Pelos tempos do espaço da crítica

June 14, 2017 | Autor: V. Ferreira | Categoria: Cultural Sociology, Critics, Cultural mediator
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Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa ISCTE

PELOS TEMPOS DO ESPAÇO DA CRÍTICA

Vitor Sérgio Coelho Ferreira Orientador: Professor Alexandre Melo

Dissertação para a obtenção do grau de Licenciatura realizada no âmbito do Seminário de Sociologia da Cultura ISCTE, Julho de 1995

À minha mãe, pela sua paciência. Ao Metteo e à Inês, pelo tempo de que não pude privar da sua companhia nos seus primeiros dias. E a todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, me incentivaram e me apoiaram nesta (longa) jornada.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO....................................................................................................

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I. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DE PARTIDA 1.1. O Universo da Arte como sistema de Acção Colectiva............................

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1.2. Do Conceito de «Campo» de Relações Sociais.......................................

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1.3. Da Autonomia do Lugar da Crítica no Campo da Imprensa.....................

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II. DA «PROTO-HISTÓRIA» DA PRÁTICA CRÍTICA........................................

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III. DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PRÁTICA CRÍTICA 3.1. O Iluminismo e a Autonomização dos Saberes-para-a-Arte....................

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3.2. A Ribalta do Crítico na Viragem para a «Modernidade» e as suas Condições de Possibilidade....................................................... 3.3. Modalidades, Portagonistas e Sentidos da Prática Crítica.........................

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3.4. O Crítico na Era da Reprodutibilidade e da Mercantilização Cultural....... 161 3.5. Condições de Produção e de Difusão do Discurso Crítico: Do Espaço da Academia para o Espaço da Imprensa..............................

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IV. DESENVOLVIMENTO PARADIGMÁTICO DA CRÍTICA: UM PROCESSO PARA A AUTONOMIA 4.1. A Crítica Para-Objectivista....................................................................

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4.2. A Crítica Para-Subjectivista...................................................................

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4.3. A Querela Barthes-Picard ou a Grande Batalha entre Objectivistas e Subjectivistas.......................... V. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................

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BIBLIOGRAFIA............................................................................................... ANEXOS..........................................................................................................

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INTRODUÇÃO

Ao debruçarmo-nos com a preocupação de um olhar sociológico sobre o universo cultural ou, mais propriamente, sobre o vulgarmente designado "mundo das artes e letras", é-nos dado a observar que, do ponto de vista analítico, são diversos e interdependentes os elementos em contraste nele presentes: a saber, de uma forma genérica, entre os mais visíveis vislumbram-se o artista-criador, com a sua obra própria, assim como o seu público-consumidor. No entanto, podemos também verificar que no contexto da actual conjuntura cultural, para além destas instâncias, um outro sector tem vindo a ganhar peso e a consolidar-se como dimensão fundamental no âmbito dos circuitos estabelecidos no interior daquele universo, o qual engloba todo um conjunto de agentes sociais comummente designados - algo simplisticamente, já que desempenham o mais variado tipo de funções e papeis sociais - de mediadores ou intermediários culturais. Com efeito, protagonistas como, por exemplo, editores, distribuidores, galeristas, empresários, comissários, programadores, etc, assumem hoje um papel fundamental no modo de estruturação e de funcionamento do universo cultural contemporâneo - quer este se refira a um circuito de esfera alargada, quer se trate de um circuito de esfera restrita -, na medida em que a sua entrada, ao interceptar a tradicional relação estabelecida directamente entre o processo de produção e o processo de consumo cultural, veio transformá-la e complexificá-la sobremaneira, inaugurando um novo quadro institucional para a produção e valorização da arte e cultura contemporâneas. No contexto deste novo quadro institucional, não podemos esquecer a importância que os orgãos de comunicação social vieram a adquirir. De facto, com a expansão dos mass media e o crescimento da sua influência, autoridade e credibilidade

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no espaço público, os protagonistas mediáticos assumem actualmente um estatuto central no processo de mediação cultural, nomeadamente através das suas actividades de informação, divulgação e promoção por um lado, assim como da sua actividade crítica por outro. Este estatuto é tanto mais importante quanto existem pistas que nos testemunham o universo das artes e da cultura como um espaço cada vez mais mediatizado, designadamente na última década, em Portugal, onde a atenção pública consagrada aos artistas e aos temas culturais em geral aumentou consideravelmente, passando de condição marginal a condição central.1 A crescente relevância mediática e interesse público dos temas culturais ou mais propriamente artísticos durante a década de 80 no nosso país, pode ser explicada, no dizer de Alexandre Melo, «como uma consequência de uma reorientação estetizante dos investimentos emocionais e intelectuais que em décadas anteriores haviam sido maioritariamente canalizados para o debate ideológico e a actividade política. Estas transformações traduziram-se quer numa crescente atenção concedida pelos poderes públicos à política cultural e à dimensão cultural da produção da imagem interna e externa do Estado, quer numa espécie de diversificação artística dos meios de comunicação social de massas onde as artes plásticas, tal como a moda ou a arquitectura, foram conquistando posições num espaço que anteriormente era quase monopolizado pela literatura.»2 Nestas circunstâncias, o crítico veio a tornar-se numa figura fulcral dentro da teia de mediadores que hoje intervêm activamente no universo das artes e letras, funcionando como um destacado interseptor ou "filtro" na relação estabelecida entre o criador/obra e o seu público. A exposição pública a que o seu lugar social se encontra sujeito enquanto participante do sistema mediático, se, por um lado, em muito determinou o seu avultado peso consagrativo no panorâma cultural recente, por outro, também não deixou de contribuír largamente para a construção da aura de contestação e controvérsia que envolve esta figura, frequentemente polémica e mal-amada. Note-se, todavia, que a escolha da figura do crítico como objecto de estudo da presente dissertação não se encontra arreigada ao pressuposto de que este protagonista detém um papel mais poderoso ou importante que qualquer outro intermediário presente 1

O que é demonstrado por Paquete de Oliveira, in Formas de "Censura Oculta" na Imprensa Escrita em Portugal no pós 25 de Abril, Lisboa, ISCTE, 1988, pp. 437-438 e 444. Quadros nº 1, 2 e 3 parcialmente reproduzidos em Anexo neste trabalho (Cf. Anexos). 2 MELO, Alexandre, "Obcessão e Circunstância", in Comunicação e Linguagens, nº 6/7, Junho de 1988, p. 204. 5

no universo das artes e letras. Prende-se, sim, ao reconhecimento de que a análise localizada desta prática cultural e dos seus respectivos agentes porventura nos ajudará a compreender e a resolver alguns dos problemas que se têm posto à Sociologia da Cultura em relação à dimensão simbólica do mundo das artes, onde a sua acção opera uma eficácia e uma centralidade privilegiada. A este interesse propriamente teórico, juntou-se a curiosidade pessoal despertada pela aura de contestação e polémica tradicionalmente associada à imagem sobre esse protagonista, assim como pela situação complexa em que o seu lugar se encontra, emparedado entre os campos de produção e recepção cultural, onde simultaneamente ocupa as cadeiras de "produtor" e de "espectador", e ainda o campo dos media, dentro do qual a sua actividade é directamente enquadrada. Esse lugar ambivalente e algo "desconfortável" por vezes, sugeriu-nos algumas ambiguidades, contradições e tensões que, na nossa opinião, se demonstram passíveis de compreensão e interpretação sociológica. Aceitando este desafio, decidimos então dedicar à actividade crítica uma atenção específica, com o objectivo prioritário de apurar as componentes definidoras do seu estatuto e os elementos condicionantes das suas diversas situações socio-culturais ao longo da sua (ainda) curta história, quer na sua especificidade própria, quer na sua relação de interdependência com as outras práticas e respectivos agentes culturais que se cruzam no quotidiano do seu exercício. Actualmente o quadro é o seguinte: o artista, por força do seu talento, naturalmente cria; o crítico, em confronto com o objecto criado e por força dos seus conhecimentos e da sua sensibilidade estética apurada, naturalmente assume perante aquele o papel de juíz e de intérprete, sendo de si esperada a expressão pública do seu juízo e comreensão; o público, quando interessado em matéria de cultura, naturalmente mantém-se atento ao trabalho de ambos. Mas se a cena aqui representada por este trium virato é de facto natural nos dias de hoje, tal nem sempre aconteceu desta forma. Ela só aparece em determinado momento da história das artes, sendo resultado de um lento processo ao longo do qual se foram reunindo as condições propícias não só à proeminência da prática crítica no interior do campo artístico, como também à sua própria constituição e consolidação enquanto campo estruturado. Nesta perspectiva, de maneira a evitar deixarmo-nos prender pelos efeitos de naturalização que a própria história produz, efeitos esses tão comodamente favoráveis à legitimação da necessidade da presença de qualquer grupo no mundo social e à dissimulação da arbitrariedade do poder efectivo que nele exerce, disposemo-nos, como 6

primeira etapa de um projecto de investigação empírica e discussão teórica de ambição bastante mais alargada, a percorrer e a reconstituir em passos largos a lógica do trabalho histórico subjacente ao processo de institucionalização dessa figura tão contestada mas simultaneamente tão procurada no campo artístico que é o crítico, procurando identificar e compreender as condições sociais, culturais, económicas e políticas que estiveram na génese e no desenvolvimento desse processo. Note-se, contudo, que não pretenderemos aqui fazer uma "história da crítica", mas tão-somente dar conta de um olhar sociológico sobre essa mesma memória já historicamente constituída. Definido e justificado, em traços gerais, o objecto de estudo do presente trabalho, tratemos então de esboçar um pequeno resumo do que irá ser o seu percurso. Começaremos por apresentar os principais pressupostos teóricos de partida da nossa abordagem, assim como os seus elementos conceptuais de enquadramento centrais. Neste âmbito, daremos conta do universo artístico enquanto sistema de acção colectiva - em que a par do criador surge toda uma série de agentes intermediários que, para além de fazerem a "ponte" entre este protagonista e o seu respectivo público, também interferem activamente no processo de produção e validação da arte e do artista enquanto tal -, e localizaremos a figura do crítico e o seu respectivo contributo dentro desse mesmo sistema. Considerando que o nosso olhar sobre o espaço da crítica terá como principal fonte de inspiração teórica a "teoria dos campos" de Pierre Bourdieu e que, por consequência, a operacionalização do conceito de campo e daqueles que lhe estão intrinsecamente relacionados será implícita e explicitamente constante no percurso de todo este trabalho, dedicaremos ainda parte deste primeiro capítulo à apresentação dos principais vectores conceptuais desse modelo teórico, cuidando de justificar a pertinência da sua adopção ao espaço específico da crítica. Terminaremos este capítulo com a análise da especificidade e da luta pela autodeterminação do espaço da crítica na sua intersepção com o campo da imprensa escrita, reconhecendo ser por aqui que a sua autonomia enquanto campo se vê mais ameaçada. De seguida, explicitaremos então o contexto histórico em que se desenrolou o longo processo de demarcação e emancipação do discurso crítico em relação a outras práticas discursivas exercidas em torno das artes, restituindo as condições sociais, culturais, económicas, institucionais e propriamente estéticas que estiveram na base da proeminência da figura do intermediário cultural em geral e do crítico em particular no universo das artes e letras, na sua busca por um lugar social e por um estatuto cultural 7

específico. A partir daqui o nosso trabalho aparecerá bifurcado em três grandes partes: na primeira, correspondente ao capítulo II, serão analisadas as condições sociohistóricas que precederam o surgimento da crítica na sua especificidade, tendo-o possibilitado, sendo o capítulo III dedicado à análise das condições que proporcionaram a sua consolidação enquanto disciplina autónoma, discurso específico e prática especializada. Este capítulo, por motivos que se prendem a uma preocupação de racionalização analítica e de simplificação discursiva, perderá a lógica de organização eminentemente cronológica até aí característica, e assumirá uma lógica, podemos dizer, factorial, na medida em a nossa análise aparecerá aqui subdividida tendo em conta os diversos factores que, reunidos, propiciaram a gradual institucionalização e a crescente projecção, dominação e autonomização social da figura do crítico no campo de produção cultural. Posteriormente, no capítulo VI, passaremos à explanação dos diversos vectores e valores programáticos através dos quais a prática crítica veio a reger-se na relação supostamente privilegiada que mantém com a obra de arte, tendo em conta que esse desenvolvimento paradigmático traduz, como iremos ver, a luta teoricamente empreendida pelo crítico no sentido da delimitação, conservação e legitimação da autonomia do seu espaço e do seu estatuto de receptor privilegiado, accionando simultaneamente estratégias de libertação e de independência da sua leitura crítica em relação aos elementos culturais com que, inevitavelmente, lida no decorrer da sua actuação, ou seja, o criador, a obra e o seu respectivo receptor. Ao longo de todo este trabalho, verificar-se-á a introdução de algumas "caixas" com informação empírica e comentário teórico que nos remeterão directamente para o caso concreto da situação da crítica em Portugal, não só no passado como também no presente, de modo a saciar, em parte, a curiosidade de alguns leitores mais interessados, para quem se porá a questão "E hoje, em Portugal, como será?". Dizemos em parte porque a resposta a esta questão particular será objecto de um trabalho posterior, já projectado, o qual, dada a sua ambição temática e a amplitude da informação até agora recolhida, não coube no tempo e no espaço disponível para a presente dissertação (já largamente ultrapassado). A informação que aqui aparecerá sumariamente apresentada num ponto de vista meramente ilustrativo e exemplificativo, será então, num futuro próximo, conjuntamente com muita outra, metodologicamente sistematizada e analiticamente dissecada, aprofundada e apresentada, em si e por si.. Mas, desde já fica feita a promessa, de que o leitor não perderá com a demora. 8

Finalmente, este trabalho terminará com o tecer de algumas breves considerações em tom de síntese conclusiva sobre o processo que nele fomos apresentando e discutindo, acentuando as suas principais linhas de força e aproveitando para, desde logo, formular algumas questões e lançar algumas pistas sobre as actuais condições e características estruturais deste lugar específico que é socialmente reservado ao crítico de algum tempo a esta parte, questões, pistas e considerações essas que se nos foram pondo ao longo do trajecto que, desde já, iremos percorrer através dos tempos do espaço da crítica.

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I. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DE PARTIDA

1.1. O UNIVERSO DA ARTE COMO SISTEMA DE ACÇÃO COLECTIVA É relativamente fácil constatar que qualquer elemento da realidade material é passível de ser transformado em obra de arte desde que um artista o assine e o assuma como tal, fenómeno que foi visivelmente demonstrando pela arte contemporânea na sua matríz dadaísta, nomeadamente com os ready mades de Duchamp e, mais recentemente, quando imagens e objectos industrialmente produzidos e banalmente utilizados começaram a aceder ao estatuto de objectos de arte, assumindo um carácter único e extraordinário desde o momento em que foram submetidos à intervenção do artista, que muitas vezes se reduz à inscrição da sua assinatura e de um título. Diante de tal situação, são múltiplas as questões que se podem colocar do ponto de vista sociológico: o que define a particularidade dos objectos de arte e os distingue dos restantes objectos com que nos deparamos na nossa vivência quotidiana? O que é que faz com que determinado artefacto seja considerado arte e não um simples utensílio funcional ou de decoração? Como é que um simples urinol ou uma vulgar garrafeira se tornam objectos passíveis de serem expostos num museu ou galeria? Por outro lado, como é que se define o artista? Como se acede a este estatuto supostamente tão especial e particular? Como é que se faz de um artista um criador, em oposição a um artífice ou a um comum «pintor de domingo»? O que é que potencia a eficácia quase mágica da sua assinatura, a qual multiplica várias vezes o valor estético, social e económico do objecto em que aparece inscrito? A abordagem destas e outras questões relacionadas com a arte e o artista tem-se efectivamente revelado para a Sociologia um desafio particularmente interessante e

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aguerrido na sua tentativa de desestruturar, denunciar e explicar todo o sistema integrado de mitos e esteriótipos que, de algum tempo a esta parte, veio proteger essas entidades, pretensamente intocáveis na sua imaculada aura de singularidade e essencialidade ontológicas. Com efeito, desde a Renascença, e mais acentuadamente ainda a partir da revolução cultural romântica3, o artista viu-se associado à imagem do ser excepcional, do indivíduo em si especialmente dotado para as artes por via metafísica ou biológica, criador total e soberano das suas obras, também estas em si portadoras de um valor e sentido artístico universal e perene, constituindo testemunhos únicos de uma expressão de beleza, inteligência e sensibilidade estética raras. Nesta óptica, a originalidade estética, ao mesmo tempo que resultaria da pressuposta excepcionalidade do seu criador, testefica-a também, fechando-se assim o círculo de legitimação numa reciprocidade redutora e tautológica entre sujeito e objecto supostamente em si mesmos artísticos: ele é artista porque cria obras de arte, sendo estas consideradas como tal porque criadas por um artista. Na base do fenómeno de ensimesmamento do objecto de arte e do artista como realidades ontológicas está, pois, o exacerbamento de uma ideologia carismática da criação que, ao fazer do criador e do seu respectivo talento o princípio primeiro e último do valor e sentido estético das suas obras, subjectiva, intimiza, personaliza e naturaliza ao extremo todos os constrangimentos e mecanismos de ordem social que o envolvem no decorrer da sua carreira. O olhar de quem se interessa pelas temáticas artísticas foi, deste modo, muitas vezes orientado na estrita direcção daquele que é apenas o produtor do objecto artístico na sua materialidade, fazendo-se esquivar esse olhar da procura de quem, de forma discreta mas concreta, também entra no processo metamórfico do valor simbólico do objecto artístico, assim como no círculo de produção e de legitimação da criador enquanto artista, aparecendo dissimulada a acção culturalmente consagrativa e valorativa de todos os que o rodeiam. No entanto, a intromissão da Sociologia no espaço das artes veio, desde cedo, desmistificar e des-sacralizar o carácter a-social e essencialista a este associado, determinando que é arte e artista o que e quem como tal for socialmente produzido e reconhecido. Já Jan Mukarovsky, semiólogo e teórico da literatura, abordava nos anos 30 esta problemática redimensionando-a sociologicamente, postulando a existência de

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Como adiante, no capítulo II, verêmos mais aprofundadamente. 11

uma distinção efectiva entre o que denominou de obra-coisa ou artefacto material e o objecto estético ou obra de arte, fazendo corresponder o artefacto ao que é materialmente produzido e o objecto estético ao resultado da relação simbólica estabelecida entre o sujeito-receptor e o artefacto material, ou seja, ao efeito ou reflexo do(s) significado(s) correlativo(s) ao artefacto na consicência individual dos receptores. Nas suas palavras, «o artefacto, sem mudanças possíveis na sua estrutura, é fonte de significado que o leitor tem de constituír, o ponto de partida para todas as concretizações da obra por parte dos seus receptores; a obra, na sua totalidade, não se pode reduzir ao artefacto»4. Também Marcel Mauss, etnólogo francês, longe de postular os objectos artísticos como intrinsecamente detentores de uma eficácia própria, atentava nos anos 40 para o facto destes serem sempre definidos como tal por um determinado grupo5. Podemos pois aperceber-nos de como ambas as posições já dão conta do carácter social e simbólico da arte, rompendo com as perspectivas ontológicas que tradicionalmente dominavam a sua abordagem na época, perspectivas essas que preconizavam o valor estético como um valor imanente à própria obra, como se de uma "essência" se tratasse. Mukarovsky, pelo contrário, pressupõe que apenas o artefacto material tem uma realidade ontológica, a qual é passível de ser esteticamente valorizada e de, por consequência, se tornar artística quando simbolicamente concretizada no receptor enquanto tal, pertencendo então o objecto estético a uma realidade subjectivamente construída. Mauss irá mais longe na sua análise, apresentando tal concretização já como dependente não apenas da subjectividade do receptor, mas de todo um conjunto de agentes sociais que enquadra o objecto artístico, iniciando a sua definição como uma realidade cultural socialmente construída. A partir daqui, é posta em causa a categorização das obras de arte como objectos privilegiados em si próprios, ontologicamente distinta dos objectos utilitários, pressupondo-se que o que se proclama como artístico é sempre algo de não artístico que é simbolica e esteticamente investido como artístico no acto de recepção. Tudo depende do olhar perante o objecto e do que se encontra escondido por detrás desse olhar, sendo o próprio observador que determina o modo segundo o qual o objecto é percebido. Significa isto que, embora a obra de arte pareça admitir na origem um certo indivíduo 4

Cit. in COELHO, Os Universos da Crítica, Lisboa, Edições 70, 1987, p. 393. Ver DAMISCH, "Artes", Enciclopédia Einaudi, nº 3, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984, p. 12.

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como autor, o acto estético de que resulta não se conclui no acto de criação, mas na sua fruição enquanto tal. A própria percepção do objecto não se limita a um simples captar contemplativo, tem também uma função activa, no sentido em que com ela acontece acontecem os actos de juízo, de atribuição e de reconhecimento subjacentes à metamorfose do seu valor simbólico. Donde a sua "vida artística" estará sempre dependente do facto de ser olhado como artístico. E se é no olhar que vai a intenção estética, podemos então concluir que será estético, isto é, passível de ser considerado arte, tudo aquilo para que, em determinado momento e contexto social, alguém olhe e atribua uma intenção estética, o que implica que tal objecto passe a ser olhado menos pela sua função e utilidade do que pela sua forma e conteúdo. Todavia, há que ter em conta que o olhar desse "alguém" não é nunca o olhar de um "alguém qualquer", mas sempre de um "alguém cujo olhar sabe ver", ou seja, um "alguém" cuja legitimidade social e cultural lhe permite accionar e promover o processo de trans-substanciação simbólica do artefacto material em objecto estético ou artístico. Quer isto dizer que se só no pólo da recepção da obra se decidirá acerca do seu estatuto artístico, existem porém nesse mesmo pólo indivíduos que têm uma autoridade legitimadora mais poderosa e, nessa medida, mais eficaz. A obra de arte só é passível de existir como tal, ou seja, como objecto simbólico investido de sentido e de valor estético, se como tal for apreendida e apreciada pelos actores dotados das disposições e das competências estéticas tacitamente exigidas e reconhecidas no universo propriamente artístico como legítimas para conhecê-la e reconhecê-la como tal. E que actores são esses? Quem são os verdadeiros produtores do artista como criador e do valor estético da sua obra? Num grau de sofisticação, complexificação e aprofundamento conceptual substancialmente acrescido, as ideias-chave avançadas pelos autores atrás citados foram amplamente retomadas no recente desenvolvimento da abordagem sociológica do fenómeno artístico, abrindo caminho ao enquandramento analítico deste enquanto sistema de acção colectiva, isto é, como um espaço social que compreende o lugar e o papel para diversos agentes que se inter-relacionam e trabalham com o mesmo fim produzir a ilusão da arte. Com figuras tão marcantes como Pierre Bourdieu e Howard Becker na proa desse debate teórico, o sentido e o valor artístico vieram ser definitivamente denunciados como fazendo parte de um amplo trabalho colectivo de produção e legitimação social, onde intervêm activamente os múltiplos agentes que se 13

movem no interior do campo artístico ou do mundo das artes, isto é, do universo social específico que lhe confere o estatuto de candidato à apreciação estética. Bourdieu apresenta-nos o processo de produção dos criadores e das obras ditas artísticas ou, se se quiser, de aferir quem é artista ou quem não é, o que é arte ou o que não o é, como fazendo parte de uma imensa empresa de alquimia social, na qual colaboram, com a mesma convicção mas com lucros muito desiguais, todo o conjunto de agentes que se movem e se relacionam no campo artístico, que nele têm interesses e que dele e para ele vivem (em graus e modalidades bastante diferenciadas), entre os quais a circulação e a troca de inúmeros actos de delegação de créditos de autoridade e de reconhecimento mútuo de poder simbólico é constante: dos artistas entre si, com as exposições de grupo ou os prefácios através dos quais os autores consagrados consagram os mais jovens que os (re)consagram em retorno como mestres, entre os artistas, os críticos e os agentes de comercialização das suas obras, trio que se consagra reciprocamente; entre os artistas, os seus mecenas e o seu público, e assim por diante. Segundo este autor, é no interior desta vasta rede de relações de troca, onde circulam os actos de crédito através dos quais os agentes (a)firmam o seu próprio crédito deixando-se creditar e creditando outros agentes da sua confiança, que o valor do artista e da sua respectiva obra é produzido, ao mesmo tempo que, dada a natureza diluída e camuflada deste regime de trocas, é produzida a crença no poder criador do artista: «ce qui "fait les reputations" ce n'est pas, comme le croient naivement les Rastignacs de province, telle ou telle personne "influente", telle ou telle instituition, revue, hebdomadaire, académie, cénacle, marchand, éditeur, ce n'est même pas l'ensemble de ce que l'on apelle parfois "les personnalités du monde des arts et des lettres", c'est le champ de production comme systemme des relations objectives entre ces agentes ou ces instituitons et lieu de lutes pour le monopole du pouvoir de consécration où s'engendrent continûment la valeur des oeuvres e la croyance dans cette valeur.»6 É a partir deste ponto de vista que Bourdieu se refere à arte como uma impostura socialmente legítima, como um fetiche bem fundamentado na e pela lógica do campo onde é produzida, sendo o princípio da eficácia de todos os actos de consagração e de valorização do criador e das suas obras resultante das lutas incessantes e inumeráveis que, visando a imposição de uma determinada visão do mundo das artes como a

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legítima, opõem a pluralidade de agentes e instituições em concorrência nesse mesmo espaço, conflitos esses estabelecidos quer entre os que ocupam posições diferenciadas na produção de bens da mesma espécie, quer entre aqueles cujos interesses estão associados a bens culturais diferentes, actuando todos como adversários cúmplices. Este fenómeno de cumplicidade na luta, aparentemente paradoxal do ponto de vista analítico, forja-se na partilha tacitamente aceite em relação quer ao interesse no jogo que se estabelece na e para a produção da arte e do artista, quer às regras desse jogo, quer ainda à crença no valor social e cultural do próprio jogo. Nesta perspectiva, é suposto a Sociologia das Artes tomar como objecto de estudo não apenas os agentes da produção material das obras - em ruptura com uma certa "história social das artes", que se limitava a analisar as condições sociais em que o artista nascia e era formado, deixando assim intacto o essencial do modelo tradicional de criação artista, ou seja, o artista como produtor exclusivo do valor e do sentido da sua obra7 -, mas também todo o sistema integrado de instituições e agentes especializados que o rodeiam e que com ele se relacionam pessoal ou mediaticamente, participando directamente na produção e legitimação do seu estatuto e no estatuto artístico da sua obra, quer em termos simbólicos, quer em termos de mercado. A saber, trata-se do conjunto de agentes individuais e institucionais profissionalmente responsáveis pela circulação e distribuição pública dos artefactos (editores, programadores, comissários, conservadores de museus, empresários, júris, salões, feiras e outros espaços de apresentação pública, etc), os agentes responsáveis pela acção discursiva sobre esses mesmos objectos e os seus respectivos criadores (jornalistas, críticos, historiadores, estetas e outros académicos), o conjunto de instâncias políticas e administrativas com competência específica em matéria de artes (Ministérios, Secretarias de Estado, Fundações, Autarquias, etc), o conjunto de instâncias de formação artística (Academias, Universidades, Cooperativas e outro tipo de escolas de arte), o conjunto de instâncias de enquadramento nuclear (grupos de pares, círculos, associações, agremiações, etc), sem esquecer as instituições que responsáveis pela inculcação inicial de disposições artísticas, a começar pela Família e pela Escola, e os próprios públicos consumidores sistemáticos ou esporádicos.

6 BOURDIEU, "La Production de la croyance: contribuition à une economie des biens symboliques", in Actes de la recherche en Sciences Sociales, nº 13, Setembro de 1977, p. 7 (os itálicos são nossos). 7 Tradição histórica essa que tem o seu expoente máximo em Arnold Hauser (ver bibliografia).

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Tal como Bourdieu, também Becker tenta restituir na sua proposta teórica a dimensão colectiva do trabalho artístico, utilizando para isso o conceito de mundo da arte. Segundo este autor, a produção da arte é feita mediante um processo rotineiro de cooperação que implica não apenas a acção dos criadores das obras na sua materialidade, mas de toda a rede de agentes e instituições culturais que participam na difusão e reconhecimento social desses mesmos trabalhos enquanto artísticos, constituindo o núcleo de suportes sobre o qual é construída a reputação do seu criador como artista. Esse trabalho de cooperação é organizado segundo determinadas convenções consensualmente estabelecidas e partilhadas entre todos os participantes de determinado mundo da arte, as quais servirão como critérios de referência na percepção e avaliação cultural dos produtos nele candidatos ao estatuto artístico. Para abreviar, nas suas palavras: «art worlds consist of all the people whose activities are necessary to the production of the caracteristic works which that world, and perhaps others as well, define art. Members of art worlds coordinate the activities by which work is produced by referring to a body of convencional understantings embodied in common practice and in frequently used artifacts. The same people oftem cooperate repeatedly, even routinely, in similar ways to produce similar works, so that we can think of an art world as an established network of cooperating links among participantes. Works of art, from this point of view, are not the products of individual markers, «artists» who possess a rare and special gift. They are, rather, joint products of all the people who cooperate via an art wold's characteristic conventions to bring works like that into existence. Artists are some subgroup of the world's participants who, by common agreement, possess a special gift, therefore make a unique and indispensable contribution to the work, and thereby make it art.»8 Podemos notar, no entanto, que a linguagem da solidariedade, da cooperação, que encontramos associada à noção de mundo da arte em Becker contrasta bastante com a linguagem bélica, combativa, subjacente ao conceito bourdiano de campo artístico. Embora ambos os autores postulem a produção artística como sistema de acção colectiva, rompendo de uma vez por todas com o enfeudamento ao mito romântico e burguês do criador isolado e pondo em presença nesse sistema todo o rol de agentes e instituições que também contribuem activamente na operação de transmutação simbólica da obra-coisa em objecto artístico, o segundo conceito referido parece

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apresentar-se heuristicamente mais valioso e profícuo que o primeiro, pois se a noção de mundo de arte proporciona a uma análise de natureza mais descritiva e enumerativa, a de campo, entendida como espaço de lutas simbólicas, permite-nos a par dessa análise dar igualmente conta da estrutura objectiva de relações de força existente entre agentes e instituições culturais presentes no universo das artes, assim como da sua dinâmica de funcionamento. No entanto, com as suas respectivas divergências, ambas têm o mérito de partilhar um potencial devastador na ruptura com as visões essencialistas e ontológicas da arte e do artista que durante tantos séculos perduraram, tão sedutoras e convenientes no âmbito da lógica inerente ao funcionamento do seu espaço social. Ao olharem para este despojados dos preconceitos associados ao carácter sagrado e inacessível que tradicionalmente o envolviam, recusaram-no como espaço de existência puramente ideal (tendo, porém, reconhecido a sua autonomia relativa no interior do corpo social), clarificando as condições sociais da produção da arte e do artista, denunciando os laços de dependência e integração que tais instâncias mantêm com o mundo social, e restituindo a sua dimensão de trabalho colectivo. Mas se falar da arte e do criador como se não o fossem na realidade foi um bom começo, remetendo-os para o domínio da crença, do mito, da ilusão, da impostura, enquanto socialmente integrados e produzidos no interior de um determinado sistema de condições e de relações, sempre datadas e contingentes, essa denúncia teve o "senão" de, no seu desenvolvimento teórico, ter sido muitas vezes exarcebada. Com efeito, na sua luta contra os princípios da denegação do social e do individualismo naturalista e espontaneista profundamente enraizados no universo das artes, pretendendo resgatar a todo o custo a dimensão de acção colectiva nele objectivamente presente, a Sociologia das Artes acabou por cometer algum excesso de sociologismo, ao fazer diluir toda a individualidade, subjectividade e capacidade inovadora intrínseca aos actos de vontade do sujeito-criador num emaranhado sufocante de estruturas totalitárias e deterministas, não se acanhando em remeter o papel dos seus atributos pessoais e subjectivamente investidos, como o conhecido talento, para o terreno do mitológico, da mera crença conveniente, sem sequer se preocupar em lhe conceder o benefício da dúvida acerca da sua efectividade histórica.

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BECKER, Art Worlds, Los Angeles, University of Califórnia Press, 1982, pp. 34-35 (os itálicos são nossos). 17

Nesta perspectiva, foi recentemente colocada no âmbito desta disciplina a discussão, de inegável pertinência, sobre até onde vai realmente a dependência e contingência social da arte, aqui entendida como praxis socialmente situada mas efectivamente criadora, cuidando de repôr a mediação das experiências e componentes subjectivas e inventivas do artista na dinâmica social da arte, assim como, simultaneamente, de relativizar o peso das condições e das relações objectivas em que se insere. O eixo do olhar sobre o fenómeno artístico deslocou-se assim, mais uma vez, no sentido de um retorno ao sujeito-criador, mas aqui abordado em moldes totalmente diferentes dos tradicionalmente característicos deste tipo de abordagem mais individualista. De facto, após a euforia da denúncia, sente-se hoje nesta zona do conhecimento sociológico um clima de calmaria e de discernimento propício à inauguração de uma nova fase de pós-denúncia, caracterizada pelo facto de ser projecto de alguns entre a Sociologia, por um lado, o de devolver a individualidade do artista sem cair no exclusivismo extremista de um «individualismo espontaneísta e subjectivista», que pressupõe a «incomensurabilidade dos criadores entre si» sendo cada um naturalmente «devedor da sua própria subjectividade», isto ao mesmo tempo que, por outro, se tenta ultrapassar a outra posição extremada que muitas vezes caracteriza a Sociologia das Artes, ou seja, a de privilegar «um exclusivismo de tipo holista, estruturalista e objectivista» que, correndo o perigo de uma totalização hegemónica do colectivo sobre o indivíduo criador, não deixa compreender sociologicamente aquilo que talvez seja o traço mais distinto deste personagem no espaço social em que se move, ou seja, a sua singularidade social9. Longe da sedução e aceitação incondicional das correntes tradicionais de denúncia sociológica, o que se propõe nesta posição é, em última análise, a visão de uma criatividade individual, todavia sempre socialmente situada e reclamada. Certo é que existem condicionamentos sociais diversos junto do artista, facto que não pode ser negado, já que a sua actividade criativa é sempre exercida dentro das fronteiras de um dado espaço de possibilidades estruturalmente estabelecido em determinada conjuntura e contexto cultural - espaço esse que compreende factores como a condição e o estatuto socio-profissional do artista, as linhas de força dos modelos da tradição estética dominante e da inovação vanguardista, o nível técnico e tecnológico atingindo no

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campo, os temas e problemas então em voga, os meios materiais de expressão disponíveis e ao seu alcance, os meios de difusão e circulação facultados, o perfil dos vários públicos interessados em coisas de cultura, entre muitos outros. Todos estes factores, em conjunto, orientam o criador no modo como pensa, sente e actua no seu domínio de actividade, sendo desta forma assegurada através da sua própria conduta pessoal a performatividade das estruturas colectivas em que se vê inserido10. Por outro lado, também sabemos que, de facto, o criador nunca se encontra sozinho na produção de si e das suas obras como artísticas, ele não é o alfa e o ómega da sua reputação, assim como do sentido e do valor estético dos artefactos que produz materialmente, pois, como atrás ficou realçado, na afirmação do seu estatuto como artista, tal como na afirmação do estatuto artístico da sua obra, interfere sempre uma comunidade de agentes especializados que, socialmente investidos do poder simbólico de nomeação e consagração artística e valorização estética, actuam em conjunto no sentido de produzir a autoridade em que o criador se autoriza na realização da sua condição de autor e na proclamação da sua obra como artística. Mas se os artistas enfrentam e inserem-se num quadro de condições e de relações particulares que afectam inevitavelmente os resultados do seu trabalho, não devemos igualmente esquecer que, em simultâneo, na conjunção complexa de todas essas condicionantes de ordem estrutural, conjuntural, contextual e institucional, é-lhes sempre oferecida uma larga margem de escolha, de decisão e de inovação pessoal, amplamente favorável à actualização dos seus actos de vontade criativa, à apresentação da sua maneira pessoal de assimilar e interpretar esteticamente o mundo em que vive, assim como de utilizar toda a herança cultural que lhe foi transmitida no passado e de que dispõe no presente, no que essa compreende de incorporação - por via formal ou informal - de recursos sensitivos, cognoscitivos e técnicos ao longo de toda a trajectória social do artista. Mesmo que, convenhamos, essa mesma maneira pessoal tenha sempre por referência determinadas condições de existência e seja sempre regulada e codificada em relação a estilos já socialmente conhecidos e consagrados que funcionam como matrizes de orientação, ela tenderá a conter sempre componentes de criação individual, nas suas dimensões de desvio e de alternativa estética, não significando pois, inevitavelmente, 9

CONDE, O Duplo Écran. 2.Artistas: Indivíduo. Ilusão Óptica e Contra-Ilusão (Provas Académicas), Lisboa, ISCTE, 1992, pp. 11-12. 10 Idem, pp. 18-19. 19

conformidade com os modelos existentes e socialmente seguros. Tal hipótese adquire ainda maior pertinência se tomarmos em linha de conta que uma das propriedades mais características do campo artístico depois do século XIX é, justamente, o que Bourdieu chamou de institucionalização da anomia11, propriedade essa que nos remete desde logo para a figura do artista situado num quadro social de progressiva individualização, onde é deixada uma ampla margem de liberdade, logo de interferência, à operacionalidade das suas próprias disposições estéticas e éticas, sendo os actos de transgressão intencional por ele perseguidos não apenas socialmente consentidos, como até socialmente exigidos. Com efeito, a par de todos os constrangimentos sociais a que o artista se vê actualmente sujeito, um deles sobressai pelo seu peso, aqui sim, podemos dizer determinístico: a sua própria auto-produção como indivíduo singular, processo que engloba não apenas o investimento pessoal na originalidade estética do seu trabalho, como também, frequentemente, o investimento na originalidade do seu estilo de vida quotidiano e das características associadas à sua pessoa, recolhendo muitas vezes daí dividendos simbólicos e de visibilidade social sobre si próprio e sobre a sua obra. Tomando o desvio como norma e valor social fundamental no seu quotidiano artístico e não artístico, o artista, com a ajuda imprescindível das instâncias sociais que o rodeiam mais de perto e que constroem a sua reputação, tentam sempre fazer por gerir e perspectivar personalisticamente a sua carreira, fazendo emergir e associar ao seu retrato, no conjunto da sua vida e obra, a excentricidade, a extravagância, a excepcionalidade justificativas da sua singularidade pessoal, socialmente reclamada e creditada. Assim sendo, o facto do artista muitas vezes querer aparentar-se como totalmente desconectado de todo e qualquer tipo de imperativo material, cultural ou social é, na verdade, impelido pelas próprias condições estruturais do campo em que se insere, que lhe confere o estatuto de individualidade, promovendo-o a cidadão de excepção, a sujeito insubstituível e inintermutável, dando-lhe por este meio acesso a uma ampla margem de manobra na tradução estética dos seus acontecimentos interiores, assim como na materialização das suas intenções transgressoras enquanto autor face às características da produção dominante de uma dada conjuntura. É neste sentido que Idalina Conde conceptualiza o campo de criação artística como uma

11

BOURDIEU, "Institucionalização da Anomia", in O Poder Simbólico, Lisboa, Difel, 1989, pp. 25520

comunidade de individualidades, onde, numa «correlativa atmosfera de concorrência interpares», cada um «está socialmente comprometido no projecto pessoal de não interromper a busca, reciclagem e superação dos limites continuamente fixados por si para si próprio», o que, inegavelmente, «há-de conduzir ao extremar das idiossincrasias pessoais num grau compreensivelmente superior ao de outros meios sociais de raíz colectivista»12. Dentro deste contexto teórico, que lugar fica então reservado ao talento, esse atributo individual que a lógica do campo artístico considera inestimável e intransmissível, e cuja posse, com uma frequência e uma convicção que não podemos ignorar, a sua população costuma invocar como base justificativa do sucesso de uma carreira artística, ao mesmo tempo que, com uma não menor frequência e convicção, a Sociologia teima em negar a sua efectividade, remetendo-o para o nível estritamente ideológico da experiência subjectivamente vivida e racionalizada pelo artista? Embora não se tenha aqui pretensões a desvendar todo o mistério que envolve essa caixa negra que constitui o talento, nomeadamente no que ele supõe de natureza específica, íntima e interiorizada do sujeito criador, também não se tem a veleidade de negar o seu valor, sequer a sua existência, ou então correrer-se-á o risco de partir de premissas tanto ou mais ideológicas do que aquelas que invocam a soberaneidade de tal atributo, perdendo-se de vista uma das dimensões mais importantes do mundo artístico. O facto é que num universo onde se encontra profundamente enraizado o culto da individualidade carismática, sendo os talentos objectivamente esperados e estimulados, e em que todo o tipo de tradição e normalização cede perante a inovação, todos os recursos que consubstanciam a singularidade do sujeito na transposição da sua ideia estética, como a sua imaginação, sensibilidade, habilidade e energia criativa, ao serem socialmente exigidos no desempenho de uma actividade artística, não deixam de deter a sua cota parte de intervenção na dinâmica de funcionamento do mundo das artes. É neste sentido que podemos tomar as palavras de Idalina Conde, ao afirmar que: «a totalização histórica procurando linhas estruturais de desenvolvimento não pode dissolver a contingencialidade inerente a atributos intrínsecos ao indivíduo directamente reclamados na actividade criativa, ou seja, o carácter acidental do talento, esse recurso pessoal certamente devedor mas nunca inteiramente redutível ao capital de formação

279. 12 CONDE, O Duplo Écran. 2.Artistas..., op. cit., pp. 30-31 e 67. 21

adquirida no curso da socialização artística partilhada com outros e que, sem dúvida nas condições dadas, tem um inegável potencial de interferência histórica.»13 No entanto, como aliás a autora faz questão de frisar, é evidente que «esse potencial de interferência não se deve a nenhuma "transcendência histórica" de indivíduos particularmente dotados e descontextualizados»14, pois para o compreender, ter-se-á de ter em conta as condições de acesso do artista ao estatuto de individualidade com audibilidade e relevância colectiva. Esta posição não é, pois, tomada com a ingenuidade impressionista que muitas vezes adquire junto do senso comum, quando a importância das componentes subjectivas que informam a acção individual do criador é sobreposta à autoridade das condições sociais objectivas em que ele se vê inserido. Se bem que o carisma do sujeito, a sua convicção, vontade e força pessoal em se impôr como artista, assim como o seu esquema de afirmação da vocação, isto é, aquilo que a sua ideia artística deixa transparecer em termos de pesquisa, riqueza e novidade estética, sejam factores substancialmente importantes no processo de entrada e construção de uma reputação no campo artístico15, o peso dos mecanismos e contextos sociais que o envolvem nesse processo é bastante elevado face à força de uma provável vocação. O sucesso da sua obcessão depende, de facto, da circunstância que a rodeia16. É esta, efectivamente, a realidade para que apontam enfaticamente os resultados dos diversos estudos e análises de natureza sociológica empreendidos sobre o universo da sua actividade. Todavia, não se deverá antever a priori uma relação de incompatibilidade mas antes uma relação de convergência analítica entre a lógica da regularidade sociológica e a lógica da singularidade artística. Quer isto dizer que entender o sistema da arte como sistema de acção colectiva não implica necessariamente fazê-lo operar como um sistema totalitário, normalizador, pois a singularidade do próprio artista, transposta no testemunho da originalidade das suas obras, é ela própria disponibilizada e exigida pelo sistema, que cria condições estruturais para a sua emergência e visibilidade. Embora sempre socialmente situada e condicionada por múltiplos factores, a criatividade é sempre passível de acontecer, pelo que a Sociologia, ao pretender restituír as

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Idem, p. 26. Ibidem, p. 28. 15 Como pertinentemente aponta Raymonde Moulin numa entrevista recentemente concedida ao semanário Expresso, publicada no dia 10 de Dezembro de 1994, p. 117. 16 As expressões evidenciadas são da autoria de Alexandre Melo, aplicadas para denominar duas das principais formas de legitimação social do artista enquanto tal, in "Obcessão e Circunstância", op. cit. 14

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circunstâncias sociais em que a arte e o artista são objectivamente investidos e produzidos como tal, não deverá nunca perder de vista o grau de relativa efectividade dos atributos subjectivos que o criador mobiliza - enquanto sujeito também autor dos seus actos e ideias - nesse processo, traduzidos na originalidade e relevância da sua obra em determinada conjuntura cultural. Por outro lado, ainda no âmbito do levantamento da interferência das componentes subjectivas da acção do artista no processo de produção social da arte, há que considerar também que a acção deste elemento não se limita apenas a produzir a obra na sua materialidade, pois, como argumenta Teresa Cruz, a própria intencionalidade que se encontra subjacente ao acto de fabricação de que é responsável desempenha também um papel importante na travessia do seu estatuto e do estatuto dos objectos que cria para o interior da instituição artística, na medida em que ao assinar e intitular a sua obra, aponta e (a)credita primeiro ele próprio o valor do seu talento enquanto autor e da sua ideia como artística, isto é, como singular e original. Na opinião da autora, os actos de inscrição de uma assinatura e de um título num qualquer objecto têm, desde logo, como efeito primário isolar e distinguir esse mesmo objecto no quadro da existência material, fazendo aparecer a figura de um autor na sua origem (mesmo quando a sua intervenção na superfície material da obra se vê reduzida a esses mesmos actos), e enquadrando e/ou corrigindo a percepção que porventura normalmente teríamos do artefacto, colocando a obra num contexto simbólico de partida que a delimita de outros objectos tidos como comuns17. Nesta perspectiva, os elementos nominalistas da obra que estão a cargo do seu produtor em primeira mão, nas suas versões de assinatura e título, assumem um importante valor performativo no processo de produção social da arte e do próprio artista, fornecendo-lhes as condições de visibilidade mínimas como instâncias singulares para que possam a partir daí reivindicar o seu estatuto artístico. Contudo, como tem sido até aqui largamente discutido e como a autora citada não deixa de assinalar, o artista, por mais que se queira fazer ele próprio, só consegue obter reconhecimento e ressonância pública caso outra ordem de circunstâncias lhe seja favorável. Embora seja da sua responsabilidade dotar a obra de uma intencionalidade artística e apresentá-la publicamente como tal, "obrigando" desde início os restantes

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agentes do campo artístico a reagir dentro do âmbito do juízo estético - juízo esse que poderá sancionar ou não a pretensão artística revelada, ou pô-la publicamente em discussão, o que já trás dividendos sociais e simbólicos acrescidos em termos de visibilidade pública da sua obra e assinatura -, ele necessita sempre, depois, que em torno de si se estabeleça um pacto aprovador, um consenso informal mais ou menos generalizado entre os agentes especializados, ou seja, entre os agentes dotados das disposições objectivamente exigidas no interior do universo artístico, no sentido de fazer associar o nome "arte" ao seu trabalho e de "artista" à sua pessoa, construíndo deste modo a sua reputação. Temos é que ter sempre consciência desta relação entre intenção artística e o seu reconhecimento, e não tomar apenas em consideração a contribuição exógena ao artista na construção social da sua obra como arte e na autorização de que precisa para figurar socialmente como autor: «(...) o título e a assinatura, da responsabilidade do autor, são os primeiros agentes da sua exposição enquanto obra de arte, e sem essa função de mostração não seria possível qualquer reconhecimento de um carácter artístico ou antiartístico. São eles que, antes mesmo do espaço do museu, expõem o objecto como obra, lhe trazem visibilidade. O museu, a galeria, a exposição ou a feira de arte, espaços institucionais de delimitação das práticas artísticas, são na verdade extensões de uma função de mostração que começa no próprio "contorno aparente" da obra e se alarga em círculos de implicações sociais e económicas aos campos marginais mas constitutivos da arte, enquanto instituição. A mostração, a publicitação (o tornar do domínio público) é um acto constitutivo da instituição arte, incontornável mesmo para a anti-arte, e a sua realização começa com a inscrição da obra; com a força deíctica e delimitadora do nome próprio, nos lugares do título e da assinatura.»18 De facto, o funcionamento do nome do autor no quadro da nominação artística, ou seja, o efeito de griffe como lhe chama Bourdieu19, referindo-se ao fenómeno de transformação do estatuto dos objectos produzidos, como que por feitiço ou por magia, pela inscrição de uma assinatura, fazendo convergir a singularidade da pessoa com a originalidade das obras, implica directamente não somente a auto-convicção subjectiva da mão que a assina na sua qualidade artística, como também as indispensáveis

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CRUZ, "A Obra de Arte. Entre dois nomes", in Comunicação e Linguagens, nº 3, Junho de 1986, pp. 117-141. 18 Idem, pp. 121-122 (os itálicos são nossos). 19 BOURDIEU, "La Production de la Croyance...", op. cit., p. 5. 24

condições de hetero-produção e de reconhecimento social do valor cultural da assinatura inscrita. Quer isto dizer que a eficácia quase mágica da assinatura de um artista na operação de transmutação da realidade simbólica dos objectos que fabrica, sendo produto de um processo de transferência do capital simbólico por si acumulado ao longo da sua carreira para esses mesmos objectos, se tem por princípio um trabalho voluntarista e convicto de investimento em si próprio enquanto pessoa e autor singular por parte do aspirante à condição de artista, mobilizando e desenvolvendo prioritariamente para tal as suas próprias competências e recursos estéticos personalísticos, esse trabalho necessida ser continuado pelo reconhecimento, certificação e legitimação exterior do valor pessoal dos seus resultados, assim como pela consequente autorização e estimulação social ao seu desenvolvimento e aprofundamento. Nesse trabalho colaboram colectivamente todos os agentes intermediários que, individual ou institucionalmente, integram e constituem a malha topográfica do campo artístico, repartindo-se organizadamente em corpos especializados que actuam nos vários planos da socialização e formação específica, da distribuição e circulação no mercado, da promoção e difusão mediática, do julgamento estético e legitimação discursiva, em suma, da produção social de valor e sentido artístico. Mas se todas as perspectivas até aqui apresentadas assinalam incessantemente, como vimos, a importância fundamental da acção valorativa e consagrativa destes outros protagonistas que circundam o artista na sua actividade criativa, também é certo que o aprofundamento da análise das componentes, envolventes e consequências específicas dessa mesma acção tem sido sistematicamente relegado para segundo plano. Não quer isto dizer que alinhemos com aqueles que, colocando-se numa perspectiva algo reducionista, pretendem reduzir a Sociologia das Artes a uma sociologia do intermediário, considerando este conjunto de agentes como constituíndo o seu objecto privilegiado, posição defendida, por exemplo, por um Antoine Hennion, para quem «l'intermédiaire peut être consideré comme l'object central de la sociologie de l'art»20. Tal não acontece pois, como ficou atrás demonstrado, o estudo da acção de instâncias como os próprios criadores, a sua obra enquanto símbolo cultural e os seus

20

HENNION, "Une sociologie de l'intermédiaire: le cas du directeur artistique de variétés", in Sociologie du Travail, nº 4, 1983, p. 460. 25

públicos/consumidores, são também fulcrais na constituíção de uma Sociologia das Artes que se queira "total". Todavia, a restituição analítica da acção particular dos intermediários impõem-se actualmente como uma tarefa fundamental, pois se aqueles outros elementos têm sido objecto de múltiplas e saturadas análises teóricas e investigações empíricas, já as práticas mediadoras não têm tido senão algumas breves referências de constatação e análise nesses mesmos estudos, raramente estando no princípio das preocupações prioritárias a eles subjacentes como objecto de estudo particularizado, exaustivo e sistemático, isto talvez devido à pluralidade característica das suas modalidades de acção, assim como à discrição com que se impõem no sistema artístico, agindo nos seus bastidores, encontrando-se por isso mais camuflada e protegida contra a objectivação. Certo é que com a complexificação do sistema de valorização e consagração que se deu a partir do fim do século passado e que continuou ao longo do nosso, o tecido de intermediários culturais entre o criador e o seu público adensou-se e pulverizou-se, e o peso dos seus respectivos lugares na divisão social do trabalho cultural tornou-se predominante, passando a repousar sobre este conjunto de protagonistas o poder de produzir quotidianamente a visão legítima sobre o universo cultural ou mais propriamente artístico e, deste modo, de definir a própria doxa do campo em que intervêm. Nestas circunstâncias, como bem observa Hennion, o intermediário irá operar não apenas como um mero funcionário passivo que faz o interface entre dois mundos conhecidos e previamente construídos - o da criação e o da recepção cultural -, como frequentemente se quer fazer crêr, mas como interveniente activo no modo como esses mundos funcionam e estruturam as suas relações recíprocas21. Pelo que a Sociologia das Artes deve, pois, aventurar-se, sem medos nem rodeios, sobre o terreno específico dos mediadores culturais. E quando dizemos específico, quer-se dizer que a sua abordagem deverá passar por uma análise particularizada das práticas que desempenham, quer em termos das diferentes dimensões do sistema em que actuam, quer das diferentes modalidades de actuação que accionam e dos seus respectivos efeitos. Segundo o modelo proposto por Alexandre Melo, podemos distinguir analiticamente três dimensões de funcionamento no sistema da arte contemporânea, sendo a sua manifestação interligada que

21

Idem, p. 462. 26

precisamente constitui o sistema22: uma dimensão económica, em que a arte surge como produto integrado no mercado e, por isso mesmo, obedecendo aos mecanismos de oferta e procura subjacentes ao regime geral de trocas; uma dimensão simbólica, onde a arte aparece como objecto de discurso cultural publicamente divulgado que a constitui «em objecto social particular, com modalidades de presenção e protocolos de dignidade específicos e com um processo de valorização especial a que corresponde um grau e um tipo de consideração social diferentes do de qualquer outro conjunto de objectos»23; e finalmente uma dimensão política, quando a arte é apropriada pelo mundo da política, ou mais concretamente pelo Estado, seja por veredicto de consagração através da acção de instituições públicas, seja através de medidas legislativas e económicas concernentes ao mundo da arte (concessão de subsídios, prémios oficiais, bolsas, vantagens fiscais, censura, etc). Embora os vários agentes intermediários envolvidos neste sistema não se vejam obrigados a integrar exclusivamente uma das dimensões apresentadas (já que podemos encontrar empiricamente os mesmos agentes a trabalhar em diferentes dimensões), contribuindo complementar e colectivamente na promoção dos objectos de arte a objectos de excepção, a acção específica desenvolvida por cada um deles nesse sentido poderá assumir contornos e funções características, assim como um peso preponderante, numa delas mais do que noutras. Uns interessam-se prioritariamente pelo benefício económico que a arte proporciona, regulando a sua oferta e incitando ao seu consumo, inserindo-se assim directamente no processo económico de troca que a envolve; outros trabalham sobre os benefícios propriamente políticos que da sua apropriação poderá advir, enquanto signo de sofisticação cultural e de desenvolvimento nacional; outros ainda trabalham mais directamente em benefício da sua imagem cultural, ou seja, do seu sentido e valor propriamente estético. É sob este ângulo de análise que desejamos aqui prolongar a reflexão sobre a importância da acção do intermediário no mundo da arte e da produção cultural em geral, elegendo para isso um dos agentes cuja acção maior visibilidade e protagonismo público adquire no sistema de produção colectiva da arte, desenvolvendo-a fundamentalmente no âmbito da sua dimensão simbólica. Falamos, obviamente, do Crítico. Com efeito, embora a sua acção discursiva tenha como objectivo prioritário, na sua génese, o de tentar cobrir a fissura que desde o século XIX se vem cavando entre o

22 MELO,

O que é Arte, Lisboa, Difusão Cultural, 1994, pp. 13-31. 27

campo da criação e o campo da recepção cultural, parece-nos evidente que as suas funções sociais não se esgotam na transmissão de informações sobre o que de novo se vai passando no domínio artístico, funcionando apenas como um simples discurso de acompanhamento promocional das obras que nele se fabricam, nem na conversão destas numa forma receptível, destinado a favorecer e a facilitar a sua apreensão, apreciação e interpretação. As suas funções objectivas estão, de facto, longe de se reduzirem às suas intenções declaradas. Na verdade, o comentário crítico não somente estebelece a intermediação entre as emoções e reflexões pessoais de determinado agente socioculturalmente creditado perante determinadas obras e o conjunto da sociedade, como, simultânea e consequentemente, faz com que esta, nomeadamente algumas das suas zonas particulares, como o Estado e o Mercado, passem a ter com essas mesmas obras um modo de relacionamento específico. Nesta medida, as suas funções transcendem as de um mero mecanismo de mediação cultural, traduzindo um momento fundamental na produção simbólica da obra de arte enquanto tal, na medida em que opera sobre o artefacto a que se refere uma injecção de sentido e de valor estético-cultural que o promove a objecto de excepção, valor esse passível de ser transmutado e obter equivalência em valor económico e social. O papel destacado que o crítico assume na construção da especificidade simbólica da arte, advém-lhe sobretudo das particularidades subjacentes ao seu lugar social e às componentes próprias da sua acção discursiva. Primeiro, ainda que o prazer estético seja, por princípio, acessível a todos, a figura do crítico, pelas competências que lhe são socialmente reconhecidas e exigidas, tem o "privilégio" de fazer reunir em si a faculdade de saber-sentir, de saber-racionalizar e de saber-dizer acerca desse mesmo prazer, privilégio esse que vem a traduzir-se na sua institucionalização como produtor e utilizador legítimo das categorias de percepção, classificação e apreciação propriamente estéticas e, consequentemente, num considerável aumento da autoridade do seu discurso sobre outros discursos culturais menos visíveis e mais informais no processo de certificação do valor cultural dos objectos. Com efeito, é a convicção social na detenção desse privilégio por parte do crítico que fá-lo receber do mundo das artes uma espécie de mandato que o autoriza na procura de uma medida específica para o valor estético da obra a que dedica a sua atenção, assim como das palavras e significações ajustadas ao

23

Idem, p. 19. 28

universo das sensações privadas face à obra em causa, mandato esse legitimado na medida das competências demonstradas e do prestígio social e cultural mobilizado ao longo da sua trajectória profissional, capitais que investe e oferece como garantia do seu veredicto a favor ou contra o artefacto a que se refere e o artista que lhe está na origem. Por outro lado, o lugar privilegiado que o seu discurso detém, em termos de visibilidade e protagonismo público, pelo facto de ser actualmente difundido através dos meios de comunicação social, torna-o num dos principais protagonistas na definição do que, em termos estéticos, irá ser pública e colectivamente relevante. É ele que primeiro obtém a informação e que a faz passar na rede de comunicação estabelecida entre o espaço das artes e o conjunto do espaço social, de tal modo que muitas vezes a sua palavra avança previamente sobre o seu referente. Ou seja, muitas vezes ainda este não se encontra disponível publicamente, e já circula sob a forma de signo discursivo. Deste modo, sendo em muito responsável pela selecção e apresentação de determinados eventos em detrimento de outros, o crítico actua no campo artístico como zona-filtro institucionalizada, detendo o poder de abrir ou fechar os acessos à projecção pública de determinadas alternativas estéticas, logo à possibilidade de acréscimo de valor simbólico que daí poderá advir. O privilégio que o discurso crítico adquire no espaço das artes e letras por via do seu lugar destacado em termos de visibilidade e projecção social e cultural, funcionando como um importante mecanismo institucionalizado de gatekeeping no acesso a esse mesmo espaço e, simultaneamente, desde logo, como produtor de uma "mais valia" simbólica sobre os objectos ou eventos que designa só pelo facto de os designar, aparece bem patente no depoimento de António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no semanário Independente e ele próprio artista: «...nem é com o crítico que o artista está preocupado, o artista está preocupado é com a difusão da sua obra. Ele nem quer saber quem é o crítico, quer é saber se aquilo sai, se não sai, no canal 2 da televisão, no canal 1, ou no Expresso, ou no Diário de Notícias. O tamanho da notícia, isso é muito mais importante para o artista, assim como o tipo de meio de comunicação que a divulga, do que propriamente a questão do crítico. (...) A crítica hoje em dia faz parte dos media, quer dizer, faz parte do universo da comunicação contemporânea, que é provavelmente a essência da sociedade contemporânea. Hoje a realidade não existiria sem informação. (...)

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Portanto, hoje, a realidade não é visível nem audível a não ser através das redes de comunicação. E as redes de comunicação multimediática são sempre e cada vez mais redes de análise também, são redes de informação crítica. Logo que se decide informar ou não informar sobre determinado assunto, e depois no modo como se informa sobre o assunto, há sempre uma descrição qualitativa do objecto que é informado. (...) informar nas sociedades contemporâneas é informar criticamente. Informar e apreciar são aspectos que estão sempre ligados. Mas penso é que os canais de informação hoje são diversificados. Do ponto de vista da divulgação comercial de uma obra o importante é chegar a determinados canais informativos que, por si só, significam mais-valia. Aparecer no telejornal, aparecer num determinado programa de um determinado pivôt conhecido. O que eles vão dizer sobre o artista ou a sua obra é importante, mas a simples presença nesse complexo informacional gera mais valia, mas não gera contenção crítica. Portanto, de um ponto de vista, o canal é essencial, mas já do ponto de vista de uma legitimação mais especializada na produção cultural, é preciso chegar a outros canais de informação (um é o lugar destinado à crítica). São já canais mais especializados e por isso canais mais opinativos. Quer dizer que legitimam, por um lado dando visibilidade, mas por outro também emitindo opinião. Por vezes a visibilidade é grande e a opinião é negativa, e portanto o artista fica numa situação mais contraditória, quer dizer, tem visibilidade mas, por outro lado, a visibilidade é negativa, o que vai eventualmente lhe fechar a entrada em determinados museus, ou galerias, ou mercados, mas que vai manter-se suficientemente visível para manter o seu acesso a outros mercados. Há uma situação aí que não é unilateral, é complexa. (...) Quer dizer, a própria obra de arte hoje quase que não existe sem metas-linguagens, pois se não houver a meta-linguagem que permita a sua visibilidade para além da obra, a obra eventualmente é inexistente, existe materialmente mas não existe mediaticamente, não existe virtualmente, e hoje a realidade se não existir virtualmente é como se não existisse. Portanto, a missão do crítico é contribuir para essa virtualização da obra de arte.» O poder do crítico, por ordem da sua acção selectiva e da visibilidade que o seu lugar social concede a quem a partir dele é designado, é também destacado por Cristina Azevedo Tavares, crítica de artes plásticas no Jornal de Letras, quando afirma que «mesmo aqueles artistas que se contrapõem a que o crítico exerça a sua actividade, normalmente o crítico tem que a exercer sempre, senão ele fica no anonimato. É claro 30

que hoje em dia põe-se um problema que há muitos anos não se punha, que no século XV e XVI não se punha, porque havia o mecenato e o artista fazia a obra para o Papa, e era directamente com o Papa que ele tinha que se relacionar. Mas hoje em dia, porque há um mercado, para todos os efeitos, pequeno mas há, tem que haver uma maneira do artista chegar ao mercado. E chega ao mercado através de uma galeria, por exemplo, mas também chega ao mercado porque aparece o nome no jornal na rubrica de crítica de arte. E portanto o crítico é realmente importante.» Mas a consciência da importância do lugar privilegiado do discurso crítico na comunicação social e dos dividendos simbólicos que da referência procedente desse lugar possam advir, aparece também presente nas intervenções de Julião Sarmento e de Joaquim Leitão, dois consagrados criadores portugueses (respectivamente na área das artes plásticas e do cinema), num programa televisivo promovido por Maria João Seixas e dedicado ao tema da crítica24, onde o primeiro subvaloriza a acção do crítico afirmando que «o artista continua a ser artista sem a presença do crítico», insuflando a condição de dependência deste em relação ao que o artista produz ao atribuir-lhe o estatuto de «rémura que anda sempre à volta do tubarão», não deixando porém de ter em consideração que «o que é importante é a "referência" pública» que a sua acção produz; isto enquanto o segundo se lamenta aos críticos também presentes nesse mesmo programa (Alexandre Melo e Jorge Leitão Ramos, críticos de Artes Plásticas e de Cinema no Jornal Expresso) não das más opiniões emitidas pelo jornal em que eles intervêm acerca do seu último filme, mas da localização na página e da (parca) dimensão do texto crítico que lhe foi dedicado, acusando-os de o preterirem em relação a um par seu a quem deram nessa edição um lugar e uma atenção discursiva mais destacada, questões gráficas que, em última instância, sabemos que não são tanto da responsabilidade directa do crítico como dos próprios critérios de noticiabilidade e de destaque do jornal. Temos então que ao seleccionar e ao passar a informação sobre o acontecimento ou objecto que tem por referente, o crítico está, desde logo, simultaneamente, a produzilo na sua especificidade simbólica. Mas associado às propriedades particulares ao seu lugar social, o discurso crítico também contém em si mesmo componentes específicas que remetem directamente para a sua predominância na construção da dimensão simbólica da arte. Na sua componente informativa, dando conta dos elementos factuais

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de apresentação do evento, objecto ou criador em causa, normalmente assimilados ao vulgar lead noticioso nas questões a que respondem (quem faz ou apresenta o quê, onde e quando), a prática crítica é desde logo produtora de visibilidade sobre o seu referente, com os respectivos dividendos simbólicos que daí poderão advir-lhe. Na sua componente contextualizadora ou de enquadramento, respeitante aos elementos de categorização e classificação do referente em análise num domínio de regularidades históricas e culturais (estilos, épocas, tendências, grupos...) captados através de estratégias cognitivas de inclusão e exclusão, o discurso crítico produz o seu referente na sua tipicidade. Na sua componente judicativa, correspondente aos juízos de valor que nele são formulados acerca da qualidade estética do referente em causa, o discurso crítica entra directamente no processo de produção do seu valor cultural, produzindo-o na sua singularidade. Finalmente, na sua componente interpretativa ou reflexiva, quando se tenta desconstruír, compreender e reconstruír o significado do referente na intenção declarada de promover as suas potenciais ordens de inteligibilidade e de facilitar a sua apreensão e leitura (quer de uma forma mais conceptual, quer de uma forma mais literária), a acção da crítica assume uma posição central no processo de produção de sentido(s) que envolve a arte enquanto matéria significante25. As diversas componentes do discurso crítico aqui identificadas remetem-nos directamente para os diversos actos que consubstanciam a prática da crítica na sua especificidade - e quando dizemos "especificidade" não queremos fazer ver esta prática como tomando uma forma "singular", pois a própria noção de "prática social" deve ser conceptualizada e operacionalizada tendo em conta a sua pluridimensionalidade, o que implica considerar as diversas formas e conteúdos em que cada prática social específica se desdobra e que a consubstancializam. Com efeito, também a prática da crítica, enquanto prática socio-cultural específica e como qualquer outra prática social, se desmultiplica em múltiplos actos, os quais, seguindo o esquema atrás proposto, se podem resumir, de um ponto de vista analítico, em informar, contextualizar, avaliar e interpretar/reflectir. Cada um destes actos tende, por sua vez, a ser diferentemente valorizado e privilegiado (sem detrimento dos outros, note-se) nas estratégias discursivas de cada crítico, o que faz com que essa prática adquirira diferentes

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Programa Quem Fala Assim..., "Os críticos também se abatem?", televisionado no dia 15 de Junho de 1994. 32

configurações, sendo a maior ou menor operacionalização de cada uma daquelas componentes discursivas dependente quer do quadro de referência do crítico que com elas opera e do que ele entende serem as principais funções sociais da sua actividade, quer do espaço de possibilidades que lhe é dado no seu contexto de produção - o jornal em termos de tomadas de posição discursivas, tendo em conta a sua rotina produtiva e o tipo de público que pretende atingir. Nesta perspectiva, as entrevistas que realizamos junto de vários críticos, de várias áreas culturais, em diversos tipos de publicações jornalísticas, permite-nos observar que é junto dos jornais semanários, tipo de publicação hebdomadária com uma maior longevidade de leitura, mais vocacionada para a cobertura da actualidade por via do comentário que apenas por via da notícia, e com uma rotina produtiva menos intensa que as publicações diárias, que encontramos uma maior disponibilidade para a operacionalização discursiva de componentes reflexivas e interpretativas por parte do crítico, fazendo quase sempre depender a sua tomada de posição judicativa de uma análise o mais aprofundada e.exaustiva possível no tempo e no espaço concedidos: «Ora, a crítica consiste precisamente em desenvolver e em ampliar aquilo que está ali (no livro) latente, mas que continuaria latente se não fosse lido dessa maneira, fazer com que aquilo produza sentido para além do sentido que pode ser lido imediatamente. (...) Repare que quando eu acabei de definir a crítica, defini-a só segundo um plano, que é o não judicativo, ou seja, a crítica como mera actividade interpretativa e não judicativa. Estava-me a esquecer desse aspecto que também me parece importante. A crítica, para além de ter esse aspecto de interpretação da obra e de consegui-la fazer produzir sentido, deve também ter um carácter judicativo, de julgamento de valor, que deve vir muitas vezes, julgo eu, na continuação do trabalho anterior, isto é, não é anterior mas é posterior ao trabalho de interpretação. Entendo que esse julgamento só deve ser feito, deve decorrer primeiro desse trabalho de interpretação e de leitura. Isto significa que sou contra um tipo de crítica impressionística, que se limita a dizer bem ou a dizer mal, e que corresponde a uma certa estratégia jornalística muito bem definida, a que nós estamos muito habituados, mas que não me parece ser a mais interessante.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso)

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As componentes intrínsecas à prática crítica aqui apresentadas seguem de perto a tipologia dos 33

«Depois da percepção de determinado objecto artístico, há determinados elementos que são susceptíveis de desencadearem uma opinião que é fundamentada em preposições que são teóricas, artísticas, estéticas. Há um lado que é pessoal, que é subjectivo, que interpreta esses elementos tendo em conta várias componentes que são históricas, artísticas. São sobretudo opiniões que vêm de determinados conceitos que não são limitados, obvidamente, mas que têm conclusão sobre as opções que por sua vez estiveram na origem dessa obra. É precisamente no confronto dos juízos sobre essas preposições que estiveram na origem da peça e filtradas pela pessoa que é estudiosa dessa forma de arte, que poderá nascer uma opinião que é sustentada com conhecimento, em princípio profundo, e que estará habilitada para interpretar o significado dessa obra. Depois, a partir daí, podem existir análises, podem existir puros comentários (...). Em termos ideais deverá ser um pouco mais do que isso, era aí que eu gostava de chegar e ter a disponibilidade total para essa reflexão ainda mais profunda.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras) «Para mim, a crítica é sobretudo compreender o objecto da crítica, é tentar perceber ou tentar explicitar racionalmente a minha compreensão do objecto da crítica. Trata-se de compreender esse objecto e, através dessa compreensão, extrapolar a sua lógica interna, extrapolar aquilo que será a evolução provável de um determinado objecto a partir da identificação da sua lógica interna, e a partir dessa extrapolação exercer então uma crítica, digamos, destrutiva, ou seja, uma crítica no sentido de ver, de testar até que ponto essa lógica evolutiva é uma lógica interessante ou não é uma lógica interessante. Portanto, digamos que tem três fases: a crítica é um processo de identificação com o próprio objecto, numa primeira fase, como estratégia para entrar dentro dele; depois de compreendê-lo, de conhecer a sua lógica interna; e depois criticar o objecto a partir da evolução provável que ele irá ter em função dessa lógica interna que lhe classificamos. Penso que é este o mecanismo que inconscientemente ou de modo invisível actua quando eu escrevo sobre algum artista ou trabalho.» (António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente)

elementos do discurso crítico apresentado por MELO, O Que é Arte, op. cit., pp. 61-63. 34

Nos jornais diários, por seu turno, vamos encontrar uma maior disponibilidade para um tipo de prática crítica que privilegia fundamentalmente os actos de informar, contextualizar e avaliar, o que, de resto, não será difícil de compreender, pois, se por um lado são as componentes discursivas mais fáceis de operacionalizar tendo em conta o ritmo produtivo bastante mais intenso e apertado que impera nas redacções deste tipo de publicações em relação aos dos semanários, por outro, são os objectivos pressupostos para a leitura da crítica por parte dos leitores destes jornais, ou seja, dado serem publicações com uma longevidade de leitura bem menor que os semanários (a sua actualidade perde o seu valor de uso no dia imediatamente a seguir), pressupõe-se que o seu leitor os compra para estar o mais actualizado e informado possível sobre a actualidade cultural, assim como para ser aconselhado e orientado sobre o que ler, ver ou ouvir. Curioso é o facto de alguns críticos intervenientes neste tipo de hebdomadários recusarem justamente o rótulo de "críticos", devido ao facto de identificarem esta actividade com uma prática analítica que não podem (ou não querem) desenvolver nas suas respectivas páginas, identificação essa derivada da sua proveniência e formação académica, onde a crítica aprendida e exercida exortava as componentes de análise teórica e de interpretação aprofundada em detrimento das restantes: «Eu só posso falar do ponto de vista do jornal, porque não faço crítica noutro sítio. No Suplemento que se faz aqui de livros, nós temos de apresentar os livros que sairam às pessoas, temos que lhes dar razões para as pessoas lerem aqueles livros, ou para não os lêrem, se fôr caso disso. Por isso tem que se apresentar, regra geral, o autor, até porque como há poucos autores portugueses, cada vez o mercado se socorre mais de traduções. (...) é preciso apresentar o autor, é preciso enquandrar o livro dentro do género a que pertence, dizer o que é aquilo, se é romance, se é um "thriller", se é um livro de aventuras, se é o quê. A partir do género em que o livro é enquadrado, é preciso explicar porque é que se acha que dentro desse género o livro é bem feito ou mal feito. Eventualmente situar muito vagamente a história, se fôr daqueles romances que é feito para contar uma história, não se vai contar a história às pessoas no jornal, mas dizer-lhes mais ou menos o que é aquilo, apresentá-lo.» (Tereza Coelho, crítica de literatura no Público)

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«Já lhe disse que não faço crítica. A crítica que faço não é crítica, razão pela qual não se me coloca o problema de querer saber o que é a crítica. Para mim, a crítica é a mediação entre os criadores - também não gosto da palavra criadores - que fazem o teatro e aqueles que o vão ver. O crítico é um jornalista, é uma forma de ser jornalista. Trata-se de uma especialização. O crítico é um jornalista especializado em teatro. (...) Deste modo, a crítica é sempre uma especialização, uma profissão de comunicação dentro de um determinado assunto. Para mim, ser crítico de teatro é ir ver os espectáculos de teatro e, depois, escrever um texto em que diga às pessoas o que é que há nessa peça. Não é aquele que vai ver uma peça de teatro e depois escreve no jornal "gostei ou não gostei". Parece-me que o público quer isso. Mas eu não. Para mim, trata-se de uma peça em que eu digo ao leitor-espectador o que está nela. Vou mais longe se quiser, digo ao leitor o que é que a peça refere e procuro convencê-lo de que deve ir ver essa peça. Em 5% dos casos digo ao leitor porque é que ele não deve ir ver a peça de teatro. Mas é muito raro fazer isso. (...)

Acho que a sua grande

função é informar. Se a informação é uma coisa boa, então informar sobre o teatro através da crítica é uma coisa boa. Se o teatro é uma coisa boa, se a informação é uma coisa boa, se comunicar é uma coisa boa, então a crítica tem uma função interessante. É essencialmente isso, um problema de comunicação. Voltando um pouco à pergunta anterior, há quem ache que o crítico deve apresentar novas teorias, novas propostas, deve expôr em termos críticos o que dizia aos encenadores: "não devem fazer assim, que a nova tendência é ir para aqui ou ir para ali". (...) Mas eu não estou muito virado para aí. (...) Não tenho qualquer conselho a dar a nenhum encenador. Não tenho nada de novo para dizer. Não tenho propostas a apresentar. Não tenho vontade em intervir nos espectáculos deles. Esse tipo de crítica existe, gosta de intervir por esse lado.» (Manuel João Gomes, crítico de teatro no Público) «Eu não disse que sou crítica, eu faço recensões, que é uma coisa muito diferente. A recensão para mim é uma coisa extremamente limitada, permite uma vulgarização de ideias gerais, permite um resumo do livro, permite situá-lo, esclarecêlo minimamente, as pessoas saberem a que é que aquilo se refere, de onde é que vem, eventualmente o que é que foi dito sobre ele se alguma coisa foi dita, tratando-se de um clássico, etc. Portanto, é uma síntese vulgarizadora. Claro que estes elementos não podem ser reunidos assim, isso não basta, depois tem que se saber escrever aquilo de uma maneira... A crítica é uma coisa completamente diferente, o crítico estabelece os 36

valores que sobre os que assenta os seus juízos, ou formula juízos que são em si valores e justifica-os. Podem ser, por exemplo, valores que ele já tem que vêm da sua própria obra, que ele estabeleceu já na criação dos seus próprios romances, ou que ele estabeleceu nos livros que publicou sobre outros livros, que ele à partida tenha uma obra que ele justifique o que ele diga, isso acho que é importante.(...) É uma vulgarização sobre um certo número de informações e uma opinião limitada, dadas as próprias limitações da recensão, sobre o valor de uma obra, no caso de uma obra que não tenha sido já valorizada mil vezes. E uma pessoa que pegue num jornal tem mais ou menos uma ideia quanto ao livro, tem as informações que eventualmente não terá numa introdução. (...) A recensão literária é suposta ser uma espécie de informação, uma espécie mais especializada de informação.» (Patrícia Cabral, crítica de literatura no Diário de Notícias) Mas o facto dos jornais semanários concederem uma maior disponibilidade para a teorização e a reflexão analítica sobre os objectos da crítica que os diários, não faz com que haja uma colagem directa nas clivagens existentes entre "críticos analíticos""semanários" e "críticos jornalísticos"-"diários", pois o facto é que encontramos ambos os tipos de críticos em ambos os tipos de publicações, provavelmente como estratégia de alargamento de públicos (tendo em consideração que um dos objectivos prioritários de todas as publicações jornalísticas será vender o máximo possível, há que não cultivar demasiado a inclusão do comentário elaborado por parte do semanário) e de obtenção de prestígio social e cultural (com a inclusão de discursos mais elaborados em jornais de postura mais informativa que analítica, como os diários). Assim sendo, cultivar um certo eclectismo quer de opções estéticas, quer de fórmulas de discurso crítico, trará sempre vantagens ao jornal do ponto de vista comercial e cultural. Pelo que o contexto de produção de discurso crítico não influencia mecânica e deterministicamente as opções do crítico em termos dos actos mais valorizados no exercício da sua prática e das componentes discursivas preponderantes no seu discurso. O seu quadro de referência pessoal, enquanto matriz socialmente construída no decorrer da sua trajectória de vida e na qual confluem uma série de factores não só contextuais mas também estruturais, situacionais e até mesmo decisionais, é também orientadora da sua prática e dos valores que nela se interpõem. E só nesta óptica podemos perceber os seguintes depoimentos de críticos, tendo em conta o contexto de produção onde se encontram situados: 37

«Há, de algum modo, um papel de medianeiro (no discurso crítico), que começa com a informação, ou seja, que começa por dizer que a exposição está aberta e que é pintura e não é escultura, depois que a pintura é figurativa, que são grandes formatos, que pinta pontes, ou coisa do género. Há uma dimensão informativa. Há uma dimensão também valorativa, em termos daquilo que corresponde a satisfazer uma solicitação imediata dos leitores que não pode ser totalmente e sempre frustrada, isto é, dizer se é bom ou não, dizer se vale a pena ir ver ou não. Quer dizer, existe uma pressão efectiva dos leitores e dos jornais para que isso seja compreensível. Tal como se dá estrêlas nos filmes, ou coisa do género... temos grandes pruridos em relação a isso. E existem outras dimensões possíveis de aprofundamento das obras, em termos já menos informativos mas de elucidação de componentes criativas, de estratégias criativas, etc. E aí as dimensões são muito diversificados.» Mas «a sua primeira utilidade é informativa.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso) A postura "informativa" de Alexandre Pomar num jornal de tradição de análise e comentário como é o Expresso, é bem ilustrativa dos efeitos de trajectória que para ela concorrem: não podemos esquecer que este homem é dos raros críticos actuais que veio da ala do jornalismo propriamente dito, nomeadamente do jornalismo político, tendo exercido durante longos anos essa actividade num jornal diário, o Diário de Notícias. Só em 1985, por razões que considera "acidentais" e "pessoais", passou para o jornalismo cultural nesse mesmo diário e, mais tarde, veio a desenvolver o que ele chama de "jornalismo opinativo" no Expresso, onde actualmente cumpre as funções de responsável pela secção de Exposições (tendo já sido editor de Cultura). Daí, provavelmente, ele privilegiar na sua prática crítica a componente informativa, sem o fazer, contudo, em desfavor das restantes. João António Dias, crítico literário no jornal Independente, também ele valoriza bastante na sua prática as componentes informativa e de enquadramento, assim como a acção judicativa, em detrimento da componente reflexiva e analítica, apesar da sua situação pessoal reunir as condições mais favoráveis ao desenvolvimento de uma prática crítica neste âmbito, dadas quer as suas competências específicas em matéria de literatura (é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas), quer a disponibilidade que o seu jornal lhe dá em termos de opções discursivas (exemplificada pela postura de outros críticos que também neste jornal desenvolvem uma crítica de orientação reflexiva e analítica). Ele, tal como 38

Patrícia Cabral e pelas mesmas razões, também não se identifica com a classificação da sua actividade como sendo "crítica", sendo a sua opção pelo "comentário", como lhe chama, uma decisão voluntária: «Eu, aquilo que faço em termos de livros, é um comentário, faço um comentário. Quer dizer, tento dar um maior número de informação possível, e dou a minha opinião pessoal. E eu penso que um crítico tenta aprofundar mais, tenta fazer mais ligações, conhecer as coisas, tenta ir mais fundo. E não é isso que eu acho que faça. Eu limitome a fazer um trabalho jornalístico, pronto. Limito-me a informar as pessoas de um livro, dar o maior número de informações possível acerca do autor, e sobre o livro. Só isso. (...) (Uma boa crítica...) No fundo, acaba por ser muito igual àquilo que eu faço, mas com características diferentes, com outro tipo de referências, que se calhar não tenho, ou não me apetece ter, ou não me apetece utilizar.» (João António Dias, crítico de literatura no Independente) Também no Jornal de Letras, publicação especializada em matéria cultural e orientada para um público mais restrito que os restantes aqui considerados, vêmos aparecer críticos de voluntariamente de orientação jornalística a previlegiarem na sua acção discursiva as componentes associadas directamente a esse tipo de postura perante a prática crítica, ou seja, o juízo de valor, a contextualização e a informação. Uns também traduzindo o seu percurso de críticos em jornais diários já desaparecidos (como é o caso de Júlio Conrado), outros assumindo uma atitude voluntarista no sentido de dar informações, instrumentos e pistas de compreensão a um público como o português, supostamente pouco sabedor em matéria artística (como é o caso de Cristina Azevedo Tavares): «(A crítica é...) Primeiro que tudo, emitir uma opinião sobre obra, que é o que eu faço. Se me perguntásse se eu sou o crítico representante da classe dos críticos, digo-lhe já que não. Eu faço crítica imediata, crítica jornalística, portanto não tem muito a ver, mas tem alguma coisa, com a chamada crítica universitária, crítica de investigação, crítica de aprofundamento. Eu faço o ponto entre a crítica universitária e o público. Eles investigam e depois eu vou ver aquilo que eles investigaram e aquilo que eles descobriram. Portanto, digamos que já é uma crítica de segunda escolha, a minha.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras) 39

«(...) aquilo que a crítica deve fazer é procurar instaurar alguma polémica, procurar informar as pessoas, porque como eu lhe digo... se calhar não era bem essa a função da crítica, era mais a polémica, a função de desafio, era mais realmente ser excessiva, pelo sim ou pelo não. Mas na situação em que vivemos em Portugal, em que as pessoas não estão minimamente informadas, eu penso que nós podemos informar e com isso valorizar determinado tipo de arte ou menosprezar outra. (...) E o que eu quero dizer com informação? Quer dizer não só em relação ao que o artista fez, ao que ele está a fazer ou ao que ele poderá vir a fazer, mas também estabelecer relações entre o que ele faz e o que há em Portugal, ou o que houve, ou estabelecer pontos de contacto que ele tem com outros artistas, sem o condicionar, sem dizer "Olha, esta criatura pinta como a Graça Morais". Isso é muito negativo. Mas podemos dizer que a figuração que ele tem, tem a ver com. (...) Por outro lado, eu faço muito um bocadinho de história de arte na minha crítica de arte, mini-história de arte: procuro explicar como certos artistas apareceram, a que movimentos estão ligados, que relações é que têm com a actualidade. Eu penso que isso é importante, não basta falar que aquela criatura pinta com rosas ou azuis, mas também como é que ela se insere no contexto português. Mas penso também, independente disto, que a crítica deve ter um papel de facto crítico, ou seja, de juízo, é preciso ajuizar. Eu, como lhe disse há pouco, abstenho-me um pouco de deitar abaixo as pessoas, de dizer "Olha, aquilo não presta!", porque de um modo geral há artistas que nunca chegaram mais longe e que têm a sua franja no mercado, e não vale a pena eu estar a dizer que eles não prestam, porque eles nunca prestarão de facto. Não vai ser o meu juízo sobre eles que vai mudar alguma coisa.» (Cristina Azevedo Tavares, crítica de artes plásticas no Jornal de Letras) Mas a situação inversa às anteriormente apresentadas também aparece, isto é, críticos sediados em tabloides diários, nomeadamente em tabloides de segundo plano em termos culturais como o é a Capital - reflectindo deste modo, através de uma indefinição em termos de estratégia editorial específica para as artes e a cultura em geral, a própria condição marginal que reservam ao espaço cultural na sua estratégia editorial geral -, amplamente preocupados em fazer da sua prática crítica uma análise e uma reflexão aprofundada da obra ou evento sobre que se debruçam. É o caso de um Francisco Perestrello que, associado com a sua função de crítico, tem a seu cargo a orientação de um centro de estudos e de investigação sobre cinema - o CINEDOC -, 40

assim como de um Carlos Vidal, crítico de artes plásticas e pintor (com uma licenciatura feita em Pintura na FBAL), que faz congregar na sua prática crítica uma postura analítica e compreensiva do objecto com uma postura militante e polémica, de defesa declarada de determinadas opções estéticas em desfavor de outras, atitude esta já pouco desenvolvida no espaço da crítica actual e que, por aparecer associada a uma linguagem bélica de defesa e ataque, lhe valeu a sua saída dos dois jornais em que colaborou antes da sua entrada na Capital - o Público e o Independente. De notar ainda é o facto de ambos se "desidentificarem" com a linguagem e com o estilo editorial do jornal onde presentemente trabalham por contingências de percurso, tendo a consciência de que o seu tipo de crítica não será o mais adequado ao público que supostamente o lê: «Para mim a crítica é o desmontar e remontar uma obra cinematográfica, ou seja, a primeira função do crítico é fazer a análise da obra e no fim a sua síntese. Portanto, conseguir que o leitor ou ouvinte da sua crítica fique com uma ideia de quais são os elementos que compôem a obra e qual a qualidade desses elementos, como é que eles se conjugam e como é que eles todos juntos dão lugar a uma obra mais ou menos una, e a que ponto essa obra tem valor e porque é que tem esse valor. (...) a crítica é muito mais do que dizer se é bom se é mau, tem é que fundamentar aquilo que afirma, tem é que analisar cada um dos produtos, e a análise pode nem ser muito directamente dizer bem ou dizer mal, mas sim um levantar dos problemas e dos elementos que a obra contém, um descascar de toda a matéria contida no filme para que ele seja mais facilmente analisável pela generalidade do público nos seus pontos positivos e nos seus pontos positivos.» (Francisco Perestrello, crítico de cinema na Capital) «Há várias hipóteses. Penso que a crítica poderá reflectir com a obra, ter uma certa autonomia em relação à obra, ou poderá ter uma outra função que é uma função mais bélica, digamos assim, que é uma função de desmistificação. Desmistificação de situações que são geradas em torno de falsos consensos, todo esse tipo de situação que a crítica também pode funcionar como desmistificadora. Por outro lado, no quadro da complexidade, a crítica também será sempre um pensamento paralelo à obra, mas penso que terá de ter sempre em conta a obra. Não penso a crítica, de maneira nenhuma, como uma forma de espremer a obra, de clarificá-la, de trocá-las por moedas muito miúdas. Não penso que a crítica tenha a função de tornar a obra

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acessível ao grande público, não penso que seja essa a função da crítica.» (Carlos Vidal, crítico de artes plásticas na Capital) Ainda no âmbito da análise da valorização dos diversos actos e componentes que constituem a prática e o discurso do crítico, os depoimentos atrás referenciados, para além das tendências sugeridas, revelam-nos ainda uma outra suficientemente importante para aqui a considerarmos: a diluição da componente judicativa, do acto de avaliar esteticamente - outrora razão de ser do próprio discurso crítico - numa série de outras componentes ou actos tanto ou mais valorizados que este. Efectivamente, apesar de notarmos que a preocupação com a dimensão do juízo de valor se revela, de forma mais ou menos explícita, transversal a todos os segmentos da crítica, a apreciação estética já não aparece como missão principal do crítico ou, quando aparece como tal, encontra-se sempre dependente de um trabalho prévio de análise e de contextualização estética, e já não sob a forma de juízo categórico, em si e por si - "isto é bom porque gosto!" ou "isto é mau porque não gosto" e pronto, discurso normalmente inflamado por uma adjectivação profusa. É neste sentido que vão os seguintes testemunhos, que podemos adicionar aos anteriores: «(A crítica...) É um julgamento. É isso fundamentalmente. Julgar uma coisa, situá-la num contexto, que é o contexto geral, que é o contexto da obra do artista. E em função disso julgá-la. Para isso é preciso analisar, fazer aquelas operações normais. Mas depois, no fim, é preciso fazer um julgamento. Não é um julgamento definitivo, é sempre um julgamento relativo, porque o julgamento é feito por uma pessoa e não por outra, e depois é feito num contexto que tem alterações sucessivas, constantes. É um julgamento, é uma avaliação que tem que ser reavaliada muitas vezes. Não quer dizer que seja para a mudar, mas deve ser reavaliada.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) «Evidentemente que o que se pede a um crítico é uma opinião. Um crítico é um homem de opinião. E uma opinião implica saber articular ideias, ideias próprias tanto quanto possível. Não é só olhar para uma pintura, implica estudar tudo o que possa ter a ver com essa pintura, e a partir daí formular uma opinião. Dizer onde é que se pode incluir essa pintura, não só a nível informativo como a nível formativo.» (Eurico Gonçalves, crítico de artes plásticas no Diário de Notícias) 42

«A crítica eu acho que é basicamente um juízo de valor entre um sujeito e um objecto. Portanto, implica uma análise, a desconstrução do objecto através da informação o mais sistemática e exaustiva possível que o sujeito tem sobre aquele meio, aquela forma de expressão na qual se situa o objecto criticado. (...) E eu acho que ela deve fornecer ao leitor uma opinião o mais fundamentada possível sobre aquilo de que se está a falar. Deve-se desmontar o objecto e dissecar cada uma das suas componentes, e depois dar uma visão global e conclusiva sobre os méritos ou as deficiências desse objecto. E tentar apontar a especificidade desse filme, no que é que esse filme é diferente dos outros, o que trás de novo, no que é que ele se demarca dos outros, qual é o seu tímbre, tudo isso.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente) A destronização do juízo de valor ou a sua reposição numa posição de dependência de uma análise prévia do objecto, do tipo imanente ou contextualista, surge num contexto profundamente marcado pela proliferação de agentes e de meios de comunicação a veícularem discursos críticos, muitos deles bastante diferentes senão mesmo contraditórios entre si, o que vem, de algum modo, desestabilizar a relação de fidelidade entre o crítico e o seu público que sustenta e justifica a efectividade do juízo em si mesmo e por si só. Com efeito, considerando que, tal como refere Alexandre Melo, «o juízo de valor categórico só funciona, e nessa medida só se justifica, se houver uma afinidade de base ou uma empatia automática entre crítico e público», ou seja, «é preciso que o receptor reconheça a priori a legitimidade e a autoridade de quem a enuncia», e considerando ainda que nos encontramos «numa época histórica em que os "papas" do gosto e os "sábios" incontestados são cada vez mais raros», esta componente deixa efectivamente de deter a importância que teve noutras épocas, «em que existiam poucos críticos ou poucos meios de comunicação com um efectivo peso na opinião pública.»26 Isto é, se, em meados do nosso século, um Gaspar Simões «podia fazer de um livro um Lázaro impresso: levanta-te e vende-te. (...) Hoje, diz Eduardo Prado Coelho, a televisão vale dez Gaspar Simões.»27 Por outro lado, numa época como a nossa em que os modelos normativos de arte e de crítica e, consequentemente, os critérios fixos e supostamente universais (porque

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Idem, p. 62. 43

socialmente consensuais) de avaliação estética se eclipsaram e se "pessoalizaram", o crítico deixou de se poder armar do papel de juíz, justamente porque o seu tribunal se viu sem leis a aplicar, tendo esta situação também contribuído para a destronização do juízo de valor como tarefa primordial da crítica, desviando-a para um percurso de entendimento e de acompanhamento reflexivo, também ele criativo e pessoal (em termos das "ideias" que operacionaliza na abordagem do objecto artístico), sobre as novas (quando não também as antigas) proposições estéticas, mais preocupado em interrogar e compreender as propostas de criação que em fixar-lhe normativa e perentoriamente as formas e/ou os conteúdos. Ora, certo é que a articulação dos vários elementos que enunciámos no discurso crítico faz com que este comporte sempre um determinado grau de investimento afectivo e/ou intelectual sobre os objectos que aborda, investimento esse que vem a revesti-los de uma dimensão simbólica particular em relação aos objectos comuns da experiência quotidiana. Nesta óptica, as características específicas do seu discurso, combinadas com as particularidades associadas ao seu lugar social, fazem do crítico uma peça central no processo de legitimação cultural quer no próprio interior do universo artístico, quer ao nível da sociedade global, permitindo-lhe entrar de forma discreta mas concreta no circuito de elaboração dos consensos informais em que assentam os processos de certificação e valorização das obras, e de nomeação e consagração dos respectivos autores. Ao assegurar o testemunho impresso do reconhecimento do criador enquanto tal num grau de difusão mais ou menos alargado, garantindo a quem o lê e com ele contacta, pelo poder das competências de que é socialmente investido, a qualidade e o sentido estético das obras apresentadas, o crítico não deixa, efectivamente, de exercer através da sua acção uma pressão fundamental na dimensão simbólica do sistema das artes, detendo um papel central na operação de produção social dos criadores e da arte enquanto tal, através do qual determinados artistas e obras são nomeados e instituídas, conhecidos e reconhecidos, aos seus olhos e aos de todos quantos os rodeiam, como valores culturalmente legítimos, intervindo também directa e alargadamente na estruturação da relação mantida entre o sistema das artes e o conjunto do sistema social.

27

Cit in CUNHA, Sílvia, "Onde estão os Críticos?", in Sete, 27 de Junho de 1991. 44

No entanto, é necessário precisar que apesar da acção do crítico ser uma peça fulcral no círculo de produção e de legitimação do autor e da sua respectiva obra como valores artísticos, ele não detém por inteiro o monopólio do processo de nomeação, ou seja, do acto de designação que faz existir aquilo que designa em conformidade com a sua designação. Quer-se com isto dizer que não devemos conceptualizar o crítico como elemento determinante naquele processo mas apenas como condicionante, já que nele também contribuem, em modalidades e com autoridades diferentes, a acção de todos os restantes agentes mediadores individual ou institucionalmente activos no campo artístico, assim como a dos próprios públicos ao apropriarem-se material e/ou simbolicamente das obras classificadas como artísticas, apropriação essa que, ao implicar um processo de identificação subjectiva e de reconhecimento objectivo da obra enquanto arte, não deixa de lhe conferir também uma significação especial, cujo valor irá depender do "valor cultural" da própria posição do consumidor na estrutura social. Por aqui ficam então demonstrados e discutidos, em traços gerais, os principais pressupostos teóricos de partida deste trabalho, os quais não só justificam mais aprofundamente a escolha do seu objecto de estudo, justificação já previamente desenhada na nossa introdução, como também definem uma posição possível no interior da Sociologia das Artes. Resumidamente, esses pressupostos consistem em considerar: 1) em contraponto à concepção romântica da arte como produto de fazedores individuais, excepcionalmente dotados ou divinamente inspirados, que toda a acção artística surge enquadrada num sistema de acção colectiva que a define como tal, onde nesse sentido colaboram múltiplos agentes individuais e institucionais, em modalidades e com graus de autoridade diferentes; 2) tentamos não resvalar, contudo, para posições teóricas demasiado extremistas, totalitárias e deterministas, o que implica encarar o artista não como um sujeito completamente livre e independente, cuja acção criativa é inalienável, nem tão pouco como um agente reduzido a efeitos das estruturas sociais, económicas, institucionais e políticas, mas como um protagonista cuja acção apresenta também alguma efectividade na dinâmica de funcionamento do sistema das artes: se ele se encontra subordinado a uma ordem mais ou menos institucionalizada, permanecendo integrado numa série de condições que o afectam, assim como ligado a uma rede de relações onde mantém um posto que lhe é destinado e que o autoriza na assumpção desse posto, ele não deixa também, nas condições oferecidas, de ser sujeito-autor e produtor da sua própria obra não apenas na sua materialidade mas também na sua dimensão simbólica característica, 45

ao mobilizar e investir recursos subjectivos que se irão traduzir na relevância cultural da sua obra, e ao accionar os primeiros gestos que, se bem que não delimitem imediatamente o seu estatuto, pelo menos apontam para ele; 3) o retorno ao sujeito, enquanto autor, não implica necessariamente o abandono da análise da acção dos que o rodeiam e que o nomeiam e o autorizam a agir como tal, processo no qual a figura do mediador cultural desempenha um papel fundamental, não só por assegurar e estruturar a relação entre o sistema das artes e a sociedade no seu conjunto, mas também pelo facto da sua acção fazer parte integrante do círculo de produção social da arte e do artista enquanto tal; o que importa é restituír e aprofundar o âmbito da sua acção nas suas componentes, particularidades e efeitos específicos às suas diferentes modalidades; 4) a nossa escolha recaíu sobre o crítico na medida em que o desempenho da sua prática discursiva revela-se central, pelas características associadas ao seu lugar social e pelas componentes específicas que contém, na construção social da excepcionalidade do objecto de arte e da singularidade do artista, dotando estas instâncias de uma dimensão simbólica particular. Ao pretendermos apreender e explicar a historicidade da prática crítica na sua especificidade, ou seja, o seu processo de construção e institucionalização enquanto espaço social relativamente autónomo, com propriedades e particularidades que lhe são próprias - isto sem esquecer, obviamente, que se trata de uma prática social e cultural "emparedada" que intervém simultaneamente em vários espaços sociais, possuíndo um lugar específico quer no espaço de produção artística, quer no espaço de recepção cultural, quer ainda no espaço de difusão discursiva que constitui os mass media, nomeadamente no jornalismo impresso, espaços sociais esses que não a deixam de afectar na sua forma e sentido de actuação, assim como na sua eficácia simbólica -, recorreremo-nos do conceito de campo de relações sociais tal como este é entendido por Bourdieu. Se a localização e caracterização da acção do crítico nos espaços sociais em que se move com esse estatuto, fazendo a eles corresponder o conceito de campo, não se apresenta muito problemática e discutível, justamente porque a utilização deste conceito a esses mesmos espaços sociais já foi amplamente problematizada e discutida28, sendo a

28

Sobre o campo de produção cultural existe uma larga bibliografia, da qual destacamos os textos de Bourdieu "A institucionalização da anomia" e a "Génese histórica de uma estética pura" in O Poder Simbólico, op. cit., pp. 255-298, assim como "La Production de la Croyance...", op. cit., pp. 3-43; sobre o 46

localização do lugar do crítico no âmbito da sua circunscrição pouco polémica, já a hipótese de uma adequação entre a noção de campo e o espaço particular da prática crítica, demanda a justificação da sua pertinência. Até que ponto o espaço específico da crítica corresponderá realmente a um campo estruturado na acepção bourdiana do termo? Em que medida devemos pensá-lo enquanto campo de relações sociais? A resposta a tais perguntas impele, desde logo, a uma rápida apresentação dos traços que, teoricamente, definem o conceito de campo segundo Bourdieu.

