PEDRAS NO CAMINHO. ARTE COMO ACONTECIMENTO IROKO NA CIDADE.

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Sanches, T. e Galindo, D. Pedras no caminho. Arte como acontecimento Iroko na cidade. Capítulo remetido para livro organizado por Maria Thereza Azevedo. Mimeo.

Pedras no caminho: arte como acontecimento Iroko na cidade

Thiago Cardassi Sanches Dolores Galindo

“Podemos olhar; [mas] olhar não é ver” [Fernand Deligny]

Fig.1 - Pedras pintadas à mão pela artista Cristina Silva

Fig.2 – Pé de Iroko, terreiro de candomblé, sem data.

Sanches, T. e Galindo, D. Pedras no caminho. Arte como acontecimento Iroko na cidade. Capítulo remetido para livro organizado por Maria Thereza Azevedo. Mimeo. Este é um ensaio1 sobre Pedras no Caminho, trabalho artístico desenvolvido no contexto do projeto 100em1dia organizado pelo Coletivo à Deriva em Cuiabá, 2015. Nosso objetivo é abordar a potência das pedras dispostas sobre o território urbano para pensar como uma intervenção desta ordem pode constituir um acontecimento capaz de tramar redes de afecção que convidam os vagantes a enxergar a cidade a partir das diferenças produzidas ao invés da repetição e obviedade do cotidiano. Para isso, não sugerimos interpretações nem reivindicamos o despotismo do significado para referir ao dispositivo. Tal qual como recomenda Deleuze (1992), desejamos experimentá-lo, com a parte que nos cabe enquanto aquelas que apenas caminham. Quando andamos pela cidade, nós nos deparamos com toda sorte de objetos, paisagens, sons, outros corpos. Sejam lá quais forem os tipos encontrados, uma coisa é certa: é sempre diante de imagens que nos deparamos de imediato. Imagens visuais ou acústicas, são elas que se interpõem à nossa frente, nos rodeiam, mobilizam, provocam, agem e reagem entre si, dançam diante de nós. O próprio corpo andarilho constitui-se apenas enquanto mais uma imagem entre todas as outras. E com elas interage e brinca. Relaciona-se. Conjuga. Ama-as ou as detesta conforme a potência de afecção com que elas tocam o corpo. Pensar o dispositivo atuante num mundo composto por imagens, com densidade material e espectral, auxilia a abordar um trabalho como Pedras no Caminho sob uma perspectiva que não teme endereçar questões à imagem como afecção, ela também material. Um olhar menos colonialista e com mais possibilidades de criação de mundos advém quando nos conjugamos aos modos de ser e conhecer de origem afro-brasileira que entendem as

O presente ensaio emergiu a partir das discussões na disciplina “Tópicos especiais em poéticas contemporâneas: estéticas emergentes na cidade”, que se dedicava à análise das práticas artísticas em espaços urbanos e suas manifestações estético-performáticas e das discussões no Laboratório Tecnologias Ciências e Criação, ambos do Programa de PósGraduação em Estudos de Cultura Contemporânea PPGECCO UFMT. As discussões nos dois espaços permitem contemplar camadas de composição ao tecido urbano traçando vetores diversos de produção de singularidades e planos para composição de territórios para modos de existência na cidade que escapam ao controle urbanístico. 1

Sanches, T. e Galindo, D. Pedras no caminho. Arte como acontecimento Iroko na cidade. Capítulo remetido para livro organizado por Maria Thereza Azevedo. Mimeo. pedras para além de um simples suporte de sentido, dotando-as, sem medo, de propriedades de afecção. Em Henri Bergson, Maurizio Lazzarato, Gilles Deleuze e Félix Guattari, encontramos as provocações necessárias para intuir este texto e colocar nossos questionamentos em conexão com afroperspectividade como vem sendo pensada no Brasil por Renato Nogueira. Um caminho que segue entre os meios, intermezzo, e um pensamento que só acontece quando se dá pelo meio. Sem pretensões de introduzir ou concluir demais, este ensaio não se insinua como uma explicação ou sistematização, mas como um convite ao tempo que invocamos, desde a afroperspectividade. Como define Renato Nogueira (2014, p.176), a respeito do tempo, Afroperspectividade define o tempo dentro do itan [verso] iorubá que diz: “Bara matou um pássaro ontem com a pedra que arremessou hoje”. O tempo não é evolutivo, tampouco se contrai ou pode ser tomado como um círculo ou uma linha reta; mas, de modo simples diz que o passado é definido pelo presente e o futuro é um conjunto de encruzilhadas, isto é, destinos (odu).

