Pela vida, pela família e pela propriedade privada: hegemonia, conservadorismo cristão e políticas sexuais

May 30, 2017 | Autor: H. Aragusuku | Categoria: Conservatism, LGBT Issues, Hegemony, Right-Wing Extremism, Gênero E Sexualidade
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PELA VIDA, PELA FAMÍLIA E PELA PROPRIEDADE PRIVADA: HEGEMONIA, CONSERVADORISMO CRISTÃO E POLÍTICAS SEXUAIS

Henrique Araujo Aragusuku Graduado em Psicologia Universidade Federal de Mato Grosso [email protected] ST 12 – Diversidade Sexual e de gênero, políticas públicas e serviço social Resumo Este trabalho se propõe a levantar algumas reflexões sobre o atual cenário político brasileiro, principalmente a partir da rearticulação das direitas e do avanço do conservadorismo cristão, junto à consolidação da supremacia de um projeto político economicamente neoliberal e socialmente conservador. Dentro dessas reflexões, serão analisados os (des)caminhos das políticas sexuais e os retrocessos que marcam o atual momento político, impulsionados pela militância pró-vida e pró-família (leia-se antifeminista e anti-LGBT) de setores cristãos da política nacional, notadamente dos movimentos evangélicos. Palavras-chave: hegemonia, conservadorismo, políticas sexuais, política nacional.

Introdução Pela bancada do Pros, o deputado Ronaldo Fonseca (DF) anunciou o voto favorável à autorização para o processo de impeachment (...). Ele ressaltou que a Frente Parlamentar Evangélica lutará contra uma “política de esquerda que quer acabar com valores da família brasileira”. (...) Parabéns presidente Eduardo Cunha. Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família e inocência das crianças em sala de aula que o PT nunca teve, contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra – o pavor de Dilma Rousseff – pelo exército de Caxias, pelas nossas forças armadas, por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim! Com a ajuda de Deus, pela minha família, pelo povo brasileiro, pelos evangélicos da nação toda, pelos meninos do MBL, pelo Vem Pra Rua – dizendo que Olavo tem razão, Seu presidente – dizendo tchau para essa querida e tchau ao PT, partido das trevas, eu voto sim ao impeachment, Seu presidente!1

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O primeiro trecho foi retirado do portal de notícias da Câmara dos Deputados, de 17/04/16 (http://goo.gl/HQdNiv). O segundo e terceiro trechos são discursos, na integra, proferidos na votação do impeachment na Câmara dos Deputados, respectivamente, de Jair Bolsonaro (PSC/RJ) e de Marco Feliciano (PSC/SP).

No dia 17 de abril de 2016, foi aprovada a abertura do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff pela Câmara dos Deputados, em uma votação que durou seis horas, sendo um espetáculo midiático acompanhado por multidões e manifestações contrárias e favoráveis, hipnotizando todo um país. No momento da votação, cada deputado possuía um curto tempo para declarar seu voto, proporcionando um verdadeiro show de horrores, escancarando a podridão de um sistema político elitista e uma democracia desmoronada. A recitação massiva dos mantras “pela família” e “por Deus”, acompanhados pelo “voto sim ao impeachment”, reacenderam o alerta do avanço do conservadorismo no cenário político brasileiro. Não existe dúvida que o momento atual é de avanço do conservadorismo político e de rearticulação das direitas no país, sendo um cenário de retrocessos para as políticas sexuais, assim como para a pauta dos direitos humanos e direitos sociais de forma geral. É com muita atenção que devemos perceber que discursos ultraconservadores e reacionários não estão isolados em lideranças políticas, mas possuem eco na sociedade e, ainda que minoritária, relativa base de apoio social. Assim, vimos declarações de concordância a discursos como de Jair Bolsonaro (PSC/RJ), defendendo o golpe militar de 1964 e homenageando o Coronel Ustra, ex-chefe do DOI-CODI2 de São Paulo, responsável pela tortura de diversos militantes de esquerda durante o regime militar, na qual se inclui Dilma Rousseff, quando era militante do VAR-Palmares3. Lembrando que Jair Bolsonaro foi o deputado federal mais votado do Estado do Rio de Janeiro, em 2014, com 464 mil votos. A partir desse panorama, esse breve trabalho se propõe à levantar reflexões sobre o atual cenário político-social e econômico brasileiro, sobre a crise institucional presente nos altos escalões da política nacional e, principalmente, sobre os (des)caminhos das políticas sexuais e da cidadania LGBT no Brasil. Foram buscados estudos sobre política e hegemonia, principalmente as leituras gramscianas de Carlos Nelson Coutinho (1999, 2008), trazendo reflexões sobre as intersecções entre Estado e sociedade civil, e a consolidação da supremacia de grupos sociais dominantes. Além das imprescindíveis contribuições de autore(as) que teorizam sobre política e sexualidade, dando destaque para aquele(as) que trazem um recorte interseccional junto a classe, raça/etnia e gênero, sob uma perspectiva crítica anticolonialista e anticapitalista. 2