1.2. DO CONCEITO DE «CAMPO» DE RELAÇÕES SOCIAIS Apesar de Pierre Bourdieu não ter ainda formalizado e apresentado sistematicamente a sua "teoria dos campos", este autor, na sua vasta produção teórica, tem vindo progressivamente a desenvolver e a utilizar esse conceito na análise de diversos domínios de práticas sociais específicas, chegando deste modo à inferência de um conjunto de argumentos teóricos e de grandes linhas de abordagem conceptual, construídas com base nas regularidades que constatou empiricamente, conjunto esse que, na nossa opinião, é passível de instrumentalizar com bastante utilidade no estudo de fenómenos ou domínios sociais até agora pouco ou nunca por ele analisados. Apesar de ser frequentemente alvo de múltiplas e, por vezes, violentas acusações e críticas29, devido à dureza com que os conceitos são inter-relacionados em algumas zonas específicas desse modelo teórico (nomeadamente no que concerne à questão das homologias entre campos, e da adequação que apresenta entre as posições no campo e o habitus dos seus respectivos ocupantes)30, o facto é que quando explorados com pertinência e profundidade, tendo sempre em conta a realidade específica do espaço

espaço de recepção cultural propriamente dito, também podemos remeter para a obra de Bourdieu La Distinction - critique sociale du jugement, Paris, Minuit, 1980, assim como para o seu texto "Anatomie du goût", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 5, Outubro de 1976, pp. 18-43; sobre o campo dos media, ver Bourdieu, "L'Emprise du Journalisme", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 101/102, Março de 1994, pp. 3-9, e ainda Adriano Duarte Rodrigues, O Campo dos Media, Lisboa, Regra do Jogo, 1984. 29 Um exemplo ilustrativo da radicalidade contra a posição teórica de Bourdieu é patente no texto de Paulo Monteiro "Os usos das artes na era da diferenciação social: críticas e alternativas a Pierre Bourdieu", in Comunicação e Linguagens, nº 12-13, 1991. 30 "Dureza" essa que, justiça seja feita, tem vindo a ser bastante flexibilizada e relativizada pelo próprio autor ao longo do tempo, com a introdução de novos conceitos (como o de espaço dos possíveis associados à posição no campo) e com a discussão e o aprofundamento de "velhos" conceitos e da sua inter-relação (como o de habitus e da sua relação com a posição no campo). 47

onde que são operacionalizados, esses conceitos oferecem uma riqueza heurística bastante alargada e manobrável empiricamente. As potencialidades heurísticas do modelo dos campos de Bourdieu serão tanto mais vastas se, ao assumi-lo como paradigma de referência, não nos privarmos de com ele cruzar outros contributos teóricos quando acharmos pertinente, num esforço de alongamento e aprofundamento conceptual. É essa a nossa intenção ao importamos para o âmbito deste trabalho instrumentos analíticos disponibilizados quer pela Sociologia da Comunicação,

quer

pela

própria

Semiótica,

os

quais,

numa

tentativa

de

interdisciplinaridade entre as perspectivas cultural e comunicativa, nos ajudarão a responder de modo mais aprofundado às problemáticas da crítica como prática discursiva integrada na dinâmica de funcionamento específica do campo dos media. Assim sendo, o objectivo deste capítulo será, justamente, o de dar conta desse conjunto de argumentos e vectores teóricos que, reunidos, têm vindo a fundamentar a construção do conceito de campo, isto com vista à sua operacionalização no caso concreto do domínio da prática crítica, assim como na sua localização nos espaços sociais onde se insere. Sem pretensões de discutir em profundidade, pelo menos nesta fase, os problemas propriamente teóricos desse conceito (que passam pela questão de ser atravessado ou não por uma concepção demasiado estruturalista ou holista da análise das práticas sociais e da relação indivíduo/sociedade), vejamos então o que Bourdieu entende por campos de relações sociais, tratando tão-somente de apresentar as propriedades regulares ou "leis gerais" que, na sua perspectiva, atravessam os campos indiferentemente (se bem que em cada um possam tomar formas diferentes e específicas), assim como de explicar a especificidade da aplicação deste conceito ao espaço da prática crítica. Nas suas palavras, os campos, na sua dimensão sincrónica, constituem-se como «espaces structurés de positions (ou de postes) dont les propriétés dépendent de leur position dans ces espaces et qui peuvent être analysées indépendamment des caractéristiques de leurs occupants (en partie déterminées par elles)»31. Entende-se assim como campo como um domínio estruturado de relações sociais, que compreende uma topologia de lugares ou posições assimetricamente diferenciadas e diferenciadoras (do ponto de vista das relações de poder entre elas estabelecidas) respectivamente ocupadas por uma pluralidade de protagonistas que nele interagem e desenvolvem

31

BOURDIEU, Questions de Sociologie, Paris, Minuit, 1980, p.113. 48

estratégias específicas no sentido de defender ou melhorar a sua posição específica, sendo então essas acções objectivamente orientadas pelas propriedades inerentes às diferentes posições de quem as desenvolve no interior dessa estrutura e não pelas características intrínsecas aos referidos protagonistas. Quer isto dizer que as propriedades objectivas subjacentes à posição adquirida na estrutura do campo se irão reflectir no comportamento, interesses e estratégias desenvolvidas pelo(s) agente(s) que a ocupa(m), condicionando o modo como aquele(s) intervirá(ão) no campo e se relacionará(ão) com os restantes elementos do mesmo, estabelecendo com eles nexos de cumplicidade, de conflito ou de coexistência pacífica consoante as posições por eles ocupadas. É neste sentido que, segundo Bourdieu, o espaço de posições tende a comandar o espaço de tomadas de posição32. No entanto, cuidando de desmistificar e relativizar o determinismo linear que desta relação pudesse porventura transparecer, o autor sublinha que «pour si grand que soit l'effect de champ, il ne s'exerce jamais de façon mécanique et la relation entre les positions et les prises de position (...) est toujours médiatisée par les dispositions des agents»33 ou, o mesmo será dizer, pelos seus habitus. De extrema disponibilidade teórica e operacionalização empírica, este conceito refere-se ao sistema de pressuposições e de disposições estruturadas e estruturantes, ao conjunto de crenças e referências, ao capital de técnicas e saberes específicos incorporado pelo sujeito, o qual vai funcionar como matriz prática de orientação das suas escolhas, estratégias e interesses próprios, permitindo-nos a captação da dialéctica entre a interiorização da externalidade e a exteriorização da interioridade subjacente a toda a acção social. E como se constitui internamente o habitus? Que tipo de efeitos o constroem e nele habitam agregadamente? Primeiramente, há em Bourdieu uma relação entre sistemas de disposições e sistemas de posições que começa por ser marcada pela reciprocidade. Os habitus, enquanto sistemas de disposições, não se realizam efectivamente senão em relação a uma determinada estrutura de posições socialmente demarcadas, sendo sempre contaminados pelas propriedades objectivas do lugar que ocupam na medida da interiorização que é efectuada pelos seus detentores; simultaneamente, é através da externalização das disposições interiorizadas que se

32

BOURDIEU, "Le Champ Littéraire", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 89, Setembro de 1991, p.19. 33 Idem, p. 35. 49

realizam as propriedades inscritas nas posições e que os seus ocupantes dão a perceber que as ocupam. É sob este ponto de vista que, para Bourdieu, os interesses específicos dos vários agentes activos no campo, assim como as estratégias por eles accionadas face a esses mesmos interesses, não são inevitavelmente produto de um cálculo cínico e utilitarista, ou de uma procura consciente por parte desses agentes em relação aos lucros específicos que delas poderão advir; são, pelo contrário, acções objectivamente orientadas (em direcção a fins que podem não ser os subjectivamente afirmados), resultantes de uma total ou parcial relação de ajustamento entre as propriedades da posição detida pelo indivíduo na estrutura do campo e o habitus de que é portador. É neste sentido que o autor afirma que «l' habitus, système de dispositions acquises par l' apprentissage implicite ou explicite qui funcione comme un système de schèmes génerateurs, est génerateur de stratégies qui peuvent être objectivement conformes aux intérêts objectifs de leurs auteurs sans avoir expressément conçues à cette fin»34. Todavia, a reciprocidade aqui preconizada na relação entre disposições e posições não é de modo algum totalizadora, não implica total conformidade, pois existe todo um processo de constituição do habitus que é prévio e/ou colateralmente continuado ao seu ajustamento a determinada posição em determinado campo. Muito embora seja de facto também devedor da estrutura e do funcionamento do campo em que o indivíduo se insere e, simultaneamente, condição da sua organização e dinâmica, responsabilizando-se, nessa medida, pela a articulação das práticas, valores e representações dos agentes com a estrutura de posições objectivas em que se encontram respectivamente inseridos, na constituíção interna do habitus confluem ainda todo um conjunto de efeitos provenientes de factores institucionais, situacionais, conjunturais, de trajectória social e profissional, de experiência subjectiva e de projecto individual, que o livram de um entendimento linear e determinista como simples produto da posição objectiva do seu interlocutor na estrutura do campo em que se inscreve35. Deste modo, se tomarmos o habitus como um sistema de disposições «conferidas na origem, adquiridas no trajecto e devedoras das interacções com os seus outros mais próximos na actividade profissional assim como imputadas pelas instituições por onde passa»36, tendo o cuidado de repôr, a par das suas dimensões BOURDIEU, Questions de Sociologie, op. cit., pp. 119-120. CONDE,O Duplo Écran. 2.Artistas..., op. cit., pp. 35-36. 36 Idem, p. 32. 34 35

50

estruturais, as dimensões intencionais, reflexivas e contingentes da acção social que gera e orienta, o espaço das tomadas de posição não fica assim inevitavelmente confinado ao determinismo das posições de onde parte, sendo sempre mediado pelos factores acidentais próprios da temporalidade conjuntural, da trajectória social e das propriedades decisionais e intencionais do indivíduo. Por outro lado, Bourdieu chama ainda a atenção para o facto de a cada posição no campo corresponder um dado repertório de potenciais ou virtuais opções possíveis que se oferecem como espaço de tomadas de posição em determinado momento e contexto. A noção de espaço dos possíveis, como lhe chama, representando, no seu dizer, «l'univers fini des libertés sous contraintes e des potencialités objectives, choses à faire, problémes à résoudre, possibilités stylistiques ou thématiques à exploiter, contradictions à dépasser, voire ruptures révolutionnaires à opérer»37, rompe assim de uma só vez quer com a ideia da liberdade absoluta, exaltada pelos defensores da espontaneidade individual total, quer com os determinismos reducionistas e mecanicistas que o seu modelo poderia até aí pressupôr, dando lugar também à alternativa (versus reprodução). Corresponde, no fundo, à definição social do que é permitido a qualquer um e do que ele se pode permitir a si mesmo como projecto e intenção, estabelecendo a sua margem de liberdade na tentativa de ultrapassagem dessa mesma margem e funcionando, deste modo, como princípio de orientação das aspirações transgressoras socialmente consentidas. Irá ser então o espaço de tomadas de posição que os mais audazes tentarão explorar e desenvolver até às últimas consequências, gerindo o conjunto dos possíveis que corporizaram em condição, identidade e trajecto com o conjunto dos possíveis consentido pelas propriedades objectivas dos seus meios de pertença. O espaço de tomadas de posição é assim conceptualizado sob a forma de uma certa estrutura de possibilidades socialmente oferecidas, estrutura essa que comporta sempre uma quota parte de indeterminação, ligada ao facto dos agentes, por mais estritas que sejam as propriedades inscritas na sua posição, disporem sempre de uma margem objectiva de liberdade, que eles aproveitam consoante as suas disposições objectivas, interiorizadas ao longo da sua experiência social. O maior ou menor grau de elasticidade do espaço dos possíveis concedido à acção social do indivíduo ou, o mesmo

37

BOURDIEU, "Le Champ Littéraire", op. cit., p. 36. 51

será dizer, a margem de liberdade ou de direitos deixada à interferência das duas disposições subjectivas num dado momento, irá variar substancialmente, segundo Bourdieu, com a situação de autonomia do campo em que se move, com o grau de institucionalização do lugar que lhe corresponde, assim como com a posição que ocupa na estrutura de relações de força que constitui o campo, esta em grande parte dependente do capital simbólico acumulado ao longo da sua trajectória, ou seja, o capital comummente denominado de prestígio, reputação ou nome feito38. Neste contexto, quebrando a partir daqui o suposto determinismo linear e mecanicista que pudesse ser abusivamente lido da relação que constata entre espaço de posições e espaço de tomadas de posição, o autor argumenta que cada tomada de posição (seja ela de ordem temática, estilistica, ética, estética...) define-se objectivamente não apenas por relação ao universo das tomadas de posição correspondentes às diferentes posições, mas também por relação ao espaço dos possíveis que se encontram indicados e sugeridos na própria posição, o qual irá ser gerido conforme o sistema de disposições de quem agencia a tomada de posição e os direitos que lhe são estatutariamente concedidos e reconhecidos no momento, na situação e no contexto em que actua. Temos então até aqui a noção de campo como um espaço de relações sociais específico e delimitado, onde se entrecruzam e jogam interesses (individuais e/ou colectivos) diferenciados, por vezes opostos, produto das diversas posições objectivas, elas próprias em oposição, que constituem a estrutura do campo, e dos diversos habitus que delas decorrem e que elas exigem. São esses interesses que vão informar as diferentes estratégias ou tomadas de posição accionadas, com todos os poderes de que dispõem, pela pluralidade de agentes e/ou instituições em confronto no campo, estratégias essas escolhidas na base do espaço de possibilidades potencialmente disponíveis na estrutura do campo como instrumentos e objectivos de luta, recaindo essa escolha, obviamente, sobre as opções que lhes parecem mais em consonância com as suas intenções e interesses específicos. O campo torna-se assim num palco de lutas estratégicas e de concorrência feroz em torno da imposição e legitimação de interesses objectivos específicos e distintos, constituindo-se a sua estrutura como um estado de relações de força (de dominação e de subordinação) entre os diversos agentes e/ou instituições que nele assumem posições

38

Idem, p. 43. 52

assimetricamente diferenciadas do ponto de vista do poder simbólico que detêm para imporem e legitimarem os seus interesses específicos - poder esse conceptualizado como aquele que só é passível de ser exercido se fôr conhecido e reconhecido como legítimo (e, como tal, ignorado como arbitrário) quer entre os que o exercem, quer entre os que lhe estão sujeitos: nas palavras de Bourdieu, «o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem»39. A distribuição desigual e assimétrica do poder simbólico, fenómeno que está na base da estruturação e da dinâmica de funcionamento de qualquer campo, comandando os diversos interesses e as estratégias que os diferentes agentes e/ou instituições accionam na luta que os opõe e cujo móbil é sempre o monopólio da autoridade na definição de uma visão sobre o campo e o monopólio da violência legítima na sua imposição sobre os restantes elementos do campo, resulta, por sua vez, da desigual e assimétrica distribuição do capital específico que é exigido no seu interior - conjunto de competências formais e emocionais, técnicas e sensitivas, saberes (dizer e fazer) instituídos e constituídos no campo como legítimos e, como tal, nele requeridos. Quer isto dizer que a localização dos diversos agentes e/ou instituições na estrutura hierárquica do campo, assim como os seus interesses e as estratégias por eles operacionalizadas neste, vão variar consoante o volume e a estrutura de capital específico que esses mesmos agentes e/ou instituições conseguiram mobilizar ao longo da sua trajectória social e das lutas em que participaram anteriormente, lutas essas realizadas justamente em torno da permanência ou da transformação da estrutura de distribuição de capital específico no campo, da imposição ou subversão do volume ou espécie de capital requerido e definido como legítimo, bem como da legitimidade da própria definição. Em suma, o objectivo das lutas simbólicas decorridas no campo oscila sempre, no seu cerne, entre a conservação ou a revolução da estrutura de relações de força que impera num dado momento. Nesta perspectiva, consoante as posições assumidas dentro da estrutura de relações de força que constitui o campo em determinado momento (posições essas determinadas pelo maior ou menor volume de capital específico legítimo detido pelos agentes que as ocupam), os seus protagonistas serão inclinados a operacionalizar estratégias de conservação dessa mesma estrutura, visando a defesa e a manutenção da

39

BOURDIEU, O Poder Simbólico, op. cit., pp. 7-8. 53

doxa (crenças e fundamentos firmados e confirmados como tradição do campo), isto no caso daqueles que detêm um maior volume de capital específico legítimo, fundamento da sua posição de dominação e de autoridade simbólica no campo; ou, pelo contrário, tenderão a accionar estratégias de sucessão ou de subversão da estrutura do campo, estas preconizadas pelos recém-chegados ou pelos que tentam a sua inserção no campo, os quais, pelo facto de serem menos providos do capital específico legítimo que lhes é exigido no campo, vão ocupar as suas posições dominadas. As estratégias de conservação, essencialmente defensivas, visam sobretudo conservar a posição de dominação simbólica ocupada e os princípios que a fundam, fazendo perpetuar o status quo; aparecem por isso associadas ao silêncio, à descrição, à reserva e ao discurso ortodoxo. As estratégias de sucessão, por seu turno, ainda que tentando romper com o silêncio estabelecido pelos dominantes, pondo em questão a aparência de que a sua autoridade é "natural", vão implicar determinados compromissos com a permanência, com a continuidade: vão ser caracterizadas pela aceitação da legitimidade da estrutura de distribuição de capital específico tal como está organizada, assim como da legitimidade de quem a define, pela aceitação dos fundamentos oficiais e institucionalizados de competência específica, pela subordinação aos paradigmas e ideais vigentes, pela inovação limitada, prudente, no fundo, pela submissão à doxa do campo. As estratégias de subversão, pelo contrário, implicam um risco muito maior, até porque delas também se esperam "lucros" muito mais altos: com a sua adopção, tenta-se a total reformulação dos princípios de legitimação da dominação no campo e, por consequência, a própria reestruturação das relações de poder tal como nele estavam estabelecidas; o seu objectivo principal é reverter a estrutura hierárquica do campo e transformar os princípios que a fundam, desencadeando mecanismos que tendem para a heresia, para a heterodoxia, afirmando-se como "ruptura crítica" perante a organização institucionalizada do campo. Este sentido de orientação, ou seja, a inclinação demonstrada pelos actores para a audácia ou para a prudência nas escolhas estratégicas que fazem em termos de tomadas de posição, dimensão fundamental dos seus habitus, torna-se, nesta óptica, inseparável do seu sentido de localização na estrutura de relações de força, estando no princípio da correspondência estreita que se observa entre posições e disposições, ou seja, as características sociais dos lugares e as características sociais dos agentes que os ocupam. Assim sendo, uns, os que ocupam os lugares dominantes ou que a eles pretendem aceder sem grandes transformações na estrutura de distribuição de capital 54

específico e nas suas bases de legitimidade - os dominantes e pretendentes -, apostam no seguro e seguem o rumo da reprodução ou da inovação reconciliadora; os outros, ocupantes das posições marginais na estrutura de relações de força subjacente ao campo em que se movem - os dominados -, jogam no incerto e tomam o rumo da revolução. É a este último grupo que, no fundo, cabe a iniciativa da luta, tentando quebrar a doxa do campo, rompendo definitivamente com o silêncio e pondo em causa as evidências de uma existência sem problemas por parte dos dominantes, levando estes a accionar mecanismos estratégicos de defesa que sustentem a conservação da estrutura do campo e, deste modo, o lugar privilegiado que ocupam no estado de relações de força que a constituem. Nesta perspectiva, o campo, enquanto sistema de relações sociais, vai ser permanentemente atravessado pelo combate entre interesses e estratégias de conservação e interesses e estratégias de sucessão e de subversão, todas elas gizadas em direcção ao monopólio da legitimidade na definição do volume e estrutura do capital específico, fundamento do poder simbólico e da autoridade detida no seu interior. Pelo que a sua dimensão diacrónica irá constituir-se justamente na história dos constantes combates travados entre aqueles que lutam para durar, cujos interesses estão ligados à permanência e à sobrevivência, à continuidade e à reprodução, à conservação e à ortodoxia, ou seja, os dominantes na hierarquia da distribuição do capital específico, e aqueles que lutam para entrar e modificar, cujos interesses se associam à descontinuidade e à ruptura, à transgressão e à heresia, isto é, os dominados nessa mesma hierarquia. Mas se uma das propriedades que atravessam todo e qualquer campo é, no dizer de Bourdieu, o facto de ser sempre estruturado e de funcionar segundo a lógica da distribuição e da detenção de capital específico, orientadora dos diversos interesses e estratégias que nele se contrapõem e motor das lutas constantes que nele se desenrolam, uma outra propriedade constatada por aquele autor é, justamente, o facto de no cerne de todos aqueles antagonismos existir uma cumplicidade objectiva entre os vários agentes e/ou instituições rivais, tornando-os adversários cúmplices. Esta cumplicidade passa pelo acordo tácito que entre eles se estabelece no que se refere ao interesse na luta, ao (re)conhecimento das leis ou princípios imanentes que a regulam, à crença no valor do jogo, assim como no valor do que está em jogo e do que elegem como motivo de luta. É essa cumplicidade, em última instância, que os leva a esquecer o quanto são desiguais as "armas" utilizadas na luta, assim como as possibilidades de lhes aceder, (a)parecendo 55

tais desigualdades como "naturais" aos olhos de quem as define e de quem a elas está sujeito. O facto da estrutura e do funcionamento de todos os campos tender a organizarse sempre segundo a mesma lógica, ou seja, segundo o volume e estrutura do capital específico possuído pelos seus agentes activos, fazendo com que as oposições e lutas que neles se geram - entre os mais ricos e os mais pobres (do ponto de vista do capital específico detido), entre os mais velhos e os mais novos, entre os dominantes e os dominados, entre os poderosos e os pretendentes, entre os sucessores e os hereges, etc aconteçam de forma semelhante em todos os campos, produz um curioso fenómeno de inter-relação e de interpenetração entre campos, o qual Bourdieu denominou de efeito de homologia dos campos. Com este princípio, o autor pretende dar conta do facto de cada posição em determinado campo encontrar sempre a sua homóloga noutro campo diferente, sendo o sistema geral de disposições e pressuposições, ou seja, o habitus associado a ambas as posições e incorporado pelos agentes que as ocupam em ambos os campos, de algum modo, semelhante, originando, consequentemente, interesses e tomadas de posição estratégicas também elas semelhantes na sua génese (podendo contudo corporizar-se em modalidades de acção diferentes), sem que estas correlações e correspondências sejam conscientemente procuradas. No entanto, é de notar que apesar de cada campo possuir características e particularidades próprias, apesar de deter uma linguagem e um capital específico que lhe é particular, apesar do seu modo de estruturação e de funcionamento se expressar, aparentemente, de uma forma específica, nenhum campo pode ser considerado como uma entidade inteiramente autónoma, como um compartimento-estanque (a não ser analiticamente, e mesmo deste ponto de vista, um total fechamento de campo pode tornar-se pouco produtivo heuristicamente). Com efeito, os campos cruzam-se, interrelacionam-se constantemente no tabuleiro social, como o demonstram os fenómenos de intersepção que entre eles acontecem (como acontece entre o campo da arte e o campo da crítica, este último sempre dependente dos objectos que no primeiro são criados, ou entre o campo da crítica e o campo dos media, espaço onde o discurso produzido no primeiro é mais amplamente divulgado), tal como os fenómenos de sobreposição que também entre eles existem (patentes, por exemplo, no caso do campo da pintura, o qual faz parte do campo da arte e este, por sua vez, do campo de produção cultural).

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O facto de existirem fenómenos de inter-relação, de intersepção e de sobreposição entre diversos campos, não invalida, porém, que cada um disponha da sua própria autonomia relativa, a qual é passível de ser medida tendo em conta quer a capacidade que tem de produzir os critérios que fundamentam a sua organização e a sua hierarquização interna, quer a sua capacidade de definir as condições gerais ou princípios de acesso aos lugares que tem disponíveis, quer ainda a sua capacidade de demarcação e de auto-protecção face ao exterior. Em suma, as características fundamentais que revelam e contrabalançam o grau de autonomia relativa de um dado campo serão o nível de independência que demonstra possuír face aos contrangimentos externos e, consequentemente, o poder de que dispõe na definição da sua própria doxa, assim como na imposição exterior da sua lógica específica, ou seja, de se impôr socialmente como instância legitima para criar, sancionar e reestabelecer as regras do dizer e do agir próprios à sua respectiva esfera. Por sua vez, para que o campo se constitua enquanto corpo de especialistas com a legitimidade e autoridade publicamente reconhecida para ditar endógena e exogenamente o seu sistema de normas e sanções específicas, necessitará de atingir um nível suficiente de especialização num dado saber instrumental, o qual servirá aos agentes implicados na sua constituição não apenas como instrumento de gestão nas suas entradas e saídas, estabelecendo o seu grau de fechamento e de auto-protecção, como também a ele recorrerão para mobilizar a força com que concorrem nas lutas de demarcação que desenvolvem interna e externamente. Perante este quadro de análise, como podemos conceptualizar o grau de autonomia relativa de um suposto campo da prática crítica? Até que ponto podemos abordar este espaço ou lugar social enquanto campo de relações sociais no sentido bourdiano do termo? A resposta a estas questões implica desde logo a verificação do seu grau de independência ou de subordinação face ao pólo da criação cultural e aos constragimentos do seu mercado, ao pólo da recepção cultural e no interior da estrutura organizativa dos mass media, ou seja, diante dos campos que com ele se interseptam e se inter-relacionam mais directamente. Tendo em conta que tais questões serão ampla e aprofundadamente retomadas num futuro trabalho, aquando da apresentação sistemática dos resultados da investigação que até aqui já efectuámos, sendo ainda algumas delas abordadas ao longo deste, a sua resposta aqui será breve, com o objectivo de apenas justificar a pertinência da adopção do conceito de campo ao espaço da crítica na sua especificidade. 57

Vimos que um dos indicadores mais importantes do grau de autonomia relativa de um campo social é o grau pelo qual os seus limites se encontram institucionalizados numa fronteira protegida por direitos de entrada, sobre os quais existe um consenso mínimo mais ou menos informal, sendo nessa medida mais ou menos explicitamente codificados e institucionalizados em medidas de exclusão e integração. Um alto grau de codificação na entrada do campo, que corresponde a uma institucionalização formal e/ou oficial de tais medidas, vai a par de uma maior autonomia; a um grau de codificação menor, onde a regra de entrada no jogo que se joga no campo faz ainda parte do jogo, corresponde, pelo contrário, um grau de autonomização mais fraco. O campo da crítica, nesta perspectiva, caracteriza-se na sua entrada por um grau de codificação institucional relativamente fraco (como, de resto, os campos das artes e do jornalismo, embora hoje o sejam cada vez menos, com a institucionalização e a expansão dos cursos oficiais de artes e de comunicação social), sendo uma das suas propriedades mais significativas a relativa permeabilidade das suas fronteiras em virtude da diversidade de mecanismos no seu acesso. Fazendo parte fundamental desse conjunto de direitos de entrada num campo a posse de um saber instrumental específico, sendo o seu processo de autonomização acompanhado da elevação, reforço e especialização das exigências em matéria de competências específicas requeridas, da análise das características dos agentes que entrevistámos atesta-se, porém, que a entrada no campo da crítica não exige, à partida, a posse de um título institucionalmente reconhecido (se bem que, no caso dos recém- chegados ao campo, se note que todos detêm uma formação universitária), ou sequer que, na posse desse título, ele seja específico da área cultural em que o seu detentor intervém. Não quer isto dizer que este seja um campo pouco exigente e extremamente disponível na ocupação dos seus postos, pois a crítica sempre foi e é cada vez mais um lugar específico ao qual o acesso é reservado a uma minoria, a uma certa intelligentsia cultural. Tem é no seu processo de regulação da selecção e de fechamento um tipo de exigências menos explícitas e não institucionalmente codificadas, as quais, em termos de competências, pressupõem uma componente de saber especializado na área cultural onde o crítico é suposto intervir - saber esse que, à referência teórica (que actualmente não é só importada da Estética mas também de outras zonas do saber, como a História, a Psicologia, a própria Sociologia, etc), é acumulada também a experiência prática com o produto sobre o qual se debruça -, uma componente de saber-sentir o objecto, que pressupõe um olhar e uma relação privilegiada, porque informada, sobre esse mesmo 58

objecto, assim como uma componente de saber-fazer, associada aos requisitos linguísticos e conceptuais necessários para passar à escrita os resultados dessa mesma relação. A par deste tipo de competências, a penetração no espaço reservado à crítica pressupõe ainda, como passaporte, a posse de um amplo capital de sociabilidades especificamente ligadas aos meios artísticos e jornalísticos. De facto, o direito de entrada no campo da crítica não passa, impreterivelmente, pela detenção de um capital de formação específica academicamente atestado e legitimado na área em que intervêm coomo críticos. Os capitais que se exigem à partida no acesso ao lugar da crítica poderão ser acumulados autodidacticamente, de maneiras diversas, subjectivamente geridos e valorizados. À questão «considera necessário o crítico possuír algum tipo de formação académica relacionada com a área de actividade artística em que intervém?», grande parte dos entrevistados concordaram na sua não obrigatoriedade ou inevitabilidade, muito embora valorizem a utilidade da sua posse em determinadas circunstâncias: desde que essa formação seja de "qualidade" e desde que o crítico não se acomode à estreiteza do seu saber academicamente acumulado. É neste sentido que podemos compreender as seguintes respostas à questão colocada: «Necessário não será. Se formos a ver, em termos finais, é uma opinião sobre um acontecimento, e se calhar à partida todas as pessoas serão críticas num momento ou noutro. Agora, se estamos a falar de algo que em si não é tão simples como possa parecer, algo que se reduz a duas horas ou ao momento em que se olha para uma coisa, temos de ter a percepção de que o que está para trás pode ter sido anos, pode ter sido uma vida inteira, pode ter sido pouco tempo. Neste caso, o conhecimento do que é que preside a cada forma artística deverá fazer parte dos conhecimentos de um crítico como uma forma de cultura, que não se deverá limitar também só ao que diz respeito ao que ele aborda. Há ali uma confluência de uma série de conhecimentos, de informações que, por sua vez, ele pesquisa para se documentar sobre o que vai criticar, ou o que tem que criticar, que é feito eventualmente e nos casos em que fôr necessário para cada situação, mas também implica a procura de uma informação que, embora não sendo imediatamente necessária, faz parte da cultura de cada pessoa e da formação que pretende ter ou não ter, e então aí faz as escolhas que considere mais adequadas ao que pretende ser o seu trabalho.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras)

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«Não forçosamente académica. Na minha opinião, um crítico, talvez seja um exagero da minha parte, ele tem que conhecer profundamente a sua área, mas também é importante que ele tenha uma cultura geral boa, porque senão ele tende a tornar-se demasiado especialista. Ele tem que ser um especialista, mas ele também tem que ser um generalista. Toda a obra de arte, mesmo aquela chamada a arte pura ou a arte pela arte, ela faz parte de uma sociedade, e ele tem que perceber todos os sentidos ou pelo menos a maior parte dos sentidos acessíveis a uma pessoa só. E é óbvio que ele tem que ter uma cultura geral muito boa, para poder situar essa obra em, por exemplo, determinadas correntes de sensibilidade, de mentalidade, filosóficas, históricas. Eu acho que esse é o crítico ideal. Penso que foi o Voltaire que disse que um especialista é uma pessoa que sabe cada vez mais sobre cada vez menos. E evidentemente isso é uma coisa extremamente redutora. Agora, a prioridade é a sua área.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente) «É útil, não é? Depende também da qualidade da formação académica. Se a formação académica fôr muito má, como é em geral a formação académica em Portugal no campo artístico, pode ser contraproducente. Se a formação académica fôr boa é importante, se fôr má é contraproducente. A minha opinião é que terá de ser discricional em função do caso concreto. Se me disser se a formação que é dada pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa é importante para um crítico, eu digo-lhe já que não, não é! Assim como não é para a formação do artista. Se me falar eventualmente de outras escolas, direi que sim. Depende. O que é evidente é que o crítico só pode fazer valer a sua acção se passar por um processo de aprendizagem intenso, sistemático, e que não se pode localizar no tempo, é contínua. A aprendizagem do crítico é contínua, é um processo contínuo, quando ele pára, morre. Nesse sentido, o que é importante é a aprendizagem do crítico, não é a instituição que eventualmente presta os cuidados de informação.» (António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente) «De forma alguma. Eu começo a ter cada ver mais um "part-et-pris" em relação às academias, porque a academia é um mundo fechado sobre si próprio que raramente se abre sobre objectos que lhe são estranhos. Curiosamente, os melhores académicos são académicos que exercem uma actividade fora da academia. Os melhores filósofos são filósofos que fazem filosofia em jornais, em publicações. De forma alguma. O 60

Truffaut era completamente analfabeto em termos curriculares, por exemplo, e foi um dos melhores críticos. Acho que não é fundamental. No entanto, lá está, há qualquer coisa que eu não consegui designar nunca senão como «espírito académico» - quando dá para o torto é terrível -, mas uma pessoas só de andar ali entre aquelas paredes, respirar aquele ar, organiza. Os autodidactas são menos organizados. O autodidacta muito inteligente é obviamente melhor que um académico muito estúpido. Mas o académico muito estúpido tem quase sempre uma forma quase espontânea e intuitiva de organizar o seu pensamento, enquanto o autodidacta tende à dispersão. Há qualquer coisa que se aprende. Isto é muito empírico, mas já percebi que as coisas funcionam um bocado assim. Portanto, provavelmente a academia não é de rejeitar liminarmente.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público) «Não. Eu tenho, mas não acho necessário. O Alexandre Melo não tem. A formação faz-se fora da universidade. A que eu tenho não me serviu para muito. Se fosse noutro país, se calhar acharia que sim, que faz muita falta, mas agora cá em Portugal, acho que não faz muita falta. Teria feito falta se eu fosse historiador de arte. Ou ter-me-ia feito falta, porque sempre aprendi alguma coisa nesses capítulos, que me servem também agora, em certa medida. Mas não, não acho que seja evidente. A formação académica geralmente é uma formação atrasada em relação à actualidade, e ele tem é que se actualizar, e isso é nas bibliografias.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) «Se formação académica é no sentido de dominar um métier... Formação académica no sentido de diploma... Eu tenho encontrado bons críticos diplomados e tenho encontrado bons críticos autodidactas. Tenho encontrado bons artistas diplomados, e tenho encontrado bons artistas autodidactas. Eu sou autodidacta como artista e como crítico. O Almada Negreiros era um artista autodidacta. E eu costumo dizer que o autodidacta percebe mais do que os outros, porque o que estuda por sua própria conta e risco é sem ser para o canudo, enquanto que os outros só estudam para o canudo. Há uma certa diferença entre o doutorado de carreira e o doutorado sem ser de carreira, por conta própria. A formação académica... Eu não gosto muito do termo académico porque pressupõe isso mesmo, pressupõe passar pela escola, enquanto que se pode ter uma formação mais autodidáctica. Mas, de qualquer forma, é necessária

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uma formação intelectual seja ela qual fôr, seja feita onde fôr.» (Eurico Gonçalves, crítico de artes plásticas no Diário de Notícias) «Isso também é variável. Hoje em dia, de um modo geral, os críticos tem formação académica porque tiraram cursos, determinado tipo de cursos, no meu tempo isso não acontecia, escrevia-se muito mais espontaneamente. Eu tinha um curso superior mas não tinha nada que ver com teatro, eu quando fiz teatro em Direito não era por causa do Direito. Isso é variável. Agora quanto mais preparado, quanto maior for a bagagem que tiver o crítico, e o crítico nunca está feito, está sempre a fazer-se, evidente que a experiência conta muito, mas quando começa, mesmo assim ainda verde, terá que ter um máximo de preparação como em qualquer outra profissão, ter o máximo de bagagem para errar menos.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de Notícias) «É uma ajuda, é evidente que a formação académica é sempre uma boa base, mas em tudo na vida é possível obter os conhecimentos por via académica ou por via da experiência, embora a via académica tenha a vantagem de dar uma boa base teórica e é sempre conveniente ter uma boa base teórica para depois a prática ser correctamente desenvolvida.» (Francisco Perestrello, crítico de cinema na Capital) «Isso aí é muito variável. Eu considero que a crítica de arte tem regras próprias e tem uma metodologia. Um crítico pode provir de muitos campos do conhecimento, pode provir da engenharia, pode provir da história de arte. Há um caso de um crítico que é engenheiro por formação, que é o caso do Rui Mário Gonçalves, que exerceu crítica, hoje já não tanto, hoje trabalha mais ao nível da história de arte. (...) O crítico pode também ser auto-didacta. Um dos casos paradigmáticos de crítica de arte no século XX, o Grindberg, era um crítico auto-didacta. Aí, a nível dos pré-requisitos é um bocado difícil de situar. O crítico tem é que estar muito consciente de que a sua actividade não é uma actividade empírica, refuto completamente a crítica impressionista, no sentido de dizer "parece-me que isto é bom, parece-me que isto é mau, não gosto disto". Esse tipo de crítica impressionista, refuto completamente.» (Carlos Vidal, crítico de artes plásticas na Capital)

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Há, no entanto, uma área cultural em que a posse de um capital cultural sob a forma institucionalizada, ou seja, um título, é bastante valorizada, tornando-se obectivamente quase imprescindível na área da intervenção crítica. Falamos, designadamente, na área da Literatura. Pelo menos, dos críticos de livros que entrevistámos, se por um lado todos têm estudos universitários nesta área específica, por outro, apenas um, João António Dias, do semanário Independente, subvalorizou a posse dessa formação (que ele próprio detém). Os restantes, como podemos observar, insistem bastante na sua valorização: «Considera necessário um crítico possuir algum tipo de formação académica relacionada com a área de actividade artística em que intervém? Ás vezes até nem devia haver. Mas pronto, em princípio, em Portugal é extremanente difícil. Se as pessoas não andarem na faculdade, com muita dificuldade vão chegar... Até por uma questão de informação, que exterior às faculdades não existe. Mas em princípio até era bom que não.» (João António Dias, crítico de literatura no Independente) «Eu não falaria exactamente em formação académica. Muito sinceramente eu acho que um certo tipo de crítica muito impressionista e autodidacta, salvo rarissimas excepções é... A maneira como concebo a crítica passa pela aquisição de um saber que geralmente só por via académica é que se adquire. Não estou com isto a querer atribuir à Academia um lugar formal, o qual não reconheço. O que eu acho é que a crítica pressupõe um saber que geralmente - e digo geralmente, pode não ser sempre - só se adquire por formação académica, mesmo que seja para depois abandonar esse saber e adquirir outro saber um pouco diferente. Mas, de qualquer das maneiras, para não cair em determinado tipo de vícios de autodidactismo, que eu acho que são nefastos, seria preferível passar por uma formação, que é aquela que geralmente é concedida pela Academia.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «Eu não acredito em auto-didactismos, portanto tem que haver, mesmo que isso mais tarde seja uma coisa que 80% nós já esquecemos, de facto uma formação prévia. Ou seja, eu acho que é importante, ao fazer crítica de livros, ter uma formação universitária ou equivalente, específica, porque se não temos todos os riscos do autodidactismo, que são o deslumbramento, o estarmos a falar em coisas que não... (...) A formação para mim é muito importante, principalmente numa altura em que muita 63

gente é muito autodidacta a fazer tudo e que a cultura é feita à base do que se lê numa revista ou que se lê num jornal, pior ainda, do que se ouviu no café, e as pessoas acham que já têm toda a informação sobre o assunto e falam naquilo como se andassem toda a vida a estudar aquilo.» (Tereza Coelho, crítica de literatura no Público) «Evidentemente, isso é uma das melhores maneiras de legitimar a sua crítica. É evidente que se eu tiver um mestrado ou um doutoramento, pelo menos aos olhos dos outros, tenho mais legitimidade. Que isso modifique aquilo que eu penso, acho que isso não vai modificar. Não é que modifique muito eu ter mais um diploma, menos um diploma, mas a pessoa tem que estar sempre a dar provas, a provar que realmente tem instrumentos e que os seus instrumentos estão a funcionar bem, se o motor não está estragado. Eu nesse sentido acho que não sou como essas meninos da geração K que acham que não se tem de dar provas. Eu acho que a pessoa tem que dar provas à Academia, não é dar provas ao crítico do lado, é à Academia, submeter.se àquelas coisas, mesmo quando tem que dizer coisas que não quer.» (Patrícia Cabral, crítica de literatura no Diário de Notícias) Neste contexto, embora não seja condição liminar de acesso ao campo da crítica do ponto de vista objectivo, o facto é que a detenção de uma formação académica, mesmo que não especializada na área de intervenção artística em que se actua, vai constituindo objectivamente uma condição cada vez mais pretendida e valorizada, isto nomeadamente se tomarmos em conta que, se por um lado todos os recém-chegados ao campo tendem a detê-la e a utilizarem-na na sua forma conceptual e metodológica no exercício da sua actividade, por outro, são os próprios críticos mais antigos a constatarem essa tendência e a valorizarem a posse desse tipo de capital: «Considera necessário um crítico possuir algum tipo de formação académica relacionada com a área de actividade artística em que intervém? Isso penso que sim. Eu posso falar à vontade, porque não tenho, mas penso que é útil haver uma base científica para o trabalho crítico, pois penso que é um trabalho de responsabilidade. Claro que tem que ser uma boa formação, em todos os campos é assim. Mas penso que sim, penso que há vantagens. E penso que cá em Portugal se está a seguir um pouco esse caminho. Lentamente, mas penso que vamos chegar lá. No seu caso pessoal... Não, eu não tenho. Sou uma pessoa que aprende por si própria, sou aquilo a que se chama 64

um autodidacta. Só aprendi a ver espetáculos, só que tive a sorte de ver muito bons espetáculos, sobretudo lá fora. E o meu contacto com as pessoas, o meu trabalho com o António Pedro, etc, o meu trabalho de bastidores, isso é a minha formação. Não tenho outra. (...) Eu penso que houve uma mudança há alguns anos: primeiro uma mudança em que apareceram, como eu disse, críticos com o mínimo de especialização, os jornais confiaram as suas colunas de crítica a especialistas. Depois essa especialização tornou-se mais concreta, e nessa segunda fase, que é aquela em que nós estamos actualmente, verifica-se o aparecimento de críticos com uma formação universitária, por exemplo no Expresso, vamos dar nomes aos bois, em que há uma outra linguagem, há uma outra posição face ao objecto criticado, e que a mim me parece muito interessante. Sou leitor ávido desse tipo de crítica, e portanto há aí uma mudança qualitativa que me parece muito positiva. (...) Já essa mudança tinha sido importante a meu ver, e esta última mudança foi talvez ainda mais importante, na medida em que se deu um nível universitário - bem sei que estas coisas são muito relativas - a uma actividade que era muitas vezes desprestigiada, aliás injustamente.» (Carlos Porto, crítico de teatro no Jornal de Letras. Tem vindo a fazer crítica de teatro desde os anos 50) «O que acontece é que a crítica hoje está especializada. Se fôr à Revista Colóquio, quem é crítico literário é justamente os professores universitários. Hoje em dia a universidade tomou conta da crítica. Eu sou secretário da Associação Internacional dos Críticos Literários, e todos os nossos associados, maioritariamente, são da área universitária. A crítica já é encarada como uma especialização, como uma decorrência do próprio ensino da literatura. (...) E como caracteriza, em traços gerais, o panorâma actual do universo da crítica? Neste momento há uma certa tendência para que a crítica literária seja uma componente, uma decorrência da vida universitária. Há alguns críticos, não muitos, dois ou três, que ainda fazem isto por devoção, por amor. Sou eu, será o José do Carmo Francisco, será o Raúl Teixeira, do Porto, será o Joaquim Ferreira, seremos assim uma meia dúzia de críticos que fazemos crítica sem nenhuma preparação especial, a não ser a nossa experiência de vida e de lermos muito, e de irmos acompanhado isto há trinta anos. Seremos assim uns seis ou sete, mas somos uma espécie condenada à extinção, porque de facto é a crítica universitária... Pelo menos numa fase, o universitário quando acaba o curso ou quando está quase a acabar o curso, vai fazer crítica para se tornar notado e chamar a atenção 65

para o seu nome. Depois, a própria carreira universitária encarrega-se de o afastar da crítica, porque entretanto vêm as especializações, os mestrados, os doutoramentos, essa coisa toda, e ele acaba por largar a crítica literária, são muito poucos os que continuam. Portanto, acho que seremos uma meia dúzia deles por amor à literatura e por amor à crítica, e depois o resto já são os universitários a fazerem a sua própria carreira.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras. Faz crítica de livros desde os anos 60) Mas quer seja por via institucional, quer seja por via autodidáctica, o facto é que o crítico, para assumir esse estatuto e ocupar o lugar social que hoje lhe é reservado, mais do que um "gosto requintado", uma familiaridade pragmática com e/ou interesse diletante pelo mundo das artes, como era outrora, tem que dar provas públicas da detenção e acumulação de determinados tipos de saber incorporado que remetem para vários tipos de competências exigidas: por um lado, um capital livresco de referências teóricas, técnicas e historiográficas directamente relacionado com o campo de saber específico à área cultural em que intervém, capital esse que poderá ainda alargar-se por outras zonas do saber estético ou extra-estético. Por outro lado, um capital acumulado de experiências estéticas práticas, que pressupõe uma familiaridade, um interesse e um contacto sistemático e prévio ao desempenho da actividade crítica com as obras produzidas na área cultural em que intervém hoje criticamente, capital esse que muitas vezes começa por ser acumulado desde bastante cedo, herdado por via familar ou por redes de sociabilidade mais alargadas, como os amigos ou colegas de escola (dos 21 críticos entrevistados, 11 confessaram ter começado a interessar-se pela área cultural em que hoje são protagonistas através de contactos familiares: cinco têm na sua ascendência familiares que trabalhavam do lado da criação, quatro viram-se estimulados ao consumo cultural sistemático em determinada área também por familiares próximos que já o exerciam habitualmente, enquanto dois são descendentes de donos de estruturas directamente ligadas à produção e visionamento de filmes; para os restantes, os primeiros contactos com a área em que hoje intervêm como críticos fizeram-se através de um consumo cada vez mais sistemático e habitual, de algumas experiências profissionais no meio artístico, da escola ou Universidade, quer no âmbito de uma formação escolar específicamente artística, quer no âmbito de uma formação extra-escolar ligada a actividades extracurriculares desenvolvidas no espaço escolar ). 66

Uma disposição de sensibilidade para as artes e para todos os fenómenos estéticos é também exigida ao crítico, sendo essa disposição traduzida quer na sua capacidade de epidermicamente se emocionar perante a obra, de sentir o "arrepio" (positivo ou negativo) que ela lhe poderá causar, quer na sua capacidade de discernir a "fraude" da "honestidade" estética e ética numa dada obra e de intuír uma medida para o seu valor, quer ainda na capacidade de perplexidade e de entusiasmo perante o novo, sensação que traduz a sua atitude de disponibilidade para a inovação, de "despreconceitualização". É ainda pedido ao crítico, não fosse a sua actividade um trabalho discursivo, uma competência linguística e uma disposição para a escrita que seja consubstanciada em valores de clareza e de racionalização discursiva de ideias, para que a sua performance em termos de ponto de vista e de tomada de posição se traduza em efeitos sedutores sobre o leitor. Vejamos então, agora nas palavras dos nossos entrevistados, alguns exemplos bem ilustrativos das competências que acabámos de enunciar como fazendo parte das condições de acesso ao lugar social da crítica: «A leitura de uma obra, o ver um quadro, implica ter visto muitos quadros, implica ter lido muitas obras (experiência prática). É preciso ter visto muitas obras, ter lido muitos livros para conseguir não só nos pronunciarmos como julgarmos, julgar no sentido de atribuir um valor. Aí, a competência tem a ver com qualquer coisa que se acumula, que é da ordem da acumulação, e por outro saber que não é da ordem da acumulação mas que é da ordem da intensidade, mais vertical, que é uma espécie de intui... não é intuição... De facto a capacidade de ler e de relacionar não tem só a ver com saberes anteriormente adquiridos. Uma pessoa pode ter montes de saberes, acumulado montes de coisas, mas jamais conseguirá exercer esse saber de uma maneira produtiva (disposição de sensibilidade). É preciso ter uma capacidade de relacionação, de tornar esse saber produtivo na leitura de uma obra. Não estará a falar aí da tal "sensibilidade" que muitos críticos acham-se detentores? Eu não sei se é sensibilidade a palavra... eu tenho alguma resistência à palavra. Digamos que não se trata só do saber, isto é, eu limitaria as coisas um pouco drástica e redutoramente se dissesse que se tratava só de um saber. Uma obra é uma coisa que nos está constantemente a lançar armadilhas. Imaginemos: nós temos determinado tipo de critério de gosto, a obra pode ter uma capacidade de se situa ali num limiar em que nós somos obrigados a perguntar-nos "gostamos? Não gostamos? Isto é bom? Isto não é bom? Isto é fraudulento? Isto não é fraudulento?". Fraudulento no sentido de que não é 67

exactamente aquilo que parece, desliza facilmente para um limiar que merece já algumas dúvidas e que nos obriga a ter algumas suspeitas. Ora, é precisamente esta capacidade de reconhecer, de se conseguir mover neste terreno um pouco movediço, em que nós somos obrigados a estar sempre a interrogar as nossas próprias suspeitas, daí é que advém provavelmente a capacidade do crítico. E sobretudo a capacidade mesmo de saber ultrapassar as resistências que a obra pode oferecer imediatamente (postura de abertura). Parece-me isso muito importante porque isso acontece com frequência, a obra oferece resistências imediatas. É preciso saber distinguir de que ordem, de que natureza são essas resistências, isto é, são resistências porque ela está abaixo do nosso próprio gosto, do limiar que nós definimos como aquilo que gostamos ou não gostamos? Ou pura e simplesmente porque não reconhecêmos imediatamente aquilo, aquilo ultrapassa a nossa capacidade de entendimento imediato e leva-nos a suspeitar obviamente. E leva-nos a que numa segunda leitura, numa terceira leitura, tenhamos uma ideia clara para nós próprios.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «(...) é preciso, obviamente, saber-se alguma coisa das matérias que se analisam, se observam, sobre as quais se fala e se produz discurso valorativo. Eu acho que, efectivamente, nem todas as pessoas que exercem a crítica teatral, de cinema, de televisão, literária, estão suficientemente apetrechadas segundo estes parâmetros que eu estou aqui a definir. Mas na maioria sim. Agora, no que ao teatro diz respeito, como é considerado que qualquer pessoa pode fazer crítica de teatro porque qualquer pessoa pode ser artista de teatro, porque qualquer pessoa pode ser actor... Portanto, há aqui uma falácia de base que depois condiciona tudo o resto. Eu não partilho dessa falácia. Acho que nem toda a gente pode ser actor, que nem toda a gente pode ser crítico de teatro, como nem toda a gente pode ser escritor, etc. - Falou-me de "saber". Que tipo de competências traduzem esse "saber"? Uma competência: saber escrever, ser capaz, ser competente linguisticamente. Isto que estou a dizer tem mais a ver com a performance do que com a competence. Mas, apesar de tudo, a nossa performance vai depender da nossa competência. Eu creio que é preciso saber escrever para saber traduzir as ideias que se têm sobre o objecto. (...) Depois, ser sensível às coisas, efectivamente, é quase uma competência. O ser sensível a significa estar aberto a. Estar aberto a significa não ser preconceituoso excessivamente. É-se sempre preconceituoso, e tem que se ser para se ter algum gosto, para se defender nas suas afinidades 68

electivas. Não se pode ser é dogmático. (...) ser capaz de receber o objecto, volto ao conselho o Osório Mateus, com alguma inocência. É uma qualidade, não sei se é uma competência, mas sei que é uma qualidade.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso) «Escrever mais ou menos bem para ser percebido. Ter informação histórica, curiosidade pelo que vai sendo a mutação de gostos, de formas, de processos e não sei o quê. E alguma preocupação em fundamentar teoricamente aquilo que corre o risco de ser do domínio do gosto. Ou seja, fazer suportar o discurso do gosto por uma informação teórica e histórica.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso) «Desde saber a história da arte em geral e a história do teatro em especial, a história do teatro universal e a história do teatro português, precisa de ter conhecimentos de carácter histórico sólidos, precisa de ter conhecimentos a nível da estética e da sociologia. (...) Portanto, exige uma vasta gama de conhecimentos a vários níveis e de várias áreas. Por outro lado, tem que ter a qualidade de estar disponível sob ponto de vista mental, moral, ético, ideológico, sob todos os pontos de vista. Estar disponível para aceitar, discutir, criar uma polémica consigo próprio perante aquilo que vê, perante os novos caminhos que o espetáculo aponta, ou os velhos caminhos que trás, ou que segue. O crítico deve estar disponível num caso ou noutro, não deve defender a vanguarda por ser a vanguarda, nem deve defender o tradicional por ser tradicional, deve ser aberto a todas as linguagens possíveis, sem "part-et-prix". Por outro lado, como já disse e insisto, deve saber escrever, deve aperfeiçoar a sua escrita, que é o instrumento que ele tem para exprimir a sua opinião, o seu juízo. (...) Com isso não quero desvalorizar a importância do aspecto "científico" da crítica. Mas quero valorizar o papel da escrita, se quiser da escrita literária, que a crítica também deve ser.» (Carlos Porto, crítico de teatro no Jornal de Letras) «O que eu penso que é realmente fundamental é uma pessoa ter uma bagagem sobre história de arte portuguesa, sobre história de arte internacional, sobre estética, sobre filosofia, sobre sociologia, obviamente. No fundo, ter uma bagagem que lhe permita elaborar um discurso, porque o problema aqui também é um problema de ser capaz de elaborar um discurso. (...) é preciso dominar essa linguagem, tudo isso. Ora, 69

quem não sabe isso, dificilmente consegue expressar aquilo que viu. Pode ler muito bem o quadro, mas depois não consegue transmitir ao público aquilo que leu.» (Cristina Azevedo Tavares, crítica de artes plásticas no Jornal de Letras) «Bem, eu acho que fundamentalmente um crítico tem que ter sensibilidade, tem que ler muito, sem extensas leituras não se consegue ser crítico. (...) E o que é isso de ter sensibilidade? - Não quer dizer que eu seja adepto do intuicionismo, isso era o Gaspar Simões. O Gaspar Simões achava que um indivíduo era bom ou mau por intuição. Estava a ler um livro e depois ele intuia que aquilo era bom. Embora possa também reconhecer que o Gaspar Simões poucas vezes se enganou, apesar dos positivismos todos contra os quais ele combatia, nós hoje chegamos à conclusão que para aí em 90% dos casos o Gaspar Simões acertou por intuição. Mas eu não sou realmente adepto da intuição. Mas tem que ter realmente uma cartola de leituras suficiente para agarrar num livro e perceber que estou em face de um escritor ou que não estou. Se calhar sensibilidade não é a palavra correcta. Mas é um pouco esse "feeling" que vem das muitas experiências de leitura.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras) «Tem que ter cultura e sensibilidade. Sensibilidade eu acho que é sobretudo, no caso da arte, uma capacidade muito grande de empatia, ou seja, ele tem que se envolver muito profundamente com aquele objecto. Isto é um bocado paradoxal, porque ao mesmo tempo que o crítico tem que se envolver muito, ele não pode de maneira nenhuma renunciar à sua capacidade crítica, à sua racionalidade. (...) É muito importante que ele sinta o objecto porque uma das componentes mais importantes da arte é justamente o seu teor afectivo. Portanto, é um factor que o crítico não pode escamotear de maneira nenhuma. Agora, por outro lado, ele tem que preservar a sua racionalidade, quer dizer, como é que essa emoção foi moldada. Porque a arte é sobretudo uma técnica e o crítico é um analista dessa técnica. (...) Um crítico de cinema, para a sua formação, ele precisa não apenas ler sobre a história do cinema, sobre a estética cinematográfica, sobre técnica cinematográfica, como precisa de ver os filmes, obviamente. Assim como um crítico musical não pode ser um crítico se não ouvir as músicas, por mais que ele se informe, leia, fizer pesquisa, etc.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente)

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«Escrever bem é importante, estava-me a esquecer dessa, escrever em bom português, é fundamental e cada vez mais terrível, argumentar bem, ser o mais claro possível, e ser o mais rigoroso possível. (...) Por outro lado, creio que nem toda a gente que fala de cinema sabe o suficiente de cinema, até porque há a tendência para negligenciar o factor cultural e sobrevalorizar o factor de opinião. Ou seja, as opiniões valem pelo que valem e não pela informação cultural, no sentido de informação teórica, de história do cinema. Acho que é fundamental conhecer-se a história do cinema, é fundamental conhecer-se alguns trabalhos teóricos sobre cinema, para se falar consequentemente e argumentar consequentemente sobre cinema. A qualidade da argumentação, assim como a qualidade do filme, depende extraordinariamente disso, a qualidade da argumentação depende muito, muito, muito do grau de cultura cinematográfica de quem argumenta. O grau de cultura cinematográfica inclui ter visto muitos filmes, e ter lido algumas coisas importantes que se escreveram sobre os filmes.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público) «Saber ler e escrever, que é uma coisa básica e que algumas pessoas não sabem. Depois, ter uma coisa que eu não sei definir, que é ter sensibilidade. Há pessoas que escrevem sobre arte sem verem, sem saberem ver, portanto é uma sensibilidade específica, como é específica no caso do cinema, ou da literatura, ou outra. Nas artes plásticas, muito especificamente, é preciso ter atenção à matéria, ao aspecto físico das coisas. (...) Não se pode escrever sobre gravura se não se souber como é que a gravura é feita, sem distinguir a ponta-seca da zinco-gravura, ou qualquer outra coisa. Senão então as pessoas põem-se a falar sobre o tema, sobre o assunto, sobre não-sei-o-quê-enão-sei-que-mais, e não falam do que lá está. A obra de arte tem muito de pensamento, tem muito de conceito, mas depois é também uma coisa física (competência técnica).» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) «Capacidade de análise, conhecimento da língua portuguesa, que para mim é importante para escrever, e sobretudo conhecimento da arte cinematográfica nas suas várias componentes. Tem de conhecer tão a fundo quanto possível o cinema, quer através dos tempos, quer através das suas diferentes matérias, das suas diferentes componentes.» (Francisco Perestrello, crítico de cinema na Capital)

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Ao conjunto de capitais e disposições apresentadas, estes de ordem propriamente cultural, teremos ainda que acrescenter um outro requisito não menos importante que aqueles, do ponto de vista estratégico, como condição de acesso ao espaço da crítica: a posse de um determinado tipo de capital social, no sentido bourdiano do termo - ou seja, como «ensemble des ressources actuelles ou potentielles qui sont liées à la possession d'un reseau durable de relations plus ou moins institucionalisées d'interconnaissance et d'interreconnaissance; ou, en d'autres termes, à l'appartenance à un groupe, comme ensemble d'agents qui ne sont pas seulement dotés de propriétés communes (susceptibles d'être perçues par l'observateur, par les autres ou par euxmêmes) mais sont aussi unis par des liaisons permanentes et utiles.»40 Com efeito, as possibilidades de acesso ao lugar social da crítica vêem-se altamente dependentes e condicionadas pela mobilização, participação e rentabilização de um amplo capital de relações simultaneamente próximas dos mundos da arte e do jornalismo, sociabilidades essas que se foram constituíndo ao longo dos vários percursos de vida nos nossos críticos entrevistados, imprimindo num dado momento um novo sentido a esses percursos, legitimando e traduzindo em efeitos práticos as competências culturais já previamente acumuladas das mais diversas formas (acumulação essa que, maior parte das vezes, não tinha por objectivo a situação que mais tarde se veio a concretizar, ou seja, ocupar o lugar da crítica): «(Aceitar o convite de fazer crítica de teatro no Expresso...) Fazia sentido para mim, era um percurso, era um ponto em que os meus percursos diferentes ganharam um sentido diferente. Foi um momento da vida em que eu senti que as coisas diferentes que eu tinha vindo a fazer ao longo de tanto anos, de repente tinham sido necessárias. Elas não faziam sentido até determinado momento. Eu dizia "andei-me a dispersar pela escola de teatro, pela licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas, por tantas experiências de vida que eu tive" e, de repente, tudo fazia um sentido, como efectivamente se todas as minhas vivências tivessem acontecido para virem a culminar numa actividade que necessita dessas vivências. Humanas, técnicas, profissionais, literárias, escolares, enfim, tudo. Porque eu também fui professora do ensino secundário, antes de ser professora aqui no Conservatório.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso)

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BOURDIEU, "Le Capital Social", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 31, Janeiro de 72

A importância fundamental da participação em determinadas redes de relações simultaneamente próximas do meio artístico e do meio jornalístico na conquista do acesso ao lugar de crítico em determinadas instituições jornalísticas (nomeadamente as que detêm uma maior projecção pública e, consequentemente, uma maior "responsabilidade cultural", por quanto verificámos que alguns críticos, muito poucos, no começo da sua carreira, começaram pela via da auto-proposta, mas aqui em jornais regionais ou pouco prestigiados na área cultural), encontra-se bem patente na quase unanimidade da "entrada por convite" como estratégia de recrutamento accionada pelos vários orgãos de comunicação social em os nossos críticos entrevistados desempenham a sua actividade. «Como é que se processou o seu recrutamento nos vários orgãos de comunicação social em que já trabalhou? Por convite feito por pessoas lá de dentro. (...) Eu tinha estudado Literatura na Faculdade, aí algumas das pessoas com quem eu convivia e que foram meus professores estavam também, alguns deles, ligados à crítica literária em jornais, e convidaram-me se eu queria começar a escrever. Foi assim que eu comecei. (...) O jornal não abre um concurso para decidir quem é que vem fazer esse trabalho. Já me conhecem. E entra-se sempre porque provavelmente é-se amigo, conhece-se alguém lá dentro, é-se convidado. Isto é, os jornais de facto não são abertos a valores novos e à descoberta de valores novos. Nenhum jornal é aberto a essa espécie de utopia que nós poderiamos pensar. Pode acontecer que alguém lá dentro seja aberto à descoberta de valores novos e faça um esforço por isso. Agora o jornal, no seu funcionamento mais geral, jamais é aberto à entrada de valores novos. O que procura é um nome já conhecido, porque o jornal também vende o nome da pessoa que escreve. Nesse caso, eu comecei a colaborar porque o jornal tinha necessidade de mais colaboradores e eu conhecia pessoas lá dentro.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «No Expresso, fui para lá porque me convidaram, porque foram apreciadas coisas que escrevi no Diário de Notícias. Foi aí que comecei a escrever coisas sobre cultura e artes plásticas.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso)

1980, p. 2. 73

«Tenho impressão que quase sempre por convites, porque conhecia alguém que já estava no jornal e estava interessado em ter a minha colaboração. Acho que sim, que foi sempre por isso.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso) «Normalmente foi porque as pessoas que estão à frente desses orgãos de comunicação pediram a alguém, normalmente artistas, para ver se conheciam alguém que estivesse disponível para, e que estivesse interessado em escrever para, ou fazer um programa para. Normalmente foi através de artistas. Foi sempre por convite, nunca fiz concurso nenhum para entrar para qualquer semanário ou o que fosse. Ou eram os redactores-chefes, ou eram os directores, ou coisa assim que pediam aos artistas, a pintores. (...) E é um bocado assim. Evidentemente que é um circuito fechado e que a admissão de outras pessoas é um bocadinho restritiva e cerceadora. Mas é um pouco assim que funciona.» (Cristina Azevedo Tavares, crítica de artes plásticas no Jornal de Letras) «Normalmente foram os amigos. De uma maneira geral, foi por convite. (...) Surgem assim estas possiblidades de participar nas coisas sem ser rigorosamente por um convite formal. No meu caso nem sequer houve convite, houve umas conversas, as pessoas conheciam-se, o José Carlos Vasconcelos também já me conhecia dos tempos do Diário de Lisboa, e portanto não eramos propriamente desconhecidos uns para os outros.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras) «Quando eu cá cheguei, obviamente não conhecia cá ninguém e através de uma rapariga que estava no mesmo hotel do que eu, eu soube que havia sido criado um jornal e eventualmente estavam a precisar de colaboradores. E eu fui me oferecer e acabei por ficar. A partir daí já se estruturam relações no meio, relações de amizade e fui sendo convidado. Fui convidado para o Jornal e depois quando o Independente foi lançado, eu havia chegado a Portugal e alguns amigos meus participaram da fundação do jornal e me convidaram.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente) «Através da relação com pessoas. Conhece-se várias pessoas e as coisas surgem assim.» (João António Dias, crítico de literatura no Independente)

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«Foram duas situações distintas: em todos os jornais em que eu colaborei antes do Independente, a coisa nasceu por proposta directa minha. Isto foi a situação genérica. Depois houve excepções: o Globo, onde eu dirigi o suplemento cultural durante cinco semanas, depois acabou o jornal, e que fui convidado para fazer isso. Depois, no Independente também fui convidado para escrever. (...) No caso do Globo, foi uma coisa acidental. A pessoa que estava a dirigir esse jornal perguntou a uma pessoa que por sua vez me conhecia, se conhecia alguém que pudesse escrever e desenvolver o projecto. Essa pessoa amiga minha recomendou o meu nome. No caso do Independente, foi uma situação similar: foram dois colaboradores do Independente que eu conheci numa viagem episódica, conhecemo-nos aí, démo-nos bem, houve uma relação boa, e a partir de certa altura um deles ventilou no Independente a hipótese de eu escrever um texto. Por isso pediram-me o primeiro texto, depois o segundo, o terceiro, e finalmente entrei num acordo de colaboração permanente com o jornal.» (António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente) «As coisas aconteceram assim por acaso. Eu tirei um curso de Filosofia, estava a dar a dar aulas, estava farto de dar aulas e fui chamado para a Cinemateca. E foi por causa da Cinemateca que comecei a ser crítico. O primeiro sítio onde eu estive foi no Independente. Depois estive no Jornal, porque a editora da Cultura era uma exnamorada minha - porque as coisas funcionam de facto assim, em termos de relações pessoais -, e depois eu estava farto do Jornal, tive um pequeno conflito, e no momento em que estava a ter o conflito, fui convidado para o Público. E agora estou no Público desde Outubro de 92. (...) Foi sempre por convite.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público) «Processou-se como se processa tudo: por amizade, por relações pessoais. Foi por convite. Sempre me convidaram para tudo.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) «Normalmente fui convidado por jornalistas de carreira, por jornalistas profissionais, tipo chefes de redacção, que me conhecem, que conhecem o meu trabalho. Há um dado momento em que o jornal precisa de um crítico de arte que garanta uma certa regularidade de colaboração, o chamado colaborador permanente, e é nessas alturas que se lembram de mim. Nestas circunstâncias já fui convidado para 75

três ou quatro jornais. (...) São pessoas que me conhecem e que acompanham o meu trabalho há muitos anos.» (Eurico Gonçalves, crítico de artes plásticas no Diário de Notícias) «Fui sempre convidado até hoje pelos vários lugares onde trabalhei como crítico, foi sempre por convite, e é claro que se podia aceitava, se não podia não aceitava, ou se me agradava aceitava. Foi sempre convite. Aconteceu assim, nunca precisei de andar a bater à porta, e mesmo aquele período de um mês e tal, dois meses que estive sem fazer crítica, um período curtíssimo num espaço de 35 anos, nunca me passou pela cabeça ir bater à porta. Eu sei que era um momento de acalmia, de reflexão, e realmente apareceu rapidamente o convite do Diário de Notícias.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de Notícias) «Sempre por convite. Perguntam-me se eu estou interessado em escrever e eu escrevo. De vez em quando, alguém conhecido que telefona, que me vê, que pergunta, contacto aqui, contacto acolá, uma carta, qualquer coisa. Nunca por concurso público.» (Francisco Perestrello, crítico de cinema na Capital) «Processa-se pelo contacto com outras pessoas já inseridas no meio, quer dizer, há um trabalho que começa com alguma irregularidade que depois é notado. Foi sempre por convite.» (Carlos Vidal, crítico de artes plásticas na Capital) É o conjunto dos requisitos socio-culturais atrás apresentados que permite, uma vez adquiridos, operacionalizados e demonstrados em provas-testemunho discursivas, aceder e utilizar os recursos do lugar social destinado ao crítico, requisitos esses que, em última análise, não são exigidos nem ao criador dos produtos, nem ao jornalista cultural que os divulga, nem ao leigo que os consome, nem ainda a qualquer outro intermediário cultural responsável pela sua gestão, muito embora o facto destes protagonistas os reunirem na sua pessoa lhes abra francas possibilidades de acesso a tal lugar social, que não exige exclusividade total. Assim sendo, as estratégias de demarcação e de autoprotecção que se jogam entre o espaço da crítica e o seu exterior mais próximo na luta pela sua autonomia relativa, vão ter como referência privilegiada justamente a posse deste tipo de competências específicas.

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No entanto, mesmo na posse de um conjunto de saberes instrumentais específicos, que o ajudaram na luta pela demarcação do seu terreno particular ao longo da sua história interna, a característica fundamental deste espaço social não deixa de ser a sua inevitável dependência em relação aos campos com que se intercruza e que o interseptam, dependência essa sentida e reconhecida no próprio campo como fazendo parte da sua especificidade, tendo sido e continuando a ser, nesta medida, admitida, gerida e combatida a partir do seu interior. Interceptando-se com o campo de criação cultural, do qual depende directamente na medida em que é dele que provém o material de trabalho dos seus protagonistas e, no fundo, a sua razão de existir, o campo da crítica tem vindo, contudo, a autonomizar-se progressivamente em relação àquele: por um lado, num plano propriamente social, como iremos abordar no capítulo III deste trabalho, quer através da distinção de competências, quer com o abandono dos valores da cumplicidade vivencial que mantinham a prática crítica aplicada na defesa quase incondicional de um determinado grupo de artistas com o qual convivia quotidianamente, valores esses que se viram substituídos pelos do distanciamento crítico e seus afins, os quais preconizam a independência total do crítico em relação ao artista ou grupo de artistas que está na origem da obra sobre que se debruça, tomando hoje as cumplicidades que se geram entre críticos e criadores mais uma dimensão intelectual que propriamente vivencial, esta comprometedora do olhar "isento" e independente dos primeiros. Por outro lado, num plano de postura teórica, quando as teorias da recepção vieram destronar os paradigmas de raíz filológica e formalista como referências dominantes no campo, proclamando o receptor como elemento fundamental no processo de significação e valorização da obra, em detrimento do que consideraram ser a Tirania do Autor ou Tirania da Obra subjacente aos paradigmas anteriores, que procuravam, respectivamente, na intenção do autor ou nas características imanentes da obra a sua suposta verdade em termos de sentido e de valor estético, reconhecendo e legitimando a autoridade destas instâncias sobre o trabalho crítico. Deste modo, como verêmos mais adiante, no capítulo IV deste trabalho, especialmente dedicado à explanação do desenvolvimento paradigmático ocorrido no campo da crítica, já não irá ser o código subjacente à acção estética do criador que dita e impera sobre o discurso da crítica, é a própria crítica que define a sua legitimidade como instituição produtora dos códigos legítimos, como lugar privilegiado para a produção de modelos de sentido e de valor estético. 77

Torna-se assim notório como estas novas posturas perante o modo de representar e praticar a crítica, ao pressuporem novas formas de relação desta com o campo da criação artística, assim como novas éticas de condução do olhar sobre a estética, trouxeram ganhos acrescidos em termos da sua autonomia em relação àquele campo concreto, cuidando de garantir a independência e a autoridade da prática crítica face às intenções do criador e às características inerentes ao seu próprio trabalho, ao mesmo tempo que consegue ampliar substancialmente o seu espaço de possibilidades de tomadas de posição em matéria de interpretação e de valoração estética. A sua capacidade em gerir os constrangimentos que lhe eram impostos por via do campo da criação é assim consideravelmente aumentada, tal como o poder de que dispõe na imposição exterior da sua própria doxa, ao impôr-se socialmente como instância legítima para criar os programas de percepção e de avaliação do que é produzido no campo da produção cultural. A asserção da autoridade do receptor no processo de significação e valoração de qualquer obra, em detrimento da intenção do autor e da obra-em-si-mesma, não foi contudo tomada no campo da crítica, como iremos ver mais adiante, sem as devidas precauções que lhe garantissem no espaço da recepção cultural um lugar específico e privilegiado. Reivindicando-se das competências credíveis e apropriadas a uma recepção estética "adequada", armando-se simultaneamente do poder da escrita, o espaço da crítica demarca-se assim do campo da recepção cultural "comum" e fecha-se enquanto corpo social dotado de uma autoridade própria, invocando para os seus agentes o estatuto de experts, de observadores culturalmente privilegiados. O crítico aparece então como "orientador" e "intérprete" junto do consumidor cultural menos informado esteticamente, fazendo muitas vezes associar à sua actividade uma espécie de vocação pedagógica, que vai a par com uma visão da prática crítica como instância de utilidade pública. Se esta visão utilitária da crítica poderia ser tomada, a priori, como signo da sua fraca autonomia, pressupondo-se a existência de uma nivelação de atitudes e discursos entre crítico e consumidor cultural "comum", o facto é que tal não acontece, na medida em que a expressão da sua vocação pedagógica é sempre tentada de cima para baixo. Ou seja, o que se pretende é que o leitor chegue ao crítico e não que o crítico chegue ao leitor. Há, de facto, uma certa acção voluntarista de pedagogia por parte de grande parte dos agentes da crítica que entrevistámos, acção essa que se traduz não apenas na 78

intencionalidade pragmática de "orientar" o consumidor cultural "comum" na selecção que faz de opções estéticas a experimentar, como também no sentido de procurar fazê-lo compreender o produto cultural sob determinado ponto de vista, tentando explicar-lhe o que para ele poderá não ser claro com o intuito de lhe tornar a obra mais acessível e inteligível, de decifrar a rede de metáforas subjacente a qualquer obra (ela própria semanticamente polivamente) de determinada modalidade. Note-se, porém, que esta acção não é assumida pelo crítico de uma forma tutorial e totalitária, já que a sua relação com o produto, tal como a do consumidor "comum", é por ele encarada como uma relação sempre pessoal e subjectiva. Mais do que armar-se do papel de juíz num tribunal sem leis, a expressão pedagógica da sua prática assume-se como um ganho de lucidez e de competência intelectual e estética junto do seu público, na medida em que tenta sempre abrir-lhe novas possibilidades de sentido sobre a obra, proporcionado-lhe, simultaneamente, o enriquecimento da sua capacidade crítica na fruição artística para além do acto de "gostar", através das indicações e instrumentos práticos e teóricos que lhe concede para a apropriação simbólica do objecto com que se defronta. Assume-se também como chamada de atenção sobre a valorização estética da vida quotidiana, no sentido de abrir-lhe o olhar novas áreas e novos factos estéticos. Sempre contra o amorfismo e a passividade contemplativa mas, ao mesmo tempo, sempre com uma atitude um tanto ou quanto etnocêntrica em relação à fruição e ao gosto estético do consumidor "comum". «(uma boa crítica...) Deve mostrar, revelar, a paixão ou o desamor que o crítico sentiu ao ver o espetáculo. Deve revelar, de modo mais ou menos claro, depende do estilo do crítico, a sua particular formação, porque a crítica também ensina, mas não deve ser obviamente didáctica no sentido mais imediatista e elementar.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso) «(...) eu acho que essa é a vocação pedagógica por excelência. Eu não sei se é isso se as pessoas querem dizer, mas eu às vezes oiço ser invocada essa vocação pedagógica da crítica em função da ideia de que a crítica serve para dizer "vá ver este filme porque é muito bom" ou "não vá ver aquele porque é muito mau". Essa ideia de que os críticos são uma espécie de pastores de almas, sendo as almas os espectadores, sinceramente não me interessa muito, por uma razão muito simples: acho que o indivíduo em sociedade deve ser alguém com vontade própria, com opções próprias e 79

que exerce escolhas. A observação menos pertinente que eu já ouvi em relação a coisas que escrevo é de alguém que me diz: "Epá, mas no fim não dizes se devo ir ver ou não!". Quero lá saber! Quero lá saber no sentido em que espero que cada um não se sinta como alguém que deve ser guiado, mas que faça as suas opções. Se calhar estou a simplificar um bocadinho isto, estou a menosprezar o facto da crítica poder entrar como um factor não digo decisivo mas com algum peso nessas decisões. É evidente que sim, não estou a negar isso. Agora, não creio que a função pedagógica seja essa orientação, que aliás como orientação me parece muito limitada. Acho que a função pedagógica tem a ver com a tal dimensão de despertar apetências, despertar gostos, de dar a ver que a relação com o cinema pode ser interessante, ou mesmo empolgante. Acho que essa no fundo é que é a grande pedagogia.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso) «(a actividade crítica...) tem que ser muito pedagógica, e há muito por fazer. (...) eu acho que há um papel que a crítica deve ter, e eu acho que tenho feito alguma coisa para isso e todos nós fazemos, é que continua a haver muito pouca informação. E as pessoas continuam a ligar muito pouco às artes plásticas. (...) Portanto, eu acho que se os críticos puderem de algum modo ajudar a uma certa formação do gosto, que as escolas infelizmente não dão... - como nós sabemos, as áreas humanísticas e artísticas têm cada vez mais vindo a piorar em vez de melhorar no ensino primário e secundário, tanto quanto eu sei. Eu penso que isso é também uma tarefa que uma pessoa que está metida neste meio naturalmente faz. (...) No fundo, é tentar dentro do meu possível, informar as pessoas. Por isso eu muitas vezes não me preocupo muito em dar as informações de vanguarda, os artistas que estão mais na berra ou que são mais de vanguarda, mas tenho mais a preocupação de informar e formar as pessoas para elas depois poderem ver isso. É um bocado esse o meu objectivo. E acho que ainda há muito por fazer nessa área.» (Cristina Azevedo Tavares, crítica de artes plásticas no Jornal de Letras) «(a função da crítica é...) ajudar a descobrir, e de certa forma melhorar e contribuir para que outras pessoas possam pensar também por si e não pelo que é dito, e ter suporte de opinião. É inegável que a crítica pode ter um efeito pedagógico, no sentido em que incentiva as pessoas para um confronto diferente diante de uma obra de arte. À partida sugerem-lhes alguns caminhos e algumas tentativas de resposta que são 80

sugestões pessoais, mas que pretendem ser o mais isentas e correctas possível. Mas em termos finais, apresentam apenas indicadores que pretendem apenas ser tomados como tal.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras) «(as funções da crítica são...) Por um lado é esclarecer. Não é dizer às pessoas, aliás o que eu às vezes faço e não sou só eu, toda a gente... O que interessa é dar instrumentos às pessoas para quando forem ver os espetáculos se aperceberem porque é interessante ou não é interessante, ajudá-las. Há pessoas que não precisam dessa ajuda, mas há outras que vêem menos teatro, e esses instrumentos vão despertar neles o interesse pelas coisas. Eu penso que há o mínimo de pedagogia na actividade crítica, embora, por outro lado, a crítica seja uma actividade, não digo criadora, mas paracriadora pelo menos.» (Carlos Porto, crítico de teatro no Jornal de letras) «...na crítica jornalística é conveniente também um certo didactismo, não esquemático, não redutor, de apresentação, um papel mais informativo, conjugado com o juízo de valor, que é para o leitor saber onde pisa. Ou seja, ser apresentado a alguém que ele nunca teve a oportunidade de conhecer.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente) «Procuro ser sempre directo, didáctico e pedagógico. Até já me disseram isso, há muitas pessoas que julgam que sou professor, porque explico muito e bem as coisas.» (Manuel João Gomes, crítico de teatro no Público) «Quais são as responsabilidades do crítico junto dos leitores? São muito responsabilidades pedagógicas. Responsabilidades de orientação, de criação de gosto, de avaliação das obras, de contextualização das obras do artista. (...) Eu à bocado disse que a crítica devia ser pedagógica. Mas o crítico não tem que ter nenhum respeito desse género pelo leitor. O leitor é que tem que aprender a ler e a utilizar a argumentação do crítico. É uma das coisas mais irritantes que as pessoas dizem aos críticos, é dizerem que não se percebe o que você escreve. Então vão aprender a lêr! Leiam! Façam um curso qualquer! (...) É pedagógica mas não é primária. (...) a crítica deve ser pedagógica mas não tem que descer.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público)

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«Eu acho que a função da crítica tem um nível didáctico-pedagógico, que é partir do senso comum e haver uma elevação, quer dizer, não ficar apenas no plano do senso comum e tentar elevar um pouco mais, desafiar o senso comum a pensar, se possível com novas ideias. E a crítica pode provocar esse desafio, e não se contentar com os chamados lugares comuns, aquelas ideias feitas que já toda a gente sabe. O discurso crítico tem que ser inovador. E como é inovador, joga com novas ideias e leva o leitor, de uma maneira muito didáctico-pedagógica, a perceber aquilo que ele já percebia e a perceber aquilo que ele ainda não percebia e passa a perceber. Portanto, há aqui um progresso, há aqui uma elevação, e eu acho que é um pouco isso.» (Eurico Gonçalves, crítico de artes plásticas no Diário de Notícias) «Tenho completamente essa vocação pedagógica a 100%. Pelo que me dizem... Eu acho que tenho uma vocação pedagógica absolutamente insuportável, isso já vem de família, ou se calhar é natural, nunca se sabe... Eu gosto imenso de explicar as coisas às pessoas, às vezes antes de escrever tendia antes a explicar as coisas às pessoas às mesas dos cafés, o que é um bocado aborrecido. (...) É aquela vontade que a gente tem de mostrar à pessoa que talvez ela não tenha percebido a coisa como deveria ter percebido, a gente não quer que a pessoa caia nesse erro. Há um certo grau de loucura nisto! Há indiscutivelmente um lado pedagógico nisto.» (Patrícia Cabral, crítica de literatura no Diário de Notícias) «O crítico tem que cumprir a sua acção informativa e formativa. (...) Portanto, conseguir que o leitor ou ouvinte da sua crítica fique com uma ideia de quais são os elementos que compôem a obra e qual a qualidade desses elementos, como é que eles se conjugam e como é que eles todos juntos dão lugar a uma obra mais ou menos una, e a que ponto essa obra tem valor e porque é que tem esse valor.» (Francisco Perestrello, crítico de cinema na Capital) «(o crítico deve...) Ter uma acção pedagógica, portanto, ensinar o público também a ser crítico. (...) porque somos criados desde pequenos de uma forma pedagógica e autocrática, "faz isto, não faças aquilo", "gosta disto, não gostes daquilo", que é muito mais fácil e mais cómodo, demora-nos muito menos tempo... "A Lista de Schindler, cinco estrêlas, quatro estrêlas, este vamos, ganhou os óscares". "Peça: olha, fulano tal diz muito, muito bem, aquele também diz, óptimo. Vai imensa 82

gente, teve um lançamento óptimo!", o caso da Maldita Cocaína. De forma que o crítico não deve falar nunca de cátedra. Penso que deve ser um bocado como o professor não o sendo: acção pedagógica, não dar aulas de cátedra, criar uma consciência crítica nas pessoas, eu acho que isso é importante. E uma consciência opinativa, que as pessoas tenham nesta sociedade tão normativa, que as pessoas possam ser críticas, possam julgar, possam ser abertas às novidades, possa chamá-las contra tudo e contra todos a sua atenção para a coisa A, B, C ou D...» (Tito Lívio, crítico de teatro na Capital) A autonomia do espaço da crítica é, todavia, constantemente ameaçada considerando as condições em que é actualmente produzida e divulgada, nomeadamente em Portugal. Integrada sobretudo na estrutura organizativa dos meios de comunicação social de tipo generalista, e na falta de uma imprensa especializada, com critérios de noticiabilidade e de tratamento discursivo diferentes dos operacionalizados nos primeiros, a prática crítica vê-se consideravelmente constrangida à submissão da lógica que neles impera, orientada por valores do mercado de informação e, por consequência, de procura do grande público, valores de algum modo periféricos à doxa tradicional do espaço da crítica e comprometedores da sua inteira independência. Com efeito, enquanto profissional membro da empresa mediática, o crítico não escapa aos mecanismos de controlo organizacional empreendidos por parte desta, pelo que os critérios subjacentes às várias etapas de produção do discurso crítico, que vão desde a selecção dos acontecimentos a criticar, passando pelo formato e tratamento discursivo a dar à matéria, até chegar à gestão dos próprios aspectos gráficos que envolvem o discurso, vêem-se hoje contaminados pelos critérios intrínsecos à rotina produtiva subjacente à lógica de funcionamento dos mass media em geral, pondo em causa o poder de que o espaço específico da crítica dispõe na definição da sua própria doxa, assim como na imposição exterior da sua lógica específica, ou seja, de se impôr socialmente como instância legitima para criar, sancionar e reestabelecer as regras do dizer e do agir próprios à sua respectiva esfera. Senão vejamos.

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1.3. DA AUTONOMIA DO LUGAR DA CRÍTICA NO CAMPO DA IMPRENSA De facto, a prática da crítica, embora detendo sempre um certo grau de autonomia relativa conseguida através do accionamento de determinadas estratégias que não deixaremos de referir mais à frente, tende hoje a aparecer cada vez mais integrada no campo do jornalismo generalista, não deixando, por consequência, de ser condicionada a nível das suas modalidades de exercício pela lógica de funcionamento e pelos critérios, valores e normas que informam os procedimentos operativos e orientam as rotinas produtivas nos diferentes orgãos de comunicação social, situação que leva alguns críticos, nomeadamente aqueles que apostam numa vertente mais analítica no seu discurso, a comizerarem-se com o estado do mercado de emprego da crítica em Portugal e com a impossibilidade demonstrada no nosso país, por via do constante fracasso editorial das várias tentativas feitas nesse sentido, de implementar um mercado de revistas especializadas. «Sente-se de algum modo incomodado pelo facto de exercer a crítica num orgão de comunicação social? Incomodado não, mas sinto que não é o lugar suficiente para eu poder exercer a actividade tal como outras coisas, outros prolongamentos da minha actividade. Teria de ir buscar outros meios que não os jornais.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «Incomodado não me sinto nada. Posso é achar que é globalmente prejudicial que a crítica em Portugal se exerça sempre nesse tipo de orgãos, e se é globalmente, é também para mim. Permite pouco tempo de reflexão, de paragem para pensamento, de reflexão, de estudo, etc.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) «Terá o crítico, para ser popular, de reduzir o seu exercício à publicidade jornalística? O exercício da crítica em Portugal é confinado pelas dimensões do espaço atribuído pelos jornais. Não existem revistas especializadas, nem circuitos de divulgação internacional suficientemente interessados no produto da periferia. Se é verdade que o impacto social do teatro é no nosso país quase nulo, o valor e o prestígio 84

social da crítica de teatro reduz-se às dimensões de um utilitarismo inconsequente.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso41) Esses condicionalismos de que falamos exercem-se, nomeadamente, a nível da selecção das matérias ou acontecimentos culturais a criticar, a qual, nas condições dadas, deve ir de acordo com os critérios de noticiabilidade definidos pelo orgão para o qual trabalha (o que não deixa de afectar a sua autonomia na acção de filtragem de acontecimentos, autores e/ou obras que efectua como destacado gatekeeper que é no campo da arte), a nível do suporte material do seu discurso, referente às limitações que lhe são impostas ao discurso em termos de espaço, a nível do tempo que a rotina mediática lhe disponibiliza para desenvolver a sua argumentação crítica, também ele limitado, a nível do código ou da linguagem utilizada, que se quer num jornal generalista o mais clara e simples possível, e ainda a nível da própria gestão gráfica do destaque que o crítico entenderia dar ao acontecimento que comenta, sobre o qual, sendo ele frequentemente um mero colaborador que entrega no jornal os seus textos, pouca influência terá (a não ser quando, associado ao seu estatuto de crítico, assume posições de poder na hierarquia do contexto profissional-organizativo onde se encontra inserido, como editor ou coordenador de secção, por exemplo, ou quando se encontra a tempo inteiro no jornal com o estatuto de jornalista cultural, estando assim mais próximo dos centros de decisão e de controle dessas questões). São, pelo menos, estes os constrangimentos comuns e tendencialmente mais assinalados pelo conjunto dos nossos entrevistados, por vezes num tom bastante "sofrido", designadamente entre aqueles que reivindicam para a sua prática um estatuto mais analítico e reflexivo que propriamente jornalístico, os quais tendem a valorizar em maior grau o tempo de reflexão e de distância crítica, assim como o espaço para aprofundamento analítico e a sua autonomia na escolha subjectiva dos eventos a criticar: «Quais são os condicionalismos, limitações ou pressões a que, na sua opinião, o crítico está sujeito pelo facto de trabalhar num orgão de comunicação social? Pressão do tempo, um prazo reduzido, do estar em cima das obras, o ser determinado

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Palavras retiradas da sua comunicação no 11º Congresso de Críticos de Teatro, "O Actor de um Discurso «Perverso»: o Crítico de Teatro", in O Teatro e a Interpretação do Real, Actas do 11º Congresso da Associação Internacional de Críticos de Teatro, Lisboa, Edições Colibri, 1992, p. 141. 85

pela actualidade e por aquilo que faz a actualidade. Por isso é que eu à bocado estava a falar dos factos, isto é, há qualquer coisa aqui que é paradoxal: o jornalista em si, toda a sua matéria é a actualidade e só precisa de seleccionar o que é mais interessante para o público, se este aspecto da actualidade se o outro. No caso do crítico ele é, por um lado, determinado pela actualidade e toda a sua actividade tem a ver com actualidade mas, por outro lado, toda a natureza do seu trabalho deve levá-lo a ter um recuo em relação à actualidade. Porque a actualidade produz, obviamente, uma espécie de cegueira, a cegueira do novo, a perca de critérios quando começamos a estar sempre, sempre, sempre em cima da actualidade e não lhe tomamos um certo recuo. É uma questão de tempo que limita evidentemente as coisas, e de espaço. Todos os jornais são, por definição, lugares de espaço reduzido. Portanto, temos também limitações de espaço. E há outras limitações também, que é a própria actividade do crítico entrar em conflito com o acontecimento encarado do ponto de vista jornalístico. Isto é, enquanto crítico eu posso dizer que não me interessa um livro do José Saramago, só para dar um exemplo, e enquanto jornalista eu vejo-me na situação de ser obrigado a encarar aquilo como um acontecimento literário, e enquanto acontecimento vai determinar imediatamente a minha reacção. Enquanto crítico vou ter de escrever sobre aquilo, ou fazer uma entrevista, ou qualquer coisa do género. E há um critério que é meramente jornalístico que se está a intrometer abusivamente num outro campo, regido por outros critérios, que são os meus critérios enquanto crítico. Por isso é preciso arranjar um compromisso mais ou menos astucioso entre estas duas coisas, e ter a consciência de quais são as regras do jogo.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «Coitado do crítico... O crítico para o jornal em que trabalha só tem responsabilidades. Só tem! Tem a responsabilidade de entregar os artigos segundo as dimensões propostas, a responsabilidade de entregar os artigos dentro das datas e das horas propostas, a responsabilidade de manter a qualidade - se é isso que é suposto ter - que o jornal para que escreve exige, se é que exige, quando exige. Só tem responsabilidades. E as responsabilidades, dir-lhe-ia, são unilaterais. Dir-se-ia que o crítico é que tem as responsabilidades todas e que efectivamente tem que obedecer aos constrangimentos do jornal. Todos e quaisquer uns! Tentando, apesar de tudo, não perder completamente a sua dignidade. (...) E as pressões do próprio jornal não são claras. Podem ser implícitas, podem ser ínvias, podem ser indirectas, e quero crêr que 86

são as pressões mais terríveis. Podem-se traduzir, por exemplo, em restrições de espaço, podem-se traduzir em inviabilizações de trabalhos que a pessoa gostaria de fazer, podem-se traduzir e traduzem-se muitas vezes na menorização da própria arte em que o crítico trabalha, e isso não depende do crítico.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso) «Outro condicionalismo tem a ver com a necessidade de gestão do espaço. Se calhar, às vezes quer a secção de cinema, quer outras secções do jornal, gostariam de ter mais espaço para tratar determinados acontecimentos. Mas aí joga uma regra universal, não apenas portuguesa mas universal no jornalismo: muitas vezes é preciso saber adequar o projecto que se tem ao próprio espaço disponível. E para que não restem equívocos, isto não tem nada a ver com censura interna, tem a ver com factores muito realistas da vida dos jornais, isto é, por exemplo, um jornal tem um suplemento como, por exemplo, o Cartaz do Expresso ou a Revista; o número de páginas desse suplemento não é calculado porque o crítico de cinema não sei quantos diz "Epá, esta semana preciso de dez páginas para fazer um dossier sobre aquele artigo, portanto os outros que se amanhem, vejam lá!". E se houver um dos livros que precisa de dez páginas também, e de artes plásticas? Não, o número de páginas existem nos jornais em função de cálculos que decorrem da existência de uma determinada percentagem de publicidade. Isto é uma prática normal em todos os jornais. (...) Eu pessoalmente devo dizer que nunca senti isso como uma limitação, e desde que estejam salvaguardadas as preocupações de fazer a cobertura daquilo que interessa cobrir, não me custa nada, como se diz na gíria, "escrever a metro", sobretudo se esse metro, essa medida a que chegámos, foi decidido de forma sensata em função de todos esses factores que entram em jogo.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso) «É mais difícil, por razões óbvias, fazer o ideal de crítica em termos das publicações diárias ou semanais, até porque, a meu ver, para se estar preparado para fazer a melhor crítica sobre um filme, não é certamente por se ver o filme uma vez, pois a pessoa pode estar mais susceptível, ou pode no fundo ter uma avaliação do filme que não é necessariamente a mesma. Não é raro que as pessoas mudem de opinião vendo o filme mais do que uma vez ou pensando tempos depois. É todo esse espaço de tempo que deveria ser prévio até se escrever uma crítica. (...) Eu acho que tendo o tempo suficiente para uma pessoa ter uma ideia perfeitamente realizada o mais possível sobre 87

o que é que é aquele filme, só então estamos preparados para emitir uma opinião ou um parecer, uma análise muito mais sustentada do que muitas vezes acontece. E não é raro dizerem-se incorrecções que são fruto dessa falta de tempo, em abordagens que se vê que podiam ser mais profundas que o simples comentário.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras) «Quer dizer, eu de uma maneira geral, obedecia aos critérios editoriais, conheço a linha do jornal, a orientação do jornal, e procuro também não fugir desse tipo de coisas. Mas quer no JL, quer no Diário Popular, tive sempre a maior liberdade de fazer o que me apeteceu.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras) «Exige aquelas coisa mesmo jornalísticas que é, eu como coordenador da secção de cinema tenho que levar isso muito em consideração, a actualidade. Ou seja, nós temos sempre um destaque que é o filme mais importante da semana, que é uma crítica de uma página, e sempre que possível fazemos coincidir a publicação desse texto com a estreia do filme. O critério de actualidade é muito importante no jornalismo por razões óbvias. E estar a par do que vai sendo feito lá fora. (...) Quer dizer, há certas restrições, como aquela que eu já apontei de não poder ver o filme mais de uma vez, e eventualmente, se eu fosse escrever uma crítica num género de publicação diferente, por exemplo numa revista como a Colóquio Letras, talvez não tivesse tanta a preocupação como eu tenho de ser acessível. Se bem que eu ache que isso já faz parte do meu estilo também, talvez acabá-se por escrever da mesma maneira, as talvez fosse um pouco mais pedante, só isso. Eu acho que a restrições são só essas. Você tem que se sujeitar à instantaneidade, e muitas vezes não se tem muito tempo para escrever. Não se trata só de não poder ver o filme só uma vez, trata-se também de ter pouco tempo para reflectir, para amadurecer a sua opinião sobre o filme. (...) É a limitação do tempo, basicamente, e uma certa linguagem que tem que ser levada em conta, por mais capaz que a pessoa seja de ter um tipo de escrita, evidentemente que nós estamos a escrever para um veículo que é para ser lido por variadas pessoas.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente) «O problema do jornal é não ter espaço. A minha adaptação, normalmente, é cortar adjectivos, advérbios, o "e", coisas assim. O texto não perde nada do que tem e do que quero que fique. Só corto o que é inútil. Não concebo o mínimo de censura ou de 88

indicação. Não há nem nunca houve. (...) A crítica diária é completamente diferente da crítica semanal, nesta eu juntava mais de um espectáculo, embora eu tenha conseguido em certos números fazer o mesmo que hoje faço no Público. Por exemplo: vou ver um espectáculo ao domingo, escrevo o texto na segunda de manhã e o texto sai na terça.» (Manuel João Gomes, crítico de teatro no Público) «A pressa é que é terrível. A pressa leva, por vezes, as pessoas a verem metade do filme e deduzir o resto, verem o filme inteiro e ter de escrever logo a seguir e não se informarem o suficiente, não estudarem o suficiente, não trabalharem o suficiente o seu ponto de vista, não reflectirem, não amadurecerem suficientemente sobre os filmes, e às vezes serem mais opinativos do que... A via da doxa e a via do logos, de ir mais para a doxa do que para a do logos. Isso é o maior perigo. (...) Para já, características técnicas: não exceder o número de caracteres que o editor nos pediu. É muito verdade, é uma guerra constante. (...) Tentar argumentar em poucas linhas - porque são sempre poucas linhas, são sempre de menos, o editor acha sempre que está a dar a mais, nós achamos que são sempre de menos - é extremamente confuso. (...) É muito balizada a escrita, tem muitos obstáculos, muitas objecções, sobretudo técnicas, o tipo de linguagem que se usa, a quantidade de caracteres que tem que se usar porque a página vai fechar, os prazos de entrega. (...) Nunca foi um problema de, de algum modo, me terem cerceado a escrita ou tentado condicionar. (...) (mas) no fundo, todos os jornais têm uma personalidade própria, e de certa maneira nós adaptamos a nossa escrita ao jornal.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público) «O tempo, basicamente. Aqui é o tempo. É evidente que eu poderia fazer trabalhos muito melhores se tivesse tempo. Não sei se seriam muito melhores, mas provavelmente muito mais articulados se tivesse mais tempo para os fazer. Aliás, podemos ter essa noção se escrevermos um texto duas vezes. O segundo sai sempre mais bem escrito. As ideias podem lá estar logo à primeira, mas a formação é melhor. Aqui estamos a trabalhar com prazos muito apertados. Às vezes eu gostava de trabalhar mais certas coisas, às vezes acabo de fazer um texto e acho que podia ter dito mais coisas e que não tive tempo para...» (Tereza Coelho, crítica de literatura no Público)

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«Eu tenho que cumprir datas. (...) Há sempre a da falta de espaço, passa pelos economicismos também, e uma crítica não dá dinheiro ao jornal, mas um grande anúncio pode ocupar quase uma página; é preferível para o jornal. Quer dizer que nós estamos a passar uma fase em que o económico se sobrepõe muito ao cultural. (...) É claro que, cá está, pelo tipo de jornal que é (diário), é uma crítica mais impressionista do que uma crítica elaborada de outra maneira, que seria talvez um pouco diferente para os semanários ou para uma revista literária, em que já pode ser de outro modo. Eu procuro equilibrar os dois aspectos. Não quero ser o campeão pequeno de uma absoluta simplicidade. É preciso também ir levantando questões e problemas, alguns teóricos, e estar atento a eles e chamar a atenção, despertar as pessoas para eles, mas a responsabilidade é de estar no jornal de uma maneira muito concreta em relação à própria realidade do próprio jornal.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de Notícias» «Noutros tempos, já houve vários condicionalismos e pressões de vários níveis, a níveis que podemos considerar ideológicos (refere-se às experiências que teve no Público e no Independente). Actualmente poderá haver a outros mais formais, a nível de espaço, não vou fazer um ensaio para quatro páginas por exemplo. E depois terá de haver um acordo prévio de critérios. Se eu me proponho abordar questões que têm a ver com arte actual, terei que seguir esses critérios, terei de cumprir esses critérios que eu próprio prometi ao orgão em causa. (...) Cada jornal tem aquilo a que se pode chamar um livro de estilo. No livro de estilo, suponhamos do Público, não caberiam textos de desenvolvimento acima dos, no máximo dos máximos, 7000 caracteres. Eu na Capital posso escrever textos de 15 000 caracteres. Esta matemática não tem a ver com a qualidade, a pertinência e a legitimação dos textos. Mas pode ser necessário um trabalho de desenvolvimento tal que o livro de estilo do jornal X não permite. E isso aí é um bloqueio para a actividade crítica, faz com que o crítico tenha de cortar, cortar, cortar, cortar, até que o texto fique completamente descaracterizado. A própria estrutura das recensões normais em cada jornal, que são constituídas por quatro, cinco, um por vezes, parágrafos, leva a um determinado tipo de escrita, quer dizer, a interferência não está tanto na extensão, está também no tipo linguagem que cada jornal quer ter como característica.» (Carlos Vidal, crítico de artes plástica na Capital)

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No que respeita à gestão dos aspectos gráficos que acompanham o texto crítico, temos duas situações diferenciadas, como já tivemos a oportunidade de assinalar: uma, em que o crítico acumula essa sua função a uma outra hierarquicamente responsável dentro do jornal ou, pelo menos, é seu membro efectivo e por isso participativo na sua concepção, o que lhe confere algum poder de decisão neste aspecto; outra, que é a mais frequente, em que o crítico é um mero colaborador externo do jornal, não tendo, por isso, nenhum poder de intervenção nesse âmbito: «O jornalista, o crítico que está lá dentro, como eu, é alguém que pode ter uma intervenção que implica a própria gestão da imagem, da maneira como aquilo vai chegar ao público. E como eu coordeno a secção de cinema do Expresso, e como sou um minhocas com as fotografias, com as imagens e com os arranjos das coisas, procuro o mais possível não apenas coordenar no sentido de garantir a produção de determinados textos, mas coordenar no sentido de fazer com que aquilo chegue ao público com um arranjo visual e gráfico que reflicta também as próprias orientações jornalísticas que prevaleceram. Isto é, se há determinado filme que merece uma caixa deste tamanho e se há outro que merece uma caixa do dobro com uma entrevista, é evidente que isso tem que se reflectir na própria maneira de gerir o espaço dado a cada um desses filmes. Ou se há um comentário a propósito de uma tendência, de um filme ou de um conjunto de filmes, é uma das dimensões interessantíssimas do jornalismo, é perceber que a escrita propriamente dita não esgota, longe disso, a relação com o leitor, e que há outros factores que é preciso ter em conta para que essa relação seja interessante, seja extenuante.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso) «Se se põe, por exemplo, um espetáculo em primeira página, não é o crítico que decide. E quando o crítico considera um espetáculo magnífico, um espetáculo apesar de tudo modesto mas que é fantástico, não vai para a primeira página mesmo que o crítico quisesse. Mas outro espetáculo, até pouco interessante, considerado pouco importante para o crítico, pode ir para primeira página, até com fotografia. Isso são coisas tremendas, porque teve leitura e, no entanto, o crítico não teve qualquer papel na construção dessa leitura. (...) o jornal é que vai muitas vezes fazer o título, que nem sempre é o título que nós damos às peças. Fazer reduzir, cortanto o texto. Colocando-o numa determinada página e não noutra. Dando-lhe destaque com ou sem fotografia. O jornal é que cria isso, não o crítico. E como é que normalmente reage a essas 91

interferências? Comecei por chorar violentamente, passei a gritar no jornal, e finalmente passei a querer defender-me de sofrer. Tenho uma crise de fígado, fumo mais nesse dia e depois esqueço-me, senão não conseguiria na semana seguinte escrever o texto e entrar no jornal.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso) Nesta perspectiva, podemos aperceber-nos que, sendo hoje o crítico um importante agente massmediático, integrado num contexto profissional-organizativo específico que é o jornal42, a sua cultura profissional (aqui definida como conjunto de vectores e convenções éticas e estéticas de referência, de retóricas e de códigos utilizados, de tácticas e atitudes, de valores e de modelos de comportamento relativos ao modo de exercer a sua prática, assim como à sua forma de abordar os temas culturais e artísticos) passa a estar sujeita e a integrar (com um maior ou menor grau de resistência) todo um conjunto de pressupostos decorrentes das regras subjacentes à lógica de funcionamento desse mesmo contexto, pressupostos esses associados a critérios específicos de selecção, elaboração e de apresentação pública das matérias-primas que aborda, os quais poderão mesmo entrar em contradição ou em conflito com os critérios por ele partilhados (o que nos permite compreender a "incomodidade" que alguns sentem e demonstram em trabalhar em orgãos deste tipo). Com efeito, e no que respeita ao primeiro momento-charneira de produção do discurso crítico, ou seja, a fase de selecção das matérias e/ou eventos passíveis de serem debatidos criticamente, outrora, no tempo em que a crítica era sobretudo praticada diletantemente entre os muros da Academia, os critérios operacionalizados pelo crítico eram sobretudo definidos segundo o princípio do prazer, isto é, a escolha de determinado evento, obra ou conjunto de obras a criticar era efectuada na medida da sua sedução ou atracção sobre o crítico, instigando-o à resposta escrita, normalmente em tom de elogio ou, quando estudioso, num tom supostamente inóquo, perante os estímulos que lhe suscitava, numa urgência de comunicação e de partilha com os outros da experiência estética sentida. Em suma, o crítico acabava por se ocupar apenas das obras que, por princípio, encarnavam o seu próprio ideal de obra-prima, condenando as restantes ao sobranceiro anátema do silêncio: escrevia prazerosamente sobre o que, por