Da ordem do Acontecimento, pedras.

O evento 100em1dia constitui-se em um projeto mundial que reside em condensar no período de um dia diferentes práticas de experimentações artístico-político-afetivas no território urbano. Teve início em Bogotá em 2012 e gradativamente espalhou-se pelo mundo. No Brasil, Cuiabá foi a terceira cidade a abrigar a campanha, na qual os habitantes poderiam se organizar individualmente ou em coletivo para propor ações de intervenção cidadã ou artísticas no lugar onde vivem ou em espaços públicos da cidade. Neste dia, 100 ou mais ações aconteceram no corpo da cidade e reconfiguraram a paisagem ética e estética do município, distribuindo as performances e outras práticas artísticas na cidade. Lamentavelmente, a Colômbia vem se configurando como um laboratório de experimentação para projetos de inovação social que são financiados por organismos multilaterais e que funcionam como máquina

Sanches, T. e Galindo, D. Pedras no caminho. Arte como acontecimento Iroko na cidade. Capítulo remetido para livro organizado por Maria Thereza Azevedo. Mimeo. capitalística de captura para ações sociais e artísticas, como bem o observou Daniela García Cano, na dissertação Medelin, Ciudad Inovadora (CANO, 2015). Haveria possibilidade de resistência, de guerrilha, nessa máquina? Considerando a indagação sobre resistências no interior da máquina capitalística, buscamos nas ações que compuseram o evento 100em1dia, uma prática, com caracterização artística, que pudesse ser configurada como uma estratégia de guerrilha a atuar contra a máquina de inovação que está na genealogia do projeto 100em1dia, ainda que não explicitamente. Daí, escolhermos a ação artística, numa primeira leitura despretensiosa, titulada Pedras no Caminho. Outras práticas podem ser localizadas como guerrilha, mas fomos capturados a colocar-nos entre as pedras que Cristina depositou pelas ruas de Cuiabá. Consideramos que o evento 100em1dia, na configuração que terminou por ocorrer em Cuiabá, diferentemente do seu histórico como projeto de empresariamento de inovação, abarcou ações que se caracterizam enquanto acontecimentos. Por meio do estranhamento, da dúvida, ou da admiração, algumas ações executadas poderiam tocar diretamente a produção dos conteúdos das subjetividades do coletivo urbano ao redistribuir determinados fluxos do desejo, modificando, assim, as maneiras de experimentar e de sentir das pessoas que por ali passavam. Isto porque todo acontecimento inaugura um campo de possíveis que não preexiste a ele, mas que surge exatamente em razão deste encontro e composição com o inesperado (LAZZARATO, 2006). Dentre as ações executadas durante o evento, nós fomos capturados a caminhar pelas pedras trazidas por Cristina Silva. Embora tantas outras intervenções possuam grande potencial para levantar questionamentos, concordamos com Suely Rolnik (1989), quando afirma que “todas as entradas são boas se as saídas forem múltiplas”. Sendo assim, o que mais pesou em nossa decisão foi a abordagem a ser dada sobre o dispositivo, do que uma escolha determinada entre o rol de alternativas possíveis. Não se tratava de eleger quais intervenções artísticas eram mais ou menos potentes, mas tomar como guia para a escolha sobre o que escrever os modos de afecção que