Órgão do Exército de inteligência e repressão durante o regime militar de 64. Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), guerrilha urbana de Carlos Lamarca, organizada na luta armada contra a ditadura. 3

Crise política, impeachment e hegemonia

Uma pergunta é latente: como chegamos ao atual momento político? No início dos anos 90, período logo após o fim ditadura militar, diversos parlamentares notadamente do campo das direitas preferiam autodenominar-se como “de centro”, em uma percepção quase pejorativa do “ser de direita” (KAYSEL, 2015). Atualmente, presenciamos um período de ascenso do “orgulho direitista”, paralelo ao crescimento de movimentos organizados declaradamente de direita, que ganharam corpo e visibilidade durante o exponencial crescimento das manifestações pelo impeachment da presidenta Dilma, em 2015 e 2016. Entretanto, tais manifestações não direcionavam apenas os casos de corrupção, o impeachment da presidenta e o Partidos dos Trabalhadores (PT), também hostilizavam às políticas de esquerda como um todo: as políticas sociais, os partidos de esquerda, os movimentos sociais. Não é mera casualidade que conviveram pacificamente em tais manifestações, parlamentares corruptos, movimentos neofacistas, militares saudosistas, cristãos fundamentalistas, e até defensores do retorno da monarquia. Vivemos os últimos os últimos quinze anos sob o governo do PT, que se corroeu em casos de corrupção, junto a seu projeto de poder característico pela instalação de um pacto de governabilidade com setores da elite brasileira e com partidos tradicionais de direita política. A apropriação, pelo PT, do pragmatismo eleitoral e das políticas neoliberais, fruto da convicção de sua capacidade de gerência do capitalismo brasileiro, proporcionou um cenário de confusão ideológica e desfiguração das pautas da esquerda. Um governo que tem como pilar central o corte de gastos do Estado (chamado ajuste fiscal), comprometendo a manutenção de políticas sociais; secundarizando a reforma agrária, as políticas ambientais e de direitos humanos, assim como foi majoritariamente o Governo Dilma (2011-2016), poderia ser lido como de “direita”, entretanto, se faz compreendido pela maioria da população como um governo da esquerda. Apesar disso, foram nesses últimos quinze anos que tivemos os maiores avanços nas pautas LGBT, tanto no âmbito sociocultural, quanto na esfera estatal. Os anos 2000, podem ser caracterizados como uma década de ascenso das pautas LGBT nacionalmente, coincidindo com um cenário político relativamente favorável, abrindo caminhos para o surgimento de uma

cidadania LGBT brasileira. O avanço das direitas vem se mostrando como o principal empecilho para a consolidação de políticas sexuais no Brasil, principalmente pelo ascenso do conservadorismo cristão no cenário nacional. Como apresentado por Carlos Coutinho (2008), a supremacia de um grupo social se exerce a partir de uma combinação entre dominação e hegemonia, tendo como alicerce a direção político-ideológica e o consenso da sociedade a partir dos aparelhos privados de hegemonia, junto à capacidade da burocracia em exercer coerção por meio da repressão. O Estado e a sociedade civil são campos inter-relacionados, em que o autor qualifica:

Essas duas esferas se distinguem, justificando assim que recebam em Gramsci um tratamento relativamente autônomo, pela função que exercem na organização social e, mais especificamente, na articulação e reprodução das relações de poder. Em conjunto, as duas esferas formam o Estado em sentido amplo, que é definido por Gramsci como “sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia escudada de coerção”80. (...) No âmbito da “sociedade civil”, as classes buscam exercer sua hegemonia, ou seja, buscam ganhar aliados para os seus projetos através da direção e do consenso. Por meio da “sociedade política” – que Gramsci chama, de modo mais preciso, de “Estado em sentido estrito” ou de “Estado-coerção” –, ao contrária, exerce-se sempre uma “ditadura”, ou, mais precisamente, uma dominação fundada na coerção (p.54).