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Integração essa tanto maior quanto o facto de hoje em dia o crítico acumular muitas vezes essa sua função à de jornalista cultural, deixando deste modo o estatuto de colaborador externo e entrando nos quadros efectivos dos jornais, embora tendendo a assumir quase sempre as respectivas distinções entre as duas práticas e os respectivos discursos que delas decorrem. 92

sua vez, lhe desse prazer aos sentidos, ou seja, que fizesse parte das suas afinidades electivas. Contudo, desde que a prática crítica deixou de estar vinculada aos muros da Academia e passou a integrar-se activamente nos meios de comunicação social, a postura diletante da "crítica por prazer" foi-se diluíndo, e ao princípio do prazer passou a sobrepôr-se o princípio do dever, consubstanciado na pressão junto do crítico deste falar também sobre aquilo de que não gosta, pois os critérios jornalísticos assim o exigem quando o acontecimento em causa justifica o acompanhamento mediático. Assim sendo, os critérios pelos quais a prática crítica, enquanto prática também ela jornalística, se vê actualmente orientada, sendo invocada a operacionalizar durante o processo de selecção de obras e/ou acontecimentos artísticos a destacar e a opinar publicamente, traduzem os denominados critérios de relevância que definem a noticiabilidade de qualquer acontecimento ou facto, ou seja, a sua "aptidão" ou potencialidade para ser constituída como matéria de interesse público e, deste modo, para ser tratada massmediaticamente (seja sob a forma de notícia, de reportagem, de crítica ou de qualquer outro género jornalístico).43 É através deste conjunto de critérios, os quais, no fundo, vão corresponder ao conjunto de requisitos exigidos dos acontecimentos para adquirirem uma existência pública, que os membros dos diversos orgãos de informação e divulgação enfrentam quotidianamente a tarefa de escolher e excluir, de entre um número imprevisível, indefinido e infinito de factos que acontecem no mundo (nomeadamente de factos que acontecem no universo das artes e letras), uma quantidade finita e tendencialmente estável de matérias a abordar jornalisticamente, critérios esses subjectivamente definidos e institucionalizados pelo próprio corpo jornalístico, e objectivamente necessários pelas exigências que se impôem às suas rotinas produtivas (eficiência e rapidez), encontrando-se assim profundamente enraizados na sua cultura profissional e no processo de produção de informação. É neste contexto que vêmos o crítico, ao pôr o seu trabalho ao serviço dos media, também ele sujeito ao cumprimento de uma agenda que lhe é proposta e dos critérios jornalísticos que presidem à sua construção, isto é, ao critério de actualidade, mesmo que, por vezes, essa mesma "actualidade" não faça parte das suas afinidades electivas, critério esse que aparece entrecruzado com uma série de outros critérios de

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WOLF, Teorias da Comunicação, Lisboa, Presença, 1992, p. 167. 93

relevância da noticiabilidade jornalística mais ou menos específicos ao jornal em que trabalha e que também influem a sua escolha, os quais, como poderemos vêr nos depoimentos que se seguem, derivam de um conjunto de pressupostos partilhados pelos seus agentes relativos a várias dimensões do mundo das artes: a) às características substantivas das matérias-primas noticiáveis, ou seja, à sua "importância" (definida pelo carácter institucionalizado ou posição de destaque e prestígio público dos indivíduos e das instituições envolvidas no acontecimento, pelo impacto que este possa causar sobre o contexto em que se insere, ou ainda pela sua significância quanto à evolução futura desse mesmo contexto), b) ao seu "interesse" público (do ponto de vista da sua capacidade de captação da curiosidade dos seus leitores, como, por exemplo, o insólito, seguindo o pressuposto segundo o qual são noticiáveis, em primeiro lugar, os acontecimentos que constituem ou representam uma infracção, um desvio, uma ruptura na rotina diária, ou ainda o peso no mercado cultural da obra ou autor, peso esse muitas vezes definido através das próprias campanhas publicitárias); c) ao público, ou seja, à imagem que o interlocutor detem em relação às necessidades, exigências e gostos dos seus destinatários; d) e, finalmente, à disponibilidade e acessibilidade do produto a críticar. «Quais os critérios que normalmente utiliza da selecção de acontecimentos ou objectos culturais a criticar? Não sou eu que utilizo. No fundo, eu fui treinada pelo jornal para o critério de actualidade. Ou seja, há um critério de actualidade, assim como há um critério de instituição. Por exemplo, não vou ver todos os espetáculos de amadores. Depois, posso ir ver alguns espetáculos de amadores, que eu por intuição ou por conhecimento prévio saiba que são interessantes para o percurso do actor A ou B, do encenador A ou B. Sei lá, porque me falam que há uma criatura a descobrir engraçada, ou um texto, ou uma proposta engraçada... "o que é que é isto?", por curiosidade vou.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso) «Pura e simplesmente o facto de acontecerem, e o reconhecimento de que existem nesta coisa circuitos de certo modo institucionalizados. Quer dizer, não é a mesma coisa expôr numa galeria de arte ou nas paredes de um bar e, portanto, como não é humanamente possível ir a tudo e não há espaço nos jornais para tudo, há critérios de selecção que têm a ver com a importância institucional de alguns circuitos de divulgação. Uma vez que o jornal é nacional e que é o jornal mais importante, 94

também se escreve, em princípio, sobre as instituições e as galerias mais importantes, aquelas que pela sua actividade regular construiram um marco de solidez de actividade. Embora também se tenha que ter em atenção a possibilidade de emergirem casos interessantes em lugares desconhecidos, na medida do possível.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso) «É quase sempre o critério de actualidade, pela simples razão de que um jornal como o Expresso existe antes do mais como um orgão que emana da própria actualidade. Isso sem qualquer dúvida. Depois, digamos que há a actualidade e a qualidade, quer dizer, há actualidades, há coisas que podem ser tornadas actualidade pelo mercado, por exemplo, porque há um filme que tem uma campanha gigantesca. O último filme do Steven Seagal teve uma campanha gigantesca, incluindo televisão, mas não é a nossa actualidade. A Lista de Schindler teve uma campanha gigantesca: é a nossa actualidade, tivesse ou não campanha. Isto para para explicar-lhe que há por um lado uma lógica de ir em paralelo ao mercado, mas não há uma lógica de colagem ao mercado. Não nos choca nada tratar com um grande desenvolvimento uma coisa que o mercado promove com grande aparato, desde que isso, por razões que tenham a ver com as nossas opções críticas, tenha a ver também com a nossa actualidade.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso) «Aquilo que pode acontecer, como eu já lhe disse, é pelo facto de estar ligada a um orgão de comunicação ter forçosamente, por razões imperiosas de ordem económicas, política ou ideológica, desse orgão estar fundamentado nalguma área, nós termos obrigatoriamente de falar daquele artista. E isso eu acho muito chato. (...) E eu realmente estou um pouco circunscrita a Lisboa, porque no Porto há sempre críticos de arte que fazem as crónicas, e eu faço a zona de Lisboa e limítrofe. O que eu gostaria de fazer era realmente aquilo que eu considero que tem mais importância, que é inovador, ou que é um artista que não expõe há muito tempo, ou que é uma grande retrospectiva, ou que é um artista estrangeiro que vem a Portugal agora, ou exposições colectivas que marcam um determinado evento, esse tipo de coisas. Muitas vezes não posso fazer isso por uma questão puramente logística. Porque não tenho tempo de ir ver a exposição, porque não fica em Lisboa, fica não sei onde e eu já não tenho tempo de ir, etc. Procuro depois ir cobrir. Mas de um modo geral, a minha perspectiva é essa. Também às vezes procuro sítios mais próximos de onde eu me movimento, por uma questão de 95

não perder muito tempo, pois como sabe andar aqui em Lisboa é um cataclismo absoluto. (...) até por uma situação de geração, de amizades, de grupos, as pessoas estão mais próximas deste, é mais fácil falar. Eu digo que também me acontece isso a mim. E como nós temos um ritmo de trabalho muito intenso, às vezes torna-se mais fácil falar daquilo que conhecemos, do que agora ir falar de um que não temos tempo, porque o artigo tem que entrar na quinta-feira, porque a gráfica fecha na sexta. Portanto, há essas pressões também, que muitas vezes as pessoas não sabem e quem faz crítica de arte passa muito por isso.» (Cristina Azevedo Tavares, crítica de artes plásticas no Jornal de Letras) «Há determinados filmes que quando chegam cá, nós já temos informação sobre eles, e a partir daí nós fazemos uma hierarquia consoante, e nós críticos nos penitenciamos por isso, o marketing muito intenso. Mas muitas vezes nós nos demarcamos disso e vamos para outros filmes, que receberam determinados prémios, ou de realizadores que já são importantes na história do cinema, têm uma obra expressiva. Ou então filmes, simplesmente isso é pouco frequente, que são primeiras obras mas que levantaram tanta celeuma ou tiveram críticas tão favoráveis que há uma expectativa muito grande. (...) há um critério jornalístico de acompanhar as novidades, a actualidade dos filmes, as estreias, os leitores se interessam por isso. Aparece um filme e o leitor quer saber a sua opinião.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente) «Escolhem-me. E o critério é só um, são os filmes que estreiam. É sempre a actualidade. (...) É assim: o jornal tem a secretária de redacção que faz a recolha das estreias. Em princípio, esses filmes já nos foram mostrados. Os filmes que entram, os filmes que vão ter o destaque nesse fim de semana é entre os filmes que estreiam. Nos filmes que estreiam, destaca-se aquele que, por uma razão ou outra, é consideradado mais importante, ou por ser um cineasta que se considera importante, ou por ser um filme mais importante em termos de público, ou seja, puxa-se essas coisas segundo um critério de importância que vai variando. Ou por ser um filme português, apologia-se bastante o facto de ser um filme português, nem que seja para dizer mal mas puxa-se. A estreia de um filme português é um acontecimento. Tem um bocado a ver com o critério de acontecimentos (insólitos). Estrear um filme de um iraniano é um acontecimento. Eu por acaso gosto, mas mesmo que não gostasse, reconhecia que é um acontecimento, é 96

considerado um dos grandes cineastas do mundo. Mesmo que não gostasse, que remédio tinha eu de se não suspender o meu gosto pessoal e achar que havia critérios objectivos para o puxar. A estreia do Jurassic Park obviamente que tem que ser um acontecimento. A estreia de um filme português também. Normalmente é a ideia de acontecimento quase jornalístico que está por detrás disto.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público) «É o critério da importância, se bem que essa importância possa não ser a minha. Ou seja, nas notas do Fim-de-Semana é um acontecimento com importância que tem a ver com a importância real, absoluta do objecto, ou a importância relativa do objecto. Quer dizer, importâncias parcelares. É o local onde isso se passa, é o artista. Absoluta será a exposição em si, a obra. Depois, teremos outros factores que serão o artista, o local, o periodo, a conjuntura em que ela acontece... Ou seja, uma exposição muito má de um artista muito importante, uma exposição muito má num sítio muito bom, tudo isso acho que dá dados, motivações para que se escreva. Nesse caso, para avisar o leitor, ou... Para dizer assim: "Epá, o Centro Cultural de Belém vai fazer uma exposição da Maluda?!". Lá vou eu voltar a dizer mal da Maluda!... "Como é que é possível isso? Um sítio tão importante vai apresentar...". E então, na minha crítica, o objectivo será esse. Ou então "Um artista tão importante, ou historicamente tão relevante como o Sá Nogueira faz uma exposição tão fraquita?". (...) É mais o acontecimento, a capacidade de mediatização do acontecimento. Ou a repercurssão popular que é previsível que ele venha a ter ou que tenha. É fácil captar o leitor fazendo um artigo sobre a exposição do Egipto, das antiguidades egípcias. E é um acontecimento cientificamente muito importante. Sobre Angola... Quando diz que o jornal interfere nas escolhas dos factos culturais, como é que reage a essa interferência? Reajo mal porque é uma grande chatice! Não, às vezes sou eu próprio que me adianto sobre essa interferência. Na maior parte dos casos sou eu. (...) É a tal missão que é preciso cumprir. A parte negativa dessa missão, ou da missão de ser jornalista, é a pessoa ter de cumprir um programa que é um programa que interessa ao leitor, e não o programa que interessa ao escritor. Ou seja, eu obrigatoriamente tenho que escrever um texto sobre a exposição do Neo-Manuelino que está no Palácio da Ajuda, e não me interessa nada escrever sobre o assunto. (...) É isso que é para mim aborrecido, é ter que escrever sobre coisas que eu à partida não estava vocacionado, ter que ir ver uma exposição horrível e ter a seguir que ir escrever sobre ela, dizer mal. 97

Só por que não se pode deixar de falar da exposição. É essa parte informativa.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) Nestas circunstâncias, podemos verificar como a acção do crítico enquanto mecanismo de gatekeeping, ou seja, como instância de selecção fundamental no jogo de acesso/exclusão ao campo artístico, jogo esse em que se joga a própria noção social de arte, não depende apenas da sua subjectividade e das suas afinidades electivas, ou seja, não deverá ser entendido como resultado de uma mera preferência individual, na medida em que aparece perturbada pela lógica do próprio contexto profissionalorganizativo em que se insere, que parece incidir eficazmente sobre as suas "escolhas". Todavia, o processo de produção da crítica (e da informação em geral) não é apenas orientado em função dos critérios de noticiabilidade nele operacionalizados, através dos quais o orgão informativo controla e gere a quantidade e o tipo de acontecimentos apssíveis de serem noticiados, mas também em função dos designados valores-notícia vigentes em determinado contexto histórico-social. Estes correspondem também a critérios de relevância operacionalizados no decorrer do processo de produção jornalística, distinguido-se dos critérios de noticiabilidade pelo facto de actuarem não sobre a fase de recolha e selecção de acontecimentos "notáveis" e, como tal, noticiáveis, mas sobre a fase de preparação e apresentação pública desses mesmos acontecimentos, funcionando como directrizes na selecção dos seus elementos constitutivos a serem prioritariamente incluídos, realçados e omitidos (conteúdo), assim como na forma como devem ser apresentados: tal como referem Golding e Elliott, «os valores-notícia são, portanto, regras práticas que abrangem um corpus de conhecimentos profissionais que, implicitamente, e, muitas vezes, explicitamente, explicam e guiam os procedimentos operativos redactoriais. (...) constituem referências, claras e disponíveis, (...) que podem ser utilizadas para facilitar a complexa e rápida elaboração dos noticiários.»44 Nesta fase, porém, o crítico detém uma "margem de manobra", quer dizer, de autonomia, substancialmente superior à que detinha na fase de selecção, nomeadamente em relação à operacionalização dos critérios jornalísticos. Sendo pretendido do seu discurso um comentário subjectivo, judicativo e reflexivo, e não uma notícia - esta sujeita às exigências produtivas de objectividade/neutralidade jornalística e de descrição

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Cit. in WOLF, op. cit., p. 174. 98

que se pretende factual, para a qual existe regras de construção e elementos discursivos de inclusão obrigatória -, o estatuto de crítico concede-lhe aqui uma liberdade de expressão e uma autonomia nas tomadas de posição pessoais que normalmente não é conferida ao estatuto de jornalista. Apesar de tudo, o lugar do crítico no jornalismo prevê um direito à singularidade do agente enunciativo, ao seu narcisismo discursivo e à sua ideossincrasia opinativa que não é vulgarmente concedido ao lugar do jornalista, direito esse autorizado não apenas pelo próprio estatuto de crítico, mas também pela protecção e validação conferida pela assinatura que acompanha esses textos. É nesta óptica que os nossos entrevistados são unânimes em afirmar que o jornal não interfere na fase de elaboração do discurso crítico ou, quando o faz, os condicionalismos decorrentes da sua lógica de funcionamento apenas atingem as componentes de informação e de enquandramento/contextualização (normalmente no sentido de as incluír, principalmente junto dos críticos que mais as menosprezam na sua prática discursiva), assim como a linguagem aplicada, no sentido de os lembrar que estão a escrever para um orgão que pretende atingir um público mais ou menos alargado. Ou seja, os constrangimentos que nesta fase da produção da crítica poderão advir do facto desta aparecer integrada na estrutura organizativa dos media, verificam-se fundamentalmente mais a nível da sua forma do que propriamente a nível do seu conteúdo judicativo e reflexivo. E nem os críticos, pelo menos os que entrevistámos, admitiriam outra situação. Esse tipo de padrão de controle poderá ocorrer quer de um modo dialogal mas hierarquicamente orientado, através de uma chamada de atenção posterior ou anterior à edição do texto por parte do editor responsável pela área em que o crítico intervém, quer através de alguns mecanismos burocráticos e reguladores inerentes à estrutura do próprio jornal, como seja por via da acção dos "copy-desk" que, detendo a função de ajustar o espaço disponível para o texto em causa naquela edição e de padronizar algumas questões de estilo segundo as regras estipuladas pelo próprio jornal (frequentemente consignadas no denominado "livro de estilo"), em última instância, na impossibilidade de contactarem com o crítico no sentido de obterem a sua aprovação para as modificações propostas (e a exigência de rapidez subjacente à rotina produtiva jornalísticas por vezes não se compadece com este tipo de atitudes mais "diplomáticas" e "democráticas"), detêm o poder de decidir quais os elementos a eliminar de um texto mais longo e quais as substituições "clarificadoras" a fazer num texto de maior densidade, assim como de substituír títulos quando estes também não cabem nas 99

dimensões disponíveis ou, por vezes, quando são pouco apelativos, actos que muitas vezes são intensamente vividos pelo crítico como atentatórios à sua liberdade e autonomia discursiva. Curioso é o facto das referências mais explícitas à intervenção do jornal na fase de elaboração do produto-crítica provirem de agentes inseridos em jornais de referência dominante, socialmente mais prestigiados no espaço das artes e da cultura. E tal fenómeno não acontecerá por acaso: se, por um lado, são estes jornais que maior disponibilidade concedem a uma crítica de postura analítica e reflexiva, recrutando os seus críticos privilegiadamente junto das fileiras de intelectuais de competência académica adquirida, simultaneamente, por imperativos que decorrem justamente dos objectivos mercantilistas que presidem à lógica de qualquer jornal generalista, que será chegar a uma faixa de público o mais alargada possível (que partilhe dos seus vectores editoriais, evidentemente), não se compadecem com alguns "tiques" decorrentes do habitus academicamente constituído desses mesmos críticos, como seja, por exemplo, a utilização de uma linguagem por vezes hermética para o leitor mais leigo, ainda que interessado. Também são esses mesmos críticos que, no mesmo sentido, mais "sofrem" com as limitações básicas inerentes à lógica de funcionamento de qualquer jornal, como sejam o espaço e o tempo, limitações essas que não deixam de gorar os seus objectivos críticos de reflexão ponderada e de aprofundamento analítico e o mais possível sustentado. De notar ainda é o facto dessas advertências a que o crítico poderá ver-se sujeito por parte do jornal, designadamente na pessoa do seu editor, tenderem a diminuír na medida que ele vai incorporando as regras do jogo jornalístico e vai tendo consciência do espaço de possibilidades estilísticas que é jornalisticamente concedido ao seu estatuto no jornal concreto em que trabalha, processo esse que poderá assumir a forma de uma adequação consciente pela via da "auto-censura"45, ou uma adequação por via de uma socialização por osmose, que pressupõe uma acomodação e aceitação inconsciente das regras do jogo. O seu espaço de tomadas de posição estilísticas provavelmente também irá variar consoante o capital simbólico (ou capital de prestígio) acumulado ao longo da sua trajectória de actividade pública e que irá capitalizar o poder e o valor da sua assinatura num texto. Ou seja, a margem de manobra reservada à sua idiossincrasia em termos de tomadas de posição estilísticas dependerá igualmente da

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posição que ocupa no próprio espaço da crítica, ganha em provas de eficácia simbólica do seu discurso. «E quanto aos elementos constitutivos do próprio evento, o jornal dá algum tipo de indicação quanto ao que deverá incluir, realçar ou omitir no seu discurso acerca desse mesmo evento? Não. (...) O que não significa que eu não note que ao longo do meu percurso enquanto crítico não tenha feito pelo menos algumas inflexões ou adaptações da linguagem. Evito um certo vocabulário muito técnico, sobretudo quando esse vocabulário técnico é utilizado por comodidade. Evito de algum modo e por vezes dou comigo a exercer alguma auto-censura. "Não vale a pena utilizar este vocabulário técnico aqui neste momento, porque eu posso dizer as coisas sem utilizar este vocabulário técnico." Mas na condição da utilização ou não desse vocabulário técnico nesse contexto não perturbar de nenhum modo aquilo que eu quero dizer. Porque quando se trata mesmo de eu sentir que deva utilizar esse vocabulário técnico, pois utilizo, não sinto nenhum problema em relação a isso. De qualquer das maneiras, de facto posso dizer que dentro de determinados limites me acomodei de algum modo, tive alguma preocupação em que os artigos não fossem objectos estranhos dentro do jornal onde publico. (...) Acho que me consegui adaptar às regras do jogo dentro de determinados limites, isto é, sem eu transigir demasiado, mas obrigando as pessoas a reconhecer que havia uma diferença qualquer. No início houve coisas que tiveram problemas em ser publicadas precisamente porque não eram facilmente inteligíveis.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «Uma única vez o editor da Cultura me disse "Olha que um fulano me disse que o espetáculo era assim. Tens a certeza que queres escrever isto?". E eu disse "Tenho". Digamos que assim claramente foi a única vez que aconteceu, no ínício. Agora, há formas muito mais incidiosas de o fazer. (...) As críticas entram, e pode é haver censura interna. E há! E como é que essa censura... - É feita sem eu saber. Eu só depois leio o jornal. Eu, como os leitores, tenho as minhas surpresas. Cortes de texto, modificações de palavras, modificações de sintaxe, há isso tudo. Não é sempre, mas acontece. (...) Portanto, há essa onda que pode levar a que o «copy» corte texto, pode levar a que um título seja transformado... E isso você não pode controlar. Eu não controlo! E a

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Fala-se aqui de auto-censura quando um crítico ou um jornalista, prevendo cortes ou admoestações por 101

hierarquia do jornal não se mete nisso. Infelizmente! Odeio que não se metam! (...) Eu tenho muitos condicionalismos: de expressão (trabalho no jornal X e não no jornal Y), portanto, há formas de dizer que são específicas para o suporte para o qual eu trabalho. (...) Expressão essa, apesar de tudo, que tem os seus condicionalismos, de espaço e de suporte. Porque eu não posso falar da mesma maneira num jornal do que poderia falar numa revista mensal, ou bi-anual, ou semestral. Não tenho o espaço que eu quero, eu sou limitada por um número de letras, por um número de caracteres, que fazem com que eu já tenha interiorizada uma forma de texto. Portanto, as dimensões condicionam a forma do texto, naturalmente, e a possibilidade de se analisar o objecto. Os jornais condicionam a critica porque obrigam os críticos, pelo menos os críticos de teatro, que têm menos espaço que os outros, a produzir textos impressionistas, e cada vez mais impressionistas. Dizem que o público não percebe se nós analisarmos, não está interessado em actividades de Faculdade de Letras. Mas a verdade é que o impressionismo mais imediatista é aquilo que o suporte jornalístico acaba por produzir e por obrigar a. (...) Eu já sou tão treinada, e já tenho sido tão treinada para a via impressionista, que francamente eu já não tenho essa preocupação (de ser compreendida ou não pelo público). Já é a interiorização de um tipo de discurso, o que é terrível. Olhe, aqui está a rotinização. Realmente não tenho essa preocupação, já não tenho. Considero, e talvez esteja errada, que já adoptei a fórmula capaz de, por um lado não me provocar um desgosto total, e ao mesmo tempo ser acessível. E eu tenho vindo a caminho da acessibilidade. Isso é que é curioso. Fui conduzida a isso pelas constantes advertências do jornal, ou pelo do editor da Cultura. "Isto não é faculdade de Letras! Isto não é Faculdade de Letras! Isto não é Faculdade de Letras!". Tantas ouvi que efectivamente fui partindo cada vez mais para a elementaridade, para a coisa fácil, para a coisa mais clara. (...) Como o meu caminho foi para isso... Se fosse a ler os meus textos iniciais, onde eu tinha muito mais espaço, o jornal dedicava efectivamente muito mais espaço ao teatro do que hoje, eu podia... Porque a dimensão é muito importante para um raciocínio. Se você quer desenvolver um raciocínio, tem que ter um certo espaço. Se não tem, você tem que dizer assim meia dúzia de larachas, mais ou menos bem escritas, mais ou menos apaixonadas, mais ou menos fundamentadas, mais ou menos informadas, mas são larachas! Eu como eu agora já estou na fase da laracha, percebe...» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso)

parte das chefias, se coibe de escrever aquilo que acha que é susceptível de ser recusado. 102

«Não interfere. É evidente que existem sempre mecanismos posteriores de avaliação que podem funcionar como ajustadores de um discurso que se pode fechar sobre si próprio. Num jornal que funcione bem, deve haver permanentemente uma apreciação sobre aquilo que é publicado e, portanto, a possibilidade não de um controle, mas de uma avaliação posterior. Parece-me indispensável que isso exista. E como é que esses mecanismos se materializam? Em princípio há editores responsáveis, ou deveria haver, que têm o poder e a obrigação de assegurar a legibilidade e a qualidade dos materiais publicados. No caso do Expresso e concretamente das artes plásticas, o editor é... Fui eu, e no caso das artes plásticas, continuo a ter responsabilidades nesta área. E que tipo de modificações são normalmente aconselhadas? Vamos lá a ver, modificações não costumam ocorrer na fase prévia de publicação. Agora a minha posição é diferente, porque sou eu que tento, em relação a outras pessoas, clarificar algumas coisas, no caso de considerar que os textos possam ser pouco claros. E aí é normal estabelecer um contacto com a pessoa e dizer "Epá, vais explicar isto aqui, se não não se percebe". É isso. (...) É inevitável, estando a escrever num semanário de grande informação (modificar o "tom" da sua escrita). Penso que há obviamente distinções do trabalho que se faz numa revista especializada ou num trabalho académico. Embora no jornal onde eu escrevo, essas fronteiras sejam muito pouco claras. Portanto, não penso que na generalidade das situações tenha uma excessiva preocupação em estar a escrever para um público muito alargado.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso) «Sim, até um certo ponto, isto é, precisamente quando temos essas reuniões semanais, como penso que já ficou bem explícito por aquilo que eu disse, há uma coisa que é sagrada, que é a tal relação de cada um com o filme. E portanto, é isso que se espera dele, é isso que se deseja, é essa singularidade do seu discurso. Outra coisa é analisarmos caso a caso o que é preciso explicar ou não para garantir determinadas exigências do trabalho crítico. Isto é, quando se estreia um filme como A Realidade Virtual, uma coisa que rapidamente se tornou óbvio da nossa discussão é que era importante haver naquilo que se escrevesse uma informação minimamente consistente sobre do que é que aquele filme é sintoma, qual é o "background" técnico e tecnológico que está a ser transformado e que aquele filme reflecte pontualmente. Portanto, é este tipo de questões que passam sempre pelas nossas discussões, como é evidente. 103

Portanto, são mais os conteúdos informativos e menos os avaliativos e interpretativos? Claro, exactamente. (...) A nível da linguagem, eu acho que aí há uma resposta de princípio e depois há a resposta prática. A resposta de princípio é esta: se um determinado crítico foi convidado para escrever num jornal, é porque o jornal lhe reconhece certos valores e certas qualidades que o levam implicitamente a aceitar as características do seu discurso. Portanto, isso para mim também é sagrado. Um crítico da minha secção pode estar ao lado de um texto meu a dizer exactamente o contrário daquilo que eu digo, mas eu quero que ele diga isso, porque o jornal também quer isso, e essa diferença é salutar, é produtiva. Outra coisa, é a tal resposta prática, é face a um texto chamar-se a atenção de quem escreveu, por exemplo, lá no meio... Vou dar um exemplo tosco para simplificar: alguém que está a discutir o modo de composição das imagens de um filme, e diz que, por exemplo, a janela 1.85 favorece um modo de composição que se aproxima um pouco do cinema scope. Se calhar, convém chamar a atenção da pessoa que cinema scope será um termo que ainda está na linguagem corrente, mas dizer a janela 1.85 de facto é um termo tão específico do ponto de vista técnico, que convém se calhar abrir um parentesis e explicar minimamente o que é isso. Portanto, é evidente que nesse sentido há toda a abertura para uma intervenção face aquilo que é produzido. Em relação às outras coisas que têm a ver com a singularidade da pessoa que está a escrever, não, é para isso que o jornal a convidou, é isso que é o seu valor específico enquanto crítico.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso) «Nada. Raramente. Pode-se falar num "brieffing" prévio. Se por acaso um acontecimento estiver próximo, o filme vai estar num determinado festival, ou determinado realizador vem cá, pode haver aspectos que não ferem em nada a estrutura da crítica. São como que elementos adicionais. (...) Uma coisa é nós termos a consciência do lugar para onde estamos a escrever e consoante os orgãos de comunicação... (...) por exemplo, poderá é haver um redactor ou um editor que é responsável pelo texto, que pode fazer correcções de forma, mas não de conteúdo. De qualquer forma, a minha experiência não tem passado muito por aí. Eu sei é que há jornais onde existe essa componente que uniformiza de certa forma um discurso, e aí talvez possa existir alguma pressão para orientar as várias opiniões para uma forma que pertence ao jornal e que lhe dá a sua unidade. Agora, no meu caso isso não tem existido.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras)

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«Não, nunca o fez. Aconteceu-me já, na altura em que escrevi os dois únicos textos para o DN, eles cortarem-nas sem sequer me perguntarem. Não estou a dizer com isto que não existe uma censura difusa interna e, sobretudo, uma autocensura. Penso que existe e, até mesmo depois do período marcelista quando ainda havia censura, esta não era tão castradora como a que existe presentemente. Sobretudo no jornal diário que tem uma imagem, essas normas acabam por nos castrar a imaginação. Trata-se duma opção que tem de ser feita desde o princípio, porque se sabe que uma determinada linguagem não pode ser falada. Apesar de tudo, no Público posso escrever "cu", "merda" ou "putas". Uso toda esta linguagem quando relacionada com a peça. Ninguém toca nisso. Além disso, as coisas têm vindo a modificar-se, fala-se de preservativos, de sexo, com mais à vontade do que há cinco anos. A intervenção do editor é sempre técnica, nunca é ideológica e muito menos política.» (Manuel João Gomes, crítico de teatro no Público) «(...) Curiosamente, isso (o contexto) tem um reflexo na escrita. É uma escrita completamente diferente da escrita que eu faço aqui (Cinemateca). Enquanto que aqui é mais analítica, pelas circustâncias, ou seja, eu aqui escrevo para pessoas que vêm ver um filme de certeza, no jornal é para convidar as pessoas a virem ver o filme, em princípio. Os objectivos são claramente diferentes. O tipo de público que vem aqui à cinemateca é, em princípio - digo em princípio porque abstenho-me de referir um facto - um público que está interessado, um público minimanente cinéfilo. O que é exigido num texto da Cinemateca é completamente diferente do que é exigido num texto de jornal. Enquanto que o texto de jornal tem características jornalísticas - isto é uma tautologia mesmo lapalissada -, tem características de linguagem que pretende não ir ao maior denominador comum, mas pretende um raio de acção e exige um raio de entendimento muito maior, na Cinemateca estarei muito mais à vontade, porque o público será muito mais específico e exige mais dos textos que eu faço aqui. Fundamentalmente, para mim, é a diferença que há entre um texto analítico, que são os textos que eu faço aqui, e os textos críticos, no sentido europeu, não no sentido americano, que são os textos que eu faço nos jornais. (...) E já aconteceu ter sido publicado alguma coisa que não era rigorosamente aquilo que tinha escrito? Acontece, já tive grandes chatices com isso, mas acho que há sempre um lado legítimo. Isso é jornalismo. O que se combinou é que "telefonem-me, digam-me, que eu corto, vou cortando". Às vezes não se consegue e têm de ser eles a cortar, às vezes cortam 105

mal, outras vezes cortam bem. Mas faz parte das regras do jogo, não devem estar a cortar por prazer, estão a cortar porque aquilo quando vai para a mesa de montagem está grande demais, pronto. Acontece isso. Já tive algumas chatices no Fantasporto porque alguém leu mal um artigo e pôs um título completamente contrário aquilo que eu queria. Esses dissabores acho que fazem parte das regras do jogo.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público) «(A alegação do Independente para a minha saída do jornal...) Era que tinha escrito um texto agressivo, que comentava algumas "ideias" - entre aspas, porque eu acho que o indivíduo não tem ideias -, do Alexandre Pomar no Expresso, sobre um tema concreto, que era o tema da arte pública. E eu comentava de uma forma que até nem era muito agressiva, a questão das considerações que o Alexandre tinha feito na semana anterior no Expresso sobre arte pública. E depois o Miguel Esteves Cardoso também transmitiu ao meu colega de página António Cerveira Pinto que não tinha necessidade que eu escrevesse lá mais, que aquele tom de escrita não interessava. Mas era um tom que nem era sequer o tom do próprio jornal, quando o próprio jornal por vezes ultrapassaria o meu. (...) Anteriormente não acontecia dar a ler, fazer exame prévio. Acontecia é que eu por vezes entregava os meus textos, os textos assinados por mim, portanto da minha responsabilidade, e via que os textos depois eram bastante alterados na publicação, já publicados. Era o que na imprensa americana se chama o "editting", mas o "editting" tem limites, não se pode descaracterizar um texto. Não se pode tirar parágrafos-chave para a compreensão da intenção do texto. Digamos que o "editting" no Público era quase sempre abusivo e desrespeitoso para quem escrevia o texto. E aí sentia a minha liberdade, a minha automia posta em causa enquanto crítico sempre, porque emitia uma opinião e nunca sabia até que ponto é que ela ía ser depois descaracterizada. E depois é muito complexo aparecer um texto assinado por mim, que está a emitir uma opinião que não é a minha. Sentia-me bastante mal. Imaginemos que eu usava uma palavra mais agressiva e se essa palavra era substiuída por outra, com um sentido completamente diferente, se eu fazia uma crítica mais agressiva, e se um texto aparecia como uma crítica complacente, moderada, sentir-me-ia bastante mal, porque não teria nada a ver com a minha opinião. E isso aconteceu também no Público, em relação, por exemplo, ao caso particular da Menez. Então nesse caso, o "editting" não era só técnico, era também de substituição de "substância"? Exacto.» (Carlos Vidal, crítico de artes plásticas na Capital) 106

Casos como este, o de Carlos Vidal, decorrerá do que poderemos designar de erro de recrutamento, ou seja, quando as expectativas que presidem à escolha de um determinado crítico por parte de um determinado jornal, escolha essa que, na ausência de um trabalho crítico anterior, aparece associada a uma competência que se tem e que se julga que será desenvolvida de determinada maneira, não vão ser correspondidas na prática. Com efeito, quando um orgão de comunicação social recruta para os seus quadros um qualquer comentador, designadamente um crítico, ou até mesmo um jornalista, vai tentar escolher entre aqueles cujo perfil lhe seja mais adequado, isto é, que se espera que perfilhem e espelhem o mais fielmente possível na sua actividade jornalística o espírito programático do jornal, que mais do que um determinado conjunto de convicções que fundam uma determinada visão do mundo (designadamente do mundo das artes e letras), compreende uma determinada forma de fazer ver o mundo através do jornalismo, forma e conteúdo esses que tenderão, por sua vez, a corresponder às convicções e expectativas do seu público potencial.46 É neste sentido que poderemos compreender as palavras de Jean-Jacques Gautier, citadas por Bourdieu, quando diz que: «Un bom directeur du Figaro, qui s'est lui-même choisit et a été choisit selon les mêmes mécanismes, choisit un critique littéraire du Figaro parce qu' "il a le ton qui convient pour s'adresser aux lecteurs du journal", parce que, sans l'avoir fait exprès, "il parle naturellement la langue (entendida no seu sentido mais lato) du Figaro" et qu'il serait "le lecteur-type" de ce journal. "Si demain, dans le Figaro, je me dets à parler le langage de la revue Les Temps Modernes, par exemple, ou de Saintes Chapelles des Lettres, je ne serait plus ni compris, donc pas écouté, parce que je m'appuierait sur un certein nombre de notions ou d'arguments dont le lecteur se moque eperdûment."»47 Nesta perspectiva, a adequação ao "tom" proposto e previamente definido irá constituír o princípio fundamental na selecção do crítico, princípio esse de algum modo dissimulado pelo modo como estes agentes são recrutados - por convite -, convite esse por sua vez efectuado a partir de uma rede de relações de sociabilidade que se fundamenta em núcleos de afinidade electiva. Este fenómeno, que tende a fazer unir o 46

Queremos com isto dizer que o espírito programático de determinado orgão de imprensa não se reduz a uma linha doutrinária de pensamento unívoca e consoladora (até por razões mercantis), mas sobretudo um determinado estilo de fazer e de encarar o jornalismo, um determinado modo de abordar os acontecimentos. 47 Cit. in BOURDIEU, "La Production de la Croyance...", op. cit., p. 22. 107

jornalista em geral ou o crítico em particular ao seu jornal e, através deste, ao seu público, começando desde logo a ser tentado no momento da escolha dos colaboradores de um jornal, constituí o primeiro padrão de controlo operado pelo jornal na sua estratégia de gestão das diferenças legitimas, através do qual ao mesmo tempo que procura evitar uma adesão marcada e demagógica a uma linha doutrinária unívoca, tenta também gerir a relação entre o estilo pessoal do crítico e o estilo de jornalismo programaticamente partilhado. Tal como nas palavras de Jean-Jacques Gautier acima citadas, este fenómeno aparece também notoriamente representado nas respostas dos nossos entrevistas às perguntas «porque acha que foi convidado para trabalhar no jornal em que actualmente exerce a sua actividade crítica?» ou «porque aceitou trabalhar nesse jornal?», das quais passaremos a transcrever as mais demonstrativas: «Provavelmente porque o meu modo de fazer crítica fazia sentido na tradição crítica que já existia dentro do Expresso, e que mesmo introduzindo factores pessoais de diferença, essa diversificação era interessante para o próprio Expresso enquanto jornal. (...) se um determinado crítico foi convidado para escrever num jornal, é porque o jornal lhe reconhece certos valores e certas qualidades que o levam implicitamente a aceitar as características do seu discurso.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso) «(...) porque era reconhecido ao meu trabalho a qualidade que o jornal reclamava para que se exercesse essa função. Muito embora também lhe possa dizer, as qualidade reconhecidas pelo jornal, por qualquer jornal, sejam qualidades mínimas, e nem sempre as que seriam mais interessantes. De facto não devêmos ter grande complacência, nem grande admiração por esse funcionamento dos jornais. Aliás, o próprio funcionamento dos jornais é mais um obstáculo a que a crítica seja de algum modo insuficiente.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «Porque tinha estabelecido uma assinatura e uma autoridade. Por outro lado, também porque as pessoas que vieram para aqui já tinham trabalhado comigo noutros sítios. Também convidaram a Tereza Coelho, o Alexandre Melo também foi falado, o Seabra e tal... Portanto, eram pessoas que eu conhecia, que estavam dentro de um espírito programático que era o do jornal.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público)

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«Porque faço parte das afinidades electivas da pessoa que me convidou, o Torcato Sepúlveda, editor da Cultura. Com certeza acompanhava a minha crítica literária no JL. Tínhamos muitos pontos comuns: falávamos das mesmas obras. Temos um fundo comum. Ele estava interessado numa pessoa que escrevesse sobre certos temas e assuntos, que pudesse dizer coisas que neste país mais ninguém sabe.» (Manuel João Gomes, crítico de teatro no Público) «Creio que era porque gostavam do meu trabalho no Jornal. Porque, de alguma maneira, se identificavam comigo, cabia ali naquele jornal aquilo que eu fazia no Jornal.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público) «Identifico-me até bastante (com o jornal em que trabalho). Não me identifico muito ideologicamente, mas identifico-me justamente com o espírito, com a irreverência, com a inovação em termos de linguagem e em termos gráficos, e muito com a irreverência do Independente, que eu acho que foi uma grande conquista do jornalismo português. Não só a irreverência no sentido de gracejo, mas no sentido também de um arejamento da linguagem que eu acho que era muito necessário. Eu acho que o Independente trouxe uma certa modernidade à imprensa portuguesa que não tinha. Tinha o Expresso, que era e ainda é um grande jornal, um jornal importante, sério, mas um bocado institucional demais. Não institucional porque esteja ligado ao governo, mas institucional no sentido de reflectir de uma forma demasiado estreita os valores vigentes, os valores morais, estéticos, políticos. E o Independente estilhaçou muito isso, é nesse sentido que eu me identifico, embora não seja tão conservador e também não sou de direita como o jornal.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente) «(...) porque é um jornal que eu gosto. Gosto porque tem a ver comigo. Não completamente, claro que não estou cem por cento de acordo, eu acho que isso também não é possível. Mas dentro dos jornais que existem, semanários sobretudo, gosto muito do Independente. Identifico-me com o estilo de jornalismo que é feito. Irrevente, provocador. Não estou de acordo com as posições todas do jornal, como é óbvio, nem tenho que estar, porque ali há pessoas do mais variados quadradantes, são completamente diferentes umas das outras em todos os aspectos. Mas na globalidade, gosto do jornal.» (João António Dias, crítico de literatura no Independente) 109

«Para já, o facto do Independente ser na altura, quando me convidaram para colaborar, o jornal de longe mais interessante que havia no país. Portanto, aquele que traduzia melhor, digamos assim, as novas gerações, quer na política, quer na cultura. Ou seja, era um orgão de informação que queria corresponder a uma certa sensibilidade mais viva e mais inconformista na sociedade portuguesa. Embora o Independente tenha evidentemente uma marca politica de direita, se calhar até por isso corresponde a uma época mais actual, quer dizer... Penso que o facto de ter uma marca política de direita não faz do Independente um jornal conservador. Pelo contrário. Um jornal conservador é o Expresso, ou o Diário de Notícias, ou o JL... Agora o Independente é, sobretudo, um jornal inconformista, com um certo radicalismo moralista, preocupado com as novas ideias, com as novas modas... E portanto digamos que era o jornal mais avançado que havia em Portugal nessa altura, e continua a ser, apesar dele próprio também tender para uma certa estabilização, institucionalização. Mas a verdade é que ainda não surgiu nenhum outro jornal que tenha as mesmas características de irreverência, etc. Portanto, eu penso que a minha colaboração com o Independente se deve ao reconhecer no jornal essas qualidades.» (António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente) «É óbvio que qualquer jornal que tenha linhas ideológicas que não correspondam a uma filosofia de vida que eu tenho, que passa pela política também, é óbvio que eu não estaria bem inserido num jornal desses. Uma expressão popular: "não daria a bota com a perdigota". E uma das coisas que nós não podemos podemos abdicar é um certo sonho de mudança para melhor na vida e nos homens. Isto passa por crenças muito fortes em determinados valores, de maneira que em certas publicações em que eu nitidamente não iria escrever. Não se justificava que eu escrevessa lá, o que não quer dizer que eu seja propagandista político, mas o modo como eu me sinto no mundo, em tudo o que faço, tudo o que realizo, tudo o que escrevo, há com certeza uma marca do homem que eu sou.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de Notícias) Nesta perspectiva, tal como podemos depreender das palavras acima transcritas, é a partir do acordo social perfeito que se joga no momento do "convite" e da sua aceitação entre a sensibilidade, gosto e estilo do crítico e o programa editorial do jornal 110

que, por um lado, as dimensões formais e, sobretudo, substantivas das tomadas de posição críticas (e dizemos "sobretudo" porque, sendo a dimensão que mais clara e visivelmente reflecte a visão do mundo, nomeadamente do mundo das artes, pessoal e subjectiva do crítico, e sobre a qual ele não abdica da sua total autonomia e liberdade, é também aquela que, como vimos, os constragimentos jornalísticos são menos atrevidos e sentidos) vão aparecer como "naturalmente" ajustadas à visão do mundo e espírito programático característico do jornal em que se insere, ilibando-o de interferir nesse âmbito, assim como, por outro lado, também ajustadas em relação às expectativas dos leitores mais assíduos desse mesmo jornal e das suas crónicas críticas. Com efeito, os diferentes discursos e julgamentos produzidos pela crítica não obteriam o reconhecimento por parte do público a que se dirigem e, consequentemente, a eficácia simbólica prevista e desejada pelo orgão de imprensa e pelo próprio crítico sobre aquela instância se, à partida, entre o crítico, o jornal para onde escreve e os seus respectivos leitores não existisse a priori um ajustamento no que respeita às suas visões do mundo, designadamente do mundo das artes e letras, aos seus interesses e estratégias neste, aos seus gostos e códigos de referência e de reverência, no fundo, aos esquemas de disposições e pressuposições estéticas que integram e constituem os seus habitus. Daí a prática da crítica variar substancialmente, quer em termos de forma, quer de conteúdo, consoante o orgão de imprensa no qual são é desempenhada e, por sua vez, segundo o tipo de público que este atinge ou pretende atingir. Note-se, todavia, que esse ajustamento entre crítico e leitor não é demagógica, intencional ou conscientemente procurado pelo crítico (embora ele o procure estabelecer no momento em que pondera o convite de determinado jornal), sendo, pelo contrário, resultante de uma correspondência estrutural tácita e objectivamente estabelecida entre a mundividência daquele agente, do jornal para que trabalha e do seu respectivo público, correspondência essa que lhe permite ser sincero nos seus veredictos e interpretações, sentindo que os pronuncia em plena liberdade, livre de todo e qualquer tipo de condicionalismos. Tudo se passa como um jogo de espelhos: no caso do sistema de disposições do crítico corresponder ao sistema de disposições partilhado pelo orgão de imprensa para onde escreve e, por esta via, coincidir com o habitus do público para o qual se dirige e pelo qual é consumido, neste caso (ideal, convenhamos), o discurso opinativo, avaliativo e interpretativo do crítico é passível de defender simultaneamente, de forma sincera, livre e eficaz, os interesses ideológicos e estéticos do seu jornal e dos seus respectivos leitores, isto porque está também, na realidade, a defender os seus 111

próprios interesses contra os dos seus adversários mais próximos, ocupantes de posições opostas à sua no campo da crítica. É neste sentido que Bourdieu afirma, ainda com base nas palavras de JeanJacques Gautier, que «les critiques ne servent si bien leur public que parce que l'homologie entre leur position dans le champ intellectuel et la position de leur public dans le champ de la classe dominante est fondement d'une connivence objective (...) qui fait qu'ils ne défendent jamais aussi sincèrement, donc aussi efficacement, les intérêts idéologiques de leur clientèle que lorsqu'ils défendent leurs propres intèrêts d'intellectuels contre leurs adversaires spécifiques, les occupants de positions opposées dans le champ de production. "Concrètement, le critique du Figaro ne juge jamais un spetacle; il juge le jugement du critique du Nouvel Observateur qui est inscrit en lui avant même que celui-ci ait à le formuler".»48 O que Bourdieu, no fundo, pressupõe, é a existência de um efeito de homologia estrutural e funcional entre o campo da crítica, o campo dos orgãos de comunicação social para os quais produz e pelos quais é divulgado o seu discurso, e o campo das classes e fracções de classe (nomeadamente no espaço das fracções culturalmente favorecidas, que será onde provavelmente se recrutará a maior parte da clientela do discurso crítico), efeito esse que, dando conta analiticamente do ajustamento de disposições e pressuposições que tende a existir entre posições homólogas em campos diferenciados, permite fundamentar e explicar objectivamente a reciprocidade e afinidade mútua de expectativas, interesses e estratégias que nas relações entre o crítico, o orgão para onde trabalha e o seu respectivo público, tendem a estabelecer-se. Nesta óptica, quanto mais perfeito fôr o reencontro entre a posição do crítico no espaço social que lhe é específico, a posição do jornal para onde escreve no campo dos orgãos de imprensa e a posição do público que o consome na estrutura social, melhor garantida está, à partida, a liberdade e a sinceridade do crítico na produção do seu discurso, mais adequadamente o leitor compreenderá e se sentirá identificado com as opiniões, veredictos e interpretações nele expressas e, deste modo, mais rapidamente ele reconhecerá a legitimidade do crítico produtor desse discurso, sendo muito mais eficiente e eficaz, por via da cumplicidade que objectivamente entre eles se estabelece, o poder de influência e de persuasão deste último sobre o primeiro.

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Idem, p. 21. 112

Ora, tomando esta hipótese como verdadeira, torna-se claro o facto da influência que os críticos exercem efectivamente sobre as orientações subjectivas (actos de decisão e de escolha, de opinião e de gosto) dos seus leitores não ser linear, mecânica e determinista: na realidade, é o jogo de conssonâncias estruturais que objectivamente acontecem entre o espaço de produção de julgamentos e discursos críticos, o espaço dos orgãos de comunicação social por onde estes circulam e o espaço dos seus respectivos receptores, que garante e fundamenta quer, por um lado, o reconhecimento e a concordância destes últimos em relação à avaliação estética preconizada pelos primeiros sobre as obras que destacam, quer, por outro lado, colocando-nos num plano estritamente semiótico, o ajustamento entre "gramáticas de produção", ou seja, códigos de leitura que vinculam os críticos na compreensão, interpretação e (des)codificação que fazem da obra em causa, e "gramáticas de recepção", isto é, os códigos de leitura utilizados pelos seus respectivos receptores, condição necessária, segundo Elísio Véron, para que aconteça a circulação inteligível de qualquer enunciado discursivo ou não discursivo, fenómeno que ele designa de semiose social.49 Esta condição é tanto ou mais necessária em relação à difusão dos enunciados propriamente críticos, na medida em que o espaço de produção destes é hoje profundamente marcado pela proliferação de um amplo espectro de discursos diferenciados, reflectindo a diversidade de quadros paradigmáticos de referência que nele são utilizados e propostos, assim como a clivagem de posições que nele se manifesta - posições essas que, estando no princípio das diferenças objectivas que em termos de convenções éticas e estéticas dividem os críticos, assim como dos diferentes sistemas de categorias de percepção, apreciação e intepretação (no fundo, sistemas de classificação) por eles aplicados, não deixam de os condicionar no que se refere à pluralidade de possibilidades de leitura e de efeitos de sentido, como lhes chama Véron, que qualquer obra lhes pode proporcionar e que eles podem, por sua vez, proporcionar ao seu público. Neste contexto, podemos aperceber-nos até que ponto a "escolha" de um crítico por parte de um orgão de imprensa é um passo fundamental para que a eficácia simbólica da sua acção discursiva se concretize sobre o público específico desse orgão: efectivamente, caso algum deles se encontre objectivamente "deslocado" em relação ao lugar social do outro, muito provavelmente o impacto das propostas apresentadas pelo

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VÉRON, A Produção de Sentido, S.Paulo, Cultrix, s.d. 113

crítico junto do público fiel do jornal para onde escreve ver-se-á votado ao fracasso e, deste modo, o próprio jornal descredibilizado. Isto na medida em que a relação de simbiose ética e estética que, a priori, garantiria um público ajustado ao discurso produzido, encontra-se, à partida, posta em causa, daí resultando que as propostas avaliativas e interpretativas apresentadas pelo crítico tendam a ser incompreendidas e/ou mal recebidas pelo público que encontram, tornando-se motivo de escárnio, de riso ou, na melhor das hipóteses, de ironia ou de indiferença por parte deste último. Terá sido a progressiva consciencialização deste desajustamento ético e estético por parte dos responsáveis dos jornais em que Carlos Vidal desenvolveu a sua actividade crítica antes de passar para a Capital que, objectivamente, esteve na base do seu afastamento sucessivo daqueles orgãos (se bem que o crítico não interprete da mesma maneira e pessoalize bastante mais a questão). Aliás, a desarticulação entre o modo (violento) deste crítico encarar a sua prática e o modo prescrito pelos jornais onde a desenvolveu anteriormente, encontra-se bem visível no seu próprio testemunho acerca deste percurso, quando contrapõe o seu tom e objectivos para a crítica ao tom e objectivos desses jornais, nomeadamente do Público: «Em 90, para sintetizar um pouco o trajecto que depois vem a ser acidentado a partir do momento em que eu entro para o Público, antes do jornal sair eu já fazia parte do corpo de críticos do jornal. Em 90 estou cerca de oito meses a trabalhar no Público, desde que saiu em Março até à volta de Outubro/ Novembro, a fazer crítica semanalmente. A experiência não foi de todo interessante, na medida em que era um tipo de jornal, e ainda é um tipo de jornal, com pretensões mais institucionais e um cariz de certa maneira cinzento na actividade da crítica, em que a crítica que se fez nunca foi de grande dureza, embora houvesse mil e um motivos para se exercer a actividade crítica com mais ou menor dureza, desde que houvesse um fundamento substancial. Geraram-se alguns problemas, tive alguns textos nitidamente censurados era curioso porque ninguém assumia a responsabilidade - e depois acabei por sair do jornal. Depois estive no Independente cerca de um ano também. Aí voltou a haver de novo problemas (já anteriormente transcritos) (...) A solução da Capital resulta das várias tentativas sucessivas de marginalização que foram sendo desenvolvidas ao longo de um processo que tem a ver com questões pessoais, tem a ver com questões de opinião, tem a ver com questões de auto-defesa de determinados grupos.» (Carlos Vidal, crítico de artes plásticas na Capital) 114

O nível de dependência que, como tivémos oportunidade de constatar, o espaço da crítica demonstra possuír face aos constrangimentos impostos pelo campo do jornalismo, acresce ainda devido ao facto de neste, actualmente em Portugal, repousar a capacidade de gerir o acesso aos lugares que o espaço da crítica tem disponíveis. Num cenário em que a edição de revistas especializadas e de ensaio é praticamente nulo, e sem grandes perspectivas de se ver melhorado, o monopólio da gestão do acesso aos lugares que topograficamente constituem o espaço da crítica, assim como a própria definição, reconhecimento e legitimação do estatuto de crítico e dos nomes que o preenchem, encontra-se quase totalmente consignado ao espaço da imprensa generalista (com objectivos e critérios estéticos e críticos relativamente distintos, como vimos, dos cultivados pelo espaço específico da crítica). Embora a selecção inicial seja regulada, como vimos no capítulo anterior, pela detenção de um determinado conjunto de competências específicas definidas e reconhecidas no campo da crítica, esse processo de regulação está longe de ser totalmente entregue nas mãos dos próprios críticos, sendo em muito da responsabilidade do campo da imprensa e dos seus respectivos agentes50. Mesmo a selecção que é aplicada pelas várias associações de críticos existentes acaba por ser baseada na regulação previamente efectuada pelos jornais, pois tem como critério base a regularidade com que o crítico pratica essa actividade publicamente (estando no nosso país essa dimensão "pública" praticamente restringida ao jornalismo generalista). Por outro lado, é ainda de notar que enquanto instituição de acolhimento praticamente exclusiva do discurso crítico, os jornais, nomeadamente quem nestes dispõe de posições de chefia, detêm também nas suas mãos o poder de aplicação de algumas das principais sanções negativas (como a excomungação do campo, como vimos tentada no caso de Carlos Vidal) e positivas (a legitimação, promoção e credibilização social do nome do crítico) que fundamentam a organização e hierarquização interna do espaço da crítica, já que as associações, dada a sua fraca visibilidade e actividade, se revelam totalmente ineficazes nessas operações.

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Que muitas vezes faz aceder ao estatuto de crítico, numa estratégia de racionalização dos seus próprios recursos humanos e materiais, jornalistas não detentores dessas mesmas competências, situação que alguns críticos mais ciosos do seu estatuto reprovam. 115

O monopólio exclusivo detido pelos media no processo de legitimação social e de construção da autoridade cultural do estatuto de crítico, que não encontra concorrência nas instituições específicas do próprio mundo das artes e letras, na Academia ou até mesmo nas próprias associações de críticos formadas, praticamente inoperantes e deixadas à margem neste processo, encontra-se bem patente nos depoimentos dos nossos entrevistados em relação à questão «em que se fundamenta a legitimidade e a autoridade do crítico para publicamente manifestar as suas opiniões e apreciações estéticas?»: «Aí, a autoridade é conferida pelo facto de, num sistema de mercado, ser reconhecido como tal pelos agentes empregadores.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso) «Poderá perguntar-me de onde vem a legitimidade a um nível institucional? De facto, de lado nenhum, pela simples razão que não existem organismos de formação de críticos, como existem de engenheiros ou de arquitectos. Aí sim, e sem qualquer ironia, acho que a legitimidade vem pelo menos em parte, também da história profissional desse crítico, isto é, da legitimidade que lhe foi conferida ao longo dessa história pelos próprios jornais em que escreveu.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso) «(...) no caso de um crítico que se assume como tal, manifesta a sua crítica dentro de uma publicação que lhe confere essa legitimidade. (...) O crítico é alguém que dedica o seu tempo a estudar e a pensar esses acontecimentos artísticos, em pricípio terá mais legitimidade para os formular. Não se baseia apenas numa opinião momentânea e factual sobre um determinado acontecimento, como o público tem depois de ver. Mas pessoas podem até nem ser críticas e terem a mesma preparação, podem estudar, podem-se informar. Neste aspecto, podem ser críticas, só não poderão obter a legutimidade de um orgão porque precisamente não o estão a utilizar.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras) «A legitimidade é meramente circunstancial. É o facto de ter acesso a um meio de comunicação social, e de facto, a partir daí tem essa vantagem relativamente a outras pessoas, que se calhar até podiam dizer coisas mais interessante, até podiam ser muito mais inteligentes. (...) é a autoridade de ter esse acesso a esse orgão de 116

comunicação social e dar a sua opinião. É essa a sua autoridade.» (João António Dias, crítico de literatura no Independente) «A legitimidade de um crítico assenta em grande parte no facto de nos darem um emprego. Assenta nos leitores que tem, e por conseguinte nos empregos que nos dão, porque não há empregos de graça deste país. Garanto-lhe que no dia em que eu deixa-se de ter essa legitimidade, punham-me na rua.» (Patrícia Cabral, crítica de literatura no Diário de Notícias) «Uma senhora que agora está na SIC, por exemplo, a Paula Moura Pinheiro, escrevia crítica de arte. Mas aquilo não fazia sentido nenhum, ela não sabia escrever aquilo. Quer dizer, ela não escrevia mal, tinha sensibilidade, mas não tinha formação nenhuma, dizia os desvarios mais absolutos. De tal maneira que o Pomar (coordenador da secção de artes plásticas no Expresso e também crítico de arte) lhe disse que ela não podia continuar a escrever. Portanto, o que é que o legitima? Legitima-o a sua autoridade. O que é que legitima o poder político? É o voto popular. Aqui não é o voto popular, mas é o consenso redactorial, os editores e os leitores. É uma coisa assim, inapanhável.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) No entanto, há que ter em conta que muitos dos que hoje assumem posições de chefia na área cultural do campo mediático também exercem ou, pelo menos, já exerceram a actividade crítica, pelo que a aplicação de tais sanções, sejam elas positivas ou negativas, não fica assim totalmente por mãos alheias. Por outro lado, existem também estratégias de resistência e de luta contra as directivas impostas pela lógica do campo jornalístico ao campo da crítica, notoriamente observáveis nas estratégias de demarcação operacionalizadas pelos seus agentes face aos jornalistas "comuns", aos seus modelos e formatos de produção discursiva, aos valores e objectivos de que partilham, assim como nos processos de negociação que, desenrolados entre críticos e seus editores/coordenadores de página, concedem aos primeiros um espaço de possibilidades de actuação no interior do jornal, com direitos a singularidades e valorações, a escolhas e a tomadas de posição ideológicas, a que o jornalista vulgarmente não acede. É justamente na gestão desse espaço de possíveis jornalisticamente concedido, em que o esoterismo da sua condição de especialista é negociado com o exoterismo da 117

sua condição jornalística, que o crítico assume a especificidade da sua actuação no interior do campo dos media, nunca deixando de combater em nome do seu estatuto particular e dos princípios, valores e normas que lhe são inerentes contra os constrangimentos que aquele lhe tenta impor. Há, de facto, todo um capital colectivo de atitudes, representações e valores éticos que, ao estabelecer uma confiança dóxica na sua própria legitimidade enquanto críticos, não se compadece com a lógica mediática, por mais que esta os atente quotidianamente. Tal como refere Bourdieu a respeito dos vários tipos de comentadores ou intelectuais-jornalistas, entre os quais podemos posicionar o crítico, situados num lugar incerto entre o campo do jornalismo e o campo intelectual mais especializado, estrategicamente «se servent de leur double appartenance pour esquiver les exigences spécifiques des deux universes et pour importer en chacun d'eux des pouvoirs plus ou moins bien acquis dans l'autre»51. De facto, os nossos entrevistados, mesmo aqueles mais adeptos de uma "crítica jornalística" e que não se sentem tão afontados pelos constrangimentos impostos pela lógica de funcionamento mediática, ofereceram alguma resistência quanto à assumpção do estatuto de jornalista, demarcando-se da cultura e da identidade profissional deste com base em quatro pressupostos fundamentais: a) a relação do crítico com a matériaprima noticiável ou, neste caso, "criticável", pressupõe um investimento pessoal e subjectivo que não é comummente concedido ao jornalista, que deverá supostamente relacionar-se com o facto de um modo imparcial e de objectivo; b) essa relação traduzse, por sua vez, numa maior autonomia do crítico na fase de elaboração do seu texto, que, se por um lado não está sujeita às regras convencionais de construção de um texto jornalístico, podendo definir e desenvolver discursivamente um "estilo" próprio, por outro, está partidariamente livre de tomar uma posição e de forçar uma interpretação pessoal em relação ao facto junto do leitor, ao passo que se pressupõe que o jornalista deverá abdicar na sua escrita qualquer componente de ordem subjectiva, seja ela de ordem técnico-linguística, seja de ordem ideológica, deixando ao leitor a maior margem de interpretação possível em relação ao facto considerado; c) pressupõe-se ainda que o crítico detém competências mais específicas e especializadas que o jornalista; d) o nível de integração e o próprio estatuto dentro do jornal também é utilizado como estratégia de demarcação, pois enquanto se pressupõe que o jornalista se dedica a tempo inteiro a

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BOURDIEU, "L' Emprise du Journalisme", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 101118

essa actividade e se encontra «de facto» integrado no jornal, a actividade crítica poderá ser acumulada a outro tipo de actividades profissionais, fazendo nornalmente parte das listas de colaboração externa daquele orgão, com direitos e deveres distintos dos da actividade jornalística. «Pelo facto de trabalhar num jornal sente-se um jornalista? Não me sinto jornalista por várias razões. Primeiro, não tenho o sentido da notícia, não fetichiso os facto, nem fetichiso as notícias. Não sei muito bem o que é isso das notícias, tenho dificuldade em redigir uma notícia. Parece-me sempre irrelevante, talvez também devido ao campo em que trabalho, nunca sei muito bem aquilo que pode ser notícia ou que não pode ser notícia. Portanto, desvalorizo aquilo que seria a primeira preocupação ou tarefa do jornalista, que seria a de dar notícias. Nesse sentido, nem só não faço como não sinto nenhum apetite para fazê-lo, nem tenho esse sentido jornalístico que é o do tempo próprio para as coisas. (...) Por isso mesmo não me sinto jornalista. Depois, em segundo lugar, tenho algumas preocupações, não sei se consigo se não consigo, em relação precisamente à não utilização da linguagem jornalística. (...) O crítico é suposto ter uma consciência muito maior em relação à própria linguagem que utiliza, é suposto ter uma consciência crítica em relação à própria linguagem, não apenas literária mas toda a linguagem que circula à sua volta e no próprio interior do jornal. É suposto que o crítico desconfie dos factos, enquanto que o jornalista deve pelo contrário estar atento a todos os factos. O crítico deve ter sempre um olhar recuado em relação aos factos, desconfiar de todos os factos, suspeitar de todos os factos, e interrogá-los primeiro, isto é, não apresentar os factos enquanto factos, enquanto não tiver reflectido sobre eles.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «De maneira nenhuma. .(...) Eu gostaria de nunca ser confundida com uma jornalista, porque são práticas diferentes, formações diferentes, objectivos diferentes. (...) O jornalismo, para já, é uma profissão. A crítica não é uma profissão. O jornalista é suposto trabalhar sobre acontecimentos, sobre actualidades, é suposto ter uma técnica que aprendeu para escrever sobre as matérias que lhe competem. O crítico não aprendeu a ser crítico, é suposto não ser pautado por critérios de actualidade, de

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espetacularidade, de venda de papel, é suposto estar mais livre do que o jornalista neste aspecto, e é suposto ser mais especializado que o jornalista, que é mais generalista. (...) O crítico não tem a ver com informação de maneira tão alargada como o jornalista, mas com informação mais sectorizada. Eu ao falar sobre um espetáculo estou a informar sobre aquele espetáculo, mas não estou preocupada sobre quantas informações tenho de dar, sobre como eu construo o meu texto, agora é o «lead», agora é... Não. Sou mais livre.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso) «O crítico necessariamente aborda as várias questões de uma forma opinativa e pessoal, o que raramente acontece, ou não acontece com o que será uma notícia comum do jornal, que é necessariamente objectiva e factual. Ali há uma interpretação da realidade, embora em todos os jornais, todos os textos que são assinados têm necessariamente um estilo pessoal, eventualmente até alguma opinião, ainda que mitigada. Há sempre o necessário juízo. Mas a crítica é um campo específico dentro do jornalismo, que é mais profundo, mais elaborado, e exige um tipo de conhecimento dentro de uma determinada área que o jornalista poderá ter, mas este pega numa realidade muito mais vasta. É uma especialização dentro do um núcleo geral e mais vasto.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras) «Apesar de tudo, mesmo que o crítico faça a chamada crítica jornalística, há uma certa especialização da parte da crítica, que o jornalista pode eventualmente não ter.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras) «Não, não reivindico essa qualidade. (...) O crítico, por um lado, é menos responsável porque é um mero colaborador do jornal, não é o criador do jornal. Participa na criação como colaborador, que é diferente de ser protagonista. Mas, por outro lado, tem a responsabilidade de ser um especialista. E curiosamente em Portugal, na nossa comunicação social os jornalistas ganham muito mais que os colaboradores, que são especialistas. Lá fora, em certos países do mundo que eu tenho conhecimento, é ao contrário, quer dizer, o colaborador, o especialista, ganha muito mais, nem se compara, que o jornalista.» (Carlos Porto, crítico de teatro no Jornal de Letras) «Há essa distinção entre o crítico e o jornalista. (...) O crítico se reduz a emitir um juízo de valor, a julgar determinado objecto cultural, enquanto que o jornalista 120

cultural acompanha, relata e se ocupa das novidades culturais, ou seja, ele pode dar notícias também, notícias no âmbito cultural. Um crítico não faz isso. Um crítico não vai escrever "o Truffaut morreu ontem", quem faz isso é o jornalista cultural, acompanha as novidades, realça determinadas coisas. É claro que num artigo, ele emite também juízos de valor, mas ele está a lidar também com o concreto, com novidades, com notícias, só que da área cultural.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente) «O jornalista, no fundo, é mais um comunicador de informação, ou seja, o jornalista, em princípio, deve deixar, por definição, um grande espaço de interpretação ao leitor, enquanto que o crítico, de certa maneira, força uma certa interpretação da informação. É essa a grande diferença. Seja o crítico de política ou o crítico de arte, o crítico força uma certa visão dos factos. O jornalista não deve forçar essa visão dos factos, deve dar a conhecer os factos. Quer dizer, não deve censurar, também não deve insistir ou dar visibilidade aos factos quando eles não merecem. No fundo, o jornalista tem uma grande responsabilidade de medir a importância relativa dos factos que devem ser dados a conhecer. Enquanto que o crítico força um ponto de vista sobre os factos que já são conhecidos ou que se devem conhecer, tem mais essa missão.» (António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente) «Há mais coisas: normalmente os críticos não estão nos quadros do jornal, são colaboradores o que, profissionalmente, os coloca à margem. Não têm as mesmas defesas nem os mesmos direitos e são olhados como se fossem uma raça que está ali, passa por acaso. Isso não acontece muito no Público. Desde o primeiro dia que os críticos - quaisquer que sejam - foram postos à vontade, entram e saem, escrevem à vontade, ocupam os computadores disponíveis. (...) Há uma pequena diferença em relação ao jornalista. Alguns deles escrevem sobre os factos, sobre um espectáculo, sem nunca os terem visto. Fazem-no através de um "press release". As companhias mandam um "press release" para o jornal e o jornalista pode escrever. Às vezes faço isso, sem ter visto o espectáculo. De certo modo, há uma diferença entre o crítico que tem um cabeçalho no artigo a dizer crítica e o outro que não vê os espectáculos. A partir do momento em que vejo os espectáculos, é-me difícil falar sobre eles sem estabelecer certas normas e sem dar alguma coisa de mim, quer dizer sem me tornar

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parcial. Normalmente a crítica não é inofensiva. Tem sempre por detrás o "background" daquele que escreve.» (Manuel João Gomes, crítico de teatro no Público) «Há um lado de jornalismo na crítica, que é o lado de coerção material, ou seja, há prazos de entrega, há caracteres que crescem e decrescem conforme o tamanho das páginas que depende da publicidade, esse lado é puramente jornalístico. Crítico, crítico, a actividade crítica em si, ou seja, a escrita, já não é tão jornalística como isso, apesar de - lá está a tal diferença de tom - haver um lado de, não pedagógico mas, tenho que ter em conta que estou a num orgão de comunicação que vai se lido por pessoas que obrigatoriamente não viram o filme. Portanto, não posso partir do princípio que viram o filme, o que condiciona a coisa, e isso é jornalismo. Ou seja, tem que haver um lado de estar esclarecido e esclarecer a posição daquele que me lê. E isso já posso considerar que é jornalismo.» (José navarro de Andrade, crítico de cinema no Público) «Não, não me sinto um jornalista. (...) O jornalista tem por obrigação não emitir juízos de valor, isso é uma coisa deontológica. Tem que ouvir as partes, expôr um raciocínio e explicar a situação. E o crítico não. O jornalista também tem a necessidade, a obrigatoriedade de dar cobertura à globalidade dos acontecimentos, e o crítico selecciona esses acontecimentos.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) «O crítico é obrigado a um exercício de análise intelectual que é muito concreto, e muitas vezes sobre coisas extremamente fugidías que o jornalista na sua actividade normal não é tão obrigado a isso. A não ser quando faz um jornalisno de opinião. Aí um jornalista de opinião tem muitas proximidades com o crítico, é alguém que expõe claramente a opinião. Um simples repórter relata as coisas, estará longe da figura do crítico, mas o jornalista de opinião está muito próximo da figura de um crítico. O jornalista-analista, analista político por exemplo, pode ser só jornalista político, mas se é jornalista e analista está muito próximo também do tipo de actividade de raciocínio que o crítico utiliza.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de Notícias)

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«(...) um jornalista normalmente é especializado, como diz o Baptista Bastos, em cultura geral. Eu não sou um especialista em cultura geral, sou um especialista em artes plásticas. E dentro das artes plásticas, nem todas. (...) Não, a crítica não é crítica jornalística, não confundir crítica com jornalismo, não é fazer apenas da crítica uma forma de jornalismo, cuidado com isso, porque o jornalismo tem essa tendência para banalizar, para tornar acessível a comunicação e falar em termos tão corriqueiros que não dá direito a ser profundo. Não, a crítica tem que ser profunda mas, ao mesmo tempo, perceber o que é a comunicação no plano da cultura geral. E por isso fazer crítica não é o mesmo que fazer poesia.» (Eurico Gonçalves, crítico de artes plásticas no Diário de Notícias) « (...) são duas coisas completamente distintas. Eu faço crítica de cinema, não faço jornalismo. O jornalismo é uma profissão que envolve toda uma actividade em torno da escrita. A crítica de cinema é uma forma de escrita que ocupa uma parcela pequena na vida do cidadão. Eu escrevo cinco horas por semana, um jornalista escreve oito horas por dia, se trabalhar normalmente, são quarenta horas semanais. O trabalho de uma pessoa são quarenta horas semanais, um bocadinho mais em muitos casos. Se eu escrever quatro, cinco horas por semana, isto não se pode considerar propriamente uma actividade central. O jornalista tem como actividade central escrever.» (Francisco Perestrello, crítico de cinema na Capital) «Não, o jornalista terá que fazer uma investigação factual. Eu faço uma investigação mais conceptual, mais ideológica. É uma investigação como crítico que não está preocupada com as ocorrências da actualidade, não está preocupada com os números da actualidade, não tem a actualidade como único critério. Posso recuar até um filósofo do século XVI para legitimar uma opinião. O jornalista tem um método de trabalho que é um método completamente diferente do crítico de arte.» (Carlos Vidal, crítico de artes plásticas na Capital) O jogo de negociações envolvido no processo produtivo de qualquer produto jornalístico, dando conta da «circulação biunívoca de propostas e sugestões entre editores e analistas em que a iniciativa de "fazer alguma coisa a propósito de alguém"

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pode partir e ser ou não aceite por uns ou por outros»52 - ressalvando o facto de ser sempre, todavia, em última instância, o editor que detém a última palavra, ou seja, o poder e o exercício da decisão sobre o que se publica, onde, quando e como (salvo no caso de serem analistas superconsagrados, que poderão publicar praticamente tudo o que quiserem, ainda que sempre dentro dos limites do razoável jornalístico), permite também ao crítico resguardar alguma da sua autonomia relativa face à intrusão do modo de pensar e de agir jornalístico na sua cultura profissional, conferindo-lhe alguma capacidade de resistência e de afirmação. Com efeito, é no decorrer da interacção entre os diversos críticos do jornal ou de um determinado crítico com o seu editor, que muitas vezes este agente se vê ilibado do peso de alguns constrangimentos propriamente jornalísticos sobre a sua actividade, reclamando sobre o evento que foi agendado para si e justificando a sua troca, reclamando por mais espaço para determinado artigo porque acha que o evento merece, reclamando a inclusão da cobertura de determinado evento que não foi previsto e que é do seu interesse pessoal destacar e comentar, etc. Tais

processos

de

negociação

são

normalmente

empreendidos

inter-

individualmente, ou seja, entre o crítico e o próprio editor ou responsável de secção (isto no caso de jornais de pequena dimensão organizativa), ou colectivamente, nas regulares reuniões de distribuição de trabalho, onde normalmente são feitas as agendas e é discutido o espaço e o enquandramento a conceder a determinado artigo sobre determinado evento. Assim sendo, mais ou menos informal e tacitamente, nestes espaços de gestão de conveniências o crítico vai reivindicando a sua autodeterminação nas opções sobre o que escrever e no espaço que lhe é concedido, constrangimentos a que frequentemente se vê submetido, procurando reestabelecer o princípio do prazer na selecção dos eventos e/ou autores a criticar, princípio que também interessa ao jornal conceder (já que uma avaliação pela positiva não desencadeará, a priori, tanta celeuma como uma efectuada pela negativa, celeumas essas que incorrem sempre no risco de, quando mal orientadas, descredibilizar o próprio jornal). Em suma, como os depoimentos dos nossos entrevistados testemunham, é através do jogo de negociações que se empreende ao longo de todo o processo de produção do produto-crítica, que se tenta, o mais democraticamente possível, a articulação entre os interesses estruturais e

52

MELO, O que é Arte, op. cit., pp. 69-70. O conceito de negociação, quando adaptado e operacionalizado no estudo da produção de produtos jornalísticos, tem o inegável mérito de corrigir o que poderá parecer um excessivo determinismo de algumas abordagens teóricas e empíricas deste complexo processo. 124

programáticos do jornal, as necessidades e os anseios do público que pretende atingir, e as idiossincrasias cultivadas pelo crítico. «O jornal para que trabalha, interfere de algum modo na fase de selecção dos factos culturais sobre os quais se deve pronunciar criticamente? Sim, interfere. Interfere tacitamente, segundo uma regra que é uma regra tácita mas que está estabelecida e que eu tenho que perceber. Um jornal vive da actualidade, logo se eu quiser escrever um artigo sobre o Ulisses do James Joyce eles dir-me-ão "Mas porquê agora um artigo sobre Ulisses?". A não ser que haja algum facto relevante que torne isso actual, de facto o jornal não aceitará isso. Aí é o critério da actualidade que faz parte das próprias regras do jornal e isso interfere. Mas depois a actualidade não é uma coisa que exista definida de uma vez por todas. Isso é a grande ilusão dos jornalistas, é o não saberem reconhecer a própria selecção e a própria ideologia que faz parte da selecção da actualidade. Entre a actualidade possível eu vou ter de escolher algumas coisas. E aí vou ter de escolher muitas vezes - não direi que escolha sempre em função dos critérios do jornal, mas tenho que saber lidar com as próprias contigências que são os jornais. Isto é, sei que me parece muito mais importante um livro de poemas do António Franco Alexandre do que um romance da Lídia Jorge, mas eu sei que se a Lídia Jorge publicar um romance, o jornal será muito mais receptivo a que eu faça uma entrevista e a que escreva sobre a Lidia Jorge do que estar a dedicar muito espaço ao António Franco Alexandre, que provavelmente ninguém conhece, pelo menos as pessoas um pouco fora da área dos livros ali dentro do jornal. Logo, eu tenho que saber lidar com estas contingências. E logo a Lìdia Jorge terá sempre mais lugar do que o António Franco Alexandre. Estes nomes são exemplos, meramente.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «São estes os critérios. Actualidade, profissionalismo, portanto instituições existentes ou mesmo jovens que eu queira seguir. Depois há gostos. O jornal tem muita gente a trabalhar lá dentro. Apesar de eu poder não escrever sobre o que não quero, o contrário não é verdade, não posso escrever sobre tudo o que quero.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso) «O que me leva a escolher é, antes do mais, o regime de diálogo constante em que nós funcionamos na secção de crítica de cinema. Reunimo-nos todas as semanas, 125

somos quatro, e as decisões tomadas em relação ao que se vai fazer resultam precisamente da avaliação da importância dos filmes em função, por um lado, da sua própria importância em relação ao gosto que cada um de nós tem de escrever sobre os filmes, ao empenhamento em defendê-lo, à importância histórica, à sua própria raridade - estou a pensar, por exemplo, se for uma reposição que não é vista há muitos anos, isso é um factor a ter em conta, que pode justificar, por exemplo, um texto de enquadramento histórico a explicar de onde vem aquele filme. Portanto, mais uma vez caso a caso, com factores que vão desde a história dos filmes até ao empenhamento pessoal de cada um em tratar de determinado filme, as coisas são decididas e são equilibradas em função disso. (...) Agora, é que não havendo obviamente unânimidades de gosto, e ainda bem que não há, um dos valores que nós tentamos preservar é que mesmo que determinado filme não seja muito querido da maioria das pessoas, se houver alguém empenhado em defender esse filme, essa pessoa tem prioridade em escrever sobre ele, e independentemente de depois haver ao lado um artigo de alguém que não gosta do filme, porque às vezes pode ser interessante favorecer as exposição pública dessas divergências, interessante do ponto de vista do meio jornalístico. Mas, de facto, um factor que pesa sempre é, mais uma vez, o factor individual, isto é, haver alguém que tem esse empenho em intervir, mesmo que os outros todos não se sintam motivados por aquele filme em particular. (...) O empenho que cada um tenha em escrever sobre determinado filme é sempre um factor essencial. Depois, não vou dizer que é o único pela simples razão de que há que distribuir trabalho. E se por hipótese, há uma pessoa que numa determinada semana tem muito trabalho concentrado, em que há duas ou três estreias, se calhar faz sentido nessas situações arranjar um esquema mais equilibrado de distribuição de trabalho. Aí as regras resultam do próprio confronto semana a semana com aquilo que há a comentar, embora suponha por hipótese que há duas estreias, e decidiu-se que o crítico A escreve sobre um dos filmes. E sobre do outro filme ninguém gosta a não ser esse mesmo filme. Ele escreve também sobre esse filme, independentemente dos outros nessa semana não terem textos críticos sobre determinado filme que estreia. Há, de facto, uma tentativa de equilíbrio na distribuição de trabalho, por razões práticas antes de mais, mas há também sempre a preocupação de privilegiar esse ponto de vista empenhado de alguém que vai escrever sobre determinado filme.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso e coordenador da secção de cinema)

126

«Em termos da selecção, é você que distribui os filmes pelos seu colaboradores? Não, eu sou muito democrático. Normalmente eu indico, mas muitíssimas vezes nós encontramo-nos e discutimos, "Ah! não, eu prefiro fazer aquele outro, eu não estou muito a par desse ceneasta, ou detesto esse género e não me sinto à vontade" e pronto. É por discussão.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente e coordenador da secção de cinema) «As pessoas, à partida, já sabem mais ou menos os temas que me interessam, os autores que me interessam, e as coisas correm assim naturalmente.» (João António Dias, crítico de literatura no Independente) «(No que respeita à selecção dos filmes a criticar...) Como somos três pessoas, são escolhidos os filmes consoante as experiências de cada um, e normalmente as pessoas preferem escolher os filmes que gostam mais de falar. (...) Normalmente passase tudo na edição. Aliás, minto, no meu caso, normalmente sugiro os meus. Mas, se por acaso, como são as pessoas que trabalham lá permanentemente já definiram mais ou menos, eu escrevo sobre aquilo que foi agendado para mim. É um trabalho alternado entre o que é uma encomenta e o que é uma sugestão, pode haver uma negociação, pode haver um filme que escolheram para mim e eu contrapôr com outro que me pareça mais interessante. Não há aí uma hierarquia muito vincada em termos de decisão sobre o que se vai falar.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras) «(...) quem designa sobre o que é que eu vou escrever é o jornal. É claro que a coisa depois é negociada, estou a dar o lado formal, o lado duro disto. É negociado no bom sentido, é conversado, "eu gostava muito..." e não sei que mais. Há uma técnica que quase todos os jornais praticam que é quase sempre fala sobre o filme aquele que gosta mais do filme. Também é escusado ser negativista. (...) o que acontece é assim: às vezes fazem-se dossiers, ou seja, o Drácula quando estreou foi-se buscar o crítico de literatura para falar do Drácula, o Mário Jorge veio com uma ideia que era a história dos Dráculas no cinema, imaginando que podia haver um filme com uma parte musical muito importante, o crítico de música falou disso. E aí geralmente sentamo-nos e conversamos um bocado, isto é, não vou falar daquilo que o outro também vai falar. Mas isso é extraordinariamente fácil de fazer. Às vezes há uma grande vontade de duas 127

pessoas falarem sobre o filme, e se se descobrir espaço um faz a crítica e o outro - nós até gozamos um bocado - faz o "side show". Arranjar uma coisa qualquer para se poder falar do filme, para não haver "overlaping", para as pessoas não lerem o texto duas vezes, escrito por pessoas diferentes e com maneiras diferentes. Aí conversamos um bocado, mas é só por isso, para que tal não aconteça.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público) «Quando eu não concordo (com a selecção) absolutamente, não faço, e digo que não vale a pena fazer. Quando acho que não vale a pena fazer, coisas que eu acho que não têm importância nenhuma, não faço. Não faço e digo para ninguém fazer. Ou então mando alguém fazer, alguém que pode até não ser da área. Por exemplo, a Lisboa Subterrânea, achava que era uma exposição muito importante, sabia que não era muito boa, não me interessava nada fazer, e disse a alguém do Local para fazer, porque era Lisboa. E fizeram, pronto. Portanto, canalizo o trabalho.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) «Para o suplemento, que tem doze páginas, eu selecciono os livros que achamos mais interessantes para nós falarmos, e esses sabemos quais são. É evidente que entre os "best sellers" há uns que são muito maus e há outros bem feitos enquanto "best sellers". Entre os autores, há autores que são bons, há outros que não são bons. Há uma escolha prévia de tudo o que chega aqui ao jornal. Os editores mandam para cá os livros, há uma escolha prévia para tudo aquilo que vai entrar no suplemento. Depois, esses livros são distribuidos às várias pessoas que escrevem para esse suplemento, e eu escolho aqueles que me interessam mais, como é óbvio, os autores que me interessam mais, que eu gosto mais. (...) É claro que acontece muitas vezes não haver ninguém para escrever sobre um livro que é importante que alguém escreva, e acaba por parar a mim porque eu estou cá. Mas esforço-me sempre por... Eu acho que é mais saudável as pessoas escreverem sobre as coisas que gostam do que estarem a escrever sobre coisas que não se interessam.» (Tereza Coelho, crítica de literatura no Público) Diante do cenário traçado, apesar do espaço da crítica se apresentar na situação constante de uma autonomia ameaçada, sendo, nas condições de produção que lhe são dadas hoje e em Portugal, bastante sensível à interferência de constrangimentos externos e à contaminação da sua doxa pelas lógicas subjacentes aos campos que o interseptam, 128

sente-se nele uma capacidade de gestão desses mesmos constrangimentos e de demarcação de um território próprio bastante demonstrativa da vontade de preservação e até de alargamento da sua autonomia enquanto corpo social específico e especializado. Essa vontade pode ser tanto mais notada quando, ultimamente, temos vindo a assistir a várias tentativas empreendidas por parte de alguns elementos da comunidade crítica no sentido de dotar o seu espaço específico de elementos institucionais que lhes assegurem a regulação do acesso à actividade e o reconhecimento da sua legitimidade a partir do interior do seu próprio campo: o caso mais flagrante é o da criação de associações de críticos interligadas a associações internacionais já existentes, embora também se fale da formulação de um código deontológico próprio e da credibilização institucional de competências específicas. Carlos Porto, membro fundador do movimento associativo da crítica em Portugal, conta-nos em traços muito gerais a história desse movimento, os seus objectivos básicos, as suas actividades fundamentais e as suas dificuldades de acção: «Fiz parte da fundação da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro. Isto começou antes do 25 de Abril, na tentativa de formar uma Associação Portuguesa de Críticos de todas as áreas. A associação estaria dividida em secções - secção se críticos de teatro, de cinema, etc -, e isto foi uma luta antes do 25 de Abril que não se conseguiu. Depois do 25 de Abril então formou-se essa tal associação portuguesa de críticos, em que havia sectores autónomos de crítica de cinema, artes plásticas, teatro, televisão... O que se verificou ao fim de algum tempo foi que só os críticos de teatro é que se reuniam, era a única secção que tinha uma existência. A de cinema começou por ter, mas depois abandonou. A única secção que tinha existência era a de teatro. (...) Tendo nós chegado à conclusão que a nossa área funcionava e as outras áreas não funcionavam, então resolvêmos acabar com a outra associação e fazer a Associação de Críticos de Teatro (iniciativa que acabou por ser seguida nas outras áreas da crítica). Assumi eu a direcção, infelizmente para mim, desde essa altura, desde setente e tal. E quais é que eram os objectivos a que se propunham no início dessa associação? Por um lado, era a defesa dos próprios críticos junto dos orgãos de comunicação em que eles trabalhavam. Chamar a atenção para a necessidade desses orgãos de comunicação apoiarem o trabalho através de espaço, através de condições financeiras melhores do que aquelas que tinham. E por outro lado, defender o exercício da actividade perante os próprios grupos, dar prestígio à função de crítico até que os grupos 129

compreendessem que ser crítico não é propriamente andar aí às beatas. Por outro lado, era defender o teatro, a actividade teatral propriamente dita. Mas tivémos muitas dificuldades. Uma coisa são as nossas ideias, e outra coisa são concretizá-las. Nós queríamos fazer alguma coisa a nível de criação de orgãos, de uma revista ou de um jornal, que nos permitísse, por um lado apoiar o teatro, divulgar o teatro, por outro lado divulgar o nosso próprio trabalho. Mas nunca conseguimos, essas coisas exigem muito dinheiro e uma associação nunca tem muitos membros. Nós ao princípio pensávamos que haveria apoios, mas verificámos que não haviam. Portanto, digamos que a associação tem tido como actividades a atribuição de prémios, a organização do congresso internacional de críticos de teatro, que aliás foi um êxito, veio cá gente de todo o mundo, e os países que vieram cá consideraram que o nosso congresso foi um dos melhores que se fizeram na história da associação.» (Carlos Porto, crítico de teatro no Jornal de Letras e Presidente da secção portuguesa da Associação de Críticos de Teatro) Embora Carlos Porto se refira aqui exclusivamente à associação de críticos de teatro, as características que ele apresenta são, de um modo geral, comuns às demais associações existentes para as artes plásticas, literatura e cinema. Nascidas com o objectivo prioritário de discutir, defender, dignificar e projectar nacional e internacionalmente não apenas a própria actividade crítica, como a actividade realizada na área cultural em que esta intervém, sempre com o intuito da criação de orgãos de difusão especializados para a circulação "livre" do seu discurso ("livre" na medida em que não se veriam sujeitos aos critérios jornalísticos e aos objectivos comerciais da imprensa generalista), o surgimento do movimento associativo na crítica corresponde, objectivamente, à tentativa de demarcar e fechar o seu território específico em relação às pressões exteriores sobre o qual recaiem, chamando para si o poder institucional de lhe conferir o acesso e de auto-legitimar a acção crítica. Tal tentativa viu-se, no entanto, por uma série de factores estruturais e contextuais, gorada. De facto, actualmente, a sua inoperância institucional, a sua parca visibilidade social e a sua descredibilização por parte das novas gerações de críticos, legitimadas como tal pela imprensa e orientadas por valores mais individualistas que associativos, são factores que, inter-relacionados, contribuem para o fracasso do movimento associativo da crítica em Portugal em relação aos seus grandes objectivos. Apesar de 14 dos nossos 21 entrevistados pertencerem efectivamente a este tipo de 130

associações nas suas várias áreas culturais, eles não sentem qualquer tipo de pudor em diminuir o seu valor e a sua ineficácia institucional (excepto os críticos da área do cinema, cuja associação foi fundada apenas há dois anos atrás e que, em rogôr, ainda valorizam positivamente a importância da sua acção), como nos ilustram os seguintes depoimentos: «É membro de alguma associação de crítico? Não. Espere aí, por acaso eu acho que fazia parte. Não sei porque razão nem porque meios, às vezes era chamado para determinadas actividades que tinham a ver com isso da Associação Internacional de Críticos Literários. Que eu não sei exactamente quais são os seus estatutos, nem sei neste momento quem são os seus representantes, nem sei muito bem que actividades é que exerce geralmente, nem sei como é que funciona a nível internacional. Portanto, está a ver que só quando essa associação me pedia para fazer coisas como, por exemplo, um balanço literário, considerava-me membro dessa associação e fazia-me pagar uma quota e tudo. Mas formalmente, não pertenço a nenhuma associação. E em que medida considera essas associações importantes? Associações de Críticos, não temos notícia em Portugal de que alguma tivesse sido importante, ou que tivesse exercido alguma influência onde quer que seja. Do ponto de vista da experiência e da tradição, e mesmo do estado de coisas e do modo como nós vivêmos a literatura, uma associação de críticos não serve para nada. Repare que nem tem um orgão para comunicar com o exterior. Se tivesse, ainda podíamos dizer que o jornal ou a revista ou o que fosse teria algum interesse.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «Filiei-me porque sou uma pessoa de uma grande boa vontade, e não posso esconder que tenho uma utopia, a utopia do diálogo. E acreditei que fazendo parte de uma associação eu poderia: um, dialogar com os outros críticos de um modo profissional actuante, dois, poderia efectivamente fazer alguma coisa por melhorar a crítica em Portugal. Não me pergunte exactamente como, mas eu pensei que sim, que era possível. Mas não, não é possível. Então, é simplesmente por pudor que eu continuo a ser filiada na associação de críticos, para não parecer uma mercenária em relação aos outros. É uma questão de solidariedade. Não é que esteja a fazer nada, ou que faça nada. Mas o facto só de pagar a quota tranquiliza-me a consciência nalgum ponto.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso) 131

«Sou, mas é uma associação que está morta, da qual eu já estou para me despedir à muito tempo. Só que sou preguiçoso. Já tenho dito tão mal dela que não se justifica que continue. Fui porque me convidaram. Convidaram-me porque havia a promessa de uma renovação da AICA, com gente nova. E nessa altura entrou bastante gente. Entrei eu, o António Rodrigues, o Manuel Graça Dias, entrou uma data de gente. Era nessa altura presidente a Sílvia Chicó. Isso foi para aí em 86... E a partir daí acabou.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) Para além da criação de corpos associativos, a constituição de um código deontológico específico para a actividade crítica, assim como a regulamentação e delimitação das suas competências também são projectos apresentados e discutidos em alguns foruns promovidos pela comunidade crítica: a constituição de um código deontológico para o crítico foi proposto pelo romancista e crítico de literatura Mário de Carvalho, aquando da Feira do Livro do Porto em Junho de 199353. João Garção Borges, durante a 3º Semana do Cinema Europeu, iniciativa do Cineclube do Porto em Novembro de 1993, também bradou, por sua vez, «a bandeira da profissionalização dos críticos de cinema, lamentando que muitos daqueles que vêm escrevendo nos jornais e revistas o façam sem qualquer "credencial" para essa tarefa»54. Já Eugénia Vasques, na sua comunicação ao 11º Congresso promovido pela Associação Internacional de Críticos de Teatro, promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian em Setembro de 1990, chamava a atenção para a importância da promoção destas duas acções: «Nem criadores, nem promotores, os actores da crítica de teatro (...) perguntam-se, do interior da solidão da sua tarefa, para que serve o seu esforço. Ou será nosso mister ser o permanente bode expiatório das dificuldades inerentes ao acto de criação? Actividade sem delimitações nem código deontológico, a crítica de teatro debate-se no interior da sua própria perversão.»55 A questão da importância da credencialização da actividade crítica para a sua não apropriação abusiva por parte de agentes menos competentes, foi também alvo de uma comunicação feita por um crítico de teatro americano nesse mesmo Congresso, demonstrando que a valorização de tal problema não é específica do português: 53

Isto segundo uma notícia do Público, saída na edição de 9 de Junho de 1993. Palavras retiradas também de uma outra notícia do Público de 3 de Dezembro de 1993. 55 Cit. in O Teatro e a Interpretação do Real, op. cit., p. 141. 54

132

«Remember that when you say "critic" in the United States, you are talking most often about a journalistic critic, one who writes usually for a newspaper and whose primary function is the criticism of actual productions which readers will consider seeing. Traditions of academic criticism are far less understood in America than elsewhere in the world. Our consumer-oriented population sees critics primarily as useful social directors - guides to which productions are worth seeing and which ones are to be avoided. Over the same 40 years that it took to develop our vast net work of regional theatres, our newspaper editors found themselves scrambling for critics. Professional journalism schools showed little interest in developing the extensive training needed to turn non-arts journalists into knowledgeable arts critics. Indeed, it's immediately evident that a good critic's most important credential - experience in the art - cannot be provide by a journalism degree. The editors themselves were left untrained in who to hire as critics. So sometimes they askeed for volunteers from the news-reporting staff. Sometimes they pressed a sports writer into service. Sometimes a crime reporter. Eventualy, many of those sports writers and crime reporters found themselves covering more theatre than sports or crime - and they indeed up with "Theatre Critic" under their names in the paper. Today, there are no standards of training for an American theatre critic. There are no minimun criteria of knowledge or experience in the art. Do you now our old American saying, "Everybody can be president?" In truth, every boy has much better chance of being a theatre critic.