Sanches, T. e Galindo, D. Pedras no caminho. Arte como acontecimento Iroko na cidade. Capítulo remetido para livro organizado por Maria Thereza Azevedo. Mimeo. poderiam inaugurar. Adotamos a tecnologia da vidente, a examinar, visibilizar e manejar afecções. Cristina Silva distribuiu pedras coloridas em pontos de ônibus, praças e ruas de Cuiabá. Segundo a descrição apresentada, sua proposta possuía objetivo bastante singelo: distribuir propositalmente pedras coloridas pintadas a mão em pontos estratégicos da cidade onde poderiam ser encontradas, tocadas, recolhidas, ou movidas para outros espaços. Sem qualquer maior pretensão, a propositora do dispositivo apenas desejava despertar a curiosidade ou atenção das pessoas que por um instante olhassem para baixo e encontrassem estas pedras abrindo a afecções alegres. O trabalho artístico pedras no caminho, segundo a autora, [...] busca o exercício do olhar para as coisas do chão, para os pequenos detalhes e as pequenas belezas do dia a dia, quebrar a rotina de pessoas que andam pela cidade e trazer um pouco de poesia e beleza nesse caminhar. As pedras serão espalhadas em pontos de ônibus, praças e ruas de Cuiabá, a ideia é que sejam encontradas aleatoriamente. As pessoas que as encontrarem poderão ficar com elas, deixá-las no mesmo lugar ou em um lugar diferente para que outras pessoas as encontrem. (SILVA, 2016).

A ação inscreve linhas tortas nos espaços e regiões comumente ignorados no cotidiano. Faz-se uma grafia, linhas de errar. Faz visíveis as pequenas coisas do chão, coisas que estão “pela terra, mato rasteiro, folhas caídas, e pelas pedras”. Tendo começado a pintá-las como presente aos amigos ou como apenas um processo próprio de experimentação, Silva (2016) relata que sua ação se transformava aos poucos em vontade de deixá-las por onde estivesse passando para que alguém pudesse encontrá-las. As pedras que Cristina Silva espalhou pela cidade não precisariam necessariamente ser encontradas no tempo de um dia reservado ao projeto. Naquele dia, sim, deveriam ser depositadas no chão da cidade. E, quando acontecessem os encontros com as pedras, nenhuma ação específica seria solicitada. Há uma aposta ali colocada que é ativar potências alegres encarnadas nas pedras e apenas possíveis no encontro. Pedras quando marcam o solo da cidade, num espaço urbanizado, não se pode ignora-las se estas se colocarem como obstáculos a um percurso. Mas, o que dizer de

Sanches, T. e Galindo, D. Pedras no caminho. Arte como acontecimento Iroko na cidade. Capítulo remetido para livro organizado por Maria Thereza Azevedo. Mimeo. pedras encantadas?

Pedras que chamam quem passa com cores e

grafismos? Suely Rolnik (1993) costuma dizer que são as marcas que escrevem histórias, pois surgem a partir da relação com um ou vários outros que não são apenas humanos. Cada um destes encontros são também agenciamentos, desequilíbrios, provocações que desembocam em estados inéditos que podem parecer inteiramente estranhos. E destas marcas faz-se necessário criar um novo corpo, mistura de forças de composição que se agitam, se inquietam, e que entram em formação com potências humanas e não-humanas, orgânicas e não-orgânicas, físicas e não-físicas.

Afecções que deixam marcas, hesitações (e)videntes

A força de marcar se configura, a nosso ver, parte constituinte deste dispositivo. Ainda que sua experiência possa ser efêmera, um dado novo é introduzido em cada esconder e achar das pedrinhas que, se pensado em sua imanência, nada significam, nada evocam ou solicitam. Deleuze e Guattari (2010) entendem que a arte independe de qualquer modelo, como também não responde a seu criador, já que pela autoposição do criado, ela se conserva em si própria. Assim, a arte dispensa qualquer necessidade de recorrer a uma pretensa intencionalidade do autor ou a uma razão de existência. A arte existe no mundo e se basta, ignorando até mesmo o que seu espectador espera ou imagina sobre ela. Neste sentindo, “a obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si”, e se presta ao objetivo de conservar apenas blocos de sensações, ou seja, compostos múltiplos de perceptos e afectos. Os perceptos não são as percepções que temos dos objetos, pois são independentes da avaliação daqueles que experimentam a arte ou a performance. Da mesma forma os afectos não são sentimentos, mas a própria força de afetação intrínseca da obra. Para os autores, os afectos não estão no humano, não são características exclusivas destes. Os afectos, as potências de afecção, estão no mundo e atravessam todos os seres. Por isso podemos dizer que existem afectos absolutamente não-humanos. Os animais, as

