PELEGRINELLI, André L. M. IMAGENS DA VIRGEM MARIA: Criações e Figuração. In: VISALLI, Angelita Marques (org.). Imagens Religiosas. Londrina: UEL, 2014.

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IMAGENS RELIGIOSAS

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realização:

Angelita Marques Visalli (org.) patrocínio:

978-85-7846-280-2

Coleção História na Comunidade – volume 8 9 788578 462802

Angelita Marques Visalli (Org.)

IMAGENS RELIGIOSAS

Coleção História na Comunidade volume 8

Universidade Estadual de Londrina Londrina • 2014

Uma publicação do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem (LEDI), do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina Copyright © dos autores Capa e editoração: Humanidades Comunicação Geral Imagem da capa: Simone Martini e Lippo Memmi, 1333, Anunciação com Santa Margarida e Santo Ansano (detalhe). Galeria Uffizi, Florença. http://en.wikipedia. org/wiki/Annunciation_with_St._Margaret_and_St._Ansanus#mediaviewer/ File:Martini_and_Memmi_madonna.jpg Imagem da contracapa: Anônima, séc. XV, Roda da Fortuna. Saint Augustin, La Cité de Dieu (Livres I-IX), traduit en français par Raul de Presles. Bibliothèque Nationale de France, Département des Manuscrits Français, 172, fol. 150r. http://www.gallica. bnf.fr Tiragem: 1000 exemplares Distribuição gratuita. Venda proibida.

Catalogação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) I31 Imagens religiosas / organizador : Angelita Marques Visalli. – – Londrina : UEL, 2014. 90 p. : il.

Vários autores. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7846-280-2 1. Ídolos e imagens – Idade Média. 2. Maria, Virgem, Santa e a igreja – Culto. 3. Maria Virgem, Santa – Simbolismo. 4. Deus (Cristianismo) – Arte. 5. Livro de Horas. I. Visalli, Angelita Marques. II. Universidade Estadual de Londrina. CDU 940.1:2

Impresso no Brasil / Printed in Brazil Feito depósito legal na Biblioteca Nacional

SUMÁRIO

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Apresentação

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Introdução

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Imagens da Virgem Maria: criações e figuração

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Andre Luiz Marcondes Pelegrinelli

A Figuração de Deus na Iconografia Cristã Medieval Angelita Marques Visalli

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O Tempo Religioso nas Imagens Medievais: contradições e sobreposições Pamela Wanessa Godoi

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Referências Bibliográficas

Imagens da Virgem Maria: criações e figurações André Luiz Marcondes Pelegrinelli

Religiões criam e produzem imagens. Milhões são as imagens de santos e santas espalhadas nas igrejas e casas de todo o mundo. Seguramente, após o crucifixo, a figuração mais presente é a mariana. Culturas e diferentes igrejas representam a personagem Maria, utilizada com fins devocionais, políticos e mesmo artísticos (desprovidos de intenção religiosa). Negra, oriental, européia ou indígena, múltiplas são as faces e cores. Em 1998, Luther Link lançava a obra “O Diabo: a máscara sem rosto”1; para o autor a “máscara diabo” teve diferentes rostos ao longo da história. A imagem de Maria também não tem rosto, é plural. Enquanto personagem construída culturalmente, cada período, local, sociedade, identifica e constrói o perfil mariano que lhe é mais útil: seu perfil de existência se dá a partir da realidade do grupo que a constrói. Essa personagem não é protótipo de imagem adaptada a cada realidade, é recriação a partir de cada conjunto cultural combinado à tradição religiosa precedente. Não há um modelo para a imagem de Maria, não existem características perenes nessa figuração, mesmo as características femininas tendem a ser relativizadas em figuraçôes contemporâneas. Buscaremos compreender melhor essa criação e recriação da imagem de Maria a partir de algumas dessas imagens Luther Link é professor do departamento de literatura da Universidade Aoyama Gakuin, Tóquio, em sua obra analisa como a figura do diabo foi utilizada com diferentes fins políticos religiosos entre os séculos VI e XVI, dando para cada fim uma figuração diferente. 1

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produzidas ao longo da história do culto mariano ocidental, ordenadas de modo cronológico em grandes temas que não se substituem, mas existem simultaneamente com momentos de maior destaque para esta ou aquela devoção/imagem. Quando utilizamos o termo “imagem” aqui, não nos prendemos à noção comum de imagem,que a pensa como tão somente uma ilustração, uma escultura, algo que necessariamente passe pelo campo da visão. Como o historiador francês Jean Claude Schmitt, preferimos pensar o termo “imagem” a partir do conceito “imago” (SCHIMTT, 1996, p. 4). A palavra em latim “imago” vai além da noção comum de imagem, carregando três diferentes conotações: 1) teológico-antropológica: define a noção de “homem” pela tradição judaico-cristã, nela o homem é imagem e semelhança de Deus (Cf. Gen 1, 27), tal noção define a relação entre a imagem e seu ente criador; 2) todas as criações simbólicas do homem: aqui se encontram as figuras de linguagem e as figuras materiais, aquilo que pode ser visualizado (costuma-se aceitar somente essa segunda noção de “imago” como “imagem”); 3) imagens mentais, imateriais, criações da imaginação, sonhos, etc. Partindo deste conceito, entendemos imagem como uma tela de Van Gogh, mas também como a imagem mental criada pelos textos de Hemingway; afinal, textos também projetam e criam imagens. Uma imagem pode ser inspirada em um texto, como as aquarelas de Antoine de Saint-Exupéry que ilustram sua magnum opus, mas também podem ser o próprio texto, que oferece imagens mentais da narrativa. Imagem pode ser uma ideia, um sonho. Assim, ao longo do estudo utilizamos a palavra “imagem” em todos seus sentidos, embora contemplemos mais aquelas que se encontram no campo do visual. A ampliação deste sentido de imagem nos leva a considerar, por exemplo, as imagens criadas pelos textos, pelo imaginário dos fiéis, pelos relatos de aparições, etc. 12

Imagens da Virgem Maria: criações e figurações

Definido nosso conceito norteador, passemos à exposição das imagens. A construção dessa personagem se dá junto da construção das outras imagens que dão início ao cristianismo: o cânon judaico-cristão.

