Pelos caminhos do misticismo: Enquadramentos e essências em torno de um individualismo

July 6, 2017 | Autor: Crescêncio Ferreira | Categoria: Modern History, Reformation Studies, Individualism, Misticism, MISTICISMO
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Temas de Cultura e Religião - Idade Moderna. E-FÓLIO B. Pelos caminhos do misticismo: Enquadramentos e essências em torno de um individualismo

“Hier stehe ich; ich kann nicht anders; Gott helfe mir; Amen.”1 “Venirme a deshora un sentimiento de la presencia de Dios que en ninguna manera podía dudar que estaba dentro de mí o yo toda engolfada en El. Esto no era manera de visión; creo lo llaman mística teología.”2

O individualismo implícito na célebre expressão supracitada de Lutero – “Esta é a minha posição” –, aquando da sua excomunhão perante o Imperador Carlos V, na Dieta de Worms, antecipa a sua generalização a todos (“se um pode tomar posição porque não os outros também?”)3, num processo divisório que conduzirá ao fim da hegemonia católica na Europa. Mas a resposta da igreja instituída não tardaria e o misticismo, embora de modo não programado, acabaria por se tornar uma das armas para conciliar o individualismo moderno com a ética cristã vigente. São estas as pistas usadas para a problematização do tema aqui exposto. A Europa Clássica foi o resultado duma evolução das mentalidades e do panorama geopolítico que dividia as nações, em que o papel da Reforma e da Contra-Reforma foi crucial. O individualismo que nasceu com a modernidade despontou novos misticismos na Europa, dentro e fora do universo católico e mesmo cristão4. * A mística a que Santa Teresa de Ávila se referiu em 1562 (citação em epígrafe) não era porém uma invenção da época. A palavra “místico”, que deriva etimologicamente do termo grego muein (“ficar em silêncio”) aplicado aos cultos de mistério, corresponde a mustikos, termo usado na igreja primitiva para designar a interpretação espiritual, obtida por revelação divina, do texto literal das Escrituras 5. No entanto, o misticismo de que falamos aqui tem outro sentido, significando “uma experiência íntima da presença e do poder de Deus na vida duma pessoa religiosa”6.

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“Esta é a minha posição; não posso pensar de outra forma; Deus me ajude; Ámen.” – Frase proferida por Lutero, na Dieta de Worms de 1521, conforme citado em GOULD, Stephen J. - A Montanha de Bivalves de Leonardo e a Dieta de Worms. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2003, p.275 2 ÁVILA, Teresa de – Libro de la vida. [em linha] Cap.10. [consult. 23 Maio 2015]. Disponível na Internet 3 GREGORY, Brad - The Unintended Reformation. Cambridge: Harvard University Press, 2012, p.167 4 Neste trabalho não serão abordados os misticismos não cristãos, como o hassidismo judaico e o sufismo do Islão. 5 JONES, Lindsay (ed.) – Mysticism. In Encyclopedia of Religion, second edition. Michigan: Thomson Gale, 2005, p.6341 6 TAMBURELLO, Dennis - The Protestant Reformers on Mysticism. In LAMM, Julia (ed.) - The WileyBlackwell Companion to Christian Mysticism. West Sussex: Blackwell Publishing Ltd, 2013, p.408

