, e audiências na corte ou troca de visitas diplomáticas. Por isto o Sábio apresenta ao povo o princípio de uma ordem social racionalizada e através dele todas as coisas vão bem no seio da família, na cidade e no mundo. [...] A criatura humana é produto das forças do céu e da terra, da união dos princípios yin e yang, encarnação da substância e da essência dos cinco elementos (metal, madeira, água, fogo e terra). Por isso a criatura humana é o centro do universo resultante máxima dos cinco elementos, criada para fruir alimento, cor e som. [...] O culto ao Céu tem por fim reconhecer os supremos desígnios celestes. O culto ao deus terrestre tem por fim demonstrar a produtividade da terra. O culto no templo ancestral tem por fim patentear a linhagem do homem. O culto às montanhas e aos rios tem por fim atender aos diferentes espíritos. Os cinco sacrifícios têm por fim celebrar as atividades humanas. Para isto há Sacerdotes no templo. Três Altos Ministros na corte, três Superiores no colégio. O arauto coloca-se em pé adiante do rei, o historiador oficial em pé atrás do rei, ao passo que o sacerdote incumbido dos oráculos e o mestre de música e seus assistentes colocam-se à sua direita e à sua esquerda; o soberano fica ao centro, sentado, com o coração tranquilo - guardião (ou símbolo) da suprema perfeição de todas as coisas.

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Quando se observa Li no culto ao Céu, os vários deuses atendem às respectivas atribuições. Quando se observa Li no culto a Terra, os bens terrenos crescem e se multiplicam. Quando se observa Li no templo ancestral, a afeição e a piedade filiais prevalecem. Quando se observa Li nos cinco sacrifícios, as medidas padrões são estabelecidas. Portanto o culto ao Céu, à Terra, aos antepassados, às montanhas e aos rios, e os cinco sacrifícios, visam preservar as condições da existência humana e constituem a configuração de Li. Li tem sua origem na Taiyi (Unidade Primeira), que se dividiu em Céu e Terra, transformando-se em yin e yang, atuando através das estações do ano e tomando forma segundo os diferentes espíritos. A vontade dos deuses manifesta-se como destino, sob controle do Céu. Assim deve Li ter o Céu por fundamento, exerce na Terra a sua ação e aplica-se às diferentes atividades humanas, mudando de acordo com as estações do ano e os vários ofícios. No ser humano, Li surge como princípio vital e manifesta-se no trabalho, no comércio, no convívio social, no comer e no beber, na cerimônia da "investidura" do que atinge à maioridade, no casamento, nos funerais e nos sacrifícios aos mortos, na carreira das armas, na condução de veículos, e nas audiências em palácio. Os ditames de Li constituem, portanto, os princípios fundamentais da vida humana, servindo para promover a confiança mútua e a harmonia social, fortalecendo as ligações sociais e os laços de amizade; constituem os princípios fundamentais do culto aos espíritos, da subsistência dos vivos e das oferendas aos mortos. Li é um vasto canal através do qual seguimos os desígnios do Céu e conduzimos ao bem as expressões do coração humano. Por isto, somente o Sábio reconhece que Li é indispensável. Para destruir um reino, arruinar uma família ou perder um homem - o que tendes a fazer em primeiro lugar é extirpar-lhes o senso de Li.

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O poder das forças espirituais – A Justa Medida (Zhong Yong) Confúcio observou - "O poder das forças espirituais no Universo - como se faz sentir por toda a parte! invisível aos olhos, e impalpável aos sentidos, é inerente a todas as coisas e nada escapa à sua influência". É fato que existem essas forças que fazem com que os homens de todos os países jejuem e se purifiquem e com solenidade de roupas instituam serviços de sacrifício e de adoração religiosa. Tal como o ímpeto das águas poderosas, a presença dos Poderes invisíveis se faz sentir; algumas vezes sobre nós, outras ao redor de nós. Diz o "Livro dos Cânticos": "A presença do Espírito: Não pode ser imaginada sem fundamento, como então pode ser ignorada!" Tal é a evidência das coisas invisíveis que é impossível duvidar da natureza espiritual do homem. A busca da natureza essencial, no Wenzi Laozi disse: Quando as pessoas perdem sua natureza essencial por seguir desejos, as suas ações nunca são corretas. Governar uma nação dessa maneira resulta em caos; governar a si mesmo deste modo resulta em decadência. Portanto aqueles que não ouvem o Caminho não têm meios de retornar à sua natureza essencial. Aqueles que não compreendem as coisas não podem ser claros e calmos. A natureza essencial do ser humano original não tem perversão ou degeneração, mas depois de uma longa imersão em coisas ela muda

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facilmente; assim nós esquecemos nossas raízes e nos adaptamos à natureza aparente. A natureza essencial da água gosta de claridade, mas o cascalho a polui. A natureza essencial da humanidade gosta de paz, mas os desejos habituais a danificam. Só os sábios podem deixar as coisas e voltar ao ser interior. Portanto os sábios não usam o conhecimento para explorar as coisas e não deixam os desejos romperem a harmonia. Quando estão felizes não ficam eufóricos, e quando sofrem não ficam irremediavelmente abalados. Assim, eles não estão em perigo mesmo quando em posições elevadas; estão seguros e estáveis. Desse modo o planejamento imediato ao ouvir boas palavras é algo que mesmo o ignorante sabe o suficiente para admirar; a ação elevada de acordo com as virtudes dos sábios é algo que mesmo aquele que não é digno conhece o suficiente para olhar com satisfação. Mas enquanto aqueles que admiram isso são muitos, os que o aplicam são poucos; e enquanto aqueles que olham isso com satisfação são numerosos, os que o põem em prática são raros. A razão disso é que eles se agarram às coisas e estão atados ao que é mundano. Por isso se diz: “Quando eu não planifico nada, as pessoas evoluem por si. Quando eu não me esforço por nada, as pessoas prosperam por si. Quando eu gozo de tranquilidade, as pessoas corrigem a si mesmas. Quando não tenho desejos, as pessoas são naturalmente sinceras.” A clara serenidade é a realização da virtude. A tolerância flexível é a função do Caminho. A calma vazia é o ancestral de todos os seres. Quando esses três são postos em prática, você entra na condição do que não tem forma. A condição do que não tem forma significa unidade; unidade significa unir-se com o mundo sem preocupações.

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Aprendendo a viver, no Zhuangzi Zixi, de Nanpo, estava viajando pela colina de Shang quando viu uma enorme árvore que muito o surpreendeu. Mil carros com quatro animais atrelados poderiam abrigar-se sob sua sombra. - "Que árvore é essa?" Exclamou Zixi. "Certamente há de ser de finíssima madeira". Em seguida olhando para cima, viu que seus galhos eram tortos demais para fazer vigas; e olhando para baixo verificou que a madeira era muito cheia de nós, o que a tornava imprestável para fazer ataúde. Provou uma das folhas e pensou que lhe tinham arrancado a pele dos lábios; e o odor era tão forte que bastaria para intoxicar um homem durante três dias seguidos. - "Ah!" Disse Zixi, "essa árvore realmente não serve para nada e foi por isso que chegou até essa idade. Um homem de espírito bem pode seguir seu exemplo de inutilidade". Desprendimento, no Zhuangzi Uma vez, Zhuang zi pescava no rio Pu, quando o príncipe Chu mandou dois altos funcionários convidá-lo para assumir um cargo de administrador do estado Chu. Zhuang zi continuou pescando, e sem virar a cabeça disse: “ouvi falar que há uma tartaruga sagrada que morreu há mais de três mil anos, e que o monarca a guarda cuidadosamente num cofre no altar de seus ancestrais. Para essa tartaruga seria melhor estar morta e ver seu restos venerados ou estar viva e arrastar a cauda na lama? “seria melhor estar viva e arrastando sua cauda na lama”, responderam os dois. Então, gritou Zhuang zi: “saiam! Eu também irei arrastar minha cauda na lama..”

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O que é a mente? Lankavatara sutra (Budismo Chinês) Então Mahamati disse ao Santificado: “Abençoado suplicamos te que nos digas: o que se entende por mente (citta)?” O Santificado respondeu: “Todas as coisas deste mundo, sejam elas aparentemente boas ou ruins, defeituosas ou sem defeito, produtoras de efeito ou não produtoras de efeito, receptivas ou não receptivas, podem ser divididas em duas classes: as más emanações e as boas não emanações. Os cinco elementos do apego que compõem os agregados da personalidade, denominados, forma, sensação, percepção, discriminação, e consciência, e que se imagina ser bom ou ruim, têm o seu aparecimento na energia do hábito do sistema mental, são as más emanações da vida. As realizações espirituais e as alegrias dos Samadhis e a frutificação dos Samapatis inerente ao sábio, através da sua auto realização da Sabedoria Nobre e que culmina no seu regresso e participação nas relações do mundo triplo, são chamadas as boas não emanações. O sistema mental que é a fonte das más emanações, consiste nos órgãos dos cinco sentidos e da sua acompanhante, a mente dos sentidos (Vijnanas), sendo todos eles unificados na mente discriminativa (manovijnana). Há uma sucessão interminável de conceitos sensoriais que fluem nesta discriminação ou mente pensante, que os combinam, os separam e os julgam pela sua bondade ou maldade. Então segue-se a aversão ou o desejo deles, para o apego e a ação; e assim os movimentos do sistema completo, movem-se contínua e firmemente unidos. Mas fracassa em ver e entender, que o que vê, discrimina e se apega é só uma manifestação da sua própria atividade e que não têm qualquer fundamento, e assim a mente vai percebendo erradamente, separando diferenças de formas e qualidades, sem permanecer calma e uniforme durante um minuto. No sistema mental distinguem-se três modelos de atividade: as mentes