A primeira imagem: Entre os textos bíblicos e as imagens de catacumbas (séc. I – V) O cânon cristão oferece as primeiras descrições que possibilitaram as diferentes construções da imagem de Maria. Em Lucas, Maria é descrita como uma “virgem desposada com um varão chamado José” (Lc 1, 27), “cheia de graça”. As poucas referências a Maria nos Evangelhos não levam em conta as suas características físicas. Outras referências quanto à imagem da Virgem Maria aparecem em trechos que não se referem diretamente a ela, mas que a tradição se incumbiu de ligá-las. Para compreender esse processo é importante conhecer a metodologia de amplificação, de Santo Agostinho (PELIKAN, 2000, p. 49), adotada pelos cristãos e muito utilizada na exegese produzida por estes. Esse método consiste em buscar significados no texto bíblico que não necessariamente eram o significado original; é o que ocorre com a assimilação da figura da Virgem Maria com Míriam, a Sabedoria dos Provérbios, a Noiva do Cântico dos Cânticos, a Mulher do Apocalipse, etc. Seus respectivos autores poderiam não ter como objetivo se referirem a Maria, mas, os exegetas posteriores amplificaram o possível significado intencionalizado por aquele que escrevia. Maria, em grego, vem do hebraico Míriam, personagem retratada como irmã de Moisés e Aarão no livro do Êxodo. O texto narra que, ao atravessar o Mar Vermelho, os israelitas entoaram um canto a Iahweh e “Míriam, irmã de Aarão, tomou na mão 13

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um tamborim e todas as mulheres a seguiram com tamborins, formando coros de dança” (Ex 15, 20). Míriam é descrita louvando a Deus. Maria, no Evangelho de Lucas também é descrita em tal prática ao entoar “Socorreu Israel, seu servo,/ – conforme prometera aos nossos pais – / em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre!” (Lc 1, 55). No livro de Provérbios de Salomão, a Sabedoria (substantivo feminino) é interpretada pelos autores cristãos, dentro dessa ótica de amplificação de Agostinho, como Maria, que exclama “Iahweh me criou, primícias de sua obra,/ de seus feitos mais antigos.” (Prov 8, 22). Interessante figuração é a de Maria como a Noiva do Cântico dos Cânticos. A Amada se caracteriza fisicamente “Sou morena, mas formosa” (Can 1, 5a), o que oferece a possibilidade de que posteriormente surjam representações negras de Maria (Aparecida, Guadalupe, Czestochowska, Montserrat, etc.).O autor parece contrastar a tez morena das servas e escravas, ocupadas com os trabalhos externos, com a pele clara das jovens nobres.

Figura 1 – Nossa Senhora de Czestochowska, séc. XII-XIII.

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No Livro do Apocalipse de São João, encontramos referências a uma personagem que pode ser interpretada como Maria. No capítulo 12 o autor descreve uma Mulher “vestida com o sol, tendo a lua sob os pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas; estava grávida e gritava” (Ap 12, 1-2). Outra referência que foi interpretada como Maria e possibilitou uma alta gama de figurações é a comparação de Maria com Eva. Eva sucumbe à tentação da serpente, e a profecia de Iahweh para a serpente é clara: “Porque fizeste isso / és maldita entre todos os animais domésticos / e todas as feras selvagens. / Caminharás sobre teu ventre / e comerás poeira / todos os dias de tua vida. / Porei hostilidade entre tua linhagem e a linhagem dela. / Ela te esmagará a cabeça / e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 2, 14-15). Maria é pensada como segunda Eva, seu papel no plano salvífico anula o erro da primeira. Um jogo de letras permite que Eva dê lugar a Ave, e essa comparação será partilhada por muitos dos pensadores da imagem de Maria.

Figura 2 – Berthold Furtmeyr. Baum des Todes und des Lebens. Salzburger Missale. 15jh. A iluminura opõe Maria e Eva, a primeira oferecendo salvação, a segunda perdição.