And so has every girl. The result is, then, that much

of now major, continent-wide dramaturgy of American regional theatre is being interpreted to its regional audience by so-called critics who have very few qualifications for such work. Many of these reviewers are very powerful. (...) Then often are charges from the theatre community of inadequate criticism in the United States. And when those charges are made, the American section of IATC can say nothing inreturn. That is because we are not credential-in body. To become a member of our organization, you heve only to prove that you are writing critiques for a news medium. You do not have to produce any credentials that say you have the expertise to be a critic. Obviously, then, the continued growth of our now-maturing nations dramartugy is in danger of

being limited by our critical community's

immaturity. The blind (critic) can lead the blind (audience member) only so far. Clearly, this can not go on. (...) 133

None of these complex, subtle and demanding forms of theatre can be appreciated by an audience dependent on untrained, unqualified reviewers. And so on, in the American section, we have instituted a new committee to study this problem and to determine whether it is possible and desirable to make the American Theatre Critics Association, as we call our section, an organization of proven critics. We want to know if we can create actual standards and, if so, how we can enforce them.»56 Acerca desta questão específica, tal como acerca da proposta de organizar um código deontológico específico para a actividade crítica, os nossos críticos entrevistados mostram-se bastante reticentes, uns por oposição, outros por desinteresse: apenas cinco demonstraram-se a favor da credenciação institucional da actividade crítica, enquanto 14 mostraram-se manifestamente contra, invocando a sua inviabilidade prática, a sua não necessidade no contexto específico português por haverem mecanismos de legitimação substitutos e eficientes ou dada a condição amadorística em que é exercida, e/ou o facto de tais propostas traduzirem um "espírito corporativo" que poderá vir a comprometer a sua liberdade de acção individual. O mesmo acontece em relação à formulação de um código deontológico, onde, aos argumentos já mencionados, são adicionados o facto de código deontológico dos jornalistas ser suficiente: apenas cinco críticos são a favor, enquanto 15 manifestaram-se contra a sua formulação institucional, apesar de reconhecerem que existe (e deverá existir) um corpo de regras deontológicas que são mais de ordem implícita que explícita mas, apesar de tudo, aplicáveis e aplicadas subtilmente. «Considera importante credenciar legalmente a profissão de crítico, ou seja, regulamentar juridicamente as competências exigidas à profissão de crítico? Nunca tinha pensado nisso, principalmente do ponto de vista jurídico. Por acaso nunca tinha ouvido falar nisso, mas se isso fosse regulamentado no sentido de se exigir um currículo específico antes da pessoa..., isso achava muito bem. Agora qualquer um se põe a escrever nos jornais e a dar opiniões! Sou absolutamente contra isso! Porque acho que de facto é uma coisa que exige responsabilidades. Regulamentada no sentido de censurada, isso de maneira nenhuma.» (Tereza Coelho, crítica de literatura no Público)

56

ANDERSON, Porter, "Amerian theatre most critical limitation: critics", in O Teatro e a 134

«Eu julgo que sim, acho que devia haver por exemplo uma carteira profissional, que é uma coisa que não existe. Acontece que as coisas até hoje sempre se passaram um tanto amadoristicamente, digamos que os críticos são amadores profissionais. Isso dependerá evidentemente, suponho eu, do maior peso ou do maior desenvolvimento que a crítica possa vir a ter. Agora, estar credenciado, acho que sim, que seria útil, até do ponto de vista prático.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de Notícias) «Não, seria impossível. Do mesmo modo que seria impossível ditar qualquer espécie de regras normativas em relação às quais um indivíduo pode ser designado de artista ou de não artista. Exactamente pela mesma razão. Trata-se de um campo que não pode estar sujeito a essa normatividade do direito positivo.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «Considero impossível. Considero que a actividade se desenvolve num mercado livre, e tal como os artistas são artistas e como tal são reconhecidos, por parte da crítica o mecanismo é o mesmo.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso) «No caso português acho que não. Todos nós somos mais ou menos amadores, fazemos isto por amor à arte. Os próprios críticos universitários fazem crítica como decorrência da sua actividade principal, mas não creio que se deva profissionalizar a crítica, embora o Gaspar Simões acho que era um crítico profissional. Mas pelo menos em Portugal, no estado em que as coisas estão, talvez lá fora faça sentido, quando os críticos são altamente pagos para emitirem opiniões nos jornais, podem ser profissionais. Aí acho que sim, toda a profissão tem que ter a sua regulamentação. Agora no caso da crítica portuguesa, eu acho que não vejo assim de momento qualquer vantagem.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras) «Não me parece importante de momento. O crítico em Portugal trabalha hoje como "free lancer", não há umas regras rígidas estabelecidadas, mas a própria imprensa se encarrega de ir limitanto a actividade a pessoas capazes de dizer alguma

Interpretação do Real, op. cit., pp. 19-20. 135

coisa de útil. Em certos casos, há quem não diga coisas úteis e que se limite a escrever umas coisas por aí fora, mas depois compete ao público seleccionar o que lê e o que não lê.» (Francisco Perestrello, crítico de cinema na Capital) «Não, porque isso ía criar uma corporação e a gente já está farta de corporações. Isso impedir-me-ia, por exemplo, um dia que me apetecesse, de escrever sobre literatura, porque eu não a tinha na minha caderneta de crítico. Não acho nada correcto. Acho que deve haver associações de críticos, como há mas não funcionam em Portugal. Acho que a pessoa deve perceber que pertence a um grupo, e que esse grupo tem deveres e direitos. A esse nível sim. Mas o credenciar para exercer, acho negativo.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) «Considera

importante

haver

uma

ética

profissional

legalmente

regulamentada que oriente a actividade do crítico ou acha que a ética deste deverá estar vinculada às suas decisões pessoais? Eu acho que uma pessoa que exerce crítica deve ser suficientemente responsável para saber o que é que é condenável do ponto de vista ético e o que não é condenável do ponto de vista ético. Mas provavelmente, como há muitas pessoas que se calhar não sabem, se calhar era bom que isso estivesse regulamentado. Mas nunca tinha pensado nisso. Mas, de qualquer maneira, acho que a pessoa deve ter princípios éticos, de facto. E isso não é uma coisa que se adquire, é uma coisa de formação, é uma coisa mais ou menos imanente a partir de certa altura. E quem não tem um comportamento ético normalmente, não o vai arranjar assim. E provavelmente não o terá nunca, provavelmente para essas pessoas era importante que isso estivesse regulamentado.» (Tereza Coelho, crítica de Literatura no Público) «Eu não acharia mal que houvesse uma ética, um código deontológico. Era contra a credenciação, mas acho que devia haver um código deontológico do crítico. Porque isso impediria algumas desonestidades que há para aí.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) «Podemos falar da existência de um código deontológico. Não seria nada de rejeitar, mas o código deontológico só poderia ter princípios de ordem muito geral, senão poderíamos cair num excesso em que o crítico estivesse espartilhado, sem liberdade criativa, sem imaginação quase. Cada ser é um ser diferente e quando as 136

coisas são espartilhos muito apertados não se produz bem, não se respira bem, de maneira que é muito importante o modo de ser de cada um, julgar realmente com uma série de princípios que no fundo situem os críticos como criticados.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de Notícias) «Não é possível regulamentar a actividade do crítico. Parece muito mais salutar que haja em todo o momento bons crítico e maus críticos. Criticos que são reconhecidos como sérios e críticos que dão escândalo. Mas isso tudo se julgará na crítica dos críticos, enfim. Porque apesar de tudo, um crítico escreve semanalmente e é semanalmente sujeito às críticas dos leitores, do público, do mundo da arte, e portanto ele não beneficia de nenhuma impunidade nunca. Pelo contrário, ele vê-se permanentemente sujeito à crítica, que vai desde a situação mais directa e mais imediata que é pura e simplesmente ser agredido por um artista que achou que ele escreveu uma coisa que não devia escrever, à dificuldade física de entrar em algumas galerias. Pode ocorrer com algumas pessoas. Quer dizer, há mecanismos de ajuste de contas desse tipo na rua, na prática, semanalmente.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso) «Eu acho que deve haver princípios, mas princípios que sejam naturais. Eu acho que não é necessário existir uma regulamentação do que se deve ou não se deve fazer. Pelo menos até agora a crítica funciona assim, e a meu ver funciona bem, não é necessária qualquer regulamentação. Positivar uma coisa que já existe, não acho que seja necessário. Estes princípios são a formulação de uma opinião e de uma análise de uma forma pessoal e despida de quaisquer intervenções que não sejam de cinema e pessoais, como resultado de uma reflexão.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras) «Eu acho que as coisas muito regulamentadas normalmente dão bota, porque procura-se regulamentar para disciplinar, e quando se disciplina pode-se entrar no abuso de poder. E depois não se fazem as coisas porque está regulamentado, uma coisa que era para harmonizar e não para impôr. Neste momento, no estado actual da crítica literária em Portugal, não vejo necessidade de haver regulamentação desse tipo.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras)

137

«Vamos ser muito pragmáticos: ainda não se pôs o problema em relação aos críticos, portanto ela não existe, portanto não é precisa neste momento. Eu acho que os códigos deontológicos na actividade crítica são perfeitamente «common sence», quer dizer, são aqueles que eu estive a dizer. E eu não estive a descobrir a pólvora, são coisas tão evidentemente óbvias. E topa-se logo quando um artigo é plagiado, quando ele começa a inventar cenas que não estão no filme quer dizer que ele não o viu, quando se sabe que o A dá-se muito mal com o B e aquilo já não está a falar do filme, está a falar de quem o fez, como dizem os americanos "it's personnal!", isso percebe-se logo. E isso qualquer pessoa percebe, sente que há ali um mau estar qualquer. Como é que é? É proibir os críticos de darem-se com os relizadores? É proibir os críticos que se dão mal com os realizadores de escreverem sobre os realizadores? É de senso comum. Pode ser que surjam problemas. No caso da crítica de cinema ainda não surgiu.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público) «Não, penso que isso já está regulado através da legislação para a comunicação social em geral, e como tal já está sujeito à ética e à legislação existente para a comunicação social. O crítico é um comunicador social, como tal deve estar sujeito às regras explicitas e implícitas dos comunicadores sociais em geral, não deve estar sujeito a mais nenhuma regra especial. Evidentemente que depois está é sujeito permanentemente à confrontação disciplinar, ou seja, aquilo que ele diz é avaliado pelos outros, pelos seus pares. Portanto, há uma avaliação inter-pares, mas já no âmbito de uma discussão pública, que permite eventualmente distinguir um bom crítico de um mau crítico. Mas em termos de normas de conduta, acho que aquelas que regem os comunicadores sociais em geral devem servir também para o crítico de arte. (...) Eu acho que deve haver dois tipos de regulamentação: deve haver uma regulamentação geral, uma regulamentação sobre "opinion-makers", sobre a comunicação social em geral, nomeadamente que acautele as situações de «lobbie» e as situações de «insite traiding», ou seja, a utilização de uma posição privilegiada para beneficiar A, B ou C. Mas isso tem que ser uma regulamentação geral, que diga respeito a todos os comunicadores públicos, a que os críticos de arte também se deviam submeter. Depois, deverá haver regras intrínsecas, regras não explicitas mas intrínsecas.» (António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente)

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Mas apesar de bastante contestadas dentro da própria comunidade de críticos (na medida em que o crítico, através das afinidades electivas que objectivamente o ligam ao meio de comunicação em que desenvolve a sua prática, assim como das liberdades que estatutaria ou negociadamente este último lhe concede no seu processo de produção discursiva, ainda vai conseguindo gerir a seu bom sabor a sua actividade dentro do contexto jornalístico), estas propostas, só pelo facto de existirem, são sintomáticas de uma vontade de autodeterminação do seu espaço próprio. Nesta perspectiva, pelo que temos vindo a analisar e a reflectir até aqui, constatamos que embora marcado por múltiplas intersepções com outros campos, o espaço da crítica não se dilui por inteiro entre eles, e é aí, nessa sua especificidade, que reside a pertinência e a potencialidade heurística da aplicação do conceito de campo a esse mesmo espaço social. Apesar da sua sobrevivência ser determinada pela dependência que mantém com o espaço da criação cultural (que lhe fornece o referente), com o espaço da recepção cultural (a quem se dirige prioritariamente) e com o campo dos media (através do qual é difundido o produto discursivo que formula), a partir dele existe um esforço constante de demarcação e de auto-protecção com a finalidade de manter a autonomia relativa das suas fronteiras e do que entre elas existe: um espaço de relações sociais estabelecidas na base de uma doxa própria, em termos de interesses, valores e práticas específicas, estruturalmente segmentado, hierarquizado e conflitual como qualquer outro campo de relações sociais, gerido por um corpo de agentes sociais dotados de uma legitimidade relativamente soberana em razão das competências específicas que lhes são socialmente exigidas e reconhecidas, corpo esse que age como actor social colectivo sempre que a sua legitimidade se encontra em jogo57. E como decorreu o processo histórico de delimitação e estruturação do campo da crítica enquanto corpo social de especialistas em matérias estéticas, socialmente conhecidos e reconhecidos como tal por oposição aos leigos? Em que moldes aconteceu o processo de autonomização deste espaço particular? Que condições estiveram na base da disponibilidade para o surgimento do lugar da crítica no universo das artes e letras, assim como da comunicação social? Que factores lançaram o crítico para a ribalta dos processos de mediação e produção cultural? Num esforço de contextualização histórica

57

Como aconteceu aquando do conhecido «Caso Guerreiro», que moveu toda a comunidade crítica em Portugal quando a sua legitimidade foi posta em causa por um determinado grupo de leitores; para mais 139

do lugar específico socialmente concedido à prática crítica, é justamente o conjunto destas questões que iremos abordar de seguida.

II. DA «PROTO-HISTÓRIA» DA PRÁTICA CRÍTICA

No dizer de Giúlio Carlo Argan, «as obras artísticas foram sempre objecto de juízos de valor e consideradas como componentes de um património cultural que exigia atenções particulares da sociedade e dos seus orgãos representativos», tendo-se desenvolvido em seu redor, desde a Antiguidade Clássica, «uma vasta literatura de carácter diversificado: cronístico ou memorialístico, teórico e preceitual, históricobiográfico, erudito e filológico, interpretativo ou de comentário.»58 Com efeito, apesar dos testemunhos da sua presença serem bastante esporádicos e segmentados nessa época remota, podemos situar os antepassados da prática crítica entre a produção discursiva que já entre os antigos gregos e romanos acontecia em matéria de artes, isto, claro está, se aceitarmos a noção de crítica no seu sentido mais restrito e tradicional, ou seja, enquanto formulação de juízos de valor. Estes apareciam implicitamente formulados nos diversos Tratados e outros escritos que proliferavam entre a cultura greco-romana nos domínios quer da pintura e da escultura, quer das letras, quer ainda da música, onde nos aparecem nomes tão sonantes como os de Platão, Aristóteles ou Pitágoras. O conteúdo crítico contido no interior desses tratados encontra-se associado ao conjunto de conselhos e de preceitos técnicos e temáticos que orientavam cada um pormenores sobre este caso, ver a sua análise no nosso anterior trabalho Dimensões Sociais da Prática Crítica, Lisboa, ISCTE, 1993, pp. 59-73. 58 ARGAN, Arte e Crítica de Arte, Lisboa, Editorial Estampa, 1988, p. 127. 140

daqueles domínios de actividade, conjunto esse que convergia para um princípio comum: o de que toda a arte, fosse ela expressão escrita, pictórica ou escultórica, deveria ter como função primordial a de representar o mais fielmente possível a Natureza, cuja beleza pressupunha-se de ordem trascendental na medida em que reproduzia, ainda que de forma imperfeita, a Beleza superiormente ideal. Qualquer actividade artística teria então como principal objectivo tentar aproximar-se o mais possível à Verdade através da imitação dos objectos, da realidade, a qual seria, por sua vez, a reprodução imperfeita das formas ideais, da Perfeição. Da operacionalização deste princípio básico, que articula a noção arquetípica de Belo (como essência da arte) com a noção de Mimésis (como materialização imperfeita da essência, e imperfeita porque se as artes imitavam os objectos, os quais, por seu turno, imitavam as formas ideais, as primeiras encontravam-se duas vezes mais distantes do verdadeiro conhecimento, eram apenas uma "imitação da imitação"), resultou a valorização da habilidade técnica para imitar como critério de avaliação das obras criadas. Sob o signo da cultura grega, a arte seria então sobretudo tekhné. Nesta perspectiva, os juízos de valor contidos nos referidos tratados tomavam essencialmente a forma de juízos normativos e doutrinários, surgidos da confrontação das normas prescritas com as obras conhecidas. O pensamento crítico incluso nesses tratados manifestava-se então através da função de averiguar se a "regra" de arte se materializava ou não em determinada obra, assim como de determinar o maior ou menor grau de perfeição técnica do artista na materialização da "regra". Esta atitude normativa face à arte, vamos ainda encontrá-la bastante enraizada junto da cultura dos antigos romanos, se bem que o pensamento destes no domínio das artes vá um pouco mais longe que o dos gregos. Isto porque se os diálogos promovidos pelos gregos sobre as noções de Belo e de Mimésis eram mantidos mais ao serviço da própria filosofia do que das artes em geral - que eram grande parte das vezes utilizadas apenas como ponto de partida exemplificativo de pressupostos filosóficos, sendo até depreciada pela sua condição de "imitação da imitação" -, entre os romanos, pelo contrário, tais debates passaram a decorrer mais com o propósito de elucidar acerca da própria arte do que da filosofia. Um dos reflexos mais notórios desse movimento de rotação nos interesses básicos dos discursos e discussões em torno dos temas artísticos de uma dimensão filosófica para uma dimensão que já se aproxima da Estética, é o surgimento da figura do conhecedor de arte, a qual aparece apresentada por Luciano e Calistrato nos seguintes termos: 141

«Uma obra de arte exige um espectador inteligente, para quem o prazer dos olhos não baste para formular um juízo e que saiba também raciocinar sobre aquilo que vê. Um conhecedor é um daqueles homens que, com um delicado sentido artístico, sabe descobrir nas obras de arte todas as belezas que encerram e que, na sua apreciação, não excluem o raciocínio». As palavras de Luciano quando se prenuncia acerca de um quadro de Zênxis, são também ilustrativas do perfil dessa nova figura: «não sou suficientemente conhecedor para poder pronunciar-me sobre as belezas deste quadro: se o artista soube reunir as diferentes partes que constituem uma pintura perfeita, como a correcção do desenho, a verdade da cor, o efeito do relevo e das sombras, a exactidão das proporções e a harmonia geral, cabe aos pintores e àqueles que professam conhecer as regras da arte fazer o seu elogio.»59 Para além de já darem conta de um processo de delegação de autoridade em matéria de arte para um determinado grupo social, constituíndo-o como seu mandatário em nome da detenção de uma competência específica - uma sensibilidade delicada e o conhecimento das regras de arte -, estes testemunhos também revelam a manutenção do princípio grego de fidelidade ao real na sua representação como principal critério de avaliação pictórica. Todavia, muito embora o valor da perfeição técnica da mimése fosse ainda dominante entre os antigos romanos, as vozes de alguns conhecedores já se levantavam na tentativa de a esse valor sobreporem o da faculdade de invenção, fazendo acentuar e valorizar no seu juízo o desvio à "regra da arte" por obra do génio criador.60 A paixão cultivada durante a Antiguidade Clássica pelo diálogo e a escrita sobre as artes, resultando numa restrita mas importante produção discursiva acerca desta temática, veio contudo a tornar-se bastante contida quando chegamos à Idade Média, período caracterizado no plano socio-cultural pelo facto de qualquer actividade humana ser exercida em função da Divina Providência. A prática artística, tal como todas as outras práticas correntes na altura, não deixou assim de ser inevitavelmente condicionada por esse clima de devoção solene e austera que se fazia sentir. Por sujeição à Divindade e indiferença perante o indivíduo, o pensamento medieval reduziu a arte, nas suas mais diversas formas de expressão estética a um mero instrumento

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Cit. in VENTURI, História da Crítica de Arte, Lisboa, Edições 70, 1984, p. 69 e 53. 142

anómimo de exaltação religiosa, atribuindo-lhe as funções de celebração, ilustração, persuasão e educação moral, sempre subordinadas aos textos sagrados. Pelo que falar-se de criatividade do artista nestas circunstâncias significaria, com certeza, correr o risco de ser transformado em cinzas como herético em relação aos dogmas da Santa Madre Igreja, pois Criador havia só um. Tal atmosfera de religiosidade inflamada levou à substituição no pensamento estético medieval, nomeadamente no domínio da pintura e da escultura, do tradicional princípio da imitação pelo princípio da emanação, ainda que continuando a ser valorizado o traço figurativo. Quer isto dizer, como assinala Lionello Venturi, que considerar-se-ia o objecto material belo na medida em que se subordinasse e participasse do pensamento divino, sendo então permitido à arte transcender a natureza apenas enquanto esse afastamente decorresse em direcção à Providência.61 Tudo o resto seria profano e obra do Diabo, por isso desprovido de qualquer valor artístico. Deste modo, o valor artístico do objecto, para além de manter-se intimamente associado às prescrições técnicas tradicionais, passa igualmente a estar vinculado ao dogma geral da Igreja e às suas prescrições morais, para que os seus objectivos de ensinamento e celebração religiosa fossem adequadamente cumpridos.

Neste contexto, a discussão e

a produção discursiva que se fazia em torno das artes durante toda a Idade Média, para além de escassa, desenrolou-se predominantemente sobre a égide de questões teológicas e doutrinárias, sendo deixada ao cuidado de religiosos cujo papel seria o de vigiar constantemente a produção artística e verificar se esta estaria conforme os trâmites ditados pela Igreja, confundindo-se assim juízo estético com juízo moral. Pelo que, para além de alguns esboços de uma estética mistificada, alguns tratados de óptica, alguns reportórios iconográficos com indicação de exemplares a copiar e alguns documentos que incluíam prescrições técnicas, o período medieval nada mais nos oferece que possa constituir por si uma teoria de crítica de arte. No

entanto,

ao

entrarmos

no

Renascimento,

momento-charneira

de

transformações lentas mas persistentes em todos os domínios da sociedade, deparamonos com um amplo recrudescimento do interesse pelas artes e pela produção discursiva sobre as mesmas. A situação que envolve a actividade artística até aqui começa efectivamente a alterar-se a partir dos finais do século XIV, nomeadamente em

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A opinião de Plínio em relação a Timante é, a este propósito, bastante ilustrativa, quando refere que «ele é o único artista cujas obras sugerem sempre mais do que aquilo que está pintado e, embora a arte seja uma súmula, o génio vai para além da própria arte», cit. in VENTURI, op. cit., p. 49. 143

Florença, onde timidamente surgem os primeiros sinais da emergência de uma cultura renascentista: no domínio do conhecimento, desperta a curiosidade pelos mecanismos da lógica da ciência e da razão; no domínio dos valores, o ideal humanista e antropocêntrico insurge-se contra o ideal de humildade e subserviência religiosa; no domínio social, irrompe a consciência do indivíduo dentro do colectivo; no domínio económico, despontam as primeiras formas de um futuro mercado capitalista em oposição ao regime de trocas directas; no domínio político, a noção de cidadania começa a querer impôr-se e anuncia-se a progressiva perca de poder da Igreja neste domínio. É nesta óptica que muitos historiadores fazem corresponder o Renascimento ao tempo mítico das origens da arte e da crítica moderna, na medida em que, de facto, é durante este período que encontramos a congregarem-se as condições culturais, sociais, materiais e políticas que propiciaram o início da autonomia do campo artístico por via da sua intelectualização, dimensão que lhe era totalmente ausente até esse momento. Importa pois compreender como essas condições se reflectiram no âmbito da actividade artística e ver que, mais do que ao nascimento do artista, é o artista na sua qualidade de intelectual que nos é dado a assistir na Renascença, parto esse sempre acompanhado e amparado de perto por uma intensa produção teórica e discursiva, em que a intenção e o conteúdo crítico era implicitamente visível. O facto de em Florença, pelo início do século XV, os artistas terem exigido que os diferenciassem dos simples artesãos, constitui aqui uma etapa decisiva. A reivindicação dessa diferenciação assentou basicamente na apresentação de uma nova definição de arte, que pressupunha o resultado desta actividade não apenas como produto manual, mas sobretudo como produto do espírito. Na base da união da actividade artística a uma consciência teórica está o facto de, nos alvores do Renascimento, se ter iniciado o processo de delimitação e autonomização relativa de um campo intelectual, o qual se reforçou significativamente ao longo de todo este período e se consolidou, mais tarde, durante o Romantismo. Tal processo foi extensível ao âmbito da actividade artística, na medida em que abriu caminho ao alargamento e expansão da discussão teórica e produção discursiva em matéria de arte, sob a forma de tratados, comentários, elogios, biografias e outros escritos. Mas se a liberalização das artes

61

Idem, p. 61. 144

ocorrida durante todo o Renascimento concedeu um amplo espaço à produção de discurso, também a própria produção de discursiva contribuiu em larga escala e reciprocamente para concretização eficaz e duradoura dessa liberalização, constituindo uma das suas condições fundadoras. O campo de acção da prática discursiva foi sendo gradualmente assumido por essa personagem cuja proeminência o Renascimento teve a responsabilidade e privilégio de proporcionar, o intelectual humanista, figura que, por uma série de factores e graças às suas competências específicas (era normalmente dos únicos letrados na Corte), começa a ganhar bastante audibilidade e visibilidade no mundo das artes e letras, alcançando também, por consequência, poder consagrativo e valorativo junto dos agentes que outrora nesse mundo se moviam e sobre o que nele era produzido. Dedicando-se à escrita das primeiras páginas de teoria de arte propriamente dita, os humanistas apresentaram-se então ao mundo como a primeira casta de intelectuais a reclamar privilégios sobre a propriedade teórica, avaliativa e interpretativa das obras produzidas enquanto arte. Nessas páginas argumentavam que para acederem a tal estatuto, as peças produzidas deveriam não apenas ser raras e cada uma igual a si própria, mas também, e sobretudo, possuídas de ideia, noção que pressupõe a intelectualização da prática artística e que, por esta via, prepara e sustém o processo de autonomização social dessa mesma prática, dotando-a de uma dimensão eminentemente cerebral e teórica que lhe permite deixar de ser somente considerada pela sua dimensão pragmática, de mester. A arte deveria dar a pensar e não apenas dar a ver, começando então lentamente a apelar e a dirigir-se mais à compreensão do que à mera sensação. Já nos seus Commentari, Lorenzo Ghiberti (1378-1455) argumentava que a escultura e a pintura materializavam não apenas acto, mas também raciocínio. Os tratados que se lhe seguiram, como os de Piero della Francesca (1410-1492), de Leon Battista Alberti (1404-1472) ou de Leonardo da Vinci (1452-1519), paradigmas fundamentais no enquadramento da arte do século XVI, incorrem igualmente em reflexões cujo objectivo fundamental radicava na defesa da arte como prática intelectual e racionalmente inspirada, legitimando discursivamente o seu desejo de colocar o artista em posição de proximidade com os que, dali em diante, queria fazer reconhecer como seus iguais - não mais os artesãos e os aprendizes, mas os eruditos, os filósofos, os matemáticos, numa palavra, os intelectuais da altura. Com esse fim, eliminaram da sua prática discursiva todo o tipo de preceituário meramente técnico e temático característico dos tratados clássicos e medievais, e trataram de através dela pôr em 145

contacto íntimo a racionalidade da prática científica com o talento da prática artística, fazendo-se valer para isso do princípio da perspectiva geométrica. Com efeito, tal como assinala Nathalie Heinich, numa época em que o racionalismo despontava em grande força e onde a noção de Belas Artes ainda não se encontrava constituída, a ciência, e muito em particular a matemática, pelo seu carácter de racionalidade e de intelectualidade, permitia o enobrecimento das actividades que a empregavam e de quem as exercia. Neste sentido, a adopção da teoria da perspectiva na prática pictórica, unindo a condição de matemático à de pintor, apresentava-se para este último como a estratégia mais eficaz na luta pela liberalização e promoção do seu estatuto.62 Pelo facto da geometria constituir, na altura, o método indicado para representar as coisas tal como são na realidade, sempre norteado por princípios de ordem matemática que supostamente permitiriam representar com o máximo de rigor a disposição e proporção das coisas no espaço, a sua aplicação por parte do artista fazia reconhecer o valor intelectual das suas obras, na medida em que se tornava garantia de que o que nelas aparecesse representado corresponderia à verdade. O signo pictórico ou escultórico era coagulado ao seu referente, e a ilusão da tridimensionalidade perspéctica confundia-se com a ilusão da verdade empírica, na medida em que se acreditava que a prática artística deveria respeitar e traduzir o mais fielmente possível o objecto retratado. Os séculos XV e XVI tornam-se assim berço de uma concepção racionalista e objectivista da arte, concepção essa que permite o regresso do interesse do artista pela natureza, assim como o ressurgimento do princípio de fidelidade à realidade prescrito pelos gregos. Este, todavia, já não é encarado com a ingenuidade empírica com que o haviam considerado os artistas e os teóricos na Antiguidade Clássica, já que a representação do rela não pressupunha apenas simples mimésis, mas a assumpção de um ponto de vista individual controlado pela aplicação de regras que se presumiam "cientificamente" inspiradas. Isto é, concebida como ciência do espaço, a arte e quem a executa reclamava simultaneamente a sua independência face a esse mesmo espaço, aparente paradoxo que se encontra notavelmente resolvido na posição de um Alberti:

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HEINICH, "La Perspective Académique. Peinture et tradition letrée: la réference aux mathématiques dans les théories de l'art au 17º siècle", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 49, Setembro de 1983, pp. 48-70. 146

«Antes de mais, na superfície sobre a qual vou pintar desenho um rectângulo do tamanho que quiser, que é para mim como uma janela aberta, através do qual vejo o tema que escolhi; depois decido o tamanho que vou atribuir às figuras humanas que vou representar (...). Estabeleço então um ponto no interior do rectângulo onde mais me convier e, uma vez que ocupa o espaço onde se cruzam todos os raios, chamar-lheei centro (ponto de fuga). A posição mais adequada para situar este centro é aquela em que a sua distância à base do rectângulo não seja tão grande que crie a ilusão de que o homem a representar no quadro pareça estar no mesmo plano. Após situar o centro, traço rectas a partir dele até às divisões da base do rectângulo. Estas mostram-me de que modo os eixos sucessivos se alteram visualmente até uma distância quase infinita.»63 Nestas circunstâncias, a arte vai-se demitindo das suas funções de culto, instrução e moralização, para assumir o papel de instrumento de conhecimento, cujo objectivo seria a representação científica, fiel e rigorosa da natureza física e humana. Através desta imbrincação entre atitude científica e atitude artística, permitida pela insuficiente separação de saberes decorrente do fraco grau de autonomia relativa que ainda caracterizava a relação entre campo artístico e campo científico no Renascimento, a arte foi enfim reconhecida como um dos ramos do labor intelectual, constituíndo-se como actividade cognitiva e como construção do espírito humano que participa em rigôr e em saber do próprio conhecimento das ciências e da filosofia. Deste modo, deixa daí para a frente de ser apanágio de habilidosos com talento para a imitação para passar a ser atributo dos cultores da busca sobre o mundo e sobre o homem, facto que se encontra bem patente na vida e na obra de alguns dos mais notáveis desse período, como um Piero, um Alberti, ou um Leonardo. Acumulando a tripla condição de cientista, filósofo e artista, que muitas vezes ainda se desmultiplicava por várias áreas quer do domínio científico, como a engenharia, a medicina ou a geografia, quer do domínio artístico, como a pintura, a escultura, a arquitectura, a música e as letras, estes homens perfilam o estatuto de artista na época: um sábio que domina não apenas a técnica, mas também o conhecimento letrado da natureza e do homem disponível na altura, elevando a condição de artista à dignidade social e cultural da do cientista e/ou do filósofo.

63

Cit. in BOORSTIN, Os Criadores. Uma História dos Herois da Imaginação, Lisboa, Círculo de 147

Mas para se compreender mais a fundo o processo de racionalização e de intelectualização em curso no universo das artes durante o Renascimento, importa situálo no âmbito de um processo socio-cultural mais amplo, que diz respeito à progressiva secularização que aconteceu a partir daquela altura. Apesar da Renascença não ter sido propriamente anti-religiosa, o facto é que foi justamente nesse período que despontou e se desenvolveu a perspectiva antropocêntrica, responsável pela substituição de Deus pelo Homem como centro dinâmico do Universo e como medida de todas as coisas, estimulando a relativização do valor religioso num quadro de valores mais pluralista, sem com isso providenciar o seu óbito. Quando integrada e praticada no mundo das artes e letras, a atitude humanista que aquela perspectiva pressupõe fez, de um só golpe, substituir Deus quer pela natureza como finalidade da arte, quer pelo intelecto humano como origem da arte. Nesta medida, na concepção do humanismo renascentista nem a obra de arte emana do Espírito Divino, nem o artista deve subserviência às prerrogativas dogmáticas impostas pela Santa Madre Igreja. Pelo contrário, é ele próprio que quase é elevado à condição de deus, na medida em que passa não só a retratar mas também a fazer conhecer a realidade segundo princípios racionalmente criados e controlados. É neste contexto de laicização progressiva que a actividade artística, ainda que não totalmente evacuada de dimensões que remetem para a religião, passa a assumir para si própria e perante os outros a meta do conhecimento científico, com uma origem puramente intelectual. Simultaneamente, o artista começa a ser encarado como sacerdote e a sua obra como revelação, inaugurando-se o que se pode designar de religião laica da arte. Temos então, em pleno século XVI, o artista a emergir da obscuridade a que tinha sido votado ao longo de toda a Idade Média, adquirindo a sua autonomia em relação ao simples artesão por via da intelectualização e racionalização da sua prática, a cargo dessa figura de múltiplos papeis que é o intelectual-humanista. Com efeito, como vimos até aqui, ao dotar a prática artística de uma consciência teórica que lhe era ausente até aqui, a acção deste último permitiu criar uma verdadeira fronteira simbólica entre arte e ofício, entre produção artística e (re)produção artesanal, fazendo ascender culturalmente ao estatuto de artes liberais as actividades plásticas que antes haviam sido consideradas como mecânicas e proporcionando a separação definitiva entre o artesão

Leitores, 1993, p.365. 148

apenas fazedor e o artista também pensante, personagens que anteriormente caminhavam lado a lado. Este movimento de promoção simbólica das artes plásticas, veio a traduzir-se numa profunda transformação da coerência socio-cultural que anteriormente definia o domínio cultural. Se outrora existia uma relação de harmonia, correspondência e integração entre o domínio das artes e o domínio da cultura popular, com as alterações ocorridas no Renascimento tal harmonia entrou em crise e acabou por desfazer-se, rompendo-se a coerência social e simbólica que os unificava. Em grande parte devido à interferência da figura do intelectual-humanista no empreendimento da sua acção teórico-discursiva, o campo das artes não só iniciou o seu processo de delimitação e autonomização relativa, como as práticas nele desenvolvidas sofreram um amplo movimento de transladação da esfera da pequena tradição para a esfera da grande tradição, passando a ser integradas no domínio da cultura cultivada em detrimento da cultura popular, com tudo o que daí decorreu em termos de privilégios materiais e sociais.64 Para além da promoção e ascensão socio-simbólica da prática artística, o processo de intelectualização e de racionalização encabeçado pelos intelectuaishumanistas renascentistas também não deixou de produzir os seus efeitos sobre o próprio modo de estruturação e de funcionamento do campo de exercício dessa prática, vindo a operar uma profunda transformação nas suas condições de produção e de organização, assim como no modo como nele estavam tradicionalmente estabelecidas as relações entre produtores e consumidores de arte. Começando por este último aspecto, podemos notar que esse processo acarretou uma importante ruptura na relação directa que anteriormente se estabelecia entre a produção e o consumo artístico: se num primeiro momento os elementos desta última dimensão, pela condição social e poder aquisitivo que detinham (eram sobretudo nobres e altos funcionários do clero), estavam em posição de exercer directamente a sua influência sobre a produção, chegando mesmo a decidir sobre o esquema composicional e as cores das obras que encomendavam, num segundo momento, ao serem restringidas as condições de descodificação e de avaliação artísticas a um círculo de "espíritos eleitos", a uma rede de "pessoas de cultura", o poder impositivo que aquelas camadas sociais detinham junto do artista foi esmorecendo e passou a ser mediado pelo poder

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cultural dos intelectuais-humanistas, aos quais atribuíram a função de orientar o seu gosto pessoal e as suas encomendas. Ao proclamarem que a obra de arte consubstancializava não apenas mão mas sobretudo ideia, estes assumiram-se efectivamente como conhecedores privilegiados da linguagem adequada à sua descodificação e avaliação, reivindicando para si a responsabilidade do seu entendimento e juízo de valor, responsabilidade que lhes foi socialmente reconhecida e mandatada. É neste sentido que Maria de Lurdes Lima dos Santos nos diz que, designadamente no domínio da pintura, «o conhecedor lá estava para assegurar uma boa conjunção entre o poder, a riqueza e o saber. Ele era o mediador e o garante de um gosto cultivado regido por um conhecimento especializado, pressupondo, como então se dizia, a "finesse d'esprit" e a inteligência dos princípios da pintura.»65 Nesta perspectiva, verifica-se que o processo de intelectualização do espaço artístico trouxe consigo um processo de depuração a nível social, na medida em que implicou um duplo movimento de exclusão e restrição social dos actos de julgar valorativamente e interpretar esteticamente as obras de arte: exclusão de determinadas camadas sociais da Igreja e da Aristocracia em detrimento da restrição a um agrupamento social particular - os intelectuais. Não significa isto que a proeminência de uma instância intelectual no mundo das artes o tenha livrado de pressões e interferências de instâncias de tipo económicas, políticas ou religiosas, pois apesar de ter aumentado o grau de indepedência do artista na execução do seu trabalho, tais condicionantes externas continuaram a fazer-se sentir. O que sucede é que se antes elas actuavam directamente, agora a sua intervenção passa a fazer-se sob a orientação do intelectualhumanista. Houve como que um processo de confiscação da consagração por parte desta personagem aos nobres e à Igreja, pois se na ausência de um campo intelectual, eram as instâncias que detinham o poder económico, religioso e/ou político que ditavam os valores culturais e estabeleciam os critérios de legitimidade que lhes eram subjacentes, depois daquele se ter dotado das suas próprias instituições e agentes especializados, dispositivos e mecanismos, normas e preceitos, lógicas e valores, constituíndo o seu

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Ver SANTOS, "Questionamento à volta de três noções (a grande cultura, cultura popular e cultura de massas)", in Análise Social, Vol. XXIV (101-102), 1988, pp. 694-698. 65 Idem, p. 700. 150

próprio sistema de legitimidade, foi impôr a sua mediação a todas as pressões externas que se faziam sentir sobre o campo artístico, ao qual se extendeu. Mas para além de ter interceptado as tradicionais relações estabelecidas entre produtores e consumidores de arte, a acção do intelectual-humanista também se reflectiu em termos de divisão social e simbólica do trabalho artístico. Ao dotar a prática artística de uma consciência teórica e intelectual, fez impôr uma nítida dicotomia entre o momento da concepção da obra, dominado pelo engenho do artista, e o seu momento de execução, que embora possa a vir a ser da responsabilidade da mão do artista, admite a colaboração e intervenção directa de outras mãos sob a sua orientação, como as dos seus aprendizes66. É no cerne desta dicotomia que, nas palavras de Teresa Cruz, «a mão transforma-se gradualmente na parte menos nobre do trabalho do artista, a habilidade num dote insuficiente, o esforço num aspecto indesejável. As energias dispendidas na criação são sobretudo energias intelectuais e não físicas. Como dizia já Leonardo, a arte é "cosa mentale". (...) A glória do pintor é inversamente proporcional às gotas de suor (que lhe não devem escorrer da fronte).»67 A valorização de um saber técnico-intelectual em detrimento de um saber técnico-prático que tal dicotomia pressupôs, permitiu ao artista plástico seiscentista a sua progressiva saída da oficina e das organizações corporativas e comunais que tradicionalmente integrava, com a sua consequente fuga gradual aos constrangimentos imperativos que essas formas de organização lhe impunham, ao supervisionarem a vida e o trabalho dos seus membros, as suas convicções religiosas, as suas formas de aprendizagem e os seus contratos com os patronos. Ele passa então, pontualmente, a trabalhar por sua própria conta e risco, lutando contra as amarras em que a tutela senhorial e eclesiástica o enleavam directamente, e a instalar-se em pequenos núcleos informais de sociabilidade erudita e cortesanesca, onde se debatiam calorosamente temas de carácter filosófico-humanista, como todos os relativos às artes e letras, assim como à ciência. É neste contexto que florescem na Itália, durante a segunda metade do século XVI, as primeiras Academias, fenómeno que depressa se generalizou em toda a Europa

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A dicotomia concepção-execução veio também a observar-se mais tarde, em pleno século XVIII, noutras áreas artísticas que não as plásticas, em termos de divisão social do trabalho cultural: na área da música, colocou em planos diferentes o compositor inspirado e o intérprete virtuoso, no teatro fez separar as funções do metteur-em-scéne, hoje o cenógrafo, das do actor, na dança fez aparecer o coreógrafo distinto do bailarino. 67 CRUZ, "A Obra de Arte. Entre dois nomes.", op. cit., p. 113. 151

Ocidental.68 Embora inicialmente fossem de fôro privado, tomando a forma de pequenos círculos eruditos, de clubes ou de salões mundanos e não de aparelhos de formação escolar no sentido de propiciar um treino sistemático e estandardizado de competências específicas, como vieram posteriormente a tornar-se, estes organismos constituíram a plataforma de partida para a inauguração primeiras escolas de arte oficiais. Já em meados do século XVII, aquando do seu reconhecimento oficial em França e na Itália (medida que foi seguida, posteriormente, em toda a Europa), algumas das principais e mais actuantes academias vieram a adquirir um estatuto público, constituíndo-se como o ambiente institucional privilegiado para a produção, reprodução e celebração de modelos culturais e propriamente artísticos. Entregando-se plenamente à transmissão das competências específicas (fundando escolas) e à produção e comunicação interna dos conhecimentos em matéria artística e literária (através das conferências que promovia), esses organismos e os agentes que os integravam monopolizaram para si o poder de intervenção intelectual nestas áreas, e institucionalizaram de uma vez por todas a distância que nelas se vinha a expandir desde longa data entre a linguagem formal das "gentes cultas" e o senso comum dos "leigos". Assim sendo, são eles que, daí para diante, vão estabelecer as regras e arbitrar o jogo que se desenrola nos diversos domínios de actividade artística e literária, confirmando-os e celebrando-os na sua especificidade. Não obstante essa especificidade que vieram a conquistar para cada um dos vários domínios culturais enumerados, as academias, na sua origem, caracterizavam-se por um grau de especialização muito frágil, nelas imperando uma atitude marcadamente diletante e enciclopedista. No seu interior o interesse dividia-se entre temas literários, científicos e propriamente artísticos, na tentativa de alargar o debate cultural em torno da redescoberta da cultura grega em todos os seus domínios, debate tão caro ao primeiro movimento de academistas. Foi neste ambiente profundamente marcado quer pela autoridade paradigmática do modelo estético e literário da Antiga Grécia, quer pelo despontar do racionalismo científico, que ressurgiram as discussões em torno da noção de Belo (arquétipo da tradição clássica que pretendiam recuperar e re-elevar) e do princípio de fidelidade à realidade através da adopção da regra perspéctica. Buscava-se

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Sobre as academias ver HEINICH, "Arts et Sciences à l' Âge Classique. Profissions et instituitions culturelles", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 66/67, Março de 1987, pp. 47-52; e CONDE, O Duplo Écran. 1. Fundações e Legados, Lisboa, ISCTE, 1992, p. 18. 152

a Beleza, estabelecida pelas proporções fixas da harmonia geométrica, doutrina que nos remete para uma concepção de arte como forma de conhecimento do real. Tal concepção recebeu um acolhimento bastante favorável junto da primeira geração de teóricos humanistas frequentadores das academias, na medida em que, como vimos atrás, ao mesmo tempo que satisfazia os seus desejos de racionalidade, assegurava-lhes uma caução intelectual na produção e fruição artísticas, bastante necessária para efeitos da sua liberalização. No entanto, logo que a sua necessidade estratégica no terreno movediço em que se moviam as artes plásticas nessa altura foi superada, ela viu-se progressivamente abandonada. Na base do movimento de contestação em relação à doxa que aquela concepção alicerçava, esteve esse notável do Renascimento que foi o Divino Miguel Ângelo (1475-1564), tendo sido continuado e largamente desenvolvido pela segunda geração de academistas que vieram a fundamentar a tradição Maneirista. Em prejuízo da referência mais "objectivista" que ela fornecia à actividade artística, estes reivindicavam-lhe uma referência mais subjectivista e intimista, na tentativa de lhe proporcionar um modelo de produção, de fruição e de avaliação propriamente estético e, deste modo, avançar mais um passo no seu processo de autonomização. Tal como afirma Idalina Conde, se «os Tratados de Leon Battista Alberti e de Leonardo da Vinci, por exemplo, representam uma atitude codificadora e consagradora do ofício menor em profissão nobre que faz recurso a essa sobreposição de saberes onde a perspectiva científica se funde com a perspectiva artística», na «evolução seguinte os tratados e escritos de arte incluíam cada vez mais os argumentos sobre a autonomia própria arte», contrapondo o génio, a imaginação, a fantasia à perspectiva científica.69 De facto, apesar de ter sido ao longo de todo o século XV até meados do século XVI que se reuniram as condições fundadoras que prepararam a criação de um estatuto e de um lugar social particular para o artista, até aí ele não detinha ainda a consciência de uma total autonomia da sua prática, pois o objectivo que assumia e que lhe atribuíam era, do seu modo peculiar, fazer "ciência". Mas se no âmbito da estética renascentista a liberdade de criação do artista se encontrava ainda circunscrita à importância do conhecimento sobre a natureza, como era pressuposto no cerebralismo científico de um

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CONDE, O Duplo Écran. 2. Artistas..., op. cit., p. 29. 153

Leonardo ou de um Alberti, com o andar dos tempos, as propostas afirmadas pelo jovem Miguel Ângelo começaram a vingar e a arte começou a reivindicar-se do estatuto de belle invenzione, comandada apenas pelo furor interior do artista, ou seja, pelo seu sentimento e/ou estado de agitação emocional. Tal processo teve a sua sequência mais fulgurante sob a égide do Maneirismo (só ultrapassada pela exaltação romântica vivida no século XIX), esse curto espaço de tempo em que o campo das artes se viu profundamente marcado pelo acrescer de tendências estéticas diversas, consequência da tentativa por parte dos seus actores de desenvolverem estilos ou maneiras próprias. A explosão de criatividade daí decorrente fez acentuar em larga escala os sintomas renascentistas que já permitiam dar conta da existência de uma disponibilidade social na atribuição ao artista de um cada vez maior grau de liberdade e de soberaneidade no desenvolvimento da sua actividade. É, portanto, no contexto da tradição maneirista que finalmente assistiremos ao nascimento desse heroi da imaginação que é o Criador70, nova condição de artista que surge em contraposição à do artista-artesão clássico e medieval assim como à do artista-sábio renascentista, e que pressupõe e exige da sua parte as qualidades de excepcionalidade e genialidade. Como profetas do eu soberano que o artista virá a reivindicar com mais força aquando do Romantismo, os maneiristas já se reclamavam efectivamente de competências de tipo personalístico, interiores ao próprio sujeito-criador, que passa a partir de então a ser investido por todos os que o rodeiam de uma certa distintividade e particularismo enquanto pessoa. Deste modo, para além do estatuto de indivíduo, o artista passa também a assumir o estatuto de individualidade, «uma individualidade por ele conquistada ao mesmo tempo que socialmente consentida e solicitada»71. O lugar social que para ele foi anteriormente disponibilizado passa a requerer da sua parte já não o conhecimento das regras estabelecidas que lhe permitem representar o real na sua suposta verdade, mas a singularidade da sua maneira, da sua expressão artística, legitimada pela ideologia da naturalização do talento, que pressupõe a natureza congénita desta propriedade por via divina ou biológica. É nestas circunstâncias que o artista tende a converter-se em ser socialmente insubstituível e o seu lugar social a ser intransmissível.

70 71

BOORSTIN, Os Criadores...,op. cit., 1993. CONDE, O Duplo Écran. 1. Fundações e Legados, op. cit., pp. 5-6. 154

A reverência pelo artista embuído de uma inspiração singular consubstancia-se notoriamente na acentuada transformação que vai acontecendo nos centros de interesse dos comanditários públicos (a Igreja ou a Corte) ou particulares (membros da nobreza ou alta burguesia) nos contratos de encomenda que lhe fazem das obras. Deixando de lhe pedir apenas mestria, perícia ou habilidade técnica na concretização dos temas, figuras e cores que escolhiam e que lhe impunham, passaram também frequentemente a solicitar-lhe originalidade, inspiração, inovação, aumentando-lhes substancialmente o espaço dos possíveis que detinham em termos de tomadas de posição estéticas e criativas, isto porque, tal como refere Idalina Conde, «mais precioso que o "azul marinho" vai-se tornando a composição e expressão» do artista, só garantida pela mão geniosamente conduzida de alguns72. Da situação em que o artista segue as ordens do patrono, passa-se assim lentamente à situação em que o patrono aguarda pacientemente as criações do artista. Outra das evidências que anuncia o processo de singularização social do artista nesta altura é a banalização da prática da assinatura das obras. Se outrora a arte era concebida como uma forma de devoção a Deus, pelo que esta devia-lhe ser humilde, por isso anonimamente, dedicada, já em pleno Renascimento o artista começava a assinar orgulhosamente a sua obra, orgulho profundamente empolado durante o Maneirismo, na medida em que o reconhecimento social e cultural da sua maneira pessoal passou a efectivar-se através da sua existência nominal enquanto criador. Podemos notar, nesta perspectiva, que o acto de nascimento do criador é rigorosamente simultâneo à aparição de uma noção de filiação das obras, pois se o artista, enquanto artesão, era remetido ao anonimato, no seu estatuto de criador ele é sobretudo um nome, essa forma de identidade cultural particularmente privilegiada no campo artístico, já que constitui um traço de distintividade e de singularidade pessoal imprescindível no património simbólico acumulado pelo artista. Assumindo nominalmente, e portanto autoralmente, a paternidade da sua obra, esta terá tantas mais probabilidades de valorização quanto mais consagrada fôr a assinatura do seu pai-criador. A reivindicação e aceitação do artista como indivíduo singular, fundada na tomada de consciência social e na convicção subjectiva de que é dotado de uma vocação rara e inata, inalienável pela erudição, surge na sequência do processo de secularização e de incorporação dos princípios do humanismo renascentista nas esfera das artes e

72

Idem, p.20. 155

letras. Ao possibilitar a gradual recolocação dos destinos da ordem terrena nas mãos do Homem, libertando-o progressivamente do controlo exercido em nome do Pai característico da Idade Média, esse processo faz de facto irromper uma dinâmica de individualização social que, como assinala Idalina Conde, longe de irromper transsocialmente, surge e irradia de forma lenta justamente entre os círculos que englobam a aristocracia tradicional, a alta burguesia emergente e os meios artístico-literários, ou seja, entre as categorias mais intelectualizadas na época73. Mas para além da proeminência dos valores individualistas, outros factores contribuiram de forma eficaz para o despontar do sentimento social da singularidade do artista por esta altura. Por um lado, não podemos esquecer que foi durante o século XVI que se iniciou, ainda insipientemente, a formação do sistema de produção capitalista, fenómeno que não deixou de exercer uma certa pressão para a individualização, nomeadamente no campo artístico. Com a invenção do jogo de mercado e a introdução dos princípios da livre-concorrência também nesse campo específico, a lógica e o funcionamento das relações de venda nele estabelecidas vieram a permutar-se gradualmente: em vez de ser a procura a comandar directamente a oferta, como acontecia anteriormente com os tradicionais contratos de encomenda, o artista começou progressivamente a produzir independentemente e por contra própria, fora das corporações e das confrarias, com o propósito principal de vender a sua obra, tentando ele próprio controlar pelas suas mãos a procura da sua oferta (se bem que, convenhamos, o artista tivesse de integrar sempre na sua produção, para que se vendêsse, determinados elementos adaptados aos gostos de determinados segmentos do mercado). Com a transformação das condições de trabalho do artista e com o início do processo de mercantilização da sua produção, foi possível para a arte tornar-se não apenas objecto de uso - como objecto de decoração ou de instrução para a Igreja, ou ainda de conhecimento para a ciência -, mas também objecto de troca, mercadoria passível de ser integrada no jogo livre do mercado, criando-se assim as condições económicas favoráveis ao estabelecimento do artista como individualidade, já que para vender mais e adquirir maior valor, a obra do artista deveria ser o mais possível igual a si própria. O valor da obra no mercado tornou-se então, nestes primeiros tempos, extremamente ligado à noção de autenticidade, noção que nos sugere a originalidade e

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Ibidem, p.9. 156

raridade da sua obra e nos reenvia para a existência nominal do artista como criador. O seu estatuto de individualidade é simbolicamente transferido para a obra que produz, que é autenticada pela sua assinatura. Não alheio a este fenómeno está ainda o facto de ter sido durante esta época que emerge uma nova categoria social - a burguesia - enquanto classe para si, na acepção marxista do termo, formada por um conjunto de banqueiros e mercadores dotados de um substancial poder aquisitivo e com a necessidade de demonstrar simbolicamente esse poder às restantes categorias existentes, na tentativa de demarcar o seu lugar no espaço social. Neste contexto, tal como assinala Idalina Conde, a arte e a cultura em geral «são directamente convocadas a participar nas lutas pelo poder e o seu desenvolvimento está ligado à função simbolicamente relevante que cumprem como epígrafe pública do poder, ajudando na marcação de territórios e imputação de grandeza dos senhores»74. Ora, uma das estratégias de enobrecimento accionadas por essa nova classe com a finalidade de mais rapidamente se aproximar da civilidade cortesanesca foi, justamente, a de investir parte do seu capital económico em obras consideradas artísticas e/ou na protecção mecenática a artistas, nomeadamente àqueles que fossem o mais iguais a si próprios possível, ampliando e diversificando consideravelmente a sua procura.75 Pelas circunstâncias históricas que o proporcionaram e o rodearam, o Maneirismo torna-se assim num dos momentos áureos do lento processo de criação social dos criadores que havia tido o seu período de incubação no Renascimento, com um Alberti a proclamar a importância do ponto de vista individual do pintor ao considerá-lo como uma janela aberta através da qual visualiza o que pinta, e com um Leonardo a prescrever que «o pintor deve estar só. (...) Se eu estiver sozinho, sou eu próprio, mas, se acompanhado, nem que seja por um só companheiro, sou apenas metade de mim.»76 Mas se efectivamente a arte era ainda vivida por estes homens em constante coordenação com a linguagem das ciências, numa tentativa de recriar fielmente o mundo a partir das formas e sensações que ele oferece, com Miguel Ângelo e os maneiristas aquela actividade emancipa-se totalmente do domínio científico e vai tentar encontrar os seus misteriosos recursos no espaço íntimo e pessoal de quem a pratica. 74

Ibidem, p. 27. Foi a partir desta altura que começaram a surgir as primeiras grandes colecções particulares de arte entre famílias burguesas abastadas, como a dos Médici por exemplo, prática cultural essa conspicuamente investida. 76 Cit. in BOORSTIN, Os Criadores..., op. cit., pp. 366 e 370-371. 75

157

Numa época em que a pintura e a escultura já haviam ultrapassado totalmente a barreira das artes mecânicas e ganho o estatuto de artes liberais, a referência à ciência tornava-se dispensável na luta para assegurar esse mesmo estatuto. Aliás, como faz notar Nathalie Heinich, a dependência do princípio da perspectiva geométrica foi a partir de então assumida como social e culturalmente disqualificante, na medida em que ao mesmo tempo que passou a ser considerado como princípio de subserviência da imaginação do artista à estrita observância de regras matemáticas, incentivava a pretensão de não praticantes em legislar em matéria de artes, ameaçando assim o movimento de autonomização que se vinha a desenvolver lentamente sobre este domínio.77 Por outro lado, com os homens de ciência a começarem a definir e a tentar estabelecer o método experimental como única abordagem objectiva da natureza tendência que veio a ser encabeçada por Galileu Galilei (1564-1642) e a atingir o seu auge por volta de 1680 na célebre querela entre Antigos e Modernos, conflito que ocasionou a posterior cisão entre as academias de ciências e as academias propriamente artísticas e literárias -, a doutrina da arte como conhecimento mais próximo da natureza foi inevitavelmente perdendo terreno, até se tornar mesmo desadequada neste domínio. Redefiniram-se fronteiras entre as actividades e as linguagens ditas culturais e científicas e a especialização impôs-se. Enquanto a ciência se tornava cada vez mais expressão objectiva do mundo exterior através de conceitos, a arte, por sua vez, convertia-se em acto nobre de expressão subjectiva, expressão estética de sentimentos e emoções interiores do indivíduo. Foi neste contexto que progrediu no domínio das artes, como atrás constatámos, um amplo movimento de reacção anti-perspéctica, em nome da emoção, da sensação, da inspiração e da capacidade de invenção e de criação do artista, o que, no plano cultural, se traduziu no acrescer do valor estético do lado da "fantasia" relativamente à "imitação", enquanto que no plano social, constituíu manifestamente uma estratégia de defesa e alargamento da autonomia do campo artístico. Passando a obedecer não a regras geométricas e objectivas, mas sobretudo à expressão subjectiva do artista, a representação do mundo exterior ou até transcendental empreendida pela arte ultrapassa o princípio de fidelidade à natureza a que se encontrava ancorada, vendo-se assim cada vez mais voltada sobre si própria.

77

HEINICH, "La Perspective Académique...", op. cit., pp. 61-65. 158

Despoja-se de todas as suas finalidades não artísticas e valores utilitários, de decoração das igrejas, de instrução moral e religiosa, e inclusivé de meio cognoscitivo do real, com um valor meramente descritivo e informativo, quase documental, para pretender assumir um valor puramente simbólico, alicerçado na expressão do artista. De conhecimento-sobre-o-mundo propõe-se passar a comportamento-perante-o-mundo, de retrato da realidade propõe-se transformar em reacção expressiva face à realidade. Já não quer limitar-se a reproduzir a realidade, mas transforma-se ela própria cada vez mais em realidade. A arte começa-se então a fazer a partir da arte para alcançar ainda a arte. É a génese do princípio da arte pela arte a querer impôr-se, ou seja, da ilusão do artista a trabalhar isoladamente e para si próprio na sua torre de marfim, intocado e intocável por propósitos que não os artísticos, representação de algum modo responsável pelo surgimento do mito, ainda hoje bastante arreigado socialmente, de que existe uma separação de facto entre o mundo dos artistas e o conjunto da sociedade, sendo essa suposta separação interpretada (por todos, artistas e não artistas) em termos de exclusão social.78 Tendência difundida nesta altura, embora sem consequências relevantes no movimento emancipatório que se desenrolava, foi a tentativa empreendida por parte da Igreja em fazer ressurgir a concepção moralista da arte como forma privilegiada de aproximação e culto ao Divino, como forma de cativar e educar os fieis segundo os seus preceitos. Esta tentativa desesperada de conservar o monopólio na definição da legitimidade cultural que rapidamente lhe ía fugindo das mãos, aparece enquadrada num contexto profundamente marcado pelo movimento de Contra-Reforma encabeçado pelo Catolicismo, e sucede na sequência das normas culturais prescritas pelo Concílio de Trento (1542-1563). Tentando obrigar as artes à obediência de determinados princípios de autoridade e, deste modo, controlar os possíveis efeitos perversos e socialmente desestabilizadores decorrentes do movimento de libertação e autonomização que percorria esse domínio na altura, a Igreja preocupou-se em "moralizá-la", sugerindo que as liberdades temáticas e poéticas que se íam desenvolvendo a nível das obras 78

Esse mito foi levado de tal maneira até às últimas consequências pelos movimentos românticos e pósromânticos, que de certa forma concorreu para uma real e efectiva marginalização do artista dentro do espaço social, fenómeno que não deixa de assumir um certo carácer voluntário por parte do criador, uma certa auto-marginalização. Nessas condições, apesar de simbolicamente dignificante e, a priori, esteticamente vantagoso, tal processo produziu também, em última análise, alguns efeitos perversos, nomeadamente a nível das suas condições materiais de existência, principalmente dos artistas menos consagrados e com menos visibilidade social. A pobreza e o sofrimento, características associadas ao modo de vida dos artistas românticos, ainda que por eles reivindicadas e subjectivamente investidas como culturalmente nobres, são sobretudo produto das suas precárias condições objectivas de existência. 159

produzidas não incorressem em "erros" que, pecaminosamente, fossem contra os seus dogmas ou de alguma forma os comprometessem. Mas longe íam os tempos em que a Igreja, enquanto principal patrono dos artistas, conseguia exercer sobre estes um controle apertado. A procura da arte diversificava-se e a missão da estabelecer critérios de legitimidade cultural e de, através destes, definir o valor artístico das obras cabia cada vez mais aos intelectuais que, cultivando valores de índole humanista, se encontravam pouco sensibilizados para as preocupações puritanistas da Igreja. Por isso estas pouco ou nada se reflectiram nos empreendimentos discursivos que, na época, eram desenvolvidos sobre a arte. Os humanistas encontravam-se sobretudo concentrados em fundamentar a arte enquanto atitude expressiva do artista perante o mundo, amparando de perto a sua progressiva conquista de liberdade e motivando-o a auxiliar-se das suas próprias qualidades subjectivas em detrimento da exclusiva aplicação de regras matemáticas e geométricas no exercício da sua prática, concorrendo decisivamente, através da sua acção discursiva e das novas modalidades com que esta se impunha, na legitimação da lógica da singularidade e da individualidade emergente no campo artístico. Com efeito, justamente porque muitos dos intelectuais responsáveis pela escrita em matéria de artes acumulavam simultaneamente a condição de artistas ou viviam em comunhão próxima com estes, faziam acreditar e reconhecer como natural essa lógica, reproduzindo de forma mais ou menos sofisticada ou complexa nas linhas e entrelinhas dos seus discursos e nos seus argumentos apologéticos, os princípios fundadores em que tal lógica se alicerçava, ou seja, o princípio da operância do dom, o princípio da insubstitualidade dos "verdadeiros" criadores e o princípio da intransmissibilidade do seu lugar social. Um dos principais tipos de discurso que mais contribuiu na legitimação dessa lógica e que se desenvolveu exactamente durante o Maneirismo foi o discurso biográfico.79 O relato das Vidas, que até então era só possível para patronos ilustres, herois e figuras sagradas ou míticas, passa de facto também a ser largamente produzido sobre artistas, revelando que quando estes deixaram de ser meros artífices, as suas vidas tornaram-se alvo de curiosidade e de interesse público, e por isso dignas de crónica escrita. Com o objectivo de definir e descrever as trajectórias e as personalidades dos artistas seleccionados, a par do modo como estas se reflectem na sua maneira pessoal, o

79

Ver CONDE, O Duplo Écran. 1. Fundações e Legados, op. cit., pp. 71-99. 160

discurso biográfico converte-se então num instrumento primordial na construção do artista em individualidade singular, permitindo distinguir aquele eu do colectivo que o tende a encobrir. Já no século XV encontramos esta prática desenvolvida por Lorenzo Ghiberti (1378-1455), nas suas Vite degli artisti, onde ele apresenta a vida e a obra daqueles que conhece e que mais admira como pintores e escultores do século XIV. Mas este tipo de discurso só proliferou realmente na segunda metade do século XVI, com o nome de Giorgio Vasari (1511-1574) a coroá-lo.

Discípulo e amigo de Miguel Ângelo, ao

qual dedicou um extenso relato da sua vida e obra em tom elogioso no final da sua preciosa colectânea Vida dos mais excelentes pintores, escultores e arquitectos italianos, publicada pela primeira vez em 1550, foi este homem que pela primeira vez nos apresentou discursivamente a fórmula do artista moderno como eu soberano. Nos seus argumentos, as virtudes do geometrismo e da regra perspéctica são substituídas pelas virtudes impalpáveis e misteriosas do génio-criador, esse indivíduo de excepção que não se limita a deter a capacidade de assimilar e reproduzir as regras da arte graças ao trabalho e ao estudo, mas que inventa, fantasia, cria graças ao talento de que é dotado, inflectindo a estratégia de liberalização das artes de uma perspectiva cientifista, que exacerbava o intelectualismo estético, para uma perspectiva mais poética, mais literária, que exaltava a expressividade artística. Esta inflexão de valores é fielmente seguida e reproduzida pela segunda geração de intelectuais academistas, que cessam de vez, a partir de finais do século XVII, de ocupar os seus escritos com a problemática da perspectiva. Tomando plena consciência da metodologia e da linguagem da arte como distinta das da ciência, o humanista refugia-se então na apreciação da obra pelo prazer sensível e deleite intelectual que essa lhe proporciona, estando aqui a "intelectualidade" da arte já não relacionada com o seu suposto carácter racional e científico, mas com o seu carácter expressivo e genial. É justamente com esta tomada de consciência que a inteligentsia se segmenta e que o intelectual de ciência, discípulo da experiência objectiva e empírica, e o intelectual da arte, agora adepto da experiência subjectiva e intimista, figuras que anteriormente obedeciam ao mesmo tipo de controles matematizados, se separam, divórcio que disponibiliza o espaço de manobra necessário para a entrada em cena da figura do crítico no palco das artes. Esse divórcio consubstancializa-se institucionalmente na separação oficial entre as academias em que prevalece o interesse pelas matérias propriamente científicas, e aquelas em que 161

prevalece o interesse pelas artes e letras, interesse esse que, muitas vezes, também toma a forma de uma abordagem estética e crítica supostamente científica.80 No cerne destas instituições - com o intelectual da arte a reivindicar para si o privilégio da detenção do "bom gosto", de um saber específico às artes e de uma sensibilidade estética apurada, competências que vêm orientar o seu julgamento de valor contra o exame preciso da técnica e da regra perspéctica -, a averiguação do carácter artístico da obra produzida deixa de se basear numa atitude matematizada, e passa a ter como referência uma cultura livresca, que incentiva uma atitude diletante, estetizante e/ou historicista. O juízo de valor deixa de ser ponderado mediante a conformidade geométrica com o real, ou seja, a "objectividade" da obra, e torna-se fundamentalmente juízo histórico e de gosto (que se supõe "requintado" e informado e, por isso, privilegiado), formulado sobre uma contextualização estética sincrónica e/ou diacrónica da originalidade e inovação da expressão do seu criador. A actividade discursiva começa então, em finais do século XVII, a literaturizarse, proliferando a par das biografias dos artistas, testemunhos escritos das reacções emocionais e das experiências estéticas partilhadas pelos conhecedores e entendidos em arte face a determinadas obras e/ou artistas seus contemporâneos ou antepassados. Mais do que tratados que pretendem ditar leis e estabelecer princípios normativos, esses comentários consistem em testemunhos discursivos que contêm opiniões especulativas e/ou discussões estéticas baseadas numa perspectiva subjectiva, histórica e/ou filosófica das artes, fornecendo assim o modelo para uma fruição artística que permite gozar, avaliar e interpretar a obra apenas enquanto arte, ou seja, enquanto concretização do furor de um génio-criador, e já não enquanto ensinamento moral, acto devocional ou configuração representativa e matematicamente orientada de coisas ou acontecimentos. Perfila-se assim um tipo específico de literatura sobre arte que cada vez mais se aproxima da Crítica como forma de discurso especializado tal como o conhecêmos hoje, sem contudo ainda a materializar plenamente como tal. Esta só vem realmente a emergir enquanto modalidade particular de actividade discursiva, disciplina teórica autónoma e prática profissional especializada, numa época relativamente recente, nas vésperas da Idade Moderna e do seio da cultura característica das sociedades capitalistas. Até aí apareceu efectivamente sempre diluída e subsumida nas várias formas de acção

80

É neste ambiente que surge pela mão de Colbert a Academia Real de Belas Artes de França em 1648, à que vem juntar-se cerca de vinte anos mais tarde a Academia Real de Belas Artes de Paris em Roma, 162

discursiva que foram sendo disponibilizadas ao longo do tempo em matéria de artes e letras, e que eram apanágio dos intelectuais-humanistas academistas nascidos da Renascença. E assim se conservou até meados do século XVIII, altura em que o próprio saber teórico específico às artes se segmentou e em que, por essa via, se passou a escrever História de Arte em vez de vidas de artistas, em que a Estética surgiu como área especializada do conhecimento filosófico dedicada às questões artísticas, e em que a apreciação e interpretação das obras apresentadas como arte ficou a cargo dessa disciplina autónoma a que se convencionou chamar de Crítica.

III. DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PRÁTICA CRÍTICA

3.1. O ILUMINISMO E A AUTOMIZAÇÃO DOS SABERES-PARA-AARTE Situámos no ponto anterior os antepassados da prática crítica em épocas remotas da Antiguidade Clássica e do Renascimento, onde aparecia implicitamente contida na acção discursiva e intelectualizante de personagens como o conhecedor de arte e o intelectual-humanista, proto-exemplares da figura moderna do crítico, sem ainda, contudo, a assumirem na sua especificidade. Com efeito, os vários tipos de literatura sobre artes que até aí eram produzidos incorporavam em si mesmos, de uma maneira ou de outra, intenções e conteúdos de ordem crítica, patentes no tom de enaltecimento ou de depreciação com que eram tratados os artistas tomados como objecto de discurso, instituições oficiais que, separadas das suas homólogas Academias de Ciências, nasceram com o 163

assim como nas descrições, juízos de valor e considerações estéticas e técnicas formuladas em torno das suas respectivas obras. A própria selecção dos artistas e obras sobre quem ou que dissertar já pressupõe um juízo crítico por parte do comentador. Mas se desde a Antiguidade Clássica as oportunidades de fazer crítica se encontravam circunscritas a formas discursivas como os Tratados, as Vidas ou os Comentários, o século XVIII proporcionou a emergência e o desenvolvimento de um discurso propriamente crítico, relativamente autonomizado de outras formas do saber e do escrever sobre artes que vieram também a reclamar a sua independência disciplinar por essa altura. O surgimento da crítica enquanto disciplina autónoma, discurso específico e prática especializada, decorreu no contexto de um processo de fragmentação e racionalização dos saberes próprios do campo das artes, processo esse que engendrou neste espaço a organização de corpus discursivos e disciplinares distintos, institucionalizados, legitimados e difundidos separadamente segundo princípios metodológicos e objectivos teórico-práticos diferentes. É de facto em meados do século XVIII que, pela primeira vez, a História de Arte é concebida de modo realmente independente das vidas dos artistas (que começam a partir daqui o seu trajecto declinante), ganhando rapidamente direitos de pesquisa e de saber erudito, mais iconográfico e iconológico do que propriamente biográfico, sobre as obras de artistas do passado. No domínio da Filosofia, é reconhecida a autonomia e a particularidade da prática artística, sendo criada no seu interior uma área especializada na sua discussão, a Estética, fundamentalmente preocupada em reflectir sobre o conceito de arte em si, na sua essência, e de justificar a sua suposta realidade ontológica. E, finalmente, o simples comentário fez-se substituir pela Crítica que, tendo recorrido aos vários tipos de numenclaturas técnicas e teóricas disponíveis sobre arte, entre as quais as produzidas nas áreas disciplinares precedentes, dotou-se de instrumentos conceptuais e metodológicos próprios que lhe fundamentaram e proporcionaram o crescente monopólio da legitimidade na definição das categorias e critérios subjacentes à apreciação, classificação e interpretação dos bens simbólicos que, no insapiente mercado da época, eram apresentados como artísticos. Em contraste com a Estética, coube-lhe reflectir sobre a experiência da obra concreta e não sobre uma suposta idealidade da noção de arte. Simultaneamente, distanciava-se da História de

propósito de oferecer aos artistas o meio apropriado de "former le goût et la manière". 164

Arte na medida em que tendia a debruçar-se fundamentalmente (mas não inevitavelmente) sobre a produção artística que lhe era actual, aventurando-se à avaliação e compreensão imediata da obra acabada de sair das mãos do artista. Ora, o processo de institucionalização da prática crítica no campo das artes, processo que concorreu significativamente para a consolidação do movimento de delimitação e autonomização que progredia nesse campo, tendo tido a sua génese em Inglaterra, depressa se estendeu a toda a Europa, com principal incidência na França e na Alemanha, resultado da necessidade premente de proteger os diversos (e florescentes) mercados artísticos locais da invasão dos falsos, das cópias e dos refugos provenientes, na sua maioria, de Itália81. Essa preocupação proteccionista verificou-se, nomeadamente, num domínio cultural cujo mercado cedo atingiu proporções de vulto, ou seja, no domínio da pintura, no qual, tal como afirma Maria de Lurdes Lima dos Santos, «a destrinça entre autores prestigiados e autores desconhecidos ou anónimos, entre originais e cópias, apareceu já na segunda metade do século XVIII como preocupação dominante nos catálogos de vendas para os coleccionadores»82. Tornavase, pois, necessária a constituição de um corpo de especialistas dotados de um saber específico capaz de reconhecer a autenticidade e a qualidade das obras que íam sendo publicamente apresentadas como artísticas. Mas a proeminência de uma prática crítica especializada em meados do século XVIII, também se encontra intimamente associada ao próprio enquadramento cultural que lhe serviu de pano-de-fundo, profundamente marcado quer pela expansão dos valores individualistas e, por esta via, da preocupação com a propriedade privada (nomeadamente com a propriedade artística), quer pelo Iluminismo Setecentista, cujo programa cultivava com acérrimo empenho a crença no perfeito e ilimitado poder da Razão. Esta fé incondicional na razão como única via para a "liberalização do Homem" foi, em grande parte, resultante da progressiva consolidação e generalização da ciência experimental que havia emergido no século anterior, depois de solucionados os principais problemas com que se defrontava. Transferida para o espaço da intelectualidade que rodeava as artes e letras, tal fé consubstancializou-se na ambição de criar uma "comunidade de razão iluminada" contra a arbitrariedade despótica da mera opinião aristocrática e diletante que tendia a imperar anteriormente entre os comentaristas. Deste modo, enfatizando a razão como

81

ARGAN, Arte e Crítica de Arte, op. cit., p. 133. 165

fundamento da crítica de arte e tentando que esta se assumisse como zona de saber isento, estabelecendo para isso protocolos com outras zonas do saber sobre artes que se pressupunham racionalmente controlados (como as recém nascidas Estética e História de Arte), a cultura iluminista inadvertidamente encorajou a convicção de que nenhum leigo seria qualificado para chegar a um julgamento e a uma interpretação válida sobre obra de arte, fazendo então nascer a figura do crítico e institucionalizando o dissídio entre aqueles que entendem a arte e aqueles que não a entendem. Por outro lado, recusando qualquer tipo de dogmatismo, o programa iluminista para as artes e letras negava perentoriamente o valor das teorias de tradição renascentista baseadas na noção de Belo clássico, assim como, por consequência, a autoridade paradigmática do modelo estético da antiga Grécia. A obra de arte passou então a ser definitivamente apreciada e valorizada, dentro daquelas "comunidades iluminadas", já não em função da sua conformidade em relação às regras de um ideal formal dado, mas a partir da sua originalidade e autenticidade, indicadores da sua qualidade, cuja presença ou ausência seria deduzida racional e objectivamente a partir do contexto em que a obra em causa foi produzida ou da personalidade que a produziu. O que equivale a dizer que os conceitos de originalidade e autenticidade tomaram definifivamente o lugar da noção de Beleza na definição do valor e qualidade artística de qualquer bem cultural (permanecendo ainda hoje como conceitos operatórios fundamentais na prática e no discurso crítico), verificando-se a presença dessas características numa obra de arte através da sua análise comparativa, sincrónica e diacrónica, com outras suas congéneres, ou seja, inserindo-a na situação da produção artística que a precede e que a rodeia. O juízo crítico deixou então de se apoiar num ideal de beleza para passar a fundamentar-se num critério histórico de verdadefalsidade, baseado na inserção da obra na coerência estética de uma trajectória individual e/ou de uma conjuntura artística. Já Dubos (1670-1742) nas suas Reflexões Críticas sobre a poesia e a pintura, e Diderot (1713-1784) na sua Encyclopédie, insistiam bastante na necessidade da arte e da literatura comunicarem o impulso e a expressão do génio, em detrimento da conformidade a arquétipos desactualizados, procedendo à avaliação das obras produzidas nesses domínios tendo em conta os critérios estebelecidos no desenvolvimento da sua própria história interna. E se a arte era uma questão de

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SANTOS, "Questionamento à volta de três noções...", op.cit., p. 700. 166

sentimento, sendo avaliada em relação a trâmites propriamente artísticos, enfatizavam também que somente àqueles que a conheciam na sua dimensão histórica e que, simultaneamente, possuíssem uma sensibilidade estética apurada, um "bom-gosto" requintado e um "bom-senso" razoável, cabia o exercício de julgá-la e compreendê-la, ou seja, apenas os dotados de determinadas competências culturais e capacidades intelectuais e sensitivas específicas estariam em condições de desempenhar a actividade crítica. O exercício desta encontrava-se circunscrito ao espaço das academias, que desde o século XVII constituíam o principal espaço de incentivo às pesquisas e discussões sobre artes e literatura, fazendo editar sob a sua alçada, nomeadamente as mais prestigiadas e activas, biografias, tratados ou comentários sobre a produção artística ou literária contemporânea ou do passado. Todavia, em meados do século XVIII, a crítica, ainda dentro do espaço académico, foi encontrar as suas oportunidades de difusão concretas sob a forma quer de monografias ou de ensaios sobre um determinado conjunto de obras ou da produção de certo grupo de artistas associado a esse espaço específico, quer de prefácios de catálogos ou de anuários das exposições de arte que nessa altura começaram a ser organizadas dentro do espaço académico, quer ainda de crónicas ou de "prestações de conta" nos poucos periódicos também editados nesse mesmo espaço. A par das instâncias formais de legitimação e consagração das artes e letras do tipo das academias, como as de Belas Artes e as Arcádias (específicas da literatura), onde se privilegiava a investigação pura ou aplicada, orientada para estudos mais sérios e mais profundos desenvolvidos a nível filosófico, historiográfico ou analítico, popularam durante o século XVIII outro tipo de instâncias mais informais, em que a tónica mundana e lúdica imperava, mas onde também se organizavam frequentemente sessões de crítica e de auto-crítica. Destas destaca-se o caso dos Salões, reuniões de carácter privado ou semi-público, promovidas quer por sociedades culturais e estabelecimentos de ensino paralelos ou afins às academias, quer por mecenas particulares, onde para além da prática de diversas actividades artísticas (como recitais de poesia e de música, pequenas mostras ou mesmo exposições de arte, etc), se faziam também palestras e sessões de esclarecimento e de debate com intenções didácticocivilizadoras, onde a acção discursiva do crítico, aqui ainda muito ao estilo diletante e

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especulativo, tinha lugar de destaque83. Muitas destas instâncias detinham também publicações próprias, onde faziam publicar os discursos enunciados nessas palestras, assim como outras crónicas críticas sobre eventos do mundo das artes e letras em geral84. É então no âmbito da multiplicação destes espaços e das oportunidades discursivas que eles possibilitaram que a prática crítica se encontrou na sua especificidade, emergindo a figura do crítico no sentido especializado do termo. Já não se trata de inserir juízos e opiniões entre as biografias dos artistas ou nas entrelinhas dos escritos sobre normas e princípios de arte, mas de escrever unicamente com o fim de emitir uma opinião que se pretendia esclarecida sobre um determinado conjunto de obras de um ou vários artistas. Aliás, doravante as biografia e os tratados vão perder rapidamente o seu lugar privilegiado como instrumento discursivo de consagração e até como via de conhecimento estético em detrimento do discurso crítico, que irá a partir daqui ser assumido como principal modalidade discursiva de imputação de grandeza e de valor à obra e ao seu respectivo criador. Nesta perspectiva, podemos observar que é de facto no século XVIII que se vão preparar as condições para a afirmação definitiva da autonomia do campo artístico ocorrida no século seguinte, assim como para a emergência do crítico como agente especializado e central no seu interior: por um lado, prevê a necessidade da existência de instâncias discursivas especializadas como suporte da autonomia intelectual do campo das artes e letras, e vai institucionalizar academicamente, sob a forma de disciplinas e discursos independentes, vários saberes específicos às práticas expressivas do Homem - a História da Arte, a Estética e a Crítica; por outro lado, faz crescer as possibilidades de difusão destes saberes através da promoção de conferências e de palestras sobre artes e letras, assim como da edição acrescida de publicações especializadas em temas artísticos e literários. Para além de dotar-se de instâncias de produção discursivas especializadas e das suas respectivas condições de difusão, é também durante o período setecentista que o 83

Ver SANTOS, Os Intelectuais Portugueses em Oitocentos, Lisboa, ISCTE, 1985, pp. 598-644. Note-se que o Salão que, em 1763, foi fundado sob a égide da Academia de Belas Artes de Paris, pouco tem a ver com aqueles salões informais que populavam no período setecentista. Trata-se de uma grande exposição de arte contemporânea organizada regularmente por aquela instituição, por isso com um carácter oficializado e formal, que tinha por objectivo principal tentar equilibrar a relação entre a oferta e a procura de bens artísticos contemporâneos e assim estabelecer uma nova relação entre os artistas e o público, já longe dos tradicionais contratos de encomenda. Também este salão era acompanhado de sessões críticas sobre as obras e os artistas expostos, as primeiras das quais estiveram a cargo de Diderot, isto até 1781. Por isso muitas vezes este escritor é considerado o primeiro crítico de arte moderno.

84

168

universo das artes e letras se apretecha das condições propriamente institucionais e materiais que propiciaram a consolidação do seu processo de autonomização em Oitocentos, ao fazer crescer o âmbito e a vivacidade da acção das Academias - que se responsabilizam oficialmente pela introdução formal dos candidatos a artistas nos discursos técnicos, filosóficos e históricos específicos às suas respectivas àreas de actividade, e que tomam a seu cargo a definição de critérios de legitimidade cultural e o desempenho legítimo das práticas judicativa e interpretativa sobre artes e letras -, e ao expandir a instituição de exibição pública das obras com a inauguração dos seus próprios Salões periódicos, demarcando assim espaços oficializados para a produção e reprodução de práticas e valores estéticos, assim como para a consagração de nomes de artistas.85 São estes os legados do século XVIII para o Romantismo, altura em que este processo de autonomização se radicaliza e em que, consequentemente, a figura do crítico é catapulcada para o primeiro plano do panorâma cultural e artístico. Com efeito, se o século XVIII pode gabar-se de ter visto nascer a crítica como prática discursiva especializada e relativamente autónoma, distinta de outras zonas do saber e de outras formas de discurso próprias às artes e letras, foi somente durante o século XIX, com principal incidência na sua segunda metade, que o crítico emerge como personagem central e assume um lugar de destaque no campo artístico, nomeadamente na sua qualidade de profissional de comunicação, tal como o conhecêmos hoje, vendo o poder de intervenção da sua acção, nas suas vertentes de descoberta, de legitimação e de consagração artística, largamente dilatado em relação ao século precedente. E compreende-se que assim tivesse acontecido, pois só a partir dessa altura se reunem as condições de possibilidade propícias e necessárias para que tal aconteça. 85

Ressalvêmos, no entanto, o caso específico de Portugal no contexto geral deste processo, mais intenso nos países artisticamente centrais e paradigmáticos. Na falta de um mercado e de um mecenato sistemático para as artes, de uma Academia oficial que só viria a constituír-se tardiamente em 1836, de contactos frequentes e uma informação actualizada com os principais centros de irradiação cultural, a situação de incultura estética revelava-se a característica geral mais marcante do nosso país até aqui, sentida tanto no plano do consumo quanto da produção. Neste contexto, a impraticabilidade de uma cultura de discussão e de investigação estética, histórica e crítica é estruturalmente justificada e justificável. Machado de Castro, a partir de 1780, é o primeiro a escrever teórica e criticamente sobre arte em Portugal, ainda no intuito de promover e dignificar as Belas-Artes, ao jeito dos intelectuaishumanistas renascentistas, esforçando-se «por sublinhar o carácter nobre da sua arte. Leonardo da Vinci já fizera semelhante diligência trezentos anos antes, mas em Portugal não houvera academias para entreter a dignificação do artista (que aqui havia continuado ligado aos ofícios), e Machado, excepcionalmente feito cavaleiro de Cristo pela sua estátua equestre, mas ferido por ver muito mais louvado o fundidor dela, encontrava-se ainda na necessidade de insistir no argumento - e de novo o faria, em 1818, ao reeditar o "Discurso sobre as Utilidades do Desenho" proferido em 87, na aula de desenho da Casa Pia.» In FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, vol. I, Lisboa, Bertrand, 1966, pp. 84-85. 169

Entre essas condições podemos destacar: a autonomia irrevogável do estatuto social e cultural do artista pela mão do movimento romântico que, ao fazer exacerbar o culto da arte e do artista, vai providenciar quer a mutação radical da morfologia dos objectos artísticos - que em finais do século XIX vão abandonar decididamente a representação figurativa entrando numa espiral de pesquisa interna e abstractizante -, quer, por consequência, a transformação do próprio ambiente institucional de existência da actividade artística, com o recuo da dominação da Academia em detrimento do Mercado e dos seus respectivos agentes reguladores como sistema de valorização e consagração cultural; a estruturação definitiva de uma nova organização económica e social, com a plena assumpção do capitalismo como modelo de produção e de troca em todos os domínios, com a ampliação crescente (em termos quantitativos e de poder) das fracções de uma burguesia comercial e industrial que vêm engrossar a clientela profana das artes, e com o estabelecimento de novos valores socio-culturais, como a Liberdade, a Fraternidade e a Igualdade, proclamados pela Revolução Francesa; e ainda a expansão acelerada da imprensa escrita que, ao começar a ser também produzida segundo os moldes de qualquer empresa capitalista, vai alargar amplamente o seu leque temático, incluindo sempre rubricas de âmbito cultural, entre as quais se conta a crítica, que perde assim o seu vínculo privilegiado à Academia encontrando um novo e alargado espaço de produção e de difusão. Mas vejamos mais pormenorizadamente como cada um destes factores, na sua articulação recíproca, veio a contribuir para a projecção e autonomização do lugar da crítica no universo das artes. 3.2.

A

RIBALTA

DO

CRÍTICO

NA

VIRAGEM

PARA

A

"MODERNIDADE" E AS SUAS CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE Como já tivemos oportunidade de demonstrar, à medida que o processo de autonomização do campo artístico foi avançando desde o Renascimento, a noção de que o essencial do processo de produção artística recaía sobre o sujeito que criava foi-se enraizando profundamente a nível social, expurgando-se assim o peso de todos condicionalismos sociais, políticos, culturais, religiosos e materiais que sempre condicionaram o "livre" exercício da actividade artística. Afirmando-se longe de qualquer tipo de convenções ou determinações, a arte foi sendo entendida como expressão de uma personalidade genial que sublima todos os seus impulsos, sentimentos 170

e desejos, toda a vertigem do seu imaginário e da sua sensibilidade, para o objecto que fabrica. A concepção da produção artística passou então gradualmente de acto de conhecimento a acto de criação, acontecimento envolto numa aura de mistério e misticismo, sendo concebido mais como resultado de determinado estado de espírito ou momento de inspiração do que como trabalho técnico propriamente dito. Paralelamente, o criador, poeta ou artista, veio progressivamente a reclamar-se e a ser reconhecido como individualidade singular, enquanto dotado de um talento artístico raro, divina ou biologicamente doado. Chegados ao Romantismo esta situação agudiza-se, e vêmos acentuar-se intensamente a noção carismática e individualista do artista, assim como o seu estatuto supostamente livre de qualquer amarra económica, social e propriamente estética, consolidando-se neste contexto os movimentos de ascensão cultural do lugar social do artista e o de autonomização relativa do campo onde ele se integra que se vinham a desenvolver desde o Renascimento. Manifestando-se contra qualquer espécie de constrangimento exterior ou compulsão normativa na arte, e incitando o artista a uma atitude de rebeldia face às formas convencionais e ortodoxas de fazê-la e de entendê-la, o programa cultural romântico veio proclamar de uma vez por todas a independência daquela figura como génio-criador, como eu soberano, em nome da sua liberdade de expressão interior e do direito à sua própria idiossincrasia. Produziu-se então sobre o artista uma indomável ilusão de liberdade, narcísica e orgulhosamente regozijada, sensação essa tanto mais sentida quanto ele se colocasse contra a sociedade e as convenções sociais e culturais que esta lhe impunha. Essa sensação de liberdade, que pressupunha a concretização da sua plenitude através de uma suposta separação entre a sociedade e o artista (em termos de práticas e valores sociais e propriamente estéticos), consubstancializou-se na institucionalização da ética do desvio como norma no campo das artes e letras, fazendo vulgarizar a ideia de que a actividade artística, longe de ser a mera concretização de prescrições técnicas ou temáticas, está sempre associada à violação de um tabú, surge como resultado da profanação dos cânones presentes e antecedentes, apelando a uma estética de contínua mudança e inovação. Esse apelo, na prática, fez assumir na formalização estética da obra de muitos artistas aspectos extravagantes e transgressores em relação à dos artistas academicamente consagrados que, ainda arreigados à tradição clássica da representação do real (a paisagem, o retrato, a natureza-morta, eram temas pictóricos ainda

171

dominantes na academia), tentavam derradeiramente modelar a contemporaneidade da sua produção sobre critérios e valores do passado. Mas a ética do desvio como norma não era materializada apenas no domínio morfológico da obra dos criadores românticos, sendo também transposta para o domínio social, onde o ideal romântico cultivava a imagem do artista super-dotado, todavia sempre maldito, fazendo da boémia, do sofrimento e da pobreza o seu modo de vida. Esta imagem desfavorecida e miserabilista do criador, encontra no domínio das artes plásticas o artista na condição de pária, e no domínio da literatura o estatuto de poeta como vate. O facto é que tal imagem correspondia frequentemente à realidade, na medida em que o artista, nomeadamente aquele que voluntariamente não se encontrava instalado nos circuitos dominantes da arte (que passavam inevitavelmente pela Academia), na luta pela sua liberdade total e pela revalorização estética e lúdica do seu próprio estilo de vida, fazia do desinteresse material, do desregramento e do excesso o seu modo de estar na sociedade, invocando orgulhosamente a penúria, o sacrifício e a farra como indicadores do seu estatuto supostamente livre de quaisquer algemas económicas ou sociais. Neste contexto, os princípios da arte pela arte, da pureza do interesse desinteressado na arte e do desvio como norma artística (e também como norma de vida), foram constituindo a tríade de base do património ético que orientava a prática criativa de um considerável caudal de criadores em meados do século XIX. Por outro lado, o património estético que lhes era comum integrou de vez a plena consciência da arte como manifestação do sentimento subjectivo e de valores individuais, como domínio de criação e jamais de representação, independentes de qualquer função extraartística, assim como de qualquer preconceito de beleza sublime, ideal ou objectiva. Na afirmação da irredutibilidade do seu projecto criador, o artista romântico começa então a empreender modificações estéticas na morfologia dos objectos que produzia que, com o tempo, se foram radicalizando. Procurando fugir não apenas aos modos convencionais de tratar formalmente os temas escolhidos, como às próprias temáticas tradicionalmente dominantes na Academia, a arte romântica vê-se cada vez mais afastada do naturalismo realista que a caracterizava até aqui, voltando-se cada vez mais para si própria, processo que culminará nos movimentos vanguardistas que irrompem na viragem para o nosso século. Se anteriormente o artista se propunha a representar objectos ou grandes cenas da humanidade, religiosas, históricas ou míticas, sendo a qualidade figurativa das suas obras uma necessidade da época que o 172

contextualizava - necessitavam nesses tempos de ter um valor descritivo e literário próprio para instruir e moralizar o povo -, o pensamento estético romântico rompe definitivamente com essa concepção, supondo a arte como forma superior de expressão de sentimentos e estados de emoção pessoais e subjectivos, apelando, por esta via, ao primado da originalidade.86 A partir de 1840, a descoberta da fotografia veio reforçar na consciência do artista a convicção de que a arte deveria ser investigação estética puramente expressiva e subjectiva, pelo que ela daí para a frente se irá revestir de um aspecto formalmente mais elaborado, com uma aparência mais de obra de criação do que de representação de uma cena, o que, por sua vez, nos reenvia mais à personalidade do artista e à sua reacção subjectiva face ao mundo exterior do que ao mero retrato deste último. O ponto de fractura fundamental relativamente à tradição formal do realismo naturalista dar-se-á pela mão do movimento impressionista, o qual, como verdadeiro percursor da arte moderna, irá preparar o terreno para a evolução posterior ao propôr traduzir na tela o momento subjectivo e fugidío da visão do real, a impressão, e já não a descrição integral da realidade. Embora o seu traço traduzisse ainda uma preocupação na relação criadornatureza, não fugindo totalmente à figuração, o objectivo do impressionista já não era o decalque mecânico do real, a competição inútil entre o olho e a objectiva fotográfica (que havia surgido com sucesso). O que ele pretendia revelar era a reacção despreconceituosa, incondicionada, autêntica, do sujeito em contacto directo com a realidade, dando-a a vêr como representação refractada pela sensibilidade, através do olho subjectivo do artista, o que já pressupunha um percurso interior da sensação visual. 86

Mais uma vez, será necessário ressalvar aqui a especificidade do caso português. Dada a insuficiência ao nível das suas condições de produção, difusão e consumo cultural, associada à sua condição periférica e insular no panorâma artístico europeu, na prática, o romantismo português, nas palavras de JoséAugusto França, «ainda jogava com o realismo em dosagem incerta», apesar de discursivamente já se exigir "sujeito" mais do que "objecto". Dizia António Eanes na revista Artes e Letras, criticando um dos primeiros salões da Sociedade Promotora de Belas-Artes (anos 60 do século XIX) que de «algumas telas que a vista se prendia com agrado (...) raro se destacaria (...) uma ideia que penetrasse no cérebro do visitante. Havia quadros que eram como janelas abertas para o campo, mas por essas janelas não se avistava o espírito do artista. Via-se objecto mas não o sujeito.» (cit. in FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., vol. I, p. 435.) Na base de um relatório dessa mesma Sociedade, escrito em 64, França dá-nos uma panorâmica geral do estado cultural português no decorrer do seu Romantismo: segundo ele, «a arte estava decadente, não desabrochavam novas vocações, a ninguém sorria a carreira das artes, escassos eram os meios de aperfeiçoamento dos artistas, que produziam pouco num meio em que a crítica era inexistente, em que faltavam os compradores e as exposições...» (Idem, p. 468) Neste contexto, os artistas portugueses «não se abalançavam, ou por falta de meios ou por cálculo comercial, a mais do que umas pequenas paisagens, a umas flores, a uma figurazita cujo preço não horrorizasse o comprador», dizia-nos um crítico do jornal "OOcidente" em 87. (cit. in FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, Vol. II, Lisboa, Bertrand, 1990, p. 83.) 173

Mas se no impressionismo ainda encontramos uma certa aparência figurativa nas obras, ainda que recriada pelo sujeito numa espécie de realismo expressivo, a transformação morfológica levada a cabo por acção das vanguardas do final do século é notoriamente mais radical. Tal como refere Argan, «o facto que separa nitidamente, com um autêntico salto qualitativo, a arte do nosso século de toda a arte do passado, pelo menos na área da cultura ocidental, é a passagem do carácter figurativo ao não figurativo, ou como é corrente dizer-se, à abstracção»87. De facto, a partir de finais do século XIX, começamos a assistir a um rápido abandono da cultura da figuração, associada à natureza e à afirmação pictórica da realidade, e à emergência de uma arte puramente abstracta, ou seja, que procura traduzir formalmente estados subjectivos independentes das sensações visuais, da experiência com o exterior: diz-nos Kadinsky que «não é a sensação visual recebida do mundo exterior mas a "vontade interior do sujeito" que determina a forma artística»88. Nesta perspectiva, as atitudes das correntes estéticas que surgiram posteriormente ao impressionismo, como sejam o fauvismo, o dadaísmo, o cubismo, o expressionismo, o surrealismo, o construtivismo ou o minimalismo, fazendo desaparecer o referente empírico da arte, conseguiram destruir completamente os valores pictóricos da representação, entendidos como submissão à Academia e associados à cristalização comodista dos modelos, libertando totalmente o artista da sujeição ao real. Para além disso, alguns dos movimentos pós-impressionistas também pretenderam destruir completamente os meios técnicos de expressão artística até então vigentes, chegando a eliminar o cavalete, a tela e o pincel em detrimento de outros suportes materiais e utensílios até então estranhos à pintura. A própria tinta e a técnica a ela associada foi em muitos substituída pela integração de detritos urbanos e/ou outros "objectos encontrados", cuja disposição era possível através de técnicas inovadoras como, por exemplo, a collage. Contra a visão aurática e preciosa da arte, algumas manifestações mais radicais prescidiram mesmo de uma expressão plástica executada

87

ARGAN, Arte e Crítica de Arte, op. cit., p. 105. É justamente quando este pintor produz a primeira aguarela "abstracta", em 1910-1911, que tem sido geralmente fixado o momento de passagem decisiva do figurativo ao não figurativo, embora já antes essas tendências "abstractizantes" se fizessem sentir com intensidade nos trabalhos de inúmeros movimentos estéticos que se íam constituindo. Essa ruptura foi levada ainda mais longe pelo cubismo que, renunciando totalmente a qualquer semelhança com as "formas naturais", propôs-se pesquisar uma linguagem formal puramente abstracta, que deixa completamente de ter um real exterior por referente. Para Apollinaire, mentor deste movimento, "o cubismo é a arte de pintar totalidades novas com elementos emprestados não à realidade da visão, mas à realidade da concepção" (cit. in CRUZ, A Obra de Arte...,

88

174

pela mão do criador. Quando Duchamp expõe em 1913 o seu primeiro e desconcertante ready-made, La Roue de Bicyclette (uma bicicleta), e depois em 1916, a Fontaine (um urinol), no Salão dos Independentes em Nova York, objectos de uso quotidiano apenas acompanhados de uma nominação e de uma assinatura, o seu objectivo fundamental era assinalar que é o contexto físico (o museu, a galeria, o salão) e/ou discursivo (a começar na assinatura e no título e a acabar na crítica) que envolve o objecto que o faz tornar-se obra de arte. Neste jogo, a intervenção do artista é minimal, ele limita-se a escolher e a exibir o objecto, intitulando-o e assinando-o, e já não transformando-o pela sua mão89. Contemporaneamente, algumas manifestações artísticas dispensaram não apenas uma expressão plástica composta pelo artista, como também o próprio suporte material. Falamos, nomeadamente, do Conceptualismo, corrente que desapossa a obra da sua materialidade, reduzindo ao máximo o trabalho manual do artista. Aqui a arte já não é afirmada com base numa operação física, mas como puro conceito, ultrapassando-se a ideia da arte como objecto concreto: o que conta é a ideia artística e não a sua metamorfose em obra. Em alguns casos, a arte conceptual substitui a expressão plástica pela expressão verbal, a aparência pelo discurso, o fazer pelo dizer, dizendo-se o que fazer e como fazer sem, contudo, se passar à sua concretização. Deste modo, o conceptualismo reclama um máximo de solicitação mental (quer da parte do criador, quer da parte do receptor) com um mínimo de solicitação manual e visual. A arte não é senão conceito, colocando-se decididamente fora do espaço e do tempo. É a verdadeira "arte pura" para uns, é a agonia da arte para outros, pois chega ao cúmulo da sua ausência. Considerando o cenário aqui rapidamente traçado com base em alguns exemplos em termos de transformações na morfologia dos objectos pictóricos desde o século XIX até à contemporaneidade, podemos notar que a arte foi desenvolvendo-se no sentido da complexidade e da pluralidade, adensando-se os seus conteúdos e multiplicando-se as intenções que lhes eram subjacentes. A demarcação relativamente ao "modelo

op. cit, p.132). Os elementos pictóricos surgem assim no cubismo reduzidos a "puros" elementos de espaço e de cor: quadrados, rectângulos, triângulos, construções a-perspécticas, etc. 89 Esta estratégia é retomada mais tarde pela Pop Art, designadamente por Andy Warhol, que se apropria de objectos não só pertencentes ao contexto da vida quotidiana, mas sobretudo investidos de significados simbólicos emblemáticos da mentalidade da sociedade de consumo e dos media: garrafas de Coca-Cola, fotografias de super-stars, embalagens de sopa Campbells, a bandeira americana, etc, produtos que reproduz até ao infinito. Com esse material, o artista não se propõe criar, no sentido romântico do termo, mas contestar esteicamente o sistema da sociedade de consumo através da utilização dos seus próprios mecanismos, tornando-os evidentes. É nesta perspectiva que Warhol faz um compromisso directo com a 175

naturalista" foi orientar a pesquisa artística no sentido de determinar já não categorias meramente formais, mas sobretudo campos semânticos. Os elementos pictóricos deixam de traduzir formas representativas do "espaço real" para assumirem o papel de signos, para constituírem um código, um veículo de comunicação a nível conceptual. E note-se que os significados e os valores desses códigos já não são dados nem convencionados a priori por qualquer instituição monopolizadora, mas são, pelo contrário, definidos nos seus próprios contextos de produção, o que trás como consequência directa a extensão ilimitada do campo semântico da arte, que surge como que individualizado: é cada artista ou grupo de artistas, com o seu programa pessoal, que tenta determinar o significado da sua obra. Deste modo, a subjectivação da norma em matéria de artes, que prescreve que a obra de cada personalidade seja julgada segundo a lei que adoptou para si própria, passou a prevalecer como valor e critério de referência judicativa: as "regras" nestes domínios passaram a ser auto-estabelecidas e consumadas na produção de quem as faz, e o seu valor passou a radicar já não no conformismo de quem as aceita e as reproduz fielmente, mas na singularidade e originalidade de que se revestem na sua origem. O criador torna-se definitivamente insubstituível e o seu estatuto inintermutável, na medida em que os que outrora seriam nobres e hábeis percursores, doravante passarão a ser meros imitadores, nada mais que epígonos. A "babel" estética que daqui decorre, desde o Romantismo até à actualidade, revela-nos a experiência de um processo de entropia artística. Quer isto dizer que o processo de radicalização dos traços morfológicos na arte moderna e contemporânea, transportando consigo as qualidades associadas à "pureza abstracta", tendem a dar a esse domínio uma autonomia total, deixando bem para trás todas as suas tradicionais referências exógenas. É um movimento de autonomização que decorre em espiral, com a arte a tornar-se cada vez mais num sistema fechado sobre si próprio e autoreferenciado, depurado de todas as suas condicionantes extra-picturais. Este processo de depuração formal da arte teve como consequência, na sua génese com os premonitórios artistas românticos e mais tarde com as insubordinadas vanguardas modernistas, marginalizar socialmente o artista (nomeadamente aquele que cultivava uma atitude estética mais rebelde) quer em relação às suas tradicionais produção capitalista, fazendo a arte aderir às técnicas de reprodução mecânica e serial que anteriormente haviam sido contrárias aos seus princípios. 176

instituições de acolhimento, protecção e consagração, quer em relação ao seu público tradicionalmente interessado em matéria de arte. Com efeito, as reivindicações românticas de liberdade criativa vieram chocar com as imposições académicas de uma concepção estética dogmática e dominante, tida como a única verdadeira e legítima. Situação bastante delicada tendo em conta que era a Academia que até aí monopolizava oficialmente todos os meios de produção, difusão e consagração artística, detendo a capacidade efectiva de gerir a carreira dos artistas, estabelecendo os preços das suas obras e responsabilizando-se pelas suas respectivas encomendas, assim como a legitimidade de se pronunciar sobre o que seria a "verdadeira" arte, actuando como único juíz legitimador e consagratório no interior do campo artístico. O modelo estético associado à Academia correspondia à expressão institucional de um sistema coerente, mas restrito e restritivo, de regras de produção e de critérios de legitimação estética (entre as quais prevaleciam ainda os princípios da cultura figurativa), cuja aprendizagem e aplicação conduziam directamente à aquisição do estatuto de artista. Nestas circunstâncias, as instâncias de difusão que visavam dar visibilidade ao corpo de produção artística aceite como tal pela Academia, ou seja, os salões oficiais, excluíam pelo seu veredicto um conjunto heterogéneo e cada vez mais volumoso de intenções artísticas, não reconhecendo o estatuto de arte a nenhuma forma de expressão que se afastasse dos seus cânones. Deste modo, com o advento do Romantismo e da "arte moderna" que é produzida sob a sua inspiração, os problemas dos artistas não reconhecidos oficialmente tornaram-se cada vez mais prementes, com grupos de independentes a levantarem a sua voz por condições institucionais menos centralizadoras e menos autoritárias, e a colocarem-se esteticamente em oposição aos académicos com iniciativas artísticas particulares e inovadoras. Esta atmosfera de intensa efervescência cultural fez nascer consigo, na viragem do século, um novo (sub)campo no interior do campo artístico, onde passaram a subsistir as vanguardas mais radicais em oposição ao espaço da "arte oficial", no qual se produzia até aí a definição dominante do que era considerado arte90. Em profundo contraste com a homogeneidade de posições estéticas e éticas verificada entre os ocupantes das posições deste último, o campo das vanguardas caracterizava-se pela particularidade de nele coexistirem paralelamente uma multiplicidade de círculos electivos descentralizados, constituídos em estreitas e reduzidas redes de relações