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sensoriais que funcionam enquanto permanecem na sua natureza original, as mentes sensoriais como produtoras de efeitos, e as mentes sensoriais como desenvolvimento. No seu normal funcionamento, as mentes sensoriais apegam-se aos elementos apropriados do seu mundo externo, pelo qual, a sensação e a percepção surgem imediatamente e por extensão, em todos os órgãos e em todas as mentes sensoriais, nos poros da pele, e até mesmo nos átomos que compõem o corpo; pelo qual o campo inteiro é apreendido como um espelho que reflete objetos, e não percebendo que o próprio mundo externo é só uma manifestação de mente. O segundo modelo de atividade, produz efeitos pelos quais estas sensações reagem na mente discriminativa, produzindo percepções, atrações, aversões, apegos, ações e hábitos. O terceiro modelo de atividade, tem que ver com o crescimento, desenvolvimento e transcurso do sistema mental, quer dizer, o sistema mental está sujeito à sua própria energia do hábito acumulada desde o tempo sem princípio, como por exemplo: o "olhar" no olhar que predispõe ao apego e que se prende a múltiplas formas e aparências. Deste modo as atividades do sistema mental evoluindo por causa da sua energia do hábito incita as ondas da objetividade, diante da Mente Universal, o qual uma após outra, condicionam as atividades e o desenvolvimento do sistema mental. Aparência, percepção, atração, apego, ação, hábito, reação, condicionam-se uns aos outros incessantemente, e assim o funcionamento das mentes sensoriais, a mente discriminativa e a Mente Universal, são desta forma entrelaçadas. Assim, por causa desta discriminação que por natureza é como Maya, a falsa imaginação irreal e o raciocínio errôneo acontecem, a ação progride e a sua energia do hábito acumula-se, poluindo através disso a face pura da Mente Universal, e como consequência o sistema mental entra em

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funcionamento e o corpo físico tem a sua gênese. Mas a mente discriminativa não pensa que pelas suas discriminações e apegos está condicionando todo o corpo e assim as mentes sensoriais e a mente discriminativa vão-se mutuamente relacionando e mutuamente condicionam-se de uma forma cada vez mais íntima e construindo um mundo de relações fora das atividades da sua própria imaginação. Como um espelho que reflete as formas, os sentidos da percepção, percebem as aparências que a mente discriminativa conjuntamente recolhe, e procede à discriminação, nomeando as (dando-lhes nomes) e pegando-se a elas. Entre estas duas funções não há nenhum espaço, não obstante, elas surgem mutuamente condicionantes. Os sentidos da percepção apegam-se ao que eles têm afinidade, e há uma transformação que tem lugar na sua estrutura pelo qual a mente tem como resultado; combinar, discriminar, notificar, e atuar; então prosseguirá na sua energia do hábito institucionalizando a mente e a sua continuidade. A mina de onde é extraída a discriminação, devido à sua capacidade para discriminar, julgar, selecionar e argumentar sobre, também é chamada a mente pensante, ou a mente intelectual. Há três divisões da sua atividade mental: o pensamento que funciona em relação ao apego a objetos e ideias, o pensamento que funciona em relação a ideias gerais, e o pensamento que examina a validade destas ideias gerais. O pensamento que funciona em relação ao apego, a objetos e ideias derivadas da discriminação, separa a mente dos seus processos mentais e aceita as suas ideias como sendo reais e apega-se a elas. Chega-se assim a uma variedade de falsos julgamentos sobre multiplicidade, individualidade, valor, etc., e um forte apego toma lugar, o qual é perpetuado pela energia do hábito e assim a discriminação vai-se afirmando a ela mesma. Estes processos mentais, dão origem a concepções gerais de calor, fluidez,

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mobilidade e solidez, como caracterizando os objetos de discriminação, enquanto a tenaz sustentação para estas ideias gerais, dá origem à proposição, à razão, à definição e ilustração, todos os quais conduzem às afirmações de conhecimento relativo e ao estabelecimento da confiança no nascimento, natureza própria, e um eu alma. Por pensamento como uma função examinadora, significa o ato intelectual de examinar essas conclusões gerais sobre a sua validade, significação, e veracidade. Esta é a faculdade que conduz ao entendimento, conhecimento correto e aponta o caminho à auto realização.” O sistema mental, no Lankavatara sutra (Budismo Chinês) Então Mahamati disse ao Santificado: “Abençoado imploramos-te que nos fales sobre a Mente Universal e a sua relação com o sistema mental inferior.” O Santificado respondeu: “As mentes sensoriais e a sua mente discriminativa, estão relacionadas com o mundo externo, que é uma manifestação de si mesmo e é dado a perceber, discriminar, e apegar-se às suas aparências, da mesma forma que Maya. A Mente Universal (Alaya Vijnana) transcende toda a individualização e limites. A Mente Universal é completamente pura na sua natureza essencial, conservando-se inalterada e livre de faltas de impermanência, imperturbável pelo egoísmo, livre de emoções, agitações ou tensões nervosas, distinções, desejos ou aversões. A Mente Universal é como um grande oceano, a sua superfície é agitada por ondas e pelo aumento repentino destas, mas as suas profundezas permanecem sempre impassíveis. Em si mesma é destituída de personalidade e de tudo aquilo que a esta pertence, mas por causa da constante poluição, a sua face é como um ator que representa uma variedade

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de papeis entre os quais, uma mutua função toma lugar e o sistema mental nasce. O princípio do pensamento torna-se dividido e as funções mentais da mente, as más emanações da mente, assumem a individualidade. Os sete passos graduais da mente aparecem: isto é, auto realização intuitiva, pensamento desejo discriminativo, vista, ouvido, gosto, cheiro, tacto, e todas as suas interações e reações levam ao seu aumento. A mente discriminativa é a causa das mentes sensoriais e é quem as mantém, quem com elas preserva o seu funcionamento como descrito e torna-se presa ao mundo dos objetos, e por onde através da sua energia do hábito a Mente Universal se conspurca. Assim a Mente Universal torna-se o armazém e o órgão centralizador de todos os produtos acumulados do processo do pensamento e da ação desde o tempo sem principio. Entre a Mente Universal e a mente discriminativa individual está a mente intuitiva (manas) que é dependente da Mente Universal para as sua causas e manutenção, e na relação com ambas. Participa da universalidade da Mente Universal, compartilha a sua pureza, e como ela, está além da forma e dos momentos fugazes. É pela mente intuitiva que a má emanação emerge, é manifestado e é percebido. Afortunadamente essa intuição não é momentânea, porque se o esclarecimento que vem da intuição fosse momentâneo, o sábio perderia a sua "sabedoria", coisa que não acontece. Mas a mente intuitiva entra em relações com o sistema mental, compartilha as suas experiências e reflete-se nas suas atividades. A mente intuitiva é una com a Mente Universal por causa da sua participação na Inteligência Transcendental (Arya jnana), e é una com o sistema mental pela sua compreensão do conhecimento diferenciado (Vijnana). A mente intuitiva não tem corpo próprio, nem qualquer sinal pela qual possa ser diferenciada. A Mente Universal é a sua causa e suporte, mas ela evoluí juntamente com a noção de um eu e o que a ele pertence, ao

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qual se agarra e no qual se reflete. Pela mente intuitiva, pela faculdade de intuição, que é um entrosamento de identidade e percepção, a inconcebível sabedoria da Mente Universal é revelada e realizável. Como a Mente Universal ela não pode ser a fonte do erro. A mente discriminativa é uma dançarina e um mágico com a atualidade do mundo objetivo. A mente–intuitiva é a sábia boba da corte que viaja com o mágico e reflete a sua vacuidade e fugacidade. A Mente Universal mantém o registro e sabe o que deve e o que pode ser. É por causa das atividades da mente discriminativa que o erro surge e o mundo objetivo evolui e o reino de um ego alma é estabelecido. Quando a mente discriminativa poder adquirir liberdade, todo o sistema mental deixará de funcionar e a Mente Universal permanecerá só. A aquisição de liberdade por parte da mente discriminativa, removerá a causa de todo o erro.”

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Japão

Aforismos do Xintoísmo 1. A harmonia é para ser prezada, e deve-se honrar toda abstenção de oposição agressiva. 2. Todos os homens são influenciados pelo preconceito de classe, e só uns poucos são inteligentes. 3. Quando os de cima estão em harmonia com os debaixo e há concórdia na discussão dos negócios, concessão amigos, seguem-se opiniões acertadas. 4. Poucos são os homens extremamente maus. 5. Quando receberes as ordens imperiais, não deixes e obedecê-las escrupulosamente. 6. O Céu é o senhor, e a Terra o vassalo. O Céu sustém e a Terra sustenta. Se a Terra tentasse superar e difundir-se, o Céu simplesmente cairia em ruínas. 7. Os ministros e funcionários devem fazer da conduta decorosa o seu princípio normativo. Se os superiores não se comportam com decoro, os inferiores agirão desordenadamente, e só os inferiores agem desordenadamente, logo surgem os agravos. 8. Queixas do povo há milhares num só dia. Se há tantas num só dia, quantas não haverão no decurso de vários anos? 9. Se o juiz faz do ganho o seu escopo, e julga causas visando receber peitas, as queixas dos pobres se assemelharão a água caída sobre uma pedra. 10. Castigar os maus e estimular os bons: eis uma excelente regra da antiguidade. 11. Não escondas as boas qualidades dos demais, e não deixes de corrigir o que achares errado. 12. Os bajuladores e os impostores são armas aguçadas que solapam a Nação, e espadas voltadas contra o povo. 13. Os bajuladores gostam de delatar aos seus superiores os erros de seus

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inferiores, e aos seus inferiores criticam as falhas de seus superiores. É desses que nasce uma guerra civil. 14. Quando aos sábios se confiam cargos ouve-se o rumor dos louvores. 15. Neste mundo poucos são os que nascem com conhecimento: a sabedoria é produto da ardente meditação. 16. Para todas as coisas, grandes ou pequenas, cumpre descobrir o homem certo, e elas serão bem administradas. 17. Os sábios soberanos da antiguidade buscavam homens para ocupar os cargos, e não cargos para atender os homens. 18. Os negócios do Estado não admitem lassidão, e o dia todo mal basta para levá-los a cabo. 19. A boa fé é o fundamento dos justos. 20. Se o senhor e o vassalo agem de boa fé entre si, que poderão conseguir ambos? 21. Cessemos com o rancor e evitemos olhares maliciosos. 22. Não te ressintas se alguém discorda de ti. 23. Todos os homens têm corações, e cada coração tem sua própria inclinação. 24. Nós não somos incontestàvelmente sábios; eles não são incontestàvelmente tolos. 25. Como se pode estabelecer uma norma para distinguir o certo do errado? 26. . Embora apenas nós estejamos com a razão, acompanhemos a maioria e procedamos como ela. 27. Fazei clara apreciação do mérito e demérito, e ministrai a cada um sua exata recompensa ou punição. 28. Não pode haver dois soberanos num mesmo país; não se pode pedir ao povo que sirva a dois senhores. 29. Se nós invejamos outros, eles por sua vez nos invejarão: o mal da inveja não conhece limites. 30. Não é com prazer que vemos outros nos superarem em inteligência. 31. Não é senão após um lapso de quinhentos anos que deparamos com um homem sábio, e depois de mil anos que conseguimos um gênio.