Neste sentido, o impeachment e o Governo Temer expressam a consolidação da supremacia de um projeto político-econômico e sociocultural, mais precisamente do neoliberalismo econômico e do conservadorismo político-social. Esse projeto já avançava gradualmente mesmo durante o Governo PT, impulsionado por fortes aparelhos privados de hegemonia, na qual se entendem a mídia, entidades, partidos, movimentos organizados, redes sociais, as universidades. Como apresenta Gilberto Calil (2016), tais aparelhos privados de hegemonia intensificaram, nos últimos anos, a disseminação de visões reacionárias: “privatizações e ajuste social, repressão policial, machismo, instrumentalização do discurso ‘anti-corrupção’, reordenamento urbano excludente, mercantilização da vida, avanço do ‘politicamente incorreto’ agressivo e desqualificador”. As manifestações de junho de 2013 explicitaram uma rachadura no projeto políticosocial dos governos petistas, apontando o fim do consenso caracterizado pelo pacto social, intensificando o processo de recomposição hegemônica que culminou no atual cenário político e na retirada do PT do governo. É inegável, na constituição da atual conjuntura

política, o papel das manifestações massivas pelo impeachment, do protagonismo de instituições como a FIESP4, dos aparelhos midiáticos, da circulação de informações nas redes sociais e de modalidades de cyberativismo, demonstrando que o campo da sociedade civil e da hegemonia são fundamentais na consolidação da supremacia de grupos sociais e seus projetos políticos.

Políticas sexuais e conservadorismo cristão

Nesse processo de avanço das direitas no Brasil, o conservadorismo cristão, principalmente com a propagação política dos evangélicos, vem ganhando espaços privilegiados dentro do cenário nacional, se amparando sobre uma política pró-vida (contra o aborto), pró-família (contra os movimentos feministas e LGBT) e assumidamente neoliberal, posicionando-se à extrema-direita da política nacional. O caso do Partido Social Cristão (PSC) é exemplar, tendo lideranças como Feliciano e Bolsonaro; além de lançar uma candidatura à presidência em 2014 – o próprio presidente do partido, Pastor Everaldo – com um programa econômico radicalmente neoliberal, caracterizado de extrema-direita, defendendo inclusive a privatização da Petrobrás. Esse casamento entre economicamente liberal e socialmente conservador não é novidade no mundo, tendo como exemplo o avanço da New Right e sua reação ao avanço das políticas sexuais nos Estados Unidos e na Inglaterra dos anos 60 e 70 (RUBIN, 1984; WEEKS, 2002). A chamada “bancada evangélica” do Congresso Nacional é muito provavelmente o agrupamento político que mais cresceu nos últimos dez anos, acirrando a polarização contra os projetos legislativos vinculados às pautas feministas e LGBT. Não é por acaso que nem uma única lei para a população LGBT foi aprovada em nível federal no Brasil, e atualmente o cenário é de retrocessos, com a tramitação de projetos que regulamentam a “família” como a união entre um homem e uma mulher; que dificultam a realização dos abortos legais e recrudescem a criminalização do aborto; que tentam anular a aprovação do casamento homoafetivo pelo judiciário. Ao menos dois partidos médios são hegemonizados por evangélicos: o Partido Republicano Brasileiro (PRB), dirigido majoritariamente pela Igreja Universal do Reino de Deus, e o Partido Social Cristão (PSC), pela Assembleia de Deus. 4

Federação das Indústrias do Estado de São Paulo.

Entretanto, a influência protestante alcança quase todos os partidos brasileiros, sendo uma das maiores bancadas do Congresso Nacional e infelizmente a bancada mais à direita 5, aliando-se às chamadas bancadas da bala (indústria de armamentos e segurança) e do boi (ruralistas) nas proposições legislativas mais reacionárias. Nesse processo de derrubada do PT do governo, lideranças evangélicas tiveram um papel protagonista, na qual podemos citar, como principal articulador do impeachment, o expresidente da Câmara dos Deputados e afundado em suspeitas de corrupção, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), autor de dois projetos legislativos polêmicos: a criminalização da “heterofobia” e a maior restrição ao aborto legal. No atual governo Temer, temos a nomeação de dois ministros evangélicos e a indicação de André Moura (PSC/SE) como líder do governo na Câmara. O ascenso da bancada evangélica está diretamente vinculado com a capacidade de articulação de seus aparelhos privados de hegemonia, controlando jornais, rádios, rede de televisão (mais notadamente a Rede Record), redes comunitárias, igrejas, entre outros. E é importante ressaltarmos: a militância conservadora de setores evangélicos na política não é um fenômeno brasileiro, mas se faz presente em praticamente todo o continente americano (VILLAZÓN, 2015). A agenda da bancada evangélica se unifica, fundamentalmente, em torno de sua militância pró-vida e pró-família, principal impedimento para a consolidação de direitos sexuais e de avanços nas pautas dos movimentos feministas e LGBT no cenário nacional. A formulação da teoria da “ideologia de gênero” – jargão que reuni todas as perspectivas que compreendem o gênero e a sexualidade como constructos socioculturais – possibilitou um polo antagonista, aglutinando diversos setores conservadores (de evangélicos à católicos) contra as pautas feministas e LGBT (LIONÇO, 2014). O principal reflexo disso foi a derrubada dos termos “gênero” e “orientação sexual” do Plano Nacional da Educação, em 2014, e de muitos planos municipais e estaduais, em meio a diversas manifestações conservadoras nas câmaras de vereadores e assembleias legislativas, em 2015. Infelizmente, o termo “ideologia de gênero” ganhou espaço nos debates políticos em torno da sexualidade e do gênero na mídia e nas casas legislativas.