Sanches, T. e Galindo, D. Pedras no caminho. Arte como acontecimento Iroko na cidade. Capítulo remetido para livro organizado por Maria Thereza Azevedo. Mimeo. plantas, as pedras, e todas as coisas possuem tanta capacidade de expressar afectos quanto as pessoas. E existem afectos de coisas como o calor de uma chama, a dureza de uma mesa, e o cortante de uma faca (DELEUZE, 1985). Deste modo, entenderemos que Os afectos são precisamente estes devires não humanos do homem, como os perceptos (entre eles a cidade) são as paisagens não humanas da natureza. ‘Há um minuto do mundo que passa’, não o conservaremos sem ‘nos transformarmos nele’, diz Cézanne. Não estamos no mundo, tornamo-nos com o mundo, nós nos tornamos, contemplando-o. Tudo é visão, devir. Tornamo-nos universo. Devires animal, vegetal, molecular, devir zero (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.200).

De acordo com Henri Bergson (1999), as afecções se encontram justamente no espaço intermediário entre os estímulos que o corpo recebe de fora e os possíveis movimentos que ele pode executar. Ou seja, as afecções têm papel preponderante neste procedimento e na seleção das respostas do corpo, funcionando como um convite a agir, mas cuja opção de nada fazer também está contida em virtualidade. Justamente como sugere Cristina Silva, sua arte não solicita propriamente uma resposta, e mesmo assim qualquer ação é bem-vinda seja ela qual for. Guardar as pedras, abandoná-las no lugar encontrado, deslocá-las para outro espaço, ou presentear pessoas são movimentos possíveis previstos pela artista. No entanto, o leque de possibilidades excede qualquer previsão. É esta hesitação diante do estímulo, esta possibilidade de escolher como reagir, que tem a capacidade de produzir a diferença. Para Bergson (1999, p.12), “o estado afetivo [...] acrescenta verdadeiramente algo de novo ao universo e à sua história”. Disso podemos concluir que o estado afetivo não preexiste, nem tampouco poderia ser deduzido a partir das características de um sujeito. O estado afetivo se cria no momento do estímulo e nunca pode ser antecipado, pois ele contém em virtualidade todo o conjunto de ações possíveis. A novidade se produz precisamente na medida em que as ações já não podem ser previstas como no caso de algo que esteja subordinado às leis da física ou à instintos básicos.

Sanches, T. e Galindo, D. Pedras no caminho. Arte como acontecimento Iroko na cidade. Capítulo remetido para livro organizado por Maria Thereza Azevedo. Mimeo. Segundo Deleuze e Guattari (2010), o artista é alguém que se torna vidente somente na medida em que ele viu na vida algo muito grande, por vezes intolerável, ao ponto dele entrar em confronto com o que lhe ameaça. Ao contar o que viu, o artista excede os estados perceptivos e as passagens afetivas do vivido para recriá-los na forma de blocos de sensações compostos de perceptos e afectos que não correspondem ponto a ponto com a sua visão. Deste modo, o tipo de vidência que um trabalho artístico carrega se configura enquanto um processo de fabulação criadora que recria o vivido, mas que nada ou muito pouco tem a ver com sua lembrança, mesmo com um fantasma, ou um modelo originário. Neste processo, O pedaço de natureza que ele percebe, ou os bairros da cidade, e seus personagens, acedem a uma visão que compõe, através deles, perceptos desta vida, deste momento, fazendo estourar as percepções vividas numa espécie de cubismo, de simultanismo, de luz crua ou de crepúsculo, de púrpura ou de azul, que não têm mais outro objeto nem sujeito senão eles mesmos. [...] Trata-se sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num combate incerto (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.202).

Imagens pétreas, fabulação criadora

As imagens criadas pelo trabalho Pedras no caminho, frutos da fabulação criadora de Cristina Silva, não possuíam qualquer pretensão significante, propósito delineado ou finalidade a ser alcançada; apenas um convite à ação. O convite só se realiza no instante em que as pedrinhas são percebidas na paisagem da cidade. Apenas passar os olhos por elas não é o suficiente para enxergá-las. A percepção é uma faculdade sempre envolvida em um esquema sensório-motor. Ela não é uma espécie de contemplação, especulação, conhecimento desinteressado, nem tampouco funciona como uma tábula rasa na qual se preencheria com alguma coisa. Os afetos confundem-se em certa medida com nossa percepção uma vez que existem enquanto intermediários entre o que percebemos e a forma como agimos. Enquanto a percepção encontra-se fora do corpo e é orientada pelas imagens, os afetos estão “da pele pra dentro” e constituem-se