Crescêncio Ferreira, aluno nº 1000692, turma TA, ano letivo 2014-2015

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A primeira experiência mística cristã vem relatada na Bíblia (2 Cor.12:1-4) e descreve um arrebatamento para o paraíso com visões de Deus7. Na Idade Média, o primeiro grande místico foi S. Bernardo, abade de Claraval (1090 - 1153), que pretendia “conhecer Jesus e Jesus crucificado”8. Outro grande místico foi o frade alemão dominicano Eckhart (1260 – 1327/8), que sustentava que se devia abandonar todas as falsas imagens que temos de Deus, pois Ele está além de todo o entendimento. Citando Agostinho, dizia que “se eu tivesse um Deus que pudesse entender, não poderia considerá-lo como Deus”9. Na Europa Clássica, que abrange o período entre 1620 e 1760, segundo a convenção de Chaunu, assistimos à ”maior parte das revoluções intelectuais”10. São três gerações em que o racionalismo e a ciência põem Deus em causa, pelo menos da forma que o conhecíamos11. Entre 1620 e 1660, a Europa protestante diminuiu de peso, em consequência da Guerra dos Trinta Anos, sendo visível o seu “recuo geográfico” cem anos depois, em 1760, altura em que o “ataque racionalista” já era o problema principal e em que surgiu, no seio do protestantismo, o primeiro Despertar.12 Do lado oriental da Europa, a igreja ortodoxa, que mantinha o seu elevado teor ritualístico, ia-se aproximando do ocidente, ora acolhendo as obras dos “homens sábios” católicos, ora aproximando-se do “mundo protestante”.13 Mas eram realidades distintas, o ocidente e o leste, pois após a queda de Constantinopla em 1453, toda a cristandade oriental ortodoxa, com exceção da Rússia, ficara sob domínio otomano, restringindo bastante a sua criatividade religiosa, o que os levaria a desenvolver uma “teologia da repetição”.14 Nestes novos tempos, entre o Renascimento e o Iluminismo, após Reforma e Contra-Reforma, a religião evoluiu no sentido dum maior individualismo na relação do Homem com Deus. O princípio luterano da Sola Scriptura, que dispensava a intermediação duma estrutura hierárquica religiosa para entender a Bíblia, o advento da imprensa, que veio democratizar a leitura, permitindo a divulgação pública do texto bíblico em vernáculo, a divisão religiosa da Europa que trouxe a descoberto a 7

ELIADE, Mircea - Historia De Las Creencias Y Las Ideas Religiosas, Vol. III. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1999, p255 8 LOYN, Henry (org.) – Misticismo. In Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p.519 9 FANNING, Steven – Mystics of the Christian tradition. London: Taylor & Francis e-Library, 2005, p.102,103 10 CHAUNU, Pierre – A civilização da Europa Clássica, Vol. II. Lisboa: Editorial Estampa, 1987, p.10 11 Idem, ibidem 12 Idem, p.97-99 13 Idem, p.101-103 14 JONES, Lindsay (ed.), cit.4, p.2587

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possibilidade de cada um questionar a sua própria fé, tudo isto veio alterar a relação do Homem com Deus, aproximando-o mais Dele enquanto indivíduo de per si e menos como mais uma ovelha dum rebanho qualquer. Mas a Reforma considerava que o meio escolhido por Deus para se revelar era através das Escrituras e não por revelações ou visões privadas, opondo-se assim ao misticismo15. Surge então uma nova forma de misticismo católico que, em alternativa ao individualismo protestante, oferecia uma religião pessoal, no seguimento duma tradição mística medieval16 e duma Devotio moderna, que pregava “uma religião mais interior, individual e cristocêntrica”17. São expoentes desta corrente mística os espanhóis, como a) Inácio de Loyola (1491 – 1556), fundador da Sociedade de Jesus (jesuítas), que nos deixou as suas experiências no seu Diário Espiritual e o seu programa de treino espiritual no livro Exercícios Espirituais; b) Teresa de Ávila (1515 – 82), cujas visões e êxtases ficaram retratados para a posteridade em obras como o seu Libro de la Vida e c) João da Cruz (1542 – 1591), frei descalço da Ordem dos Carmelitas e poeta de La noche oscura del alma.18 No século seguinte destacou-se Miguel de Molinos (1628 – 1696), com o seu Guia Espiritual e a sua divulgação duma devoção que ficaria conhecida como Quietismo, que incentivava a procura dum estado de perfeita contemplação passiva.19 Todos estes alumbrados foram objeto de desconfiança ou reprovação da igreja, alguns mesmo inquiridos pela Inquisição espanhola.20 A Europa Protestante não ficou incólume a esta corrente mística. Apesar do misticismo ser comumente definido como um fenómeno católico e do facto de Lutero e Calvino o terem firmemente rejeitado21, este ainda assim desenvolveu-se tenuamente no seu seio, nomeadamente através dos reformadores pietistas do final do século XVII, sendo de destacar o papel desempenhado pelas mulheres, tanto aqui como no misticismo católico.22