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Importante também são as imagens criadas a partir dos textos apócrifos e por eles2. Orígenes, Pedro de Alexandria, São Justino e outros Padres da Igreja citaram em suas obras o Proto evangelho de Tiago. Esse texto, possivelmente do século II e atribuído ao discípulo Tiago Menor, filho de Zebedeu, relata a história de Maria, de seu nascimento através de Joaquim e Ana à promessa de casamento com José. Nos revela a preocupação dos autores do segundo século com nossa personagem; a popularização desse texto fez com que a Igreja, embora sem reconhecer como canônico, assumisse algumas tradições dele como, por exemplo, a paternidade de Joaquim e Ana para com Maria ou as imagens do “Casamento da Virgem”. Se a figuração mariana nos textos bíblicos e apócrifos tem a sua importância garantida pela releitura que estes tiveram e têm no ambiente religioso cristão, elas não foram as únicas imagens pensadas nos primeiros séculos, com relação a imagens visuais, a arte cristã nas catacumbas também figurou Maria. Entre essas imagens, destaca-se a primeira de que temos registro: Maria com o menino na Catacumba de Priscila, Roma. Na pintura, do século II, uma mulher segura uma criança em seus braços. As primeiras construções próprias para o culto cristão surgem após o decreto de liberdade religiosa no Império Romano através do Edito de Milão, em 313. A construção de locais próprios para os ritos cristãos contribuiu para o aumento do número de imagens religiosas, entre elas a de Maria, uma vez que boa parte da figuração religiosa se encontra nas paredes destes locais. Imagens de uso doméstico só se tornariam mais populares quase oito séculos depois.

Livros apócrifos são aqueles escritos nos primeiros séculos do cristianismo e cuja autenticidade ou importânciapara a construção das crenças a doutrina oficial não reconheceu; apesar disso, alguns destes livros obtiveram grande fama e circulação. 2

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Imagens da Virgem Maria: criações e figurações

Figura 3 – Maria e o menino. Séc. II, Catacumbas de Priscila.

Neste período criou-se, através de fórmulas e decretos, uma das mais fortes imagens de reconhecimento de Maria: Virgem e Mãe de Deus. O Credo Niceno-Constantinopolitano foi elaborado no Primeiro Concílio de Nicéia, em 325, e parte de sua fórmula proclamava: “Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos [...]. E por nós, homens, e para nossa salvação desceu dos Céus. E encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, 17

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e Se fez homem”. Anos mais tarde, em 431, o Concílio de Éfeso declararia Maria como Mãe de Deus.

Theotokos: A imagem da Mãe de Deus (séc. V – XII) “Se alguém não confessar que Emanuel é verdadeiramente Deus e que portanto a Santa Virgem é a mãe de Deus (Theotokos) – pois ele dela nasceu de modo carnal e como a Palavra de Deus revestida de carne – que seja excomungado” (DEZINGER, 1963, p. 46). Assim, o Concílio decretava que Maria sendo mãe carnal de Jesus, poderia e deveria ser chamada e considerada Mãe de Deus, a Theotokos. Nesse contexto, surgem os ícones de Maria como Theotokos. Representação tradicionalmente bizantina, foi e continua sendo muito reproduzida no Ocidente, mostra Maria com o menino Jesus em seus braços, vestidos ambos em roupas finas, com traços e cores em estilo bizantino, aplainado, sem perspectiva. A mais famosa delas é a imagem da Theotokos Hodegetria (hoje chamada de Ícone de Nossa Senhora das Neves ou Salus Populi Romani), que se encontra na Basílica de Santa Maria Maior. A imagem representa a Virgem com o menino em seus braços. Ele realiza um sinal de benção com a mão direita, e na esquerda segura um livro (ou em outras versões, um pergaminho). Ambos aureolados e vestidos em roupas finas. A imagem data do século XII ou XIII (SCHMITT, 2007, p. 113), apesar disso, relatos de Teodósio, do século VI atestavam a presença de uma imagem semelhante a essa na Basílica e acrescenta: fora pintada por São Lucas, um dos evangelistas (BOYER, 2000, p. 19). Essas imagens, cercadas por lendas que creditam sua produção a mãos não humanas, chamamos achéiropoiètes, “não feita por mãos humanas”, em grego. São imagens que supostamente foram criadas por mãos divinas. Esses relatos funcionavam como prova 18

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indubitável da santidade e legitimidade do culto às imagens. Alinhado a isso, os relatos de milagres através das imagens, presentes principalmente a partir do século IV, colaboraram na disseminação delas. Uma imagem milagrosa não só é depositária de práticas devocionais ordinárias, mas refúgio e alento para os sofrimentos e medos, demonstra a busca por interferência sobrenatural concreta no mundo vivido.Quanto maior o número de milagres realizados através de uma imagem, maior a sua popularização.

Figura 4 – Salus Populi Romani, Basílica de Santa Maria Maggiore.

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Tal como a imagem acima, os Ícones são imagens bidimensionais, geralmente produzidas em painéis de madeira e móveis, permitindo usos para além do local em que está instalado. A teologia cristã oriental da imagem reconhece o ícone como um protótipo do ser representado. No Ocidente essa regra é válida não apenas para o ícone, mas para toda representação religiosa. Na teologia cristã, o ícone não é o ser ali representado, mas faz a mediação. O ícone de Nossa Senhora das Neves não é a presença e matéria de Maria, mas permite um transitus, uma elevação da alma do que crê ao encontro com a personagem. Há um distanciamento entre o ser figurado no ícone e uma representação mimética, naturalista, o que reforça a sacralidade da imagem; a maioria dos ícones, por exemplo, figura as divindades apenas do tronco para cima, afastando-o de uma possível assimilação com um referencial humano, que se apresentaria de corpo inteiro. Entre os ícones marianos a figuração enquanto Theotokos é aquelacom maior número de exemplares. As grandes festas marianas desse período: Anunciação, Purificação, Assunção, Natividade de Maria, colaboraram na disseminação do culto à Virgem. É no fim da Alta Idade Média que começaram a surgir as imagens-estatuetas, tridimensionais, que se popularizariam séculos posteriores junto às mudanças da espiritualidade do baixo medievo.