177

apoiadas em referências e afinidades electivas semelhantes entre si (e diversas das dos restantes círculos circundantes) que, por sua vez, orientavam as suas respectivas estratégias de recrutamento e de fechamento. O

facto

dos

artistas

aparecerem

fraccionados

em

pequenos

grupos

independentes, como verdadeiras tribos desenraizadas, veio dar ainda mais veemência à imagem sagrada do artista "em exílio", vivendo à margem num mundo inconsequente, desconectado de todo e qualquer imperativo material e/ou social, tomando o desvio como norma de arte e de vida, sempre na esperança que num futuro longínquo o seu valor presente lhe fosse reconhecido. Note-se, contudo, que marginal não era inevitavelmente sinónimo de solitário. A sobrevivência do artista vanguardista via-se bastante dependente da sua integração num determinado grupo que o identificava, o reconhecia e o protegia como tal, grupo esse que comungava de um nome (que geralmente o próprio artista não detinha no início da sua carreira) auto-proclamado e codificado num programa ou manifesto, instrumentos discursivos que orientavam a produção criativa dos seus membros e a diferenciavam publicamente da dos seus grupos vizinhos. Nesta perspectiva, embora seja junto destes grupos que encontramos maior entusiasmo no culto da imagem carismática e romântica do artista sofrido e isolado, tal não passava disso mesmo, de uma imagem esteriotipada e cultivada insistentemente, pois o facto é que a visibilidade social do artista independente estava sempre dependente do seu compromisso com determinado grupo, o que vem objectivamente contrariar o valor do isolamento. A proeminância e a singularidade de um dos artistas desses grupos só acontecia quando determinadas instâncias faziam associar ao seu retrato, no conjunto da sua vida e obra, a excentricidade, a extravagância e a excepcionalidade justificativas do mito romântico do artista, mecanismo que o criador compreendeu perfeitamente, tentado dar matéria a esse tratamento exclusivo.91

90

VERGER, Annie, "Le Champ des Avant-Gardes", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 88, Junho de 1991, p. 3. 91 Em Portugal, por exemplo, vêmos constituírem-se no início do nosso século, o grupo dos "modernistas" que, manifestando algumas afinidades tardias com o impressionismo francês (grande parte dos seus membros estudou em França), inaugurou a Exposição Livre de 1911 no salão Bobone e, mais tarde, expôs nos vários Salões dos Modernistas no Porto, grupo de onde se destacou a figura de Manuel Bentes, através das suas polémicas públicas enquanto porta-voz defensor do grupo; vêmos contituír-se também, um pouco mais tarde, o grupo dos "futuristas", adeptos incondicionais do projecto de Marinetti, donde se destacaram individualmente várias figuras, como um Santa-Rita, um Almada ou um Amadeo. Mas a sua estratégia de radicalização estética era, de facto, sempre projectada e sustentada grupalmente. 178

A partição em termos de disposições éticas e estéticas internas ao campo das vanguardas era, todavia, espraiada na coesão que as unia contra a academia e a hegemonia que esta instituição detinha no acesso e fechamento do espaço artístico. Tal como refere Idalina Conde, apesar da estrutura interna do espaço acupado por estes movimentos de ponta exprimir um policentrismo de referências estéticas e éticas e um desdobramento eclético das suas posições de poder em séries paralelas, mais do que assimétricas, a sua congruência e solidariedade endógena era sustentada pelo interesse comum no regicídio academista: nas palavras da autora, «cada um com direito à sua expressão, mas todos comprometidos na auto-defesa e luta contra o "establichement".»92 O processo de dissidência estética encabeçado por estes movimentos que, orientados pelo primado da originalidade e da liberdade, tentavam a todo o custo subverter os cânones académicos em nome da soberaneidade da sua singularidade artística e libertar-se dos incómodos institucionais que a restringiam, viu-se intimamente associado ao desenvolvimento gradual de novos e complexos mecanismos de difusão, legitimação e consagração alternativos (e posteriormente substitutos) ao reconhecimento "oficial" da Academia. As galerias particulares e os salões privados promovidos pelas várias associações de artistas que se íam constituíndo proliferaram aceleradamente, disputando a situação de monopólio dos salões academistas ao proporem-se como espaços de exposição e de escoamento alternativos para aqueles artistas cuja obra ignorava os cânones oficiais. Simultaneamente, os indicadores de prestígio fornecidos pela instituição académica, tais como diplomas, prémios e outros títulos ou distinções honoríficas, começaram a ser preteridos em favor da acção discursiva e laudatória do crítico. Abre-se assim um mercado artístico paralelo e independente, apoiado e protegido por alguns marchands, galeristas e críticos marginais à Academia, em alternativa ao mercado "oficial", cujos mecanismos e instâncias de produção, de difusão e de consagração, perante o crescimento imparável de artistas rebeldes, se revelavam

92

CONDE, Idalina, O Duplo Écran. 2. Artistas..., op. cit., p. 70. Senão atentemos às palavras de Manuel Bentes, na sua resposta ao crítico Higino de Mendonça, do jornal "Novidades", que havia tratado com virulência a Exposição Livre de 1911 em que tinha participado: «Existe em Portugal um sem-número de ignorantes em coisas de arte que inventa os maiores desacertos; e com os miolos vazios de toda a compreensão artística (...) escrevem coisas, chamam-lhe críticas e espetam-nas nos jornais".» Aproveitando o ensejo, o pintor tenta, em tom de manifesto, esclarecer o público e explicar a arte que ele e os colegas de Paris querem realizar: «Queremos ser livres! Fugimos aos dogmas do ensino, às imposições dos mestres e, quando possível, às influências das escolas, porque crêmos que os artistas têm uma só escola - a Natureza; um dogma único - o Amor. (...) A arte não tem sistemas, tem emoções.» (cit. in FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XX, Lisboa, Bertrand, 1991, pp. 29-30.) 179

cada vez mais impotentes na gestão monopolizada do domínio artístico.93 Foram efectivamente estes "orgãos privados" que, paralelamente aos salões tradicionais e aos julgamentos produzidos no âmbito académico, se encarregaram das funções básicas que estas instâncias cumpriam, ou seja, o reconhecimento do talento e do valor, assim como a garantia de uma remuneração para o cada vez mais vasto conjunto de artistas que se queriam independentes e cuja obra, pelas suas características, não tinha lugar dentro dos circuitos oficiais de exibição e legitimação. A saturação destes mesmos circuitos pela sua incapacidade (e preconceito) em absorver o produto final dos grupos de artistas dissidentes que se constituíam e em Esta é a opinião de Anne Cauquelin, para quem a palavra de ordem "contra a academia" continha muito da constatação da impotência desta instituição em continuar a gerir o domínio da arte: o sistema académico em França oferecia apenas uma escola, a de Belas Artes, e um só Salão, o de Paris, pelo que não soube desenvolver e cultivar os diversos mercados que potencialmente existiam entre um público de compradores que se alargava, assim como, correlativamente, encorajar a identificação das individualidades artísticas que apareciam com os seus respectivos mercados (in A Arte Contemporânea, Res-Editora, Porto, 1993, p.27). Isto mesmo quando tenta desesperadamente colmatar a pressão exercida pelo número cada vez maior de artistas não admitidos ou excluídos das manifestações académicas, ao organizar em 1863 o célebre Salão dos Recusados, espaço marginal ao Salão oficial onde os independentes supostamente teriam a oportunidade de expôr e vender as suas obras. Tarde de mais, pois estes já haviam encontrado um espaço de legitimação e de difusão artística mais dinâmico e funcional que o da Academia e do seu Salão anual. Diante deste fracasso, em 1881 o Estado francês abandona oficialmente a organização do Grande Salão, e o poder da Academia no espaço das artes vê-se cada vez mais reduzido. 93

A tentativa de abrir um mercado paralelo ao da Academia foi também tentada em Portugal, a começar com a fundação, no início dos anos 60 do séc. XIX, da Sociedade Promotora das Belas-Artes, cujo objectivo central seria o de alargar a protecção oficial da Academia Nacional, com as suas irregularíssimas exposições trienais, e de estimular o comércio de artes em Portugal, como pode ser lido nos seus estatutos: «excitar a emulação entre os artistas portugueses, propagar o conhecimento e facilitar a venda das suas obras, por meio de exposições públicas anuais; e protegê-los com a aquisição de objectos de arte expostos.» (cit. in FRANÇA, A Arte em Portugal no século XIX, op. cit., Vol. I, p. 431). Aliada a esta acção de dinamização, quis também a Promotora responsabilizar-se pelo desenvolvimento da crítica de arte em Portugal, que se estendia então pelas colunas dos jornais. Não conseguindo realizar o seu projecto inicial de editar uma revista própria especializada em Belas-Artes (nem os cursos nocturnos, nem as conferências que projectara então realizar), foi dar o seu apoio, a partir de 71, à revista "Artes e Letras", originarando, pelas sua manifestações e empenhamento, o florescimento de uma crítica de "noticiaristas de jornais". Os projectos de alargamento do mercado de artes foram também apropriados pelo "Grémio Artístico" (surgido em 90 na tentativa de estabilizar o "Grupo do Leão" - grupo de artistas frequentadores do café Leão de Ouro - que crescera e dispersara-se), que estabeleceu como seus fins «promover a cultura das artes plásticas em todas as suas manifestações e defender os interesses da arte nacional», através da organização de salões anuais, com prémios de medalhas, da manutenção uma exposição permanente, da construção uma biblioteca e de promover aulas de estudo artístico, alargando assim o âmbito da acção da Promotora, definido trinta anos atrás (in FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., Vol. II, p. 84). Esta agremiação, por sua vez, fundiu-se mais tarde com a Promotora e deu origem à Sociedade Nacional de Belas Artes, instituída em Março de 1901 com os mesmo fins. A par desta e tentando esgrimir contra o seu centralismo (que se viu substituír o centralismo da tradicional Academia oficial), popularam alguns outros salões informalmente organizados por alguns grupos de artistas marginais a esta instituição. 180

equilibrar a décalage que deste modo se verificava entre a oferta e a procura artística, traduzir-se-á, na viragem do século, no recuo da dominação da Academia sobre a vida artística, perdendo o monopólio que detinha na definição e difusão da obra de arte legítima e na consagração do seu criador. A transmissão de poderes faz-se em direcção a todo um conjunto de agentes mediadores que passam a intervir tanto no lançamento e distribuição dos produtos artísticos, como na sua própria concepção e recepção, a partir daqui responsáveis pela definição do valor cultural e económico da obra de arte, pela produção do seu sentido e pela consagração do seu autor. Descobre-se então uma nova situação institucional para a arte moderna, transformação essa que é descrita e analisada por Bourdieu como um processo de institucionalização da anomia. Para este autor, com esta «espécie de bancarrota do banco central do capital simbólico em matéria de arte» que constituía a Academia, «o universo de produtores de obras de arte, deixando de funcionar como aparelho hierarquizado controlado por um corpo, institui-se pouco a pouco como campo de concorrência pelo monopólio da legitimidade artística: ninguém pode, para o futuro, arvorar-se em detentor absoluto do nomos, mesmo que todos tenham pretensões a tal título. A constituição de um campo é, no verdadeiro sentido, uma institucionalização da anomia. Revolução de grande alcance que, pelo menos na ordem da arte se vai fazendo, elimina qualquer referência a uma autoridade suprema, capaz de resolver em última instância: o monoteísmo do nomoteta central cede o lugar à pluralidade dos cultos concorrentes dos múltiplos deuses incertos»94. De facto, pluralidade e complexidade são as principais características impressas no campo artístico no final de Oitocentos, decorrentes não só do florescente crescimento de intenções artísticas distintas levadas a cabo pelos vários grupos de artistas independentes que surgiram, como também do considerável aumento de instituições e grupos profissionais intermediários implicados na sua produção, circulação, conservação e consagração artística, como ainda da diferenciação correlativa das funções e operações que cada um desses mediadores tende a assegurar. O espaço intermediário entre o criador e o fruidor povoa-se de um grande conjunto de protagonistas "particulares", e os meios de produção de valor e de sentido sobre as obras de arte, assim como de legitimação e consagração dos seus criadores, até aí monopolizados pelas instâncias oficiais, tornam-se nessa época objecto essencial de luta

94

BOURDIEU, O Poder Simbólico, op. cit., pp. 277-279. 181

entre esses novos protagonistas, com cada um deles a tentar impôr aos outros a redefinição dos papeis e competências que lhes fosse mais favorável e conveniente. Temos então o esquema a complicar-se em relação à época anterior, na medida em que a gama de actores e instituições participantes na selecção e na homologação das obras e dos seus respectivos criadores é a partir daí cada vez mais numerosa, fragmentada e complexamente relacionada, situação que nos seus traços gerais se prolonga até à actualidade, onde encontramos uma cada vez mais acentuada pulverização e valorização das funções mediadoras no universo cultural. O novo sistema institucional inaugurado põe em lugar de destaque a figura do marchand e/ou do galerista independente, conhecedor especialista em arte contemporânea que, cumprindo a importante função de promoção económica desta, veio evitar ao pintor os inconvenientes simbólicos da auto-negociação dos seus trabalhos, assim como, muitas vezes, resolver a falta de fundos e de estímulos económicos para a sua produção. Concomitantemente, tanto os artistas como os comerciantes de arte estavam igualmente interessados em alguém que divulgasse, traduzisse e valorizasse esteticamente as suas obras junto do público, o qual, na maioria dos casos com satisfação, procurava e aceitava de bom grado orientações para mais depressa seleccionar e melhor compreender a arte que se ía produzindo, nem sempre fácil e imediatamente entendida. Com efeito, se até meados do século XIX a produção artística em geral veiculava mensagens facilmente inteligíveis no interior do corpo social, devido ao seu conteúdo descritivo e à sua forma figurativa, com os movimentos românticos e vanguardistas a eliminarem definitivamente os vínculos com a representação natural dos objectos e a estabelecerem novas relações pictóricas entre elementos abstracta e livremente criados, num gradual processo de entropia estética, já atrás sinteticamente descrito, a arte começa a desenvolver-se no sentido de sofisticadas experiências já não reconhecíveis como tal, de forma evidente e directa, no património cultural do cidadão comum, dissociando-se dos gestos e mentalidades dominantes. O sentido da obra vai-se tornando num "bem" escasso e o seu valor incompreendido. Situação complicada esta, se considerarmos que ao abolir o conteúdo figurativo do objecto de arte e ao aderir a novos meios técnicos e materiais de expressão artística, o criador afastava-se não apenas da instituição que tradicionalmente geria a sua carreira e que lhe garantia a segurança de que precisava, mas também do quadro cultural de referência de um público interessado em coisas de arte que se extendia cada vez mais e que, em alternativa à Academia, potencialmente o iria compensar da segurança perdida, enquanto seu consumidor, 182

público esse, todavia, que se encontrava acomodado ao modelo estético dominante do naturalismo realista. É nesse duplo afastamento que é deixada uma larga margem de manobra à acção dos intermediários culturais, nomeadamente do crítico, que veio a desempenhar a função primordial de elo de ligação do mundo das artes com os reduzidos (mas em expansão) segmentos sociais que por elas se interessavam, (re)unindo público e artista, levando o primeiro a contactar com o trabalho do segundo, tentando fazer compreender o seu valor e o seu sentido, passos essenciais à sua posterior aquisição. Acompanhando de perto a actividade dos novos grupos de artistas que se constituíam, ou até mesmo integrando esses mesmos grupos e participando na concepção dos seus manifestos, nele é delegada a função de mandatário público do grupo, autorizado pelo próprio grupo a expressar e a difundir publicamente os seus temas e intencionalidades programáticas, os quais muitas vezes ajuda a definir. Funcionando frequentemente como seu elemento de agregação, não só pelo facto de lhes encontrar uma denominação comum e um sistema de pensamento caucionador da sua programática de acção, fornecendo assim um meio de se demarcarem num espaço de concorrência cada vez mais aguerrida, como também pelo facto de muitas vezes ser ele próprio a fazer agrupar o grupo em torno da sua pessoa e do seu projecto de criação, nele figurando como elemento central e fusionista, o crítico vem assumir então no seio dos movimentos vanguaristas o papel de porta-voz mandatado de agir discursivamente em nome do grupo de que é cúmplice e com o qual convive de perto, não só intelectual como vivencialmente, e sobre o qual vai construir a sua própria reputação como crítico. O círculo é então perfeito: se por um lado, o grupo só existe objectiva e publicamente por delegação a um porta-voz que fala em seu nome, por outro, o nome do seu respectivo porta-voz é feito em consonância directa com o nome que faz para o próprio grupo. Num círculo de legitimação e de consagração recíproca, formavam-se assim frequentemente pares, ou até muitas vezes trios que se sustentavam e se protegiam entre si: artistas com os seus críticos e os seus marchands específicos, marchands com os seus críticos e os seus artistas, personagens que se acotovelavam constante e voluntariamente numa estreita união entre laços de amizade e afinidades

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estéticas e intelectuais. E é de realçar que esta situação não é particular às Belas-Artes, pois percorre todos os domínios artísticos e literários na época95. Desta forma, o poder de celebração e de institucionalização do crítico no interior do campo artístico aumenta consideravelmente a partir do final de Oitocentos, na medida em que a sua acção discursiva se torna indispensável quer como aliada da acção criativa do artista e da acção comercial dos agentes propriamente económicos que pretendem introduzir a sua obra no mercado, quer como auxiliar e orientador do seu potencial público comprador e/ou contemplador, ficando aquele agente directa e manifestamente incubido da produção de sentido e de valor estético sobre o que é fabricado e comercializado no mundo artístico. Nesta perspectiva, vemos o crítico a tomar foros de personagem principal na cena artística dos finais do século passado não só em consequência das transformações institucionais que a revolução cultural romântica desencadeou, mas também, posicionando-nos num nível de análise mais amplo, nas próprias condições socio-económicas que as possibilitaram, com a estruturação definitiva de uma nova organização económica e social. De facto, o processo de libertação que o artista moderno entendeu prosseguir face ao centralismo e autoritarismo do sistema académico não decorreu efectivamente apenas em virtude da difusão dos ideais românticos da liberdade e da originalidade estética, mas encontrou-se igualmente associado às condições de liberalismo económico criadas no seio da sociedade global durante essa altura, paralelas ao crescimento e enriquecimento de uma classe burguesa, condições essas que estiveram objectivamente na base da disponibilidade para a difusão de tais valores. Ainda que relativamente longe da generalização da mercadoria cultural e do interesse em relação ao chamado "grande público", já desde meados do século XVIII se vinha a assistir a um crescimento contínuo do mercado artístico, consubstanciado quer no constante aumento da produção neste domínio, quer no alargamento do seu público potencialmente interessado,

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É neste contexto profundamente caracterizado pela promiscuidade manifesta ao nível das relações que se teciam entre os diversos agentes do campo artístico na viragem do século, a qual dotava a vida cultural dessa época de um espírito militante e revolucionário já difícil de encontrar nos nossos dias, que encontramos as razões históricas que justificam a tradicional acusação feita ao crítico de integrar verdadeiras "capelinhas", utilizada quando se quer pôr em causa determinada argumentação sua. Numa atmosfera, como a actual, em que constantemente se apela ao ascetismo e à independência entre prática crítica e relações interpessoais com os diversos agentes culturais, essa acusação implica a ideia de que as finalidades subjacentes à argumentação do crítico acusado não são de ordem estética mas apenas de ordem pessoal, visando interesses que extrapolam o desenvolvimento da pesquisa estética em si. 184

composto predominantemente pelas fracções de uma burguesia comercial e industrial que se ía constituindo. No entanto, em meados do século XIX o processo de penetração do capital na produção, circulação e consumo cultural começa a acelerar, proporcionando o desenvolvimento de uma nova racionalidade económica no domínio artístico. As obras de arte tornam-se cada vez mais valor economicamente cotado, bem de consumo susceptível de investimento de capital com perspectivas de valorização ou de desvalorização, e a produção artística começa deste modo a ser tratada como bem económico ou mercadoria, sujeita às leis gerais da economia de mercado: ao invés do artista trabalhar para atender a uma procura previamente estabelecida, constituída em grande parte por membros ou instituições do Estado ou da Igreja, ele passa a trabalhar directamente para o mercado, onde a relação de encomenda-execução transforma-se decididamente em relação de oferta e de procura.96 O processo de mercantilização do bem cultural não aparece desconexado da mudança ocorrida no quadro de valores dominantes e na própria estrutura social da época, que faz nascer um novo e alargado público admirador e comprador de arte entre a burguesia que, com o avanço do modo de produção capitalista, ficava a deter um forte capital económico e rapidamente ascendia a posições social e politicamente dominantes, procurando investir conspicuamente na cultura. Por outro lado, os valores democratizantes e igualitários preconizados pela Revolução Francesa também se repercutiram a esse nível do domínio cultural e artístico, incentivando uma certa tendência para a nivelação cultural que foi progressivamente proporcionar o alargamento do público e o acesso deste a determinados bens e serviços culturais que, anteriormente, lhes eram socialmente restringidos. É a génese da conhecida

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PINHO, Diva Benevides, A Arte como Investimento. A Dimensão Económica da Arte, São Paulo, Nobel-Edusp, 1989, p.43. Note-se, todavia, que nestes primeiros tempos do alargamento do mercado de artes, os investimentos dirigiram-se prioritariamente para a arte mais tradicional, dita "clássica" ou figurativa, pois os vários segmentos de consumidores potencialmente interessados nesse mesmo investimento ainda se encontravam pouco sensibilizados para uma arte mais heterodoxa. Em Portugal, designadamente, nem mesmo essa arte mais tradicional encontrava escoamento fácil, como refere JoséAugusto França: «vítimas passivas ou activas, pacientes ou exasperadas, resignadas ou protestando, os artistas portugueses do romantismo, agrupados embora no "salon" da Promotora cujo sucesso rapidamente se deteriorou, sofreram a indiferença do ambiente - a "criminosa indiferença do público português e principalmente das classes mais abastadas ou mais ilustradas por tudo o que diz respeito às artes imitativas"...», indignava-se assim um dos nossos "noticiaristas de artes" em 79. (in FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., Vol. I, p. 464.) 185

Democratização Cultural, expressão que rapidamente se popularizou, não sem polémica e alguma contradição, junto do mundo intelectual e político da época.97 Nesta perspectiva, depois da era da Academia como tipo de organização social para a arte, inaugurada em pleno Renascimento paralelamente e em oposição à era da Corporação, com a chegada à segunda metade do século XIX vemos iniciar-se ainda insapientemente a era do Mercado, com os salões e as galerias privadas a substituíremse aos salões oficiais como espaços de comercialização, com uma difusão restrita a querer ser substituída por um consumo mais extensivo, e com a transição da situação na qual a Academia passivamente servia o gosto dos seus patronos, reflectindo o favoritismo destes, para a situação em o artista produzia para um mercado que se constituía livremente, embora sempre diminuto. Todavia, tal como assinala Maria de Lurdes Lima dos Santos, «se, por altura da revolução cultural romântica, o dito alargamento representava um factor de emancipação para o autor-criador, solto, enfim, dos laços de dependência para com o patrono, cedo esse público constituiria uma nova sujeição, tanto mais humilhante quanto lhe aparecia como uma massa anónima albergando gente ignorante, social e culturalmente pouco qualificada»98. De facto, este novo público surgia para o artista romântico, intransigente em relação à liberdade da sua criatividade recentemente conquistada, como um potencial novo foco de contingência que poderia vir a comprometer a visão demiúrgica construída em torno da sua imagem social e na qual ele próprio investia, assim como pôr em questão a sua fervorosa crença no princípio da arte pela arte, desinteressada de qualquer interesse que não fosse o interesse propriamente artístico. Pretendendo-se o Heroi único e solitátio da Arte, qual demiúrgo criando a obra de uma vez por todas, livre e independente de todas e quaisquer instâncias, este novo artista, euforicamente autónomo, proclamava a irredutibilidade do seu projecto criador não só contra os cânones estéticos da Academia que estrangulavam a sua criatividade, como também indiferente aos valores culturais dominantes no gosto do público e contra a indiferença do público, contra o público, nomeadamente esse público burguês e incompetente, de vesgo olhar comercial e atitude ostentatória, com arreigado desprezo 97

Os homens do romantismo entendiam a necessidade democrática da prática e da compreensão artística tal como os anteriores, em situação cultural diversa, haviam entendido a sua necessidade aristocrática. De notar, contudo, que apesar de não ser inteiramente vã, os princípios da Democratização Cultural não significaram de modo algum, na prática, a total eliminação da desigual distribuição de haveres e saberes culturais. 186

pelo ideal da arte pela arte. A arte não académica tornava-se então não apenas antipopular como impopular, passando então, paradoxalmente, a estar em discordância com os interesses e quadros de referência culturais dominantes do público e, ao mesmo tempo, a depender cada vez mais desse mesmo público, seu potencial sustentáculo enquanto comprador. É neste contexto, profundamente marcado pela substituição de uma fruição estética imediata e "afectiva" para uma outra que se que propõe produzir um "prazer inteligente" e reflexivo, que a hostilidade ou indiferença entre artista e público mais conservador em relação à arte moderna emerge. No momento em que esta começa a opôr-se conscientemente à natureza e a renunciar a uma aparência figurativa, numa atitude de insubordinação face às convenções académicas relativas aos temas e meios de expressão para os tratar e possuída por uma "vontade de estilo" pessoal, o vocabulário aparentemente universal das formas e cores começa a ultrapassar a capacidade de compreensão imediata de um vasto público a priori interessado na sua apropriação, público esse que, na melhor das hipóteses, quando não a renuncia, espera sobre ela esclarecimentos e explicações. Os sistemas de signos não-naturalistas introduzidos pela pintura dita "abstracta" tornam-se dificilmente acessíveis ou até mesmo ininteligíveis para o observador comum, e note-se que não é só o profano que não consegue penetrar no mundo estranho e fantástico das imagens não figurativas, pois também para os numerosos espectadores cultivados cujo gosto havia sido formado pela frequência dos tradicionais salões, estas obras aparecem-lhes desprovidas de sentido e de valor, porque privadas de saber, nomeadamente de saber fazer. "Isto também eu fazia!", começa-se a ouvir dizer frequentemente. A incomunicabilidade da criação em geral e a sua demarcação relativamente às experiências e aos interesses da sociedade, decorrente da revolta no plano formal que caracterizou a viragem das artes para a modernidade, constitui, para Lucien Goldman, o problema central da cultura desde o modernismo até à contemporaneidade. Nas suas palavras, «quase toda a arte contemporânea é uma arte de recusa que se interroga sobre a existência do homem no mundo moderno e que é obrigada, por isso, a situar-se num nível abstracto, isto é, a deixar de falar baseada na história de um indivíduo ou até num acontecimento vivido (...). Isto conduz-nos ao problema da compreensão da literatura e da arte contemporânea pelo público. Como transmitir a significação de uma arte cuja

98

SANTOS, "Questionamento à volta de três noções...", op.cit., p. 700. 187

linguagem se situa cada vez menos ao nível da percepção imediata, numa sociedade em que o mesmo processo que obriga escritores a falarem desse modo impede o público, salvos casos excepcionais e um esforço particular, de os compreender e de transpôr o imediatamente perceptível? Eis o problema.»99 Desde que se começou a pôr tal problema, a tentativa da sua resolução passou, em grande parte, pela atribuição ao crítico da tarefa de colmatar a falta de inteligibilidade imediata da obra de arte, o que é notório se considerarmos a inflação discursiva que em termos críticos aconteceu na viragem do século XIX para o século XX, e que continuou a crescer no decorrer deste último. Daí Tom Wolf observar que a «nossa época não é a idade de ouro dos pintores, mas das revistas e dos textos sobre pintura», chegando mesmo a ironizar a situação ao dizer que «a arte moderna tornou-se inteiramente literária: as pinturas e outras obras só existem para ilustrar o texto.»100 Embora não sejamos tão radicais como a preposição anterior, não podemos deixar de constatar que, de facto, a depuração e auto-referenciação da arte e a inflação do discurso crítico foram processos que caminharam em paralelo, sustentando-se reciprocamente. Numa época em que a arte se tentava desprender do comodismo da Academia e dos seus mecanismos de legitimação simbólica e de difusão pública, ficando, por consequência, à mercê de uma clientela burguesa que, em vão, tenta compreendê-la, foi o crítico que veio de facto assegurar publicamente o papel de mediador simbólico entre a esfera da criação e a esfera da fruição e consumo artístico, tentando alargar o entendimento da nova arte que se ía fazendo e aplanar o caminho dos novos factos visuais junto do seu público. Propondo-se seguir a par e passo os acontecimentos apresentados publicamente como artísticos, com a intenção declarada de avaliá-los na sua dimensão estética e de esclarecer os seus significados, funcionando deste modo como orientadora dos interesses e escolhas estéticas dos públicos para que escrevia, tentando simultaneamente tornar-lhes as obras mais acessíveis e inteligíveis, a prática crítica tende assim a ocupar um lugar significativo na relação que se estabelece entre o mundo da arte e os parcos segmentos do espaço social que para ela olham com curiosidade. Esse dispositivo de mediação discursiva era tanto mais necessário quanto, numa época em que a Democratização Cultural constituía palavra de ordem, fruto dos valores 99

GOLDMANN, A Criação Cultural na Sociedade Moderna - Para uma Sociologia da Totalidade, Lisboa, Editorial Presença, 1976, pp. 71-72. 100 cit. in PINHO, A Arte como Investimento..., op. cit., p. 69. 188

igualitários proclamados pela Revolução Francesa, se pretendia que a arte e os restantes produtos de cultura fossem acessíveis (senão material, pelo menos simbolicamente) a toda a sociedade. Advogando a inadmissibilidade de que a fruição e compreensão da arte estivesse reservada apenas a um círculo restrito e privilegiado de conhecedores, a crítica aparece então arvorada de uma missão formativa e civilizadora, quase tutorial, assumindo o estatuto de actividade ao serviço do consumidor, a quem ofereceria uma interpretação e avaliação "justa", adequada ou até mesmo científica, das obras artísticas, lançando uma ponte sobre o vazio que se criava entre o artista e o público. Lopes de Mendonça definia assim, em 1849, a função social da crítica: «o seu papel é aconselhar o talento e revelá-lo ao público - ao público que num país tão pouco dado às letras, nem sempre é bom juíz dos esforços conscenciosos do poeta.»101 A função social civilizadora e formativa da crítica vem, aliás, a par da própria função social que era apontada aos jornais na época, onde o crítico começava a trabalhar: tal como refere Maria de Lurdes Lima dos Santos «o jornalismo aparecia ao intelectual de Oitocentos como um instrumento privilegiado para compensar as carências de uma escolaridade insuficiente ou irregular, permitindo uma distribuição democratizante de conhecimentos (...). Esperava-se que os jornais possibilitassem o alargamento da instrução ao maior número possível de leitores e deste modo exercessem uma função civilizadora, indispensável à promoção social dos cidadãos e ao progresso do país.»102 Esta dimensão de vocação pedagógica, como vimos atrás, no final do capítulo 1.2., ainda se encontra bastante arreigada entre a crítica que actualmente se faz em Portugal, nomeadamente tendo em conta as próprias características morfológicas da produção e condições de recepção da arte contemporânea desde que se iniciou o seu processo de entropia e de radicalização estética. Senão vejamos as palavras de Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente, acerca desta questão específica: «Hegel dizia que a morte da arte vinha de facto de ela estar condenada à compreensão, do facto de estar condenada a ser apreendida por um conceito. E, de certa maneira, as vanguardas do século XX têm tentado contrariar essa entropia através de estratégias de incompreensão, tentando transformar a arte em algo que resista permanentemente à compreensão como forma de uma certa maneira contrariar a sentença hegeliana, o fim da arte. Isso faz com que a arte contemporânea, em particular as artes de vanguarda,

101

Cit. in SANTOS, Intelectuais Portugueses na Primeira Metade de Oitocentos, op cit., p. 306. 189

se tenham caracterizado basicamente por uma permanente distorção formal que conduz a uma incompreensibilidade e a uma incompreensão do próprio objecto artístico. E é nessa incompreensão que a arte do século XX, de certa maneira provocatoriamente, gerou um contexto novo de recepção estética. Uma espécie de recepção estética perversa, ou seja, é uma recepção estética que se verifica exactamente na estupefacção do receptor, no facto dele ser confrontado com um mundo, com uma barreira de incompreensão, de incompreensibilidade. É nesse sentido que os críticos, ou os estetas, ou os teóricos da arte, procuram fazer ou estão condenados a fazer a descodificação dessas obras de arte.» E note-se que tal fenómeno, como já referimos, não foi exclusivo das artes plásticas. Também José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público, encontra as razões históricas para o fenómeno de inflação crítica que constata ter existido, nos últimos anos, na sua àrea de intervenção crítica, como decorrente do processo de entropia que igualmente ocorreu na criação cinematográfica, deixando o seu público adepto, face a este novo cinema, desprovido de instrumentos conceptuais para a sua inteligibilidade imediata: «Acho que houve uma altura em que o trabalho crítico foi hiper-valorizado, (...) (porque) a ideia de opinião começou a ganhar um peso enorme, porque por alguma razão arranjou um mercado. (...) provavelmente, porque as obras cinematográficas perderam um contacto emocional imediato, que não é imediatista, com o público, e começaram a ser obras que sobretudo se movimentavam no plano da cultura, havia a necessidade do grande interpretador, ou seja, alguém que dê acesso, "que me esclareça a que é que no fundo se refere aquele plano. Parece-me que ele se refere a algumas coisas mas ainda não sei bem o quê". Portanto, há uma elaboração da linguagem cinematográfica, em que ela se começa a referenciar à própria história do cinema, desloca-se da própria realidade quotidiana para outra realidade que é a realidade cultural, para as referências. (...) Donde os discursos sobre esses discursos começarem a ser muito, por um lado, mais fáceis, por outro lado, mais necessários, e por outro lado, mais prolixos, ou seja, começaram a haver mais discursos sobre isso, porque as próprias obras proporcionavam. Começou a haver uma vontade de confrontar o discurso sobre o discurso do cinema, vários discursos, vários pontos de vista.»

102

Idem, pp. 329-330. 190

Deste modo, a contaminação da "pureza", da singularidade e da liberdade exigida ao seu projecto criador pelas necessidades e interesses de um público "não ilustrado" foi um fantasma afastado da consciência do artista em muito através da acção do crítico. Efectivamente, para que a burguesia estivesse em condições de absorver a produção artística fabricada e distribuída no mercado independente que se consolidava, era necessário que ela fosse esteticamente cultivada e se mantivesse informada do que ía sendo produzido no domínio artístico, tentando que se delineasse na opinião pública um movimento em favor da margem crescente de artistas recusados pelo sistema académico. Tais tarefas vão ser tomadas a cargo do crítico, personagem que se até aí se limitava a acompanhar com os seus comentários a obra de tal artista ou conjunto de artista, oferecendo-lhe a sua caução intelectual, a partir daí vai ser o elo indispensável ao seu lançamento, promoção, interpretação e consagração simbólica na esfera social. Oferecendo a segurança de uma interpretação e de uma avaliação legítima porque erudita, ele tirava o leigo burguês da sua inconfortável e supostamente precária posição de produtor de sentido e de valor, remetendo-o para a posição mais fácil de consumidor. O crítico veio então vingar e proteger o artista, colocando o próprio público, filisteu, na situação de excluído de qualquer processo de apreciação e interpretação competente da obra de arte. Quando um dado segmento do público ousava afirmar - "Mas isto não é arte!..." -, logo em seguida interpunha-se um crítico que, trocando-lhe as voltas, afirmava e argumentava veementemente o contrário, conseguindo muitas vezes convencê-lo ou, pelo menos, deixá-lo na dúvida da sua incompetência. Por outro lado, também é de notar que a imagem do crítico como pessoa cultivada e de sensibilidade apurada constituía a imagem de alguém que a burguesia admirava e confiava quando, ao querer dotar-se da "boa educação" e das "boas maneiras" características da aristocracia, procurava familiarizar-se com o seu "bomgosto" e com as "coisas de cultura". Não esqueçamos que o acesso tanto material como simbólico a estas, até há bem pouco tempo, se encontrava restrito aos meios aristocráticos, religiosos e intelectuais, acesso cuja entrada o público burguês forçou via aquisição e ostentação de riquezas culturais, mais como sinal de boa vontade cultural e de êxito social que de à-vontade cultural. No entanto, ainda que a sua função manifesta tenha sido, desde a sua génese, a de proporcionar ao consumidor uma mais fácil acessibilidade e inteligibilidade da arte, tal muitas vezes não acontecia desta forma linear em determinadas circunstâncias. E não acontecia designadamente com a crítica mais próxima e mais afecta ao campo das 191

vanguardas, no interior do qual o crítico deixava objectivamente de ser um delegado do público, encarregado de orientar os seus gostos e de balizar opiniões espontâneas que sempre era de "bom tom" darem-se durante as conversas nos teatros, cafés, tertúlias, academias e outros salões mundanos, para tornar-se cúmplice directo do criador não no sentido de tornar a sua arte mais acessível ao público em geral mas, pelo contrário, de impôr a esta instância o valor da sua inacessibilidade. Nestas circunstâncias, a prática crítica tendia a converter-se, na realidade, em actividade ao serviço do criador. Mas expliquêmos mais detalhadamente esta posição. 3.3. MODALIDADES, PROTAGONISTAS E SENTIDOS DA PRÁTICA CRÍTICA Enquanto decorria a era da Academia, sendo a actividade artística concebida como regida por um conjunto de preceitos, a única avaliação possível das obras que dela resultavam seria a verificação da conformidade da prática a esse sistema, isto não apenas porque os membros dessa instituição estavam convictos de que só reproduzindo tais preceitos é que as obras seriam verdadeiramente artísticas, mas também porque, a um nível mais latente, o poder queria que também a arte estivesse obrigada à obediência de determinados princípios de autoridade que não o comprometessem. O valor estético dos objectos de arte via-se assim aqui definido pela sua conformidade aos princípios estabelecidos por aquela instituição, pressupondo-se ainda a satisfação de uma normalidade academista que atendia objectivamente aos gostos conservadores da classe dominante e reflectia o favoritismo dos detentores do poder. Neste contexto de ditadura estética, em que dominava a rigidez normativa do estreito universo simbólico da Academia, a acção dos críticos, ainda bastante limitada aos debates que se faziam no âmbito dos seus salões e às publicações por esse espaço eram promovidas, consistia basicamente em constatar se as regras que contextualizavam a feitura das obras estavam nelas patentes de forma suficientemente clara, dando a sua caução literária e intelectual àquelas que se apresentassem segundo os cânones dessa instituição. Em termos de forma, a prática crítica mantinham-se aqui ainda muito perto da tradição já traçada pela segunda geração de intelectuais academistas do século XVII e posteriormente consolidada pelos mais notáveis críticos dos salões setecentistas, como Stendhal e Diderot, tradição essa que solicitava à crítica a mera resposta pessoal ao objecto de arte, discursivamente tratada num tom em que prevalecia a descrição literária 192

sempre temperada por um certo grau de eloquência, que seria maior ou menor consoante a expressividade sentida na obra pelo crítico. Não se aventurando muito a avançar premissas teóricas de ordem estética, este estilo de crítica adaptava-se perfeitamente ao tipo de obras que privilegiava, pois tendo como base fundamental o princípio ut pictura poësis, que postulava a possibilidade de traduzir a representação pictórica em discurso literário, limitava-se a proceder a uma descrição textual do tema figurado, procurando na escolha das palavras e na articulação das frases reproduzir com a mesma intensidade expressiva a perfeição do traço e a beleza das cores, quase poetisando diante das obras. Era uma crítica ainda marcadamente diletante, em que a eloquência mascarava a superficialidade analítica que lhe era subjacente, decorrente da limitada preparação teórica de muitos críticos em termos estéticos e historiográficos. A tal situação não é alheio o facto de, neste âmbito, a prática crítica ser quase sempre exercida por homens de letras, escritores, poetas, mesmo folhetinistas, que transportavam a atitude romântica que detinham na àrea de criação, nomeadamente da criação literária, para a àrea do exercício da crítica. Faltando-lhe muitas vezes uma informação histórica e estética suficientemente aprofundada e sistematizada, ao mesmo tempo que ignorava o absolutismo da Ciência que confortava um certo tipo de prática crítica que se vinha a desenvolver gradualmente em alguns círculos académicos mais restritos que os seus salões, o crítico-poeta romântico envereda assim pela via "impressionista", fazendo passar a crítica, a par da produção artística, do terreno do consenso razoável para o terreno da intuição individual, limitando-se a transcrever em palavras a sua própria reacção à obra num tom laudatório ou censurante. Baudelaire (1821-1867), por exemplo, enquanto crítico insurgia-se sem rodeios contra aquele criticismo que, marcadamente influenciado pela corrente positivista dominante no contexto científico da época, proclamava a necessidade do exercício objectivo da prática crítica, exigindo dos seus respectivos agentes uma posição de neutralidade nas formulações discursivas, apreciações e interpretações estéticas que fizessem. Em detrimento desta atitude perante a prática crítica, ele afirmava a "imaginação", a "sensibilidade", a "inteligência" e o "entusiasmo" como condições essenciais ao seu correcto desempenho, elevando-a à altura de um acto de criação, tal como a própria poesia. Nas suas palavras:

193

«Je crois sincèrement que la meilleure critique est celle qui est amusante et poétique: non pas celle-ci, froide et algébrique, qui sous prétexte de tout expliquer, n' a ni haine ni amour et se dépouille volontairement de toute espéce de tempérament; mais - un beau tableau étant la nature réfléchie par un artiste - celle qui sera ce tableau réflechi par un esprit intelligent et sensible. Ainsi le meilleur compte rendu d' un tableau pourra être un sonnett ou une élégie. Mais ce genre de critique est destiné aux recueils de poésie e aux lecteurs poétiques. Quand à la critique proprement dite, j' espère que les philosophes comprendront ce que je vais dire: pour être juste, c'est-àdire pour avoir sa raison d' être, la critique doit être partiale, passiounée, politique, c'est-à-dire fait à un point de vue exclusif, mais au point de vue que ouvre le plus d' horizons.»103 Temos então a afirmação de uma crítica subjectiva por excelência, sempre parcial, apaixonada, política e exclusiva, sujeita ao erro e reivindicando justamente o direito de errar, tendo sempre como objectivo abrir os horizontes da obra, ou seja, as suas possibilidades de sentido. Nesta perspectiva, em total contraste e ruptura com a crítica de inspiração positivista que se desenvolvia na altura em alguns meios académicos que se orientavam para a pesquisa "pura" e profunda sobre as artes e a literatura, que considerava fria e algébrica, Baudelaire propunha uma crítica cujo objectivo seria a passagem à escrita da impressão intuitiva que a obra produz no sujeito crítico, que se quer sobretudo inteligente e sensível. Victor Burguin interpreta esta opção de crítica como sintoma da consolidação da confiança burguesa na sua hegemonia política e ideológica. Citando Raymond Williams, ele concorda que «the notion that response was judgement depend, of course, on the social confience of a class an later a profission.»104 Com efeito, partindo geralmente do espaço social da burguesia como "filho", o crítico que optava por verbalizar sua resposta "espontânea" perante o objecto de arte estava, decerto, em melhores condições para ser compreendido e aceite por aqueles que, provenientes do mesmo meio social e cultural de origem que o seu, alargavam as fileiras do público interessado em matéria artística, convencendo-o rapidamente da credibilidade das suas opiniões sem que para isso necessitá-se tecer profundas e complexas argumentações

103

Cit. in MESNIL, Michel, "La critique et Thésée", in Corps Écrits: La Critique Aujourd' hui, Paris, nº23, Setembro de 1987, p. 146. 194

para justificá-las. Era sobretudo a sua sensibilidade que, em contacto com a obra e passada à escrita, vibrava em perfeita sintonia com outras sensibilidades similarmente expostas ao mesmo objecto. Desprovidos do capital teórico que ía sendo acumulado em algumas zonas académicas que se dedicavam exclusivamente à investigação "pura" e à crítica "séria" sobre artes e literatura, esta mais de carácter filosófico e/ou historiográfico e quase sempre distanciada da produção artística contemporânea, o crítico-poeta romântico e o seu público mais fiel refugiavam-se de facto na afirmação da sensibilidade, em contraposição à racionalidade científica, como base primordial para uma relação privilegiada com objecto de arte. Quando essa sensibilidade era tomada como mais apurada e associada ao dom da palavra, como acontecia no caso do poeta ou do homem de letras em geral, a verbalização da sua relação com o objecto de arte assumia privilegiadamente o estatuto de discurso crítico, embora muitas vezes este se confundisse com discurso propriamente literário. A mera erudição literária e incompetência estética dos literatos que, numa atitude de amadorismo esclarecido, comummente associavam à sua actividade criadora no âmbito da literatura o exercício da crítica (e frequentemente não apenas a crítica de arte, mas também de outras àreas culturais), aparece bem expressa nas páginas que JoséAugusto França dedicou à análise da situação da crítica de arte em Portugal no período oitocentista: diz França acerca de Garrett, das primeiras excepções no nosso país a escrever criticamente sobre pintores vivos, que «mais sensível do que culto, fora do domínio literário não tinha orientação profunda. Nesse seu exemplo, de resto, se poderia determinar o estado genérico das relações dos escritores românticos com as belas-artes.» Os próprios colaboradores da Revista de Belas-Artes nascida em 57 tinham noção da sua falta de capital estético, quando afirmavam que «precisavam de desculpa e de benevolência (...) porque se atreviam a assuntos da máxima transcendência, não só porque não tinha dirigido para aí os seus estudos especiais mais ainda pela escassez para não dizer falta absoluta de quaisquer fontes, por piores que elas fossem, onde pudessem colher esclarecimentos e dados para tratar das boas artes portuguesas». Este exame de

104

Cit. in BURGIN, The End of Art Theory. Criticism and Postmodernity, London, Macmillan, 1992, p. 151. 195

consciência, comenta Augusto França, traduz a situação real que conhecemos desse período do romantismo em Portugal e pode bem servir como seu comentário.105 Também Ramalho Ortigão, em 76, revelava tal situação, lamentando as suas consequências perversas a nível do campo artístico nacional: «o mal de que os pintores padecem não provém deles (...) provém da sociedade que eles representam». No seio desta, «o público era, em toda a questão de arte de uma ignorância ilimitada, assombrosa» - e como poderia esta «sociedade incolor» não ser «rebelde à pintura»? O resumo brutal da situação era que «não tínhamos escola, não tínhamos galerias e não tínhamos público», atribuindo grande parte da responsabilidade dessa conjuntura, «aos nossos homens mais eminentes nas ciências e nas letras», que tinham, «na crítica de arte, uma incompetência que compungia». Tal como refere França, «neste passo, Ramalho criticava os Andrade Corvo, os Luciano Cordeiro, os Latino Coelho - e até ele próprio, em certa medida... E justamente o fazia, aos vários níveis em que vimos desenhar-se a crítica e a história da arte em Portugal, obra de curiosos, em revistas e magazines mal orientados, desde os alvores do romantismo (...).»106 Ainda acerca deste personagem, Ramalho Ortigão, o autor continua justificando essa sua posição: «se se situava ao nível de um cronista, não deixava, porém, de ser situável para além do comentário jornalístico que outros faziam mais assiduamente, mas com menos ideias gerais e menor estruturação/reflexão estética. A crítica de arte era para ele "o mais proeminente e o mais complexo emprego em que sse pode exercer a capacidade de um escritor" - e ele próprio dizia não ser crítico mas "apenas um simples e modesto artista da crítica, comunicador de impressões pessoais", para quem os estudos de arte constituíam, "talvez, o objecto principal das (suas) curiosidades".»107 Enfim, talvez um dilentante mais consciencioso... Pesando os efeitos da existente relação entre críticos-literatos e as Belas-Artes, França conclui que «a situação da crítica de arte, no seu exercício por gente de outra ocupação literária, mostra-nos, sem dúvida, certas relações entre a arte e a literatura, desde Garrett e Rebelo da Silva a Latino Coelho - mas, no fundo, a ligação foi parca e duvidosa»108, isto na medida em que se, por um lado, a atenção que davam a esta àrea de criação era mínima em relação, por exemplo, á própria literatura ou ao teatro, por outro, essa mesma relação não se tradiziu de modo algum num incremento da dinâmica 105

FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit, Vol. I p. 391. Idem, p. 464. 107 FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., Vol. II, p. 100. 106

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de funcionamento do campo artístico português, quer na sua dimensão de produção, quer na de consumo. As águas por aqui continuaram praticamente estagnadas... A frequente associação entre artistas e escritores que acontecia no ambiente cultural oitocentista, mais uma vez demonstrando a extrema promiscuidade que, como vimos atrás, caracterizava as relações entre os diferentes agentes culturais nessa época, fazia parte, nas palavras de Maria de Lurdes Lima dos Santos, de uma política de apoio mútuo que permitia a uns e a outros recolher reciprocamente alguns dividendos simbólicos: no caso dos escritores, esses dividendos eram auferidos através da aproximação propiciadora de acesso a um saber próprio da aristocracia cultivada; no caso dos artistas, estes receberiam uma caução discursiva e intelectualizante para as suas obras por parte de quem melhor representava a "arte de bem escrever e argumentar". E note-se que o quase monopólio dos lugares da crítica por parte de homens de letras não era particular ao caso das Belas Artes, pois também acontecia no domínio do teatro e, embora com menor frequência, no domínio da música.109 Se bem que possamos encontrar as raízes mais profundas dessa associação junto do clima academista característico do século XVII, onde o intelectual e o artista, muitas vezes reunidos na mesma pessoa, se moviam livremente quer em termos de criação, quer em termos de comentário, entre os mais diversos domínios criativos, foi apenas aquando da revolução cultural romântica que ela emergiu de forma sistemática. Daqui não estará decerto desligado o facto dessa revolução, apesar de depressa se ter alargado a todos os domínios de criação artística, ter sido iniciada no domínio das letras, encabeçada pelo movimento Sturn end Drang, o que veio não só a pôr em lugar de destaque o poeta-escritor no panorâma cultural da época, como a suscitar uma enorme proximidade e solidariedade entre esse personagem e os artistas em geral, que o mandataram, enquanto dotado do dom da palavra, de enunciar, explicar e discutir a sua produção. Foi neste contexto que se pressupôs a existência de uma afinidade estrutural entre a arte e a literatura, representada pelo princípio ut pictura poësis, afinidade essa que se estenderia desde os seus conteúdos e temas, passíveis de serem transpostos

108

FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., Vol. I, p. 404. Ver SANTOS, Os Intelectuais Portugueses em Oitocentos, op. cit, p. 388. No caso português, por exemplo, temos os nomes de Garrett, Rodrigo Paganino, Herculano, Castilho, Mendes Leal e Rebelo da Silva a colaborarem frequentemente em diversos jornais especificamente artísticos e teatrais, ocorrendo

109

197

discursivamente, até à correspondência entre a perfeição do traço e o tímbre da cor e o som da palavra, de maneira a exprimir verbalmente o mesmo registo de intensidade expressiva atribuído à obra. Estabeleceu-se então a crença de que qualquer obra de arte expressaria, do seu modo particular, uma poética, passível de ser transcrita literariamente. E se assim acontecia, quem melhor que o homem de letras, romancista ou poeta, para clarificar e transpôr em palavras a poética intrínseca à obra? Delineia-se assim uma crítica das poéticas que, longe de teorizar do ponto de vista propriamente estético e analítico a obra de determinado autor, partindo daí para a atribuição do seu valor artístico, avaliava sobretudo o esforço criativo e expressivo nela contido através da verificação das suas "possibilidades poéticas", ou seja, das suas capacidades, em termos formais e de conteúdo, de suscitar discurso paraliterário ou até mesmo literário. Este tipo de crítica, promovendo a descrição e o elogio poético à beleza e perfeição do traço, adequava-se perfeitamente quer aos interesses de uma estética académica, não só não pondo em causa como até caucionando os cânones naturalistas que essa instituição prescrevia, quer às necessidades culturais do público não iniciado em matéria de artes que se estendia cada vez mais e que facilmente se impressionava com a eloquência impressa na argumentação do crítico. Este, por sua vez, era facilmente compreendido pelas acrescidas fileiras de curiosos e amadores de arte, que admiravam o seu dom de palavra, cumprindo assim da melhor maneira a missão civilizadora a que propunha como actividade ao serviço do consumidor. Quando saímos da era da Academia, em que reinava um modelo monolítico de valores estéticos, e entramos gradualmente na era do Mercado, em que pluralidade e complexidade passam a ser características marcantes no campo da arte, vemos notoriamente o crítico a deixar de ser um mero intermediário passivo que se contentava em arbitrar a conformidade ou não aos cânones académicos e em caucionar literariamente o ideal de beleza que estes precreviam, para passar a assumir neste campo um papel cada vez mais activo, com uma intervenção importante e poderosa nas lutas pela legitimidade artística. Mas o facto da Academia ter perdido grande parte do poder legitimador que detinha no campo artístico não implicou que a "arte académica" tenha desaparecido de uma vez por todas. Por outro lado, o facto desta nova estrela, o crítico, subir ao firmamento do universo da arte também não fez revolucionar de uma só vez a maneira de julgar esteticamente. Assim sendo, a existência de uma multiplicidade de também de quando em quando publicarem crónicas e artigos críticos sobre artes plásticas e/ou questões estéticas de ordem genérica em jornais especializados em literatura. 198

grupos independentes de artistas em oposição aos oficiais e aos seus seguidores, obrigou-o a escolher o seu campo de actuação. Ele vai ser a favor ou contra os movimentos oposicionais? Vai inscrever-se ou não como agente activo no mercado independente? Consoante se integre num ou noutro caso, as suas propostas judicativas e interpretativas e o próprio estilo em que as propõe vão ser necessariamente diferentes. Efectivamente, muitos críticos, apesar da sua acção discursiva já não se encontrar obrigatoriamente enquadrada dentro dos muros da instituição académica e dos salões promovidos sob a sua alçada, mantiveram-se mais ou menos próximos dos valores já reconhecidos anteriormente, promovendo insistentemente os mesmos temas, os mesmos meios de expressão artística e a mesma hierarquia querida à Academia. Acomodados ao realismo naturalista que havia imperado até aí, continuaram a alimentar o preconceito contra as novas tendências da arte que se desenvolviam sob os seus olhos, e a reproduzir o estilo de crítica literarizante a que estavam habituados a praticar. Este, por sua vez, ao ser admirado e facilmente apreendido por um vasto público, ajustava-se aos interesses logísticos e mercantis do espaço da imprensa quotidiana e generalista, onde o crítico conquistava lugar em detrimento da Academia e das suas publicações restritas. A tradição do lugar da crítica ser ocupado por homens da criação literária continuou mesmo quando começaram a surgir os primeiros grupos de artistas independentes e quando ambos, crítico e artista, decidiram entrar no jogo livre do mercado110. No entanto, no seio destes grupos, nomeadamente daqueles que se seguiram ao movimento impressionista, o estilo crítico da descrição literária e da transposição das poéticas foi cedendo ao tom teorizador e à apreciação da forma plástica propriamente dita, com o crítico, agora já não o literato mas o próprio pintor e/ou o ensaísta, a entrar no detalhe estético e analítico da obra. Aqui a crítica deixou então de ser apenas uma prática de acompanhamento discursivo da obra para se tornar numa tentativa de teorizar conceptualmente as novas e peculiares formas plásticas que surgiam em crescendo, assumindo um tom mais analítico e ensaístico do que propriamente poético ou descritivo.

110 Basta recordar, entre outros exemplos, a acção de Mallarmé e de Emile Zola em prole do movimento impressionista; a acção de Apollinaire enquanto companheiro e porta-voz dos fauvre e dos cubistas, chegando mesmo a prever e a anunciar antecipadamente o surrealismo; a acção de Marinetti ao conduzir discursivamente a polémica em torno dos futuristas, tornando-se dirigente deste movimento e responsável pela sua política; e a acção de Bréton e de Cocteau ao consubstancializarem teoricamente a propostas estéticas saídas da corrente surrealista.

199

Como é notório, esta modificação na forma de praticar a crítica foi a par do processo de autonomia da forma pictórica enquanto tal, para o estabelecimento do qual também concorreu decisivamente. Argumentando no sentido de constatar a pintura como facto criativo autónomo do real, sem referência a qualquer sujeito empírico, a crítica encaminhou-se ela mesma para a exploração da análise interna da obra, contribuindo para fixar-lhe os elementos como picturalidade pura. O discurso da crítica vê-se assim desviado da literatura para a análise propriamente plástica, preocupando-se sobretudo

em

fornecer

uma

argumentação

que

não

apenas

"preenchesse"

semanticamente a forma pictórica, cada vez mais afastada das suas referências exógenas e de uma possibilidade de sentido imediato, como a justificasse conceptualmente na sua intenção artística. Nesta perspectiva, o processo de entropia artística enveredado pelas vanguardas foi acompanhado e sustentado por um processo de entropia da própria crítica, que se autonomizou das suas tradicionais referências literárias por via da assumpção de um discurso no qual passaram a dominar as referências propriamente estéticas. Tendo em conta que o processo de entropia artística não foi exclusivo do domínio das artes plásticas, tendo decorrido mais ou menos simultaneamente em todas as áreas artísticas como tal consagradas nessa altura, a prática crítica que as acompanhava de perto também não deixou de ser atingida por esse processo, daqui decorrendo a sua desmultiplicação e especialização consoante as várias àreas artísticas em que actuava. Tal especialização passou pela produção e reprodução de uma linguagem cada vez mais sofisticada e "abstracta", que traduzia o domínio de todo um conhecimento histórico e teórico específico a cada àrea artística em que a prática crítica intervinha. A produção e o manuseamento dessa linguagem veio tornar o crítico num verdadeiro especialista independente, autónomo quer do campo de criação, em relação ao qual se apresentou assim ilibado de ter qualquer tipo de preparação prática enquanto criador para legitimamente emitir uma opinião como crítico, quer do campo de consumo ou recepção não-especializada, aos olhos de quem passou da condição de literato eloquente e sensível, dotado do dom da palavra, para a condição de especialista que sabe do que fala, dotado do conceito, ou seja, do conhecimento específico da área em que intervém. Quer isto dizer que a produção e a utilização de um vocabulário eminentemente analítico, que integrava todo um conjunto de termos filosóficos e científicos ao lado de outros tantos criados pelo próprio crítico em função da sua intenção de profundidade interpretativa e explicativa, em detrimento da costumada linguagem literária, veio a 200

participar directamente no jogo de usurpação do terreno da crítica ao criador e do seu respectivo

silenciamento

discursivo,

nomeadamente

ao

literato,

ajudando

simultaneamente na demarcação do crítico face ao receptor "comum". Por via desta estratégia, o lugar da crítica tornou-se assim num espaço cada vez mais autónomo e independente, com requisitos específicos em termos de competências teóricas e históricas, mais que sensitivas e elocubrativas, exigidas à sua ocupação, muito embora os agentes que o viessem a ocupar pudessem acumular outras actividades de âmbito cultural nas restantes dimensões do campo artístico. A especialização e o consequente ganho de autonomização do espaço da crítica, nas suas várias áreas de intervenção cultural, por via da criação e apropriação (de outras disciplinas já existentes) de um vocabulário conceptual e da sua operacionalização sobre a produção artística contemporânea, tendo demarcado o exercício crítico do exercício literário, o crítico do literato ou do artista diletante e "bem-falante", é um fenómeno que nos aparece testemunhado em algumas das proposições lançadas pelos nossos entrevistados: «De facto, a crítica como actividade autónoma, autónoma no mesmo sentido em que podemos falar da autonomização da arte, é qualquer coisa recente e que só se dá neste século. Portanto, a crítica reconhecida como campo de especialização, como um campo de saber, por vezes um saber quase positivista, advém do facto de correntes da teoria literária neste século terem fornecido determinado número de mecanismos conceptuais para se fazer crítica, o que tornou a crítica numa actividade especializada, e tornou o crítico independente do próprio escritor. Isto é, o escritor detém um tipo de saber, o crítico detém outro tipo de saber. Um manipula e trabalha com um material, o outro trabalha com outro material diferente, muito embora o material com que o crítico trabalha - os conceitos, os códigos, etc - são leis deduzidas a partir das obras, do estudo das obras. A partir do momento em que o crítico passou a ter uma linguagem autónoma - que caiu obviamente em exageros, porque por vezes autonomizou-se demasiado e quase perdeu-se de vista aquilo que era a obra original -, deixou de ter sentido dizer que o crítico é um artista falhado.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso)

201

«Sei que há muitos críticos de arte que têm formações completamente diferentes daquilo que exercem, mas a maioria deles são de facto pessoas formadas em BelasArtes. Vou lhe dar um exemplo: o Eurico Gonçalves, o Fernando de Azevedo, a Sílvia Chicó, estou-lhe a falar só de alguns. Depois há pessoas que não sendo propriamente da área de pintura ou de escultura, são historiadores da arte, o José Augusto França, o Rui Mário Gonçalves, o João Pinharanda, toda essa gente. São pessoas que não sendo propriamente artistas, estão dentro de uma área que trata esses pontos. Devo-lhe dizer que apesar de tudo, um indivíduo sendo pintor ou escultor, tem uma certa vantagem sobre o crítico de arte que vem de uma formação eminentemente teórica, porque sabe fazer as coisas. (...) De qualquer maneira, exceptuando pessoas muito excepcionais, as pessoas que vinham da formação de pintura faltava-lhes, não lhes falta agora, formação teórica que completasse essa área puramente técnica. (...) O que eu penso que é realmente fundamental é uma pessoa ter uma bagagem sobre história de arte portuguesa, sobre história de arte internacional, sobre estética, sobre filosofia, sobre sociologia, obviamente. No fundo, ter uma bagagem que lhe permita elaborar um discurso, porque o problema aqui também é um problema de ser capaz de elaborar um discurso. (...) E realmente um objecto material põe-nos problemas muito complicados de explicitar. Como é que eu vou explicar que aquele quadro formalmente está bem equilibrado? Porque tem um peso, porque tem uma distribuição lumínica de uma certa maneira, mas é preciso saber esses termos todos, é preciso dominar essa linguagem, tudo isso. Ora, quem não sabe isso, dificilmente consegue expressar aquilo que viu. Pode ler muito bem o quadro, mas depois não consegue transmitir ao público aquilo que leu. E aí fica uma coisa que não é uma leitura visual. (...) Porque se nós somos demasiado criativos, fazemos como fazia o Diderot, que começava a olhar para o quadro e a contar a históra do passarinho e da menina que estava lá representado. E então acabou a crítica e passou a haver um texto muito bonito do Diderot. (...) Porque realmente há um discurso e há um conjunto de aparelhos operatórios que permitem trabalhar.» (Cristina Azevedo Tavares, crítica de artes plásticas no Jornal de Letras) É nesta óptica, onde o talento analítico se sobrepõe ao talento criativo e estilístico para a ocupação do lugar do crítico e em que o acesso a este pressupõe a posse de determinadas competências teóricas especializadas, que os nossos entrevistados unanimemente rejeitam as premissas, normalmente avançadas pelo pólo da criação, de que "o crítico é um artista frustrado", ou de que ele "não deve falar sobre 202

o que nunca praticou". No entanto, o crítico no estatuto de especialista independente foi, em Portugal, relativamente tardio por comparação aos principais centros de produção artística internacionais. Segundo o testemunho de Júlio Conrado, as reivindicações de especialização analítica na área da crítica de literatura, somente começaram a acentuar-se em fins da década de 60, princípios da década de 70, quando pela mão de Jorge de Sena, Melo e Castro e, com maior enfase, Eduardo Prado Coelho, se começou a praticar uma crítica em moldes universitários, intimamente relacionados com o paradigma estruturalista proposto por Barthes e com outros paradigmas importados das diências sociais e linguísticas (semiótica, psicanálise, sociologia, etc), em algumas revistas especializadas da altura.111 Na área das artes plásticas, foi também somente depois dos anos 50 que a crítica se começou a fazer já não por literatos diletantes e jornalistas cosmopolitas, mas por artistas com alguma formação estética teórica e, já nos anos 60, por especialistas de competência teórica adquirida e reconhecida institucionalmente. Segundo José-Augusto França, «a crítica de arte em Portugal, pelos anos 50 fora, iria, de resto, evoluindo. Por um lado, ela continuava a cargo de jornalistas de boa vontade, como (e eram os principais, por prática já antiga) Luís Teixeira no "Diário de Notícias" (e depois Artur Maciel), Artur Portela no "Diário de Lisboa" e Julião Quintinha na "República", "repórteres de arte", como acusara um jornal especializado, em 47 (mais concretamente o "Horizonte", em que se lê, anonimamente, que "em Portugal somente existem repórteres de arte - pessoas que vão às exposições fazer relatos, às vezes literários"). Mas, por outro lado, já íam-se encontrando nomes mais ou menos alheios aos quadros profissionais dos quotidianos, como Celestino Gomes (médico, escritor e desenhador), aos fim dos anos 40, e depois, desde cerca de 51, no início de uma carreira que seria especialmente persistente, o arquitecto e pintor Mario de Oliveira, no "Diário Popular"; Matos Sequeira e Leitão de Barros n' "O Século", Fernando Pamplona (e mais tarde o poeta Fernando Guedes) no "Diário da Manhã" e ao microfone da Emissora Nacional, Roberto Nobre (que há muito desistira da prática artística) n'"O Primeiro de Janeiro" aos quais se deve acrescentar Selles Paes no semanário monárquico "O Debate", antes 111 Embora tal situação, convenhamos, já tivesse antecedentes, pois, como Júlio Conrado refere, já em 1938, no jornal "Sol Nascente", João Pedro Andrade reinvindicava a especialização na ocupação dos lugares da crítica. Nas palavras deste último: «A crítica faz-se de conhecimento e de comparação. (...) Não é ao poeta, ao romancista, ao dramaturgo, mas ao crítico que deve pedir-se crítica... E seria sumamente interessante que o crítico, especializando-se, renunciasse a outro género literário que não fosse o ensaio, e que o literato, seguindo irresistível vocação, desistisse de exercer toda e qualquer actividade crítica.» Cit. in CONRADO, Olhar a Escrita, Lisboa, Vega, s.d., p. 40.

203

de assumir lugares no "Diário Ilustrado" (desde 1956) e no "Panorama" (fins de 50). O pintor Lima de Freitas estaria ainda no activo no semanário "Átomo" desde 51, e o pintor José Júlio manteria pelouro no semanário "Ler", em 52-53. Critérios diferentes de modernidade, com maior ou menor eclectismo, presidiam às suas críticas de exposições. Uma maioria de artistas constitui então os quadros da crítica; à falta de críticos de arte e perante eruditos "incapazes duma sensação pura, duma receptividade sem preconceitos", os artistas vêem-se obrigados a desdobrar-se em críticos, afirmava Diogo de Macedo em 45, e a sua declaração era cada vez mais verdadeira. (...) No "Horizonte" publicou, como vimos, os seus primeiros artigos de crítica de arte J.-A. França, que seria colaborador de "KWY" e de "Colóquio". De formação literária (publicara algumas obras e fizera crítica literária e cinematográfica), o seu interesse pela pintura manifestou-se em 46, após primeiras e então raras viagens a Espanha e Paris; frequentes viagens pela Europa e ás Américas forneceram-lhe informação para um trabalho que foi aprofundado, até se instalar em Paris, de 59 a 63, como bolseiro do Governo francês, a estudar sociologia da arte com P. Francastel e a praticar regularmente, na revista "Art Aujourd'hui", crítica de exposições - o que, nas condições culturais da vida artística nacional, não pudera fazer em publicações portuguesas. Ligado ao movimento surrealista em 47, teve papel polémico contra os neo-realistas e de novo, nos anos 50, ao defender a arte abstracta, cujo primeiro salão nacional organizou, na única galeria de arte existente em Lisboa e que ele próprio dirigia. (...) A sua acção de ensaísta, crítico, conferencista e de organizador de exposições e debates marcou em alguma medida os anos 50 (...). Ao termo desses anos, outros críticos mais jovens, então surgidos, deram colaboração e continuidade à acção deste autor - particularmente Fernando Pernes, Rui Mário Gonçalves (que, estudante de Ciências, começou cedo, cerca de 58, uma notável actividade pedagógica no quadro de associações escolares universitárias) e, mais brevemente, embora com assinalável capacidade de especulação intelectual, Alfredo Margarido. Todos eles seriam bolseiros da Fundação Gulbenkian para seguirem os cursos de P. Francastel que J.-A. França frequentava em Paris, e os dois primeiros (...) beeficiaram, entre 62 e 65, do Prémio de Crítica de Arte instituído pela mesma fundação e suspenso depois.»112

112

FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XX, op. cit., pp. 470-475. 204

O fenómeno de especialização da crítica trouxe consigo, porém, alguns efeitos perversos. Ao dotar-se de uma nomenclatura cada vez mais especializada, a crítica vai muitas vezes cair na tentação de tornar os seus discursos tão herméticos e enigmáticos como a própria obra em causa para o público não iniciado nos mistérios da arte moderna e no discurso estético, saindo daqui frustrado o objectivo liberalizante a que se propunha aprioristicamente, ou seja, a de funcionar como espaço de entendimento artístico alargado, objectivo tão simpático aos valores de democratização cultural que se enraizavam desde Oitocentos. O estatuto manifesto da crítica enquanto actividade ao serviço do consumidor viu-se então, no âmbito das vanguardas, objectivamente invertido, mostrando-se uma prática bastante mais útil ao criador, na legitimação e caução intelectual da sua obra, do que propriamente ao fruidor dos valores artísticos, nomeadamente ao fruidor mais leigo e/ou ao mais conservador. Ao rejeitar uma atitude meramente contemplativa perante a obra, em que o crítico, armado de uma cultura eminentemente literária, se punha na estrita posição de lector, a crítica vanguardista abandona efectivamente a tradicional postura diletante e vem, pelo contrário, tomar a forma de uma crítica militante e activa em termos de produção de sentido, integrando os próprios grupos e participando activamente na concepção dos seus diferendos, com a intenção não apenas de os explicar e divulgar, mas sobretudo de estimular, codificar, sustentar e desenvolver teoricamente as possibilidades picturais que lhes eram latentes. A sua atitude torna-se, neste contexto, eminentemente política, de tendência, plenamente integrada no violento combate ideológico que se travava contra o conservadorismo burguês que dominava quer entre as tradicionais instituições artísticas, quer entre grandes faixas do público interessado em questões artísticas. É nestas condições que a figura do crítico começa a aparecer em primeiro plano nas múltiplas polémicas e querelas que se desenvolviam no interior do campo artístico, cultivando no seu habitus uma extrema disponibilidade para o antagonismo belicista. Batendo-se contra a ortodoxia dominante e propondo-se ajudar a projectar a arte sempre em frente, para além da tradição académica, o crítico perfila-se assim no campo das vanguardas fundamentalmente como um agente de inovação, dedicando-se mais à enunciação e à conceptualização das novas propostas artísticas do que propriamente ao seu esclarecimento directo e claro. A eficácia da sua acção de legitimação e de estimulação estética em relação a essas novas propostas exigia da sua argumentação o máximo de aprofundamento teórico, demonstrativo da própria profundidade e 205

complexidade sugerida pelas obras. Por outro lado, só demonstrando a capacidade de dominar analiticamente essa profundidade e complexidade é que a sua acção adquiria a credibilidade e a legitimidade necessárias à sua eficácia simbólica no universo cultural, pelo que o hermetismo da sua gíria cada vez mais especializada também funcionava como estratégia de demarcação do espaço da crítica face ao cada vez maior número de agentes culturais que se moviam no campo artístico. A utilização de uma linguagem conceptual funcionava para os críticos não só como instrumento prático de combate na luta que travavam pelo monopólio do poder legítimo da avaliação e interpretação estética com os agentes exteriores ao seu próprio campo, que se via cada vez mais autónomo como campo privilegiado na produção de sentido e de valor estético sobre as obras ditas artísticas, como também na luta que estabeleciam entre si próprios pela imposição da definição dominante de arte, permitindo a definição do seu próprio ponto de vista e a sua demarcação face aos pontos de vista dos seus pares adversários. Com efeito, o crítico que trabalhava no âmbito dos movimentos vanguardistas não se limitava a ter que sustentar convictamente um grupo oposicional em conflito aberto com os oficiais, num sistema de duas vozes opostas; tinha também que produzir e caucionar a demarcação do "seu" grupo específico face aos seus congéneres vanguardistas, jogo sobre o qual ele próprio jogava a sua reputação e o seu poder de consagração como crítico. Ora, grande parte dessa reputação dependia efectivamente do grau de densidade e complexidade teórica e estética que conseguia fazer imprimir às obras do grupo que defendia, assim como do grau de aceitabilidade e de plausibilidade das categorias de percepção, classificação, apreciação e interpretação que articulava no discorrer da sua argumentação. No contexto do modernismo artístico português, não vale a pena termos qualquer espécie de ilusão quanto ao papel de inovação e conceptualização da crítica. É praticamente inexistente uma crítica vanguardista tal como a temos apresentado até aqui. «Obra de gente sem a menor preparação estética, nem uma mínima prática visual», desde o seu início em meados de Oitocentos até meados do nosso século, interveio sempre «com a costumada indulgência e riqueza de adjectivos», perfilhando quase unanimemente de valores decadentistas em relação aos vários movimentos vanguardistas que timidamente se foram desenhando no nosso espaço nacional, situação

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que França designa de atemporalidade conservadora de valores sempre oitocentistas113. No fim do seu estudo, José Augusto França conclui que «ao longo destes cinquenta anos que o nosso inquérito cobriu (1911-1961), se verificou sempre uma oposição vigilante, larvar ou declarada, a tudo quanto fosse "moderno". Agindo em nome de uma tradição que a própria cultura oitocentista justificava mal, já em 1911 os artistas "livres" se viam atacados, e os "humoristas" depois, e os "modernistas" do Porto; Amadeo era agredido na rua e os futuristas tratados de paranoicos; (...) os neo-realistas e os surrealistas eram vistos como "inimigos declarados da Pátria" uns, "fora da nossa sensibilidade e da nossa cultura ocidental" os outros, e contra Azevedo, Lemos e Vespeira apelava-se para a Polícia em 1952 como em 16, contra Amadeo; dos abstractos, achava-se que não falavam à sensibilidade nem ao entendimento; (...) e, ainda em 1966, se denunciava a clique judia dos modernistas, num catálogo do Museu de Arte Contemporânea...»114 Com efeito, os críticos instalados nos jornais e revistas de grande público foram sempre servidores dos detractores dos valores modernistas e geralmente tomavam partido contra as inovações, troçando delas. «Geralmente isto sucede, explica França, por um imediato desajuste cronológico, num anacronismo que as dificuldades da informação no século XIX explicam, mesmo depois de o caminho de ferro estabelecer ligação fácil com Paris, centro irradiante da cultura estética do ocidente, em melhor relação com a mentalidade portuguesa.»115 Os adjectivos "bizarro", "desacertos", "mamarrachos", "exageros", "extravagâncias", "anarquismo" e outros tanto ou mais depreciativos foram os mais utilizados no acompanhamento crítico dos principais momentos da modernidade portuguesa: a Exposição Livre de 1911, os vários Salões de Humorístas e de Modernistas que decorreram até aos anos 20, o Salão dos Independentes em 1930, a Exposição do Grupo dos Surrealistas em 40. Somente este último evento gozou de algum apoio crítico concreto, quer ao nível da crítica exercida na imprensa generalista («tudo dependendo da camaradagem do jornalista e muito do prestígio pessoal de António Pedro», no dizer de França), quer ao nível de uma imprensa especializada (nomeadamente através de alguns artigos de Jorge de Sena na Seara Nova), quer ainda ao nível do próprio manifesto, com a publicação de quatro "Cadernos Surrealistas": o "Protopoema da Serra de Arga", de António Pedro, um "Balanço de Actividades Surrealistas em Portugal", de J. A. França, "A Ampola 113

FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., Vol. I, p. 434, e A Arte em Portugal no século XX, op. cit., p. 522. 114 FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XX, op. cit., p. 521. 207

Miraculosa", romance gráfico em treze imagens seleccionadas em livros e revistas ilustradas, e o próprio catálogo da exposição, com declarações pessoais dos participantes que resumem as razões de terem aderido ou assumido as responsabilidades do movimento surrealista.116 Este grupo teve o privilégio, podemos assim dizer, de encontrar em José-Augusto França o seu porta-voz e teorizador fundamental em algumas revistas especializadas da altura, acreditando que «o único acontecimento artístico (e tanta outra coisa mais) em Portugal nestes últimos cinco anos foi o aparecer de um movimento surrealista» (escrevia ele em 51 na "Seara Nova", A Nova Pintura em Portugal).117 Situação realmente privilegiada a deste grupo, tendo em conta que na ausência de um porta-voz, as diversas revistas especializadas que se propunham servir de manifesto e de estímulo aos grupos de artistas mais iconoclastas que apareceram no início do século em Portugal (como a Orfheu no início do século, a Contemporânea em 15, a Centauro em 16, a Portugal Futurista em 17 e outras que daí para a frente se tentaram), normalmente organizadas por artistas desses mesmos grupos, que não encontravam na imprensa generalista voz impressa, resultaram sempre em tentativas efémeras e fracassadas nos seus objectivos fundamentais, dada a pouca sensibilidade do público português às suas causas. O imaginário naturalista pequeno burguês dominava e a galhofa era geral, na imprensa portuguesa, contra estas novas revistas e a "arte bizarra" que promoviam. E assim continuou a situação (da) crítica ao longo das décadas de 30 e 40: no dizer do autor que temos vindo a citar, «a crítica de arte estava então, como nos anos 20, sujeita à simpatia de quatro ou cinco jornalistas camaradas dos "modernos": Artur Portela, Luís Teixeira, Vítor Falcão, Augusto Pinto, o próprio António Ferro, no "Diário de Lisboa" ou no "Diário de Notícias". Mas por todo o lado os inimigos espreitavam: na "Ilustração", o próprio director queria fazer ajoelhar os "novos" diante dos quadros de Veloso Salgado: "Peçam perdão das ofensas feitas ao mestre!» ou, falando da A. Saúde, proclamava: "Ainda há pintores em Portugal!". Na "Civilização", em 31, como n'"O Século Ilustrado", em 40, publicavam-se ainda gostosamente anedotas soezes contra o futurismo e ataques contra "Picasso e os seus mamarrachos".»118

115

FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., Vol. II p. 360. FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XX, op. cit., p. 388. 117 Idem, p. 399. 116

208

Actualmente, a crítica conserva ainda um lugar importante no debate estético e na promoção pública das diversas correntes e criadores artísticos. Apto a produzir sistemas de pensamento e a incentivar, caucionar ou até mesmo traçar programáticas de acção estética, o crítico ainda contribui em larga escala no desenvolvimento das suas possibilidades estéticas e no seu êxito ou fracasso no interior do campo artístico. No entanto, apesar de ainda hoje ela continuar a estabelecer elos de cumplicidade com determinadas comunidades ou movimentos artísticos, verifica-se que essa cumplicidade tende cada vez mais a perder a sua dimensão vivencial e a restringir-se à sua dimensão intelectual, num esforço de constante distinção entre relações de amizade e afinidades estéticas, esforço esse deliberado e intencionalmente mantido com o propósito de tentar preservar uma maior isenção e independência por parte do crítico no exercício da sua actividade. O facto do campo artístico, nomeadamente no que se refere aos seus segmentos de ponta, ter vindo gradualmente a perder a lógica fusionista característica dos movimentos que o caracterizavam no início do século, teve nessa transformação a sua quota parte de responsabilidade. Depois da II Guerra Mundial, paralelamente à extensão do mercado cultural em geral e do mercado de artes em particular, as novas vanguardas vieram de facto a sentir um acolhimento social sem par ao longo da sua curta história, deixando de precisar de recorrer ao belicismo e à militância que a sua precedente situação à margem lhes exigia como condição de sobrevivência. Com o seu "inimigo" comum completamente derrotado e com as novas condições de mercado em que se viram totalmente inseridas a reclamarem dos seus agentes uma cada vez maior singularização estética, a lógica gregarista e a atitude política que anteriormente presidiam à sua acção artística vieram a apresentar-se-lhes como estratégias de afirmação já desadequadas e contraproducentes. A coesão das ditas pós-vanguardas e/ou transvanguardas vai aparecer agora baseada já não na defesa militante de um manifesto estético contra tudo o que possa parecer ortodoxo, ocasionando uma atmosfera beligerante colorida pela amizade intensa, mas tão somente num esquema de cumplicidades subjectivas e oportunas que, numa fase inicial, enquanto as opções estéticas de alguns dos seus membros não se individualizam claramente adquirindo personalidades próprias e um lugar destacado no circuito de comercialização, vão estar na base do desenvolvimento de algumas

118

Ibidem, p. 211. 209

estratégias comuns, reduzidas a algumas iniciativas colectivas de carácter institucional, galerístico ou mass mediático, incorrendo posteriormente em percursos individuais. É nestas condições que a prática crítica, de um modo geral, se reafirma basicamente como actividade ao serviço do consumidor, consciencializando-se de que será mais útil a este como instância orientadora das suas práticas culturais e formadora da sua opinião e competência estética, do que como vector de estimulação e guia de inspiração para o artista, cujas mais altas realizações serão resultado já não de um manifesto estético comum mas de um programa de pesquisa individualmente conduzido. Deste modo, embora muitas vezes o crítico continue a ser entre observadores e participantes activos no campo artístico o mais próximo do criador e o seu mais directo "conselheiro", com quem ele pode eventualmente discutir a orientação do seu trabalho, a sua actividade passa a estar direccionado mais para o seu público (que é o público do jornal para que escreve) que para o próprio artista. Ele deixa de ser mandatário de um grupo, pois a noção de grupo também já aparece diluída no campo das artes, e passa a ser mandatário dele próprio, do seu ponto de vista individual, frequentemente tido para o artista como representativo do ponto de vista de um segmento de opinião pública, e por isso para ele importante como barómetro demonstrativo dos vários tipos de recepção à sua obra. Dadas as actuais condições de produção do discurso crítico, quase sempre em jornais, num tempo cronologicamente posterior ao da criação, fora do contexto grupalista e militante que se vivia anteriormente, coexistente com outros mecanismos tanto ou mais eficientes que ela própria na legitimação e difusão dos objectos e correntes artísticas, e sem pretensões em se assumir como conselheiro de talentos e definidor de programáticas de acção, de facto encontramos hoje a crítica a definir-se novamente mais como prática ao serviço do receptor do que como prática ao serviço de determinado grupo de artistas ou corrente estética. O maior valor de uso desta prática junto do consumidor do que junto do pólo da criação cultural é reconhecido e cultivado pelos próprios críticos, ao admitirem praticamente em unanimidade ser o consumidor cultural o seu interlocutor privilegiado, como nos ilustram os seguintes depoimentos, bem representativos dos outros tantos recolhidos: «Considera a crítica como uma actividade mais ao serviço do criador ou mais ao serviço do consumidor cultural? Em relação à experiência que eu tenho com os 210

criadores, acho que a crítica é mais útil ao leitor que ao criador, tem sido, porque os criadores têm geralmente uma atitude muito emocional com as críticas. Ou uma adesão quando acham que a crítica é positiva, ou uma rejeição quando ela é negativa. É mais útil a um crítico estar a falar com o artista numa conversa no atelier, ou num jantar ou coisa assim, e aí pôr-lhe questões, discordar, contradizê-lo, do que feita a exposição ir escrever um texto em que faça uma crítica, que eventualmente possa ser tomada em consideração, mas que cria numa parte significativa das vezes situações de desconforto.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) «...no fundo, estou muito mais preocupado em manter essa empatia com o leitor do que com os artistas. Quer dizer, eu quando escrevo é para as pessoas que vão ler, não estou a escrever para os artistas. Isso secundariamente sim, evidentemente. Mas quando escrevo nunca penso no artista, penso na obra que estou a comentar e penso no receptor daquele texto, ou seja, no leitor. E é com o leitor que eu estou a falar, nunca estou a escrever para os artistas, nem estou a falar com os artistas. E isso é eventualmente diferente dos que alguns outros farão, não sei...» (António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente) «...o lugar que se ocupa é ocupado em publicações, no meu caso, que se destinam à população em geral. Portanto, a relação mais forte que eu penso que se estabelece é com os leitores em geral. Embora saiba que fundamentalmente quem lê é o reduzidíssimo universo das galerias, dos outros críticos e dos artistas.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso) «...é mais ao serviço do consumidor, porque é muito difícil para um artista realizar um auto-crítica a partir de uma crítica. É que, como já disse alguém, ninguém aprecia tanto uma crítica destrutiva como quem a faz. A pessoa que é criticada reage geralmente, claro no caso de uma crítica desfavorável, muito mal. E eu compreendo, porque aquilo tem uma importância afectiva tão grande, ou seja, está ali o seu ego exposto em praça pública, e muito raramente o artista realiza essa auto-crítica a partir de uma crítica. Enquanto que o público, que não tem nada a ver com isso, que quer é uma indicação, reage com muito menos dramatismo.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente)

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«Mais ao serviço do consumidor, obviamente. Sem dúvida nenhuma. Eu não trabalho para o criador. Quem me paga é o editor do jornal, é o director de um jornal, que quer vender um jornal, quer vender segundo um padrão de qualidade que é ele que estabelece, como é óbvio, e quem compra não é o criador, são os consumidores. Portanto, é sempre virado para os consumidores. Nem sequer é para fazer a ponte, é sempre virado para os consumidores.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público) Esta posição de diálogo prioritário com o público (entidade que, para o crítico, é demasiado abstracta para que possa vir a comprometer a sua acção discursiva) em detrimento de uma postura de defesa militante de determinada corrente ou grupo, mesmo em relação aos críticos que hoje assumem posturas vanguardistas, encontra-se relacionada não só com a diluição das tendências grupalistas no campo artístico, mas também com os próprios valores éticos que integram e constituem o ethos do crítico contemporâneo, e que atravessam as relações que este mantém com o pólo da criação cultural (e isto não só na área das artes plásticas, mas em todas as áreas de intervenção crítica). Pautada por valores de "isenção" e de "rigôr" crítico, valores esses que não se vêem hoje conotados os tradicionais valores académicos da "objectividade" ou "neutralidade" mas que pressupõem uma postura de "independência crítica", de "fidelidade à obra" e não aos pressupostos do autor, de "ecletismo e disponibilidade estética", de "honestidade e sinceridade intelectual", a prática crítica tende a estabelecer actualmente as suas cumplicidades com o pólo da criação mais a nível intelectual do que vivencial. Isto é, consciente de que não pode prescindir das suas afinidades electivas no momento em que exerce a sua acção interpretativa e judicativa, o crítico tenta geri-las de modo a que, por um lado, não se confundam (não só exteriormente mas até por ele próprio) com afectividades de ordem pessoal e, por outro, que elas não se tornem demasiado estreitas, cultivando a capacidade de estar sempre aberto a entender o novo. Nesta perspectiva, evitando qualquer risco de contaminação afectiva e pessoal, vêmos alguns críticos a desenvolverem uma estratégia de distanciamento pessoal em relação aos artistas, rejeitando tanto quanto possível a partilha vivencial e a proximidade física com estes, distanciamento esse que pressupõe traduzir-se em ganhos de independência e de isenção crítica. Aqueles que rejeitam esta estratégia, voluntária (muitas vezes partindo do pressuposto de que o conhecimento pessoal do artista poderá alargar os parâmetros de compreensão da sua obra) ou involuntariamente (porque 212

desenvolvem outras actividades que exigem o permanente contacto com os criadores), fazem-no adoptando uma postura de disponibilidade e eclectismo estético não militante, de abertura vivencial a todos os quadrantes artísticos possíveis, cuidando de não se verem comprometidos e vinculados a determinados grupos e, assumindo o risco da sua posição potencialmente mais vulnerável a interferências pessoais, tentam então desenvolver contra isso uma atitude de vigilância crítica constante em relação à sua própria postura. De isolar aqui será o caso de Carlos Vidal, o único a assumir-se frontalmente como crítico de tendência, de defesa militante, postura que, dado o contexto ideológico da crítica actual, lhe tem acarretado alguns dissabores ao longo da sua trajectória. Mas mesmo este reivindica para a sua prática o valor da afinidade intelectual em desfavor da vivência afectiva com os artistas que defende. O que está em causa será sempre, assim, a independência da sua própria opinião crítica, a preservação da sua autonomia intelectual, disposições que, em última instância, não se compadecem com possíveis afectividades previamente desenvolvidas, como poderemos vêr pelas experiências de alguns dos nossos entrevistados: «...a responsabilidade (do crítico junto do criador...) é a recusa da arbitrariedade opinativa, do exercício puro e simples do gosto próprio, e a responsabilidade de ter permanentemente perante as obras vontade de as entender, à partida estar disponível para entendê-las. Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido de artistas? Sim, é possível dizer isso. (...) E como é que caracterizaria esse círculo de artístas? Eu pessoalmente tenho dificuldade em caracterizar, porque ele não é marcado por uma afinidade geracional, por uma lógica de grupo. É flutuante e variável, com artistas de gerações e idades muito diferentes. (...) Conheço de facto muitos artistas, mas não escrevo de facto só sobre esses. E principalmente quando consigo escapar-me desse tipo de regra, isto é, quando consigo interessar-me por uma obra de que não faço ideia de quem seja, de que não conheço as pessoas, gosto muito, porque é a hipótese de provar que a pessoa está completamente disponível e que fulano tal, que não conhece e não faz a ideia de quem seja, com quem não mantém relações pessoais, se interessa pela obra. Isso acontece muitas vezes, e até muitas vezes acontece-me quase mais para provar a mim próprio que existe uma disponibilidade, que a pessoa não acompanha, não se interessa mais por determinadas obras porque conhece estreitamente os artistas. (...) É evidente que há grupos, não se 213

pode negar a existência deles e a vulnerabilidade das pessoas perante o facto de haver melhor relacionamento com uns grupos do que com outros. Tudo depende da posição que cada um individualmente toma perante esse tipo de redes, e o cuidado que tem por se deixar prender por um desses grupos ou a pretensão que tem de poder circular por vários. Pessoalmente procuro circular por vários grupos, e ter reservas, ou estar alerta, quando um determinado grupo, que pode assentar numa certa conjugação, concordância de interesses, de gostos e de estratégias de afirmação de artistas, se transforma também em poder. E aí é preciso estar alerta em relação a isso e cortar algumas pontes.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso) «Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definidos de artistas? Sim. Há uma série de artistas neste momento com quem eu me relaciono, na medida em que sou... A minha relação com outros artistas é uma relação de artista para artista. Não são relações de amizade, são relações de afinidade estética, de afinidade crítica e de afinidade estética. Não me relaciono com eles como crítico. Com outros relaciono-me por questões de amizade, que não têm a ver com afinidade estética. Dou-me com vários artistas com os quais não tenho uma afinidade estética mas tenho afinidades de amizade. E outros com afinidades estéticas. O que significa que há uma quantidade de artistas sobre os quais me pronuncio positivamente ou negativamente, e com os quais não tenho relações nenhumas. De que forma é que o facto de conhecer os artistas de cujos objectos critica se reflecte na sua crítica? (...) A minha actividade de crítica é uma actividade que, ao contrário da actividade de outros críticos, está ligada às minhas próprias preocupações artísticas. Portanto, não sou um observador isento, se é que existe esse observador. Sou um observador que está comprometido, não com pessoas, ao contrário de alguns críticos que têm sobretudo vínculos pessoais; os meus vínculos são de ordem intelectual e de ordem estética, o que explica o facto de eu ter tido os meus vínculos pessoais a passarem por várias fases. Já tive relações pessoais muito estreitas com alguns artistas e algumas pessoas com quem eu hoje não tenho, com quem posso estar hoje de relações virtualmente mais frias e distanciadas. Esse distanciamento ou essas oscilações nas relações pessoais têm a ver exactamente com o facto de eu não manter vínculos pessoais com ninguém. Os meus vínculos em termos de escrita são de ordem estética, de ordem crítica. É claro que tenho relações pessoais; o que quero dizer é que muitas vezes as relações pessoais se deterioram devido exactamente àquilo que eu considero ser a independência dos meus 214

juízos escritos, que às vezes leva a pôr contra, a ser crítico em relação a amigos muito próximos. (...) Outra questão ética para mim fundamental é que a escrita do crítico deve ser uma escrita essencialmente virada para o objecto de arte e não para o produtor. Deve ser uma crítica essencialmente procupada com a mensagem, com o objecto, com a obra, e não com o autor. O crítico deve manter uma distância tão grande quanto possível dos produtores, dos autores. E se não a consegue manter intelectualmente, então mantenha-a fisicamente, para depois manter essa distância intelectualmente. Ou seja, eu admito que se possa ter uma proximidade física com um determinado autor se se tiver autonomia intelectual, ou seja, capacidade de escrever um texto que é criticamente destrutivo em relação a uma obra, apesar dessa obra ser produzida por um autor de quem o crítico eventualmente está próximo. Se o crítico é capaz de fazer isso, se o crítico é capaz de arriscar, no fundo, uma certa deteoriação das relações de amizade motivada por uma exigência crítica, então o crítico poderá manter essa proximidade. Se sabe que não resiste a esse tipo de tensão, então a melhor solução é manter um afastamento dos artistas como dos galeristas. Nos EUA isso é quase um tabu, os críticos respeitados não se dão com os artistas nem com os galeristas. Têm o seu próprio mundo, aproximam-se às obras sem interferências. Há uma grande preocupação em que o crítico consiga escrever sem a pressão quer dos "dealers", quer dos próprios autores. É preciso ter esse cuidado, são questões casuísticas, tem que se ver caso a caso, não há uma regra geral. A regra geral penso que é aquela que eu disse há pouco. E no seu caso, acha que consegue resolver essa tensão? Eu acho que tenho conseguido, novamente em prejuízo das tais amizades.» (António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente) «Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido de artistas? Sim. (...) E como é que caracteriza esse círculo de artistas? Esteticamente é difícil, porque são de tendências diversas. (...) eu defini-los-ia não esteticamente mas em termos cronológicos. Mas, por exemplo, aqueles dois de que eu falei que morreram, o Dacosta com setenta e tal anos e o outro com cinquenta e tal, eu mantinha um contacto de amigo, e não sequer cerimonioso, principalmente com o Bravo. (...) E de que forma é que isso afecta o seu trabalho enquanto crítico? (...) Eu nunca ponho a questão da relação pessoal com o artista em relação à obra. Posso gostar muito dele e achar que o trabalho dele não é muito bom, e achar que o indivíduo é execrável e que o seu trabalho é muito bom. (...) Por um lado, eu não sou um crítico de tendência, 215

portanto essas capelinhas funcionam de uma maneira alargada, são menos capelinhas, são menos fechadas, é mais uma catedral.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) «Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido de artistas? Sim. Tomo os contactos de duas formas: de artista com artista e de crítico para artista. Há uma partilha de posições sobre a função da arte na sociedade. Essa partilha de posições é não tanto estratégica quanto conceptual. É natural que os artistas se reúnam e que revelem as suas posições em conjunto. Como crítico, funciono também como um enunciador dos pressupostos mais característicos desse "grupo". Todos nós enunciamos as nossas posições. Mas eu assumo-me como crítico de tendência. (...) E de que forma isso se reflecte nas suas críticas? A nível da relação pessoal, não se reflecte de maneira nenhuma. A nível da relação com o pensamento desses artistas reflecte-se, porque eu quando faço a crítica tenho em conta o pensamento desses artistas, o pensamento teórico e conceptual desses artistas. A nível pessoal não se reflecte. Não faço crítica por amizade, de maneira nenhuma. O conhecimento do artista interessa-me mais ao nível conceptual.» (Carlos Vidal, crítico de artes plásticas na Capital) «Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido de escritores? Não. Conheço muita gente, mas não há ninguém, ou quase ninguém que pertença ao círculo dos meus amigos mais próximos. Muito embora os que conheça, almoce ou jante com eles, uma relação muito regular não tenho com ninguém. (...) Eu sei, por exemplo, que não devo passar da obra para o autor, isto é, sei que não devo aproveitar-me da obra para criticar o autor, em vez de criticar a obra estar a criticar o autor. (...) devemos distinguir duas coisas que às vezes são feitas quase simultaneamente, e que nalguns críticos tendem a confundir-se, ou a actividade jornalística propicía essa confusão, que é a literatura e a vida literária. Uma coisa é a literatura, outra coisa é a vida literária. E nós podemos correr o risco de estar a passar facilmente da literatura para a vida literária. Isto é, em lugar de estarmos a julgar a obra estamos a julgar atitudes, estamos a julgar determinado tipo de maneira de se comportar, a própria representação que os escritores dão de si próprios, as coisas que dizem, etc. (...) o que deve funcionar acima de tudo, ou seja, se há uma ética, se há um ethos do crítico, esse ethos tem a ver com o respeito pela sua própria opinião. Portanto, 216

desde o momento em que ele não entre em contradição com os seus mais profundos valores, com aquilo que pensa efectivamente, isto é, quando não se aliena, quando sente que não está a alienar-se em direcção a outro objectivo qualquer que não seja o da sua opinião, tudo é possível, dizer mal disto ou dizer mal daquilo. Parece-me relativamente honesto e indiferente se de facto a pessoa pensa realmente assim, se não está a alienar-se naquele momento, a alienar-se no sentido de dizer "eu faço isto para cumprir isto ou para fazer um favor", ou qualquer coisa do género.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido de escritores? Sim. (...) Como caracterizaria esse círculo de escritores? São dos mais variados quadrantes. Não temos nenhuma, eu pelo menos não tenho, nenhum núcleo de amigos daquilo a que se poderia chamar uma tertúlia, ou um grupo que eventualmente daí pudesse partir uma corrente. Não, eu conheço e sou amigo de escritores dos mais diferentes naipes ideológicos e estou muito bem assim. (...) E de que forma isso se reflecte nas suas críticas? Não tem reflexos evidentes, visto que o facto de eu conhecer as pessoas não quer dizer que eu tenha com elas intimidade, ao ponto de ter que dizer bem do que o amigo escreve. Já tem acontecido, inclusivamente, o caso agora do Rui Nunes, sou amigo dele, mas uma crítica que eu escrevi sobre ele há umas semanas, aquilo não tem nada de elogio. E como não tem nada de elogio, ele telefonou-me a dizer que estava profundamente ofendido comigo, portanto já vê que eu prezo um bocado a minha independência crítica, mesmo em relação aos amigos. (...) Então pensa que o facto do crítico manter relações de amizado ou contactos regulares com os artistas de cujos trabalhos critica pode de algum modo comprometer o resultado do seu trabalho? Potencialmente esse é um perigo que existe. Eu tentei estar sempre acima desse tipo de situações com alguns amargos de boca, com alguns incovenientes.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras) «Quer dizer que não conhece normalmente as pessoas de cujas obras crítica? Conheço. Aliás, conheço quase todas. O meio não é grande. Conheço quase todas mas não tenho contactos regulares com elas. Falamo-nos, algumas são simpáticas, outras não são simpáticas, algumas gostam de mim, outras não gostam, eu também gosto de uns e não gosto de outros, mas não são contactos muito estreitos. E de que forma é que isso se reflecte nas suas críticas? Eu não quero que isso se reflicta. Aliás, por isso é 217

que eu não quero ter mais contactos do que estes com essas pessoas. Acho que para o leitor deve ser absolutamente indiferente eu conhecer a pessoa ou não a conhecer. Se não estamos ali numa conversa de amigos que não interessa a ninguém.» (Tereza Coelho, crítica de literatura no Público) «Considero que a primeira obrigatoriedade que eu tenho é ser honesta comigo própria. A partir daqui, pauto consoante as minhas digestões, as minhas más disposições, os meus cansaços, as minhas afinidades electivas, as minhas afectividades, não tanto possível afectividades pessoais. Tento depois construir os meus textos com base nos estímulos que o espetáculo me deu. Mas para mim, o que eu efectivamente considero ser a grande responsabilidade, é não ser tanto quanto possível parcial, no sentido de... É-se sempre parcial, mas não se ser parcial no sentido de "eu só gosto disto e não gosto daquilo", "eu não gosto destes e só gosto daqueles". Tentar efectivamente, apesar de não se poder prescindir das nossas afinidades electivas, assumir um olhar tanto quanto possível receptivo, inocente, como diz o Osório Mateus. Dizia-me o Osório Mateus muitas vezes: "Sê inocente! Sê inocente!". Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido de artistas? De maneira nenhuma! De maneira nenhuma! E é uma preocupação sua... De não manter! Não é uma preocupação de não manter, é uma preocupação de não ter! Não é de manter, é de não ter! Por causa da sua actividade crítica? Exacto. E isso é para mim fonte de sofrimento, porque não posso ter amigos, quase em geral não posso ter amigos. A minha vida gira em torno do teatro: na escola e à noite, quando vou ver os espetáculos. E não posso relacionar-me com ninguém, a não ser fora do teatro. Como não tenho muito tempo, não tenho muito tempo para cultivar amizades fora do teatro, noutras áreas. Esta actividade exige uma espécie de ascetismo, que muitas vezes pergunto a mim própria se vale a pena, se o teatro merece esta forma de vida que a gente tem de ter, que eu tenho de ter, pelo menos. (...) Portanto, quando olho para os artistas, eu prefiro olhar não para as pessoas, mas para a produção dessas pessoas. Porque normalmente quando olhamos para as pessoas temos grandes desgostos. Eu estou a referir-me mais uma vez ao teatro. É preferível, para se admirar um artista de teatro, não se conhecer a pessoa que está por detrás. Ignorar-se totalmente a pessoa que lá está, porque o desajuste pode ser tão grande, a relação com o apelo dessa pessoa ou, pelo contrário, a repulsa que essa pessoa pode causar, pode prejudicar o nosso olhar sobre o artista. Portanto, também aprendi à custa da experiência que 218

mantermo-nos afastados do convívio dos artistas é salutar para quem tem que produzir discurso judicativo e valorizador.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso) «Mantém contactos regulares com um círculo mais ou menos definido de artistas? Não muito. Eu, com a intenção de escapar um bocadinho a essa rede, mantenho uma certa distância, uma distância que não tem nada de pessoal, tento manter uma certa distância dos artistas. Não consigo totalmente, há pessoas com quem eu me dou bem. Pronto, sou obrigado a manter certos contactos. Tenho que tê-los e não fujo a eles. Mas, de uma maneira geral, em termos genéricos, procuro que haja uma certa distanciação. (...) Há o perigo, ao qual eu não escapo, e ninguém escapa, da rede em que nos movêmos. Somos críticos, damo-nos com criticados, não podemos deixar de ter relações, mesmo que sejam superficiais, com as pessoas. Por outro lado, há um outro aspecto, que é a possibilidade do crítico exercer também a actividade criativa pela qual vai ser julgado, e haver aí uma certa promiscuídade entre crítico e criador. Tudo isso tem que ser muito bem balizado, porque há sempre perigos de subjectividades. Eu penso que é inevitável, ninguém é santo para conseguir esquecer em absoluto relações que se têm, que podem ser de vária ordem, de amizade, de camaradagem política, ou outra coisa assim. O que se tem de fazer é evitar tanto quanto possível ter isso em conta, penso que cada crítico tem a obrigação de não ser contaminado por coisas desse tipo, de não se deixar apanhar por essa rede. A rede existe, nós sabemos que existe, não pode deixar de existir, e o crítico tem que saber que ela existe, tem que ter consciência disso, mas tentar, tanto quanto possível não se deixar apanhar pela rede. E eu penso que com isso, no teatro português, não há problema.» (Carlos Porto, crítico de teatro no Jornal de Letras) «Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido de artistas? Eu dou-me muito com a gente do teatro por modo de ser, sou um pouco noctívago, encontro-me com eles muitas vezes na noite, e porque trabalho na própria televisão. E de que forma isso se reflecte nas suas críticas? Eu acho que não se reflecte e tenho que evitar que se reflicta. (...) Eu quando escrevo não posso pensar se simpatizo mais ou menos com uma pessoa, se sou mais ou menos amigo dela. Tenho é de escrever o mais objectivamente possível. É claro que não há só objectividade, mas o mais objectivamente possível sobre alguém e sobre o trabalho, independentemante de eu conhecer essa pessoa ou não. (...) a crítica, principalmente num meio que ainda é 219

muito pequeno, pois a partir de determinada altura quase que nos conhecemos todos e isto é quase como a água dos capuchos, é a mesma que circula, tem que ter uma preocupação de não temer contaminações. Em 35 anos criei as melhores amizades que tenho no teatro, muitas vezes trabalho com eles como homem da televisão, não tenho que fugir das minhas opiniões, tenho é que no momento do exercício da crítica estar a ser crítico independentamente de ser amigo ou não de A, B ou C. O crítico para já tem de ser isento. Pode errar ou ser discutivel o que disse, não pode é ser desonesto, não pode é ser parcial, estar a favor de uns contra outros e entrar muitas vezes em guerras e esquemas que existem mesmo com profissionais, tomar partido por uns ou por outros. Não. Ele tem de exercer o seu magistério crítico acima de qualquer suspeita, tem de ser de uma isenção muito grande. Só assim é que é credível.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de Notícias) «Posso responder-lhe que não tento favorecer de maneira nenhuma o conhecimento com os cineastas apenas porque vou criticar os seus filmes. Conheço ou não conheço conforme as condições propiciam isso, sejam condições de trabalho ou pessoais, sejam acidentais, mas isso não intervém minimamente como factor do meu próprio trabalho. Não é porque vou escrever isto ou aquilo que acho que deve conhecer fulano ou fulano. (...) Aliás penso que é claro pois sublinhei tanto e valorizei tanto o aspecto individual da actuação crítica...» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso) «Mas é importante que, pelo menos a nível consciente, o crítico seja isento e não se deixe influenciar muito pelo prestígio ou falta de prestígio do artista, pela fama ou pela falta de fama, nem por relações sociais, nem por relações ideológicas, tudo isso. Eu acho que essas são as responsabilidades do crítico perante o artista. Se ele conseguir se preservar diante desses factores, se ele conseguir se manter alheio a essas turbulências todas, ele pode dizer o que quiser. (...) Aí entra um pouco aquilo de que já estivemos a falar das relações pessoais. Nós somos todos humanos e as pessoas acabam por ser condicionadas por isso. Não querem ferir susceptibilidades, sobretudo num meio pequeno como é o mercado de artes português, tanto em termos de agentes como em termos de consumidores, as pessoas conhecem-se muito, conhecem-se pessoalmente, vêem-se. Então às vezes há um excesso de escrúpulos em não ferir susceptibilidades. Isso para não dizer casos mais graves em que pode haver mesmo interesses comuns, interesses económicos, interesses sentimentais ou interesses 220

ideológicos. Por exemplo, um crítico vai falar de um artista que é de uma área ideológica idêntica à sua, talvez ele não seja tão rigoroso como se fosse falar de um artista de uma área ideológica oposta à sua. Não estou dizendo que isso aconteça frequentemente, mas é uma potencialidade concreta.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente) «Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido de realizadores? Que remédio, eu trabalho na Cinemateca! Eles estão sempre aqui a passar. Não com um círculo. Conheco-os. (...) Confesso que os cineastas da minha geração, da minha idade, atraem-me porque partilho qualquer coisa de comum com eles. Mas não faço isso em nome de recusar os outros, como é evidente, não posso. Portanto, são afinidades provavelmente mais electivas do que concretas. Mas não os privilegio, não penso que os possa privilegiar na minha actividade enquanto crítico. Provavelmente tenho mais esperanças, mais desejos, invisto mais no trabalho deles por essa questão puramente emocional e emotiva, quase afectiva. Mas não é organizado, não é um grupo.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público) Nesta perspectiva, a posição do crítico inverte-se efectivamente em relação à que detinha junto das primeiras vanguardas do início do século: ele deixa de ser o representante do artista e do seu grupo junto do público, para passar a ser o representante do público junto do artista, nomeadamente de um público que se supõe especializado. Simultaneamente, enquanto especialista em matéria de arte, vai encarregar-se da tarefa de orientar o consumidor mais desatento e menos informado esteticamente, fornecendo-lhe modelos de uma fruição artística "adequada" que lhe permita gozar a obra de arte enquanto tal, no sentido de prepará-lo para manejar esses objectos, de os ler, de saboreá-los, apreciá-los e comentá-los "como convém", tratando que ele não se desvie nem não se perca por percursos de sentido e de valor "menos aconselháveis" ou "mais pobres" do ponto de vista artístico.119 Assim sendo, podemos verificar que a prática artística tende realmente a adquirir na actualidade um maior valor de uso junto do consumidor do que junto do criador, 119