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32. Volver as costas para o que é particular e o rosto para o que é público, eis o dever de um ministro. 33. Decisões sobre assuntos importantes não devem ser tomadas por uma pessoa somente. 34. O céu e o inferno provêm de nosso próprio coração. 35. Se em nosso coração há uma serpente, então no convertemos numa serpente. 36. Todos os homens são irmãos; todos recebem as bênçãos do mesmo céu. 37. Liberta-te da dúvida e terás tua vida vivificada pela bondade de Deus. 38. Com Deus não há dia nem noite, distante nem perto. 39. A sinceridade é a testemunha da Verdade. 40. Com a sinceridade não se conhece fracasso. 41. Fé equivale à obediência filial aos pais. 42. Se a oração falha em ajudar-te a realizar teu propósito, é que algo está faltando em tua sinceridade. 43. Não atraias sofrimento sobre ti, sendo indulgente no egoísmo. 44. Não professes amor com os lábios enquanto que em teu coração abrigas ódio, 45. Não se deve ser sensível ao sofrimento em sua própria vida, e negligente ao sofrimento na vida dos outros. 46. Teu corpo não é para teu bel- prazer. 47. Nada em todo o mundo atrai tanta gratidão como a sinceridade. 48. Feliz é o homem que cultiva as coisas ocultas e deixa que as visíveis cuidem de si mesmas. 49. Quando o coração de Amaterasu-Omi-Kami e os nossos corações estiverem unificados, então não haverá coisa tal como morte. 50. Em todo o mundo não existe coisa tal como estrangeiro. Koans do Budismo Japonês Tanzan e Ekido certa vez viajavam juntos por uma estrada lamacenta. Uma pesada chuva ainda caía, dificultando a caminhada. Chegando a uma curva,

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eles encontraram uma bela garota vestida com um quimono de seda e cinta, incapaz de cruzar a intercessão. "Venha, menina," disse Tanzan de imediato. Erguendo-a em seus braços, ele a carregou atravessando o lamaçal. Ekido não falou nada até aquela noite quando eles atingiram o alojamento do Templo. Então ele não mais se conteve e disse: "Nós monges não nos aproximamos de mulheres," ele disse a Tanzan, "especialmente as jovens e belas. Isto é perigoso. Por que fez aquilo?" "Eu deixei a garota lá," disse Tanzan. "Você ainda a está carregando?" Yamaoka Teshu, quando um jovem estudante Zen, visitou um mestre após outro. Ele então foi até Dokuon de Shokoku. Desejando mostrar o quanto já sabia, ele disse, vaidoso: "A mente, Buddha, e os seres sencientes, além de tudo, não existem. A verdadeira natureza dos fenômenos é vazia. Não há realização, nenhuma delusão, nenhum sábio, nenhuma mediocridade. Não há o Dar e tampouco nada a receber!" Dokuon, que estava fumando pacientemente, nada disse. Subitamente ele acertou Yamaoka na cabeça com seu longo cachimbo de bambu. Isto fez o jovem ficar muito irritado, gritando xingamentos. "Se nada existe," perguntou, calmo, Dokuon, "de onde veio toda esta sua raiva?" Um orgulhoso guerreiro chamado Nobushige foi até Hakuin, e perguntoulhe: "Se existe um paraíso e um inferno, onde estão?""Quem é você?" perguntou Hakuin."Eu sou um samurai!" o guerreiro exclamou."Você, um guerreiro!" riu-se Hakuin. "Que espécie de governante teria tal guarda? Sua aparência é a de um mendigo!". Nobushige ficou tão raivoso que começou a desembainhar sua espada, mas Hakuin continuou: "Então você tem uma espada! Sua arma provavelmente está tão cega que não cortará minha cabeça..." O samurai retirou a espada num gesto rápido e avançou pronto para matar, gritando de ódio. Neste momento Hakuin gritou:

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"Acabaram de se abrir os Portais do Inferno!" Ao ouvir estas palavras, e percebendo a sabedoria do mestre, o samurai embainhou sua espada e fez-lhe uma profunda reverência. "Acabaram de se abrir os Portais do Paraíso," disse suavemente Hakuin.

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Tibete

A Viagem no além, no Bardo Todol Recebeste o ensino de um sábio guru, iniciado no ministério do Bardo? Se recebeste, não o esqueças e nem te distraias com outros pensamentos. Se for o mestre espiritual do moribundo ou do morto, deve dizer: Eu te transmiti o profundo ensinamento que recebi do meu mestre e, por seu intermédio, da longa linhagem dos gurus iniciados. Não esqueças, não te deixes distrair por outros pensamentos. Conserva firmemente o espírito lúcido. Se estiveres sofrendo, não te deixes absorver na sensação do teu sofrimento. Se estás sentindo um torpor repousante, não te engolfes em uma calma obscuridade, um enleio tranquilizante, Não te entregues a isso. Permanece alerta. As consciências conhecidas como (aqui o oficiante pronuncia o nome do moribundo), tendem a se dissipar. Mantém-nas unidas pela força do Yid kyi nam - parshespa. Tuas consciências separam-se do teu corpo, vão entrar no Bardo. Dirige um apelo à tua energia, para vê-las passarem pelo umbral com teu pleno conhecimento. Vai aparecer e envolver-te o clarão fulgurante da Luz incolor e vazia, mais veloz do que o relâmpago. Não tenhas medo, não recues, não desmaies.

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Mergulha nessa luz. Rejeitando a crença em um ego, qualquer apego à tua ilusória personalidade, dissolve o Não-Ser no Ser e liberta-te. São poucos aqueles que, incapazes de atingir a Libertação, no decurso da sua existência, alcançam-na neste momento, tão fugaz que se pode dizer "sem duração". Os demais, pelo efeito do temor sentido como choque mortal, desmaiam. No momento em que o moribundo exala o último suspiro, se o lama que o assiste já está habituado e dispõe do necessário poder, dirá três vezes Hick e depois uma só vez Phet. E continua (pronunciando o nome do moribundo) Estás despertando como se tivesses estado dormindo. Deixaste o corpo que animavas. Olha: ele jaz inerte. Não deves sentir saudade. Não deves sentir apego. Não te demores ao lado daqueles que foram teus parentes e amigos. Não insistas em lhes falar. Tua voz não tem sonoridade. Eles não te ouvem. Não te demores em andar pelos campos, em mirar os objetos que te pertenceram. Não podes movê-los. Não podes levá-los contigo. Tu deixaste-os. Eles te deixaram. Não insistas em renovar os teus laços. Abandona-os.

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Estiveste sonhando com formas inconsistentes. Como não pudeste agarrar a Liberdade, no momento em que surgiu a Luz Realidade, continuarás com os sonhos agradáveis ou penosos. Mas não faltarão' as ocasiões de adquirires o conhecimento. Sê vigilante, alerta. Agora, compreende: cada uma das consciências que, reunidas, formam a tua pessoa, com base' no corpo físico, que vai dissolver-se, continuará sua atividade própria, até esgotar-se a energia engendrada pelos atos passados, que a mantém ativa. É mediante essa atividade, que passa do teu corpo material ao teu mental, que surgem as visões em torno de ti. Pelos teus olhos, vem a consciência das formas e das cores. Por isso, vês formas e cores. Pelos teus ouvidos, vem a consciência dos sons e portanto ouves os sons. Pelo teu nariz, vem a consciência dos odores e por isso tu sentes os cheiros. Por tua língua, possuis a consciência dos sabores e assim tu sentes os gostos. Por teu corpo, veio à consciência das sensações e por isso possuis o tato. O teu espírito elaborou ideias, oriundas dessas consciências, por isso tens ideias. Fica sabendo que se trata de alucinações. Nenhum desses objetos é real. São produtos das atividades das tuas consciências anteriores. Não te atemorizes. Não te apegues. Olha-as, indiferente, sem aversão, sem desejo. Se em tua existência passada predominaram a paciência, os pensamentos e atos caritativos, os esforços na prática do. Bem, a tranquilidade de espírito; se no momento da tua morte formulaste votos de felicidade para todas as criaturas; se tuas aspirações se dirigiram aos Budas e Bodisatvas, desejando te aproximares deles e participar da sua ação benéfica; então os Budas e Bodisatvas te aparecerão, radiantes, em uma atmosfera azul claro, infinitamente luminosa. Apesar da brandura e do poder, eles te intimidarão. Isso, talvez, porque