Uma mãe mais próxima: disseminação da imagem de Maria no Baixo Medievo (séc. XIII-XV) O século XII dá inicio a uma importante reforma espiritual na história do cristianismo, e entre suas conseqüências, no século posterior surgem as ordens mendicantes. A proposta de Francisco de Assis, fundador dos franciscanos, e Domingos de Gusmão, fundador dos dominicanos era não mais a de se afastar 20

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do mundo3, mas de viver em seu meio. O campo próprio de missão dos mendicantes eram as cidades. Esses movimentos atraíram a simpatia dos leigos e, através da presença e pronta resposta deles, multiplicaram-se as procissões em que as imagens eram levadas à frente dos fiéis. Michelet afirma que “no século XII, Deus mudou de sexo” (apud BASCHET, 2000, p. 473). Há um impulso do culto à Virgem, supervalorização. Se a necessidade é a de uma religiosidade mais próxima do fiel, de “humanização do sagrado”, Maria passa a ser muito mais representada com o Menino Jesus ou em dor. Oglerius Tridino (1150-1214), abade cisterciense, escreveu o tratado “De compassione Mariae” em que refletia sobre as dores de Maria ao ver seu filho sendo crucificado. Ordens foram criadas a partir desse culto, como os mendicantes da Ordem dos Servos de Maria na Florença de 1240. O sínodo provincial de Colonia, Alemanha, de 1423, estabeleceu a festa das Dores. O franciscano Jacopone da Todi compôs o célebre hino Stabat Mater Dolorosa. O culto à Mater Dolorosa não está restrito somente ao momento da Cruz. Segundo a tradição, engloba os sete momentos de sofrimento de Maria: 1) A profecia de Simeão sobre Jesus; 2) A fuga da Sagrada Família para o Egito; 3) A perda do Menino no Templo em Jerusalém; 4) O encontro de Maria e Jesus durante a Via Crucis; 5) Maria aos pés da Cruz; 6) Maria recebendo o corpo do filho que foi retirado da Cruz; 7) Maria observando o corpo do filho ser sepultado. A criação da imagem de uma Maria dolorosa implica na valorização da figura particular dessa personagem, com o tempo, a figura da dolorosa se desprende das cenas de crucificação e ganha figuração própria. A expressão é de luto. A imagem produzida por Adriaen Isenbrant (Figura 6) a apresenta com a cabeça baixa, mãos levemente cruzadas, a atmosfera de A espiritualidade da Alta Idade Média, dos mosteiros, via o afastamento do mundo como importante via para a ascese espiritual, desde a teologia agostiniana do pecado original a sociedade secular; o “mundo” é visto como perigoso e não facilitador para este caminho de ascese. 3

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dor dessas imagens é composta principalmente pelas expressões e cores escuras, alternando entre o preto e o roxo.

Figura 5 – Adriaen Isenbrant. Our Lady of the Seven Sorrows. 1518-1535. Chiesa di Nostra Signora, Bruges.

A recorrência do tema da Dolorosa nas imagens encontrava grande popularidade junto aos fiéis. Ao representar a Virgem em dor, em uma atitude humana, concreta, cotidiana, contribuía para sua popularização; havia assimilação, a partir do fiel, de sua dor e da dor figurada em Maria.

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Outra representação fértil no período da Baixa Idade Média é a de Maria com o menino, que sofre alterações na representação ocidental se comparada à bizantina: diminuem as roupas e elementos de luxo. Por vezes acompanhada da figura de José (como figuração da Sagrada Família), de outros santos, como São João Batista ou o padroeiro do local ou figura de apreço especial daquele que encomendava a obra. Como as regras para a pintura sacra ocidental não eram tão rígidas quanto às do Oriente, uma ampla gama de possibilidades permitia maior liberdade e criatividade ao artista e ao comitente.

Figura 6 – Ambrogio Lorenzetti. Madonna e a criança. 1319. Pinacoteca de Brera, Milão.

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A potência miraculosa existente em cada imagem legitima e reforça sua sacralidade. No Oriente, expresso nos ícones, no Ocidente expresso em toda expressão visual cristã. A experiência mendicante e o reforço desta para com a participação leiga aumenta a presença das imagens associadas a potências miraculosas: são principalmente os leigos, e não os clérigos, que preenchem as apertadas ruas medievais em procissões que carregam imagens. A Baixa Idade Média também viu a proliferação das imagens estatuetas, não só da Virgem, mas de todo ser religioso: santos, Cristo, etc. As imagens-estatuetas surgem da adaptação dos relicários4, que tomaram formato de estatueta humana e depois perderam a relíquia, assim, o objeto estatueta continuava a receber a mesma contemplação e função dos relicários. Os relatos de milagres por parte de imagens provocam o aumento das peregrinações e uma maior troca cultural-religiosa no Ocidente. As funções das imagens religiosas cristãs não se limitam somente ao culto, algumas possuem essa função específica, como os ícones, outras apresentam diferentes funções, como ornamento e memória; em sua quase totalidade, essas funções se confundem e se cruzam, criando imagens que apresentam maior caráter devocional, narrativo ou ornamental mas que não anulam as demais. As imagens narrativas tiveram um grande aumento na Baixa Idade Média; ciclos narrativos com a vida de santos e santas se tornaram comuns. A imagem da “Coroação da Virgem”, por exemplo, “narra” o episódio em que, após a assunção é coroada, recordando assim a sacralidade da personagem e a afastando de outras figurações mais humanas; partilhando a glória celeste, ela passou a ser vista como co-redentora da humanidade (BASCHET, 2006, p. 471). A corte humana é vista como reflexo da corte Recipientes adornados nas quais se colocavam as relíquias de santos para contemplação pelos fiéis. 4

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celestial, a necessidade de um rei celeste é a mesma daquela partilhada pelo rei terrestre. A instituição clerical também é reforçada hierarquicamente; a Reforma Gregoriana aumentou a concentração de poder sob a figura papal.