É nesta óptica que Roman Ingarden, destacado teórico e crítico literário da década de 60, entende a crítica como máquina da formação de concretizações adequadas, impedindo que as concretizações subjectivas da obra no consumidor "comum" desfigurem, ocultem ou ponham em causa a identidade artística que ela detém por atribuição e reconhecimento no interior do campo artístico. Ver COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit., p.400. 221

embora continue a ter para este último uma importância fundamental, pois, como refere Martin Esslin bastante ilucidativamente, «if the poets are the unacknowledged legislators of the world, the critics are the electoral college that puts them into power.»120 Tal forma de encarar a crítica está também, em boa parte, associada à progressiva diluição da noção romântica da arte ideal e pura e da imagem do artista solitário que trabalha sozinho para a sua própria satisfação pessoal e apenas em função do seu estado de espírito ou momentos de inspiração, mitos substituídos pela assumpção da profissionalidade da prática artística, num contexto em que a penetração da lógica capitalista no campo das artes e letras é uma realidade que vai sendo cada vez mais incontestável e incontornável e, por isso, aceite. 3.4. O CRÍTICO NA ERA DA REPRODUTIBILIDADE E DA MERCANTILIZAÇÃO CULTURAL Com efeito, se até meados do nosso século a produção e a circulação cultural haviam sido caracterizadas pelo seu carácter artesanal e restrito, depois, com o avanço global das tecnologias de reprodução e de difusão e dos princípios de produção para o mercado capitalista, fenómenos que não deixaram de se extender ao campo cultural e artístico, a sua organização começou também a tomar moldes industriais e alargados, com os conhecidos efeitos de estandartização em relação aos quais muitos críticos e outros intelectuais da época bradavam mil malefícios. Este processo teve as suas origens mais remotas, como já tivémos oportunidade de apontar, em finais do século passado, quando a expansão do aparelho produtivo e a aceleração do processo de penetração do capital na produção, circulação e consumo cultural, consequências do desenvolvimento do processo de industrialização e de mercantilização capitalista, veio a proporcionar a capacidade de reprodutibilidade e a introdução de uma nova (e bastante contestada) racionalidade económica no domínio cultural e artístico, começando a organizar-se também aqui a produção em série. Muito provavelmente foi na produção do impresso que as novas exigências intrínsecas a este novo modo de produção mais cedo e mais claramente se fizeram

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ESSLIN, "A Search for a Subjective Truth", in HERNADI, What is Criticism, Bloomington, Indiana University Press, 1981, p. 208. 222

sentir, sendo o livro o primeiro objecto cultural afectado pela produção em série.121 Mas também é por esta altura que o teatro começa a organizar-se segundo moldes empresariais, e que o cinema e a fotografia começam a dar os primeiros passos. As próprias artes plásticas, com o recuo da Academia, começam a ver a sua produção orientada para o sistema de mercado, o que de certo modo vai começar a obrigar o artista também ele a produzir serialmente, pois se numa exposição para venda era necessário um grande número de peças, o seu marchand ou galerista vai tentar convencê-lo a produzir em quantidade e, muitas vezes, a produzir um certo número de variações sobre um mesmo tema ou num mesmo estilo, quando verifica que estes têm sucesso no mercado. Desenvolvem-se então as denominadas indústrias culturais, as quais se referem a bens ou serviços culturais que são produzidos, reproduzidos e difundidos segundo critérios comerciais e industriais, ou seja, que são objecto de uma produção em série, destinada ao mercado e orientada por estratégias de natureza prioritariamente económica, visando a sua maior rentabilidade. O fenómeno de mercantilização e difusão cultural alargada não foi, contudo, pacificamente recebido nos campos intelectual e artístico, neles repercurtindo-se em múltiplos efeitos conflituais e divisionistas num constante jogo de tensões que daí para a frente se estabelece entre a esfera de produção/consumo cultural restrito e a esfera de produção/consumo cultural alargado, com os agentes da primeira a procurarem manter a distinção e os agentes do segundo a procurarem aceder-lhe. No decurso destas lutas entre valores elitizantes e democratizantes, decorrentes do facto de todas as esferas de produção cultural se terem vindo progressivamente a submeter às exigências de rentabilidade capitalista (embora sob diferentes modalidades) e, consequentemente, se terem confrontado com novos sistemas de organização e de distribuição cultural, aconteceu uma inevitável reavaliação dos princípios que orientavam a hierarquia da legitimidade que caracterizava a produção cultural na época, ou seja, alterou-se a lógica dos mecanismos valorativos das obras artísticas. A

121

É efectivamente em meados do século XIX que aparecem as primeiras campanhas de difusão deste bem, acompanhadas de campanhas alargadas de alfabetização. É também por esta altura que se editam as primeiras colecções de "clássicos" (que, note-se, não integravam apenas textos de autores clássicos, mas também alguns romances ditos "de cordel") e que são publicados nas páginas de muitos jornais da época os conhecidos "folhetins" (são, aliás, os folhetinistas os primeiros "criadores-profissionais", estado actual da condição social do artista), género de produção literária que se vulgariza no fim do século XIX e que, dando avultados ganhos aos editores e aos próprios autores, era depreciativamente classificado pelos críticos como "literatura comercial". 223

hierarquia da legitimidade cultural e artística passou a ser atravessada por um modelo polarizado, baseado na oposição entre uma produção orientada para um público alargado, com a finalidade de obter lucros financeiros - a "arte burguesa" ou "arte comercial" - , e uma produção orientada para um público restrito, na qual o autorcriador reivindicava um pretenso domínio exclusivo sobre a sua respectiva produção - a "arte pura". No caso da esfera de produção cultural alargada, passaram a funcionar as lógicas económicas comuns, ou seja, foi o princípio da reprodutibilidade que se impôs; por outro lado, no caso da esfera de produção cultural restrita, estaríamos, à primeira vista, perante a inversão destas lógicas economicistas, sendo o reconhecimento do valor e da legitimidade da obra, neste outro pólo, traduzido no princípio da denegação da economia - concepção caracterizada pela ética do desinteresse em relação ao económico, que recusa e condena o "comercial" no campo artístico, e por um processo de sublimação do económico para o estético, considerando que o valor da obra de arte é intrínseco a ela própria -, assim como no princípio da raridade - concepção que valoriza determinado bem cultural pelo seu carácter único, raro, escasso, autêntico e pereno, desvalorizando-o quando se multiplica. Entre estes dois pólos recairam fortes suspeitas de incompatibilidade, tendendo a fazer-se separar a Arte da Indústria Cultural: a primeira passou a ser associada ao modo de criação artesanal (no sentido de manual), às formas culturais clássicas e ao produto de tipo único ou pouco reprodutível, sendo-lhe conferido um sentido que é o da maior criatividade e independência; a segunda, por seu turno, passou a ser associada ao modo de criação integrado no processo de reprodução industrial e ao produto serial, sendo-lhe conferido um sentido que é o da menor autonomia do criador, sujeito à pressão dos critérios industriais e comerciais. Enraíza-se assim uma forte contradição entre trabalho artístico e trabalho industrial: a contradição da subordinação servil, da negação da autonomia e da criatividade em que este último coloca os criadores, versus o mito do artista livre e independente, intocável e imaculado, à margem de qualquer amarra social e da própria especulação económica. Nestas circunstâncias, estabelecendo a raridade como princípio básico onde se firma a legitimidade da "verdadeira" obra de arte, a dita cultura de massa passou a ser avaliada pela negativa, como aquela a que não era aplicável o referido princípio. Em relação a ela, os adeptos da cultura dita cultivada demarcaram-se ostensivamente, adoptando um comportamento de rejeição etnocentrista face ao suposto "gosto vulgar" 224

que representava, por oposição ao "gosto cultivado". Os próprios mediadores que emergiam a partir da entrada das formas culturais clássicas na esfera do mercado, por muito que aderissem aos valores da democracia cultural122, teciam amargas recriminações à potencial sujeição dos criadores ao "gosto fácil do grande público", ganhando proeminência como agentes indispensáveis na preservação de tal oposição. Isto porque era justamente desta oposição e do que ela implicava que a sua acção ganhava relevo, tornando-se por isso cúmplices directos daquele que se pretendia criador puro na vontade de ruptura e de liberdade que o animava para afirmação do seu projecto de radicalidade alternativa em termos estéticos e éticos. Social e institucionalmente "desprotegido", como vimos atrás, o artista-criador encontrava-se realmente à mercê dos vários intermediários culturais que, também eles necessitados de afirmar a necessidade da sua acção, o rodeavam cada vez mais de perto. Mas o objectivo da acção destes últimos não era, de facto, tanto o de corrigir mas o de compensar as dificuldades que, geradas do lado da criação, propiciavam o seu afastamento em relação ao pólo da recepção, já que era justamente da existência dessas dificuldades que decorria a necessidade da sua própria acção. Para se auto-consagrar como agente imprescindível, o mediador cultural não só não tentava corrigir como até fazia reproduzir e acentuar as dificuldades que supostamente apenas ele saberia resolver. Foi o que os agentes propriamente económicos, como o marchand e o galerista, realizaram: ao assumirem a responsabilidade da gestão económica das carreiras artísticas, incentivaram e fizeram reproduzir a ética do desinteresse comercial do artista sobre as obras que produz, criando para si próprios o espaço necessário para tirarem economicamente partido da originalidade estética atribuída ao trabalho do artista. Foi também o que aconteceu no caso do crítico que, embora sempre confirmando e cultivando publicamente a imagem do artista em "exílio" como condição necessária à irredutibilidade do seu projecto criador, procurou não só aproximar-se mas também, frequentemente, emiscuir-se num grupo particular de artistas (quando não era ele próprio que constituía esses grupos, funcionando como elemento de agregação) e participar activamente na sua "política", colaborando, por um lado, na elaboração e

122

Esta adesão era vislumbrada neste pólo sempre "de baixo para cima" e não "de cima para baixo", ou seja, não seria o artista que se sujeitaria ao gosto do público, mas sim o público que deveria esforçar-se por perceber o trabalho do artista, esforço esse sempre apoiado pela acção missionária e civilizadora do intermediário cultural, designadamente do crítico. 225

valorização dos seus programas e manifestos e, por outro, iniciando e conduzindo publicamente as suas polémicas. E enquanto se propunha a ajudar os artistas a enunciar e a esclarecer os seus projectos criativos, incitava-os a levar a sua pesquisa até ao máximo nível de originalidade e, por sua vez, de incomunicabilidade, apelando à crescente complexificação, depuração e auto-referenciação da sua produção, fomentando assim a necessidade pública da sua presença, quer como porta-voz em relação ao grupo, quer como intérprete-tradutor das obras produzidas no âmbito desse grupo junto do público. É neste sentido que podemos entender as palavras de Maria de Lurdes Lima dos Santos quando refere que «o culto da raridade da obra e do mito do criador singular - culto que sustentava a legitimidade cultural - tem contado entre os seus sacerdotes com a referida figura do crítico-conhecedor. "Culto" e "sacerdote" forjaram-se e desenvolveram-se precisamente em situações que punham em causa tanto a raridade da obra como a singularidade do autor (situações de expansão de mercados e alargamento da difusão).»123 Deste modo, o crítico moderno acabou efectivamente por conduzir uma política de ruptura em relação às realidades, na sua opinião, alienantes, proporcionadas pela democracia cultural e pela capacidade de reprodutibilidade que a alicerçava. Fundamentando a sua prática sob o princípio da raridade e da autenticidade das obras que se apresentam como artísticas e, neste sentido, assumindo a criação artística como singularidade e autenticidade, considerando a repetição banalidade e falsidade, a sua posição pautou-se pela recusa, pela revolta, pelo incessante protesto contra a cultura de massa, indiferenciadora e indiferenciada. E sendo a repetição algo que se vislumbrava inevitável no processo de produção e difusão de bens e serviços culturais, consequência da sua crescente orientação para o mercado, daqui resultaria, pensavam alguns críticos e outros intelectuais da época, que a arte estaria condenada à perda de autenticidade, à degradação cultural, em suma, à sua catástrofe final. Até meados do nosso século, altura em que se compreendeu que a autenticidade e singularidade da obra não dependia inevitavelmente da sua raridade material e que era uma categoria socialmente construída, essa concepção subsistiu profundamente enraizada quer no campo das artes e letras, quer no próprio campo intelectual. Ainda

123

SANTOS, "Reprodutibilidade/Raridade: o jogo dos contrários na produção cultural", in A Sociologia e a Sociedade Portuguesa na Viragem do Século, Lisboa, Actas do I Congresso Português de Sociologia, Vol. II, Edições Fragmentos, 1988, p.700. 226

nos anos 30, como sublinha Idalina Conde, Walter Benjamin «proclamava a perda dos valores de culto das obras nos valores de exibição mercantil, quando os artefactos culturais entram na era da reprodutibilidade. Também Adorno repugnava a vulgaridade do consumo de massas e da indústria cultural.»124 No entanto, depois da II Guerra Mundial, o quadro culturalmente dicotómico atrás esboçado complexifica-se bastante e noção pessimista acerca do futuro da arte começa a diluir-se progressivamente. A necessidade de produzir em grande quantidade para obter lucros e de, simultaneamente, evitar a saturação do mercado e vencer a concorrência, requeriam, entre outras coisas, eficácia na organização do ciclo de fabricação cultural e capacidade de inovar, diversificar e seleccionar neste domínio. Daí ter sucedido, após os anos 50, a preocupação no processo de produção cultural, mesmo que alargado, em tentar-se evitar ao máximo os efeitos de estandartização, sendo nesta fase, como faz notar Maria de Lurdes

Lima

dos

Santos,

«que

o

jogo

das

duas

lógicas

contrárias

(reprodutibilidade/raridade) se afirma de tal modo que, na reprodutibilidade, o que hoje interessa é a diferença.»125 Desta maneira, o fenómeno de penetração do capitalismo no campo cultural e artístico passou a ser susceptível de ser entendido como um factor dinâmico de inovação, e não apenas de estandartização repetitiva. Contudo, para alguns, designadamente os que não perceberam o alcance desta transformação ou que simplesmente a ignoraram, tal fenómeno continuou a corresponder à caminhada para a catástrofe cultural e artística. Para outros, pelo contrário, significou um grande avanço no processo de democratização cultural: uns e outros, no dizer de Umberto Eco, representam os Apocalípticos e os Integrados.126 Hoje, de facto, a visão apocalíptica sobre a evolução artística, assim como a perspectiva de uma indústria cultural entendida como um processo uniforme, serial, ilimitado e alienante, em contraponto à criação artística, singular, original e autêntica, já não nos serve nem faz qualquer sentido. Tal como afirma Idalina Conde, «no alvor da década de 90 (...), os artistas conhecem um acolhimento sem par e a cultura entra tranquilamente na produção em série e no mercado»127. Paquete de Oliveira também

124

CONDE, SANTOS e OLIVEIRA, "Arte e Media: Cultura ou Indústria", in Sociologia - Problemas e Práticas, nº 8, 1990, p.170. 125 SANTOS, "Reprodutibilidade/Raridade...", op. cit., p.369. 126 ECO, Umberto, Apocalípticos e Integrados, Lisboa, Difel, 1964/91. 127 CONDE, SANTOS e OLIVEIRA, "Arte e Media: Cultura ou Indústria", op. cit., p.171. 227

sublinha numa epígrafe de um texto seu, que «não valem os Eufemismos. Hoje, tudo se «vende». Vende-se o Livro, o Disco, a Pintura, vendem-se as ideias.»128 Com efeito, se a actual aproximação entre arte, indústria e mercado não é passiva, ela aparece cada vez mais como um fenómeno inevitável. Todas as formas culturais e artísticas actualmente querem-se vendáveis, e vendem-se cada vez mais de forma multiplicada. A indústria do livro substituiu a cópia e difundiu largamente este objecto. O disco e a rádio, complemento dos concertos (que também se "serializam"), vieram fazer reproduzir largamente todo o tipo de música. A reprodução gráfica das obras pictóricas, com a ajuda das técnicas da litografia e da serigrafia, indicíam visivelmente também neste domínio uma estratégia de direccionamento para o mercado, tornando-as susceptíveis de serem classificadas como bens reprodutíveis em grau reduzido, racionalizadas pela tiragem, e possibilitando-lhes um mais fácil acesso. Outras formas culturais clássicas, como a ópera ou o teatro, recorrem igualmente a canais tradicionais de difusão e circulação alargada, como a televisão, reclamando por mais público. Neste contexto, com a acelerada penetração do capital em todos os domínios da esfera cultural e artística, o quadro de correspondência linearmente estabelecido entre formas

culturais

clássicas/criação

artística/raridade

e

indústrias

culturais/estandartização/reprodutibilidade tendeu a tornar-se equívoco. A relação das indústrias culturais com as formas culturais clássicas passa a não caracterizar-se inevitavelmente pela incompatibilidade, contaminação ou perversão destas últimas pelas primeiras, pois a participação do grande capital e a consequente exigência de rentabilidade inerente à lógica do mercado capitalista e da produção serial já não incide apenas sobre os produtos culturais a priori de grande reprodutibilidade, mas também sobre os produtos culturais supostamente únicos ou susceptíveis a reduzida reprodutibilidade. Ora, a crescente orientação para o mercado quer da tradicional grande cultura, quer da vulgarmente denominada cultura de massa, ao produzir uma certa aproximação e intercomunicabilidade entre as diferentes formas culturais que outrora haviam coexistido

separadamente,

veio

traduzir-se

em

profundas

transformações

e

reierarquizações no vasto e complexo sistema de produção e difusão cultural dos nossos dias, assim como, consequentemente, numa acentuada porosidade e meabilidade dos

128

Idem, p.167. 228

mecanismos e princípios de valorização implicados no actual processo de mercantilização cultural (sem que tal signifique, contudo, que a tensão entre mercados dominantes e dominados, ou entre estratégias de afirmação e estratégias de distinção, tenha deixado de existir). Por um lado, verificamos a ocorrência de profundas transformações a nível da divisão social do trabalho cultural, consubstancializadas na profissionalização e especialização dos agentes criadores e na tendência para a integração descomplexada da produção destes num amplo processo de trabalho colectivo, integração essa que vai implicar a valorização da acção dos agentes mediadores. Devido à presença do grande capital, o processo de criação vem decompôr-se, adequando-se à especialização de funções que uma organização racionalizada economicamente reclama, e a imagem do artista isolado vê-se cada vez mais ausente da cena artista. Assistiu-se assim à divisão racional de tarefas culturais em especialidades, bem como à profissionalização do agente criador (hoje com o estatuto de artistaprofissional), patente no recente desenvolvimento de formas associativas a nível nacional e internacional (associações e sindicatos de escritores, artistas plásticos, compositores, críticos de diversas áreas, etc), visando a defesa e a dignificação das respectivas profissões, o que constitui um bom indicador da preocupação daqueles relativamente à sua posição no mercado de trabalho. Tais alterações na divisão social do trabalho cultural e artístico conduziram efectivamente ao esbatimento da figura do criador singular e independente, com a correlativa valorização dos agentes mediadores que intervêm tanto no lançamento e distribuição dos produtos culturais e artísticos, como na sua própria concepção e recepção, interferindo quer na definição no valor estético e económico da obra, quer na produção do seu sentido social. Por outro lado, a constante interacção entre os universos económico e artístico que se observa hoje em dia, combinando a promoção da arte através da sua mercantilização com a promoção da mercadoria através do seu valor estético, fez com que nos actuais mecanismos de valorização da obra de arte, o princípio conhecido por denegação do económico comece a perder o peso que detinha, ao mesmo tempo que o produto cultural industrial vem tornar-se, ele próprio, susceptível de investimento simbólico e apreciação distintiva. Quanto ao princípio da raridade e da autenticidade, este, todavia, não perdeu de todo o seu valor operativo. Para que seja inteligível, exige sim que se tenham em conta quer os novos moldes em que se processa a assimilação estética e em que tal princípio é considerado, quer os instrumentos e os elementos de 229

que se socorrem as indústrias culturais na valorização e singularização dos seus produtos e que concorrem para a aproximação do valor destes ao das formas culturais clássicas. Primeiro, há que considerar que o princípio da raridade não é hoje adoptado tanto em relação à vertente material da obra, mas em relação à sua vertente propriamente conceptual, o que implica a rotação da direcção sua operacionalização da obra em si para o sujeito que está na sua concepção. Ou seja, a autenticidade da obra de arte está na ideia que ela consubstancia, resultante do talento do seu progenitor, e por mais que essa ideia seja materialmente multiplicada a sua potencial autenticidade e originalidade não são passíveis de serem destruídas. Quanto aos instrumentos específicos no campo cultural e artístico a que as indústrias culturais podem recorrer para valorizar simbolicamente os seus bens, distinguindo-os da ou na série e assegurando o seu estatuto de criação dentro da multiplicação, referimo-nos a toda a gama de técnicas de promoção comercial e de marketing que actualmente existem, desde o best-seller ou o star-system até ao sistema de assinaturas, instrumentos esses que, dada a sua sofisticação, permitem estabelecer, num mesmo tempo, uma relação individualizada e individualizadora entre o consumidor e a produção cultural através de um circuito de difusão de massa, e conferir ao tipo de bens reproduzíveis a autenticidade e a raridade definidora, em princípio, da cultura legítima, contribuindo assim para a reprodução do mito do artista-criador, fazendo crêr que tal escritor tem várias edições esgotadas ou tal actor é "cabeça de cartaz" devido à raridade do seu talento e à sua originalidade. No que se refere aos seus elementos estabilizadores, entre estes situa-se a acção dos mediadores culturais, entendidos como agentes que concorrem para a realização do valor e do sentido dos bens culturais a que estão associados na sua intervenção. O discurso crítico é, designadamente, uma peça fundamental na preservação do valor da criação artística, demarcando e instaurando a diferença da obra da ou na série, quer através da visibilidade social que lhe concede, quer por via das suas componentes discursivas singularizadoras, ao estipular uma medida para o seu valor estético, assim como várias possibilidades de sentido para além do que é manifesto. É nestas circunstâncias que este tipo de discurso aparece hoje associado não apenas às formas culturais clássicas mas também a múltiplos domínios culturais já legitimados ou em vias de legitimação artística, caracterizados pela produção industrial e, por isso, fundados sobre o princípio da reprodutibilidade, tais como o cinema, a fotografia, o design ou a 230

moda, concorrendo também desta forma na ruptura com a barreira da oposição produção/consumo restrito e produção/consumo alargado, assim como no curto-circuitar os clássicos critérios de definição da legitimidade cultural. Recorrendo aos diversos instrumentos e elementos que acabámos de focar, os quais demonstram apenas algumas das combinatórias entre série e novidade que a indústria cultural ensaia para impedir a saturação do mercado e para promover simbolicamente os bens que produz, diz-nos Maria de Lurdes Lima dos Santos que «o objecto de série tende presentemente a ganhar qualidades técnicas e estéticas, a diversidade instala-se e cria a ilusão da raridade através do sistema das pequenas diferenças sobre-multiplicadas.»129 É justamente neste jogo entre duas lógicas aparentemente contrárias - a da reprodutibilidade capitalista e a da raridade da obra -, que o que actualmente é considerado como criação artística é passível de se encontrar inserido num processo de produção industrial, sendo por isso reproduzível, e, simultaneamente, continuar a ser valorizado segundo o princípio da raridade. No entanto, não podemos esquecer que se estas estratégias de valorização começaram por ser adoptadas na esfera da cultura dita de série, elas não deixam de ser presentemente utilizadas na promoção simbólica das formas culturais tradicionalmente localizadas na esfera de produção restrita, devido ao facto destas formas, por via da penetração acelerada do capitalismo na produção, circulação e consumo artístico, aparecerem também hoje cada vez mais associadas ao processo de reprodução alargada, numa situação de dependência objectiva face ao mercado. Criam-se assim novas formas culturais e artísticas, sendo as clássicas redefinidas, apresentadas e divulgadas de outras maneiras que não as tradicionais. Por detrás da intensificação do movimento de penetração da lógica capitalista na esfera cultural, bem como, por consequência, da diluição da clássica polarização entre esfera de produção/ consumo restrito e esfera de produção/consumo alargado, estão algumas transformações que, a nível estrutural, se têm vindo a fazer sentir na nossa sociedade, as quais não podemos deixar de referir, ainda que somente de passagem. Uma dessas transformações diz respeito ao processo de libertação do tempo de trabalho que progressivamente temos vindo a assistir, processo esse que possibilitou o aumento do tempo de lazer e, por sua vez, a procura deste como tempo de investimento cultural e de promoção social, ou seja, como tempo simbólica e conspicuamente investido,

129 SANTOS,

"Reprodutibilidade/Raridade...", op. cit., p.371. 231

permitindo a aposta económica numa "cultura do lazer". Por outro lado, as inovações tecnológicas que a um ritmo alucinante se têm vindo a desenvolver, tiveram também importantes efeitos quer na diminuição do tempo de trabalho, quer nas alterações que aconteceram ao nível da produção, difusão e consumo cultural e artístico, proporcionando um alargamento e diversificação das audiências e dos seus modelos de recepção e consumo, bem como uma inflação da oferta em termos de bens e serviços culturais e artísticos. Não podemos igualmente alhear desta questão a importância das mudanças que têm vindo a acontecer no meio intelectual, ligadas à inflação dos cursos e dos títulos escolares (relacionados com actividades culturais e artísticas ou não), assim como, consequentemente, de uma população em contacto com a cultura legítima e em melhores condições culturais para legitimar outras formas culturais, factores esses que, reunidos, levaram a um considerável aumento da dimensão e da diversidade dos potenciais públicos que utilizam esses mesmos bens e serviços culturais e artísticos. É, todavia, de notar que este fenómeno de expansão cultural por via da implementação de uma política de democratização escolar, não foi inevitavelmente sinónimo de um aumento da competência estética dos novos públicos que daí poderão surgir, pois poderá revelar apenas um aumento da sua familiaridade com o mundo das artes sem que isto signifique um aumento de proximidade, assim como um aumento do reconhecimento, sem que tal signifique, por sua vez, um aumento de conhecimento estético. Ainda neste âmbito, há que que sublinhar as transformações que têm vindo a suceder na actual estrutura social, nomeadamente com a emergência e expansão de uma nova classe média ou de uma nova pequena burguesia intelectual, da qual surge uma nova categoria de produtores, intermediários e consumidores culturais e artísticos. Com efeito, na tentativa de delimitar fronteiras e de definir a sua posição específica na estrutura social, esta nova categoria social vai investir avultadamente, sob diferentes modalidades, na arte e na cultura, integrando-as e dando-lhes um lugar de destaque no seu estilo de vida. Torna-se assim notório que este processo social vai também proporcionar a constituição de novas audiências e de novos relacionamentos no campo cultural e artístico, relacionamentos esses que nem sempre são pacíficos (nomeadamente entre os agentes que tradicionalmente actuavam nesse campo e os seus novos agentes, entre os quais as lutas pelo monopólio da definição legítima do que é ou não é arte vão ser constantes e acentuadas). 232

Por último, é ainda de salientar a acção de um outro processo que, associado aos anteriores (e de algum modo deles consequente), começou agora a esboçar-se socialmente. Falamos, designadamente, da progressiva estetização do quotidiano que tem vindo a acontecer, processo esse que exprime a crescente valorização de visões e vivências estetizantes do quotidiano, isto é, o alargamento da preocupação com a dimensão estética na nossa vida de todos os dias, consubstancializada quer nos constantes apelos que hoje se fazem ouvir em relação aos cuidados que se devem ter com o corpo, com a moda, com a decoração, no fundo, com a imagem que queremos dar de nós próprios aos outros com quem nos cruzamos, quer ainda no facto das estratégias de diferenciação e promoção social de todos os produtos com que lidamos quotidianamente assentarem cada vez mais em elementos de natureza estética. Tal como refere Paulo Monteiro, «se hoje se comenta tanto (e tanto se critica) a fortíssima presença do espetáculo na política, na economia ou no desporto, é porque houve uma estetização difusa da sociedade, que faz viver as artes numa nova e, a meu ver, fascinante impureza: não houve a tão anunciada morte da arte mas sim a morte da estética (Peter Burgin) oitocentista e vanguardista, que concebia uma relação de recolhimento com uma arte do recolhimento. Hoje, quando a estética entra em cumplicidade com a campanha de um Presidente da República ou com uma pasta de dentes, a disseminação da arte no quotidiano abala, dentro das próprias artes tradicionalmente definidas, a dicotomia entre alta cultura e cultura de massas, e cria um exército de pequenos criadores a trabalharem em pequenas criações.»130 Ao incentivar o acto criativo no quotidiano (quando o indivíduo, por exemplo, se produz para sair) e para o quotidiano (quando o criador produz bens mais ou menos funcionais para serem utilizados - como uma peça de vestuário ou de mobiliário - ou vistos - como os graffiti ou as intervenções urbanas - quotidianamente), este processo tende efectivamente a estimular o esbatimento, a aproximação, a diluição das fronteiras fictícias entre a arte e a vida, promovendo uma ruptura com a institucionalização da actividade artística tal como era romanticamente concebida. Por outro lado, é também de notar o facto de hoje em dia assistirmos frequentemente à utilização e recriação inovadora, por parte de artistas associados, em princípio, a circuitos de produção restrita, de técnicas, materiais e/ou elementos banais e estandartizados que inundam o nosso quotidiano, utilização e recriação essa que faz deslizar os bens reprodutíveis do

130

MONTEIRO, in O Teatro e a Interpretação do Real, op. cit, p. 105. 233

seu contexto habitual para contextos diferentes, concorrendo para a percepção destes como também passíveis de criação e de avaliação artística.131 Ora, todas estas transformações estruturais e de vivência quotidiana vieram efectivamente desenvolver-se a par e passo com o alargamento do próprio campo cultural e artístico, contribuindo para a diluição das velhas hierarquias de legitimidade nele estabeleciadas, para a legitimação de novas esferas de produção e consumo, para a inflação e heterogeneização dos bens e serviços culturais disponíveis e para o adensamento e reestruturação da tradicional composição de consumidores culturais. No contexto deste movimento de expansão, democratização e intensificação cultural, a prática crítica não só voltou a redefinir-se como actividade sobretudo ao serviço do público interessado em matérias culturais, como o seu processo de institucionalização veio a consolidar-se definitivamente, passando a sua presença a ser constantemente reclamada no universo cultural. De facto, o fenómeno de explosão na vida cultural que, quer sob a forma de produção, quer sob a forma de circulação, quer ainda sob a forma de consumo, veio a acontecer desde a II Guerra Mundial, com os seus consequentes efeitos de democratização relativa do campo artístico e de dilatação dos seus limites internos, em muito contribuiu para fazer acentuar a necessidade da acção reguladora, legitimadora e orientadora do crítico. Com o visível direccionamento da produção cultural para o mercado, a tentação do criador em orientar a sua estratégia criativa segundo a experiência daquele, incorrendo na repetição ou na imitação de motivos, temas, estilos, no fundo, de receitas bem sucedidas, deixando para trás a inovação que lhe é socialmente exigida, foi uma hipótese que se pôs com maior veemência. Crendo-se que a proximidade e o conhecimento que o crítico tem do campo em que intervém lhe permite identificar o plágio e o engano, o epigonismo e a mentira, pede-se-lhe então que, com a perspicácia e saber de que se reivindica e de que é investido, vigie e denuncie tais situações em que a qualidade cultural é duvidosa e que poderão passar

131

Isto na medida em que tal estratégia proporciona a criação de novas estruturas imaginativas quer por parte da produção, quer por parte da recepção, já que implica todo um trabalho de descontextualização e recontextualização do elemento/técnica/material utilizado por parte do produtor, trabalho esse que vai modificar a mensagem ou o conteúdo simbólico atribuído ao elemento/técnica/material na sua situação "normal", exigindo do receptor, por sua vez, todo um trabalho de desestruturação e reestruturação dos códigos de interpretação e de valorização desse mesmo elemento/técnica/material, obrigando-o a procurar novos recursos para a sua descodificação. É, no fundo, uma maneira de tornar novo o que já não é novo, representando o já visto de modo novo. 234

despercebidas aos olhos do leigo, funcionando assim como elemento de regulação e classificação cultural e artística. É nesta perspectiva que podemos compreender as palavras de António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso, quando diz que «o crítico será aquele que, precisamente, conseguirá distinguir onde é que está o lugar comum daquilo que não é lugar comum.» Ou as de Eurico Gonçalves, crítico de artes plásticas no Diário de Notícias, para quem a crítica deve «dizer se de facto essa pintura tem uma marca de autenticidade, se revela uma pureza que é altamente respeitável, ou se, pelo contrário, tenta enganar, tenta passar por ser não sendo, entra no domínio do artifício.» Ou ainda as de Dámaso Alonso, ao assumir como uma das principais tarefas da crítica a de distinguir a obra autência da obra simulada e deste modo eliminar da circulação artística os falsos valores.132 Aliás, se tivermos em consideração que a própria origem etimológica da palavra crítica é derivada da expressão crinein - cujo significado se prende justamente ao acto de fazer passar por um crivo, de fazer separar o trigo do joio -, logo verificamos como a esta prática discursiva, desde a sua génese e institucionalização social, ao pressupôr um acto de selecção e de classificação cultural, filtrando apenas um número relativo de trabalhos entre aqueles, inumeráveis, que têm na sua base uma intenção criativa, notando-lhes defeitos e qualidades, limites e virtudes, aferindo da sua originalidade/singularidade ou vulgaridade, toma para si o papel de mecanismo de controlo e regulação do acesso ao campo artístico, permitindo o posicionamento dos artefactos que lhe pretendem aceder na hierarquia da produção cultural. Por outro lado, em condições de concorrência tão aguerrida com uma oferta cultural cada vez mais avultada e diversificada, a acção publicamente legitimadora do crítico aparece como uma benesse promocional e consagrativa fundamental para o criador, ao permitir-lhe a si e à sua obra um destaque público credível, alargado e singularizado, constituíndo assim uma das principais etapas da construção da sua reputação social e cultural por que terá de passar. E perante esta amálgama provocada pela cada vez maior dispersão e pluralidade de manifestações culturais colocadas à disposição do consumidor, urge fazer ressaltar, distinguir, hierarquizar, seleccionar o

132

Cit. in COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit., p. 415. 235

que comprar, o quer ver, o que ouvir. É nestas circunstâncias que também o público, disperso mas curioso, irá procurar cada vez mais a crítica, solicitando-lhe uma acção fundamentalmente orientadora, informativa e judicativa, quanto mais simplificada melhor, como é patente na conhecida fórmula das estrelinhas, hoje empregue já não apenas na área do cinema, onde nasceu, tendo-se disseminadado igualmente por outras artes do espetáculo.133 E é neste contexto de dilatação, reprodutibilidade e mercantilização cultural intensa que a componente de informação na crítica, nomeadamente da crítica que é feita ao nível da imprensa escrita, começa a ser estímulada e valorizada como elemento fundamental a ser integrado na estratégia discursiva traçada pelo crítico, sem o ser em detrimento das restantes. Chamar a atenção para a existência de, dar visibilidade a, informar para além de apreciar e interpretar, foram funções que passaram a ser bastante pretendidas da crítica quer por parte do leitor, quer por parte do criador, quer ainda por parte dos meios por onde é privilegiadamente divulgada, ou seja, os jornais, funções essas cuja importância o próprio crítico, com maior ou menor grau de resistência, legitimou e acarretou. Senão vejamos: «Quais considera serem as principais funções da crítica no contexto do actual universo cultural ou artístico? A primeira utilidade é informativa. Quer dizer, hoje que os consumos culturais estão instituídos como fazendo parte da vida corrente das pessoas, lá reservam uma percentagem X da área da cultura, que obviamente não é grandemente separável da área dos tempos livres... Um dos primeiros sentidos daquilo que se faz é o informativo e é, de algum modo, a orientação dos tempos livres; e depois, em segundo lugar, dos gostos; e em terceiro lugar, da própria produção, na medida em que obviamente vai tendo consequências sobre o funcionamento das galerias, sobre o mercado, e eventualmente sobre os próprios artistas, na medida em que se tem um poder efectivo neste sector.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso)

133

A classificação dos bens culturais por estrelinhas deriva da integração do princípio da racionalidade numérica moderna universal no domínio cultural, tipo de racionalidade essa que passa pela institucionalização quantitativa do valor. Este tipo de classificação funciona basicamente como instrumento de consulta, exponenciando a dimensão judicativa da prática crítica em detrimento da sua dimensão reflexiva e interpretativa. Tentando relativizar a tirania da suposta objectividade subjacente a este sistema, ele integra, num gesto democrático, vários «déspotas», cujas opiniões expressas quantitativamente se podem verificar comparativamente. 236

«...é evidente que a crítica também não existe como coisa imponderável. Existe em contextos precisos, existe em jornais, que funcionam num mercado, e portanto quem faz crítica não se pode abstrair disso. Eu diría portanto que a crítica, até porque surge a maior parte das vezes associada a um trabalho mais de características jornalísticas de informação sobre, pode desempenhar uma função de informação, de roteiro e finalmente de apelo à relação específica do espectador com os filmes. Em termos genéricos, eu diria que se a crítica conseguir cultivar a apetência e o gosto pelo cinema, acho que está a cumprir uma boa função.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso) «Primeiro que tudo, dar a saber que os livros e os autores existem. Apesar dos media produzirem aquelas sínteses, a pessoa fica sempre com o desejo de saber mais qualquer coisa sobre aquilo, e creio que a crítica preenche essa função.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras) «Os jornais sentem uma grande necessidade de ter uma crítica, ou por uma questão de prestígio - também mas em menor escala -, ou por uma questão de complementar a sua informação, ou seja, há um lado de informação que é proporcionado pelos jornais que é a crítica. No fundo, há um mercado de exibição que precisa de ser "anunciado", ou seja, as pessoas precisam de saber o que é que existe. O mercado precisa de se dar a conhecer, e as pessoas precisam de saber o que é que há, o que é que eu vou ver hoje. Se eu não tiver ninguém que me informe sobre o que é que eu vou ver hoje, eu não sei o que é que vou ver hoje. O boca a boca em algumas cidades já foi. A oferta é muita, portanto as pessoas vão procurar o jornal para ver o que é que existe. Ora, essa informação escusa de ser passiva, pode ser activa. O crítico pode fazer o «ranking» dos filmes, mas as pessoas querem saber um bocado mais. Inclusivamente, para não ir para questões de gosto nem de opções estéticas, nem éticas nem nada, as pessoas querem saber numa crítica quem são os realizadores, quem são os actores, qualquer coisa sobre isso, qual é a história do filme, e não sei que mais. Não acho que o crítico deva fazer só isso, não sei se também deve fazer isso, provavelmente sim.» (José Navaro de Andrade, crítico de cinema no Público) 3.5. CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E DE DIFUSÃO DO DISCURSO CRÍTICO:

DO ESPAÇO DA ACADEMIA PARA O ESPAÇO DA IMPRENSA 237

Ainda no âmbito do movimento de proeminência e institucionalização da figura do crítico no campo cultural e artístico que temos vindo neste trabalho a descrever e a interpretar, é igualmente de destacar a importância que a expansão dos mass media teve no seu desenvolvimento. Com o florescimento crescente da imprensa escrita a partir de meados do século passado, o discurso crítico encontrou um vasto campo de acolhimento que o vem retirar de entre os muros da Academia e do Salão, espaços privados e restritos a que estava circunscrito, transferindo-o directamente para o âmbito de um espaço público e alargado. Ora, este movimento de transladação da Academia para os media, como é evidente, ao fazer expandir substancialmente as possibilidades de difusão deste tipo de discurso, veio proporcionar ao crítico uma enorme visibilidade social e cultural que lhe ampliou consideravelmente as capacidades de protagonização no campo cultural e artístico. A integração da prática crítica no campo jornalístico poderá ser vista como consequência quer da transformação das condições socio-económicas e institucionais que na segunda metade de Oitocentos caracterizaram o mundo das artes, quer da reestruturação que no próprio campo da imprensa aconteceu também por essa altura. Com efeito, como já tivémos oportunidade de referir, a produção cultural intensificouse, as instâncias e circuitos de difusão, legitimação e consagração tradicionais revelaram-se impotentes e preconceituosas diante deste fenómeno, e o grau de aceitabilidade e de comunicabilidade imediata entre esta nova produção e o seu público consumidor potencial (que se alargava) baixou, tendo-se a crítica desenvolvido como resposta a estas novas circunstâncias, passando desde então a determinar de forma decisiva o espaço de existência da arte.

Simultaneamente, assistimos à liberalização

da imprensa em relação ao controle oficial, com a sua organização segundo os moldes industrais da produção capitalista e os princípios da livre concorrência e da oferta e da procura, processo esse associado à melhoria das vias de comunicação, ao alargamento da instrução pública, ao crescimento das cidades e aos progressos da técnica tipográfica, nomeadamente à invenção da rotativa, que irá possibilitar não só um aumento considerável das tiragens, como a sua mais rápida reprodução.134 Passando a funcionar sob a lógica do mercado capitalista em detrimento da lógica político-ideológica (dentro da qual o jornal funcionava basicamente como instrumento de combate e de

134

CRATO, A Imprensa, Lisboa, Editorial Presença, 1989, pp. 31-38. 238

propaganda), assim como em moldes industriais de produção, perdendo o seu carácter limitado e propangandístico, a imprensa deixa então de tratar unicamente os acontecimentos que interessavam directamente à classe política e preocupou-se em alargar a sua abordagem a novos temas e conteúdos, procurando através da apresentação de um produto diversificado chegar a novas e cada vez mais vastas faixas de público. Assim sendo, apercebendo-se do crescente paradoxo que se fundava no mundo das artes entre disponibilidade social e dificuldade cultural, rapidamente surge no contexto jornalístico um interesse notório pelo tratamento dos acontecimentos e temas associados àquele universo, patente quer na sua inclusão nos diversos periódicos generalistas que fervilhavam, quer na emergência de múltiplos jornais e revistas especializadas em assuntos culturais e artísticos. Em Portugal, nomeadamente, encontramos por essa altura uma proliferação de jornais de recreio e instrução, tipo de «publicações de divulgação cultural que, embora acentuando nuns casos o factor instrução e noutros o factor recreio, se preocupavam, regra geral, em proclamar a sua missão civilizadora», e que se dirigiam prioritariamente a um público heterogénio, pelo que detinham um carácter híbrido, «acentuado pela mistura de textos didácticos dirigidos a um público não cultivado e de produções para um público restrito de intelectuais.»135 Por outro lado, encontramos também uma imprensa cultural especializada a expandir-se, esta ainda normalmente ligada a sociedades académicas e dirigida a públicos mais específicos e cultivados.136 A crítica vai aparecer intimamente associada a ambos os tipos de imprensa, embora praticada sob moldes diferentes na medida em que se predispunha a cumprir funções distintas, sendo no primeiro dominada por intenções mais pedagógicas, divulgativas e/ou de polémica, optando sobretudo pela fórmula da revista de acontecimentos, isto é, o registo e comentário selectivo das obras ou eventos que sucediam na actualidade, cumprindo predominantemente uma função de lançamento em

135

SANTOS, Os Intelectuais Portugueses em Oitocentos, op. cit, pp. 332 e 335. As áreas de criação cultural privilegiadas no âmbito deste movimento de expansão dos lugares de difusão do discurso crítico, quer ao nível da imprensa generalista, quer ao nível da imprensa especializada, foram, no contexto português, a literatura e em muito também o teatro, sendo mínima a atenção neles dedidada às Belas-Artes, situação que se prolongou até aos anos 60 do nosso século. As várias tentativas de implementação de revistas especializadas específicas dessa área de criação cultural resultaram, na sua maior parte, em redundantes fracassos e/ou em experiências efémeras. No dizer de José-Augusto França, «a indiferença do público previa a impraticabilidade de fazer vingar uma revista destas em Portugal», situação que a persistência de muitos editores diletantes de arte, em vão, tentou ultrapassar. In A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., vol II, p. 113. 136

239

termos que Maria de Lurdes Lima dos Santos designa de publicidade nobre137, enquanto que entre o segundo tipo de imprensa prevaleciam preocupações mais de ordem reflexiva, analítica e historicista. Aqui, a crítica apresentava-se muitas vezes sob a forma de discurso biográfico, onde a narrativa detalhada das vidas dos artistas, passados ou presentes, aparecia mesclada de uma intenção panegírica e de uma orientação filológica, a qual, como verêmos mais à frente, muito em voga no contexto académico da altura, caracterizava-se pela procura do sentido e do valor estético, em suma, a relevância da obra de determinado artista no contexto social, cultural e/ou psicológico da sua produção, contexto esse justificador e determinador da intenção estética e/ou ética que a ela subjaz. O espaço da imprensa veio, deste modo, dar lugar ao discurso crítico quer como estratégia para chamar mais público-leitor, permitindo a cobertura dos eventos culturais dentro da generalidade dos eventos mediaticamente tratáveis, quer como estratégia de credibilização intelectual do próprio jornalismo, ao possibilitar a entrada neste a notáveis das artes e letras. Para os críticos, por sua vez, a entrada no mundo do jornalismo apresentava-se não só como uma alternativa ao meio restrito das publicações académicas (que muitas vezes se reduzia aos catálogos e anuários das exposições, às publicações das comunicações dos salões, e a uma ou outra publicação especializada mais ou menos esporádica), como também lhe reconheciam um poderoso meio através do qual podiam exercer a tal função social civilizadora e formativa que tanto valorizavam e de que se reivindicavam. Por outro lado, o jornal também aparecia ao crítico como dotado de um estatuto privilegiado na medida em que lhe abria amplamente o espaço de possibilidades discursivas em relação à Academia138, ao permitir-lhe certas tomadas de posição a favor dos movimentos artísticos que se lhe opunham, assim como certas estratégias discursivas pouco toleradas no interior daquela instituição, como a polémica violenta muitas vezes praticada com recurso à «grosseria». De facto, no contexto jornalístico mais facilmente se poderia produzir discursos e consensos em circunstâncias de escândalo e de guerra aberta, já que tais circunstâncias, não esquecendo que o jornal passava agora a assumir o estatuto de mercadoria, propiciavam melhores resultados na sua venda.

137

SANTOS, Os Intelectuais Portugueses em Oitocentos, op. cit, p. 301. 240

A colaboração por parte do crítico no espaço da imprensa ainda o atraía na medida em que ele reconhecia nesta, pelo benefício que lhe concedia de um elevado número de leitores, um eficáz instrumento quer para construír a sua própria reputação pública, ou seja, para fazer valorizar social e culturalmente o seu nome de um modo relativamente fácil e rápido, quer para firmar ou arruinar as reputações dos seus pares, consoante pertencessem ao seu grupo de amigos ou inimigos, ou seja, consoante partilhassem das suas afinidades electivas ou não. O facto da actividade crítica ser geralmente acumulada ao exercício de criação, reforçava bastante a tendência daquela apoiar cegamente os criadores com quem o crítico coincidisse nas suas disposições estéticas e éticas, normalmente integrados, como já tivemos oportunidade de constatar, nos seus quadros de interacção nucleares139, ou seja, os seus amigos mais próximos, com os quais partilhava uma trajectória artística idêntica, e com os quais frequentemente se reunia nos seus ateliers ou nos cafés costumeiros para discutir e trocar opiniões sobre as obras produzidas, num regime de cumplicidade intelectual e vivencial que, como vimos atrás, caracterizava o campo das artes na viragem do século. Daqui resultava no contexto da crítica jornalística, como faz notar Maria de Lurdes Lima dos Santos, uma crítica de camarilha, cujos elementos reciprocamente se protegiam em redes de cumplicidade estética que se confundiam muitas vezes com o compadrio, fundando informalmente sociedades de elogio mútuo que se fechavam a ver qualquer coisa «de notável ou sequer de esperançoso, além dos horizontes desse mundo criado pelos hábitos de conveniência ou pelos laços de amizade.»140 Com a gradual desestruturação da tendência grupalista no mundo artístico, e com a crescente ocupação dos lugares da crítica na esfera mediática por intelectuais não-criadores, possuidores de uma cultura académica profundamente marcada pelo valor da distância e da independência crítica, essa atitude foi todavia esmorecendo no desempenho da actividade crítica.

138

Acerca das restrições discursivas e estéticas operadas pela Academia, sabe-se, por exemplo, que Zola não pôde continuar o seu Salon de defesa à pintura formalmente inovadora de Manet, devido à indignação do seu público ouvinte, bastante acomodado ao realismo academista. 139 O conceito de quadros de interacção nucleares aplica-se aqui à «cadeia estruturada de relações interpessoais e respectivas referências artísticas cuja organização obedece à forma de grupos e círculos», os quais se interconectam «numa malha de interdependências interagindo mutuamente por afinidade ou contrapozição electiva segundo uma lógica de interesses que extravaza em muitos aspectos o plano propriamente artístico e estético», cit. in CONDE, O Duplo Écran. 2. Artistas...", op. cit., p. 60. 140 Palavras de Andrade Ferreira, in SANTOS, in Os Intelectuais Portugueses em Oitocentos, op. cit, pp.301-302. 241

A atracção do lugar da crítica como espaço privilegiado para o desenvolvimento de um rápido processo de construção social de uma reputação pública do nome de quem lhe acede, explica, em parte, o fenómeno tipicamente oitocentista que aconteceu em Portugal (e não só) na relação entre o lugar da crítica e os lugares políticos. Utilizando o primeiro como plataforma de lançamento público do seu nome, acumulando daí dividentos simbólicos de visibilidade e prestígio social sobre a sua pessoa, muitos dos críticos portugueses mais reputados vieram, mais tarde, na sua trajectória de vida, a tomar cargos políticos de importância no Estado da nação portuguesa. Conta-nos JoséAugusto França acerca deste fenómeno que «Vieira (Custódio José) era um político (como político seria Jaime Moniz), e curiosamente outros políticos verêmos aproximarem-se do campo das artes, como críticos. É esse um fenómeno do romantismo, em que vêmos caber, em exemplo quase normativo, Thiers - qua aos vinte anos era crítico de arte e aos setenta presidente da República... Já vimos, de resto, o caso de L. A. Mouzinho de Albuquerque, e activas personalidade políticas foram também Garrett, o cardeal Saraiva, Rebelo da Silva e Mendes Leal que encontrámos no alvorecer do romantismo artístico, senhores de posições assaz dúbias esteticamente - ou Pinheiro Chagas que, em 66, afirmava que "nas belas-artes e nas belas-letras é a eloquência o primeiro dos merecimentos", sendo da pintura a "eloquência das cores". Andrade Corvo, Latino Coelho, António Eanes, todos eles futuros ministros, dedicaramse durante este período à crítica de arte ou à reflexão estética, e o mesmo fez, com maior intensidade até, um Luciano Cordeiro que em outros domínios se ilustrou. (...) Importa ainda ver que quase todos estes escritores, jornalistas e dramaturgos se ocuparam de problemas de crítica e de estética na sua juventude apenas; a maturidade levou-os para outros interesses, em que a política podia ganhar lugar pimacial. Entretém polémico de juventude, falho de formação séria, o seu papel na cultura artística nacional foi pequeno, e as queixa que mais ou menos todos eles fizeram, do desinteresse do público e da Nação, mal lhes escondiam a incompetência. Afinal, tal desinteresse era, ao mesmo tempo, causa e consequência da sua acção crítica, numa espécie de círculo vicioso cuja solução se não via.»141 Se doravante a imprensa escrita permaneceu ligada à visibilidade e ressonância dos eventos e movimentos culturais em geral, no contexto da recente intensificação da

141

FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., Vol. I, pp. 400-403. 242

vida cultural nas suas vertentes de produção, circulação e consumo, a disponibilidade dos media para a tematização dos eventos culturais veio a alargar-se bastante mais, adquirindo um espaço de centralidade cada vez maior na sua agenda. Tomando consciência da importância da sua presença e valor social e, por sua vez, da possibilidade da sua comercialização e lucro em termos de cobertura jornalística, sentindo que tais assuntos se tornavam suficientemente significativos e relevantes para justificarem um tratamento mediático na medida em que íam ao encontro do interesse de um público cada vez mais vasto, verifica-se desde há um par de décadas a esta parte nos diversos orgão de informação, nomeadamente de informação escrita, um amplo processo de redefinição e ampliação dos seus critérios de noticiabilidade e dos seus valores notícia em relação a uma área que, anteriormente, não constituía notícia como nos nossos dias. Esse processo traduziu-se, mais uma vez, quer na expansão dos jornais e revistas especificamente dedicados a temas culturais e artísticos, quer na exigência patente a nível de todos os orgãos de informação escrita generalista da organização de uma cobertura jornalística especificamente cultural e mais alargada, sob a forma de separatas e sectores temáticos especializados, o que constitui um indicador significativo de que aqueles temas e acontecimentos estão entre os mais importantes critérios de noticiabilidade hoje em vigôr, constituíndo um valor-notícia fundamental. Nestes dossiers, a notícia "cultural", o fait-divers, a reportagem, a entrevista e o parecer crítico passaram frequentemente a acotovelar-se, muitas vezes confundindo-se ou sobrepondose numa mesma peça, nomeadamente quando, numa estratégia de racionalização de recursos humanos e económicos, o jornal faz coincidir na mesma pessoa as actividades de jornalista cultural, essa nova figura que surge no âmbito de todo este processo, com as de crítico.142 A constatação do recente processo de inflação de discurso crítico sobre a produção cultural aparece ilucidativamente desenvolvida e explicada no testemunho de José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público: «Repare, o que se criou foi, em torno da produção, um peso - e não faço nenhum juízo de valor sobre isso - de 142

Muito embora estas duas actividades remetam para funções jornalísticas e estratégias discursivas diferentes, estando a primeira mais associada a um tipo de jornalismo de carácter eminentemente informativo e factual, cujo papel será transmitir "fielmente" os acontecimentos culturais, enquanto a segunda supõe o comentário opinativo, judicativo, interpretativo, estabelecido em moldes pessoais, sobre esses mesmos acontecimentos. 243

produção sobre a produção, de analítica, de crítica, desde a universidade até aos jornais, que tem subido exponencialmente nos últimos trinta anos, vinte anos, sobretudo. É engraçado porque é em tudo. Os analistas políticos é uma coisa que era impensável há vinte anos, ou se era político, ou se era votante. Neste momento é tão forte e tão sólida em termos de quantidade, e não só, a produção crítica sobre a produção artística, quanto a própria produção artística. (...) A ideia de opinião começou a ganhar um peso enorme, porque por alguma razão arranjou um mercado. (...) Há uma indústria da crítica. Por alguma razão os críticos existem em todos os jornais. É uma indústria dentro do jornalismo, pode-se dizer bem ou mal, mas existe. Como eu disse, o meu público é o meu editor, e se o editor me paga é porque acha que lhe faz falta. Mesmo que não goste de mim, pelo menos tem lá um tipo a escrever aquelas coisas. Porque se não interessasse a ninguém, nem que fosse por um questão de prestígio só, pura e simplesmente, com a crise que existe, nem sequer se gastava dinheiro com estes fulanos que andam aqui a escrever umas coisas sobre as obras de arte. Por isso, existe uma indústria da crítica. E em Portugal é ainda larvar, não existem praticamente revistas da especialidade. Em França existem quatro ou cinco revistas de cinema, no mínimo, não sei quantas de artes plásticas, não sei quantas de literatura, em Portugal é tudo em jornais, portanto ainda não tem o peso que tem noutros sítios. Mas mesmo assim, já tem algum peso.» Deste modo, com a entrada no campo mediático, o qual passa a constituír para o crítico o seu mercado de trabalho privilegiado, acaba o seu longo período de indeterminação profissional, e vêmo-lo então a assumir o estatuto social não apenas de especialista em matéria de artes, mas também a sua actual condição de profissional da comunicação, com os consequentes benefícios simbólicos e de intervenção que daí advêm para o seu lugar social, enquanto participante fundamental na construção de uma opinião pública. A emergência e o redimensionamento da actividade crítica como profissão veio a ser acompanhada, mais recentemente, de várias tentativas no sentido de desenvolver estratégias de legitimação e de regulamentação social, como a organização efectiva de associações profissionais de críticos e de, no seu interior, se elaborarem códigos deontológicos próprios, assim como de se regulamentarem e "credenciarem" as competências básicas necessárias ao desempenho da profissão de crítico, tentativas essas já atrás analisadas, no final do ponto 1.3 do nosso trabalho.

244

O acolhimento da prática crítica preconizado pelo espaço da imprensa desembocou no que se veio a tornar uma das principais linhas de clivagem características da configuração do seu domínio específico enquanto prática cultural particular, clivagem essa assente na cisão entre os seus diferentes lugares de produção (e, consequentemente, de recepção). Como principais lugares de produção de discurso crítico passámos a ter, por um lado, a comunidade académica ou universitária, considerando aí a diversidade das suas inserções disciplinares, e, por outro, a comunidade jornalística, onde a figura do crítico passou a associar muitas vezes este seu estatuto ao de jornalista, com tudo o que isso implica de constrangimentos na sua rotina produtiva. Por vezes também acontecia o inverso, ou seja, um jornalista, com gosto pelas coisas de cultura e um grau mais ou menos acentuado de formação específica em determinada àrea artística, vinha a obter o estatuto de crítico dentro do orgão de imprensa para o qual previamente trabalhava. Esta situação é, contudo, actualmente mais rara, por razões que se prendem com as competências específicas requeridas para o desempenho credível da actividade crítica e para que o discurso dela resultante tenha o impacto público e a eficácia simbólica esperada e desejada. A cada um desses diferentes lugares de produção de discurso crítico corresponderiam, por sua vez, lugares de recepção também eles distintos, ou seja, dirigir-se-iam e atingiriam públicos diversos, facto a que não é alheia a influência que o próprio veículo de comunicação utilizado na difusão dos respectivos discursos tem na configuração dos públicos atingidos, isto para além, como é evidente, da diferença que existe quanto às próprias características específicas dos discursos produzidos em ambos os lugares. Com efeito, a crítica jornalística, ao ser difundida sobretudo nos orgãos de imprensa generalistas e ao pretender cumprir uma função formativa e informativa, utilizando, por isso mesmo, as técnicas jornalísticas do tratamento genérico da informação, pretenderia dirigir-se a um amplo espectro de públicos (do ponto de vista cultural e social), isto ao passo que a crítica universitária, situada no outro extremo da escala de especialização, ao circular através de orgãos de imprensa especializados e ao procurar exercer uma função teórica de pesquisa e formulação científica ou «paracientífica» sobre os artefactos estéticos, o seu consumo tende a restringir-se aos próprios meios académicos, aos quais, aliás, se destina prioritariamente. O que nos leva a supôr que aqui, a prática crítica aponta para uma troca cultural realizada em círculos restritos, ao passo que na imprensa, a troca cultural tenderá a realizar-se em círculos bastante mais abrangentes ou alargados. 245

Esta clivagem corresponde à justaposição que, segundo Mary Pratt, acontece entre o «reviewing» ou a crítica jornalística, praticada nos orgãos de imprensa quotidiana, e o «criticism» ou crítica universitária que, consoante as suas inscrições disciplinares, produz reflexões ensaísticas mais alargadas, de inspiração e abordagem teórica variável, encontrando o seu suporte de difusão sob a forma de livro, ou sobre a forma de artigo aprofundado em revistas especializadas.143 Tal clivagem não constituíu, todavia, realidade efectiva no contexto da crítica portuguesa desde a sua génese, já que a Universidade, de facto, raras vezes foi no nosso país lugar de produção de discurso crítico, sendo que, por outro lado, as revistas especializadas criadas com tal intuito, pautaram-se normalmente pela sua vida curta, pouca relevância detendo no funcionamento do universo das artes e letras. «Ensino de generalidades», no dizer de José-Augusto França, a formação na área da história, da filosofia e da teoria das artes e da literatura concedida na Universidade, consistia até há bem pouco tempo em algumas disciplinas «soltas e anexas», «presas a esquemas oitocentistas de pensamento e metodologia», «que nenhum diploma específico garantia e nenhum doutoramento jamais consagraria».144 Neste contexto, a incursão estética e crítica de inserção académica nunca foi, naturalmente, cultivada em Portugal até recentemente, por altura dos anos 60-70. Hoje, com interesses estéticos bem mais desenvolvidos e concedendo uma base de conhecimento bastante mais sólida e actualizada favorável à prossecução de uma crítica de matriz académica, a Universidade não encontra, porém, mecanismos, circuitos e suportes preparados para a difusão desses mesmos discursos, continuando a crítica portuguesa praticamente restringida ao espaço concedido pelos jornais mais ou menos generalistas. Daí a comunidade crítica em geral, mais acentuadamente entre os críticos da ala mais academista - ou seja, que partilham de uma ética associada à valorização das componentes analíticas e reflexivas no seu discurso, assim como ao aprofundamento e maturação intelectual da sua relação com o objecto criticado -, lamentar o que consideram ser uma situação de insuficiência a nível das estruturas de difusão que lhes permitem uma crítica mais especializada e aprofundada, de natureza académica.

143

PRATT, in "Art Without Critics and Critics Without Readers or Pantagruel Versus The Incridible Hulk", HERNADI, op. cit., pp. 177-178. 144 FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XX, op. cit., p. 463. 246

Reconhecendo que a imprensa generalista não é o lugar mais apropriado para a produção e difusão desse tipo de crítica, devido às pressões e constrangimentos decorrentes da sua lógica de funcionamento (tempo, espaço e actualidade), assim como ao campo alargado de recepção que pretende sempre satisfazer (que o faz apelar à simplicidade discursiva), o crítico de ethos universitário que, na falta de alternativas, se vê coagido à sua integração, tenta então desenvolver no exercício da sua prática um compromisso de hibridez entre o que considera ser o seu ideal de crítica e o ideal expectante pelo jornal que serve, incorporando no seu discurso e na abordagem que faz do objecto criticado, a par das suas próprias opções, determinado tipo de critérios e elementos próprios da abordagem e da linguagem jornalística, de modo a que esse mesmo discurso tenda o menos possível a parecer um objecto "estranho" dentro da estrutura discursiva do jornal. Neste contexto, a clivagem existente entre uma forma de intervenção crítica de referência universitária ou académica e outra de matriz jornalística esbate-se no que diz respeito à cisão que pressupõe quanto aos seus lugares de produção (que, na realidade, praticamente se resume ao espaço da imprensa), diluíndo-se entre o espaço de possibilidades estilísticas que cada um dos hebdomadários existentes concede ao discurso crítico em geral ou a um crítico em particular (embora também tivessemos verificado que são os jornais semanários, em detrimento dos diários, que maior espaço de possibilidades concede às tomadas de posição de academismo híbrido). Daí que, embora mais complexa a nível da sua aferição, essa clivagem tenda realmente hoje a estruturar-se no espaço da crítica portuguesa (como aliás os testemunhos dos nossos críticos manifestam), tanto mais que, como vimos no início deste trabalho, as competências formais exigidas ao acesso ao lugar do crítico são cada vez mais valorizadas. Traduz-se, porém, não numa segmentação a nível dos lugares de produção, mas na distância entre as éticas que orientam o olhar e o escrever sobre a estética, ou seja, por outras palavras, o "academismo" ou o "jornalismo" na crítica não dependerá se ela é feita nos jornais ou nas revistas especializadas ou académicas (que não existem), depende da perspectiva que se valoriza, da referência que se utiliza, do tom que se pretende. «Como é que caracteriza em traços gerais o panorâma actual do universo da crítica? Insuficiente, manifestamente insuficiente, por várias ordens de razões: primeiro porque não há lugar onde as pessoas escrevam. (...) De facto, em Portugal não existe 247

quase revistas especializadas ou não especializadas de literatura, de arte também, ou de música ainda menos, isto não é só exclusivo da literatura, é também exclusivo das outras artes. Portanto, não há lugares para publicar, não aparecem pessoas para treinar, para fazer crítica. E entra-se numa espécie de ciclo de onde é difícil sair. E não há lugares em Portugal para publicar porquê? Porque não há uma tradição literária e artística muito forte, que faça com que os jornais tenham as secções para responder aos gostos do público. Isto é, se não se lê, porque é que os jornais hão-de ocupar cinco páginas com crítica literária? Se aquilo não tem leitores, se os jornais sonham que a literatura não tem leitores, então não vamos dar lugar a que haja muita crítica literária. Portanto, há aqui uma intervenção de uma série de factores que faz com que a crítica literária seja manifestamente insuficiente. (...) De qualquer forma, quase todos os jornais em Portugal têm uma coluna de crítica literária... Repare que a maior parte desses jornais que têm umas páginas dedicadas à literatura, não sei em muitos casos se eu consideraria crítica literária. É mais divulgação de livros, que é uma coisa diferente, do que propriamente crítica literária. Muito embora isso seja por vezes apoiado por exercícios de julgamento de valor, mas o trabalho que está lá por detrás a gente percebe que não é propriramente crítica literária, é uma espécie de gosto pessoal que é plasmado ali, por vezes quase de uma maneira obscena, porque uma pessoa que pura e simplesmente se limita a dizer qual é o seu gosto, é de facto um poder descricionário um pouco insuportável, despudorado. É preciso que faça um percurso qualquer e que mostre esse percurso ao leitor para que esse juízo tenha algum sentido, porque se não, não tem nenhum sentido. (...) Talvez Portugal seja um dos únicos países onde um certo tipo de crítica aparentemente menos consumível num jornal, aparece em jornais. Nós podemos pensar que isso é muito bom, que devemos estar todos muito satisfeitos, porque somos de tal modo cultos que até nos grandes orgãos de comunicação social os universitários, as pessoas que detêm um determinado saber, fazem crítica para toda a gente, e o público vai ler as críticas dos universitários e vai até regular-se pelos seus gostos. Podíamos pensar que isto seria assim muito bom. Todavia, isto é um sintoma de uma coisa muito má. Os universitários provavelmente fazem críticas nos jornais porque não têm revistas especializadas, os universitários fazem crítica nos jornais porque os jornais não encontram pessoas para fazer crítica, ou seja, um certo tipo de crítica que não corresponde ao crítico que fez um percurso académico, quase não existe. E isso é uma fraqueza, é uma coisa que nós devemos olhar como qualquer coisa que está em falta e não que está em excesso. (...) Mas, de 248

facto, nós podíamos imaginar que o que seria saudável, o que seria interessante, é que as duas coisas entrassem em concorrência, até para ver de que modo é que um certo tipo de crítica mais imediata, vocacionada mais para um certo tipo de impressionismo, como é que entrava em competição, como é que concorria em termos de atribuição de determinadado tipo de valores, como é que entrava em competição com a universidade, que se baseia num critério pretensamente mais fundado, no estudo mais longo, na investigação, etc.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «O universo da crítica não é, decerto, homogéneo. Como acha que esse universo aparece segmentado? Aparece segmentado precisamente como a gente tem estado aqui a dizer. Uma crítica para um jornal e uma crítica de natureza universitária. São duas coisas perfeitamente distintas. Depois há o tal cruzamento, as pessoas que escrevem um bocadinho estilo jornalista e um bocadinho estilo universitário. Depois há os outros que escrevem de uma maneira jornalística. E pronto, é isto. Está segmentada nesse eixo. Depois haverá divisões mais pequenas, mas isso já tem um bocado a ver com o estilo pessoal de cada um. (...) (os críticos universitários têm...) aqueles vícios, com aquelas grandes chatices da crítica universitária. Por exemplo, no caso do António Guerreiro, para citar um nome que eu gosto muito, ele eu acho que é um crítico literário. Ele assume uma espécie de compromisso entre uma crítica universitária e uma crítica jornalística. Mas acaba por ser tudo muito igual, porque ele, sem querer, ele acaba por cair num determinado tipo de vícios universitários. Mas pronto, ele é um crítico literário. E que vícios são esses? É um certo jargão universitário, um determinado tipo de linguagem, um determinado tipo de referências que as pessoas insistem em manter, de que se calhar não são capazes de se abstrair. É isso. (...) Acaba por ser uma grande chatice para o leitor. O jornal não é o lugar próprio para esse tipo de crítica, mas se as pessoas escrevem dessa maneira e se as aceitam a escrever assim, pronto, tudo bem. As pessoas têm é depois a liberdade de ler ou não ler. Eu pessoalmente não gosto nada de ler, não tenho paciência nenhuma, não é o sítio para esse tipo de textos. Mas se as pessoas escrevem dessa maneira e são publicadas, tudo bem.» (João António Dias, crítico de literatura no Independente) «Seria de esperar que a crítica académica pudesse desenvolver um trabalho de investigação mais em profundidade e com uma maior perspectiva histórica, com uma maior densidade de análise, que funcionasse como uma outra metade de uma crítica 249

mais baseada na diligência jornalística. Na actual configuração quer da circulação universitária, quer da circulação jornalística, não me parece que isso ocorra. E penso que no sector da arte contemporânea não se passará exactamente o mesmo naquilo que diz respeito aos periodos históricos dos séculos XV e XVI, etc. Naquilo que diz respeito ao século XX, a crítica universitária não tem dado grande conta do recado. E acha que existe em Portugal uma crítica universitária? Existe na medida em que alguns dos críticos que exercem nos jornais ou nas revistas, são figuras do meio universitário. Por outro lado, existem produções nessa área no suporte de algumas exposições que assentam em investigações de maior fôlego. Algumas pessoas da crítica universitária são mais facilmente solicitadas para suportar, por exemplo, o discurso do texto das retrospectivas ou coisas do género. Mas a distinção é muito pouco clara, (...) as fronteiras são muito difíceis de estabelecer. (...) A produção de publicações universitárias nesta área não existe. É também no terreno das publicações de tipo jornalístico de rítmo mais lento que surgem os textos de origem universitária.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso) «Alguns críticos sugerem existir um divórcio entre duas supostas formas de intervenção crítica: uma académica e uma jornalística. Bem, a crítica académica não se exprime hoje em dia praticamente nos jornais. Aliás, acho que não há nenhuma crítica académica, em Portugal pelo menos. Nos EUA sim, existe uma crítica universitária da arte, nos sentido de uma tradição universitária da crítica de arte forte, de história da arte, que se exprime através de canais próprios que são as revistas universitárias, e que têm espaço e contexto para aparecerem de uma determinada forma, um determinado grau de aprofundamento, uma determinada perspectiva de enfoque, etc. E aqui em Portugal isso não existe, não existe crítica académica pura e simplesmente. Depois há crítica jornalística... Portanto, há um jornalismo que fala de arte, depois há crítica mais ou menos jornalística, ou mais ou menos crítica. Mas pronto, essa dicotomia de que estava a falar não existe em Portugal, não há crítica académica. (...) várias formatações da escrita são importantes, são contributos diversificados, contribuem para uma maior riqueza do discurso sobre a arte. E também dão origem a opções. Enquanto que em Portugal não há essas opções - uma pessoa para ler sobre arte contemporânea tem que ler os jornais - , o mesmo já não acontecerá na América, onde os jornais será onde se escreverá mais superficialmente sobre arte contemporânea. Para se saber mais sobre arte contemporânea, tem-se as revistas 250

especializadas de grande difusão, e depois tem-se as revistas de pouca difusão que são as académicas. Em Portugal não se tem essas opções, está-se numa situação pobre.» (António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente) «Como caracteriza, em traços gerais, o panorâma actual do universo da crítica? A crítica em Portugal tem um aspecto negativo contínuo, que é o de se exercer em jornais, eventualmente em revistas de arte, mas isso já eram outros motivos que a prejudicavam. O facto de se exercer em jornais, diária ou semanalmente, eventualmente mensalmente, diminui o seu poder de aprofundamento e de análise. Ou seja, é uma crítica demasiado feita ao correr das coisas e superficial, que não teoriza. Não é desculpa para os críticos, porque os próprios que criticam isso mais directamente, aliás, que me criticam a mim e ao Alexandre Melo, ou ao Pomar, que é o Cerviera Pinto e tal, também não cria crítica nenhuma, quer dizer, recolhe uns artigos de vez em quando nos jornais, e escreve umas banalidades. Não acho que isso seja essencial num país que não tem sequer tradição filosófica. Essencial seria, mas não acho que seja esquisito. Porque num país que não tem a tradição de pensar filosoficamente, esteticamente, teoricamente, e agora de repente começassem a aparecer teóricos... Era bom que de facto aparecessem, que não fossem aqueles que se propõem ser os teóricos... Mas isso será um aspecto negativo em termos da história da crítica.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) «Eu acho que é fraco, devido ao facto de não existirem em Portugal publicações especializadas na área do cinema... (...) Quando eu digo que não há imprensa especializada, é que não há a vitalidade correspondente a isso, isto é, em França há os Caihers du Cinema e há a Primière, e não vou defender uma contra a outra, mas o que vou defender é que existe de facto um mercado com uma dinâmica própria que permite também a existência desta diversidade. E só dei dois exemplos e poderia dar mais vinte, se calhar. Ora bem, no mercado português isto não existe. E não existe por mil e uma razões, a começar pela pequenez do próprio mercado. (...) Portanto, de facto é extremamente difícil num mercado tão pequeno encontrar um "modus vivendi" para esse tipo de coisas. Ora, eu penso que isso limita necessariamente a própria qualidade do trabalho crítico, porque limita a diversificação de que eu falava há bocado. Quer isto dizer que a crítica existe sobretudo como um espaço específico dos jornais. (...) Alguns críticos sugerem existir um divórcio entre duas supostas formas de 251

intervenção crítica: uma jornalística e uma académica. Concorda com a existência desta clivagem? Até certo ponto concordo. E isso liga-se um bocado com a questão de que nós falámos há bocado, da não existência de publicações especializadas num contexto como o nosso. Eu acho que qualquer um dessas aproximações crítica tem o seu valor próprio e nenhuma delas exclui a outra. Acho que às vezes, no nosso contexto, é difícil encontrar um equilíbrio, uma maneira certa de abordar um filme, precisamente porque está concentrado no espaço jornalístico quase toda a espécie de crítica. Por isso acho que os problemas que podem advir dessa oposição não têm tanto a ver com o que se escreve, tem mais a ver com as limitações do próprio contexto em que se escreve.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso) «O universo da crítica não é, decerto, homogéneo. Como acha que esse universo aparece segmentado? Eu acho que há desde o crítico mais sério, mais conhecedor, que vê o cinema pelo cinema, sente a paixão e há uma forma sugestiva de procurar o cinema, através de outros filmes. É um discurso simplificado mas não simplista, com um modo filosófico de falar do cinema, e por aí vamos por um lado mais puramente crítico de falar do cinema, mais cinéfilo, mais cinematográfico. Até aquilo que eu chamaria os comentários, que se aproximam um bocado daquilo que é a opinião de um público, que não é muito sustentada pela informação técnica do cinema. Há um paleta grande de crítico. (...) Alguns críticos sugerem existir um divórcio entre duas supostas formas de intervenção crítica: uma jornalística e uma académica. Concorda com a existência desta clivagem? No nosso caso, acho um pouco difícil falar-se em clivagem, porque não há ou já se perdeu a tradição de um discurso de crítica jornalística e de uma crítica mais interessada, normalmente em revistas, que tem uma atitude mais profunda e mais indicada a um público cinéfilo, a um público mais específico, mais conhecedor, onde esse "hermetismo" de que se fala teria mais razão de existir, pela força das circunstâncias. Como hoje a crítica é essencialmente feita em jornais, adoptou-se quase que um estilo híbrido entre o que seria uma crítica de revistas, especializada e técnica, e uma crítica de

jornal, que seria muito mais

informativa, seria um comentário, digamos assim. Aí esbate-se um bocado essa clivagem, embora haja a crítica ou o comentário mais tipicamente jornalístico em determinados jornais, e uma outra crítica mais crítica noutros jornais. (...) Eu acho que é pena não existir uma força editorial suficiente para que se fomente determinado tipo de crítica mais académica, mas isso talvez dentro de algum tempo, depois de 252

ultrapassar uma certa guerra mediática e editorial que não promove em nenhum lado a crítica académica, antes pelo contrário, talvez aí se possa enquadrar o que seria uma componente crítica de uma forma geral mais sincera e mais valiosa para todas as pessoas. Para já, parece-me um bocadinho difícil que isso possa existir. Há um ou outro caso pontual, mas nada mais do que isso.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras) «Alguns críticos sugerem existir um divórcio entre duas supostas formas de intervenção crítica: uma jornalística e uma académica. Concorda com a existência desta clivagem? Sim. Por exemplo, a crítica jornalística tem aquelas limitações, aqueles condicionalismos que eu já.apontei. Mas por outro lado, talvez ela tenha também mais frescura por causa disso. Ou seja, ela é mais autêntica, na medida em que ela exprimde a coisa num estado mais efervescênte, na medida em

que a nossa

impressão, a sensação que o filme nos inspirou ainda está efervescênte, é muito recente. Esse é um aspecto positivo. Mas um negativo é o facto de nos escaparem coisas que nós devíamos falar. Enquanto que a crítica académica tem a vantagem de permitir uma reflexão mais aturada, mas também pode ter a desvantagem de ser mais fria, menos espontânea. Não há canais para que os críticos académicos se exprimam, não há canais académicos, ou seja, não há revistas periódicas de cinema, ainda dependem dos jornais, que acaba por ser o canal. Mas, de certa forma, acaba por não ser um academismo puro porque eles também são condicionados por esses princípios que eles também são obrigados a seguir, uma vez que trabalham num jornal, de actualidade, de premência, etc. Agora, onde continua a existir academismo é na perspectiva e no tom.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente) «Num orgão especializado, eu poderia fazer análises por um lado mais extensas, mais profundas, mais especializadas, do objecto criticado. No jornal genérico, ou político, ou seja o que fôr, implica uma certa não especialização do texto. Além de que o espaço também conta muito. Nestas coisas não se pode fazer milagres, não de pode pode escrever numa página o que se pode escrever em dez. (...) há críticos que escrevem em diários, há críticos que escrevem em semanários, há críticos que escrevem em revistas especializadas, não em Portugal em que nem sequer há revistas especializadas, nós temos muito essa dificuldade. O crítico português tem dificuldade em poder levar mais longe as suas análises, porque não é num jornal diário ou 253

semanário que o pode fazer. Isso é um "handycap" da nossa crítica de teatro e de cinema.» (Carlos porto, crítico de teatro no Jornal de Letras) «Alguns críticos sugerem existir um divórcio entre duas supostas formas de intervenção crítica: uma jornalística e uma académica. Concorda com a existência desta clivagem? Em absoluto não existe mas há. A minha critica, por exemplo, é mais impressionística pelas razões de tanta coisa que eu disse e pelo próprio jornal, do que uma crítica da Eugénia Vasques. Passa pelo modo de ser das pessoas, mas passa muito pelo jornal em que escreve também. Esse muro parece-me um exagero mas é claro que há uma crítica mais académica, mais intelectualizada e uma mais impressionística, com todos os perigos que a crítica impressionística possa ter. Não pode ser excessivamente ligeira, não pode dizer só banalidades, só frases feitas. A crítica, mesmo quando é impressionística, tem que ir mais fundo. E como lhe digo, estou a dar um curso, por exemplo, de história de teatro, se vou falar do teatro grego, vou aprofundar mais possível o teatro grego, é claro que se vou fazer uma crítica a uma peça grega, ponho uma frazesinha ou duas para relembrar qualquer coisa, qualquer aspecto relacionado com o teatro grego, mas não vou ali fazer uma teoria ou um ensaio sobre teatro grego. Não é isso que me é pedido ali.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de Notícias) E que factores informam a clivagem que passou a existir entre crítica académica ou universitária e crítica jornalística a partir do final do século passado? Um deles prende-se com o problema da especialização e da própria formação específica do crítico na área cultural em que actua, aspecto em relação ao qual é manifesto o desacordo entre críticos académicos e críticos jornalísticos. Efectivamente, para os jornalistas, e ao contrário dos académicos, essa especialização e formação específica não seria absolutamente indispensável e necessária, ou melhor, não seria o requisito mais importante para o desempenho público da prática crítica. Sendo principalmente literatos e/ou diletantes a exercê-la no contexto jornalístico, as dimensões da competência comunicacional e das qualificações sensitivas e de "gosto" assumiam uma posição de destaque no conjunto dos requisitos valorizados pelo crítico jornalista, nomeadamente em detrimento das competências formais, estas imprescindíveis na concepção de uma crítica académica.

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A par da questão da formação, um outro factor actuante na clivagem existente entre crítica universitária e crítica jornalística diz respeito ao fenómeno de dualidade de éticas que a ela se encontra subjacente, ou seja, à confrontação entre um habitus científico ou para-científico que se funda no comprometimento dos seus agentes com a investigação "pura" e a carreira académica, e um habitus jornalístico, manifesto na preocupação quer em cobrir a actualidade dos eventos culturais e artísticos, quer em desenvolver a sensibilidade e competência estética do seu público leitor, quer ainda de intervir directa ou indirectamente nos acesos debates em torno da definição da noção de arte e nas lutas pela afirmação de determinados grupos artísticos. Com efeito, o habitus associado à crítica universitária até meados do nosso século encontrava-se intimamente relacionado com um modelo de crítica mais reflexiva, de intenção hermenêutica, sujeito a um corpus academicamente definido de princípios e regras teóricas e metodológicas, visando debater as obras de determinados criadores o mais profundamente possível e com o máximo de rigôr, isenção e neutralidade, em busca da verdade do seu valor e do sentido artístico. Nesta medida, cultivavam o valor da distância crítica - valor esse que alicerçava a suposta objectividade das suas apreciações e interpretações estéticas -, isto quer de um ponto de vista sincrónico, ou seja, face aos seus próprios valores e gostos pessoais, vivendo o mito positivista do carácter a-social da investigação e do conhecimento científico, quer de um ponto de vista diacrónico, isto é, face às próprias obras e respectivos criadores no tempo, debruçando-se mais sobre os "clássicos" do que propriamente sobre os seus contemporâneos. Demarcando-se cada vez mais do que aparentava ser a sua tarefa primordial até aí, ou seja, o juízo sobre o valor de determinada obra enquanto obra de arte, a crítica que permaneceu instalada no espaço académico veio a adoptar uma forma mais interpretativa e compreensiva que judicativa, mais preocupada em descobrir e revelar o sentido que determinar o valor estético, relegando este último aspecto para segundo plano. Deste modo, os académicos praticavam sobretudo uma crítica de carácter historicista e interpretativo, fundamentada na reconstrução histórica da vida e obra de várias personagens artísticas e respectivos contextos de produção, com a preocupação manifesta de recuperar o significado latente na intenção primeira do criador no seu momento original de criação, significado esse que supunham perene, universal e intrínsecos à obra resultante.

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A crítica jornalística, por seu turno, em parte devido aos constrangimentos inerentes ao seu contexto profissional de produção e, de outra parte, em virtude da própria preparação e formação dos agentes que a praticavam (que, como vimos, eram sobretudo jornalistas diletantes e criadores, principalmente da área da literatura) preconizava um modelo de crítica mais interventiva, com claras intenções didácticas e pedagógicas,

divulgadoras,

informativas

e

orientadoras,

preocupando-se

fundamentalmente, a priori, em captar e aproximar a arte de um espectro cada vez mais alargado de receptores, assim como em promover ou despromover culturalmente a obra dos seus pares criadores, pelo que tomava um modelo manifestamente mais judicativo que analítico.145 Por outro lado, enquanto profissional da comunicação, teriam de responder permanentemente às solicitações de actualidade que os critérios jornalísticos de noticiabilidade lhe exigem, assim como de realizar a sua actividade em tempos limitados e num espaço reduzido, pelo que promoviam sobretudo uma crítica da contemporaneidade artística, sempre sujeita a limitações em termos de espaço e de tempo (dimensões preciosas e reduzidas na lógica produtiva associada ao campo da imprensa) e, desta feita, ao tratamento genérico e superficial da matéria-prima a que dedicavam o seu discurso.146 Nesta sequência, torna-se evidente o distanciamento significativo entre as éticas inerentes a cada um destes modelos de crítica, estando na base do jogo de defesa e ataque constantemente empreendido entre aqueles que as partilham. Os críticos academistas apontavam a crítica jornalística como superficial, reactiva e apressada, dando conta de simples impressões subjectivas, pouco rigorosas e sobretudo avaliativas, baseadas em meros critérios de gosto pessoal. Em contraposição, preconizavam uma crítica exercida em profundidade, com preocupações mais interpretativas do que 145 Polarização de certo modo equívoca, na medida em que mesmo a crítica que se queira de todo analítica e impessoal, não deixa de deter uma componente judicativa, pois, aproveitando as palavras de Alexandre Melo, «não é preciso multiplicar adjectivos (prática bem frequentemente entre a crítica jornalística na altura) para manifestar o que se pensa de uma obra, porque o próprio facto de ela ser tomada como objecto de análise ou a dimensão e o grau de ambição dessa análise são indicadores suficientes de um juízo de valor implícito» (in O que é Arte, op. cit., p. 63). Acerca da problemática avaliação/interpretação na crítica, também Mary Pratt refere que ainda hoje, «when reviewing is justaposed to academic criticism, the first observation is usually that the former's business is evaluation and latter's interpretation or analysis», fazendo no entanto notar a inedaquação de tal distinção na medida em que se refere «only to the function that superficially motivates the discourse in each case. Both kinds of criticism do both things» (in "Art Without Critics and Critics Without Readers...", op. cit., p. 181). 146 Inconvenientes e limitações que são, de facto, ainda hoje reconhecidos pelos nossos entrevistados quando confrontados com o inventário das vantagens e desvantagens de exercer a prática crítica num contexto da imprensa generalista em comparação com o seu exercício num contexto de produção discursiva especializada.