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apesar dos teus pensamentos e atividades virtuosas, tu não te assemelhaste à substância dos Budas e dos Bodisatvas. Não cedas ao medo que sentires. Não te desvies. Não penses em fugir. Contempla calmo a visão que se apresenta. Acalma o teu medo. Não cedas ao desejo. Confia em Vairochana, aquele que ilumina. Confia no imortal Dodji Semspa. Pela virtude da sua essência, podes obter agora a Libertação. Mas tua atividade mental e material também manifestou-se por pensamentos de ódio, de inveja, por atos de má vontade, de maldade, causadores de dor às criaturas. Alimentaste o desejo dos prazeres bestiais da luxúria, aos quais tu te entregaste. Tu te afastaste do conhecimento. Tu te sentiste satisfeito na torpeza e na ignorância. Agora estás rodeado das consciências ativas nessas esferas. Tu não as reconheces nas formas em que elas te aparecem e que tu mesmo lhes dás. Sentes então enorme terror. Eis as formas das divindades irritadas dos guardiões do Umbral. Os seus inúmeros satélites rodeiam-nos. Têm formas animais, inexistentes no mundo de onde saíste. Envoltos em luz multicor, eles apresentam-se à tua frente ameaçadores, obstruindo a passagem. Ruídos estranhos aterrorizam. Elevam-se clamores. Vociferam vozes: "Bate! Bate! Mata! Mata!" Assim ouves tais ruídos, pois as tuas atividades estúpidas fizeram-te surdo às verdades libertadoras que te são proclamadas. Não cedas ao medo que se apoderar de ti. Resiste à confusão que perturba o teu espírito. É irreal tudo quanto vês. Estás vendo o teu espírito cheio de pensamentos contraditórios. Giram em torno de ti as divindades de formas aterradoras: Shindjé shedpo, Tamdrin, Nam-pargyalwa, Dutsikyilwa. E também os Dakinis de faces irritadas com o aguilhão, o laço, a corrente e a campainha.

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Não tenhas medo. Não fujas. Essas figuras aterradoras são o aspecto oposto das faces benignas dos Budas e dos Bodisatvas, que já contemplaste. Elas emanam do teu próprio espírito, onde existem os seus dois aspectos. Acham-se em ti as cinco sabedorias. Estão em ti os cinco peixes [da sabedoria]. Em verdade, emanem do teu coração as luzes, brilhantes ou pálidas, que parecem irradiações em tua direção. O que estás vendo é apenas o reflexo do conteúdo do teu espírito. Se surgir em ti essa compreensão, provocando um choque terrível, sentirás fragmentar-se o corpo etéreo, que ainda arrastas, e estarás liberto. No entanto, as faculdades de que usufruis, graças a esse corpo sutil, podem agravar a tua ilusão. Se desejares ir a um lugar qualquer, ainda que esteja no fim do mundo, lá estarás, imediatamente. Mas, não te utilizes desse poder para percorreres lugares onde já estiveste, em companhia de seres aos quais te impele a sede das sensações passadas. Se não entendeste o sentido do que te foi ensinado, se não te utilizaste do conhecimento para te tornares livre, se ainda sentes desejo de existir com forma individual, tu não conseguirás fechar a grande abertura, extensa como um precipício, na ronda universal, onde são muitas as matrizes que podem te atrair. Tu te arriscas a seguir um dos caminhos iluminados por uma luz pálida, parecendo amistosa e repousante para a tua vista que não tolerou o brilho das claridades radiosas, que surgiram em tua estrada. Teus movimentos procedem da ilusão que ainda conservas, da realidade das imagens exteriores. Elas só existem dentro de ti, em teu apego ao complexo do teu "eu" e que se dispersará. Entre os raios multicores da luz, que envolve a sarabanda das divindades,

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ululantes, ameaçadoras, inquietas em redor de ti, há um raio branco, fino, que se estende até o infinito. Ele conduz à esfera dos deuses. Agarra-o, se puderes. Mas, se já repeliste o desejo da existência individual, na roda das existências, é melhor não o agarrares. Os lugares felizes são irreais, transitórios, como as bolhas de água na superfície do oceano. Surgem em nosso espírito como vagas de sensações. Depois, desfazem-se e ressurgem em novas sensações instáveis, agradáveis ou penosas, sucessivas, segundo a incessante atividade de energias diversas e contraditórias. Se as tuas tendências para o bem levarem-te por esse caminho de claridades pálidas, tu gozarás do repouso aonde ele conduz por algum tempo. Se foste invejoso, ambicioso, violento, se os teus últimos pensamentos introduziram-te no Bardo com um corpo sutil impregnado de influências agressivas, tu te sentirás atraído por um caminho de luz verde. Resiste ao teu impulso. O raio verde conduz ao mundo dos Lha-ma-yins. Estes combatem sempre os Lha, esforçam-se por escalar o espaço que os separa do mundo da tranquilidade e da felicidade. Sempre vencidos, insistem sempre na escalada. Afasta-te, se puderes. Talvez sejas atraído pelo raio cor de ouro-pálido, que se estende ao infinito. Esse é o caminho para o mundo dos homens, o mundo de onde vieste. Aí o homem sente raras alegrias, seguidas de muitos sofrimentos: a doença, a perda de bens, o falecimento do parente, os males da velhice, a agonia da morte, que o empurra para o Bardo, antecâmara dos renascimentos. Relembra as vicissitudes em tuas numerosas existências, deixa de desejar novas sensações, o sonho no mundo dos entes humanos. Não te apegues. Coloca-te no vazio da não-atração, da não-aversão. No estado da perfeita imobilidade do espírito. Quando o espírito estiver como o lago de águas sem a mínima ondulação, como o espelho perfeitamente polido, então a Realidade pode refletir-se nele. Se as tuas tendências à preguiça mental, à indiferença, alimentadas por tuas ações levaram-te a um raio azul-cinzento, resiste,

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afasta-te, se possível. Ele conduz ao infeliz mundo dos animais, incapazes de alcançarem o conhecimento libertador. Resiste! Resiste! Mais um esforço! O raio vermelho-escuro que te atrai conduzirá ao pavoroso mundo dos Mima-yins criaturas miseráveis e de formas horríveis, perpetuamente atormentadas por necessidades, que não podem ser satisfeitas por lhes faltarem os órgãos adequados. Lembra-te dos Budas, da sua Doutrina, dos Bodisatvas misericordiosos, do teu Deus tutelar e do teu sábio guru. As benéficas influências dos pensamentos que lhes são dirigidos poderão atenuar os efeitos de ações cometidas em existências anteriores, impedindo a tua entrada no caminho vermelho. Não longe de onde estás, vê-se um caminho escuro cheio de fumaça. É o que vai ter aos lugares onde predomina o sofrimento, o inferno, onde as permanências são muito longas, sendo rara a oportunidade da morte com um renasci-mento melhor. Evoca os Budas, os Bodisatvas. Lembra a irrealidade das visões que te aparecem, domina o teu espírito. Forma pensamentos caritativos para todos os seres. Não cedas ao temor. Os diversos raios-caminhos que viste emanam de ti. Eles e os mundos onde terminam só existem em ti. Expulsa os sentimentos de atração e de aversão. Permanece indiferente, calmo. Se estás sob o torpor mental a que te entregaste, durante a existência que deixaste há pouco; se estás entregue às ações maléficas que praticaste, sob o estímulo da ignorância e das tuas tendências más; se permaneces surdo a este ensinamento, desatento à fantasmagoria do Bardo, trata então agora de ouvir. Esse corpo sutil está impregnado dos teus desejos passados, sente uma sede ardente das sensações, cuja lembrança não cessa, sensações que agora não se renovam por lhes faltar um órgão. Tormento intolerável é o desejo de reencarnação. Esse desejo atormenta-te, sem saberes qual a sua natureza. Sentes esse desejo como sede ardente no caminho por um deserto. Vês adiante um chõrten ou vários, agrupados. Vês uma ponte com telhado e desejas descansar, abrigado sob a cobertura da ponte. Mas surgem seres monstruosos. Alguns têm cabeça de animal e corpo humano. Outros são pássaros gigantescos de asas com garras. Gritam, urram, agitam chicotes. Enquanto isso, sobrevém um furacão. És impelido para a frente e os seres demoníacos te perseguem, Nesse

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caminho, verás templos, palácios de ouro e de prata, ornados de pedras preciosas. Entra neles, se puderes. Esses palácios e templos são simbólicos, o umbral do mundo dos deuses, onde há um nascimento milagroso e puro, no centro de um botão de lótus que se abre. Se impelido por tuas ações passadas, prossegues por esse caminho, encontrarás um bosque verdejante e agradável. Dos galhos das árvores pendem frutos apetitosos. Gostarias de colher um desses frutos para acalmar a tua sede. Não faças isso! A paisagem que te parece um bosque é a matriz por onde renascerás no agitado mundo dos guerreiros Lha-ma-yins. Atravessarás planuras cobertas de vegetação, seca e espinhenta. Afasta-te! São as matrizes para os seres miseráveis, perpetuamente famélicos. Verás grutas, cavernas, algumas de aspecto agradável, oferecendo abrigos repousantes, e outras poeirentas e sombrias. Não entres em nenhuma delas! As primeiras são matrizes do mundo animal. Por elas, nós renascemos cavalo, búfalo, cachorro, lobo, urso, ave, peixe ou com qualquer outra forma animal. As outras são as matrizes por onde há os renascimentos entre os seres atormentados nos mundos infernais. Evita entrar aí! Verás um lago ou um rio cujas margens são campos férteis ensolarados. Gostarias de te sentares na margem relvosa, acalmar a sede com a água cristalina. Essa paisagem é a matriz por onde se nasce no mundo dos homens. Cuidado! Não cedas a esse desejo! Mas o corpo de matéria sutil em que te encontras agora, está sendo alfinetado pelas lembranças das sensações carnais, às quais te entregaste durante tua existência terrestre. Diante de ti, em redor de ti, animais e homens estão copulando. Sentes inveja. Se as tuas tendências te levam a renascer macho, sentirás forte aversão aos machos que estás vendo. Se as tuas tendências te levam a renascer fêmea,

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sentirás forte aversão às fêmeas que estás vendo. Não te aproximes desses casais, não tomes o lugar de um dos parceiros, seja de um macho, seja de uma fêmea, homem ou animal. Sentirias um desmaio e serias concebido em uma matriz como ser humano ou como animal. Se te afastaste, chegaste ao fim do teu longo sonho do Bardo. Estás agora diante de Chin Djé, o Senhor dos Mortos. É inútil mentires, dissimulares as más ações que praticaste. No espelho resplandecente do Juiz Supremo aparecem as formas de todas as tuas atividades mentais e físicas. Sendo assim, ouve ainda. Quaisquer que sejam as formas vistas no Bardo, elas são imagens oníricas, irreais, constituídas por ti mesmo, e que projetas sem reconhecê-las como tuas criações e que te atemorizam. O espelho em que Chin Djé parece estar vendo a tua personalidade é a tua memória, que te relembra a cadeia das tuas atividades passadas. Ele as julga, segundo as tuas concepções. Segundo as tuas tendências, irás pronunciar tua sentença e designar este ou aquele renascimento. Nenhum Deus terrível te impelirá. Tu mesmo decidirás. As formas dos seres terríveis, que tu vês agarrando-te, empurrando-te para um renascimento são aquelas formas de cuja força tu te revestes. Sabe ainda: Além das tuas alucinações, não há nem Senhor Juiz dos Mortos, nem deuses, nem demônios, nem o Vencedor da Morte, Djampal Shindjé gshéd (Yamantaka). Compreende isso e estarás liberto!