Figura 7 – Fra Angelico. Coroação da Virgem. 134-1435. Galleria degli Uffizi, Florença.

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A imagem que constrói identidade: Imagens de Maria pós Concílio de Trento (séc. XVI – XX) O Concílio de Trento (1545-1563), surgido em meio à Reforma Protestante, mais do que ser um contra-ataque à Reforma, definição muito simplória do concílio, buscou redimensionar o catolicismo em uma nova sociedade. Quanto à Virgem, Trento, ao reafirmar a doutrina do pecado original, decretou que Maria Santíssima nasceu imune dessa marca (Sessão VII, DS 1573)5.A crença nesta imaculada conceição de Maria deu logo origem à imagem de Nossa Senhora da Conceição. Característica dessa figuração, Maria é envolvida em vestes que dão idéia de leveza, trazendo novamente a figura da lua aos pés e acompanhada de crianças anjos, se não de corpo todo, ao menos pequenas cabeças de anjo aladas.

Figura 8 – Bartolomé Esteban Murillo. La inmaculada concepción de los Venerables. 1678. Museu do Prado, Madri.

Apesar desse decreto, o dogma da Imaculada Conceição esteve por muito tempo envolvido em debates e só foi decretado enquanto dogma em 1854 pelo papa Pio IX (DENZINGER: 1963, p. 385. 5

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O Concílio também discutiu sobre o uso das imagens no culto cristão. Elas deveriam continuar sendo permitidas, porém com um controle maior sobre a forma como a divindade deve ser representada (BESANÇON, 2003, p. 220). Por exemplo, quando da Anunciação, Maria não deveria ser representada com o bebê já formado em seu ventre. Na cristianização da América, assim como na Europa, cada ordem religiosa adotou uma invocação mariana para impulsionar seu culto. Os carmelitas continuaram com a devoção que já incentivavam, a da Nossa Senhora do Carmo; os franciscanos com a Imaculada Conceição e Nossa Senhora dos Anjos; os mercedários com Nossa Senhora da Mercê; os dominicanos propagavam o culto de Nossa Senhora do Rosário e d’Atocha; os augustinos da Virgem da Consolação, do Bom Conselho (Colômbia) e do Bom Despacho (Brasil); os trinitários a Nossa Senhora dos Remédios; os capuchinhos à Divina Pastora; os servitas a Mãe Dolorosa; os jesuítas à Senhora de Loreto e da Luz, posteriormente ao Sagrado Coração e Nossa Senhora da Ajuda e do Bom Conselho; os jerônimos veneraram a Virgem de Guadalupe. A cristianização da América encontrou grande dificuldade; não era fácil para os indígenas assimilarem uma divindade tão distante da realidade americana; a proximidade cultural era muito maior entre os astecas e Quetzalcóatl6 do que os astecas e Cristo. Um grande propulsor para a efetiva cristianização dos indígenas foi a proximidade estabelecida entre a Virgem Maria e seu fiel, as divindades femininas; a figura da deusa-mãe já era conhecida dos indígenas. Anne Baring e Jules Cashford (2005), ao escrever uma história das divindades femininas identificam Maria como uma recriação em longa duração dessas deusasmães, o que facilitava sua adoção. Divindade mesoamericana, seu nome significa “serpente emplumada” e é considerado a principal figura do panteão mesoamericano. 6

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A legenda da aparição da Virgem de Guadalupe é bem significativa. Após o encontro de Juan Diego, indígena novohispano, Nossa Senhora teria gravado sua imagem no manto que Juan Diego utilizava. A imagem de Nossa Senhora de Guadalupe carrega uma tradição segundo a qual quem a pintou foi o próprio Deus, assim como a imagem supostamente produzida por São Lucas, considerada como achéiropoiète. Aquela imagem era diferente dos outros modelos europeus que ele conhecia, possuía traços étnicos indígenas. A Virgem de Guadalupe se identifica com a figuração da Mulher do Apocalipe: a lua abaixo de seus pés, pisando o dragão e revestida de céu. A partir da construção dessa imagem pela Igreja colonial, a figura de Maria passava a assumir o lugar dos outros deuses indígenas, a Virgem de Guadalupe alcançou tamanho sucesso que foi considerada Imperatriz da América. Atualmente, a Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe, na Cidade do México é a segunda basílica mais visitada, ultrapassada somente pela Basílica de São Pedro, no Vaticano. No Brasil, a imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida reflete bem o processo de construção dessas virgens nacionais: encontrada por caboclos no rio Paraíba no século XVIII, a imagem da Assunção de Maria estava desfigurada, negra. A imagem de uma Virgem Negra encontrou boa recepção e popularidade em um país com sua maioria étnica negra. Isso a legitima: fala a mesma linguagem do fiel. A assimilação com a Dolorosa se dava por conta da proximidade com o fiel, ao partilhar sentimentos; imagens como Nossa Senhora Aparecida e Nossa Senhora de Guadalupe não partilham sentimentos, partilham etnias.