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judicativas, sem subvenções a constrangimentos de ordem editorial, tomando a distância no tempo e no espaço como precauções contra a macularidade da objectividade das suas reflexões. Por outro lado, também acusavam os seus pares jornalistas de enveredarem na sua actividade por uma via promocional e directamente implicada, onde dominariam interesses de ordem pessoal ou grupal, assim como, devido à sua condição de assalariado no espaço da imprensa, de se vêrem coagidos a esforçarem-se por nivelarem e adequarem as suas opções críticas e discursivas em favor de um suposto "leitormédio" (que corresponderia à "média" calculada da "generalidade do público"), privilegiando no seu aparelho de leitura e de avaliação o ponto de vista desse leitor e "baixando" ao seu nível de linguagem e de abordagem estética, comprometendo desta forma o livre-arbítrio, a neutralidade e a isenção que reclamavam para a sua prática. Como já tivemos oportunidade de constatar neste trabalho, as relações que tendem a estabelecer-se entre o pólo da criação e o pólo da crítica são hoje mediadas por um determinado sistema de valores de natureza ética que já não se compadece com a interferência de interesses de ordem pessoal ou grupal no decorrer da actividade crítica (fundamentados em cumplicidades que extravazam a sua dimensão estética para radicarem em compadrios de ordem vivencial e afectiva), pelo que tal acusação, feita a um nível tão generalizante, tende no contexto da crítica contemporânea a tornar-se desadequada e a perder o seu valor de uso estratégico. No que respeita, por sua vez, à acusação de compatibilização e nivelação ideológica e discursiva em relação ao sistema de disposições estéticas e linguísticas de um suposto "leitor-médio" na prática da crítica jornalística, também esta tende a tornar-se equívoca, nomeadamente se tomarmos em consideração os depoimentos dos nossos entrevistados acerca desta questão específica. Apesar de actualmente existir uma acentuada tendência para a prática da crítica, no seu contexto jornalístico de produção, ser socialmente representada como acção ao serviço do consumidor, orientada para objectivos pedagógicos e de orientação discricionária, a instância "público" (tomada na pluralidade de perfis e configurações sociais e culturais em que é estruturada, assim como na complexidade e polifonia de situações de recepção que a caracterizam) não parece de facto constituír-lhe uma referência inibidora dos resultados discursivos, interpretativos e avaliativos. Aliás, não raras vezes ela é criticada quer pelas suas instâncias de recepção, quer por muitos dos seus próprios protagonistas, justamente pelo facto de não se preocupar em fazer-se entender junto da "generalidade" do público, resvalando para hermetismos linguísticos e 257

conceptuais cujos sentidos não serão genericamente partilhados pela pluralidade dos leitores do meio de comunicação onde escrevem. Tal acontece na medida em que o crítico, empreendendo o seu jogo de demarcação face ao consumidor cultural "comum" na tradução linguística das suas competências especializadas, tende a posicionar-se num patamar cultural que supõe ser superior ao do seu potencial público mais generalizado, do qual entende que não deverá prescindir em favor deste último e em desfavor da independência da sua acção apreciativa e interpretativa, assim como em desfavor da profundidade que a própria obra lhe suscita: o crítico deverá procurar que o leitor "suba" ao seu entendimento, não pressupõe ser ele a "descer" a esse patamar. Por outro lado, também pressupõe ser o leitor a procurar as suas afinidades entre os diversos segmentos da opinião crítica, a orientar-se intersubjectivamente nos seus processos de identificação com a crítica, e não o contrário, o que, sucedendo, comprometeria a sua sinceridade e honestidade intelectual, valores que lhe são tão caros. Mas a interferência de um suposto leitor-médio no processo de produção de discurso crítico também se vê inviabilizado, logo à partida, invocam os seus protagonistas, pelo total desconhecimento que demonstram possuír sobre o perfil sociográfico e cultural do público específico do seu jornal ou do seu público mais "fiel", pressupondo, em última instância, que o seu discurso não será lido senão por determinadas categorias culturalmente privilegiadas de consumidores do orgão de comunicação para que escreve, e não por um público mais generalizado. Na ausência destas informações objectivas, quando arriscam a construção do perfil do que supõem ser o seu leitor ideal, fazem-no projectando a imagem reflectida de si próprios, como um jogo de espelhos, onde a contra-ilusão pretende objectivamente fundamentar o nãocomprometimento da autonomia da sua acção discursiva. Igual a si próprio, como sua alma-gémea, o crítico exterioriza o perfil difuso desse leitor imaginário como partilhando das suas afinidades estéticas electivas, da sua visão do mundo (da arte e não só), do seu nível de língua, do seu conhecimento anterior quanto à matéria retratada, das suas próprias exigências e objectivos em relação à crítica. Fantasiando e prevendo um ideal de coincidência entre gramática de produção e gramática de reconhecimento do discurso, no sentido veroniano dos termos, ou entre sistemas de disposições éticas e estéticas, no sentido bourdiano, a referência "público" tende a não constituír, de facto, um factor directo de perturbação no trabalho do crítico, uma fonte de restrição à sua autonomia e independência discursiva, apreciativa e interpretativa. 258

Essa margem de idealidade tende, todavia, a ser gerida pelo próprio jornal através dos vários padrões de controle de que dispõe (que passam, como já vimos, pelo momento do recrutamento, pela advertência por parte do editor e/ou pelos processos de negociação que acontecem entre este e os críticos), gestão essa através da qual o jornal tenta ajustar o seu esquema de pressupostos e de percepções esteriotipadas quanto à composição, gostos e necessidades do público que pretende atingir ao esquema de pressupostos e percepções partilhado pelo crítico, encontro que, ao ser tentado, sendo imprescindível para o decorrer eficiente da rotina produtiva e para uma maior eficácia no impacto público do discurso, não deixa de condicionar o modo como este será formulado e apresentado. Daí a contatação nos nossos depoimentos de que a principal fonte de estruturação de expectativas, orientações, critérios e procedimentos produtivos da prática crítica em geral e, como tal, o seu principal factor de perturbação, tenda a incidir não sobre o público na imagem esteriotipada que dêle têm os seus protagonistas, mas sobre o contexto profissional-organizativo onde estes se encontram inseridos, ou seja, o grupo constituído pelos seus colegas de trabalho e superiores hierárquicos, que directa e diariamente se relacionam intersubjectivamente.147 E é a partir desta trama de acções e representações que, muito provavelmente, a configuração social e cultural do público que ambos (crítico e jornal) esperam encontrar não se afasta muito da configuração do público que realmente consome o seu discurso, o entende e o legitima. «Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com um suposto "leitor-normal" ou "leitor-médio"? Não. Eu acho que o crítico imagina para si próprio, isto é, estabelece uma espécie de leitor tipo ou leitor ideal da sua obra crítica, que é modelado pela sua própria maneira de conceber a crítica, de conceber a arte, de conceber o mundo, etc. Portanto, eu julgo que toda a gente concebe um leitor ideal, mas sobretudo é bom que isso seja um leitor ideal e não seja um leitor real, mesmo que seja colectivo, porque isso seria uma limitação, seria uma limitação bastante grande e isso tornaria... (...) Isto é, não me interessa aquilo que as pessoas pensam sobre a crítica que eu faço, interessa-me aquilo que três ou quatro pessoas que eu conheço pensam, porque sei que essas três ou quatro pessoas correspodem a um universo que é aquele onde eu me quero ver reconhecido. (...) E conseguiria traçar o perfil desse seu suposto leitor-ideal? É difícil eu dizer isso,... (...) Primeiro, eu penso num leitor de

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O que, do mesmo modo, foi constatado para o caso do jornalista generalista nos vários estudos 259

formação universitária (...), que corresponde a um leitor que tem um grau de saber relativamente elevado, que funciona dentro do mesmo universo de referências que eu funciono. Portanto, não se trata pura e simplesmente do grau de saber, trata-se do universo de referências onde eu funciono. Trata-se primeiro dessa comunidade de universo de referências. Depois uma comunidade de gosto também, que de algum modo se identifique comigo dentro de determinados parâmetros, não quer dizer que seja um decalque, de modo nenhum, mas que eu consiga dialogar com essa pessoa em termos de gosto. E essencialmente é isso. (...) Um jornal é um meio de comunicação social de carácter generalista, o mais generalista possível. Enquanto que eu entendo a minha actividade já como uma actividade especializada, e não só especializada mas destinada a pessoas que, de algum modo, já têm um certo grau de especialização.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «Eu não sei qual é o ponto de vista do leitor... Porque eu para conhecer o ponto de vista de um leitor, ou para conhecer o perfil psicológico e cultural dos meus leitores, eu tinha que saber quem são. Eu não sei quem me lê. E não tenho meios de aferir isso. (...) Então decidi criar eu própria o meu público-alvo. Então o meu público-alvo é: primeiro, os artistas que fizeram o trabalho; segundo, o público interessado. Não escrevo para multidões. Não me interessa escrever para o povo. Eu escrevo para quem se interessa. Quem quiser ler, lê, quem não quiser, não lê. Considero que isto me dá uma capacidade de escolha também do meu público virtual. Que não sei quem é. (...) Aquele a quem eu me pretendo dirigir é a um público interessado, a um público restrito que eventualmente goste da minha maneira de escrever, que eventualmente goste da minha atitude ética, e que a consiga descortinar, que a consiga descodificar, que se identifique um bocadinho comigo. É como eu faço com as outras críticas das outras artes. Eu procuro afinidades com a escrita do crítico. (...) E o facto de supostamente dirigir-se a esse público faz modificar o tom da sua crítica? Não, não! Defendo fanaticamente a liberdade discursiva do crítico. Infelizmente o próprio jornal me condiciona.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso) «Acha que o crítico deve integrar no seu discurso o ponto de vista de um suposto leitor-nornal ou leitor-médio? Deve fazer um esforço por ser entendido por...

apresentados por WOLF, Teorias da Comunicação, op. cit., pp. 161-162. 260

não sei se por o leitor-médio. Provavelmente pelo leitor que também faz um esforço por entender aquilo que são forçosamente linguagens, de certo modo, especializadas. Não é possível estar sempre a começar da primeira classe. Não sei muito bem que é o leitormédio, não existe... Em princípio, acho que deve ser entendido pelo leitor que se esforça por entender. A que tipo de público se pretende dirigir quando faz as suas críticas? Dirijo-me ao público em geral, sabendo que só sou lido por um público específico. Esse público específico é um público altamente minoritário, que mantém uma relação relativamente regular com esta mesma área. Isto porque não é possível começar do princípio todas as semanas, e se se fala de um determinado pintor ou artista, na maior parte dos casos, pressupõe-se que ele tem uma obra relativamente conhecida, quer dizer, não se começa por dizer que já fez quarenta exposições, que já fez uma retrospectiva. É preciso a todo o momento avaliar o que é suposto que as pessoas já saibam sobre um mesmo tipo. Se o pintor é cubista, não se pode explicar o cubismo. Supõe-se que essa linguagem especializada, a partir de um determinado grau, seja já conhecida.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso) «O leitor médio é de facto uma abstracção que nos pode ajudar a pensar algumas coisas, mas que na prática não existe, porque justamente é uma média de coisas completamente diferenciadas. Eu aí podia responder-lhe com algum, não é desencanto, mas sem qualquer mania das grandezas. Isto é, penso que a área crítica não é uma das áreas maioritariamente lidas dos jornais. E penso que o leitor que vai procurar as críticas de cinema é um leitor bastante específico, com uma leitura muito orientada. (...) Portanto, penso que quem procura a crítica de cinema é alguém que tem já à partida uma relação mais ou menos regular com o próprio mercado de cinema. Isto é, uma pessoa que vai uma vez por ano ao cinema, não acredito sinceramente que seja alguém que procure regularmente ler as críticas de cinema, não vale a pena alimentar ilusões em relação a isso. (...) É aquela franja de espectadores que tem uma relação sistemática com o mundo do cinema, que vê muitos filmes, e procura muita informação sobre o mundo do cinema, que se calhar é um consumidor de publicações especializadas sobre cinema, e que digamos que é o público que foi redescoberto pela própria distribuição em tempos recentes. (...) O facto de supostamente atingir esse público faz modificar o "tom" da sua crítica? Não. Nunca pensei muito nisso, e o facto de nunca ter pensado acho que é significativo que não.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso) 261

«Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com um suposto leitor "normal" ou o leitor "médio"? Tal como eu a entendo, acho que antes disso deverá dar a sua opinião subjectiva sobre o que viu. (...) A que tipo de público se pretende dirigir quando faz as suas críticas? Em primeiro lugar, a um público que goste de cinema e que esteja minimamente presente no cinema que passa cá. Obviamente que isso também tem a ver com o público que lê o jornal onde escrevo. E se escrevo para sítios diferentes, tenho que ter em consideração públicos diferentes. No caso do JL, como não há qualquer linha para esse jornal, ele deixa-me completamente em liberdade, até se comenta a diversidade de estilos, não há qualquer compromisso entre a edição. (...) O que eu não escrevo é para o cidadão comum que quer ir ver o filme e vai ler um texto para saber qual é o filme melhor. (...) Agora, o público também irá seleccionar consoante o que está habituado a ler num jornal ou noutro. A crítica também, a meu ver, motiva um certo acompanhamento, até para que se perceba melhor, para que as pessoas possam dali tirar algum proveito, e até uma opinião em relação aos críticos e se reverem ou não, e tirarem a sua própria conclusão perante aquilo que lêem e o que vêem, antes ou depois de cada uma delas. (...) Como é que imagina o seu leitor? Imagino um leitor se calhar não tão jovem como eu desejava, mas um leitor atento e exigente. É um público bastante atento e bastante culto. E o facto de supostamente atingir esse público faz modificar o "tom" da sua crítica? Não, quer dizer, o lado do público nunca está afastado da minha componente crítica. No entanto, o meu lado pessoal prevalece, senão não teria sentido a minha crítica. Não me afecta muito, tento ser lido por um público de um nível cultural acima da média, e o que eu acho que faço está dentro do âmbito do jornal de uma forma ou de outra. Sobretudo, acho que procuro que esteja dentro daquilo que eu pretento que seja a crítica sobre um determinado filme. E normalmente é.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras) «Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com um suposto leitor-normal ou leitor-médio? Não, isso penso que não. O crítico deve ter uma posição independente tanto em relação ao criador, como em relação ao leitor, espectador ou não. Porque há esses dois aspectos, o leitor que é só leitor e o leitor que é espectador, foi ou vai ser. Portanto, penso que o crítico deve-se manter independente em relação a um e a outro. A que tipo de público se pretende dirigir quando faz as suas críticas? 262

Tenho de me dirigir ao público do jornal para que escrevo. Não há mais nada a fazer. (...) Eu sei que estou a dirigir-me a um jornal, neste caso a um jornal literário, que tem os seus discípulos. Portanto, sei que posso usar determinada linguagem para esse público, a qual eu aliás não uso. Portanto, o meu comportamento, o meu discurso, tem a ver com aquilo que eu conheço do público do próprio jornal. (...) O facto de supostamente atingir esse público faz modificar o tom da sua crítica? Não. Apesar de eu querer chegar ao público, há uma certa indepedência, há um certo alheamento.» (Carlos Porto, crítico de teatro no Jornal de Letras) «Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com um suposto leitor "normal" ou leitor "médio"? Identificar-me com o leitor, penso que isso é muito difícil e digo-lhe sinceramente, nunca pensei nisso. A que tipo de público se pretende dirigir quando faz as suas críticas? Para ser sincera, primeiro tenho que pensar em que sítio é que eu estou a escrever. Se eu estou a escrever no JL, que nós sabemos que, apesar de tudo, é uma elite que o lê, não temos a menor dúvida, mas sabemos que dentro dessa elite há pessoas que não são propriamente interessadas em artes plásticas, estão mais interessadas no campo da literatura. Portanto, o que eu procuro é informar e também aprofundar um bocadinho as questões. Ou seja, tento não ser muito simplista, isto é, também depende muito do pintor ou do escritor sobre o qual se fala, depende muito do que é que nós estamos a referir. Mas, de um modo geral, também procuro aprofundar sempre um pouco as questões.» (Cristina Azevedo Tavares, crítica de artes plásticas no Jornal de Letras) «(o leitor...) Procura na crítica uma coincidência das suas próprias leituras e das conclusões a que chega com as conclusões do crítico. Muitas vezes faço isso em relação ao cinema, que é o mais fácil. (...) Há uma espécie de cortejo do leitor com o parecer do crítico. O objecto de leitura é o mesmo, mas depois o leitor procura achar pontos de divergência ou de convergência com o crítico. Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com um suposto leitor "normal" ou o leitor "médio"? O princípio é que o leitor é que deve sempre subir à cultura, não é a cultura descer ao leitor, o leitor é que tem que se esforçar por tentar perceber o que é que as luminárias dizem. (...) É evidente que como eu faço crítica jornalística, tenho que ter essa preocupação, tenho que escrever coisas que imagine que as pessoas podem perceber, podem ler. Também para mim é importante ser lido. (...) A que tipo de público se 263

pretende dirigir quando faz as suas críticas? Eu não posso ignorar neste momento o público que lê o JL. (...) O facto de supostamente atingir esse público faz modificar o tom da sua crítica? A escrita torna-se biológica. E eu, a certa altura, já não estou preocupado em apurar o meu estilo, aquilo já sai assim. Já não vale a pena apurar o estilo, porque ele já é inerente à minha respiração.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras) «Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com um suposto leitor "normal" ou o leitor "médio"? Não, acho que não. Para já, no meu caso, eu não identifico muito bem qual é o meu público, não o conheço muito bem. Sei que tenho um público mas não o conheço. Imagino que é um público que tem alguma capacidadede leitura, porque os meus textos nem sempre são muito fáceis, ou são um bocado mais complicados, às vezes. (...) A que tipo de público se pretende dirigir quando faz as suas críticas? Eu não penso no público quando escrevo. Ou por outra, penso numa bissectriz, penso numa zona intermédia entre um público geral que não seu quem é, e um público especializado que eu sei quem é, que são os artistas e os conhecedores da arte contemporânea. (...) sei lá, os críticos, de uma forma mais geral, algum público mais especializado, e os próprios artistas. Portanto, é para eles que eu escrevo. Mas, por outro lado, como uma pessoa está a escrever num jornal tem que escrever também para outra gente, e aí é que eu escrevo para uma zona intermédia entre um público ingénuo, que eu não consigo descrever, e um público especializado. (...) Deve ser uma minoria muito escassa do público do meu jornal que lê as minhas crónicas. E o facto de supostamente atingir esse público faz modificar o tom da sua crítica? Não, exactamente porque eu procuro essa zona intermédia. Porque eu procuro essa zona intermédia não posso fazer uma crítica de tipo meramente descritivo, que poderia ser mais acessível a um público mais vasto. (...) Ou seja, sei que não posso escrever para uma audiência que eu não tenho e fazer uma escrita de B, A, BA, quando apesar de tudo sei que tenho uma audiência que está capacitada a entender um discurso mais elaborado.» (António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente) «É difícil eu vir a saber, alguma vez, quem é o meu leitor. Muitas vezes até me esqueço que há determinados leitores para o meu texto. Por vezes, só depois de estar impresso é que percebo: "não devia ter escrito aquilo porque vai dar problemas com um determinado leitor". Isso às vezes é perigoso. Mas identificar-me como o leitor não 264

me coloca problemas porque não sei quem ele é. Procuro dar ao discurso determinadas características de maneira a que ele seja lido por um determinado leitor. (...) Ao fazer aquilo, pensei num leitor especial, especializado num determinado tema, não num leitor abstracto. Isso estimula o leitor a ir ver o espectáculo. Consegue traçar-me um perfil desse leitor imaginário? Acho que é o leitor que vai ao teatro, que está habituado ao teatro e tem uma cultura teatral. (...) Eu faço os possíveis para que o público do meu jornal seja capaz de ler aquelas críticas. Não me iludo muito quando sei que o jornal é lido pelos quadros médios e altos das empresas. Não me iludo com a sua cultura. Sei que, muitas vezes, eles têm uma cultura deveras pobre. Acha que o crítico deve ter a preocupação de se fazer entender junto da generalidade do público? Sim. É isso que eu tento, embora saiba que a generalidade do meu público não é propriamente "outro". É um público que acho que tem a obrigação de saber mais. Portanto, quando faço uma dissertação sobre um texto, sobre o autor do texto, sei que deve estar nas possibilidades de entendimento da maior parte dos leitores.» (Manuel João Gomes, crítico de teatro no Público) «Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com um suposto leitor "normal" ou o leitor "médio"? Isso não existe. Ou seja, eu não conheço, pelo menos em Portugal, não existe o leitor-padrão. Como eu disse, o meu patrão é quem me paga, portanto, no fundo, é para ele que eu escrevo. Se eu o desagradar muito, em princípio ele terá a sensibilidade para perceber que estanto a desagradar a ele, estarei a desagradar a muita gente e ele vai correr comigo. É muito difícil detectar, sobretudo numa sociedade com tão poucas estatísticas e com tão poucos estudos sociológicos sobre esse campo, o que é o leitor médio. No fundo, há uma minoria de espectadores. Toda a gente dizia que o cinema europeu não pegava em Portugal, e há um distribuidor aí que começou a mostrar filmes europeus e tem imenso êxito. Não existe tal coisa. Eu creio que tenho um público, agora não consigo definir qual é o meu público.» (José Navaro de Andrade, crítico de cinema no Público) «A que tipo de público se pretende dirigir quando faz as suas críticas? A um público específico no sentido em que são pessoas passíveis de se interessarem por livros. Eu parto do princípio que as pessoas que me vão ler são pessoas que lêem livros. Tirando isso, não me dirijo a ninguém em especial, se calhar dirijo-me a mim própria. Eu acho que não podemos estar a pensar que nos vamos dirigir a não sei 265

quantas pessoas, porque isso é absolutamente inibidor. Não há o leitor ideal. Eu parto é desse princípio, de que estou a escrever para pessoas que se interessam por livros, caso contrário, não liam. Acho que não penso mais nada, a não ser aquelas coisas, que aquilo seja legível. E o facto de supostamente atingir esse público faz mudar o tom da sua crítica? Que aquilo seja legível. Que as pessoas compreendam exactamente aquilo que eu quero dizer. E se tenho fórmulas mais rebuscadas ou coisas que eventualmente tenha muitos sentidos possíveis e nenhum que se sopreponha aos outros, tiro-as. Eu sou muito contra estarmos a ser muito rebuscados e acho que isso em jornais, em limite, é uma coisa que se torna ridícula. Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com o ponto de vista de um suposto leitor-normal ou leitor-médio? Eu não sei o que é o leitor-médio, mas quando escrevo tenho que escrever do ponto de vista do leitor, porque quem me vai ler é o leitor. Ou seja, eu estou escrever do meu ponto de vista, porque isso do leitor médio é um bocado uma ficção. Mas estou a escrever do meu ponto de vista como leitora para pessoas que também são leitoras, e estamos nesse momento a pôr o autor entre parentesis.» (Tereza Coelho, crítica de literatura no Público) «A que tipo de público se pretende dirigir quando faz as suas críticas? Eu nunca penso nisso. (...) Já que tenho que escrever, é para pôr no papel aquilo que eu penso do assunto. Eu não penso no leitor quando estou a escrever. Ou penso num leitor do meu nível. (...) Eu acho que são os indivíduos que frequentam as galerias, ou seja, tanto podem ser estudantes do ensino superior artístico, como coleccionadores, como profissões liberais cultivadas não sei porquê naquele gosto, e são também coleccionadores não tão regulares, tipo classe média-alta. São o tipo de pessoas que vão às galerias, basicamente é esse. (...) Portanto, tem a ver com os indivíduos que fazem o circuito das galerias sobre as quais eu escrevo regularmente com interesse, com atenção interessada e positiva. Não é da galeria Y Grego ou do Shopping Center não-sei-da-onde.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) «Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com um suposto leitor «normal» ou o leitor «médio»? Não necessariamente. A que tipo de público se pretende dirigir quando faz as suas críticas? Escrevo para o espectador interessado, o chamado cinéfilo, mas não de crítico para crítico, mas de crítico para cinéfilo. E acha que tem um público fiel? Sim, isso sei que tenho. Considero que é o cinéfilo médio. Em 266

geral, não sou um crítico estimado pelo cinéfilo de alto gabarito, quer dizer, pelo estudioso de cinema a fundo, mas sim pelo cinéfilo médio, pelo espectador comum que gosta de cinema. Pelo menos são aqueles que se me dirigem e que discutem opiniões que eu tenho. O facto de supostamente atingir esse público faz modificar o tom da sua crítica? Não, modificar não faz porque eu tenho uma determinada maneira de escrever, e exprimo as minhas ideias da maneira que sei e da maneira que com os anos fui construindo.» (Francisco Perestrello, crítico de cinema na Capital) A ideia de profanação e/ou contaminação do discurso do crítico jornalista quer pela sua ligação a determinados grupos ou correntes artísticas, quer pela presença ausente de um suposto "leitor-médio", advém do facto da concepção estética dos críticos de pendor academista tender a ser dominada por uma visão ontológica ou essencialista da própria arte: para estes últimos, a meta final da sua prática deveria ser fazer ressurgir e reapresentar publicamente o sentido supostamente intrínseco da obra sobre que se debruçavam, tarefa que exige o tal "distanciamento crítico" de que falámos. Tal atitude de recusa de contactos com o exterior, que nos remete para a conhecida ética da visibilidade pura partilhada por muitos teóricos da estética, traduz a procura de auto-valorização e de autonomização de um domínio intelectual específico que se quer constituír e manter irredutível como campo, através da prática da crítica pela crítica e da promoção da arte pela arte, vendo a outra crítica, a crítica que se vende, que é comercializada no espaço da imprensa, como que corrompida em virtude da sua função utilitária, apresentando-se sujeita a todo o tipo de pressões e constrangimentos sociais pelo facto desse mesmo espaço se integrar nas leis do mercado capitalista e de, por esta via, pretensamente servir os interesses do leitor ou de determinados círculos electivos de criação. Ora, esta última posição remete-nos directamente para outra acusação apontada pelos críticos universitários à crítica jornalística: a de que esta surge corrompida por uma suposta visão comercial e consumista da arte, desrespeitando-a na sua "essência" na medida em que põe a sua fruição ao nível da "simples" actividade de lazer, servindo os interesses comerciais e sendo conivente com os mercanismos de mercado presentes no seu campo de produção. Acerca desta questão, que detém ainda alguma actualidade, Mary Pratt prenuncia-se nos seguintes termos:

267

«(...) reviewing is up to ears in what academic criticism resolutely tries to turn its back on, namely commercialism and the treatment of art as a commodity. The standard stance for present day reviewers is that of the consumer reporter, assisting the potencial customer in deciding which works to spend time and money on. The focal point of the review is the recommendation to the consumer, the body of the text standing ostensibly as explanation and defense of the recommendation. The commercial ideal is for works of art to be consumed one after another like potato chips, to become obsolete as soon as a single exposure has taken place. This is the way they are dealt with revieiwng (...). Their relationship to the entertainment industry, which usually produces both the works under review and those doing the reviewing, puts reviewers under pressure to approach art primarily as diversion or escape (...). For this (académicos) is the label that communicates to us all that that art which is part of daily, unspecialized social experience is not art or culture at all, is beneath criticism, beneath interpretation, beneath taking seriously. Ironically, to the extend that academic criticism implies or even disseminates such a view, it supports the very commercial interests it elsewhere undertakes to resist.» Perante de tais acusações, a autora não as vai contrariar ou desmentir, tentando, contudo, relativiza-las e retirar-lhes o conteúdo pejorativo que lhes é incutido. Na sua opinião «it is a mistake to think of reviewing as purely a device of consumerism. It performs cultural tasks that are central to criticism. Reviewing plays an important role in the critical process of working out community consensus of judgment and interpretation of art. (...) A preoccupation with entertainment value obviously does not preclude serious consideration of art. Entertainment and leisure are serious matters (...). And precisely because of its presence in the midst of marketplace, reviewing does mediate directly between producers and receivers of mass art, forming a privileged and consequential line of communication from the latter to the former (...).»148 Tais acusações da crítica académica à crítica jornalística prendem-se, como é evidente, ao facto de entre a primeira prevalecer um olhar fascinado sobre a obra de arte, produto de uma visão romântica e aurática da arte que pressupõe os princípios da sua imaculada idealidade, assim como, consequentemente, da denegação da economia neste domínio, pelo que os percursores desse tipo de crítica se debruçaram quase

148

PRATT, "Art Without Critics and Critics Without Readers...", op. cit., pp. 181 - 182, 186. 268

exclusivamente sobre as formas culturais clássicas ou formas tradicionalmente legítimas (que são as que se encontram socialmente institucionalizadas como "verdadeiramente" artísticas, associadas a um modelo de produção cultural onde aqueles princípios estão ainda bastante arreigados, embora tendam hoje cada vez mais a perder a sua força) em detrimento dos produtos provenientes das indústrias culturais, geralmente classificados sob a designação de "cultura de massas" ou "arte comercial", estes depreciativamente considerados em termos estéticos e, como tal, deixados ao cuidado da crítica jornalística: «infact, they are almost entirelly excluded from the concerns of academic criticism, though their critical consideration is deemed appropriate in limited context of reviewing.»149 Os críticos jornalistas, por seu turno, vão apontar a crítica académica, nos seus princípios éticos e estéticos, como pretenciosa, fria e algébrica (nas palavras que atrás citámos de Baudelaire), assim como elitista e restritiva, preconizando, por seu turno, o princípio da democracia cultural e a necessidade de congregar esforços no sentido de estender a arte e a própria crítica para fora das elites intelectuais a que tradicionalmente aparecem associadas. Nas palavras de Mary Pratt: «The particulary striking aspect of the academic context, however, is that the strategy for insulating elite art and criticism from commodification has tended to isolated them from about averything else that goes on outside the university, and thus tended to foster a view of "culture" as something existing apart from social life. When elite culture is the only culture recognized by criticism, the scape from commercialism leads only to an equaly impoverisched isolationism. (...) This is not of course to say that critics should abandon Pantagruel and learn to love the Incredible Hulk; it is to say only that elite art should not and need not be the unique focus of academic criticism. It is a matter of increasing the critic's roles, not of eliminating any of them.»150

149

Idem, p. 178. Desta situação, é porém de excluir o caso concreto do cinema, o qual, com a recente reestruturação da instituição académica e dos campos intelectual e artístico em geral - acontecida a partir dos princípios da década de 70, tendo vindo a flexibilizar e a diluir as fronteiras de legitimidade tradicionalmente traçadas entre os diversos produtos culturais e, como tal, a pôr em causa a "distribuição dos recursos críticos" tal como estava anteriormente organizada -, veio a ser seu particular beneficiário (tal como acontece hoje com a fotografia e até mesmo com as várias do design), dispondo a partir daí da atenção de uma boa parte de críticos académicos mais liberais. 150 Ibidem, pp. 184-185. 269

Nesta perspectiva, podemos notar que a cisão entre crítica universitária e crítica jornalística, sendo uma das mais acentuadas expressões das clivagens gerais existentes no campo da crítica desde a sua génese, encontra-se igualmente relacionada com o carácter central ou periférico da localização desses lugares de produção de discurso crítico no campo que lhe é específico. Efectivamente, desde que o espaço das artes se foi liberalizando em relação à instituição académica e que, simultaneamente, a prática crítica veio a encontrar um espaço de desenvolvimento e divulgação regular junto da imprensa, a crítica de vocação mais hermenêutica (historiográfica e/ou ensaística), tendo em conta o grau de visibilidade e impacto público alcançado por ambas, foi-se periferizando social e culturalmente em relação à primeira, a qual veio assumir uma localização central com o desenvolvimento e expansão crescente e acentuada dos media (assim como das temáticas culturais e artísticas no seu interior) na nossa sociedade. A actual situação periférica da crítica académica face ao reviewing encontra-se bem retratada no testemunho de Mary Pratt que passamos a citar: «something we academic critics perhaps more keenly feel, is that most of the criticism produced goes virtually unread.» Esta peculiaridade, segundo a autora uma das mais importantes no contexto da crítica contemporânea, «referers, of course, to the vast critical production taking place in colleges and universities. Quantitatively speaking, most criticism by far is now produced by professors of literature and addressed to other professors of literature. Moreover, as critics of the profession relentlessly point out, the production of criticism within the close circle has far outstripped the capacity to absorv what is published. Thus, if professors of literature form a relatively small potencial audience for criticism, the actual audience for any given critical piece is likely to be downright minuscule.»151 No decurso do movimento de periferização social da crítica académica, os seus praticantes começaram a dirigir grande parte da sua preocupação reflexiva para a correcção e fundamentação analítica da coerência das suas perspectivas teóricas e metodológicas de abordagem estética, assim como para a consubstanciação conceptual da especificidade da actividade crítica - temáticas que os críticos jornalísticos raramente abordavam, absorvidos pelas polémicas propriamente estéticas que se viviam na

151

Ibidem, pp. 178-179. 270

actualidade, com a proliferação de novos movimentos de artistas e de eventos culturais a criticar. Deste modo, como refere Zolkiewsky, os primeiros acabaram por começar a ser socialmente considerados já não apenas como críticos, mas sobretudo como teóricos e/ou investigadores especialistas na análise literária e artística, ficando aquele estatuto comummente associado ao espaço de produção e difusão jornalística (especializada ou generalista), pelo qual mais recentemente começaram também a ser chamados a dar o seu contributo discursivo e opinativo.152 Tendo em consideração que o desenvolvimento paradigmático preconizado pelos críticos académicos em torno da sua própria prática e da relação que esta deverá manter com os objectos de arte - no sentido de pensar as funções sociais e teóricas da crítica, assim como o seu método de abordagem particular dos fenómenos estéticos - é bastante ilustrativa da luta empreendida pela afirmação e defesa da autonomia do seu estatuto e da sua respectiva legitimidade discursiva e opinativa - nomeadamente em relação a instâncias de que está directamente dependente no desempenho da sua actividade, como sejam o criador, a obra sobre que se propõe reflectir e o seu receptor -, decidimos dar-lhe uma atenção especial neste trabalho. Por outro lado, a forma como privilegia (ou não) cada um destes elementos na sua estratégia de abordagem crítica e na relação que mantém com a obra sobre que reflecte, vai também fazer-nos descobrir uma outra clivagem fundamental que atravessa igualmente o campo da prática crítica desde a sua génese, ou seja, a que separa críticos de habitus objectivista e críticos de habitus subjectivista. Se bem que essa cisão coincidisse totalmente, no seu início, com a que dividia críticos académicos e críticos jornalistas, depressa se revelou transversal àquela, nomeadamente quando os valores da objectividade e da verdade crítica começaram a ser postos em causa dentro do próprio espaço académico, assim como quando agentes do interior deste começaram a ser importados para o espaço da imprensa. Senão vejamos.

152

ZOLKIEWSKY, "Crítica", in Enciclopédia Enaudi, nº 17, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da 271

IV. DESENVOLVIMENTO PARADIGMÁTICO DA CRÍTICA: UM PROCESSO PARA A AUTONOMIA

4.1. A CRÍTICA PARA-OBJECTIVISTA Apesar da diversidade que caracteriza actualmente o campo da crítica quanto à sua produção teórica, Eduardo Prado Coelho considera poderem-se agrupar as várias teorias da crítica que vieram a desenvolver-se ao longo do tempo em três grandes conjuntos paradigmáticos: o paradigma filológico, o paradigma comunicacional e o paradigma metapsicológico153. A construção deste esquema triático é alicerçada em função de dois eixos fundamentais, a partir dos quais o autor diferencia o conjunto de vectores assumidos por cada um destes paradigmas: o primeiro eixo corresponde ao elemento privilegiado pela teoria crítica no conjunto de elementos intervenientes no processo de comunicação estética, ou seja, o emissor-autor, a obra-mensagem ou o receptor-leitor; o segundo eixo encontra-se associado ao postulado da teoria crítica no que se refere à coincidência ou não coincidência entre verdade crítica e sentido da obra. Nesta perspectiva, passemos então a explicitar os pressupostos partilhados por cada um destes conjuntos paradigmáticos. O paradigma filológico constituiu a referência dominante para a prática e investigação crítica exercida nas Academias oficiais, que vieram depois a assumir o estatuto de escolas superiores e/ou de Universidades, até meados do nosso século. Profundamente marcado por uma ética positivista em relação à arte, visava como objectivo básico e prioritário para a crítica a reconstituição, fixação e reapresentação

Moeda, 1989, pp. 260-294. 153 COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit, pp. 15-17. Estes três paradigmas correspondem, respectivamente, às noções classificatórias da prática crítica propostas por Roland Barthes, ou seja, a Crítica Universitária Clássica ou Tradicional, a Crítica Nem-Nem e a Crítica Ideológica ou Nova 272

objectiva do sentido da obra - aqui entendida como expressão estética das percepções e emoções, pensamentos e sentimentos subjectivos de determinada individualidade face ao mundo que a rodeia, face à realidade que a envolve, que ela apreende e tenta traduzir artísticamente. Na base desse objectivo estava o pressuposto de que no interior de qualquer obra viveria uma verdade, a qual corresponderia ao seu significado último, único e essencial (no sentido em que constitui a sua "essência" significativa). O crítico seria então convidado a empreender a tarefa de atingir essa mesma "verdade", de apreender o sentido literal da obra, restituindo-o e reapresentando-a objectivamente no seu discurso, despojando-a do seu brilho metafórico e protegendo-a da errância de sentido a que esse brilho poderia induzir. A coincidência entre verdade e sentido pressuposta pela filologia oitocentista encontra-se, por sua vez, garantida no seu dispositivo teórico através do reconhecimento da autoridade do autor na determinação prévia do simbolismo do artefacto estético por ele criado. Recusando a posição de conformidade por que a prática crítica se regia até aí em relação a um ideal formal de Beleza importado da cultura estética grega, a crítica de ethos filológico afirmava a necessidade de uma interpretação e avaliação estética que saísse das categorias imutáveis e que tivesse em conta a personalidade dos artistas enquanto historicamente participantes da sua própria época. Isto é, conceptualizando a obra de arte como resultado de um dado comportamento estético, só a partir do estudo do seu contexto de criação e através do conhecimento diacrónico e sincrónico das várias formas de comportamento artístico que a precederam e a circundam, é que seria permitido ao crítico aferir que uma dada obra é "autêntica" e "verdadeiramente" artística. Deste modo, a qualidade estética já não é aqui reconhecida a partir de modelos arquetípicos, mas deduzida no decorrer do processo criativo e expressivo do artista, através da análise da originalidade, coerência e unidade estilística e expressiva da sua obra contextualizada no tempo. Cultivava assim o valor da autenticidade em desfavor da conformidade às regras e convenções associadas à tradicional ideia de Belo. Nesta óptica, o sentido-feito-verdade preconizado no paradigma filológico seria supostamente conseguido através da recuperação do ponto de vista do autor, seria pretensamente atingido através da reconstituição da mensagem segundo da intenção do emissor, interveniente da comunicação estética aqui privilegiado como fundamento da interpretação crítica. O significado e valor da obra de arte eram então explicados na sua Crítica, classificação apresentada nas suas obras Mitologias, Lisboa, Círculo dos Leitores, 1957/87, e Crítica e Verdade, Lisboa, Edições 70, 1966/87. 273

articulação com um dado contexto cultural, no espaço e no tempo, contexto esse em que seria formulada a intencionalidade pragmática e programática do artista, núcleo em que converge o valor e o significado último da obra. Assim sendo, a inteligibilidade do discurso estético dependeria, em última instância, de algo que lhe é anterior e que o determina: a intenção do autor, ponto de chegada da compreensão e interpretação crítica "objectiva" de qualquer obra. O autor torna-se aqui a única e verdadeira origem ou fonte do sentido literal intrínseco à sua obra, torna-se proprietário do direito de atribuição de significado à sua criação e, consequentemente, única garantia segura da chegada àquele, meta da prática crítica. Esta postura perante o exercício da crítica detém ainda uma certa herança proveniente da cultura artística e crítica romântica, na medida em que obriga o crítico a reconhecer no artista o génio, detentor único da verdade sobre a sua obra e, simultaneamente, a auto-reconhecer-se como simples agente mediador, devedor do próprio pensamento original do criador. Aqui, fazer crítica supunha querer aceder ao universo da genialidade do artista, àquela dimensão inefável da sua obra, acesso esse sempre conduzido pela mão do artista nos testemunhos que havia deixado sobre a suas próprias intenções estéticas. Tal tendência para admitir o criador como depositário e definidor último do sentido verdadeiro, literal e perene da sua obra, vai pressupor a existência de uma conexão directa entre o signo estético e o universo de referência de quem o utiliza: daí a interrogação do crítico de ethos filológico sobre a cultura do autor, sobre o seu processo formativo, a sua vida, a sua época, a situação social e cultural que o rodeia, a sua personalidade e biografia, as convicções e ideias de que partilha, os seus estados psicológicos no momento de criação da obra em causa, em suma, sobre toda a contemporaneidade que delimita a construção da sua individualidade e da especificidade da sua linguagem estética, onde devem ser procurados os vestígios da "intenção" subjacente ao objecto criado. Desta forma, a autenticidade da obra e a singularidade da intenção do seu respectivo autor são aqui situados na sua relação com o seu contexto de produção passado e presente, enquandrando e reassociando o que é próprio de cada artista, em termos de caracerísticas únicas e inovações, na globalidade da história das artes e letras.154

154

Hippolyte Taine (1828-1892), percursor da corrente filológica na área das artes e literatura e em grande parte inspirado no positivismo de Comte, ao procurar explicar as obras como reflexo das instituições, das preferências, do modo de vida, da escola e da família a que os artistas pertencem, em 274

As pretensões científicas inerentes ao paradigma filológico, decorrentes da transferência da ética positivista para o campo da crítica, vão implicar uma metodologia de trabalho em que predominam os valores do preciso, do exacto, do autêntico, do fiel, pressupondo a preservação do significado original, a pureza da origem, ao remeter a "verdade" da obra de arte para a "intenção" do autor. Tentando abster-se de intervir nos problemas da arte contemporânea (por razões de imparcialidade crítica e, em grande parte, convencidos de que aquela se encontrava em decadência em relação à arte do passado), os críticos de ethos filológico procuravam através da reconstrução históricocultural da vida e da época do seu criador, tarefa executada com base na decomposição e análise aprofundada de documentos e outras fontes originais155, anular os efeitos do distanciamento da obra na história e eliminar o obscurantismo que essa distância provocaria sobre o seu significado literal, uno e perene, transformando a experiência e a percepção particular do crítico em relação ao objecto em leitura trans-histórica, criando assim as condições propícias à expansão da ideologia da intemporalidade da Arte. Pretendendo, com obstinação positivista, o rigôr científico na relação com o texto escrito ou pictórico, o comportamento filológico cultivava também o valor da neutralidade ou isenção pelo apagamento pessoal do crítico como agente interventivo no processo de produção de sentido estético. A presença deste no processo de conhecimento que desenvolve deveria ser necessariamente anulada, de modo a afastar impiedosamente o erro na sua interpretação por forma a que o resultado final desse processo fosse completamente des-apaixonado e des-afectado. Pretendia-se assim um modelo de crítica anestesiado em relação a todo e qualquer tipo de contaminação

suma, com o meio social em que vivem, foi de tal modo determinista que, nas suas posições, aqueles perdiam toda a sua autonomia e liberdade criativa. Contribuiu, no entanto, para a inauguração da compreensão da relação entre a arte e a vida social. Para um bom resumo sobre o pensamento estético e crítico de Taine, ver "Taine: o lago imóvel e a partilha das águas", in COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit., pp. 239-266. Taine teve, em Portugal, Ramalho Ortigão como dilecto discípulo, que o considerava então como «mestre na crítica de arte», declarando em 1876 que «a arte era um produto directo do meio social», demarcando-se assim do idealismo, que também nessa época tomava fôlego, e que considerava ser a «peste da arte». Teófilo Braga segue-o nas ideias com a públicação, em França, do ensaio "Constituition de l' Esthétique Positive". Também António Arroyo (1856-1934), na sua obra sobre "Soares dos Reis e Teixeira Lopes" (1899), vai partilhar da ideia da intenção do autor como garantia da indepenência crítica, já que, como ele diz, «colocando-se no ponto de vista sentimental em que (o artista concebeu a obra), não partiria de sistemas estéticos pessais, a maior parte das vezes alheios ao próprio artista». O tempo e o lugar em que a mensagem artística cristalizou fixam a sua exteriorização - e assim «acção exterior», ou seja conteúdo e forma, «acham-se fixadas a um tempo e indissoluvelmente ligadas.» Cit. in FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., vol. I, p. 439, vol. II, p. 98 e p. 109. 155 Como é patente na posição de Lionello Venturi, representante, nos anos 30, desta forma de crítica na área das Belas Artes, para quem «o pensamento do próprio artista sobre a sua arte, sempre que possamos conhecê-lo, é, naturalmente, o documento mais precioso. (...) Do mesmo modo, o pensamento dos 275

subjectiva, assumindo a aparência de leitura trans-ideológica e universal. A tentativa de apreensão objectiva do objecto estético e a consequente perseguição constante de toda e qualquer ambiguidade (que contradiga a coerência supostamente existente entre o texto e a "intenção do autor", origem e garantia da interpretação correcta) empreendida pela crítica de tradição filológica, foi resultar no pressuposto de que é possível, metadiscursivamente, encontrar um ideal de coincidência entre significado e significante, entre "espírito" e sua materialização na letra/palavra. É neste sentido que Prado Coelho afirma que «a filologia é (virilmente) a vontade de possuir (filologicamente) a palavra exacta, garantindo a sua fidelidade.»156 Com efeito, se o objectivo da crítica de carácter filológico seria o de fixar e imobilizar a literalidade dos signos estéticos, fossem eles de ordem discursiva ou não discursiva, no que eles significam em si, era necessário que a sua própria escrita transparecesse um modelo de neutralidade e de isenção: deveria então pautar-se pela clareza, pelo rigôr, pela apatia, pela passividade. A linguagem nela empregue era considerada apenas enquanto instrumento de transmissão, devendo ser sobretudo técnica e funcional, despida de qualquer efeito ou uso metafórico. Ao brilho da obra deveria sobrepôr-se a so(m)briedade do discurso metaliterário. Deste modo, o ofício da crítica nos circuitos académicos definia-se cada vez mais como uma especialização técnica e trabalho científico, distinguindo-se da crítica associada à imprensa generalista ou de instrução cultural executada por literatos, poetas e outros criadores e diletantes. Os pressupostos básicos perfilhados por esta corrente da filologia vêem-se hoje praticamente abandonados no contexto da crítica portuguesa (e não só, como continuaremos a vêr). Longe da pretensão à obtenção do estatuto de Ciência, no sentido positivista do termo, e reivindicando a autonomia da sua acção interpretativa e judicativa em relação ao pensamento do autor sobre a sua obra, assim como a sua legitimidade enquanto receptor privilegiado, porque especializado, os nossos críticos entrevistados demarcam-se acerrimamente em relação à premissa central desta corrente, que faz corresponder ao objectivo e fundamento legitimador fundamental da prática crítica a recuperação da intenção do autor na realização na sua obra. Por um lado, porque essa intenção poderá não ser conhecida nem haver meios de a conhecer, o que

contemporâneos de um artista, eles mesmos artistas ou não, dos seus discípulos e continuadores, fornece à crítica documentos preciosos», in História da Crítica de Arte, op. cit., p. 13 (os itálicos são nossos). 156 COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit, p. 222. 276

levará a suposições que são desnecessárias do ponto de vista crítico. Por outro lado, porque o autor não tem o poder de controlar todos os efeitos de sentido que a sua obra, semanticamente polifónica, poderá desencadear. E ainda porque entre a intenção e a realização supõe-se haver uma larga distância e não obrigatoriamente uma coincidência. Pelo que, para os nossos entrevistados, a relação de fidelidade da crítica deve ser sempre estabelecida com a obra e não com os elementos que a envolvem, sendo ela que, em última instância, autoriza as suas enunciações discursivas. Quanto muito, o conhecimento da intenção do autor e das circunstâncias que a rodearam e a condicionaram, poderá eventualmente ser admitido como um dos suportes, entre outros, a considerar no processo crítico de análise e judicação, podendo ser utilizado como um dos parâmetro de avaliação da obra, na medida em que tal situação permitirá uma confrontação entre intenção e resultado final, assim como compreender esse mesmo resultado final dentro do quadro das suas prováveis limitações externas e condicionantes estruturais e subjectivas. Esse conhecimento poderá também ser utilizável como elemento coadjuvante na compreensão de determinadas componentes da obra, assim como na sua contextualização geral, nomeadamente se o percurso do seu autor fôr menos conhecido publicamente. Mas nunca por nunca o crítico contemporâneo toma a tarefa da recuperação da intenção do autor como tarefa prioritária da sua actividade, sequer como fundamento de legitimidade da sua própria leitura do objecto. «Na sua opinião, o crítico deve preocupar-se em integrar o ponto de vista do criador sobre a sua obra na crítica que dela faz? Não, porque a intenção do autor ninguém a conhece, a não ser o próprio autor. Qualquer crítica se deve desviar de qualquer espécie de processo de intenções. Deve evitar tentar entrar nesse campo que são as intenções do autor, ou porque as intenções não são conhecidas, ou porque elas são irrelevantes. Porque, de facto, uma das características da obra de arte é o poder escapar, e se não fôr assim não será uma obra de arte, será uma obra qualquer de carácter pragmático, tem uma utilidade tem uma funcionalidade, aí sim, a intenção tem relevo deve ser um critério a ter em conta, mas no caso da arte a intenção é irrelevante, é um critério que não devemos ter em conta. Ou porque não sabemos, ou porque é da própria natureza da obra ultrapassar todas as intenções do autor. (...) Isto é, o autor não pode prever tudo aquilo que nós podemos ler na sua obra, ou que podemos ver, é impossível que ele possa prever isso. Por maior que seja a sua capacidade de previsão, por maior que seja a sua capacidade de refexão acerca do seu próprio trabalho, ele 277

não pode prever tudo. E nesse sentido, qualquer crítica que fosse baseada nesse critério das intenções seria sempre uma crítica bastante pobre.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «Não. Não e sim, quer dizer, o crítico leu o livro, é um leitor. Depois, a partir do livro que leu faz o comentário. O ponto de vista do criador é o que está, em princípio, no livro, e tem que perceber à maneira dele, e depois a partir daí faz o comentário.» (João António Dias, crítico de literatura no Independente) «Essa pode ser uma das componentes da actividade crítica, mas não me parece que isso seja suficiente. (...) criar é inventar, de algum modo, e nem sempre os autores se expõem como seres humanos que são, metem-se na pele daqueles personagens, personagens que eles gostariam de ter sido, ou personagens que lhes são periféricas mas que eles conhecem bem... Não me parece que isso seja fundamental. Podemos é chegar através de qualquer ficção à conclusão que determinado autor pensa desta ou daquela maneira. Agora, recolher o perfil psicológico do autor só pelo... não creio que isso seja função da crítica literária. A gente, eu pelo menos, atendo mais ao livro, atendo mais às personagens do livro, ao contexto, à história, tudo isso, do que propriamente estar a pensar se determinado autor escreveu daquela maneira e poderia ter escrito de outra só porque na sua vida particular as coisas não se passam bem assim mas assado.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras) «Não forçosamente. Como eu lhe estava a dizer, é sempre um tiro no vazio. Se você faz o tipo de crítica que eu faço, que é tentar encontrar a lógica interna de uma obra, evidentemente que eu tenho que tentar perceber o que o autor quis fazer. Posso estar errada. Eventualmente passa por tentar conhecer a vida do autor, não forçosamente, eventualmente. Depende. Se eu estiver a falar da Recherche e estivermos a falar da metáfora central do livro, eu não preciso de saber que Proust era homosexual para perceber o que ele quis fazer, para explicar a imagem da inversão, que é como se dizia na altura homosexualidade, para perceber essa metáfora. É evidente que me pode ser útil saber que ele levou muitos anos a viver nesse mundo, que não era nenhum snob, etc, etc, para o perceber.» (Patrícia Cabral, crítica de literatura no Diário de Notícias)

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«De maneira nenhuma. Isso era negar mesmo a teoria da recepção. O crítico é um receptor. O crítico é um intérprete. O crítico é um hermenêuta como qualquer outro. Logo, deve assumir com a liberdade de que fôr capaz e que fôr construindo com a sua experiência, deve ser livre de não ter em linha de conta a intenção autoral. Não interessa a intenção autoral. Interessa é o resultado, aquele resultado entre o horizonte da obra e o meu horizonte. Pronto.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso) «Eu julgo que isso é variável. Evidente que quando (...) nós já escrevemos há muitos anos o perfil de um determinado criador, muitas vezes já não é preciso estar a explicar, porque já se falou tantas vezes nesse aspecto, pode-se fazer uma referência ou outra, duas ou três frases, dois ou três adjectivos, e não andar sempre a explicar todo o percurso e o perfil do criador de quem já se falou muito. (...) e nessa altura já não é preciso "gastar" espaço com coisas que já são sabidas, e nesse caso interessa focar essencialmente naquele espectáculo o que em si que será mais diferente ou menos diferente dos anteriores, focar mais o objecto artístico do que proprimente o modo de o fazer. Quando não é esse o caso, principalmente quando são criadores que estão a aparecer, a emergir, que ainda não têm uma caminhada, eu julgo que aí deve haver os dois apectos, o enfoque sobre o objecto artístico em si e a tentativa de explicação ou de entender o que pretende, quais são os parâmetros em que se movimenta o criador, qual será a sua filosofia sobre o espectáculo, tentar entender isso, como isso se virá a provar ou não com a continuidade do seu caminho, mas aí é um aspecto de análise muito interessante. (...) Eu procuro descobrir isso através dos espectáculos, para mim é muito mais interessante, muito mais desafiador. Eu julgo que o espectáculo e o criador tem de se explicar por si próprio.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de Notícias) «A minha relação com o filme não pode partir disso, tem que partir daquilo que eu encontro lá. Isto para dizer que a tal relação singular que eu estabeleço com o filme tem, apesar de tudo, modos de validade, e esses modos de validade, sendo obviamente discutíveis, sempre discutíveis, jogam-se na relação directa com elementos específicos que estão no filme e não com aquilo que poderia estar ou com aquilo que foram as intenções do autor. Aliás, devo dizer-lhe que um dos factores para mim praticamente irrelevantes na relação com o filme são as intenções do seu autor. Acho que pode ser muito interessante ouvir e ler as ideias que cada cineasta tem sobre o seu filme, mas não quer dizer que isso seja necessariamente um guia esclarecedor, porque uma das 279

coisas que se aprende a fazer crítica é que há sempre uma diferença, quanto mais não seja de grau, entre as intenções de quem filma e o próprio filme. O objecto filme é algo que se libertou do seu criador. Portanto, é nessa base que estabelecemos uma relação com o filme.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso) «O ponto de vista do criador é o ponto de vista da obra, e portanto é esse ponto de vista que eu vou analisar e criticar. Só que as intenções, para além do Inferno estar cheio delas, são muitas por cada obra. Ou seja, o que faz de um filme um filme interessante é o facto dele ser polifacetado, apesar de ter um ponto de vista. Este ponto de vista é suficientemente rico para ser polifacetado. Eu posso pegar no Vale Abraão do ponto de vista da Ema, do ponto de vista do Rio. Eu, ou falo de tudo, se tiver tempo, se vir tudo, ou posso pegar numa parte desse cristal e ver o filme todo a partir daí. A questão é tentar nunca falar de coisas que objectivamente não estão lá. Agora, pode é estar lá muita coisa e eu só pegar numa ou duas, e eu construir o discurso a partir dessas, ou tentar ir a todas e tentar perceber a unidade do filme, depois há muitas maneiras de abordar um filme. Mas parte-se sempre do filme e daquilo que ele tem.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público) «Não. Esse é o ponto de partida do criador, e o do crítico pode ser coincidente ou pode não ser. Há um exemplo por cá em que as críticas foram completamente contra a intenção, ou perceberam a intenção do criador mas que não a tiveram em consideração: no "Chaplin", a intenção do realizador foi essa, os críticos perceberam mas rejeitaram a sua intenção. E há inúmeros exemplos em que a crítica critica precisamente o trabalho do próprio realizador, não tem que ser necessariamente coincidente. Aliás, é essa também uma das responsabilidades, será a isenção do crítico em avaliar determinado filme. Há que ter em conta a intenção, mas não quer dizer que ela presida à sua crítica.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras) «Em atender, sim. Eu não me parece que a crítica seja, embora em muitos casos historicamente foi isso e também foi importante que tenha sido, a amplificação do discurso de suporte do próprio criador, da atitude do próprio criador. Há algumas pessoas que o fazem por sistema, que procuram esse tipo de proximidade e de papel. Não é pessoalmente aquilo que me interessa. Em última análise, o discurso do criador sobre a sua obra pode ser ou pode não ser um elemento adicional importante para... 280

Mas todas as obras são justificadas por discursos, explícitos, ou implícitos, por parte dos criadores, e isso não lhes acrescenta rigorosamente nada. Toda a gente tem as suas teorias e justificações, em última análise. As práticas esquizofrénicas mais completas são suportadas por discursos verbalizados, e nada as permite classificar como arte por mais que seja essa a intenção do próprio.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso) «Depende. Mas eu acho que isso é importante, isso é um dos elementos de avaliação de qualquer obra. É saber "o que é que um indivíduo pretende atingir com isto?" Até porque de boas intenções está o Inferno cheio. E há uma parte significativa de obras cujo programa é interessante, e cujo resultado final é decepcionante. Há uma diferença muito grande entre isso. E aliás, na actualidade, com um tipo de arte conceptual ou neo-conceptual que se faz, isso é cada vez mais evidente. Como o projecto da obra é fundamental para a definição da obra, uma parte significativa das obras tem um projecto sustentável e um resultado visual lamentável. É mais difícil até ser artista nessas circunstâncias, quando tem que se ter um programa.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) «Eu gosto mais de olhar para a parte mais autêntica do artista, que é aquilo que ele faz, do que para o que ele diz ou o que ele pretende dizer em relação ao que faz, que muitas vezes não coincide. Mas de qualquer maneira vale a pena ouvir, nem que seja um disparate, mas vale a pena ouvir para ver até que ponto há convergência entre o que ele faz e aquilo que ele julga que pensa. Pode até não saber pensar, isso é complicado. E está sempre há espera que sejam os outros a pensar sobre aquilo que ele faz. Há casos desses. Mas é importante no plano humano, perceber quem é a pessoa que está ali, que tipo de formação é que ela teve, em que meio é que ela se move, qual é o seu gosto dominante, o que é que a motiva, o que é que a inspira, o que é que está no amâgo da sua arte... Esses estados mais humanos, mais ligados à vida da própria pessoa, acho que podem ajudar a compreender a sua maneira de ser e de pintar.» (Eurico Gonçalves, crítico de artes plásticas no Diário de Notícias) «Deve, o crítico tem que ter uma relação com o criador, directa ou indirecta. Terá que ter uma relação com o criador. O crítico não obedece é aos pressupostos do criador. O criador enuncia pressupostos, o crítico revê esses pressupostos e tenta 281

analisar até que ponto esses pressupostos foram ou não cumpridos. Agora, o facto de meramente eles serem cumpridos, também não legitima a obra de arte. O crítico analisa os pressupostos enunciados pelo próprio autor, se esses pressupostos estão cumpridos na obra isso não significa que a obra seja automaticamente e só por essa razão uma grande obra de arte. Há outros factores.» (Carlos Vidal, crítico de artes plásticas na Capital) Constatamos então, no contexto da crítica académica na viragem para o nosso século, a existência de um paradigma filológico que visava sobretudo a fixação de um sentido literal para a obra sobre que se debruçava, imobilizado em termos de "verdade", o qual seria recuperado de algo que lhe é anterior e que o determina, ou seja, a "intenção do autor". Assim sendo, neste paradigma o objecto aparece como um falso emissor na transmissão de sentido, incubindo-se o crítico de reconduzi-lo ao verdadeiro emissor, aquele que o criou. Os pressupostos desta vertente da corrente filológica oitocentista, designada por Prado Coelho de vertente historicista157, foram todavia contraditos por algumas outras correntes da crítica que emergiram no início do século, as quais, se se avizinhavam da primeira nos seus objectivos prioritários, dela divergiam nos seus métodos de abordagem da obra. Repegando nos pressupostos básicos da estética idelista alemã, que considerava a abordagem crítica do objecto estético em si e por si, sem comiseração pela intenção do autor a ele subjacente, perpretaram com fundamento nesta base teórica uma série de violentos ataques à crítica de orientação filológica tradicional. Correntes surgidas no interior do campo da crítica nos anos 20, nomeadamente na área da crítica literária, como a Nova Crítica Americana ou "New Criticism" e, mais tarde, nos anos 40, os Formalistas Russos, protagonizam o que Prado Coelho denomina de vertente formalista do paradigma filológico, em contraposição à sua vertente historicista. O autor insiste em integrá-las no âmbito do paradigma filológico, na medida em que os seus dispositivos teóricos mantêm ainda o teorema da convergência entre verdade e sentido, continuando a pressupor convictamente que o significado de qualquer obra é uno e inalterável, intemporal (trans-histórico) e universal (transideológico)158. Na concepção destes, como faz notar Catherine Belsey, o texto significa

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COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit, p. 15. COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 16. 282

o que sempre significou, é um exemplo individual e concreto de uma verdade eterna e universalmente inteligível, apesar de complexa.159 Mas se entre a vertente historicista e a vertente formalista do paradigma filológico existia uma situação de convergência quanto ao ideal de coincidência entre verdade e sentido, a divergência entre estas instalava-se no que diz respeito à sua garantia. Em ruptura com a tradição de estudar a obra de arte em função de uma verdade que lhe era anterior, os críticos formalistas argumentavam que a procura da "intenção do autor" não serviria como garantia da chegada ao seu significado último, proclamando a necessidade de criticar a obra em si mesma por si mesma. Os seus elementos extraestéticos, como o ponto de vista do autor, o seu tempo e espaço de criação, eram aqui tidos como irrevelantes, pressupondo-se ser no interior da própria obra, nas suas propriedades morfologicamente intrínsecas, e não fora dela, na contemporaneidade ou biografia do seu autor, que resideria a sua "verdade", o seu sentido literal e original, pelo que definem ser a mensagem, ou seja, a própria obra enquanto estrutura formal significante, o interveniente da comunicação estética a ser privilegiado como fundamento do juízo crítico e da reconstituição de sentido. Daí o culto destas correntes, nomeadamente na área da literatura, pela prosódia, pela métrica, pela pontuação ou, na área da pintura, pelas técnicas de análise iconográfica, ou seja, por todos os métodos de análise meticulosa (de preferência quantitativos) que conduzam à interpretação imanente e supostamente objectiva da obra em si mesma. Transposta para a área da crítica de arte, esta vertente paradigmática desembocou no que ficou comumente conhecido como crítica da visibilidade pura, ganhando foros de saber iconográfico e iconológico. Em reacção à metodologia crítica precedente, devotada ao levantamento da vida do autor, da sua personalidade, dos seus valores morais e intelectuais e do contexto histórico e sociológico da sua formação cultural com vista à reconstituição da sua intenção estética, os visualistas puros enfatizavam a estrutura interna da obra como base do processo de conhecimento objectivo sobre a obra de arte, considerando a forma em si como plenamente reveladora da sua significação última, independente da sua temática expositiva ou narrativa. Criticando vivamente as teorias miméticas/realistas da arte, propunham esta como puro fenómeno visual, cuja função consistiria em saldar a experiência que se tem do mundo com um saber técnico e uma expressão/estilo próprio que visa recriá-lo subjectivamente

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BELSEY, A Prática Crítica, Lisboa, Edições 70, 1982, p. 27. 283

e não apenas reflecti-lo.160 Assim sendo, longe de ser constrangida pela realidade, a arte deveria ela mesma construír novas realidades, novas formas detentoras de uma semântica própria, pelo que seria através do desmembramento e análise destas, e não através da relação criador - objecto - mundo em que ambos estão situados, que se chegaria à unidade de significação da obra em causa. Curiosa é a polémica que, em Portugal, se verificou entre dois intelectuais nos anos 20 no âmbito destas questões paradigmáticas, sintomática da chegada das premissas historicistas e formalistas a um país onde que a reflexão e a pesquisa crítica e estética não se encontrava desenvolvida, e em que a atenção universitária sobre as artes sempre havia sido até aí escassa. Não dedicados à crónica de actualidade que se fazia vulgarmente, José de Figueiredo, nascido em 72 e responsável pelo Museu de Arte Antiga a partir de 1911, e Virgílio Correia, nascido em 88 e professor de História de Arte em Coimbra, a partir de 21, definiram duas posições pessoais perante o fenómeno artístico que traduziam o antagonismo que então se vivia entre uma crítica de directriz historicista e uma crítica formalista, de discussão estilística e estética, entrando em polémica em 1924. Conta-nos Augusto França que «foi Grão Vasco quem serviu de rastilho à mencionada polémica, a propósito de um livro de Virgílio Correia então publicado; ela esboçara-se já, a pretexto de uma obra anterior de Correia, sobre Sequeira - e as críticas de Figueiredo num e noutro caso foram propositadamente ferozes, como ferozes foram as respostas. Cada um dos contendores tinha a sua revista: "Lusitânia" e "Terra Portuguesa" - mais brilhante a primeira, do lado de Figueiredo, com grandes nomes a assegurar-lhe a colaboração; mais modesta e provinciana a segunda, logo transparecendo as características do espírito de uma e de outra nas respectivas apresentações gráficas. À "ausência de visão e de sensibilidade", à "incapacidade absoluta em matéria de artes plásticas", de que o acusava Figueiredo, respondia Correia dizendo: "Não faço história da arte por impressão, mas por documentação, não sou um 'expert', mas um pesquisador." Um "rato de biblioteca" - resumia brutalmente Figueiredo... Para este, o método para identificação das obra de arte era "um só, ou seja a análise da obra a estudar", e acrescentava: "O documento é sempre unicamente um subsídio; descobrir

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Não esqueçamos que estamos, nessa altura, em pleno processo de entropia artística, com a arte a definir-se como "puro" mundo visual em oposição ao tradicional realismo clássico que havia dominado até aí. 284

um documento não transforma o encontrador em crítico e historiador de arte." José de Figueiredo tinha uma confiança ilimitada nos seus próprios dons críticos; Virgílio Correia nos documentos dos arquivos. O primeiro desconfiava da informação destes (...); o segundo depositava neles uma fé de arqueólogo. (...) Dentro do quadro de certa irresponsabilidade do pensamento histórico (e crítico) português de então, a polémica seria inevitável.»161 Inevitável já não o seria hoje, pois se voltasse a acontecer polémica idêntica, o tão vulgarmente constatado anacronismo do espaço cultural e intelectual português verse-ia largamente dilatado, merecendo soluções rápidas e imediatas. Mas efectivamente, tal como acontece em relação às premissas da corrente historicista do paradigma filológico, os críticos da nossa actual praça demonstram-se pouco adeptos dos valores preconizados pela crítica de orientação formalista. Apesar de manterem uma relação de fidelidade constante à obra sobre a qual se propõem debruçar, não a assumem como uma instância totalitária sobre o processo de produção crítica, na medida em que não a conceptualizam como dotada de uma "verdade" perene e objectiva que urge restituír, mas como um artefacto intrinsecamente aberto à leitura plural de significados. Pelo que não será objectivo da crítica calar a obra, circunscrevendo-a à estreiteza de um suposto núcleo de sentido único, mas torna-la falante, no sentido da abertura das suas possibilidades de significado latentes ou manifestas. Por outro lado, os nossos críticos nem sequer privilegiam na sua análise as suas compenentes formais em detrimento de outras. A relação de fidelidade que mantêm com a obra pressupõe o valor do respeito pela sua unidade, pela sua integridade, pela sua globalidade, pela sua complementaridade, pela indissociabilidade existente entre as suas mais variadas componentes de ordem formal, material, técnica, temática e outras. E é tendo em conta todas estas componentes que irão aferir da sua coerência interna, dos seus sentidos e do seu valor enquanto objecto de arte. E note-se que a posição aqui é unanimemente partilhada entre todos. «Quando pretende criticar uma obra, tem em conta apenas a sua forma ou também o seu conteúdo? Essa distinção pura e simplesmente não existe. Um dos princípios fundamentais que fazem parte da minha convicção mais funda, um critério básico de crítica tal como eu a exerço, é o de que a distinção entre forma e conteúdo

161

FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., vol. II, pp. 344-345. 285

pura e simplesmente não existe. Existe uma forma no conteúdo, uma substância na forma, a forma não é separável do conteúdo.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «Eu não penso que a obra de arte seja forma e conteúdo, a obra de arte é una. Portanto, eu quando falo de uma obra de arte, procuro justamente entende-la na sua unidade, no seu conjunto. Porque muitas vezes o chamado conteúdo não é nada se não houver a expressão técnica que permite que ele venha até nós. E como a grande parte da arte moderna, contemporânea, nem sequer é uma obra de uma linguagem figurativa, em que realmente há um conteúdo que se expressa, uma grande parte da arte contemporânea é expressionista, é abstracta, tem outras funções completamente diferentes, e isso torna-se completamente impossível. O que eu procuro entender é a unidade, aquela obra que está ali vale por si, tem uma expressão técnica e pode ter uma figuração ou pode não ter uma figuração, e tento compreendê-la no seu conjunto. E nunca separo conteúdo e forma, é um princípio básico que eu tenho.» (Cristina Azevedo Tavares, crítica de artes plásticas no Jornal de Letras) «Eu tento analisar a obra na sua globalidade. Se houve sinais de que a obra serve sobre o ponto de vista do discurso ideológico, discurso filosófico, discurso social, tenho que analisar todos esses aspectos da obra. E depois tenho que tentar ver em que medida esses aspectos, em que esses elementos estão bem realizados, estão bem executados. E é todo esse jogo de elementos que vai permitir que eu próprio faça a análise do que nele está, do que me parece a mim, correcto, me parece funcionar, porque muitas vezes as coisas só voam quando não funcionam, e aí tem que se dar uma volta.» (Carlos Porto, crítico de teatro no Jornal de Letras) «Eu considero que a forma e o conteúdo se devem corresponder. É amputar uma obra, olhar para ela só pela forma ou só pelo conteúdo. É esse conjunto formaconteúdo que forma a obra de arte, e portanto o ideal é quando a forma e o conteúdo têm uma correspondência muito forte a grande nível de qualidade, então estamos perante normalmente os grandes acontecimentos artísticos. Era capaz de dizer bem de uma obra que do ponto de vista estético acha-se que estava muito bem conseguida mas cujo seu conteúdo ideológico não lhe agradasse? Ah! Isso já se verificou muitas vezes comigo. Eu posso e devo dizer precisamente isso, que me agrada espantosamente 286

todo o lado teatral, todo o ponto de vista estético do espectáculo, espantosamente bem feito. E depois, pelo contrário, atenção que isto é perigoso, não vamos ficar só pelos olhos, a ideia que veicula, com a qual eu estou em desacordo por isto e isto e isto. Tem é que se ser muito claro e depois as outras pessoas podem ou não concordar. Evidentemente, se eu for ver um espectáculo espantosamente bem feito, bem iluminado, bem dançado, bem contado, que no fundo faça a apologia da prostituição ou do racismo, eu não posso nem devo ficar só a olhar para o lado estético e pode ser realmente encantador. E então o que veicula? Que valores estão por trás a veicular? É muito bonito e que infelicidade estar ao serviço de coisa tão negativa, como é o racismo, a prostituição ou a droga.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de Notícias) «... é necessário ter em conta todos esses factores estéticos e a ideia, estão intimamente ligados. É uma ideia de que o realizador partiu e que a função do crítico será avaliar e ajuizar de forma pessoal o resultado dessa ligação. (...) Se o "background" ideológico não justifica minimamente um certo maneirismo técnico, é um filme mau, isso é nitidamente um risco. Por exemplo, o Noites Bravas, eu acho que tem boas soluções a nível técnico, mas a ideia que está por detrás, quanto a mim, não justifica, não enriquece. Depende de quem o avalia, toca em sensibilidades diferentes. Mas, nesse caso, eu não achei que fosse um resultado coeso em relação à forma e ao seu conteúdo.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras) A indissociabilidade prescrita pelos nossos críticos entre forma e conteúdo chama-nos a atenção para uma questão essencial que os críticos formalistas ignoraram, provavelmente por estarem mais preocupados em restituír sentidos que em atribuír juízos de valor. Essa questão prende-se exactamente com esta última dimensão do trabalho crítico que, se de um ponto de vista formalista poderia basear-se num trabalho de avaliação limitado às componentes propriamente estéticas e formais da obra, na crítica actual, porém, como nos é dado ver nos depoimentos atrás transcritos, esse mesmo trabalho pressupõe a interferência de outros níveis de valor, de valores éticos e político-ideológicos. Com efeito, é difícil ao crítico contemporâneo gerir uma política do significante estético sem recorrer simultaneamente a uma política do seu significado, ou seja, traçar fronteiras entre o valor propriamente estético e o valor ético-político de qualquer obra. Já Mukarovsky notava que o processo de valorização estética de 287

qualquer objecto é sempre refractada pelas normas e valores extra-estéticos (religiosos, políticos, ideológicos, etc) de que é investido esse mesmo bem e que ele incorpora. Na sua perspectiva, o objecto estético, tanto na sua componente temática como na sua componente técnica ou formal, apresenta não só valores e normas estéticas, mas também todo um conjunto de normas e valores extra-estéticos, os quais encontram a sua resolução/concretização no espaço dos agentes que o envolvem: nas suas palavras, «as componentes materiais do artefacto artístico e o modo como são utilizadas enquanto recursos formais, têm o papel de meros condutores de energia representada pelos valores extra-estéticos».162 Neste sentido, será sempre em função da confrontação que se estabelece entre os quadros de referência, ou seja, os sistemas de normas e valores (estéticos e extra-estéticos) partilhados pelos agentes que envolvem o objecto estético, e o sistema de normas e valores (estéticos e extra-estéticos) que nele (objecto) reconhecem, que acontece o processo de valorização estética da obra. Assim, continua o autor, «se nos perguntarmos neste momento onde ficou o valor estético, veremos que se diluiu nos diversos valores extra-estéticos, e não representa mais nada do que a denominação global da integridade dinâmica das relações mútuas de valores.»163 Donde o valor estético atribuído ao objecto não resulte apenas dessa sua dimensão, enquanto concretização de normas e valores especificamente estéticos, como se pressupunha fazer crêr uma crítica formalista, mas é sempre contingente do sistema de normas e valores extra-estéticos que o objecto incorpora por atribuição (e não por essência). Daí que os juízos de valor estético produzidos pela crítica não se fundamentem apenas na dimensão estética que reconhecem à obra, mas também na sua dimensão ético-política e ideológica, como se encontra bem patente nos argumentos dos nossos entrevistados. Ao tomar a atitude de perscrutar o objecto nas suas propriedade endógenas em vez de privilegiar fontes que lhe são exteriores - processo a que Prado Coelho chama de ensimesmamento da obra164 -, as correntes formalistas vieram silenciar o autor enquanto instância legítima na definição do sentido estético da obra que concebeu. Trata-se de um exílio que vem alicerçar a autoridade, o domínio do crítico sobre o objecto que o suscita,

162

Cit. in COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit., p. 389. Idem. 164 Ibidem, p. 347. 163

288

podendo, em última instância, levá-lo a supôr-se ele próprio autor165. «Porque - diz-nos Prado Coelho - exilado o próprio autor, o lugar fica vazio.»166 E, deste modo, expulso o autor da relação privilegiada que mantinha com a obra no que concerne à sua inteligibilidade, mais um largo passo é concretizado no sentido da autonomização, independência e auto-legitimação do espaço da prática crítica como espaço privilegiado de interpretação e de avaliação estética. Mais longe neste processo de autonomização foram, todavia, os críticos adeptos de uma estética da recepção, inaugurada nos alvores da década de 60, os quais, rejeitando de igual modo a figura do autor como garantia de significado, fizeram substituír a obra pelo receptor como nova autoridade na determinação do sentido e da relevância da obra de arte. Isto na medida em que, se por um lado, a ala formalista pressupunha ainda um tipo de crítico que soubesse renegar-se a si próprio enquanto indivíduo e subordinar-se totalmente ao objecto, supostamente assegurando desta forma a objectividade do seu discurso, por outro, a crítica da recepção veio argumentar e reivindicar a interferência do próprio leitor no decorrer do processo crítico, com a sua consequente e inevitável parcela de subjectividade inerente ao seu olhar sobre a obra. Fazendo caír por terra o mito da pureza do olhar crítico, a sua liberdade vai ganhando ao constrangimento provocado pela própria obra. Através da atitude de ensimesmamento da obra, os críticos formalistas mais tardios demarcavam-se quer face à posição filológica convencional, que invocava o autor e a sua intenção prévia como garantia do significado literal da obra, quer em relação aos dispositivos teóricos mais inovadores e heréticos que foram surgindo a partir dos anos 60, os quais vieram pôr o receptor na posição de elemento privilegiado no processo de comunicação estética. A rejeição firme de ambas as possibilidades, considerando o processo de interpretação crítica da obra como independente tanto das suas origens passadas quanto dos seus efeitos presentes, assim como a sua afirmação como objecto totalmente fechado que encerra em si próprio uma verdade perene, um sentido único que lhe é imanente, passível de ser restituído e especificado por recurso à análise das suas propriedades endógenas, aparecem desenhadas com particular nitidez

165 Tal irá acontecer, como verêmos mais à frente, com o modelo de crítica proposto por Roland Barthes, onde é espraiada a diferença, até aqui pressuposta, entre literatura e metaliteratura ou crítica. 166 COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., pp. 163-164.

289

nas posições teóricas assumidas já nos anos 70 por William Winsatt e por Roger Fowler. Nas palavras do primeiro, «agora, interrogamo-nos não acerca das origens, não acerca dos efeitos, mas acerca da obra, tanto quanto ela pode ser considerada por si própria um corpo de significado. Nem as qualidades do espírito do autor nem os efeitos do poema no espírito do leitor deverão ser confundidas com a qualidade moral do significado expresso pelo próprio poema.»167 Na opinião do segundo, «o poema é independente das intenções do autor e das suas experiências, assim como das respostas dos

leitores,

porque

estas

são

variáveis,

irresponsáveis,

indescerníveis,

desmonstravelmente erróneas, etc, enquanto o poema permanece estável. Não podemos situá-lo na mente do autor no momento da criação, por ser inacessível e poder alterarse no acto da transcrição; isto é, esse estado mental pode ser mais um resultado do que a causa do poema. Também não podemos admitir que o poema resida na experiência adquirida pelo leitor individual quando o lê, pois isto aquivaleria a dizer que havia tantos poemas como ocasiões de leitura, quando sabemos perfeitamente que só existe um. Se este não é subjectivo, em nenhuma destas formas, tem de ser objectivo; um objecto com características definidas, independentes das características do poeta e do leitor.»168 Com efeito, já em plena década de 60, a insistência dos formalistas na análise da estrutura morfológica da obra como garantia da coincidência entre verdade e sentido surgia como inadequada e era acusada de ortodoxia. Nessa conjuntura particular, o espaço da crítica académica encontrava-se em profunda ebulição, marcada pelos frequentes, violentos e impiedosos ataques ao positivismo obstinado da tradição filológica, caracterizados pelo questionamento do ideal partilhado naquela tradição de uma interpretação exaustiva e descritiva da obra e/ou da vida do autor na tentativa de nela suprimir qualquer possível ambiguidade e de atingir a sua literalidade. A ruptura em relação ao paradigma filológico, nas suas duas vertentes, como paradigma de referência da prática crítica, verificou-se em torno da discussão sobre os múltiplos processos de abertura da obra, discussão essa que se fez em duas frentes distintas. Uma protagonizada por um grupo de críticos que, na esteira de um Ingarden, vieram reconhecer a pluralidade de leituras de uma obra e a subjectividade inerente à

167

Cit. in BELSEY, A Prática Crítica, op. cit., p. 26. 290

sua actividade, tentando, todavia, encontrar mecanismos que as restrinjam e a neutralizem, continuando ainda marcadamente preocupados com a cientificidade e objectividade do seu trabalho - posição essa que conduz ao florescimento de um novo paradigma de referência para a prática crítica, designado por Prado Coelho como paradigma comunicacional; outra protagonizada por um conjunto de críticos mais radicais que, elegendo como figura de proa do seu movimento o nome de Roland Barthes, vieram afirmar sem rodeios nem remorsos a infinitude de leituras de qualquer texto e a criatividade inerente à sua tarefa - posição que se traduz num outro paradigma que Prado Coelho apelida de paradigma metapsicológico. Vejamos então mais explicitamente o que distingue estes dois paradigmas que emergiram no campo da crítica por altura dos anos 60, como alternativa à tradição filológica. 4.2. A CRÍTICA PARA-SUBJECTIVISTA Na concepção de Eduardo Prado Coelho, o paradigma comunicacional definese, por um lado, pelo facto de privilegiar o receptor como fundamento do juízo crítico entre as várias instâncias intervenientes no processo de comunicação estética e, por outro, pelo facto de expressar pela primeira vez um sintoma de vacilação no que se refere ao ideal de coincidência entre verdade e sentido, entendendo a "verdade" da obra como resultante de um fenómeno de intersubjectividade entre o quadro de referência do receptor e o quadro de referência para que remete a própria obra. O interesse pelo papel do leitor no processo de comunicação estética, nomeadamente na área da literatura, começa a ser efectivamente um fenómeno relevante nos primeiros anos da década de 60. Rejeitando o que consideravam ser a Tirania do Autor ou da própria Obra subjacente aos paradigmas de ordem filológica, uma série de teorias da crítica vieram, nessa altura, reclamar a substituição daqueles elementos pelo leitor como fonte de autoridade no processo de significação da obra, proclamando a importância da participação do receptor no processo de produção de sentido. Se dentro da ideologia filológica tradicional parecia evidente ser o criador individual a origem do significado do seu objecto, isto é, ser o emissor a determinar o sentido da sua mensagem, no paradigma comunicacional esta lógica aparece invertida e contradita: considerando o receptor como principal elemento participante no processo

168

Cit. in COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 352. 291

de significação da obra, o seu sentido é, neste paradigma, apresentado como produto de uma inter-relação estabelecida entre o próprio discurso da obra e os seus receptores. Nesta óptica, o significado passa a ser entendido não como uma essência fixa e imóvel, intemporal e universal, inerente ao objecto ou dependente da intenção de quem o criou, mas sobretudo como acontecimento na consciência do receptor, como resultado de uma circulação entre sociedade, receptor e objecto. No fundo, como realidade (socialmente) construída pelos leitores no processo de apropriação simbólica. Nesta sequência, podemos aperceber-nos de que a obra tende a ser aqui considerada já não como uma realidade totalmente constituída, fechada e una, como um objecto de fruição e de análise passiva, mas como um espaço de convergência de uma multiplicidade de realidades, dependentes do conjunto de disposições e pressuposições que representa o universo de referência do receptor. Conceptualizada deste modo, a obra já não se encontra restrita a uma única leitura, harmoniosa e autoritária, mas adquire a capacidade de aludir a realidades que não se extinguem apenas naquela que representa, a sistemas de valores que não apenas aquele em que ela própria surgiu. Em vez de ser meramente tratada como reflexo expressivo e singular da experiência subjectiva do criador no mundo em que vive (experiência essa reduzida a uma ideologia homogénea e coerente, e integrada numa época tida como uma unidade sem falhas), a obra aqui surge como realidade susceptível de ser multiplicada, tendendo a ser assumido o seu carácter polissémico e identificar-se a sua pluralidade significativa. Quer isto dizer que na concepção das teorias críticas inscritas no paradigma comunicacional, qualquer objecto estético vai ser passível de possuír vários níveis de significação, sendo, como tal, susceptível de produzir múltiplos efeitos de sentido e de suscitar uma série de possibilicades de leitura, encontrando-se sempre aberto a determinado número de interpretações. Distingue-se assim o sentido literal da obra, símbolo da pretensão e arrogância positivista do projecto filológico, dos seus sentidos estéticos, os quais, por sua vez, se desdobram em sentidos históricos, ou seja, que dependem dos valores e normas social e culturalmente institucionalizadas em determinado periodo histórico, e em sentidos morais, estes dependentes do próprio quadro de referência, em termos de disposições intelectuais e estéticas, partilhado pelo receptor. Temos então a obra-em-si-mesma a começar a abrir fissuras, a desdobrar-se, a deslocar-se no sentido da sua abertura. Nesta perspectiva, a asserção do papel do leitor no processo de produção de sentido(s) sobre a obra trouxe consigo consequências profundas ao nível do ideal de 292

coincidência entre verdade e sentido postulado no paradigma filológico: se o significado já não reside na intenção do autor nem no objecto-em-si-mesmo mas fora dele, no seu receptor, sendo liberto no processo de fruição estética por este accionado, não fará sentido, a priori, afirmar a existência de uma "verdade" literal, única e universal, intrínseca à própria obra, passível de ser encontrada na sua forma ou no seu contexto de fabricação. Deixa-se então de acreditar aqui no valor da "verdade" enquanto sentido susceptível de ser fixado e imobilizado como único e perene, passando a "verdade" a ser entendida como fenómeno de intersubjectividade, ou seja, como produto da relação entre a própria obra e o seu leitor, relação essa sempre mediada por um horizonte de normas e valores éticos e estéticos. E se o sentido é produzido pelo próprio leitor na relação que se estabelece entre o seu quadro de referência e a obra-em-si-mesma, não podendo nunca haver, em última instância, processo de interpretação e avaliação estética que não implique um momento de subjectividade, deixa de fazer sentido a classificação dos resultados do trabalho crítico em termos de "verdadeiro" e "falso". Isto é, assumindo que qualquer processo de interpretação empreendido não poderá nunca esgotar a potencial pluralidade da significação do objecto, mas apenas isolar aspectos do seu significado que são inteligíveis e válidos para determinados receptores em determinado contexto (espaciotemporal e/ou socio-cultural), a prática crítica de ethos comunicacional deixa de operacionalizar critérios de verdade-falsidade no processo de conhecimento que desenvolve sobre a obra, passando a pôr o seu enfase na adequação ou inadequação das várias possibilidades de leitura do texto por relação a determinados "critérios culturais" de referência. É neste sentido que Umberto Eco nos diz que o crítico: «sabe que com o variar do periodo histórico, ou do público, também a fisionomia da obra de arte poderá mudar, adquirindo o objecto um novo sentido. Mas o seu dever é, também, o de assumir para si uma responsabilidade: comparar ao periodo histórico, ao âmbito cultural em que trabalha, o fenómeno obra de arte, decidir conferir-lhe um certo sentido, para elaborar, com base nele, as suas definições, as suas verificações, as suas análises, as aus reconstruções. (...) O crítico (...) deve assumir para si uma tarefa: partindo de uma noção o mais articulada possível do periodo histórico em que vive, procurar definir a função do produto em referência aos valores que assumiu como parâmetro.»169

169

ECO, Apocalípticos e Integrados, op. cit., pp. 201-202 (os itálicos são nossos). 293

Podemos, pois, nesta óptica, observar a crescente descoincidência entre verdade e sentido que acontece no âmbito do paradigma comunicacional: se na concepção do paradigma filológico, a crítica equivaleria a um trabalho de restituição de sentido, aqui começa a ser entendida com um trabalho de atribuição de sentido, ocupando-se da gama de leituras possíveis sobre um dado objecto estético; onde os primeiros procuravam o reencontro entre verdade e sentido, os segundos pretendem uma construção das verdades dos sentidos (e note-se que já estamos no plural). O sentido começa então a descolar da verdade. Momento de vacilação, sem dúvida, ainda que a objectividade continue a ser uma preocupação constante. A asserção do papel do leitor no processo de comunicação estética torna-se assim num ponto de viragem paradigmática fundamental no campo da crítica, envolvendo, como aponta Prado Coelho, um duplo movimento de rotação da obra, quer no sentido da sua alteridade, ou seja, projectando-a na direcção do Outro, dos seus receptores, retirando o seu olhar da dependência do seu emissor ou das suas próprias características formais onde se encontrava agrilhoado; quer, por consequência, no sentido da sua posteridade, desvinculando-a de um passado que a subordinava e estendendo-a na direcção de um futuro que a fractura.170 A obra aparece já não como entidade estagnada, reunindo-se as condições para que subsista activa e prolifere no espaço-do-depois-da-obra. Mas apesar da assumpção da importância do papel do receptor ter fornecido uma base teórica potencialmente inovadora e activadora do desenvolvimento de uma prática crítica radicalmente distinta da que era praticada sob o signo da filologia, tal radicalidade não foi levada totalmente avante pelos críticos de referência comunicacional. Isto porque o interesse demonstrado pela vertente da recepção vai acabar por não ser, neste paradigma, sinónimo de inteira liberdade por parte do crítico na atribuição de sentido a uma obra: evitando compremeter-se demasiado no campo da subjectividade que a sua própria argumentação teórica abre sobre a relação que mantém com a obra de arte, com receio de que a objectividade pretendida dos seus juízos e comentários - aqui ainda entendida como garantia da sua autoridade simbólica e do privilégio que a sua leitura detém sobre as demais - seja posta em causa, os críticos de referência comunicacional foram tentar encontrar mecanismos que assegurassem essa mesma objectividade, contradizendo e combatendo o pressuposto, no fundo por eles

170

COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 293. 294

próprios iniciado, de que a pluralidade de receptores de uma obra implica necessariamente a produção de uma pluralidade ilimitada de sentidos sobre essa mesma obra. O reconhecimento da interferência do receptor no processo de interpretação e avaliação do estético veio, de facto, consciencializar o campo da crítica académica de que a obra de arte só encontra razão de ser, só existe realmente enquanto tal, quando mantém uma relação mais ou menos estável com o, ou melhor, com um determinado público que lhe reconheça esse mesmo estatuto. Com o desenvolvimento do paradigma comunicacional começa-se a admitir finalmente a ideia de que a obra somente se realiza totalmente como arte através da sua recepção pública, só se concretiza efectivamente como tal através da intervenção do seu receptor: tal como refere Prado Coelho, «a obra está dependente do crítico na medida em que só neste se realiza plenamente - só nele atinge o seu verdadeiro destino: dir-se-ia que ainda não há obra de arte antes que se realize a transferência do pensamento criador para o pensamento leitor. O poema espera pelo seu crítico. Se o crítico não surge, o poema fica suspenso. E, por outro lado, o crítico fica com a obra criticada à sua mercê. Ela entrega-se-lhe em absoluto. Passa a existir nele.»171 Note-se, no entanto, que nem todo aquele que se apropria simbolicamente da obra passou a ser indiferentemente considerado, no âmbito deste paradigma, como um "verdadeiro" receptor, como um leitor suficientemente competente e atento para que a sua acção crítica se revele credível no processo de interpretação e avaliação estética. É na sequência desta convicção, demonstrativa da vontade de afirmação e de preservação do monopólio de autoridade conquistado até aí pelo campo da crítica na produção de apreciações e de significações estéticas legítimas, que se começa a realizar, em termos analíticos, a discussão em torno do(s) estatuto(s) de leitor/receptor, a partir da qual é sugerida a distinção entre leitor empírico, aquele que frui prazerosamente as obras de arte, e um suposto leitor ideal, segundo Didier Coste e Dámaso Alonso, leitor competente, segundo Michel Riffaterre, leitor bem preparado, de Norton Frye, leitor subentendido, de Iser, ou aquele que reúne as condições para cumprir a funçãodestinatário, segundo Francesco Orlando, conceitos estes que vão encontrar a sua concretização empírica na figura do crítico, presumindo-se e argumentando-se que esta personagem personifica o mais aproximadamente possível o "verdadeiro" leitor que o

171

Idem, p. 468. 295

texto literário solicita no decorrer da sua leitura, na medida em que junto dela as qualidades e qualificações exigidas para assumir credivelmente o estatuto de leitor aparecem superlativadas. Na base da separação entre a primeira figura desenhada e as segundas encontrase, efectivamente, o pressuposto de que a recepção efectuada por estas últimas, personificadas na pessoa do crítico, aparecerá «defendida por mecanismos que a pretendem preservar dos vícios e fragilidades das demais leituras empíricas.»172 O que equivale a dizer que as leituras concretizadas pelo crítico apresentar-se-ão, à partida, asseguradas por determinados mecanismos que, quando operacionalizados, as protegem do risco de uma sempre potencial contaminação pela subjectividade daquele, proporcionando a redução do conteúdo subjectivo das suas reacções à obra, despersonalizando-as e garantindo, na medida do possível, a objectividade, a isenção e o rigôr das suas apreciações e interpretações estéticas. Tais mecanismos referem-se, no seu essencial, às categorias cognitivas que informam a prática crítica na abordagem da obra, categorias essas que, segundo os críticos de referência comunicacional, na medida em que são conceptualmente construídas na base de uma lógica de inteligibilidade e racionalidade científica, em contraponto a uma lógica de adesão emocional meramente táctil e reactiva, se encontram em ruptura com as utilizadas pelo receptor "comum" no exercício da fruição estética. Com a operacionalização da linguagem dos conceitos, que aqui supostamente materializa o ideal de coincidência entre significante e significado ao nível do metadiscurso, pretende-se então simultaneamente controlar a margem de liberdade do receptor, neste caso do crítico, no processo de atribuição de significados que acciona no exercício da sua prática, assim como penetrar objectivamente na teia metafórica que constitui obra e neutralizar o risco da contaminação subjectiva sobre o discurso crítico. O conceito torna-se assim na última garantia de estabilidade e da ainda desejada objectividade do processo de interpretação e de significação empreendido pela crítica, criando a ilusão de fechar a obra na tentativa, derradeira e desesperada, de amarrá-la ainda a um eixo de verdade. E, deste modo, na medida em que é sempre mediado por uma parafernália de instrumentos conceptuais que supostamente o objectivam, protegendo-o contra os efeitos da reacção impressionística perante a obra que constantemente o atentam, o

172

Ibidem, p. 162. 296

olhar do crítico demarca-se qualitativa e assimetricamente na série dos restantes olhares "comuns" sobre o objecto de arte. Por via da sua formação teórica e metodológica, que o vem qualificar e prevenir contra a indesejável errância de sentido, assume-se como o detentor privilegiado dos instrumentos e das categorias legítimas de apropriação simbólica da obra, afirmando a soberania das suas apreciações, avaliações e interpretações estéticas sobre os restantes protagonistas presentes no universo das artes e letras. Fazendo do receptor a nova figura de autoridade no processo de significação do objecto estético, cuida-se assim de fundamentar e continuar a impôr o privilégio da leitura do crítico sobre as dos demais receptores empíricos, fazendo perpetuar sem riscos o poder da crítica sobre o prazer da fruição. Com efeito, informada pela noção de competência crítica - enquanto conhecimento do sistema de regras teóricas e metodológicas que informam a prática crítica no sentido de objectivar os seus resultados -, constroi-se e legitima-se teoricamente, com a caução do poder intelectual que é conferido por via da sua inserção e discussão no âmbito académico, a clivagem existente entre crítico e receptor cultural "comum", clivagem, de resto, já historicamente institucionalizada na prática, pois, tal como refere Richard Ohmann, e como já ficou para trás demonstrado neste trabalho, «from the seventeenth century on, the reader assumed a position like that of a consumer, and some readers were able to claim authority as judges. The very idea of judgement implies a division into groups of people: those qualified by taste, sensibility or cultivation (later by formal training) to judged, and those disqualified by youth, ignorance, barbarism or dullness.»173 A necessidade de reconhecer e de legitimar teoricamente essa clivagem no âmbito do paradigma comunicacional surgiu em virtude dos próprios pressupostos de que as teorias a este vinculadas partem para o desenvolvimento da actividade crítica. O postulado da participação do receptor no processo de construção do sentido da obra, do qual resulta o entendimento desta como realidade susceptível de assumir um estatuto polissémico na medida em que a sua "verdade" é construída na base de um fenómeno de intersubjectividade

entre

sujeito/objecto,

tornava-se

efectivamente

bastante

incomodativa em relação ao estatuto privilegiado da crítica em termos de dominação simbólica do estético, comprometendo a legitimidade da sua acção face à leitura

173

OHMANN, "The Social Relations of Criticism", in HERNARDI, What is Criticism, op. cit., p. 190. 297

efectuada pelo receptor "comum", legitimidade essa anteriormente fundamentada no ideal de coincidência entre verdade e sentido pressuposto no discurso crítico.174 Assim, ainda que o impressionismo fosse tolerado no interior do paradigma comunicacional, chegando a ser considerado como imprescindível na medida em que «só ele dá a sensação de energia e da beleza das obras», seria necessário que a sua acção fosse, ao mesmo tempo, constantemente policiada, vigiada, sendo a sua influência no comentário crítico combatida e/ou legalizada de certa forma: nas palavras de Prado Coelho, «saibamos, retendo-o, distingui-lo, avaliá-lo, controlá-lo, limitá-lo; eis as quatro condições do seu emprego. Tomemos todas as "precauções" para que sentir se torne apenas um meio legítimo de saber.»175 Em sintonia com este autor, está também o crítico literário e teórico da literatura D.H.Rawlinson, para quem «an inexperienced reader, when first asked to say what he thinks of a poem, will, if he has read it cursorily, usually fall into mere assertion - I like this, this appeals to me, and so on. But we haven't really read a poem until we know what we like about it more fully than this. Reflecting on a poem, deciding just where we stand in relation to it, and finding the right language to express ourselves about it, are essencial parts of reading the poem.»176 Ora, o que temos em ambas as posições é justamente a distinção qualitativa entre os actos de sentir-gostar e os actos de saber-reflectir, distinção essa que, introduzindo a noção da existência de diferentes níveis de abordagem de qualquer obra, funda a credibilidade e autoridade da recepção do crítico sobre a do receptor cultural "comum". Também convicto de que a abordagem da obra de arte por parte do crítico é de qualidade diferente da utilizada pelo receptor cultural comum, Melo e Castro, ele próprio poeta, teórico e crítico literário, propos-se decompôr e hierarquizar esquematicamente o que para ele constituem os "vários níveis de abordagem da obra".