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Gregos e Romanos

A alma, por Epicuro A alma é corpórea, composta de partículas sutis, difusa por toda a estrutura corporal, muito semelhante a um sopro que contenha uma mistura de calor, semelhante um pouco a um e um pouco a outro, e também muito diferente deles pela sutileza das partículas, e também por este lado capaz de sentir-se mais em harmonia com o resto do organismo. Tudo isto manifestam as faculdades da alma, os afetos, os movimentos fáceis e os processos mentais, privados dos quais morre mos. E é necessário admitir que a alma leva em si causa principal das sensações, mas certamente estas se não produziriam se de algum modo não estivessem contidas no resto do organismo. E o resto do organismo, tendo preparado esta capacidade causal, participa ele próprio, por meio dela, de semelhante condição, mas não de todas as condições que ela adquire: por isso, quando a alma se separa do corpo, este perde a sensibilidade. Efetivamente não tinha em si esta faculdade, mas preparava-a para a outra, nascida juntamente com ele, a qual, posteriormente, pela faculdade nela desenvolvida por meio do movimento, desenvolvendo imediatamente para si a condição da sensibilidade, dava participação ao corpo, por contato e correspondência, como já disse. É por isso que a alma, enquanto permanece no corpo, nunca pode perder a sensibilidade, mesmo se desaparece alguma parte do corpo, enquanto persiste uma excitação à sensação, mesmo se desaparece também alguma faculdade da alma em virtude de uma destruição do corpo, quer no seu todo quer nas suas partes. O corpo, pelo contrário, mesmo que fique intato, quer no seu todo quer nas suas partes, deixa de possuir sensibilidade quando dele se afastou o princípio que retém unida a multidão dos átomos que constituem a natureza da alma. E, também, no entanto, verdadeiro dizer-se que, logo que se dissolve inteiramente o corpo. A alma se dissipa, e disseminada perde a sua força e os

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seus movimentos, de tal modo que também ela se torna insensível. Sobre o Deus distante, por Epicuro Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso: o que, do mesmo modo, é contrário a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto, nem sequer é Deus. Se pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos males? Por que razão é que não os impede? Deus na Metafísica, por Aristóteles É pois evidente que não a procuramos por qualquer outro interesse mas, da mesma maneira que chamamos homem livre a quem existe por si e não por outros, assim também esta ciência é, de todas, a única que é livre, pois só ela existe [ por si ]. E por tal razão, poderia justamente considerar-se mais que humana a sua aquisição. Por tantas formas é, na verdade, a natureza serva dos homens que, segundo Simônides, "Só Deus poderia gozar deste privilégio”, e não convém ao homem procurar uma ciência que lhe não está proporcionada. Se, como dizem os poetas, a divindade é por natureza invejosa, nisto sobretudo deveria ver-se o efeito, e todos os mais categorizados serem infelizes. Ora, nem é admissível que a divindade seja invejosa, e, segundo o provérbio, "os poetas dizem muitas mentiras", nem se pode admitir que haja outra ciência mais apreciável que esta. Com efeito, a mais divina é também a mais apreciável, e só em duas maneiras o pode ser: ou por ser possuída principalmente por Deus, ou por ter como objeto as coisas divinas. Ora, só a nossa ciência tem estas duas prerrogativas. Deus, com efeito, parece ser, para todos, a causa e princípio, e tal ciência só Deus, ou Deus principalmente, poderia possuí-la. Todas as outras são, pois, mais necessárias do que ela, mas nenhuma se lhe sobreleva em excelência. E o

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estado em que nos deve deixar a sua aquisição é inteiramente contrário ao do das primitivas indagações, pois, dissemos nós, todas começam pela admiração de como as coisas são: tais os autômatos, aos olhos daqueles que não examinaram ainda a causa, ou os solstícios, ou a incomensurabilidade do diâmetro: parece, de fato, maravilhoso para todos que haja uma quantidade não comensurável pela menor unidade [que se quiser]. Ora, nós devemos acabar, segundo o provérbio, pelo contrário e pelo melhor como acontece nestes [exemplos], desde que se conheçam [as causas]; nada, efetivamente, espantaria tanto um geômetra como o diâmetro tornar-se comensurável. Fica assim estabelecida a natureza da ciência que procuramos e também o fim que a nossa investigação e todo o tratado devem alcançar. A Constância do Sábio, por Sêneca Ninguém favorece nem desfavorece ao sábio porque as coisas divinas nem desejam ajuda nem temem prejuízo. Por sua vez, o sábio já está bem perto dos deuses. Com exceção da mortalidade, ele é semelhante a um deus. Com seu empenho em alcançar coisas excelsas, ordenadas e intrépidas que evoluem em um ritmo igual e harmonioso, tendo por objetivo coisas seguras, plausíveis, direcionadas para o bem comum, enquanto saudáveis tanto para ele como para os demais, então com nada de desprezível ele se defronta nem de coisa alguma sente carência. [...] Aquele que, com respaldo de sua racionalidade, atravessa pelas vicissitudes humanas, com ânimo divino, não abre espaço para acolher injúria. Pensas tu que só do lado dos homens não possa advir injúria? Garanto que nem sequer da parte da fortuna, já que essa sempre que se encontra com a virtude, nunca se iguala a ela. Se mesmo aquela prova máxima, além da qual não subsiste ameaça alguma, seja da parte de leis severas, seja da parte dos senhorios crudelíssimos, onde a fortuna encontra barreiras para seu império, nós a recebemos, de modo plácido e todo conformado, sabendo ser a morte não um mal e que por isso

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ela deixa de implicar injúria, então, com muito denodo, suportaremos todas as demais contrariedades, danos, dores, afrontas, lutas familiares e separações. Todas essas coisas, ainda que assediem o sábio, não o afogam porque tais ocorrências não o entristecem, mesmo quando agridem com assaltos sucessivos. Posto que o sábio tolera, com controle, as injúrias oriundas da fortuna, quanto mais então irá suportar as originadas de homens prepotentes que são meros instrumentos dela. O Sentido da Vida, nas Meditações de Marco Aurélio Começa cada dia por dizer a ti próprio: Hoje vou deparar com a intromissão, a ingratidão, a insolência, a deslealdade, a má-vontade e o egoísmo — todos devidos à ignorância por parte do ofensor sobre o que é o bem e o mal. Mas, pela minha parte, já há muito percebi a natureza do bem e a sua nobreza, a natureza do mal e a sua mesquinhez, e também a natureza do próprio culpado, que é meu irmão (não no sentido físico, mas como meu semelhante, igualmente dotado de razão e de uma parcela do divino); portanto nenhuma destas coisas me ofende, porque ninguém pode envolverme naquilo que é degradante. Nem eu posso ficar zangado com o meu irmão ou entrar em conflito com ele; porque ele e eu nascemos para trabalhar juntos, como, de um homem, as duas mãos, os dois pés, as duas pálpebras ou os dentes de cima e de baixo. Criar dificuldades uns aos outros é contra as leis da Natureza — e o que é a irritação, ou a aversão, senão uma forma de criar dificuldades aos outros? Um pouco de matéria, um pouco de respiração e uma Razão para tudo dirigir — isto sou eu. (Esquece os teus livros; deixa de suspirar por eles; não faziam parte do teu equipamento.) Como alguém já à beira da morte, não penses na primeira — no seu sangue viscoso, nos seus ossos, na sua teia de nervos e veias e artérias. E a respiração, o que é? Uma lufada de ar; e nem sequer o mesmo ar, mas, antes, sempre diferente a cada inspiração e

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expiração. Mas a terceira, a Razão, a mestra — é nela que te deves concentrar. Agora que o teu cabelo já está grisalho, não deixes mais que ela tenha um papel de escrava, que se contorça, qual marioneta, a cada acesso de interesse pessoal; e deixa de te exasperares com o destino, resmungando com o hoje e queixando-te do amanhã. Toda a organização divina está impregnada da Providência. Mesmo os caprichos do acaso têm o seu lugar no esquema da Natureza, isto é, no intricado tecido das disposições da Providência. A Providência é a fonte donde fluem todas as coisas; e a ela aliada, está a Necessidade, e o bem-estar do universo. Tu próprio és parte do universo; e para qualquer das partes da natureza, aquilo que lhe é atribuído pelo Mundo-Natureza, ou a ajuda a existir, é bom. Além disso, o que mantém todo o mundo em existência é a Mudança: não meramente a mudança dos elementos básicos, mas também a mudança das formações maiores que elas compõem. Contenta-te com estes pensamentos, e considerados sempre como princípios. Esquece a tua sede de livros, para que, quando o teu fim chegar não resmungues, mas o encares com boa vontade e verdadeira gratidão aos deuses. Pensa nos teus muitos anos de adiamento; como os deuses repetidamente te proporcionaram mais períodos de graça que não aproveitaste. Está na altura de te dares conta da natureza do universo a que pertences, e da daquele poder controlador de que és filho; e de compreenderes que o teu tempo tem um limite. Usa-o, portanto, para avançares no teu esclarecimento, senão ele vai-se e nunca mais voltará a estar de novo em teu poder.