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Imagens da Virgem Maria: criações e figurações

Figura 9 – Virgem de Guadalupe, séc. XVI. Basílica de Guadalupe, Cidade do México.

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Dos diversos países das Américas, boa parte deles tem como seus santos padroeiros figuras marianas, e entre essas a maioria se refere a um culto ligado à imagem. Listamos os países americanos quepossuem como padroeira imagens. Todas são da Virgem, e a maioria segue aquela mesma linha que se dá no México e no Brasil: aparece a marginalizados, índios, caboclos, pede a construção da um santuário e deixa sua imagem como prova. A imagem carrega uma longa história de milagres através do objeto. A maioria delas são imagens estatuetas, com exceção da Virgem de Guadalupe, México; de Nossa Senhora da Altacrácia, República Dominicana; e de Nossa Senhora de Chiquinquirá, Colômbia. País

Padroeira

Argentina

Nossa Senhora de Lujan

Bolívia

Nossa Senhora de Copacabana

Brasil

Nossa Senhora Aparecida

Colômbia

Nossa Senhora de Chiquinquirá

Costa Rica

Nossa Senhora dos Anjos (difere da devoção europeia)

Cuba

Nossa Senhora do Cobre

El Salvador

Nossa Senhora da Paz

Equador

Nossa Senhora do Quinche

México

Virgem de Guadalupe

Paraguai

Nossa Senhora do Caacupê

República Dominicana Nossa Senhora da Altacrácia Uruguai

Nossa Senhora do Trinta e Três

Venezuela

Nossa Senhora do Coromoto

Os séculos XIX e XX são marcados por mudanças importantes na sociedade. A busca pela razão, o processo de secularização e laicização da sociedade marcaram uma nova fase do culto mariano. Diante da necessidade de reafirmação da 30

Imagens da Virgem Maria: criações e figurações

religião católica, Maria não só é cultuada, mas passa a ter uma relação mais íntima com seus fiéis: as aparições se tornaram mais constantes. Nesse período, a Igreja reconheceu sete aparições como legítimas: Rue Du Bac (Paris, França, 1830), La Salette (França, 1846), Lourdes (França, 1858), Pontmain (França, 1870), Fátima (Portugual, 1917), Beauraing (Bélgica, 1932-1933) e Banneux (Bélgica, 1933). As aparições seguem modelos muito próximos: em sua maioria os videntes são crianças, não conhecem as orações básicas, são pobres e Nossa Senhora afirma que possui importantes notícias para transmitir à humanidade, pede aos devotos que ocorram ao local a fim de realizar penitência e levar à conversão, por vezes faz alusão à figura dos espaços do Inferno, Céu e Purgatório. Há um cenário apocalíptico, de que deve haver pressa nas conversões (STEIL, 2003, p. 29). A legenda da aparição de Nossa Senhora das Graças, em Paris, 1830 a Santa Catarina Labouré, cria a medalha de mesmo nome da aparição, acompanhada das promessas de graças para aqueles que usassem a pequena imagenzinha. Junto ao escapulário e o rosário, são objetos-imagens que para o fiel facilitam o transitus religioso. Em uma das faces da medalha está presente a figura de Maria, de braços abertos com raios saindo de suas mãos estendidas, aos pés esmaga a serpente, abaixo da serpente um globo e em torno da sua imagem a jaculatória “Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós, que recorremos a Vós”. No lado reverso a letra M, de Maria; a Cruz, símbolo da redenção; doze estrelas; o livro do Apocalipse diz que a mulher usava uma coroa com 12 estrelas; junto a estes, dois corações, o primeiro com uma coroa de espinhos, assimila a imagem da paixão de Cristo, o segundo, ferido por uma espada, a imagem da Dolorosa. Alguns elementos são constantes há séculos nas figurações marianas, como a serpente esmagada pela cabeça, tradição desde o jogo de palavras do Gênesis de Eva e Ave; alusões 31

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à figura da Mulher do Apocalipse (estrelas e o globo) também se inserem nessa constância de longa duração. Nossa Senhora de Fátima e de Lourdes são as mais populares no Brasil. A imagem de Fátima apresenta duas variantes: a primeira apresenta a cena da aparição, a segunda variante é somente a imagem da Virgem vestida de branco, coroada, e com destaque em seu coração; a segunda é mais comum em estatuetas ou imagens que apresentam a Virgem somente de rosto. A aparição em Lourdes, França, foi muito associada a uma gruta, onde se diz que apareceu a Virgem; assim, em muitos casos, a imagem está neste local. Lourdes fortalece a relação entre a figuração de Maria e a imagem de grutas; atualmente várias das figurações das imagens marianas estão relacionadas a estes locais. Aos pés da imagem de Lourdes, rosas douradas, tradicionais da história de sua aparição. A construção das imagens está associada em muitos dos casos com a narrativa da aparição, não apenas figurando o narrado, mas recriando-o, inserindo novos elementos, retirando outros.

Figura 10 – Gruta de Nossa Senhora de Lourdes. Lourdes, França.