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Em uma pesquisa da Datafolha (http://goo.gl/cSmx7F) sobre o posicionamento das bancadas, a evangélica esteve enquadrada em praticamente todas as perguntas (apenas uma não) como “tendência à direita” acima da média geral no Congresso, e foi a que proporcionalmente mais votou a favor do impeachment.

Considerações finais

É possível pensarmos em políticas sexuais a partir da teoria política gramsciana, levantando reflexões sobre as diferentes correlações de forças políticas, as disputas em torno do poder estatal, as formações hegemônicas e a consolidação da supremacia de determinados grupos sociais. A leitura de um cenário político a partir dessa perspectiva, assumindo a complexidade dos fenômenos político-sociais, nos possibilita pensar em estratégias para a transformação social e a radicalização da democracia, assim como a recomposição dos espaços da esquerda política nas esferas do Estado e da sociedade civil. Neste momento de crise econômica e caos político-social, se expande os tentáculos de uma política do medo (SCHULMAN, 2013), fortemente associada a posicionamentos conservadores, em um momento político de “pânico moral” (WEEKS, 1989), na qual se elenca um grupo social, que deve ser combatido, para representar a causa de todo o “mal”: os inimigos da família, os comunistas, as aborteiras, o ativismo ideológico gay. A caça às bruxas já se iniciou, sendo uma meta do conservadorismo político a retirada da “ideologia de gênero” das escolas por meio do poder estatal. A combinação entre hegemonia e coerção começa a dar o tom do atual avanço conservador no Brasil.

Referências CALIL, Gilberto. Reflexões sobre a ascensão da direita. Blog JUNHO, 2016. Disponível em: http://blogjunho.com.br/reflexoes-sobre-a-ascensao-da-direita/. Acesso em: 23/05/16. COUTINHO, Carlos N. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. ___________________. Marxismo e Política: a dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2008. KAYSEL, André. Regressando ao Regresso: elementos para uma genealogia das direitas brasileiras. In CRUZ, S. V.; KAYSEL, A.; CODAS, G. (org.). Direita, volver!: o retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015. LIONÇO, Tatiana. “Ideologia de gênero”: a emergência de uma teoria religiosa sobre os riscos da democracia sexual. Revista Fórum, 2014. Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/2014/09/27/ideologia-de-genero-emergencia-de-uma-teoriareligiosa-sobre-os-riscos-da-democracia-sexual/. Acesso em: 25/05/16.

RUBIN, Gayle. Thinking Sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. In CAROLE, Carole V. (org.). Pleasure and danger: exploring female sexuality. Londres: Routledge/Kegan Paul, 1984. SCHULMAN, Sarah. Desafios do Feminismo: amigos diante da família, sociedade diante do Governo. Conferência do Seminário Internacional Fazendo Gênero 10: Desafios Atuais dos Feminismos, 2013. Disponível em: https://geofaust.wordpress.com/2013/09/29/fazendogenero-sarah-schulman/. Acesso em: 26/05/16. VILLAZÓN, Julio A. Velhas e novas direitas religiosas na América Latina: os evangélicos como fator político. In CRUZ, S. V.; KAYSEL, A.; CODAS, G. (org.). Direita, volver!: o retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015. WEEKS, Jeffrey. Sex, Politics and Society: the regulation of sexuality since 1800. London/New York: Longman, 1989. ______________. Sexuality and its discontents: meanings, myths and modern sexualities. New York: Routledge, 2002.

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