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Israel

A efemeridade da vida, no Livro da Sabedoria de Salomão Dizem entre si os ignóbeis, em seus falsos raciocínios: “Curto é o tempo de nossa vida e cheio de tédio, e não há alívio quando chega o fim. Aliás, não se conhece ninguém que tenha voltado do mundo dos mortos”. “De repente nascemos, e logo passaremos, como quem não existiu. Fumaça é a respiração em nossas narinas e o pensamento, uma centelha ao pulsar do coração: quando ela se apaga, nosso corpo se tornará cinza e o espírito se dispersará como o ar inconsistente”. “Com o tempo, nosso nome cairá no esquecimento e ninguém se lembrará de nossas obras; nossa vida passará como os traços de uma nuvem, e se dissipará como a neblina expulsa pelos raios do sol, abatida por seu calor”. “Nossa vida é a passagem de uma sombra e nosso fim, irreversível: uma vez lacrada a porta, ninguém volta”. “Agora, portanto, gozemos dos bens presentes, e aproveitemos das criaturas com ânsia juvenil. Embriaguemos-nos com o melhor vinho e com perfumes, e não deixemos passar a flor da primavera. Coroemos-nos com botões de rosas, antes que murchem, e nenhum prado fique sem provar da nossa orgia. Deixemos por toda parte sinais de alegria, pois esta é a nossa parte, esta, a nossa sorte”. “Oprimamos o justo pobre e não poupemos a viúva, nem respeitemos os cabelos brancos do ancião. Que a nossa força seja a lei da justiça, pois o que é fraco é reconhecidamente inútil”. [...]

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Estes são os seus pensamentos, mas enganam-se porque os cega a sua malícia. Ignoram os desígnios secretos de Deus, não esperam a recompensa da piedade e não acreditam no prêmio reservado às almas simples. A verdadeira Sabedoria, no Livro da sabedoria de Salomão A Sabedoria é luminosa e nunca murcha. Facilmente é contemplada por aqueles que a amam, e é encontrada pelos que a procuram. Ela até se antecipa, apressando-se a mostrar-se aos que a desejam. Quem por ela madruga não se cansa, pois a encontrará sentada à porta. Meditar sobre ela é a perfeição do bom senso, e quem ficar acordado por causa dela em breve estará seguro. Pois ela mesma sai à procura dos que dela são dignos; cheia de bondade, mostra-se a eles nos caminhos e, em cada projeto, vai ao seu encontro. O princípio da Sabedoria é o mais sincero desejo da instrução; a preocupação pela instrução é o amor; o amor é a observância de suas leis; a observância das leis é garantia de incorruptibilidade, e a incorruptibilidade faz estar junto de Deus.Assim, o desejo da Sabedoria conduz ao Reino. O que é a sabedoria? Livro da Sabedoria de Salomão Há nela um espírito inteligente, santo, único, múltiplo, sutil, móvel, perspicaz, imaculado, lúcido, invulnerável, amante do bem, penetrante, incoercível, benfazejo, amigo dos homens, benigno, constante, certeiro, seguro, que tudo pode, que tudo supervisiona, que penetra todos os espíritos, os inteligentes, os puros, os mais sutis. Pois a Sabedoria é mais ágil que qualquer movimento, e atravessa e penetra tudo por causa da sua pureza. Ela é o sopro do poder de Deus, uma emanação pura da glória do TodoPoderoso. Por isso, nada de impuro pode introduzir-se nela: ela é reflexo da

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luz eterna, espelho sem mancha do poder de Deus e imagem da sua bondade. Embora sendo uma só, tudo pode; permanecendo imutável, renova tudo; e comunicando-se às almas santas através das gerações, forma os amigos de Deus e os profetas. Pois Deus ama tão somente aquele que convive com a Sabedoria. De fato, ela é mais bela que o sol e supera todas as constelações. Comparada à luz, ela é mais brilhante: pois à luz sucede a noite, ao passo que, contra a Sabedoria, o mal não prevalece.

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Cristianismo

O Sermão da Montanha, por Mateus E Jesus, vendo a multidão, subiu a um monte, e, assentando-se, aproximaram-se dele os seus discípulos; E, abrindo a sua boca, os ensinava, dizendo: Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus; Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados; Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra; Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos; Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia; Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus; Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus; Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus; Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por minha causa. Exultai e alegrai-vos, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram os profetas que foram antes de vós. Vós sois o sal da terra; e se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais presta senão para se lançar fora, e ser pisado pelos homens. Vós sois a luz do mundo; não se pode esconder uma cidade edificada sobre um monte; Nem se acende a candeia e se coloca debaixo do alqueire, mas no velador, e dá luz a todos que estão na casa. Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus. Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim abrogar, mas

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cumprir. Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um til jamais passará da lei, sem que tudo seja cumprido. Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus. Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus. Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar será réu de juízo. Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do inferno. Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, Deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois, vem e apresenta a tua oferta. Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e te encerrem na prisão. Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil. Ouvistes que foi dito aos antigos: Não cometerás adultério. Eu, porém, vos digo, que qualquer que atentar numa mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela. Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. E, se a tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe de ti, porque te é melhor que um dos teus membros se perca do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. Também foi dito: Qualquer que deixar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio.

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Eu, porém, vos digo que qualquer que repudiar sua mulher, a não ser por causa de fornicação, faz que ela cometa adultério, e qualquer que casar com a repudiada comete adultério. Outrossim, ouvistes que foi dito aos antigos: Não perjurarás, mas cumprirás os teus juramentos ao Senhor. Eu, porém, vos digo que de maneira nenhuma jureis; nem pelo céu, porque é o trono de Deus; Nem pela terra, porque é o escabelo de seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei; Nem jurarás pela tua cabeça, porque não podes tornar um cabelo branco ou preto. Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna. Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; E, ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; E, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pedir, e não te desvies daquele que quiser que lhe emprestes. Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus; Porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos. Pois, se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes unicamente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os publicanos também assim? Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus.

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[...] Guardai-vos de fazer a vossa esmola diante dos homens, para serdes vistos por eles; aliás, não tereis galardão junto de vosso Pai, que está nos céus. Quando, pois, deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão. Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita; Para que a tua esmola seja dada em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, ele mesmo te recompensará publicamente. E, quando orares, não sejas como os hipócritas; pois se comprazem em orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão. Mas tu, quando orares, entra no teu aposento e, fechando a tua porta, ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará publicamente. E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios, que pensam que por muito falarem serão ouvidos. Não vos assemelheis, pois, a eles; porque vosso Pai sabe o que vos é necessário, antes de vós lho pedirdes. Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome; Venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu; O pão nosso de cada dia nos dá hoje; E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores; E não nos conduzas à tentação; mas livra-nos do mal; porque teu é o reino, e o poder, e a glória, para sempre. Amém. Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celestial vos perdoará a vós; Se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai

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vos não perdoará as vossas ofensas. E, quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os hipócritas; porque desfiguram os seus rostos, para que aos homens pareça que jejuam. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão. Tu, porém, quando jejuares, unge a tua cabeça, e lava o teu rosto, Para não pareceres aos homens que jejuas, mas a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará publicamente. Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam; Mas ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam. Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração. A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz; Se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti há são trevas, quão grandes serão tais trevas! Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom. Por isso vos digo: Não andeis cuidadosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer ou pelo que haveis de beber; nem quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o mantimento, e o corpo mais do que o vestuário? Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas? E qual de vós poderá, com todos os seus cuidados, acrescentar um côvado à sua estatura? E, quanto ao vestuário, por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam; E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles.

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Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe, e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá muito mais a vós, homens de pouca fé? Não andeis, pois, inquietos, dizendo: Que comeremos, ou que beberemos, ou com que nos vestiremos? Porque todas estas coisas os gentios procuram. Decerto vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas estas coisas; Mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal. Um guia para a Salvação, no Evangelho de Tomé Jesus disse: “Se aqueles que vos guiam vos disserem, ‘Vede, o Reino está no céu’, então os pássaros do céu preceder-vos-ão. Se vos disserem ‘está no mar’, então os peixes preceder-vos-ão. Mas o Reino está dentro de vós e fora de vós. Quando vos conhecerdes a vós mesmos, então sereis conhecidos e compreendereis que sois vós os filhos do Pai vivo. Mas se não vos conhecerdes, então vivereis na pobreza e sereis a pobreza.” Jesus disse: “Este céu passará, e aquele que está acima dele passará. Os mortos não estão vivos e os vivos não morrerão. Nos dias em que comestes o que estava morto, vós o tornastes vivo. Quando estiverdes na luz, que fareis? No dia em que fostes um, tornaste-vos dois. Mas quando vos tornardes dois, que fareis?” Jesus disse: “Ama o teu irmão como a tua própria alma, protege-o como à pupila dos teus olhos.” Feliz do homem que foi submetido à prova – porque ele achou a vida. Disse Jesus: Eu sou a luz, que está acima de todos. Eu sou o “Todo”. O Todo

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saiu de mim, e o Todo voltou a mim. Rachai a madeira – lá estou eu. Erguei a pedra – lá me achareis. Quem ficou rico, saiba dominar-se; quem ficou poderoso, saiba renunciar. Disseram-lhe eles: Dize-nos quem és tu, para que tenhamos fé em ti. Respondeu-lhes ele: Vós examinais o aspecto do céu e da terra, mas não conheceis aquele que está diante de vós. Não sabeis dar valor ao tempo presente. Disse Jesus: Procurai, e achareis. O que me perguntastes nesses dias, eu não vos disse; agora vos digo – e não me perguntais. Disse Jesus: Deplorável a carne que depende da alma! Deplorável a alma que depende da carne! Os discípulos perguntaram-lhe: Em que dia vem o Reino? Jesus respondeu: Não vem pelo fato de alguém esperar por ele; nem se pode dizer ei-lo aqui! Ei-lo acolá! O Reino está presente no mundo inteiro, mas os homens não o enxergam.