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FANNING, Steven, cit.8, p.139 LINDER, Robert – The Reformation Era. London: Greenwood Press, 2008, p.114 17 MASSAUT, Jean-Pierre - Erasmo e Lutero. Liberdade ou escravidão do ser humano. In CORBIN, Alain (dir.) – História do Cristianismo. Barcarena: Editorial Presença, 2008, p.228 18 HOWELLS, Edward - Spanish Mysticism and Religious Renewal. In LAMM, Julia (ed.) - The WileyBlackwell Companion to Christian Mysticism. West Sussex: Blackwell Publishing Ltd, 2013, p.422-435 19 JONES, Lindsay (ed.), cit.4, p.7558 20 HOWELLS, Edward The Wiley, cit.17, p.429 21 TAMBURELLO, Dennis, cit.5, p.407 22 ALBRECHT, Ruth - Mystical Traditions in Pietism. In LAMM, Julia (ed.) - The Wiley-Blackwell Companion to Christian Mysticism. West Sussex: Blackwell Publishing Ltd, 2013, p.473,480 16

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Se o individualismo, primeiro de espírito renascentista e depois reformador, dava primazia à relação direta da pessoa com Deus, o misticismo foi sempre parte integrante de todas as religiões. Os protestantes, que valorizavam sobretudo a graça de Deus para se atingir a salvação, davam menos importância às obras, experiência mística incluída23. Mas a realidade é que, dum lado e doutro das fronteiras religiosas de então, a procura direta dos indivíduos duma verdade, da “verdade”, aconteceu tanto através da leitura das Escrituras como da observação da natureza ou da procura interior, mística. Chaunu disse, e muito bem, que a “religião do século XVII é uma religião profundamente individual”24. A valorização do indivíduo e os direitos da sua consciência libertariam as forças da revolução social25. * Duma Europa Protestante para um tempo de novos misticismos. A ContraReforma (ou Reforma Católica) conseguiu reduzir os grandes impactos que a Reforma provocara, em particular no sul da Europa (Espanha e França, sobretudo), onde os misticismos proliferaram com mais força, apesar da oposição inicial da própria igreja católica. Foram tempos de mudança, de descoberta, em que o Homo Religiosus teve de rever a sua relação com o divino, face ao desenvolvimento da ciência e à divulgação do texto bíblico, que não só punha em causa princípios da doutrina católica como ainda a coerência e veracidade das Escrituras. O misticismo, também apelidado de religião do coração, foi uma forma menos racional de reagir à mudança, porém eficaz para quem o praticava, fechando-se o indivíduo numa procura pessoal da sua relação com Deus, baseada na psicologia do próprio ser.

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JONES, Lindsay (ed.), cit.4, p.6342 CHAUNU, Pierre, cit.9, p.72 TAMBURELLO, Dennis, cit.5, p.410

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ALBRECHT, Ruth - Mystical Traditions in Pietism. In LAMM, Julia (ed.) - The Wiley-Blackwell Companion to Christian Mysticism. West Sussex: Blackwell Publishing Ltd, 2013, p.473-488. ÁVILA, Teresa de – Libro de la vida. [em linha]. [consult. 23 Maio 2015]. Disponível na Internet CHAUNU, Pierre – A civilização da Europa Clássica, Vol. II. Lisboa: Editorial Estampa, 1987. ELIADE, Mircea - Historia De Las Creencias Y Las Ideas Religiosas, Vol. III. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1999. FANNING, Steven – Mystics of the Christian tradition. London: Taylor & Francis e-Library, 2005. GOULD, Stephen J. - A Montanha de Bivalves de Leonardo e a Dieta de Worms. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2003. GREGORY, Brad - The Unintended Reformation. Cambridge: Harvard University Press, 2012. HOWELLS, Edward - Spanish Mysticism and Religious Renewal. In LAMM, Julia (ed.) - The Wiley-Blackwell Companion to Christian Mysticism. West Sussex: Blackwell Publishing Ltd, 2013, p.422-435. JONES, Lindsay (ed.) –Encyclopedia of Religion, second edition. Michigan: Thomson Gale, 2005. LINDER, Robert – The Reformation Era. London: Greenwood Press, 2008. LOYN, Henry (org.) – Misticismo. In Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p.518-520. MASSAUT, Jean-Pierre - Erasmo e Lutero. Liberdade ou escravidão do ser humano. In CORBIN, Alain (dir.) – História do Cristianismo. Barcarena: Editorial Presença, 2008, p.228-232. TAMBURELLO, Dennis - The Protestant Reformers on Mysticism. In LAMM, Julia (ed.) - The Wiley-Blackwell Companion to Christian Mysticism. West Sussex: Blackwell Publishing Ltd, 2013, p.407-421.

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