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A figuração mariana no tempo presente: o maior número de imagens (pós Vaticano II) O Concílio de Trento influenciou de maneira definitiva a Igreja Católica, mas, a atual conformação da instituição e de seus cultos encontra não só nesse concílio grande berço de influência, mas, mais recentemente, no Concílio Vaticano II (1962-1965). Ao versar sobre a arte religiosa, os autores deixaram clara a posição da Igreja no tempo presente com relação às imagens: “Mantenha-se o uso de expor imagens nas igrejas à veneração dos fiéis. Sejam, no entanto, em número comedido e na ordem devida, para não causar estranheza aos fiéis nem contemporizar com uma devoção menos ortodoxa”7. A constituição Lumen Gentium em seu capítulo VIII estabelece que a tradição com respeito ao culto da imagem da personagem estudada é válida e deve ser incentivado, no entanto pede que se recordem aos fiéis que “a verdadeira devoção não consiste numa emoção estéril e passageira”8 Se o discurso do Vaticano II aconselha os presbíteros a não incentivarem o culto à imagem através da emoção, por outro lado, o Documento de Aparecida (2007), de suma importância para a Igreja nas Américas reconhece e aceita uma relação carinhosa com as imagens de Maria no universo da piedade popular.9 São sete as aparições reconhecidas pelo clero, mas milhares são os relatos que não foram reconhecidos ou que estão em processo de reconhecimento. As aparições de Medjugorje, Bósnia e Herzegovina,por exemplo, não são oficialmente reconhecidas pelo Vaticano. Apesar disso, desde 1981 diz-se que todos os dias a figura de Maria aparece no sol ao fim da tarde, o que atrai milhões de peregrinos todos os anos. Como nas outras Sacrosanctum Concilium, Cap. VII, 125 Lumen Gentium, Cap. VIII, 67. 9 V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe – Aparecida, 1331 de Maio de 2007, Documento Final, Cap. VI, 261. 7

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aparições, os relatos dizem que apareceu a videntes desde que eram crianças e também apresenta um apelo a conversão. Em Medjugorje, Nossa Senhora se apresenta como Rainha da Paz. No local das aparições, uma estatueta foi erguida. Maria repousa sua mão direita sobre o coração, e com a esquerda estende a mão ao fiel, e o convida à conversão. A túnica não cobre um de seus pés para mostrar que, com ele, ela esmaga a cabeça da serpente; a imagem figurada é a de misericórdia, a mão sobre o coração é muito indicativa nesse sentido; por outro lado, a continuidade do esmagar a cabeça da serpente traz a idéia de vitória sobre o mal. O não reconhecimento de aparições não produz imagens “oficiais”, assim, uma maior pluralidade de figurações diferentes se apresentam: criações, adaptações de modelos anteriores, etc. O exemplo da aparição não oficial em Londrina-PR pode contribuir para compreendermos melhor esse fenômeno. Patrícia, 30 anos, diz receber a visita de Nossa Senhora desde os 13 anos. Ela se apresenta como Mãe da Graça, e no local foi construída uma gruta na qual centenas de fiéis se juntam todas as semanas para a oração do terço e por orações de cura e libertação. O caso é acompanhado pela arquidiocese da cidade, mas não havendo reconhecimento, não há uma imagem “oficial”, produzida para circulação. Dessa forma, os fiéis utilizam uma imagem de Nossa Senhora das Graças, com uma coroa própria e sempre acompanhada de rosas, características da história das aparições. Isso faz com que esta imagem não seja a de Nossa Senhora das Graças, mas da Mãe da Graça. Não são as características do objeto estatueta em si, mas do contexto em que está inserida: gruta, rosas e coroa que a definem como Mãe da Graça; uma nova figuração é criada a partir de um modelo anterior ao qual se unem ou retiram atributos e gera uma outra figuração. A produção em massa e as indústrias levaram no último século a produção de imagens a uma escala jamais vista. Milhares são as imagens produzidas todos os dias seguindo o 34

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mesmo modelo e comercializadas em lojas, igrejas, feiras, etc. Inumeráveis estampas são enviadas por correio, escapulários e terços são carregados aos milhares pelos fiéis. O acesso as imagens domésticas é fácil e barato.

Figura 11 – Tatuagem com temática mariana. Acervo particular.

O culto a Maria se reflete em todas as áreas. Sua imagem está estampada em adesivos de carro, tatuagens, jóias, etc., e, inclusive, nas redes sociais. A página “Nossa Senhora, cuida de mim”, maior página mariana brasileira no Facebook,conta com mais de 1,450 milhões de seguidores (julho/2014). No meio do conteúdo, notícias do papa, propaganda de lojas religiosas e 35

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principalmente imagens marianas. Há uma lógica bem definida na veiculação dessas imagens nessa página: uma imagem de Nossa Senhora em qualquer uma de suas devoções, acompanhada por uma mensagem de benção. Há uma ligação direta entre a imagem e a espera da graça.

Figura 12 – Imagem vinculada na página “Nossa Senhora, cuida de mim”. Facebook.

A permanência de certas imagens e temáticas na longa duração ainda é percebida. Em outubro de 2013, o Papa Francisco em uma solene celebração renovou a consagração do mundo a Nossa Senhora, dirigindo suas orações a uma imagem de Nossa Senhora de Fátima. Outras figurações mais antigas, como a Theotokos Hodegetria, também; por exemplo, nas Jornadas Mundiais da Juventude, que no Brasil, em 2013, atraíram 6 milhões de participantes, foi carregada pelos fiéis. 36