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Islamismo

Deus, único e verdadeiro, no Alcorão Dize-lhes: Se, como dize, houvesse, juntamente com Ele, outros deuses, teriam tratado de encontrar um meio de contrapor-se ao Soberano do Trono. Glorificado e sublimemente exaltado seja Ele, por tudo quanto blasfemam! Os setes céus, a terra, e tudo quanto neles existe glorificam-No. Nada existe que não glorifique os Seus louvores! Porém, não compreendeis as suas glorificações. Sabei que Ele é Tolerante, Indulgentíssimo. E, quando recitas o Alcorão, interpomos um véu Invisível entre ti e aqueles que não creem na outra vida. E sigilamos os corações para que não o compreendessem, e ensurdecemos os seus ouvidos. E, quando, no Alcorão, mencionas unicamente teu Senhor, voltam-te as costas desdenhosamente. Sabemos, melhor do que ninguém, quando vêm escutar-te e porque o fazem; e quando se encontram em confidência, os iníquos dizem: Não seguis senão um homem enfeitiçado! Olha com o que te comparam! Porém, assim se desviam, e nunca encontrarão senda alguma. Dizem: Quê! Quando estivermos reduzidos a ossos e pó, seremos, acaso reencarnados em uma nova criação? Dize-lhes: Ainda que fôsseis pedras ou ferro, Ou qualquer outra criação inconcebível às vossas mentes (seríeis ressuscitados). Perguntarão, então: Quem nos ressuscitará? Respondeu-lhes: Quem vos criou da primeira vez! Então, meneando a cabeça, dirão: Quando ocorrerá isso? Responde-lhes: Talvez seja logo! Será no dia em que Ele vos chamar e em que vós O atendereis, glorificando

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os Seus louvores; e vos parecerá que não permanecestes ali senão pouco tempo. E dize aos Meus servos que digam sempre o melhor, porque Satanás causa dissensões entre eles, pois Satanás é um inimigo declarado do homem. Vosso Senhor vos conhece melhor do que ninguém. Se Lhe apraz, apieda-Se de vós e, se quer, castiga-vos. Não te enviamos como guardião deles. Teu Senhor conhece melhor do que ninguém aqueles que estão nos céus e na terra. Temos preferido a uns profetas sobre outros, e concedemos os Salmos a Davi. Dize-lhes: Invocai os que pretendeis em vez d’Ele! Porém não poderão vos livrar das adversidades, nem as modificar. Aqueles que invocam anseiam por um meio que os aproxime do seu Senhor e esperam a Sua misericórdia e temem o Seu castigo, porque o castigo do teu Senhor é temível! Não existe cidade alguma que não destruiremos antes do Dia da Ressurreição ou que não a castigaremos severamente; isto está registrado no Livro. A viagem Noturna, no Alcorão Temos exposto neste Alcorão toda a sorte de exemplos para os humanos, porém, a maioria dos humanos o nega. E dizem: Não creremos em ti, a menos que nos faças brotar um manancial da terra, Ou que possuas um jardim de tamareiras e videiras, em meio ao qual faças brotar rios abundantes. Ou que faças cair o céu em pedaços sobre nós, como disseste (que aconteceria), ou nos apresentes Deus e os anhos em pessoa,

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Ou que possuas uma casa adornada com ouro, ou que escales o céus, pois jamais creremos na tua ascensão, até que nos apresentes um livro que possamos ler. Dize-lhes: Glorificado seja o meu Senhor! Sou, porventura, algo mais do que um Mensageiro humano? Que foi que impediu os humanos de crerem, quando lhes chegou a orientação? Disseram: Acaso, Deus teria enviado por Mensageiro um mortal? Responde-lhes: Se na terra houvesse anjos, que caminhassem tranquilos, Ter-lhes-íamos enviado do céu um anjo por mensageiro. Dize-lhes: Basta-me Deus por Testemunha, entre vós e mim, porque Ele está bem inteirado de Seus servos e é Onividente. Aquele que Deus encaminhar estará bem encaminhado; e àqueles que deixar que se extraviem, jamais lhes encontrarás protetor, em vez d’Ele. No Dia da Ressurreição os congregaremos, prostrados sobre os seus rostos, cegos, surdos e mudos; o inferno será a sua morada e, toda a vez que se extinguir a sua chama, avivá-la-emos. Isso será o seu castigo, porque negam os Nosso versículos e dizem: Quê! Quando estivermos reduzidos a ossos e pó, seremos, acaso, reencarnados em uma nova criação? Não reparam em que Deus, Que criou os céus e a terra, é capaz de criar outros seres semelhantes a eles, e fixar-lhes um destino indubitável? Porém, os iníquos negam tudo.

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Hadiths (tradições) Narrou 'Abdullah bin' Amr: O Profeta disse: "Aquele que tem os quatro seguintes (características) será um hipócrita puro e quem tiver um das seguintes quatro características terá uma característica de hipocrisia, a menos e até que ele a mude. 1. Sempre que lhe é confiado, ele trai. 2. Sempre que ele fala, ele conta uma mentira. 3. Sempre que ele faz uma aliança, ele prova ser traiçoeiro. 4. Sempre que ele briga, ele se comporta de uma maneira muito imprudente, mal e insultante.” Abu Huraira: O Apóstolo de Deus disse: "Quem faz as orações durante as noites do Ramadã fielmente, com fé sincera e esperando alcançar recompensas de Allah (e não para se exibir), todos os seus pecados serão perdoados." Abu Huraira: O Profeta disse: "A religião é muito fácil, e quem se sobrecarrega em sua religião não será capaz de continuar nesse caminho. Então, você não deve ser extremista, mas tente estar perto da perfeição e receber as boas novas de que você será recompensado e ganhar força adorando nas manhãs e as noites ".

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Yorubá

Olufin-Odudua cria o mundo em lugar de Oxalá Olodumaré, o Deus Supremo, residia no além. No além de um mundo que não exista ainda. Ele aí vivia arrodeado de seiscentos Imalés, as divindades criadas por ele. Duzentos Imalés permaneciam a sua direita. Quatrocentos Imalés permaneciam à sua esquerda. Dos primeiros, pouco falaremos. Eles eram maus, orgulhosos, desleais e mentirosos. Eles discutiam e lutavam sem parar. Olodumaré não tinha mais um minuto de descanso. Num instante de impaciência e de cólera, ele devolveu ao nada todos os Imalés da direita. Todos, menos Ogum. Ogum, o valente guerreiro. O homem louco dos músculos de aço que, tendo água em casa, lava-se com sangue! E o colocou como guia dos quatrocentos Imalés da esquerda. Um dia deste passado longínquo, Olodumaré os convocou e disse: “Eu vou criar um outro lugar. Um lugar que será para vocês. Vocês, aí, serão numerosos. Cada um será um chefe e terá um lugar para si. Cada um terá seu poder e seu trabalho próprios.” Deu a todos o que necessitariam e criou, com perfeição, tudo o que prometera.

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Olodumaré reúne, então, num só lugar, Os quatrocentos e um Imáles. Orunmilá Eleri-Ipin, o testemunho do destino, Mantém-se a seu lado. Todos os Imalés deverão pedir-lhe a palavra. Ele mostrará, a cada um deles, o caminho a seguir. O primeiro a responder é Obatalá, o rei do pano branco, Chamado também Oxalá, o “Grande Orixá”. Ele é a segunda pessoa de Olodumaré. É a ele que Olodumaré encarrega de criar o mundo, E lhe dá os poderes (abá e axé) do mundo (é por esta razão que é saudado com a expressão” Alabalaxé”). Obatalá os examina, coloca um sob o boné E o outro dentro do seu saco. O saco da criação, que Olodumaré lhe confia. Antes de partir, ela vai a Orunmilá pedir-lhe a palavra, O caminho que ele deverá seguir e o que deverá fazer. Orunmilá lhe diz: “Olodumaré lhe confiou à criação de um outro lugar. Faça uma oferenda para ser capaz de realizá-la e para que a realize com perfeição.” Obatalá, que é muito obstinado, respondeu: “Oh, Orunmilá! A missão que tens, nós te demos, foi por nós decidido, antes que fosses criado! Olodumaré e eu, Oxalá! Olodumaré, que é Deus Supremo, me envie em missão. Eu, sua segunda pessoa. Tu, Orunmilá, me dizes agora, que devo fazer oferendas, para ser capaz de realizar meu trabalho com sucesso! Que acontecerá se não faço oferendas?