Sanches, T. e Galindo, D. Pedras no caminho. Arte como acontecimento Iroko na cidade. Capítulo remetido para livro organizado por Maria Thereza Azevedo. Mimeo. naquilo “que misturamos, do interior de nosso corpo, à imagem dos corpos exteriores. [...] A verdade é que a afecção não é a matéria-prima de que é feita a percepção; é antes a impureza que aí se mistura” (BERGSON, 1999, p.60). Portanto, ao depararmo-nos com as pedrinhas deste dispositivo artístico e percebê-las, emergem sensações, memórias, imagens passadas, e outros componentes da subjetivação que se misturam na experiência atual do observador e tornam complicado prever seus movimentos corporais, suas atitudes a serem tomadas. A cada encontro inauguram-se territórios do sensível nos quais a preocupação não é mais uma compreensão inteligível ou representacional do objeto/dispositivo, mas um exemplo do que configura campos de percepção, afecção e ação micropolíticas. O campo das micropolíticas se concretiza nos esforços de criação de novos territórios do sensível e suas implicações éticas/estéticas/políticas. Diferencia-se, portanto de um macrocosmo onde estariam em pauta as representações e significâncias de tal ação. E, no entanto, macro e micro não devem ser entendidos como espaços contraditórios, pois eles coexistem e atravessam um ao outro. Ainda assim, remetem a ordens difusas de organização. A macropolítica corresponde ao regime das estratificações, aos objetos, aos sujeitos, representações, identidades, e a quaisquer sistemas de referências. A micropolítica, por sua vez, trabalha na dimensão dos fluxos, dos devires, das intensidades, das moléculas, das conexões. Nas experiências de caráter micropolítico, a ação se dá nos interstícios, nas coexistências, nos encontros fragmentados capazes de reinventar outras expressões de sensibilidade e percepção que frustram os mecanismos de repetição e anestesia do cotidiano, mesmo que de maneira imperceptível. Esta dimensão da experiência é desvinculada da ordem das significações, já que suas fraturas se manifestam em um nível muito mais sutil de experimentação (GUATTARI; ROLNIK, 2013). Na proposta em questão, a autora se posiciona afirmando que suas pedras não possuem valor ou pretensão artística. E, no entanto, a descrição do dispositivo contida no website do evento afirma que o trabalho busca “quebrar a rotina das pessoas que andam pela cidade ao trazer um pouco de poesia e

Sanches, T. e Galindo, D. Pedras no caminho. Arte como acontecimento Iroko na cidade. Capítulo remetido para livro organizado por Maria Thereza Azevedo. Mimeo. beleza neste caminhar”. Isso implica que existe um apelo estético no trabalho que se manifesta na poesia, poiesis de um processo criador que se liga à uma ética, à um modo de ser e caminhar no mundo. Consideramos, portanto, que o movimento de ruptura surge enquanto projeto político do dispositivo em questão, atravessado por linhas de congruência que sugerem ao mesmo tempo implicações éticas e estéticas, repletas de potência de afecção. A mitologia grega nos traz a imagem da medusa que ao olhar seu rosto faz com que nos tornemos pedras. Ora, que mal há em nos tornarmos pedra? Se o que nos tornarmos são as pedrinhas, pedrinhas da Cristina Silva? É necessário um ponto a mais de conexão, a matriz africana do candomblé.

Pedrinhas,

Pedrinhas...