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Embora comumente se aceite uma aproximação maior entre a imagem de Maria e a Igreja Católica, sua figuração não é exclusiva da instituição, tampouco de motivos religiosos. Em 1982, um grupo de teólogos protestantes luteranos publicou o Manifesto de Dresden na Revista Spiritus Domini. Nesse texto, eles argumentavam contra a recusa e indiferença por parte de igrejas evangélicas à figura de Maria pois, segundo eles, Lutero foi devoto de Maria e não via nessa questão algo a afastá-lo da igreja romana; em outra ocasião, fora do âmbito religioso, o artista francês Souasig Chamaillard, em 2007, polemizou ao criar uma série de estatuetas da Virgem Maria vestida como Power Ranger, Barbie, Vampira, etc.10. A imagem de Maria, em seu uso não religioso se torna até mesmo militante. O Coletivo de Gays, Lésbicas, Transexuais e Bissexuais de Madri (Cogam) lançou no ano de 2010 o Calendário Laico. Nele cada mês era figurado com livres interpretações de imagens marianas famosas reconstruídas com referências ao movimento LGBT. Encontramos, por exemplo, uma Virgem de Guadalupe Drag Queen e uma Nossa Senhora das Graças seminua. Em uma dinâmica de longa duração, os seios despidos de Maria que, no século XV amamentavam o pequeno Menino Jesus, são reinterpretados com forte apelo sexual. Mais de dez mil cópias foram vendidas. A questão aqui não repousa sobre usos dos elementos da figuração mariana pela arte contemporânea, uma vez que a imagem de Maria não é reduzida aos propósitos religiosos (não existe uma imagem), mas a criação constante de novos modelos através da inclusão, retirada de elementos ou total recriação. A transgeneridade do calendário aqui apresentado põe em choque o último protótipo que poderia direcionar a criação de marias: a identidade de gênero.

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http://www.soasig-chamaillard.com

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Figura 13 – Soasig Chamaillard. Super Maria, 2007

Imagem mariana: uma figuração oscilante Angelita Visalli ao estudar o papel de Maria como Mãe de Misericórdia, no século XIII, ressalta que Maria desempenhou um papel que Jesus não podia mais desempenhar.Uma vez que os temas da punição divina, da justiça e da vingança já estavam penetradas demais na percepção religiosa dos fiéis (VISALLI, 2004, p. 208), Maria foi a alternativa adotada. Maria continua a 38

Imagens da Virgem Maria: criações e figurações

ser a alternativa encontrada, uma vez que as referências bíblicas são escassas; em oposição, por exemplo, à imagem de Cristo, ela é maleável, servindo mais facilmenteàs intenções de cada criador. Ao cantar para sua prima Isabel, a imagem bíblica de Maria dizia “Doravante as gerações todas me chamarão de bemaventurada” (Lc 1, 48). De fato, a criação de imagens marianas têm atravessado gerações, adaptando-se, relendo-se, criandose a partir de modelos pré-existentes ou propondo marias completamente novas. A imagem da Virgem Maria não possui referenciais em si mesma, é criada em relação a alguém. Nos debates sobre a legitimidade do culto às imagens durante a Alta Idade Média, os teólogos carolíngios rejeitavam a sacralidade da imagem icônica por si própria alegando que, quem decidia escrever sob a imagem feminina o nome de “Maria” ou “Vênus” era o artista (SCHMITT, 2007, p. 59). Para eles, designar uma imagem como Maria não estava, portanto, ligado a sua figuração, mas à intenção de quem a criou. Maria e o Diabo ocupam posições contrárias no plano da salvação cristã, mas, na história das imagens religiosas elas dividem uma mesma característica: ambos, como acentuado por Link, não têm rosto. O conjunto demonstra a inexistência de um único rosto sagrado; não há um só personagem do coro celestial que possua imagem própria e imutável.Mesmo Cristo tem sua imagem plasmada por cada intenção criadora. A Corte Celestial é uma corte sem rosto, que recebe as máscaras dos medos e encantamentos frente ao Mistério.

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Figura 14 – Raquel de Medeiros Deliberador. Livre interpretação de “Corte Celestial”, Fra Angelico. Acervo particular.

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Crédito das imagens do capítulo A Figuração de Deus na Iconografia Cristã Medieval Figura 1 – Visão de Ezequiel. Pintura mural, Sinagoga de DouraEuropos, séc. III. Disponível em: http://commons.wikimedia.org/ wiki/Category:DuraEuropos_synagogue_painting#mediaviewer/ File:Ezekiel_Vision_Dura-Europos.jpg Figura 2 – Batismo de Cristo. Afresco. Catacumba de Pedro e Marcelino. Roma, meados do séc. IV. Disponível: http://en.wikipedia.org/wiki/ Baptism#mediaviewer/File:Baptism_-_Marcellinus_and_Peter.jpg acesso em 25/08/2014. Figura 3 – O Bom Pastor. Pintura mural. Catacumbas de Calixto. Roma, séc. III. Disponível em: http://commons.wikimedia.org/ wiki/File:Good_shepherd_01_small.jpg?uselang=pt, 25/08/2014.

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em

Figura 4 – Hermes Kriophoros (o que leva o cordeiro). Museu Barracco. Roma, cópia tardo-romana de original grego do século V a.C. Disponível em: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/c4/Hermes_ crioforo.jpg, acesso em 25/08/2014. Figura 5 – Cura da mulher hemorrágica. Pintura mural. Catacumba de Marcelino e Pedro. Roma. Disponível em: http://commons.wikimedia. org/wiki/Category:Catacombs_of_Saints_Marcellinus_and_ Peter?uselang=it#mediaviewer/File:Healing_of_a_bleeding_women_ Marcellinus-Peter-Catacomb.jpg, acesso em 25/08/2014.

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