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Oferendas para a missão que vou realizar? Eu, portador do poder (abá e axé), Alabalaxé! Mas, por quê? Que necessidade de fazer oferendas?” Obatalá contradiz Orunmilá. Ele tapa os ouvidos, recusando-se a escutar, e não faz as oferendas. Todos os outros Imalés vão consultar Orunmilá. Este escolhe, para cada um deles, uma oferenda determinada. Olofin- Odudua é o que mais se evidencia. É uma espécie de obatalá. As ele não tem posição nem reputação comparáveis a de Oxalá. Orunmilá responde: “Si tu fores capaz de fazer a oferenda que vou indicar, este mundo que criarei, ele será teu. Lá, tu serás o chefe!” Olofin pergunta qual é a oferenda. Orunmilá lhe diz que ofereça quatrocentas mil correntes. Que ofereça, ainda, quatrocentos mil búzios. Olofin-Odudua faz a oferenda completa. Chegou o dia de criar o mundo. Obatalá chama todos os outros Imalés. Eles começam a caminhar e se vão. Já na estrada, eles chegam à fronteira do além. Exu é o guardião (onibode) desta fronteira E o mensageiro dos outros deuses. Obatalá recusa-se a fazer oferendas neste lugar, Para que a viagem seja feliz. Exu aponta uma cabacinha mágica para Obatalá. A sede começa a atormentá-lo. Ele vê um dendezeiro. Agita seu cajado de estanho (oparaxô)

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e se serve dele para perfumar o tronco da palmeira. O vinho escorre copiosamente. Oxalá se aproxima e bebe a vontade. Ele está plenamente satisfeito, mas fica embriagado. Ele não sabe em que lugar está, nem o que faz. O sono o invade e ele adormece a beira da estrada. Dorme profundamente e ronca. Todos os outros Imalés sentam-se à sua volta. Respeitosamente, eles não ousam acordá-lo. Esperam que ele acorde espontaneamente. De repente, Olofin – Odudua levanta-se e Apanha o saco da criação, caída ao lado Obatalá. Ele volta a Olodumaré e diz: “A pessoa que fizeste nosso chefe, Aquele a quem entregaste o poder de criar, Bebe muito vinho de dendê, Ele perdeu o saco da criação. Eu o trouxe de volta!” Olodumaré responde: “Ah! Se assim é, Tu que encontraste o saco da criação, toma-o, vá criar o mundo! Então, Olofin-Odudua volta aos Imáles reunidos. Toma as quatrocentas mil correntes e, Ainda no além, amarra-as a uma estaca. Ele desce até a extremidade da última corrente, De onde vê uma extensão d’agua sem limites. Ele abre o saco da criação. Escorre daí uma substância estranha de cor marrom. Esta substância forma um montículo na superfície da água. É terra! A galinha de cinco garras voa e

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Vai pousar sobre o montículo. Ela cisca a terra e a espalha sobre a superfície das águas. A terra se forma e vai se alargando cada vez mais. Odudua grita: “Ilé nfé!” (“a terra se expande”), que veio a ser o nome da cidade santa de Ilê Ifé. Olofin-Odudua coloca o camaleão da oferenda sobre a terra. Este anda sobre ela com passos cautelosos. Odudua só Ousa descer Porque está atado na ponta da corrente. A terra reside e ele a caminha. Seu olhar não pode alcançar os limites. Todos os outros Imalés estão ainda no além. Odudua os convida a descer sobre a terra. Apenas alguns deles o seguem; Os demais permanecem sentados à volta de Obatalá adormecido. Obatalá acorda, enfim. Ele constata que o saco da criação lhe foi roubado. “Ah! Quem ousou fazer este furto?.” Ele entende o que ocorreu. Encolerizado, Obatalá volta a Olodumaré e se queixa do roubo do qual foi vítima. Olodumaré lhe pergunta: “Que fizeste para adormecer assim?” As pessoas desta época não mentiam jamais. Obatalá, responde com sinceridade: “Eu vi uma palmeira de dendê, Furei o seu tronco com o meu opaxarô. Deste furo começou a sair água. Dela eu tomei e me adormeci.” “Ah! Diz Olodumaré,” não beba mais, nunca mais, desta água.

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O que fizeste foi grave!” Por esta razão, o vinho de dendê é proibido a Oxalá E a seus descendentes até hoje em dia. Olodumaré declarou: “Não tenho criado a terra, tu criarás todos os seres vivos: os homens, os animais, os pássaros e as árvores.”

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Tupi

O primeiro Kuarup, a festa dos mortos Mavutsinim queria que os seus mortos voltassem à vida. Foi para o mato, cortou três toros da madeira de kuarup, levou para a aldeia e os pintou. Depois de pintar, adornou os paus com penachos, colares, fios de algodão e braçadeiras de penas de arara. Feito isso, mavutsinim mandou que fincassem os paus na praça da aldeia, chamando em seguida o sapo cururu e a cutia (dois de cada), para cantar junto dos Kuarup. Na mesma ocasião levou para o meio da aldeia, peixes e beijus para serem distribuídos entre o seu pessoal. Os maracá-êp (cantadores), sacudindo os chocalhos na mão direita, cantavam sem cessar em frente dos kuarup, chamando-os à vida. Os homens da aldeia perguntavam a Mavutsinim se os paus iam mesmo se transformar em gente, ou se continuariam sempre de madeira com eram. Mavutsinim respondia que não, que os paus de kuarup iam se transformar em gente, andar como gente e viver como gente vive. Depois de comer os peixes, o pessoal começou a se pintar, e a dar gritos enquanto fazia isso. Todos gritavam. Só os maracá-êp é que cantavam. No meio do dia terminaram os cantos. O pessoal, então, quis chorar os kuarup, que representavam os seus mortos, mas Mavutsinim não permitiu, dizendo que eles, os kuarup, iam virar gente, e por isso não podiam ser chorados. Na manhã do segundo dia Mavutsinim não deixou que o pessoal visse os kuarup. "Ninguém pode ver" - dizia ele. A todo momento Mavutsinim repetia isso. O pessoal tinha que esperar. No meio da noite desse segundo dia os toros de pau começaram a se mexer um pouco. Os cintos de fios de algodão e as braçadeiras de penas tremiam também. As penas mexiam como se tivessem sendo sacudidas pelo vento.

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Os paus estavam querendo transformar-se em gente. Mavutsinim continuava recomendando ao pessoal para que não olhasse. Era preciso esperar. Os cantadores - os cururus e as cutias - quando os kuarup começaram, a dar sinal de vida cantaram para que se fossem banhar logo que vivessem. Os troncos se mexiam para sair dos buracos onde estavam plantados, queriam sair para fora. Quando o dia principiou a clarear, os kuarup do meio para cima já estavam tomando forma de gente, aparecendo os braços, o peito e a cabeça. A metade de baixo continuava pau ainda. Mavutsinim continuava pedindo que esperassem, que não fossem ver. "Espera... espera... espera" - dizia sem parar. O sol começava a nascer. Os cantadores não paravam de cantar. Os braços dos kuarup estavam crescendo. Uma das pernas já tinha criado carne. A outra continuava pau ainda. No meio do dia os paus começavam a virar gente de verdade. Todos se mexiam dentro dos buracos, já mais gente do que madeira. Mavutsinim mandou fechar todas as portas, só ele ficou de fora, junto dos kuarup. Só ele podia vê-los, ninguém mais. Quando estava quase completa a transformação de pau para gente, Mavutsinim mandou que o pessoal saísse das casas para gritar, fazer barulho, promover alegria, rir alto junto dos kuarup. O pessoal, então, começou a sair de dentro das casas. Mavutsinim recomendava que não saíssem aqueles que durante a noite tiveram relação sexual com as mulheres. Um, apenas, tinha tido relações. Este ficou dentro da casa. Mas não aguentando a curiosidade, saiu depois. No mesmo instante, os kuarup pararam de se mexer e voltaram a ser pau outra vez. Mavutsinim ficou bravo com o moço que não atendeu à sua ordem. Zangou muito, dizendo: - O que eu queria era fazer os mortos viverem de novo. Se o que deitou com mulher não tivesse saído de casa, os kuarup teriam virado gente, os mortos voltariam a viver toda vez que se fizesse kuarup. Mavutsinim, depois de zagar, sentenciou: - Está bem. Agora vai ser sempre assim. Os mortos não reviverão mais quando se fizer kuarup. Agora vai ser só festa. Mavutsinim

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depois mandou que retirassem dos buracos os toros de kuarup. O pessoal quis tirar os enfeites, mas Mavutsinim não deixou. "Tem que ficar assim mesmo", disse. E em seguida mandou que os lançassem na água ou no interior da mata. Não se sabe onde foram largados, mas estão até hoje lá, no Morená.

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Referências Mesopotâmia: Epopéia de Gilgamesh. São Paulo: Martins Fontes, Enuma Elish: http://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/enelish.html Egito: Textos sagrados das pirâmides. Rio de Janeiro: Livros do Mundo Inteiro, 1972. [trad. Raul Xavier] Pérsia: Os Santos Cânticos de Zaratustra. Ebook, 2013. [trad. Luciano Andress Martini & Cibelli Teixeira] Índia: Rig Veda e Bhagavad Gita: O Hinduísmo. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. [trad. Louis Renou] Milinda Panha. Rio de Janeiro: Livros do Mundo Inteiro, 1974. [trad. Raul Xavier] China: Memórias da Cultura: Lin Yutang, A sabedoria de Confúcio. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. Wen-tzu: a compreensão dos mistérios. Brasília: teosófica, 2009. [trad. Thomas Cleary] Zhuangzi: Lin Yutang, Sabedoria de Índia e China. Rio de Janeiro: Ponguetti, 1958. Lankavatara Sutra: http://www.amentemente.com/Textos/O%20Lankavatara%20Sutra.html

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Japão: Máxima do Xintoísmo: Joseph Gaer, A sabedoria das grandes religiões. São Paulo: Cultrix, 1969. Tibete: Textos sagrados do Tibete. Rio de Janeiro: Livros do Mundo Inteiro, 1974. [trad. Raul Xavier] Gregos e Romanos: Da coleção ‘Os Pensadores’, 1978. Meditações: http://www.psb40.org.br/bib/b34.pdf Judaísmo: Livro da Sabedoria de Salomão: http://www.capuchinhos.org/biblia/index.php?title=Sabedoria Cristianismo: Evangelho de Mateus: http://www.capuchinhos.org/biblia/index.php?title=Evangelho_de_S%C3% A3o_Mateus Evangelho de Tomé: http://www.anna-kingsford.com/portugues/Biblias_Abertas/OB-PEvangelho-Tome.htm Islamismo: Alcorão: http://www.culturabrasil.org/zip/alcorao.pdf Yorubá: Pierre Verger, Lendas africanas das origens. Salvador: Corrupio, 1997. Tupi: http://www.estadao.com.br/ext/especial/villasboas/ [Especial Orlando Villas Boas]

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