Afroperspectivismo

como

plano

para

o

acontecimento

É certo que os acontecimentos não podem ser previstos. Mas é necessária alguma dose de sensível para percebê-los, para enxergar que algo mudou, o que varia, e que variando no presente reconfigura fechamentos em possíveis. O acontecimento não é o que se dá entre dois instantes. Ele próprio é um entre-tempo. Mas o entre-tempo não é eterno, ele é devir. Enquanto no tempo cronológico os blocos de tempo se sucedem, no acontecimento todos os entre-tempos se superpõem. Daí podemos pensar que, se o acontecimento é um entre-tempo, ele não tem início nem fim. O acontecimento é o que dura. Uma duração que não é a da eternidade, senão a do permanente devir (DELEUZE; GUATTARI, 2010). Por mais delicado que possa parecer, como no caso do dispositivo estudado, em todo acontecimento “nada se passa, e todavia tudo muda, porque o devir não para de repassar por seus componentes e de conduzir o acontecimento que se atualiza alhures, a um outro momento” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.188). Embora o impensado seja uma dimensão própria do acontecimento, isso não implica que ele seja impensável. Apesar de que algo sempre escapa em toda análise, Maurizio Lazzarato (2006, p.13), defende que os acontecimentos exigem sua problematização, já que eles nunca vêm

Sanches, T. e Galindo, D. Pedras no caminho. Arte como acontecimento Iroko na cidade. Capítulo remetido para livro organizado por Maria Thereza Azevedo. Mimeo. acompanhados de um nome ou de soluções que os resolvam. Estas devem ser sempre pensadas e fabricadas em resposta as suas emergências. Pensar nos possíveis que se abrem em cada acontecimento, tal qual traçamos neste texto, é também um ato de encantamento do mundo. No candomblé existe uma entidade que nos auxilia a situar a noção de acontecimento num plano estético e ético que desloca os eixos epistêmicos ocidentais das hierarquias eurocêntricas que adquiriram o estatuto de verdade (SOARES, 2010). Trata-se de Iroko, orixá do tempo. Nos terreiros onde se pisa no solo com cautela a cada passo, ao orixá Iroko se dedica uma faixa branca a enlaçar uma árvore e o seu assentamento se dá por meio de um pássaro de ferro. No candomblé, a terra onde se pisa é encantada e o tempo se desvia da linearidade abrindo-se acontecimento. As pedras no terreiro, assim como as árvores são encantados e estes não são nem humanos, nem inertes. Á árvore na qual se pendura o lenço branco denomina-se pé de Iroko, como mostra a segunda imagem que abre este ensaio. Pensado enquanto acontecimento, o dispositivo de Cristina Silva é capaz de disparar um processo de experimentação da paisagem urbana através da solicitação do olhar para as pedrinhas. A intensidade da cor, os traçados dos desenhos que são pintados nas pedras tornam-nas atuantes na cidade que quase nos chamam a pisar com cautela. Estamos num terreno encantado com marcas da temporalidade das pedras cujos efeitos nomeamos, para finalidade deste ensaio, de acontecimento Iroko.

REFERENCIAS

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 291 p. (Coleção Tópicos). CANO, Daniela García. Medelin, Ciudad Inovadora, 2015. Dissertação (Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea) - Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá, MT.

Sanches, T. e Galindo, D. Pedras no caminho. Arte como acontecimento Iroko na cidade. Capítulo remetido para livro organizado por Maria Thereza Azevedo. Mimeo. DELEUZE, Gilles. Cinema 1: A imagem-movimento. Tradução Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985. 267 p. ______. Conversações (1972-1990). Tradução Peter Pál Pelbart. 2. ed. São Paulo: 34, 2010a, p.122-130. (Coleção TRANS). DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 2010. 272 p. (Coleção TRANS). DELIGNY, Fernand. O aracniano e outros textos. Tradução Lara de Malimpensa. São Paulo: n-1 edições, 2015. 288 p. GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. 439 p. LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Tradução Leonora Corsini. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 268 p. (Coleção A política no Império). NOGUERA, Renato. Entrevista com Renato Noguera dos Santos Jr. In: Ensaios Filosóficos, v.10, dez. 2014. Disponível em: < http://www.ensaiosfiloso ficos.com.br/Artigos/Artigo10/Renato_Noguera_Entrevista.pdf. Acesso em 27 ago. 2016. ROLNIK, Suely. Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. In: Cadernos de Subjetividade, v.1 n.2, Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, Programa de Estudos Pós Graduados de Psicologia Clínica, PUC/SP. São Paulo, set./fev. 1993.p.241-251. ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo, Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1989. SILVA, Cristina. Pedras do Caminho. Descrição da performance conforme consta no site: < http://100em1diacuiaba.org/intervencoes/pedras-docaminho/>. Acesso em 27 ago. 2016.

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