174

A posição teórica de Ingarden é um dos exemplos mais flagrantes deste tipo de posicionamento perante a crítica: depois de afirmar que o sentido da obra apenas se manifesta e concretiza no leitor durante o acto de leitura, vê o risco do subjectivismo e recua. Procura então recuperar o que entende ser o "terreno perdido" da crítica recorrendo ao princípio da idealidade do conceito. A partir daqui, começa por distinguir entre as concretizações da obra e as suas vivências de apreensão, das quais as primeiras partem mas não se reduzindo a elas. Depois vai considerar a existência de concretizações adequadas e de concretizações inadequadas, aquelas que em vez de revelarem a "essência" da obra, o seu "núcleo duro" de significação, a ocultam ou desfiguram de tal modo que a obra apresentada após o processo de interpretação passa a ser outra. E aqui entra, finalmente, o papel do crítico que, com a introdução da sua parafernália de instrumentos conceptuais, vai funcionar como máquina reguladora da formação de concretizações adequadas. Para um bom resumo da posição de Ingarden perante a crítica, ver "Ingarden: o apelo da indeterminação e o medo do subjectivismo", in COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., pp. 395-407. 175 Idem, p. 279 (os itálicos são nossos). 176 RAWLINSON, The Practice of Criticism, Cambridge University Press, 1968, p. 4. 298

Na sua opinião: «se esta adesão emocional é a base justificativa do exercício da actividade crítica, ou seja, da aplicação de um raciocínio organizado à obra de arte que nos impressionou, a crítica, por seu lado, não pode limitar-se a registar essa adesão emocional entregando-se a justificações apologéticas de carácter primário. De facto, após o tempo de escolha emocional, há que fazer um raciocínio de carácter metodológico. (...) Mas para que isto seja possível é necessário que o crítico após a sua adesão emocional coloque a sua própria subjectividade entre parêntesis e se dedique ao estudo rigoroso do objecto que tão fortemente o impressionou, servindo-se tanto quanto possível de métodos e ferramentas não baseadas na sua própria subjectividade (quer dizer independentes da percepção do indivíduo). A esta operação poderemos chamar "redução crítica experimental".»177 A partir destas premissas, elabora o seguinte esquema composto pelo que considera serem os diversos "graus de abordagem da obra": a) simples leitura emocional reactiva (de rejeição ou de adesão); b) elaboração de um discurso impressionista explanando essa reacção e a sua justificação (dogmática ou inquisitiva) colocando (ou não) o problema do valor, mas numa base subjectiva; c) abordagem analítica da obra por meios exteriores não específicos e não literários (história, mitologia, biografia, estética,

sociologia,

ideologia,

economia,

psicologia,

psicanálise,

estatística,

informática, dialéctica, marxismo, estruturalismo, cibernética, etc); d) análises por meios específicos ligados à língua ou à linguagem: gramática (fonética, morfologia, sintaxe), semântica, linguística, fonologia, estilística, gráfica, semiologia; e) pesquisa e caracterização da especificidade literária, baseada numa fundamentação teórica com apelo à teoria da Literatura e à Poética. Os níveis a) e b) correspondem, no seu entender, à fase pré-crítica; os níveis c) e d) à fase crítica; e finalmente o nível e) corresponde à fase meta-crítica. Efectivamente, como aliás já tivémos oportunidade de referir, o facto dos críticos se reconhecerem e de serem socialmente reconhecidos como possuídores do capital estético academicamente institucionalizado, sob a forma de instrumentos conceptuais que detêm uma base supostamente científica ou para-científica, vem fundamentar o princípio segundo o qual a apropriação simbólica que realizam do objecto estético é pautada pela operacionalização de uma lógica de inteligibilidade e

177

CASTRO, Essa Crítica Louca, Lisboa, Moraes Editores, 1981, pp.13-16 (os itálicos são nossos). 299

racionalidade estética que lhes permite romper com o discurso de senso-comum e ultrapassar e "mero" acto de gostar e/ou sentir, chegando ao acto de reflectir e/ou saber. A experiência ou fruição estética desenvolvida pelo receptor "comum", por sua vez, na medida em que, a priori, não é informada por essas competências específicas formais, tenderá a ficar subordinada a uma lógica de adesão e apreensão estética de ordem emocional e meramente táctil, baseada em critérios subjectivos de gosto pessoal, pelo que todas a apreciações, avaliações e interpretações que dela resultantes tenderão a ser assumidas no campo da crítica como impressionistas, falaciosas, superficiais e, como tal, destituídas de credibilidade e autoridade estética legítima. A dualidade assimétrica das lógicas que informam a apropriação simbólica da obra de arte por parte do crítico e do leitor ou consumidor cultural "comum", consubstancializada na distinção operada entre os actos de sentir- gostar, associados a objectivos de ludicidade e de procura de prazer táctil na fruição estética, e os actos de saber-reflectir, estes mais associados a motivações de ordem cognitiva, encontra-se bem patente nos testemunhos recolhidos junto dos nossos críticos entrevistados quando estes nos falam do modo como estruturam a relação que têm com as obras que criticam, assim como supõem que o receptor cultural "comum" estrutura essa mesma relação: «O que é que busca na obra a que se propõe criticar? Não sei o que é que busco. Não busco certamente prazer, no sentido em que se fala muitas vezes de prazer de ler, etc. Pelo contrário, até me provoca alguma irritação uma certa ideologia hedonista da literatura, da arte, da crítica, etc. O que eu procuro é que a obra me faça reflectir, me obrigue a um exercício de interpretação, de decifração, de projecção de conteúdos, de saberes sobre ela, que está para além daquilo que ela possa imediatamente fornecer, isto é, há aí um valor de opacidade da obra que eu acho muito importante. Procuro muito mais... Não sei muito bem o que a palavra significa, mas em relação à arte fala-se muito em sensibilidade, emoção, essas coisas todas. Mais do que isso, eu procuro uma certa inteligência. Essa suposta qualidade da emoção, de sensibilidade, sem a inteligência, parece-me a mim, nem sei se existe sem inteligência, mas supondo que existe, não significa grande coisa nem me provoca grande atracção. E na sua opinião, existe alguma diferença qualitativa na relação que se estabelece entre o crítico e a obra e a relação que se estabelece entre o "leitor comum" e essa mesma obra? Sim. Uma obra tem vários níveis de leitura. Se nós lermos sem estarmos obrigados a escrever sobre aquilo, podemos fazer uma leitura despreocupada, e não 300

estamos obrigados a uma atenção e a uma concentração que nos obriga o facto de sabermos que vamos escrever sobre ela. E isso tem determinações ao nível da leitura. (...) Isso é muito comum, não é só próprio do crítico, só que o crítico tem que estar mais alerta em relação a isso. O trabalho universitário, por exemplo, é feito com base precisamente nesse tipo de relação: aquilo de que se gosta verdadeiramente não é da obra, é do nosso próprio trabalho que é feito sobre a obra. Aliás, o gostar da obra, do ponto de vista universitário, é entendido como um excedente, qualquer coisa que até vem perturbar o trabalho. O gostar ali não está em causa, o que está em causa é o gostar do nosso próprio gostar. É uma espécie de desejo melancólico, que já não se exerce sobre um objecto mas sobre o amor em si.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «É complicado porque eu não sei que tipo de relação o leitor comum irá estabelecer depois com aquela obra. Agora, é sempre muito diferente, eu tenho uma relação diferente com os livros sobre os quais eu vou escrever e os livros sobre os quais eu não vou escrever. Os livros sobre os quais vou escrever são livros que eu leio duas vezes, são livros que eu anoto, mesmo que não me interesse nada aquilo que estou a anotar, são livros a que eu procuro estar atenta, ver mais coisas. Os livros que leio por prazer, esqueço-me da maior parte das coisas depois, e se quiser escrever sobre eles, tenho de os voltar a ler. E provavelmente é isso que acontece com o leitor.» (Tereza Coelho, crítica de literatura no Público) «Eu não busco na obra a que me proponho criticar o mesmo que o leitor comum que vai ler essa obra. Esse é que vai buscar qualquer coisa. Eu limito-me a fazer uma trabalho, a executar esse trabalho, e a levar em consideração nesse trabalho um determinado número de linhas de força: se o texto está bem organizado, vejo questões estilísticas, de psicanálise do texto... Vou à ciência do texto, digamos assim, e procuro de uma maneira muito suave, se não entrávamos na tal especialização universitária, que não é aqui o caso, dar uma ideia ao leitor do que é que a obra é. (...) É natural que sim, que haja uma certa diferença qualitativa a favor do crítico, já que ele é um indivíduo, como no meu caso, que anda a ler coisas há trinta anos, isso dá-me um "background" que é difícil o chamado leitor comum ter. Portanto, eu aí posso estar em vantagem em relação a ele. Não quer dizer que ele não emita uma opinião igualmente válida ou eventualmente melhor sobre o mesmo livro, utilizando a sua prerrogativa de 301

leitor. Agora, o que eu acho é que o que eu tenho de recursos, chego a um determinado ponto que aí talvez esteja em vantagem, talvez, admito que posso estar errado, só porque eu tenho um cabedal de leituras que ele não tem.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras) «Sim. É a diferença da responsabilidade. Eu quando vou ver um filme, como não tenho que escrever sobre ele, só vou para fruir. E quando saí do cinema, consoante o impacto que o filme teve sobre mim, eu posso acabar ali, não pensar mais no assunto. No teatro não. Por muito que eu tenha saído desgostada com o que vi, eu vou ter de arranjar mecanismos para, se achar necessário, não ser completamente destrutiva, etc e tal. Há efectivamente uma forma de fruição diferente, para já, e há uma responsabilidade diferente. Eu acabei de ver a obra não posso ir para os copos! Não, não posso! Eu tenho que começar já a raciocinar sobre o assunto, começar a trabalhar intelectualmente sobre o assunto. Como não tenho muito tempo para escrever, tenho de aproveitar todo aquele tempo para andar em silêncio, fazer o que tenho a fazer a pensar. Sou obrigada a pensar sobre, um espectador comum não. (...) Daí que eu dizer que não nos devíamos deixar submergir, a pessoa tem que voltar ao espetáculo, a vê-lo. Acontece-me perder-me no espetáculo, deixar-me ir. Não pode ser! Eu tenho que me deixar ir com o corpo, com a epiderme, e tenho que estar sempre atenta para onde é que me estão a levar. Então em teatro isso é muito possível, pode ser isso tudo ao mesmo tempo, pode ser fascinante, apaixonante. Depois custa mais é a racionalizar. Temos que esquecer o envolvimento emocional, afectivo, as lágrimas ou os risos e começar a racionalizar sobre. É muito engraçado, em teatro é muito engraçado.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso) «Eu vou a um espetáculo como um espectador comum, onde vou divertir-me ou emocionar-me como qualquer espectador, até porque gosto de teatro e penso que o crítico deve de gostar de teatro. Mas, por outro lado, tenho de ter uma outra atitude, a todo o momento do espetáculo tenho que estar a refectir sobre aquilo que estou a ver, sob o ponto de vista não apenas dos sinais que estão a ser transmitidos pelo espetáculo, mas também sobre o ponto de vista estético, ideológico, técnico, sou obrigado a reflectir constantemente durante o espetáculo. Portanto tenho de ter as duas atitudes: por um lado tenho que ter uma atitude disponível do espectador, que reage pela sensibilidade ao espetáculo, mas por outro lado tenho que estar disponível também 302

para fazer a análise correspondente, nas suas várias componentes. (...) eu pessoalmente sou um apaixonado, mas há que controlar um bocadinho. Quer dizer, pode-se ser ao mesmo tempo apaixonado e exercer um certo controle, de maneira a que a paixão não nos cegue. Eu pessoalmente defendo uma relação apaixonada com o objecto, mas tendo em atenção a necessidade de reflectir sobre ele, e a reflexão já implica o controle da paixão. Há que implicar as duas coisas. Pelo menos é o que eu procuro fazer. (...) Tem que ser mais rica a leitura, por estas duas atitudes do crítico como, por um lado, espectador normal e, por outro lado, espectador "anormal". Por isso é evidente que a relação do crítico é mais rica, tem outro tipo de disponibilidade.» (Carlos Porto, crítico de teatro no Jornal de Letras) «Primeiro coloco-me como espectador, portanto o que eu desejo quando vou para um espectáculo é ir mais virgem possível para ser o mais possível agarrado por ele, e sem qualquer preconceito prévio, para me entregar ao espectáculo, fruir o espectáculo, porque sou também um espectador. E depois automaticamente, isto já é quase um automatismo, eu estou também a distanciar-me, porque estou a ter que reflectir no próprio momento do espectáculo. Mas isso não tem regras fixas.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de Notícias) «Ele (o crítico) tem que manter as duas relações. Ele tem que se envolver com a obra emocionalmente, mas também tem que manter a sua racionalidade, porque se ele não se envolver com a obra, ele vai estar a negligenciar um aspecto muito importante de uma obra de arte, que é o seu espírito, que é a sua natureza emocional, a sua natureza afectiva. Agora, se por outro lado ele renunciar à sua racionalidade, ele deixa de ser um crítico, transforma-se num espectador comum. (...) O crítico tem a sua formação específica. Nesse sentido, a relação dele, pelo menos teoricamente, pelo menos desejavelmente, com o seu objecto é mais rica, é mais profunda, é mais intensa. O espectador não tem a preocupação do crítico, por assim dizer, técnica, formal. O espectador muitas vezes é seduzido pela sua emoção, pela emoção que o filme desencadeia ou inspira nele, enquanto que o crítico deve sentir essa emoção mas também deve preservar a sua racionalidade para ver o suporte dessa emoção, para analisar, para reconhecer, para depois definir e apontar o suporte dessa emoção. É como se estivéssemos a esgrimir dois hemisférios do cérebro.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente) 303

«Sim, digamos que o espectador comum tem um olhar mais espontâneo sobre a arte, porque é esporádico. (...) Normalmente, este grupo (os críticos) distingue-se do receptor ocasional, do público ocasional, que é normalmente um público mais ingénuo, que tem uma recepção ingénua da obra de arte, que tem aspectos negativos mas também tem aspectos positivos: os negativos é evidentemente por vezes perder determinados aspectos mais recônditos ou complexos da própria obra de arte, nomeadamente que dizem respeito aos contextos da obra, positivos porque tem um frescura na recepção que por vezes o crítico já não tem. De facto, o crítico tem uma certa tendência para a miupía, para a vista cansada. Os críticos têm uma grande tendência para a vista cansada... Vêem outras coisas, cristalizam outras coisas, são obrigados a conceptualizar frequentemente as suas emoções e essa conceptualização trás, normalmente, como consequência negativa para o crítico aquilo que podemos chamar de "vista cansada", uma miupía progressiva em relação à novidade, às coisas novas que vão aparecendo. O que não acontece com o público ingénuo, porque é um público mais distraído mas com uma vista menos cansada.» (António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente) «Existe, existe diferenças. Primeiro porque o crítico tem responsabilidades profissionais que o espectador comum não tem, é logo a partir daí. O espectador comum funcionará mais ao nível dos factores externos, de impressão. O crítico não é impressionista, o espectador pode dar-se ao luxo de ser impressionista, pode dar-se ao luxo da mera fruição da obra. O crítico não pode ficar ao nível da fruição, o crítico tem que ficar ao nível da fruição e da construção, da construção do discurso. O crítico não existe se não formular um discurso metodologicamente crítico, metodologicamente autónomo, identificável como discurso crítico.» (Carlos Vidal, crítico de artes plásticas na Capital) A

argumentação

associada

aos

dispositivos

teóricos

de

inspiração

comunicacional permite-nos assim vislumbrar claramente dos nexos subtís por onde o poder intervém no espaço da recepção cultural. Tendo em conta o cenário traçado, não será difícil apercebermo-nos de que a clivagem que a partir dela é produzida entre as diferentes lógicas que presidem à abordagem de qualquer objecto estético, da qual resulta a demarcação entre leitor competente, personificado na figura do crítico, e leitor 304

incompetente, associado ao leitor empírico "comum", funciona neste paradigma como estratégia de demarcação, restrição e de dominação do espaço da crítica em relação ao espaço geral da recepção cultural (que, por breves instantes, permaneceu aberto e liberto), representando, no fundo, uma escala de poder hierarquicamente organizada que traduz o modo autoritário como o campo da crítica pretende exercer o domínio privilegiado no que respeita aos actos de apreciar, avaliar e interpretar esteticamente. Trata-se, pois, de mais uma etapa fundamental no processo de usurpação empreendido em termos teóricos, com a caução intelectual da sua inserção académica, do poder simbólico no que respeita às funções de produção de valor e de sentido estético sobre os artefactos criados no universo das artes e letras. Ou, por outras palavras, corresponde a mais uma batalha vencida na luta pela conquista do monopólio da autoridade legítima na produção de modelos de sentido e valor estético que o espaço da crítica tem vindo a reivindicar desde a sua fundação e ao longo da sua consolidação como campo relativamente autónomo. De facto, se num primeiro momento o poder simbólico do olhar do crítico sobre o artefacto cultural repousava na domesticação do que seria o resultado da "natureza criativa" do autor, daquilo que nele flui irracionalmente da sua inspiração e talento e que consubstancializa a sua intenção criativa no momento de fabricação da obra, amarrandoa a um eixo de "verdade" que supostamente só ele saberia recuperar, momento a que se segue o silenciamento desse mesmo autor circunscrevendo essa mesma "verdade" ao espaço da obra-em-si-mesma, diante da qual o crítico se deveria subjugar e assumir uma posição neutral, neste último momento, correspondente à afirmação da participação do receptor na construção da "verdade" da obra, cabe ao crítico expressar o inexprimível da intuição do leitor sobre a obra178, ou seja, racionalizar o que num qualquer receptor empírico "comum" se traduzirá em mera sensação de prazer ou desprazer estético. Assim sendo, depois de desapossado o autor da relação privilegiada que mantinha com a sua criação em termos da inteligibilidade que lhe era dada, no interior do paradigma comunicacional a prática crítica liberta-se não apenas da relação totalizadora de sujeição absoluta às componentes morfológicas da obra que a crítica de orientação formalista preconizava - isto ao entender a sua leitura como fenómeno de intersubjectividade entre receptor e discurso da obra -, como simultaneamente opera um imenso trabalho de depuração no próprio espaço da recepção cultural, postulando que o

305

direito de se pronunciar publicamente acerca de um determinado artefacto estético é apenas concedido e deve ser apenas assumido por aqueles que detêm a autoridade legitima, pelas competências específicas que a legitimam, para o exercer, ou seja, os críticos. Deste modo, descolando-se da referência primordial que mantinha com as instâncias directamente associadas ao pólo da criação cultural (mais concretamente o autor e a sua respectiva obra) enquanto garantias da legitimidade do seu discurso e, ao mesmo tempo, excluíndo por via das competências os ditos receptores culturais "comuns" de qualquer tipo de avaliação e interpretação estética competente, a crítica começa a transformar-se em discurso fechado sobre si próprio, auto-fundamentado-se na sua própria legitimidade como instituição produtora dos códigos e critérios estéticos legítimos e consolidando a sua posição hegemónica enquanto grande "máquina" de fabrico de modelos de sentido face aos pólos da criação e do consumo cultural. É, no limite, um verdadeiro campo, na acepção bourdiana do termo, que se define. No entanto, pelo que nos é dado a observar, o modelo comunicacional da prática crítica apresenta ainda, sob alguns aspectos, características intimamente associadas ao paradigma filológico, apesar de dissimuladas por uma argumentação mais sofisticada e complexa. Se num primeiro momento a sua atitude parecia abrir a obra a todas as possibilidades de sentido empreendidas pelo espaço de recepção, num segundo momento, esforçando-se por não perder o domínio privilegiado que os seus veredictos detêm no âmbito deste, tentam ainda, desesperadamente, desenvolver certos artifícios teóricos no intuito de sustentar o mito da crítica como prática de "re-criação" ou "reedição" discursiva da "criação original", ou seja, como discurso objectivo-em-si-mesmo. Com efeito, os mecanismos (de defesa) que a partir do seu espaço de reflexão e de actuação foram propostos, e que equivalem, como vimos, a esforços teóricos no sentido de não perder o domínio simbólico que a crítica obtinha no espaço judicativo e interpretativo do leitor-receptor cultural, traduzem ainda a tentativa (última) de controlar a crítica no quadro de uma racionalidade que se quer científica, de fazer conciliar a inevitável subjectividade decorrente da participação da recepção no processo crítico-interpretativo com a tão desejada (porque útil em termos de poder simbólico) objectividade pretendida para os seus resultados, conciliação essa supostamente conseguida por recurso à utilização da linguagem conceptual por parte do crítico. Mas

178

Palavras de Dámaso Alonso, cit. in COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 415 (os itálicos 306

como, tal como lucidamente afirma Costa Lima, «nunca haverá tamanha transparência no conceito que ele termine por coincidir com o seu objecto»179, nenhuma crítica poderá arvorar-se como única, última e definitiva. Por mais que se queira combater e controlar a componente subjectiva da acção receptiva na sua relação com a obra, mesmo quando empreendida pelo dito leitor competente, a rede de significados dela decorrentes surgirão sempre incertos, provisórios e incompletos, sendo o fechamento da obra uma mera ilusão pretenciosa. Nesta perspectiva, ainda que o espaço legítimo de possibilidades de atribuição de sentido sobre o objecto estético se veja consideravelmente dilatado no âmbito desta corrente em relação às anteriores, libertando a prática da amarra que a sustinha à descoberta de um sentido-feito-verdade, o campo interpretativo do receptor não aparece ainda aqui assumido como realmente ilimitado, ou seja, ainda não é afirmado convictamente o estatuto estrutural e infinitamente polissémico de qualquer obra, pois, como refere Umberto Eco, «não se pretende afirmar que uma obra contenha tudo o que eventualmente poderia introduzir-se nela.»180 Pretende-se, isso sim, afirmar que na prática é impossível fixar esses limites, pelo que todas as tentativas desenvolvidas no sentido de amarrar o sentido estético a um eixo de verdade não resultam senão em meros simulacros de verdade, em verdadeiros dogmas críticos que se pretendem como padrões que não o são. Daí a assumpção, esta realmente revolucionária no campo da prática crítica em relação à sua tradição filológica enraizada, de que o domínio do sentido do texto nunca será totalizável. Uma análise de sentido é sempre uma tentativa parcial de detecção e de restituição de alguns - entre outros possíveis - níveis de sentido. A sua concretização implica necessariamente a perda, o extravio, a não consideração de algumas das possíveis leituras de sentido. E na impossibilidade de que o todo se diga, todo o dizer deixa sempre um resto que lhe irá escapar, resultante do excedente de sentido em relação à "verdade": porque a "verdade" nunca se diz toda, sendo a língua sempre curta para isso, nas palavras de Prado Coelho, «qualquer definição da essência deixa um resto, e o resto tende a aparecer como essencial. Este será o drama da crítica. Digamos que o resto surge como lugar de resistência onde o texto se ergue contra as redes da razão»181. O que equivale a são nossos). 179 cit. in COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 165. 180 cit. in COELHO, idem, p. 355. 181 COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 432. É esse drama também identificado por Melo e Castro que, no seu dizer, deixa essa crítica louca, op. cit. 307

dizer, no fundo, que é no resto, enquanto lugar da individualidade irredutível, que a Arte reside. Assim sendo, continuando a sustentar o mito da fascinação pela Arte e pelo segredo que ela supostamente encerra, a ideologia do resto torna-se, na concepção do paradigma comunicacional, garantia da permanência e da legitimidade do trabalho crítico. A Nova Crítica Francesa ou "Nouvelle Critique", corrente que prefigura o outro extremo do ponto de viragem paradigmática que aconteceu no campo da crítica durantes as décadas de 60 - 70 (esta em direcção ao que Prado Coelho designa de paradigma metapsicológico), ainda que partilhando de alguns pressupostos básicos do paradigma comunicacional, vai tomar uma atitude bastante mais radical e inovadora que este no que respeita à sua posição teórica e à sua actuação pragmática no domínio da prática crítica, atacando vivamente os dogmas da filologia clássica e a posição conciliadora, ambígua e indecisa da crítica de referência comunicacional. Na opinião de Roland Barthes, figura fundadora desta nova corrente e responsável pela definição dos seus pilares fundamentais: «cada época pode efectivamente julgar que detém o sentido canónico da obra, mas basta alargar um pouco a história para que este sentido singular se transforme em sentido plural e a obra fechada numa obra aberta. (...) A variedade dos sentidos (...) designa não uma tendência da sociedade para o erro, mas uma disposição da obra para a abertura; a obra contém simultaneamente vários sentidos, pela sua estrutura e não por um defeito daqueles que a lêem. É nisto que ela é simbólica: o símbolo não é a imagem, é a própria pluralidade dos sentidos.»182 Como podemos verificar, a obra aparece aqui plenamente afirmada como entidade intrinsecamente plural e polifónica, assim como, por consequência, infinita e indefinidamente receptiva e polissémica, totalmente aberta. Assim sendo, o significado do objecto estético ou de qualquer outro conjunto significante, não pode nunca ser considerado como um fenómeno circunscrito, redutível à descrição que dele possa ser feita ou à compreensão que dele possa ter o observador, mesmo que especializado. As matérias significantes constituem sempre uma múltipla e desmultiplicada rede de significados, pelo que ninguém, nunca, poderá afirmar ter esgotado o seu conteúdo ou fixado a sua forma. Atestada a diversidade de sentidos própria a qualquer obra,

182

BARTHES, Crítica e Verdade, op. cit, pp. 49-50 (os itálicos são nossos). 308

pressupõe-se então a variedade ilimitada das leituras que uma mesma obra pode inspirar. Ora, na impossibilidade de se estabelecer um significado fixo e uno, um sentidofeito-verdade para a obra, a prática crítica fica aqui sujeita à errância infinita de sentido. Crítica e sentido nunca estagnam: enquanto a primeira continuar activa (e produtiva), não se acomodando preguiçosamente a uma suposta literalidade ou essencialidade da obra, o segundo proliferará constantemente, encontrar-se-à sempre em renovação. Daí que, segundo Barthes, não seja possível a constituição de uma crítica enquanto ciência, pelo menos tal como esta era tradicionalmente projectada pela crítica académica convencional: «torna-se possível uma certa ciência da literatura. O seu objecto (se ela vier a existir um dia) não poderá ser o de impôr à obra um sentido, em nome do qual ela se arrogaria o direito de rejeitar os outros sentidos (...): o que a interessará serão as variações de sentido engendradas e, por assim dizer, engendráveis, pelas obras. (...) ela não dará, ou sequer descobrirá, um sentido, mas descreverá de acordo com que lógica os sentidos são gerados, de uma maneira que possa ser aceite pela lógica simbólica dos homens.»183 Na base desta posição teórica está o princípio da arbitrariedade do signo linguístico (e da sua consequente metaforicidade intrínseca) ou, como lhe chama Barthes, o princípio da língua plural: «a linguagem simbólica à qual pertencem as obras literárias (assim como qualquer obra de arte) é, por estrutura, uma língua plural, cujo código se organiza de tal modo que qualquer fala (qualquer obra) por ela gerada possui sentidos múltiplos.»184 Com a assumpção deste princípio, pretende-se fundamentalmente dar conta do fenómeno de polivalência simbólica da linguagem, quer a de intenção estética, quer a do próprio metadiscurso crítico, rejeitando-se, simultaneamente, a ilusão da sua transparência e neutralidade, ou seja, o mito da inseparabilidade entre significado e significante. Assumir a pluralidade simbólica e a natureza instável do signo linguístico equivale a reconhecer que entre aqueles dois elementos não existe um vínculo directo e necessário, sendo a sua relação sempre arbitrária. Deste modo, o objectivo primeiro daquele princípio vai ser o de evitar a Tirania da Lucidez, isto é, «a impressão de que o que se está a dizer tem de ser verdadeiro porque é óbvio, claro e familiar.»185

183

Idem, p. 56 e 61 (os itálicos são nossos). Idem, p. 53 (os itálicos são nossos). 185 BELSEY, A Prática Crítica, op. cit., p.14. 184

309

Com efeito, a linguagem não é nunca transparente e neutra, nem existe uma mais transparente e neutra que outra, como se pretendia fazer crêr tanto no paradigma filológico, como no paradigma comunicacional (aqui com a introdução do princípio da idealidade do conceito). O uso da linguagem aparece sempre associado a um espaço preciso de comunicação (não apenas material mas também social, cultural e histórico), a um modo de vida e de representar a vida. Por isso as mesmas palavras adquirem significados diversos quando integradas, operacionalizadas e lidas em diferentes contextos e situações. O que equivale a dizer que a ideologia, enquanto totalidade dos modos segundo os quais as pessoas vivem e representam para si mesmas as suas relações com as suas condições de existência, está sempre inscrita no discurso, no sentido em que não é um elemento dele separado, que lhe seja independente. Língua e ideologia são noções que sempre se participam mutuamente: a língua participa necessariamente da ideologia na medida em que é o meio da sua construção e condição da sua expressão; é através da língua que a ideologia se tece materialmente e se concretiza. E a ideologia inscreve-se inevitavelmente na língua na medida em que todo o signo é político, a sua conotação não é "natural" mas arbitrária, fruto de uma convenção histórica, social, cultural e ideologicamente situada.

É neste sentido que o

princípio da arbitrariedade do signo, pressuposto pela linguística pós-saussuriana, aponta para o facto da linguagem ser uma questão de convenção, um fenómeno social resultante

de

uma

inteligibilidade

inter-individual

e

histórico-culturalmente

determinada. Quer isto dizer que o significado de qualquer conjunto significante é uma construção social e que o sistema ou matriz de significação aplicado está intimamente ligada ao próprio contexto social de que parte, que o produz e reproduz. Não há, assim, na linguagem nenhum sistema universal que produza univocamente proposições que correspondam a factos, mas tão-somente práticas que pressupõem e efectivam a sua articulação com as circunstâncias, a situação e a acção no âmbito das quais ela é utilizada. Daí que a noção de língua, qualquer que ela seja, entendida como mero instrumento de transmissão de significados que existem independentemente dela própria, isto é, como nomenclatura transparente e neutra, seja para Barthes manifestamente insustentável. Na opinião deste, a ideologia está sempre presente nas práticas de significação quaisquer que elas sejam (discursos, mitos, críticas, etc), está subjacente a todas as apresentações e re(a)presentações do modo como são as "coisas", de como se percepciona a realidade.

310

Levado às últimas consequências, o princípio da arbitrariedade do signo atinge a própria idealidade pressuposta pelos críticos de orientação comunicacional para o conceito, também ele signo linguístico, chamando a atenção para o facto de não existirem conceitos adquiridos, pré-existentes, transparentes e totalmente isentos, mas sim conceitos variáveis e contingentes. Nas palavras de Barthes, «importa insistir bastante no carácter aberto do conceito; não se trata, de forma nenhuma, de uma essência abstracta, purificada; é uma condensação informe, instável, nebulosa, cuja unidade e coerência estão ligadas sobretudo à função.»186 Ora, fazendo aqui um breve parêntesis na explicitação da posição teórica de Barthes em relação à prática crítica, parece-nos oportuno aproveitar esta "deixa" para reflectirmos um pouco mais sobre a função do "conceito" no domínio da crítica. Se tivermos em conta a sua função em termos sociológicos, sem dúvida que grande parte das noções conceptuais que os críticos empregam na definição do valor e do sentido de qualquer obra de arte, funcionam no fundo como "armas" ou instrumentos práticos de combate quer na luta que estabelecem com os agentes exteriores ao seu próprio campo pelo monopólio do poder legítimo de avaliação e interpretação estética, ou seja, reivindicando o direito de serem os únicos juízes ou os juízes privilegiados da produção artística, quer na luta que estabelecem entre si próprios pela imposição da definição dominante de arte, permitindo a definição do seu próprio ponto de vista e a sua demarcação face aos pontos de vista dos seus adversários. Estes instrumentos práticos de classificação não apenas estética mas também social, vão sendo mais ou menos sábia e progressivamente transfigurados em categorias conceptuais e/ou técnicas por via das dissecações, dissertações e discussões intermináveis que sobre elas são empreendidas pela crítica académica (seja ela literária, pictórica, musical ou de qualquer outro tipo), trabalhos esses que lhes conferem, graças à amnésia da génese, ou seja "o esquecimento activo que a história produz", um estatuto de perenidade e de plena objectividade.187 Efectivamente, as categorias de classificação, apreciação, avaliação e interpretação das obras de arte permanecem sempre marcadas, mesmo no uso que delas fazem os profissionais deste ramo, por um grau de extrema indeterminação, incerteza e flexibilidade. Na opinião de Bourdieu, isto acontece ne medida em que a sua maior

186

BARTHES, Mitologias, op. cit., p. 219 (os itálicos são nossos). 311

parte, para além de estarem inscritas na língua comum e de serem utilizadas fora da esfera propriamente estética e/ou artística, a utilização que se faz dessas categorias e os sentidos que se lhes conferem dependem bastante dos pontos de vista individuais, histórica e socialmente situados, dos seus utilizadores, muitas vezes perfeitamente irreconciliáveis.188 Quer isto dizer que se os sentidos e valor simbólico atribuídos a determinado conceito estético podem divergir no tempo (temos o exemplo do célebre "conceito" de Beleza), em última instância podem igualmente divergir consoante a posição do crítico no espaço social que lhe é específico. Por outras palavras, críticos que ocupam posições opostas no campo em que se inserem podem dar sentidos e valores totalmente contrários às categorias vulgarmente utilizadas para caracterizar as obras de arte. Se, por exemplo, categorias como "autenticidade", "sinceridade", "espontaneidade", "intensidade", "genialidade" e outras associadas ao "realismo expressivo" da intenção do autor adquirem um sentido e um valor bastante positivo para os críticos filológicos de referência historicista, o mesmo já não acontece com os críticos filológicos de referência formalista, para quem aquelas categorias são despropositadas como fundamento do juízo crítico, substituindo-as por outras como "integridade", "unidade", "maturidade" ou "subtileza", estas relacionadas com as propriedades do próprio texto e não do seu autor.189 Nesta perspectiva, apesar das categorias de apreciação e percepção estéticas subjacentes às diversas formas de classificação artística (géneros, épocas, estilos, etc), muitas vezes divergentes ou até mesmo antagónicas, sejam formuladas em nome de uma pretensão à universalidade, ao juízo absoluto, e apresentadas como transcendentais em relação ao próprio sujeito, por isso puras e objectivas, certo é que elas são indiscutivelmente relativas e arbitrárias, duplamente condicionadas a nível social: associadas a um universo social e cultural situado e datado, ou seja, historicamente condicionadas, a sua utilização em determinada tomada de posição é também marcada pela própria posição social dos seus utilizadores no campo que lhes é específico, é também orientada pelos interesses, estratégias e pelo conjunto de opções estéticas e éticas que constitui o sistema de disposições e pressuposições, ou seja, o habitus associado a essa mesma posição.

187

BOURDIEU, O Poder Simbólico, op. cit., p. 284. Idem, p. 291. 189 BELSEY, A Prática Crítica, op. cit., p. 24. 188

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Assim sendo, embora se possa continuar sempre a discutir a propósito da arte, dos seus valores e dos seus sentidos, certo é também que a comunicação nestas matérias se realiza sempre com um elevado grau de equívoco. Em suma, tal como refere Bourdieu, «se há uma verdade é que a verdade está em jogo nas lutas (...). A ciência nada mais pode fazer senão tentar estabelecer a verdade dessas lutas pela verdade, apreender a lógica objectiva segundo a qual se determinam as coisas em jogo e os campos, as estratégias e as vitórias, produzir representações e instrumentos de pensamento que, com desiguais probabilidades de êxito, aspiram à universalidade, às condições sociais da sua produção e da sua utilização, quer dizer, à estrutura histórica do campo em que se geram e funcionam.»190 Ora, retomando novamente a explicitação da posição de Barthes em relação à prática crítica, podemos notar que com a rejeição da idealidade e da literalidade do conceito e a consequente consideração deste na série de todos os outros signos linguísticos, o que a nova crítica barthesiana reivindica é uma outra forma de crítica capaz de se tonar cúmplice da literatura, seguindo-a até ao extremo no seu intuíto e na sua forma. Nas palavras do autor:

«se a crítica nova tem uma realidade, ela está aí:

não na unidade dos seus métodos, menos ainda no snobismo que, segundo se diz comodamente, a apoia, mas na solidão do acto crítico, agora afirmado, longe dos alibis da ciência ou das instituições, como um acto de escrita plena. (...) Assistimos, indiscutivelmente, a uma transformação da fala discursiva, a mesma que aproxima o crítico do escritor: entramos numa crise geral do comentário (...). Esta crise é, efectivamente, inevitável, a partir do momento em que se descobre - ou redescobre - a natureza simbólica da linguagem ou, se se preferir, a natureza linguística do signo. (...) A crítica não é uma tradução mas uma perífrase. (...) o crítico não pode senão continuar as metáforas da obra, nunca reduzí-las.»191 O discurso crítico, ultrapassando o plano do conceito e passando para o plano da metáfora, é deste modo assumido ele próprio como forma de literatura. Opondo-se clara e radicalmente à tradição proveniente da filologia de, face a determinado objecto estético, apresentar-se e reconhecer-se como gesto neutro e espaço sem qualidades, a nova crítica assume a riqueza da subjectividade do crítico e da sua prática como algo intrínsecamente criativo. Pretendendo continuar a metaforizar o texto criticado, a nova

190

BOURDIEU, O Poder Simbólico, op. cit., pp. 293-294. 313

crítica visa fazer coincidir o sujeito-criador e o sujeito-crítico, proclamando de vez a Morte do Autor como sujeito absoluto na literatura e na arte em geral, ou seja, libertando de uma vez por todas a obra da autoridade de uma presença que lhe precede e que lhe confere significado. Tal objectivo já era preconizado no século XIX por Baudelaire, para quem o dever do crítico seria «o de encontrar para o poema um equivalente que revalize com este em poesia.»192 É no seguimento desta exigência baudelairiana que a nova crítica se afasta definitivamente das posições teóricas assumidas pelos paradigmas que a precedem: enquanto os críticos nestes radicados procuravam ainda penetrar objectivamente na rede de metáforas que constitui a obra de modo a conceptualizá-la na sua lógica interna, o "novo crítico", pelo contrário, pretende participar activamente nessa teia metafórica, prolongando no seu próprio discurso a metaforicidade do texto original. Ou seja, onde uns procuram estancar o jogo da metáfora, os outros pretendem continuá-lo. Nesta sequência, enquanto o paradigma comunicacional tenta interromper, no incessante vaivem estabelecido entre obra e metadiscurso, toda a hipótese de continuidade entre experiência estética e prática crítica, a nova crítica barthesiana vem, pelo contrário, proclamar a continuação da criação literária por parte da crítica. Donde, enquanto no paradigma comunicacional a arte residia no resto que resiste ao trabalho crítico, na nova crítica, ou no paradigma metapsicológico que ela prefigura, a crítica torna-se ela própria arte, e o crítico rival do autor. A questão da criatividade na prática crítica, assim como a assumpção do resultado discursivo desta como produto em competição com a literatura, são noções que, apesar de ainda se encontrarem envoltas numa aura de polémica, nos aparecem actualmente enraizadas em alguns segmentos do campo da crítica. Senão atentemos nos discursos de alguns dos seus protagonistas: para Martin Esslin, crítico literário, «criticism of painting is discourse about painting; literary criticism is discourse about discourse and is thus itself a branch of literature. It cannot be a science, but certainly should be art.»193 Micheal McCanles, igualmente crítico literário, vai estar em sintoni com a opinião do anterior, ao afirmar que a «demarcation between literature and literary criticism becames rather fluid, a boundary that is honored only in the act of 191

BARTHES, Crítica e Verdade, op. cit., p. 46, 48 e 70 (os itálicos são nossos). cit. in COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 468. 193 ESSLIN, "A Search for Subjective True", in HERNADI, What is Criticism, op. cit., p. 210. 192

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breacbing it. The interpretative text thus becames the extension - one out of several possible - of the metaphorical text itself.»194 Também Jean-Marie Dunoyer, crítico de artes plásticas, põe enfase na questão da transmutação da metaliteratura em literatura propriamente dita, ao apontar-nos a sua prática como um trabalho «assez séduisant, qui peut paraître assez vain, de re-création verbale, essai de transposition conçue à la manière des gravures dites d'interpretations qui reproduisent librement une "toile de maître" et offrent du même coup une nouvelle oeuvre originale.»195 Embora não tão peremptórios como os anteriores (lembrêmo-nos das condições em que a crítica é produzida em Portugal...), também grande parte dos nossos críticos entrevistados, deixando para trás os valores da objectividade e da verdade crítica, demonstram partilhar do valor criativo e literário da sua prática e do seu discurso, uns mais do que outros todavia. Todos eles consideram haver (e dever haver) espaço para a sua própria criatividade na crítica, uns associando-o ao esforço literário que empreendem na elaboração e apresentação do seu discurso, na sua performance no sentido de desenvolver um estilo pessoal de escrita e de argumentação que convença o leitor do seu ponto de vista (dimensão que, como iremos vêr mais à frente, é bastante valorizada na crítica pós-barthesiana), outros conotando-o com a originalidade das ideias e das redes de relações significativas que fazem associar à obra que analisam, no sentido de torná-la estética e semanticamente produtiva. A crítica chega à possibilidade de ser tomada como discurso de ficção, como poesia, como prática discursiva de acompanhamento estético paralelo à obra, esta, em última instância, considerada como pretexto para uma imagética discursiva que não se propõe como espelho do referente, mas como projecção sobre o referente. Há, porém, por parte de alguns, simultaneamente, a constatação da existência de um certo "perigo" na abertura infinita do espaço das possibilidade criativas do crítico no exercício da sua prática que deve ser (auto) controlado, perigo esse associado à situação do crítico se deixar levar pelo fascínio da invenção e da sua escrita, de incorrer no discurso pelo discurso, desprendendo-se do referente que esteve na base desse texto, que o justifica, o define e o legitima a priori enquanto crítica, ou seja, a obra. Não é que o estatuto do crítico o condene a ser um eterno voyer ou parasita do lado da criação, um mero intermediário passivo como os tradicionais paradigmas da crítica levavam a supôr.

194

McCANLES, "Criticism is the (Dis)closure of Meaning", idem, p. 275. 315

Pondo-se numa posição que poderemos fazer associar a algumas das premissas invocadas pelos paradigmas de orientação comunicacional, pressupõem sempre uma autonomia relativa da crítica perante o seu referente, uma certa distância face à própria obra sobre a qual discursa, espaço esse livre para as tomadas de posição criativas e subjectivas do crítico. Todavia, de modo a reduzir a sua margem de arbitrariedade, é necessário sim que esse discurso tome sempre como ponto de partida a própria obra, e a respeite na sua imanência e integridade ao longo do percurso analítico e reflexivo que para ela traça, é necessário é que esse discurso não pretenda à partida "ofuscá-la" e remetê-la para segundo plano (ressalvando a situação potencial de, mais tarde ou mais cedo, as matérias criticadas "desaparecerem" enquanto que alguns dos discursos que as circundaram podem continuar a dar motivos de meditação). É nesta óptica que, ainda que reconheçam e defendam a existência de componentes criativas, literárias e subjectivas nos resultados discursivos da sua prática, alguns dos nossos críticos se inibam de os pôr à partida ao mesmo nível da literatura, pressupondo que esta forma de escrita não supõe a existência dessa relação subsidiária que a crítica tem com um referente primeiro - que, note-se, não é compreendida como uma sujeição ou limitação, como uma relação prévia de dominação ou de total dependência, já que esse objecto é ele próprio plural, mas uma relação de intersubjectividade sempre. Para que criatividade não se veja confundida com invenção, e para que os valores da subjectividade e da originalidade se cruzem e se comprometam com o valor do rigor crítico. «Que espaço que reserva para a criatividade na crítica? É preciso alguma precaução em relação a essa criatividade. (...) porque acho que a obra não deve ser pretexto para estar a exercer a minha criatividade. Eu só fico satisfeito quando essa criatividade nunca perde de vista a própria obra, quando é autorizada por ela. Uma criatividade que é pura e simplesmente regulada, condicionada por aquilo que a obra me permite, sem que eu perca qualidades como o rigôr ou um certo valor de adequação. Acredita que a crítica se pode tornar ela própria uma forma de literatura? Se quer que lhe diga, em casos raros... A crítica por definição tem o seu lado de criatividade. Eu não ousaria propriamente assimila-la a uma forma de literatura. Há casos onde de facto isso acontece. Há grandes obras de crítica, obras ensaísticas, que

195

DUNOYER, "Pour une Critique d'Art Dissidente", in Corps Écrits..., op. cit., p. 120. 316

são tão interessantes do ponto de vista artístico como as obras sobre que se exercem. Mas isso só pode ser analisado caso a caso, depende da própria competência e do próprio talento das pessoa que a exercem e não podemos dar uma definição generalizada e dizer que a crítica tout cour é uma espécie literária. Mas sob certas circunstâncias pode tornar-se.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «Em muitos casos sim (pode tornar-se literatura...). Como você não me pode dizer quais são os limites da literatura... Assim como não se pode dizer quais são os limites da arte. Porque não o género crítico? (...) Nunca no acto da crítica, no momento cronológico em que a crítica é lida, e que está a ser lida em relação a um determinado a objecto que foi criado recentemente ou não recentemente mas, enfim, que está à disposição de eventuais fruidores, não é nesse momento que a crítica é objecto literário. Ela sê-lo-á com o passar do tempo, quando o tempo passar por ela e disser "isto ficou como objecto literário". E portanto, nós nunca sabemos. Não é porque o Eduardo Prado Coelho escreve sobre livros de uma determinada maneira, ou porque publica as suas críticas em livros, ou que o Miguel Esteves Cardoso..., que isso é obrigatoriamente literatura. O tempo vai dizer se aquilo é literatura. Só o tempo.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso) «Penso que sim, que alguma crítica é uma forma de escrita e é, portanto, uma forma de literatura. Inevitavelmente. Eventualmente até pode ser uma forma de ficção, até pode-se chegar à dimensão da ficção. Alguma poesia é crítica e alguma crítica é poesia. É o caso das Metamorfoses de Jorge de Sena, por exemplo. Eu penso que não há barreiras e que pode ser literatura. Nalguns casos é literatice.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso) «(o espaço reservado para a criatividade é...) Todo, acho eu, porque necessariamente estou a ser criativo na relação que tenho com o filme. Isto não tem nada a ver com aquela ideia feita de que o crítico é uma espécie de criador ao mesmo nível do cineasta, não é isso, mas de facto inevitavelmente estou a ser criativo, porque não estou a transcrever nada, não estou a ser neutro, estou a reinventar para a escrita a tal relação que ficou com o filme. E isso implica criatividade, implica como todas as formas de criatividade lidar com a informação, recriar a informação, e se possível, isso depende do talento de cada um, conferir-lhe um arranjo final que seja coerente e de 317

algum modo sedutor para quem o lê. (...) Como a relação com o filme pode ter componentes passionais, acho que a crítica também pode ter componentes literárias. E mais uma vez não estou a tentar colocar a crítica em nenhum pedestal, estou apenas a partir do princípio de que a literatura é também a utilização da palavra escrita para além dos seus usos correntes, isto é, não se escreve um livro ou uma crítica como um relatório de contas de uma empresa, não é a mesma coisa. A crítica a um filme também não é a sua sinopse. A esse salto qualitativo eu posso admitir que isso implique componentes de natureza literária, é evidente.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso) «Já é (forma de literatura). Se lermos o Eduardo Lourenço, estamos a ler textos magníficos, textos num estilo luminoso, e simultaneamente de crítica literária. Todos aqueles textos que ele tem de crítica ao neo-realismo, tudo aquilo é luminosíssimo, é quase uma espécie de poesia em prosa. E o Eduardo Prado Coelho nos Diários, aquela maneira de ele pôr as questões do ponto de vista crítico, há ali muita criação, uma espécie de ficção, digamos assim.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras) «Eu suponho reservar muito espaço (à criatividade na crítica). Agora, essa criatividade não deve de maneira nenhuma ofuscar o objecto. O crítico não se pode esquecer de que ele está a ser um intermediário, não é ele o assunto. Com essa ressalva, eu acho que a criatividade tem que ser total, porque a criatividade implica a minha opinião, sensibilidade, intuição, originalidade, conhecimento, e é isso que faz uma crítica boa. (...) Eu acho que sim. Isso não é muito comum, mas há grandes talentos de crítica que se lê as críticas deles como o exercício da arte de bem escrever, de bem pensar, de bem analisar, de bem sentir, tudo isso. Por isso a crítica nesses casos especiais, pode ser lida quase em si, porque a personalidade do crítico é uma personalidade fascinante, porque ele tem um talento estilístico muito grande, nesse caso sim.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente) «No meu caso, a criatividade tem a ver com o prazer que tenho em escrever. Gosto de escrever bem, com cuidado, com os termos devidos, com o chamado "bom português". Isso nunca dispenso. Há um trabalho de "rendas e bordados" que gosto de fazer, nunca tentar impôr teorias ou pontos de vista que podem ser originais mas que 318

não vêm a propósito. (...) Parece que é, há casos em que é uma forma de literatura. À partida, é já uma literatura ensaísta, mas é mais que isso. A literatura está um pouco no sentimento que eu ponho nas coisas.» (Manuel João Gomes, crítico de teatro no Público) «Não literatura, mas um género literário. Eu não sei se pode, é! Por isso, em certa altura, quando eu falava daqueles textos do JL, eram textos de crítica, mas textos que eram literariamente trabalhados ao pormenor mais ínfimo, nas vírgulas, nos pontos. Eram textos que eu não sei se a qualidade literária deles era muito boa, mas onde as frases valiam não pelo seu discorrer literal, mas por elas próprias, valiam como uma coisa global. Não se conseguia separar no texto a forma do conteúdo, e aquele texto da obra. Porque era uma altura em que tanto eu como o Alexandre Melo escrevíamos, por um lado em conjunto a maior parte das vezes, e por outro lado em coincidência com a obra. Não era crítica de tendência, mas era em coincidência com a obra e com os artistas.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) «A criatividade é a descoberta conduzida através da articulação de ideias, descobrir algo de original, algo de inovador. (...) E aí o crítico, como o artista, descobre coisas novas e portanto está a ser inovador. E já estabeleci várias relações que mais ninguém fez em Portugal, que é por exemplo entre certos aspectos da pintura escrita ocidental e o Oriente. (...) Eu estou a trabalhar num plano que quanto a mim é inovador, e em que põe novas maneiras de ver a arte. (...) Pode tornar-se numa forma de literatura. Há críticos que são excelentes escritores. É uma literatura mas uma literatura de investigação, uma literatura de ideias, não é um romance. É como que um ensaio filosófico, só que neste caso será um ensaio que pode até ter conteúdos filosóficos, esteticos, sociológicos, etc, numa relação com a crítica. Sim, pode ser perfeitamente, pelo menos aspira a encontrar uma certa forma literária, um certo estilo para que a influência das ideias seja maior.» (Eurico Gonçalves, crítico de artes plásticas no Diário de Notícias) «A criatividade é a maneira como se escreve. Está-se a criar um texto, esse texto tem que coresponder à obra, não pode ser inventado, não pode ser "violino". A criatividade está só na forma de expressão, porque o que se exprime é o que provém da obra que foi vista.» (Francisco Perestrello, crítico de cinema na Capital) 319

«(a criatividade na crítica...) É o escrever bem. Ou seja, é ver bem e escrever bem. O sonho de todos os críticos, pelo menos o meu, é escrever uma daquelas frases que seja citável. É, como dizia o Jorge Luís Borges, "o lugar comum é a melhor coisa de todas". É aquilo que toda a gente aceitou. Eu já citei várias vezes o Truffaut, e tomara eu, era o meu grande triunfo como crítico, ter alguma vez escrito alguma frase que fosse citável, que daqui a uns anos se dissesse "Como disse o José Navarro...". E isso é a grande criatividade, é ter uma frase tão certeira, tão consensual, tão verdadeira sobre um filme, que tenha ficado. (...) Não (a crítica não é literatura). O caso do Bénard é literatura, passa para o lado da literatura, deixa de ser crítica. E é assumido por ele, não estou a dizer nada que ele não o tenha já dito. Nem me atrevia, é o meu chefe! Precisamente a partir do momento em que a crítica se torna literatura, passa a trabalhar segundo as suas próprias premissas, desprende-se do objecto. (...) Houve uma fase, que me pareceu terrível no exercício da crítica, em que a crítica quisse equivaler aos objectos. Isso em termos de cinema reduziu-se a uma frase que alguém disse que é "escrever com os filmes". Eu acho que a palavra "com" aí é terrível. Não se deve nunca escrever com os filmes, mas deve-se escrever sobre os filmes. Porque se a certa altura se se começa a fazer equivaler a minha prosa com o Schindlers List, ou com um filme do Godard, eu estou-me a pôr um bocado em bicos dos pés e, de facto, de facto - a minha prosa não se pode equivaler. É uma prosa de confronto, porque no fundo o motivo dela foi o filme. Eu não posso pôr-me em pé de igualdade com o filme, para mim é uma questão ética mesmo. O resultado imediato dessa equivalência é que a minha escrita deixou de ter parâmetros, ou seja, eu escrevo o que quero e me apetece sobre um filme, perco a completamente a noção de rigôr porque já não é sobre ele que eu estou a escrever, é a pretexto dele, e eu acho que o rigôr para qualquer trabalho teórico é absolutamente fundamental, entro num subjectivismo aleatório, ou seja, sem o mínimo critério. O único critério que me motiva aquela escrita é o filme. Se eu perco esse critério, corto os laços. E o resultado é que se começou a escrever sobre qualquer outra coisa que não o objecto sobre o qual era suposto escrever-se. Claro que isto gerou uma perversão fantástica! As coisas vão caminhando passo a passo. Se a minha prosa se autofundamenta e tem um valor em si e se fecha sobre si própria, se o meu grau de subjectividade pode ser absoluto, se a minha relação com o objecto é apenas uma relação de vaga motivação, de circunstância, o passo seguinte é eu desprender-me 320

completamente do objecto e quando regressar a ele, perder qualquer ideia de necessidade de me justificar. O resultado é que dá prosas do género, "este filme é uma porcaria", "quem gosta deste filme é parvo e é uma porcaria, porque eu acho que é uma porcaria". Estou-me a referir concretamente a um modelo de crítica que existe em Portugal, que é perfeitamente aleatório. Porque é que se há-de justificar? São os verdadeiros filhos do Roland Barthes que fazem isso, porque o pai Roland Barthes, não era o que ele queria mas foi a maneira como acabaram por o interpretar, ao achar que o texto é para ser desconstruído ao meu belo prazer - o que é engraçado é que ele dizia "Primeiro leiam, e depois desconstruam". Mas houve pessoas que saltaram imediatamente para a desconstrução, sem passar primeiro pela estruturação do texto, neste caso do filme, sem passar primeiro pelo rigôr, passam logo para a desconstrução, numa espécie de auto-fundamentação da sua própria escrita. O passo seguinte é que essa auto-fundamentação torna-se auto-suficiente e quando regresso ao filme, tudo o que eu disser pode ser absolutamente aleatório, porque as pessoas ou confiam no nome que está assinado em baixo ou não. E o único critério de argumentação é a assinatura. Portanto, eu acho que se tem que recuar muito mais atrás e voltar de novo a um diálogo concreto, formal e rigoroso em relação ao filme, ou seja, não imputar modelos ao filme, ver quais são os modelos que o filme sugere, mas no fundo ver se o filme funciona segundo as suas próprias premissas, e não se o meu texto funciona segundo as minhas próprias premissas. Por isso é que é possível gostar de Spielgberg e de Godart. Ambos têm premissas cinematográficas completamente diferentes, e o que é preciso é ver se a obra acabada está de acôrdo com os princípios que a fundamentam e originam. E o meu texto tem que seguir esse percurso, que é o percurso do filme, não é o meu texto que é o próprio percurso a partir de um percurso que o filme lançou.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público) «Eu digo que há espaço para a criatividade, embora ele seja um bocadinho difícil de aceitar. Porque se nós somos demasiado criativos, fazemos como fazia o Diderot, que começava a olhar para o quadro e a contar a históra do passarinho e da menina que estava lá representado. E então acabou a crítica e passou a haver um texto muito bonito do Diderot. Não é esse tipo de criação que pode haver. Eu penso que pode haver uma certa criatividade quando o crítico é capaz em termos de análise, e naturalmente isso são textos grandes, não são textos pequeninos, de encontrar novos conceitos, ou uma nova metodologia para analisar a própria obra de arte. E é capaz de 321

estabelecer uma melhor argumentação para a sua própria fundamentação, é capaz de, ao fim e ao cabo, disciplinar o seu discurso e encontrar uma metodologia para o seu próprio discurso, e conceitos que lhe são inerentes e que lhe permitem dizer, "Bem, esta pessoa que fez foi o tal, e aquela foi outra". Porque realmente há um discurso e há um conjunto de aparelhos operatórios que permitem trabalhar. (...) E depois, evidentemente, eu penso que muitos críticos de arte se sentem um bocadinho escritores quando fazem um texto, que é um texto grande, que implica uma certa análise, uma certa adesão ao artista. E há um gosto que se tem de escrever o texto, e de o texto estar bonito, estar bem escrito, da qualidade de escrita e de desenvolvimento das ideias. Penso que, no fundo, o crítico é também um bocadinho um escritor, quer seja de cinema, ou de música mesmo. Eu estou-me a lembrar de algumas coisas do João Bénard da Costa, que ele escreveu no Independente, são textos literários. Do próprio Eduardo Lourenço, ou do Prado Coelho, são textos de facto com um cuidado literário que têm. E aí penso que há criatividade, obviamente. Aquele texto não é igual a nenhum outro. E aí há certamente criatividade. (...) (mas em relação à crítica como forma de literatura...) Não, isto é, nós temos visto, ao longo deste século, vários críticos de arte verem as suas obras publicadas. Por exemplo, o Bénard da Costa ou o José-Augusto França. É de certo modo uma forma de literatura. Mas é totalmente impensável se nós não a relacionarmos com o objecto artístico, enquanto que o romance não tem que ter essa relação com o objecto artístico. Portanto, a crítica de arte como literatura pode funcionar relativamente. Se a pessoa não conhece a obra, eu penso que o texto não funciona minimamente. Na literatura não há essa objectividade que há na crítica, nem essa depedência. Portanto, parece-me que a crítica de arte como literatura é uma coisa que não funciona assim muito bem.» (Cristina Azevedo Tavares, crítica de artes plásticas no Jornal de Letras) «Como na ciência, a criatividade é a capacidade de gerar o novo a partir dos dados disponíveis. Portanto, se não há uma interpretação de uma obra e alguém a consegue gerar, está a criar. Está a criar, digamos assim, uma imagem enriquecida da própria obra. Portanto, tem que ser criativa, se não, não é nada. (...) (em relação à crítica como forma de literatura...) Não, isso acho que não. Quer dizer, não sei o que é isso da literatura mas... Há é escritas de críticos, como há escritas de cientistas, que têm qualidades literárias surpreendentes. Portanto, penso que a crítica de arte terá ou não terá, tal como a escrita científica, qualidade literária. Pode ser uma crítica baça e 322

cinzenta, mas terá de ser minimamente escorreita, minimamente correcta para conseguir transmitir correctamente as suas ideias. Mas depois há aqueles casos em que esses textos adquirem determinado fulgor literário, mas não têm de ser. Há de facto críticos que são excelentes escritores críticos. Há até excelentes escritores que são maus críticos. Ou seja, cuja crítica do ponto de vista literário é muito interessante, mas depois, do ponto de vista científico, é muito pouco interessante. Quer dizer, é muito interessante literariamente, mas muito desinteressante cientificamente. E também há o contrário: há críticas que são muito interessantes do ponto de vista científico, mas que são completamente arrevazadas do ponto de vista literário. Portanto, penso que não é uma questão essencial para a crítica, a da sua qualidade literária. Claro que se tiver qualidade literária, melhor. Principalmente para o leitor, para o leitor desprevenido, para o leitor não especializado, para o leitor comum, digamos assim.» (António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente) «Creio que não, porque a crítica não é uma forma de arte. A crítica tem parâmetros de objectividade que é a relação com aquele objecto concreto e preciso. É uma função hermenêutica, especulativa, que pode dar a entender ao leitor que aquele objecto vai mais além daquilo que parece. Há toda uma série de funções que a crítica tem como instrumento criativo, mas que está dependente de uma relação com o objecto específico.» (Carlos Vidal, crítico de artes plásticas na Capital) Afirmando a posição primordial da metáfora em relação quer ao discurso da obra, quer ao seu próprio discurso, a nova prática crítica deixa então completamente de parte o objectivo de chegar a um sentido-feito-verdade, para passar a dar-se como exercício de produção literária e, consequentemente, como lugar de desejo, de paixão e criatividade (embora sempre cultivada e teoricamente informada e regulada). A sua tarefa passa a ser não a de procurar a suposta coerência simbólica única da obra, mas a multiplicidade e a diversidade infinita dos seus significados, a sua complexidade e pluralidade intrínseca, tomando a forma de uma deriva: «a deriva acontece sempre que eu não respeito o todo»196. Passa a ser a desconstrução da obra no sentido da sua abertura, libertando algumas das suas potenciais versões de inteligibilidade, com a

196

BARTHES, Mitologias, op. cit., p. 28. 323

finalidade de reconstruir um outro texto, também este sujeito a múltiplas inteligibilidades, infinitamente aberto e relativamente autónomo do primeiro. Neste contexto, se a prática crítica participa necessariamente da pluralidade de significações intrínseca ao texto original, constituindo-se o discurso dela resultante como metáfora da própria obra interpretada, qualquer interpretação dela decorrente será indecidível e, consequentemente, qualquer exigência de cientificidade a ela feita será absurda. Assim liberto dos constrangimentos teóricos de uma leitura única e unívoca, inerentes às exigências de uma crítica de carácter positivista, o crítico barthesiano tem oportunidade de assumir plenamente o seu papel de produtor activo de sentido(s) (em contraposição à passividade associada e exigida ao seu papel convencional), insistindo em encontrar a pluralidade de significações, ainda que sempre parcimoniosa, do texto analisado, e recusando o pseudo-domínio de sentido apresentado como posição óbvia, clara e única da sua inteligibilidade. Deste modo, o sentido estético na nova crítica já não é dado pela análise da "essência" - onde quer que ela se encontre, na "intenção do autor" ou nas propriedades formais da própria obra com que dialóga -, mas criado, produzido discursivamente. Barthes chega mesmo a propôr a substituição do termo "sentido" pelo de "significância", de modo a enfatizar a sua recusa face à ideia da existência de uma significação única intrínseca e ontológica, e a afirmar mais claramente o carácter produzido do sentido. Nas suas palavras, «"significância" é o sentido na medida em que ele é sensualmente produzido.»197 Donde a obra passa a ser entendida como objecto de prazer, aberta a diversos percursos eróticos. Também Iser, notoriamente do lado da nova crítica, vai propor que o horizonte da prática crítica não se vislumbre como um horizonte de sentido, mas sim como um imaginário, «algo de difuso e proteico, instável e informe, arbitrário e não fixo, ao contrário do sentido, que se caracterizava pela precisão.»198 Nesta óptica, a crítica apresenta-se já não como lugar seguro de verdade, sequer como lugar de repouso de sentido (como o era no âmbito do paradigma comunicacional), mas como nómada e vertiginosa deriva sobre a obra, na medida em que empreende não um processo definitivo de reconhecimento, sequer um processo complexado de atribuição de significados, mas um processo infinito de produção de sentido(s), sendo que ela própria transforma e a constroi activamente a "matéria-prima"

197

BARTHES, O Prazer do Texto, Lisboa, Edições 70, 1973/83, p. 109 (os itálicos são nossos). 324

que lhe é dada a conhecer. Daí Barthes considerar o sentido como um ponto de partida e não como um ponto de chegada, consubstancializado numa linguagem última: «o que nos importa é mostrar partidas de sentido, não chegadas. O que fundamenta o texto não é uma estrutura interna, fechada, contabilizável, mas o desembocar do texto noutros textos, noutros códigos, noutros signos: o que faz o texto é o intertextual.»199 Este trabalho de transformação e de produção activa do objecto deve ser, porém, realizado, na opinião do autor, tendo em conta determinadas precauções, ou correrá o risco de cair num subjectivismo ingénuo, ou seja, numa procura individualista, simplista e inocente de sentidos ou, pelo contrário, no objectivismo demagógico, isto é, a convicção de que o que se está a dizer é verdadeiro porque evidente e claro, de que a obra significa o que obviamente significa. «O crítico desdobra os sentidos, faz pairar, acima da primeira linguagem da obra, uma segunda linguagem, isto é, uma coerência de signos. Trata-se, em suma, de uma espécie de anamorfose, estando entendido que, por um lado, a obra nunca se oferece a um puro reflexo (...) e, por outro, que a própria anamorfose é uma transformação vigiada, submetida a coacções ópticas: deverá transformar tudo o que reflecte; transformar apenas segundo certas leis; transformar sempre no mesmo sentido. São estas as três regras da crítica. A crítica não pode dizer "o que quer que seja" (como acusa à nova crítica Raymond Picard, o que verêmos no capítulo seguinte). O que controla o seu adjectivo não é, porém, o medo moral de "delirar"», até "porque os delírios de hoje são talvez as verdades de amanhã (...). Não, se o crítico se dispõe a dizer alguma coisa (e não o que quer que seja), é porque concede à fala (do autor e da sua) uma função significante e, portanto, a anamorfose que imprime à obra (e à qual ninguém tem o poder de subtraír-se) é guiada pelas restrições formais do sentido; não se faz, com o sentido, o que se quer (e se alguém duvida, que experimente): a sanção do crítico não é o sentido da obra, mas o sentido do que dela diz.» Nesta perspectiva, continuando nas palavras do autor, «sabemos, pelo menos, que não é possível falar de qualquer maneira dos símbolos; dispomos pelo menos - mesmo provisoriamente - de certos modelos permitindo explicar segundo que sequência se ordenam as cadeias de

198 199

Cit. in COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 390. Cit. in COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 392 (os itálicos são nossos). 325

símbolos», o que faz com que «a obra, longe de ser lida de modo "delirante", seja penetrada por uma unidade cada vez mais vasta.»200 Os modelos de que Barthes nos fala referem-se aos diversos quadros teóricos disponíveis e em voga no seu tempo, nomeadamente, ao estruturalismo straussiano, à linguística pós-saussuriana, a psicanálise freudiana e lacaniana e à teoria económica e social marxista, formas contemporâneas de conhecimento que privilegia e aplica nas suas análises para produzir sentidos que, muito provavelmente, não seriam acessíveis e reconhecidos pelos autores das obras em causa ou pelos seus respectivos leitores no contexto em que foram criados. O emprego de tais modelos por parte da prática crítica vem no seguimento da preocupação de Barthes em ler e falar das obras ditas "clássicas" de uma forma contemporânea, segundo a linguagem da época em que são lidas, adaptando-as ao tempo presente no sentido de descobrir-lhes, ou melhor, de investirlhes significações que, provavelmente no passado, no contexto da sua fabricação, não fariam qualquer sentido, mas que no fundo lhes estavam subjacentes, que nelas existiam em potência. Estamos, pois, plenamente no espaço do depois-da-obra, espaço esse que a transforma e a fractura sem piedade, sendo a sua abertura cada vez mais inevitável à medida que a obra se projecta no futuro. É neste sentido que Barthes faz a seguinte afirmação: «la nouvelle critique pose, en effect, une question brûlante: l'homme d'aujourd'hui peut-il lire les classiques? (...) Elle se reconnaît le droit de ne pas seulement effleurer l'object de cet amour (la littérature), mais de l'investir. (...) La nouvelle critique a le mérite d'avoir le même language que les créations de notre époque. Un roman actuel a, plus au moins nettement, un arrière - plan marxiste ou psychanalytique. C'est une langue que connaît la nouvelle critique.»201 Daí que a nova crítica apele para que esta actividade não permaneça isolada das restantes áreas de conhecimento humanístico e social que se têm vindo a desenvolver e a consolidar no campo académico, como havia acontecido até ao seu surgimento em nome de uma suposta especificidade da literatura e/ou das artes, na tentativa de tornar a Crítica numa nova ciência que tomaria como objecto de estudo destas em si, com teorias e métodos de análise próprios, completamente independente das restantes ciências humanas. Na concepção de Barthes, este projecto de crítica encontra-se, logo à partida, equivocado, na medida em que: «pretende defender, na obra, um valor

200

BARTHES, Crítica e Verdade, op. cit., pp. 63-64, 66-67 (os itálicos são nossos). 326

absoluto, intocado por algum desses "algures" indignos que são a história ou os baixos da psychê; ela pretende não uma obra constituída mas uma obra pura, à qual se evita todo o compromisso com o mundo, toda a aliança rebaixante com o desejo. O modelo deste estruturalismo pudico é, muito simplesmente, moral. (...) finge-se primeiro acreditar que é possível falar da literatura, torná-la objecto de uma fala; mas toda essa fala logo se esvazia, pois nada há a dizer do seu objecto, senão que é ele próprio. (...) Poder-se-ia ao menos aceitar libertar a crítica - que não é e não pretende ser ciência - de modo a dizer-nos que sentido os homens modernos podem atribuir a obras passadas.»202 Ora, ao incentivar a prática crítica a empregar formas ou modelos contemporâneos de conhecimento, como aqueles que já atrás referimos, Barthes resolve não apenas o problema da "libertação da crítica" no sentido de produzir novos significados sobre as obras ditas "clássicas", como também o problema dos possíveis efeitos perversos decorrentes dessa libertação, dos quais destaca o risco do criticismo cair num subjectivismo desenfreado e ingénuo. Acerca deste problema, as propostas mais cientifistas, como vimos, tendiam a acreditar numa total anulação e neutralização do sujeito e da sua subjectividade na crítica, travando um aceso combate ao impressionismo em nome de uma objectividade positivista. Barthes, por seu turno, repõe este problema em termos bastante diferentes, senão mesmo antagónicos, dos utilizados naquelas propostas, insistindo na importância e na inevitabilidade do paramim na prática crítica, mas de um para-mim que, na medida em que é discursivamente construído, não pode dizer o que quer que seja: «é preciso reivindicar em favor de uma certa subjectividade: a subjectividade do não-sujeito, oposta ao mesmo tempo à subjectividade do sujeito (impressionismo) e à não-subjectividade do sujeito (objectivismo).»203 Esse tipo de subjectividade que Barthes reivindica para a crítica, em detrimento quer do objectivismo quer do impressionismo, resulta do trabalho textual, discursivo, que se interpõe entre a experiência estética e a prática crítica. E precisamente porque esta última implica a produção de um trabalho textual, não estamos nem no domínio da objectividade, impossível de alcançar através da palavra, nem no domínio do vale-tudo, já que, como vimos, o discurso crítico em Barthes apresenta-se sempre como anamorfose, como "transformação vigiada", isto é, como imagem deformada do objecto 201

BARTHES, in Figaro Littéraire, em 14 de Outubro de 1965 (os itálicos são nossos). BARTHES, Crítica e Verdade, op. cit., pp. 37-38 (os itálicos são nossos). 203 BARTHES, Mitologias, op. cit., p. 25. 202

327

em análise, mas sempre deformada sob certo ângulo, sob determinado ponto de vista. E aqui entram, para vigiar o trabalho de produção de sentido activado pelo crítico, os tais modelos contemporâneos de conhecimento. É na escolha destes, ou seja, na sua preferência em termos de ângulo de visão, de sistema de referências, de ponto de vista, de posição ideológica, que surge o momento da subjectividade do sujeito-crítico, que a sua vontade individual se impõe. A partir daí, da aplicação desses modelos às obras em análise, resultam interpretações discursivas e sem sujeito, ou seja, são produzidos significados que são textualmente apresentados e independentes das vontades individuais, preferências ou "génio" de quem os aplicou, já que obrigam o crítico a seguir determinada sequência na ordem simbólica que tenta impôr à obra original. Deste modo, as possibilidades de sentido que a crítica promove não são aleatória e apaixonadamente produzidas, não resultam de "delírios" impressionistas, na medida em que são sempre controladas por determinadas "restrições formais de sentido". Estamos, então, no domínio da subjectividade do não-sujeito, isto é, de uma subjectividade que é construída no momento da entrada do crítico na ordem simbólica que se exige de qualquer trabalho textual, produzida no espaço que existe entre o sujeito-da-leitura e o sujeito-da-escrita ou da enunciação discursiva, subjectividade essa que é da ordem do individual mas não do pessoal: «cada vez que tento "analisar" um texto que me deu prazer, não encontro a minha "subjectividade", mas sim o meu "indivíduo", o dado que constitui o meu corpo separado dos outros corpos e que se apropria do seu sofrimento ou do seu prazer.» E é na medida em que a prática crítica se processa neste domínio específico, que ela se apresenta simultaneamente separada quer da ciência, quer da leitura: «a crítica não é ciência. Esta trata dos sentidos, aquela produlos. Ocupa, como já dissemos, um lugar intermédio entre a ciência e a leitura.»204 Já temos elementos suficientes para entender como e porquê ela aparece, na concepção de Barthes, separada da ciência: para este autor, não se pode exigir do crítico nem que se comporte como um historiador, observando as variações de sentido sobre uma mesma obra ao longo da história e descobrindo as lógicas simbólicas de acordo com as quais esses vários sentidos foram gerados - este papel não é da sua competência -, nem que se assuma como um mero compilator de significados, como um sujeito passivo que nada pode acrescentar a um suposto sentido literal que vive no texto; a sua

204

Idem, pp. 110-111 (os itálicos são nossos). 328

função é construir novas possibilidades de sentido sobre a obra, aqui entendida como realidade simbólica e polifónica, o que implica necessariamente a intervenção individual do crítico sobre essa mesma obra, patente na escolha que faz em temos de ponto de vista a nela aplicar e da nova possibilidade de sentido a nela desenvolver. A crítica distancia-se assim da ciência. Por outro lado, distingue-a também da mera leitura, argumentando a não redução do papel do crítico ao papel de leitor, mesmo que ideal ou competente. «O crítico não pode, de todo, substituir-se ao leitor. É inútil ele pretender - ou pedirem-lhe - que empreste uma voz, por muito respeitosa, à leitura dos outros, que se reduza a ser, ele próprio, um leitor no qual os outros leitores delegam a expressão dos seus próprios sentimentos, devido ao seu saber ou às suas opiniões, numa palavra, que represente os direitos de uma colectividade sobre a obra (como, aliás, se pretendia no paradigma comunicacional). E porquê? Porque mesmo definindo o crítico como um leitor que escreve, a própria definição implica que esse leitor depara, no seu caminho, com um medianeiro temível: a escrita. Ora escrever equivale de certo modo a fracturar o mundo (o livro) e a refazê-lo. (...) Ao passo que não sabemos como um leitor fala a um livro, o crítico é, por seu lado, obrigado a tomar um certo "tom"» (...). «Assim, "tocar" um texto, não com os olhos, mas com a escrita, abre, entre a crítica e a leitura, um abismo (...). Porque, tanto do sentido que a leitura dá à obra como do significado, nada se sabe, talvez porque esse sentido, sendo o desejo, se estabelece para além do código da língua. Só a leitura ama a obra, mantém com ela uma relação de desejo. Ler é desejar a obra, é pretender ser a obra, é recusar dobrar a obra fora de qualquer outra fala que não a própria fala da obra: o único comentário que um leitor puro, que puro se mantivesse, poderia produzir, seria o decalque (...). Passar da leitura à crítica é mudar de desejo, é deixar de desejar a obra para desejar a própria linguagem.»205 Afastado das figuras quer de "cientista", quer de leitor, o crítico vai assumirplenamente em Barthes a figura de commentator, ou seja, personifica alguém que, individualmente, intervém discursivamente sobre o discurso original, tornando-o inteligível sob determinado ponto de vista que é passado à escrita. Temos então o acto de passagem à escrita, com tudo o que ele implica e impõe ao crítico em termos de

205

BARTHES, Crítica e Verdade, op. cit., pp. 74-75, 76-77 (os itálicos são nossos). 329

condicionalismos simbólicos à sua prática, como garantia da distância que separa esse personagem do leitor. Ora, o estabelecimento desta distinção, embora ainda não o fundamente definitivamente, é já "meio caminho andado" no sentido de assegurar o privilégio da leitura do crítico em relação à do leitor, ou seja, de garantir a manutenção do poder que detém sobre a obra, sua apreciação, avaliação e interpretação, poder esse posto em causa com a assumpção da subjectividade do crítico (que, a priori, o manteria ao mesmo nível, embora com tarefas diferentes, do leitor "comum"). No entanto, a distinção entre leitor e comentador, tal como ela é estabelecida, torna-se demasiado frágil para fundamentar a legitimidade privilegiada do discurso do crítico sobre a obra: a escrita, por si só, não é (nem nunca foi) condição de dominação. Aqui o que faz o poder das palavras não são as próprias palavras (como se fazia crer no paradigma filológico e no paradigma comunicacional, pressupondo a existência de uma linguagem transparente, clara, inocente, teoricamente racionalizada e somente dominada pelo crítico), mas fundamentalmente a crença (não só do leitor mas do próprio crítico) na legitimidade de quem as pronuncia e da forma como as pronuncia. Efectivamente, em consequência da diluição do critérios de cientificidade e de objectividade preconizada na posição teórica de Barthes em relação à prática crítica como critérios de validação do seu discurso e, como tal, de fundamentação da assimetria de poder estabelecida na relação entre crítico e leitor, as categorias "verdadeiro/falso" e/ou "adequado/inadequado" deixaram de fazer sentido para classificar e distinguir os julgamentos e interpretações empreendidas pelos críticos e pelos leitores. A partir de Barthes fica bem patente que no domínio da prática crítica nada está definitiva e objectivamente julgado e interpretado, pelo que a questão já não vai ser quais os mecanismos que a crítica deve accionar para que dela resulte uma apreciação estética objectiva, mas antes em que fundamentos o crítico se alicerça para fazer prevalecer a sua leitura e a sua apreciação. Assim sendo, em que é que Barthes e os novos críticos em geral se baseiam para consubstancializar a legitimidade e a validade da sua leitura e da sua apreciação em relação às dos restantes leitores e, deste modo, assegurar a sua condição de dominação, o seu poder simbólico perante aqueles no campo das artes e da literatura? Ainda que a posição do autor quanto a esta questão não seja muito clara, pois nunca se pronuncia sobre ela directamente, existem no seu discurso alguns vestígios que nos podem ajudar a clarificá-la. Nas suas palavras, «toda a objectividade do crítico dependerá, então, não da escolha do código mas do rigôr com que aplicará à obra o modelo que escolheu.» Mais 330

à frente, continua dizendo que «a crítica é, certamente, uma leitura profunda (...) e por aí, de facto, decifra e participa numa interpretação.»206 Eis, portanto, as uma das condições de legitimação e de validação do discurso crítico em Barthes: já não se traduzem em critérios de verdade/falsidade, de adequação/inadequação, definidos tendo em conta a objectividade do discurso, mas sim numa exigência de profundidade e de rigôr analítico na exposição e justificação do seu ponto de vista individual, teoricamente informado por determinado código ou modelo conceptual. Nesta medida, podemos verificar que também este autor recorre à utilização do conceito por parte da prática crítica como estratégia de demarcação face à leitura pretensamente ingénua, superficial e impressionista do leitor que se assume apenas como tal. No entanto, na medida em que o paraleliza a qualquer outro signo linguístico, denunciando o seu teor metafórico e ideológico, confere-lhe um outro estatuto simbólico e valor operativo que não o que lhe era tradicionalmente emprestado. A linguagem da racionalidade teórica poderá não ter, para Barthes, um valor científico, mas tem, certamente, um valor cognitivo, pois ao ser operacionalizada com rigôr por parte do crítico permitir-lhe-á chegar a um conhecimento mais íntimo e alargado da realidade criticada. Por outro lado, os seguidores da nova crítica barthesiana - aproveitando as ideias por esta iniciadas da crítica ser ela própria uma forma de literatura, sendo a acção promovida dentro do seu âmbito qualitativamente distinta da do leitor "comum" (ou do somente leitor) pelo facto de exigir a passagem da recepção à escrita - alargaram os critérios de validação e de legitimação do discurso crítico firmados por Barthes, acrescentando aos valores de profundidade e do rigôr analítico o valor da performatividade. Para estes, o objectivo principal do discurso crítico consiste não em chegar a um suposto "sentido-feito-verdade" mas em satisfazer, convencer e seduzir do seu ponto de vista quem o lê. E só na medida em que este é realmente sedutor é que é aceite a sua validade. Assim sendo, a acção de criticar passa a implicar a apreciação, avaliação e interpretação individualmente conduzida sobre determinada obra, condução essa que passa sempre também pela tentativa de levar o outro a assumir essas apreciações e argumentações que as sustentam como plausíveis, e já não como verdadeiras ou adequadas: tal como refere Prado Coelho, aqui «o que é preciso é proporcionar uma

206

Idem, p. 21 e 69 (os itálicos são nossos). 331

experiência de pensamento em que uma pessoa se sinta bem e suspenda ou reduza por algum tempo a sua necessidade de interpretar mais.»207 Constata-se então aqui a existência constante de um elemento de sedução na crítica, passando esta a constituir um dos empregos mais persuasivos da língua. O seu discurso é plausível ou não é plausível, resulta ou não resulta, é eficaz ou não o é: questão de performance. Para além de um fazer-saber, ou seja, de apresentar uma nova possibilidade de inteligibilidade sobre a obra original, a crítica passa a implicar igualmente um saber-fazer, para que seduza e convença, o que leva, em última instância, à importação das noções de talento e vocação do âmbito da criação estética também para o âmbito da crítica. É, pelo menos, nesta direcção que vão os recentes depoimentos de alguns críticos: no dizer de Martin Esslin, «in the case of criticism what is involved is precisely the talent to talk about an object, a talent which produces an object which is discourse about an object»208, posição também partilhada por Fernando Pinto do Amaral, para quem hoje «o que se pede, nos estudos literários, não releva tanto de qualquer saber previamente adquirido, mas sim de uma performance individual (...) que por isso mesmo apavora os que para ela não têm vocação.»209 Também os nossos entrevistados, como tivémos oportunidade de ver atrás, valorizam bastante, de uma forma geral, as competências linguísticas para o exercício da sua prática, assim como as componentes propriamente literárias no seu discurso: José Navarro de Andrade apresenta-nos uma função da crítica como sendo «não digo a sedução, mas convencer as pessoas de um ponto de vista. A sedução é a forma de enganar as pessoas, é uma palavra horrível, tão horrorosa que até o Piaget a utilizava. Como disse o Fernado Gil, anda toda a gente a seduzir, e é preciso é convencer. De facto, a minha capacidade de argumentação, o meu ponto de vista tem que convencer o leitor a criar uma certa sensibilidade em relação ao filme. É esse o meu trabalho, creio que é isso que ele me pede. É isso que faz com que uma crítica seja uma boa crítica. Argumentar sempre.» Eugénia Vasques vem também afirmar a competência linguística como sendo uma das mais importantes para o exercício eficaz da prática crítica: «Uma competência (do crítico): saber escrever, ser capaz, ser competente linguisticamente. Isto que estou 207

COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 439 (os itálicos são nossos). ESSLIN, "A Search for Subjective True", in HERNADI, What is Criticism, op. cit., p. 211. 209 AMARAL, in "O Céu e a Terra", Ler, nº14, 1991. 208

332

a dizer tem mais a ver com a performance do que com a competence. Mas, apesar de tudo, a nossa performance vai depender da nossa competência. Eu creio que é preciso saber escrever para saber traduzir as ideias que se têm sobre o objecto. É preciso estudar e aprender as matérias sobre as quais se vai produzir discurso, e ser capaz disso, ser competente nesse sentido.» Em sintonia com esta posição está a de Carlos Porto, para quem o crítico «como já disse e insisto, deve saber escrever, deve aperfeiçoar a sua escrita, que é o instrumento que ele tem para exprimir a sua opinião, o seu juízo. Assim como o actor dispõe do corpo, o crítico dispõe da escrita. Como o actor precisa de um corpo capaz de exprimir todos os sentimentos, o crítico precisa de uma escrita que lhe permita exprimir todos os seus pensamentos, todas as suas ideias sobre o espetáculo. Portanto penso que a escrita é importante (...) tem vantagens a crítica ser também uma obra literariamente criativa, penso que há. Se eu vou ler uma crítica que é bem feita sob o ponto de vista da análise e ao mesmo tempo é uma peça literária boa, tenho mais gozo que outra que analisa bem um espetáculo mas num estilo literariamente pobre.» A rotação do móbil da actuação da prática crítica da "verdade" para a "performatividade", e a consequente transformação do discurso dela resultante de discurso científico em discurso persuasivo, aparece-nos claramente explicitada por Stanley Fish, também ele crítico literário e seguidor de Barthes nos seus pressupostos fundamentais. Nas suas palavras: «Critical disputes are not, properly speaking, about facts but about the varying perspectives from which the facts will look now one way, now another; and therefore the business of criticism is not so much to demonstrate in accordance with the facts as it is to persuade to a point of view within which the facts one cites will seem indiputable. Indeed this is the whole of critical activity (...). (...) a model derived from an analogy to the procedures of logic and scientific inquiry, (...) basically it is a model of demonstration in which interpretations are either confirmed or disconfirmed by facts that are independently specified. The model I have been arguing for, on the other hand, is a model of persuasion in which the facts that one cites are available only because an interpretation (at least in its general and broad outlines) has already been assumed.»210.

210

FICH, "Demonstration vs. Persuasation: Two Models of Critical Activity", in HERNADI, What is Criticism, op. cit., p. 32. 333

No fundo, o que se encontra aqui subjacente é a ideia de que as explicações estéticas fornecidas pela crítica nunca serão convertíveis numa explicação causal e científica, nunca serão passíveis de serem asseguradas segundo uma lógica de demonstração. Isto porque há nelas uma arbitrariedade irredutível no seu ponto de partida: a escolha de um determinado jogo de linguagem, de um código associado a determinado ponto de vista, sempre social, cultural e ideologicamente condicionado, assim como individualmente conduzido. Daí que falar em ciência e em objectividade em matéria de crítica seja, efectivamente, uma mera ilusão pretenciosa, pois as explicações estéticas que enuncia funcionam, apenas e fundamentalmente, como mecanismos discursivos capazes de produzir sobre o objecto em causa determinadas possibilidades de inteligibilidade, determinados mitos plausíveis que nos convençam e nos satisfaçam, ou seja, que nos persuadam. Mas ainda que a nova corrente liberal do criticismo reconheça o carácter ideológico e subjectivo de toda e qualquer formulação crítica, vimos que ela não vem, em consequência, neutralizar ou anular o privilégio da leitura do crítico em relação à do leitor "comum" ou do "só-leitor". Embora liberalmente promova o estatuto infinitamente polissémico do artefacto estético e afirme a pluralidade das suas interpretações e subjectividade das suas avaliações, não deixa simultaneamente de acreditar, de argumentar e de reafirmar a autoridade e legitimidade do crítico na formulação destas, fundamentadas, aqui, não num pretenso estatuto de cientificidade atribuído ao seu discurso, mas na profundidade analítica que a ele é capaz de incorporar, decorrente das suas competências teóricas e estéticas acumuladas, no rigôr teórico e metodológico que a sua ética profissional reclama na abordagem que faz da obra, na sua capacidade argumentativa e comparativa, assim como no seu talento de escrita, supostas garantias da sua desejada ruptura com o discurso crítico empreendido pelo senso comum ou, como Barthes lhe chama, com um "impressionismo desenfreado e ingénuo". Ás competências estéticas formais vêem-se então adicionadas competências de ordem comunicativa e de escrita como requisitos indispensáveis para o exercício da prática crítica, tornando-se esta em arte de bem escrever sobre..., com plausabilidade, profundidade e rigôr, características estrategicamente invocadas para o discurso que dela resulta de modo a protegê-lo dos riscos da pluralidade paradigmaticamente afirmada no âmbito desta corrente e, ao mesmo tempo, garantir a continuidade na crença da sua validade e da legitimidade do seu produtor. Nesta sequência, fica patente 334

que o poder simbólico da crítica não advém, aqui, da competência das próprias palavras que emprega mas, sem dúvida, da crença socialmente legitimada na competência cultural de quem as profere, assim coomo da forma como as profere. É um poder assegurado, no fundo, como refere Costa Lima, pelo «conhecimento de certa retórica, a prática de certa estilização, que não se possui pelo mero facto de se escrever na sua língua materna.»211 Resumindo e concluindo, com o surgimento da "Nouvelle Critique" e das teorias a ela afins estamos na presença de um novo paradigma de referência no campo da crítica, definido, por um lado, pela assumpção da total descoincidência entre verdade e sentido e, por outro, pela distinção que nele acontece entre receptor-leitor e receptorcomentador, apesar de continuar a ser o receptor o elemento privilegiado no processo de comunicação literária. Efectivamente, como já tivemos oportunidade de explicar mais desenvolvidamente, neste novo paradigma que a nova crítica barthesiana inaugura, pretende-se da prática crítica não a fixação da Verdade ou de uma verdade intrínseca à obra mas, em vez disso, o alargamento do seu campo de sentido, a libertação das posições a partir das quais é passível de se tornar inteligível. Na base desta posição teórica, herética na ética e conduta que propõe para o desempenho da prática crítica face à ortodoxia da cientificidade, está o princípio da arbitrariedade do signo linguístico, tal como foi atrás definido, o qual não se aplica aqui apenas ao discurso metafórico da própria obra mas também ao próprio metadiscurso promovido pela crítica - que, por esta via, perde as características de metadiscurso e apresenta-se, ele próprio, como literatura. E é na medida em que a prática crítica implica o acto de passagem à escrita, surgindo o comentário do crítico sobre a obra original como sua metáfora, que neste paradigma a figura do receptor se desdobra, distinguindose então entre o outro-leitor e o outro-comentador, instância individual de produção simbólica sobre a obra. Ora, com a introdução deste novo elemento no esquema de comunicação estética (para além do autor, do texto e do leitor), o campo de sentido do texto fica liberto da fixidez e autoritarismo a que estava anteriormente sujeito (sempre arreigado à "intenção do autor", às suas próprias características formais ou à figura de um leitor-competente ou ideal), e torna-se disponível para a produção múltipla e infinita de significados.

211

Cit. in COELHO, Os Universos da Crítica, op.cit., p. 164. 335

4.3. A QUERELA BARTHES-PICARD OU

A

GRANDE

BATALHA

ENTRE

OBJECTIVISTAS

E

SUBJECTIVISTAS Traçados os pressupostos básicos subjacentes às principais coordenadas paradigmáticas de referência a partir das quais a crítica se tem orientado no espaço da Academia, podemos facilmente aperceber-nos de que os valores assumidos em relação a esta prática se têm vindo progressivamente a deslocar no sentido da liberdade, da criatividade, da performatividade, em suma, da subjectividade (ainda que sempre teoricamente informada, rigorosa e, como tal, competente), em detrimento da passividade, da neutralidade, da demonstratividade, da objectividade, valores a que inicialmente se encontrava submetida no interior daquele mesmo espaço. Este movimento de rotação valorativa traduz, no fundo, o percurso que vai da filogénese, olhar sobre o objecto estético que acreditava na sua própria pureza, na sua inocência e, como tal, na sua capacidade de apreender a obra de arte tal como ela supostamente exigiria que fosse apreendida, em si mesma e por si mesma, à ontogénese, olhar que começa a consciencializar-se de que está inevitavelmente associado a condições de percepção e apropriação simbólica da obra de arte muito particulares, não ignorando as suas condições sociais, culturais, históricas e ideológicas de possibilidade.212 Com efeito, o que sucede na realidade é que todas as apreciações, avaliações e interpretações sobre qualquer produto cultural, são sempre produto do habitus, ou seja, do conjunto de disposições e de pressuposições interiorizadas pelo agente que as formula e que constitui o seu quadro de referência para essas mesmas formulações, sempre socialmente construído e posicionado. A esta condicionante de ordem estrutural, é ainda de adicionar, no caso concreto do crítico, todo o tipo de constrangimentos institucionais e contextuais relacionados com a sua cultura e contexto profissional. E, neste sentido, podemos apelar às palavras de Bourdieu quando afirma que «o que se diz é sempre um compromisso (como o sonho) entre o que se queria dizer e o que se pode dizer, compromisso que depende, evidentemente, do que o locutor tem a dizer, das suas capacidade de produção, de apreciação da situação e de eufemização, e também da posição que ele ocupa na estrutura do campo em que se exprime.»213

212 213

BOURDIEU, O Poder Simbólico, op. cit., p. 284. Cit. in COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit., p. 540. 336

O percurso atrás descrito, como será de prever, não acontece por acaso. Sabemos que a invenção do olhar estético como "olhar puro" surge intimamente associada à instituição da produção artística como acto de "criação" também ele puro, liberto de toda e qualquer determinação e função social, instituição essa que nasce com o desenvolvimento paralelo de um corpo de profissionais e experts encarregados de fazer (a)creditar e conservar a obra de arte na sua "pureza" original, entre os quais se encontra a figura do crítico, que começa por pensar o seu discurso de celebração como acto de re-criação e re-edição discursiva da obra na sua verdade primeira e perene. Começando por ser produto do desejado movimento dos campos artístico e literário para a sua autonomia, a invenção do olhar puro vai proporcionar simultaneamente o próprio movimento de autonomização do campo da crítica (pois, como vimos ao longo deste trabalho, estes são movimentos que se interpenetram e se sustentam recíproca e continuamente), funcionando como estratégia de demarcação face às restantes instâncias de legitimação, valorização, celebração e consagração artística que outrora detinham o monopólio da celebração estética pela palavra (como a Igreja, os diletantes ilustrados e os próprios artistas). À medida que esse campo se fecha sobre si próprio no sentido da autolegitimação da sua prática e da independência desta em relação às instâncias com que lida mais directamente (como o autor, a própria obra e o espaço social da sua recepção e consumo), reivindica para si o monopólio da produção simbólica do objecto estético, alegando deter o domínio dos conhecimentos e dos instrumentos específicos necessários a uma apreciação, avaliação e interpretação estéticas sem erros, pura, neutra, verdadeira e objectiva, competências cuja posse irá fazer parte das condições de acesso ao campo. A luta pela detenção desse monopólio empreendida por parte do campo da crítica, assegurado na base de uma pretensa cientificidade (auto) atribuída aos seus resultados discursivos, teve a Academia como poderoso cúmplice. Com efeito, a estreita ligação que desde o século XVIII se verifica entre a prática crítica e a instituição académica, espaço de enquadramento onde decorreu toda e discussão e teorização em seu torno, associada ao prestígio que a noção de objectividade conservava dentro daquela instituição, foram decerto factores determinantes na formação do carácter científico atribuído àquela prática no seu início. Com a independência do seu lugar assegurada e com sua autonomia relativamente estabelecida, a par da recente transformação que a própria imagem da ciência vem sofrendo no campo académico por via do desenvolvimento da 337

Epistemologia e da Sociologia do Conhecimento, assim como do trabalho de desmistificação do «olhar puro» que as Ciências Sociais, nomeadamente a Sociologia, vêm realizando, as tentativas de fixar a objectividade, ou seja, um ideal de coincidência entre verdade e valor/sentido estético, começaram rapidamente da declinar no domínio da crítica, criando-se as condições propícias para que uma certa fracção da crítica de inserção académica voltasse a reflectir crítica e profundamente sobre os objectivos da sua prática, com a consequente necessidade de inventar novas estratégias de preservação da autoridade e legitimidade dos veredictos dela resultantes sobre os pólos da criação e do consumo cultural. De facto, em virtude das circunstâncias epistemológicas inauguradas para a ciência (pós) moderna, surgiram no interior desse campo novas éticas de condução do olhar para a estética, isto é, novas formas de encarar e de praticar a crítica, e o modelo que ainda se reivindicava de uma suposta cientificidade, ancorada num ideal de objectividade=verdade, viu-se sendo cada vez mais posto em causa. Tal como descreve Paulo Nogueira, crítico de cinema no jornal no Independente, «ultimamente, a ciência pregou uma rasteira aos críticos mais armados aos cucos ou mais sentenciosos. Pois, como se sabe, a física quântica mandou a certeza às favas. (...) De acordo com o arauto do pós-modernismo Jean Baudrillard, "a violência teórica, não mais a verdade, é o único percurso que nos resta".»214 É neste contexto que os paradigmas comunicacional e metapsicológico se manifestam tentando quebrar a doxa do campo, esta associada, como se torna evidente, à tradição filológica. Apresentando-se como grandes adversários desta corrente, nas suas mais diversas versões teóricas e metodológicas, vieram apregoar (o primeiro com alguns rodeios, o segundo de viva voz), por um lado, a pluralidade de sentidos intrínsecos a qualquer obra e, por consequência, a pluralidade ilimitada das suas interpretações, assim como, por outro, o carácter subjectivo e socio-culturalmente condicionado dessas mesmas interpretações e dos padrões de referência utilizados na construção de escalas de valor estético para os produtos culturais. Como seria de esperar, a emergência destes dois paradigmas no campo da crítica não aconteceu pacificamente e sem polémica. Pelo contrário, fez ressurgir tensões que, já desde o século XIX, não se faziam sentir com tanta veemência naquele campo: referimo-nos, nomeadamente, aos conflitos que envolveram os críticos-jornalistas e/ou

214

NOGUEIRA, "Situação Crítica", in Independente, 8 de Abril de 1991. 338

os críticos-criadores, como Baudelaire, Oscar Wilde e David Herbert Lawrence, de postura mais intuicionista e sensitiva perante as artes e a literatura, contra os críticos académicos de ethos filológico (disciplina que, na época em causa, se encontrava em pleno apogeu), acerca da questão da objectividade/subjectividade no desempenho da prática crítica, questão que dividia radicalmente os protagonistas desse campo nessa altura específica. A posição de Oscar Wilde acerca desta questão encontra-se muito próxima da de Baudelaire (já neste trabalho exposta), como é significativo no seu prefácio à obra "O Retrato de Dorian Gray" (1891), do qual passamos a apresentar alguns excertos: «O crítico é aqule que sabe traduzir de outra maneira ou com material diferente a sua impressão das coisas belas. (...) Aqueles que encontram belas significações nas coisas belas são cultos. Para esses há esperança. São os eleitos aqueles para quem as coisas belas apenas significam Beleza. (...) Toda a arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo. Aqueles que descem da superfície fazem-no por seu próprio risco. O mesmo sucede àqueles que lêem o símbolo. É o espectador, e não a vida, que a arte realmente reflecte. A diversidade de opiniões sobre uma obra de arte mostra que a obra é nova, complexa e vital. Quando os críticos divergem, o artista está de acordo consigo mesmo.»215 O mesmo podemos dizer da opinião de David Herbert Lawrence, "críticoescritor" do princípio do século, para quem: «Literary criticism can be no more than a reasoned account of the effect produced upon the critic by the book he is criticising. Criticism can never be a science: it is, in the first place, much too personal, and in the second, it is concerned with values that science ignores. The touchstone is emotion, not reason. We judge a work of art by its effect on our sincere and vital emotion, and nothing else. All the critical twiddle-twaddle about style and forme, all this pseudoscientific classifying and analysing of books in an imitation-botanical fashion, is mere impertinence and mostly dull jargon. A critic must be able to feel the impact of a work of art in all its complexity and force. To do so, he must be a man of force and complexity himself, which few critics are. A man with a paltry, impudent nature will never write anything but paltry, impudent criticism. And a man who is emotionally

215

WILDE, O Retrato de Dorian Gray, Lisboa, Círculo de Leitores, 1990, p. 5. 339

educated is rare as a pheonix. The more scholastically educated a man is, generally, the more he is an emotional bore.»216 No entanto, a clivagem que outrora se revelava coincidente entre crítica académica / crítica jornalística e crítica objectivista / crítica subjectivista, acabou por diluír-se, a partir daqui, num fenómeno de transversalidade, para o qual também concorreu o facto de muitos académicos de postura objectivista terem sido solicitados a ocuparem lugares de comentário crítico e cultural na imprensa generalista. A subjectividade já não era admitida apenas entre as trincheiras da crítica jornalística nem a objectividade somente no interior da Academia, pulverizando-se deste modo as éticas associadas a estes lugares de produção de discurso crítica. Até surgirem as diversas teorias que vieram a desembocar nos paradigmas comunicacional e metapsicológico onde muitos dos pressupostos partilhados por aqueles "críticos-criadores" foram retomados, embora sob uma nova «roupagem» (designadamente pela nova crítica barthesiana) - o silêncio e as certezas sobre esta matéria impunham-se no pólo da crítica académica, onde dominavam totalmente os pressupostos inerentes ao paradigma filológico, camuflando e dissimulando a arbitrariedade intrínseca ao discurso e à análise aí produzida. A chegada daqueles novos paradigmas ao campo, nas suas mais diversas versões teóricas, veio então quebrar o silêncio que se fazia sentir sobre a questão da objectividade / subjectividade no desempenho académico da prática crítica, pondo em causa as "evidências" e as "certezas" em que se alicerçava o paradigma tradicional. A clivagem entre "subjectivistas" e "objectivistas" reacendeu-se e as tensões dela decorrentes rapidamente se manifestaram e se generalizaram fervorosamente nas páginas dos periódicos da especialidade. No cerne de tais conflitos desde cedo apareceu a figura de Roland Barthes, adversário acérrimo da crítica convencional e/ou de toda a crítica que, de um modo ou de outro, insistisse ainda em assumir-se no campo como detentora dos princípios essenciais conducentes à objectividade dos seus resultados em termos de apreciações, avaliações e interpretações. Em suma, a Heresia em pessoa. Efectivamente, já em 1957, aquando da primeira edição das suas "Mitologias", este autor marcava o seu distanciamento quer face à crítica de raíz filológica, quer face à crítica de referência comunicacional, cujas primeiras teorias começavam no momento a

216

Cit. in RAWLINSON, The Practice of Criticism, op. cit., p. 2. 340

emergir no campo, atacando-as vivamente. Em relação à primeira, Barthes acusava-a de "muda", "cega" e "tautológica": «Os nossos tautologistas são como os donos que puxam bruscamente a trela do cão: é preciso que o pensamento não seja deixado à rédea solta, pois o mundo está cheio de álibis suspeitos e vãos, e é preciso controlar de perto o seu juízo, reduzir a trela à distância de um real computável. E se as pessoas se pusessem a pensar sobre Racine? Grave ameaça: o tautologista corta raivosamente tudo o que à volta dele vai crescendo, e que poderia abafá-lo. (...) Há, enfim, ainda isto na tautologia (...): o que se poderia chamar o mito da redescoberta crítica. Os nossos críticos essencialistas passam o seu tempo a redescobrir a "verdade" dos génios do passado; a Literatura é para eles um vasto armazém de objectos perdidos, em que se vai pescar. (...) Compreende-se, pelo menos, o que é que uma tal nulidade na definição traz aos que a agitam gloriosamente: uma espécie de pequena salvação ética, a satisfação de ter militado em favor de uma verdade de Racine, sem ter de assumir nenhum dos riscos que toda a investigação um pouco positivista da verdade fatalmente comporta: a tautologia dispensa de ter ideias, mas, ao mesmo tempo, incha-se ao fazer desta licença uma dura lei moral; daí o seu sucesso: a preguiça é promovida à categoria de rigor. Racine é Racine: admirável segurança do nada. (...) A tautologia é esse processo verbal que consiste em definir o mesmo pelo mesmo. (...) ela não pode senão abrigar-se por detrás de um argumento de autoridade: "é assim porque é assim". (...) A tautologia funda um mundo morto, um mundo imóvel.»217 Quanto ao segundo tipo de crítica que Barthes identifica (nomeadamente num dos primeiros números do jornal francês Express), esta associada às teorias inscritas no paradigma comunicacional, ele designa-a com um certo tom pejorativo de "Crítica Nem-Nem", destacando ironicamente o modo como revelam até que ponto se tornam necessárias determinadas acrobacias teóricas no sentido de tentar sustentar o mito de um texto objectivo em si mesmo: «A crítica não deve ser "nem um jogo de salão, nem um serviço municipal"; entenda-se que ela não deve ser nem reaccionária, nem comunista, nem gratuita, nem política. Trata-se de uma mecânica da dupla exclusão (...) Pesam-se os métodos com

341

uma balança, carregando os pratos à vontade, de forma a poder-se aparecer como um árbitro imponderável, dotado de uma espiritualidade ideal, e por isso mesmo justo, como o ponteiro que julga o peso. (...) As taras necessárias a esta operação de contabilidade são formuladas pela moralidade dos termos empregados. (...) Por exemplo, a cultura será oposta às ideologias. A cultura é um bem nobre, universal, situado fora das tomadas de posições sociais: a cultura não tem peso. Quanto às ideologias, elas são invenções partidárias: à balança, pois! Ei-las contrapostas umas às outras sob o olhar severo da cultura (sem se imaginar que a cultura, bem vistas as coisas, é no fim de contas uma ideologia). Tudo se passa como se houvesse, de um lado, palavras pesadas, palavras com tara (ideologia, catecismo, militante), encarregadas de alimentar o jogo infamante da balança; e, do outro, palavras ligeiras, puras, imateriais, nobres por direito divino, sublimes ao ponto de escaparem à baixa lei dos números (aventura, paixão, grandeza, virtude, honra), palavras situadas acima do triste cômputo das mentiras; as segundas são encarregadas de pregar a moral às primeiras: de um lado, palavras criminosas, do outro, palavras justiceiras. (...) Em contraposição à idealidade do conceito aqui pressuposta, Barthes afirma que «um juízo literário é sempre determinado pela tonalidade de que faz parte, e a própria ausência do sistema - sobretudo quando levada até ao estado de profissão de fé procede de um sistema perfeitamente definido, que é na ocorrência uma variedade muito banal da ideologia burguesa. (...) Pode-se tranquilamente desafiar quem quer que seja a exercer, alguma vez na vida, uma crítica inocente, pura de qualquer determinação sistemática: os Nem-Nem estão, também eles, embarcados num sistema, que não é forçosamente aquele de que se reclamam. Não se pode emitir um juízo acerca da literatura sem uma certa ideia prévia do Homem, da História, do Bem, do Mal, da Sociedade, etc. (...) Assim, a liberdade do crítico não é a de recusar tomar partido (o que é impossível!) mas a de proclamá-lo ou não. (...) O nem-nem-ismo (...) consiste em supor como dados dois contrários e em contrapesar um pelo outro, de modo a respeitá-los a ambos. (Não quero nem isto, nem aquilo.) Trata-se, preferentemente, de uma figura de mito burguês, porque decorre de uma forma moderna de liberalismo. Deparamos aqui de novo com a figura da balança: o real é antes de mais reduzido aos seus análogos; em seguida, é pesado; enfim

217

BARTHES, Mitologias, op. cit., p. 105, 106, 107, 252 (os itálicos são nossos). 342

constatada a igualdade, desembaraçamo-nos dele. Há também aqui uma conduta mágica: não se dá razão nem a uma nem a outra das alternativas sobre que era incómodo fazer uma escolha; foge-se do real intolerável reduzindo-o a dois contrários que se equilibram na medida somente em que são formais; aliviados do seu peso específico.»218 O distanciamento de Barthes em relação quer ao paradigma convencional, quer ao paradigma comunicacional (nessa altura, recém-chegado ao campo), bem visível no tom acusatório dos depoimentos que acabámos de apresentar, veio gerar um clima de tensão latente que, mais tarde, despoletou abertamente. Com efeito, os conflitos só se vieram a manifestar mais violentamente quando Barthes, como de resto já havia ameaçado, resolveu realmente "pensar a sério" sobre a obra de Racine, aplicando os pressupostos do modelo de crítica que vinha desenvolvendo, e edita em 1963 a obra "Sur Racine". Esta publicação, como à partida poderíamos supor, não se apresenta apenas como mais uma reflexão sobre a obra de Racine, confrontando-a com algumas das linguagens conceptuais possíveis do nosso tempo, mas representa sobretudo uma ruptura em relação à forma institucionalizada de praticar a crítica literária, isto na medida em que o seu autor nela assume claramente a vinculação directa a uma "ideologia", a determinado modelo de conhecimento extra-estético, reivindicando o direito (inevitável para ele) a uma "crítica ideológica" em detrimento da demagogia inerente à dita "crítica universitária", a qual, na sua opinião, ainda «pratica no essencial um método positivista herdado por Lanson.»219 É neste sentido que Barthes inicia esta sua obra apresentando-a da seguinte forma: «L'analyse qui est présentée ici ne concerne pas du tout Racine, mais seulement le héros racinien: elle évite d'inférer de l'oeuvre à l'auteur et de l'auteur à l'oeuvre; c'est une analyse volontairement close. Je me suis placé dans le monde tragique de Racine et j'ai tenté d'en décrire la population (...), sans aucune réfèrence à une souce de ce monde

218

Idem, p. 157, 157-158, 158, 252-253 (os itálicos são nossos). Cit. in COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit., p.268. Clarifiquemos que Lanson foi um dos principais pioneiros da corrente filológica na crítica literária.

219

343

(issue, par exemple, de l'histoire ou de la biographie). Ce que j'ai essayé de reconstituer est une sorte d'anthropologie racinienne, à la fois structurale et analytique.»220 A partir daqui, as opiniões crisparam-se, as posições atomizaram-se e o universo da crítica dividiu-se radicalmente, instaurando-se em pleno a guerra entre antigos e recém-chegados, entre objectivistas e subjectivistas, entre conservadores e progressistas, entre ortodoxos e heréticos. Tal como descreve Jean-Louis Calvet, personagem que acompanhou de perto essa querela, as expressões públicas de apoio e/ou de recusa em relação à interpretação e pressupostos inerentes a "Sur Racine" não se fizeram esperar, ecoando através dos principais orgãos de imprensa franceses e não só: «Dans Le Monde du 12 juin 1963, Pierre-Henri Simon prend ses distances avec cette "virtuosité dialectique qui tour à tour (...) enchante et (...) inquiète", s'étonnand que Racine ait si bien caché ce sens mythique de son texte "que personne jusqu'à present, et pas même lui, ne l'ait aperçu". Mais la presse est dans son ensemble plutôt positive: "Une lumière nouvelle sur l'univers racinien" pour Roger-Louis Junod dans La Tribune de Genève, "Pour mieux aimer Racine" selon Guy Dumur dans France-Observateur, "Quand la nouvelle critique s'attaque aux classiques" pour La Croix, et enfin "Roland Barthes et le mythe de Racine" pour Robert Kanters dans Le Figaro Littéraire... Quelques mois plus tard, à partir de janvier 1964, les revues entrent dans la danse: Le Mercure de France approuve, La Nouvelle NRF applaudit. La Pensée ne se désolidarise pas: "A cotê de divinations discutables, certaines vues plongeantes, en renouvelant notre vision du monde racinien, font apparaître des aspects méconnus de l'oeuvre". Et Critique, dans un article de plus de vingt pages consacré à la fois à Sur Racine et au Dieu Caché de Goldmann, qui traite aussi Racine, affirme: "la critique liée au marxisme et à psychanalyse est la seule à retrouver, de nous jours, le sens du tragique racinien (...). La critique humaniste ne veut rien connaître en dehors du discours poétique luimême."»221 Enquanto surgiam estas reacções mais entusiásticas e positivas em relação à nova crítica barthesiana, os porta-vozes da designada "crítica universitária" também não

220

Cit. in CALVET, Louis-Jean, Roland Barthes, Paris, Flammarion, 1990, p. 186 (os itálicos são nossos). 221 CALVET, Roland Barthes, op. cit., pp. 186-187 (os itálicos são nossos). 344

perderam tempo na preparação das suas estratégias de defesa e de contra-ataque. Destes, o primeiro a responder a Barthes foi Raymond Picard, professor de literatura na Sorbonne e reconhecido crítico literário especialista em Racine, autor de "La Carrière de Jean Racine" e editor de "Racine", obra integrada na prestigiada "Bibliothèque de la Pléiade". Não tolerando o questionamento da instituição que ele representa - nas suas palavras «ataquer l'Université fait partie du conformisme d'avant-garde dont M. Barthes est une des figures marquantes»222 - assim como da atitude perante a prática crítica a ela associada, Picard não se fica pelas suas respostas e acusações à nova crítica nos meios de comunicação social e decide atacá-la de uma forma sistemática e determinada, fazendo publicar um pequeno panfleto sob o título, bem ilustrativo da sua posição em relação aquela corrente, "Nouvelle Critique ou Nouvelle Imposture?".223 Aqui, Picard tenta notoriamente subvalorizar a nova crítica barthesiana, acusando-a de "se impôr opondo-se" e de ter "uma realidade menos intelectual que polémica"224. A isto acrescenta que a "crítica universitária" de que Barthes fala é apenas um "fantasma" por ele inventado para que tenha ao que se opôr, não compreendendo o quê e/ou a quem a nova crítica ataca, nem qual o sentido do debate que tenta empreender. Na sua opinião: «O senhor Barthes ignora ou despreza sistematicamente os trabalhos universitários; ele finge julgar que são todos inspirados por um lansonismo empobrecido, desconhecendo assim tanto Lanson como a extrema diversidade dos métodos actualmente praticados nas universidades; contra a crítica universitária, fantasma que ele suscitou para demolir, repete as suas acusações por quatro vezes na França e no estrangeiro, e reimprime-as em seguida em duas obras.»225 É curioso reparar, de passagem, como Picard se indigna com a atitude de Barthes chegar ao ponto de difamar a crítica universitária francesa e o lansonismo não apenas no seu país, mas até no estrangeiro! Perante estas acusações, Le Figaro Littéraire dá oportunidade a Barthes de se defender publicamente, numa entrevista concedida logo após a publicação do dito panfleto de Picard, onde ele refere que:

222

Cit. in CALVET, idem, p. 187. PICARD, Nouvelle Critique ou Nouvelle Imposture?, Paris, Seuil, 1965. 224 Idem, p. 10 (os itálicos são nossos). 223

345

«Picard prétend que la critique universitaire n'existe pas. A tort, car l'Université est une instituition. Elle a son language, son système de valeurs, qui sont sanctionnés par des exameurs. Il y a une façon universitaire de parler des oeuvres. Au demeurant, Picard lui-même, dans sa préface aux oeuvres de Racine, parvue dans la Pléiade, part en guerre contre cette critique universitaire. Quand j'ai relevé son existence, je ne pensais pas à Picard, mais à certains universitaires qui ont écrit sur Racine en utilisant la vieile méthode biographique. De toute façon, l'Université ne doit pas être sacralisée. On peut la critiquer.»226 Retomando novamente a análise do panfleto de Picard, vale a pena reparar como este representa e caracteriza a nova crítica: «Eles referem-se a uma certa concepção da obra literária; consideram-na, com efeito, como uma colecção de signos cuja significação está noutro lado, num outro lado psicanalítico (fixado por exemplo na infância do escritor) ou num outro lado pseudomarxista de uma estrutura económico-política, ou num outro lado deste ou daquele universo metafísico que seria o do autor, etc. E, claro está, este outro lado encontra-se no próprio centro da obra, porque é a sua razão de ser. Assim penetrada, povoada, obcecada por mundos que ela parece ignorar, e também prolongada, explicada, justificada num além de si mesma, a obra deixou de existir na obra.»227 Pecado mortal para a crítica de ethos filológico: a especificidade da Literatura que tanto proclama e que lhe é tão querida foi desrespeitada! Com base neste pressuposto, Picard vai discorrer todo um rol de acusações à nova crítica em constituição (por vezes, bem pouco agradáveis), das quais passamos a citar algumas das expressões por ele utilizadas: Acusa

todas

as

obras

recenseadas

naquele

paradigma,

referindo-se

especialemente a "Sur Racine", como "imposturas", caracterizadas pelo "aleatório e o bizarro", "intelectualmente vazias", "verbalmente sofisticadas" e "moralmente perigosas", devendo "o seu êxito exclusivamente ao snobismo" ; chocam a moral,

225

Ibidem, pp. 83-84 (os itálicos são nossos). BARTHES, in Figaro Littéraire, 14 de Outubro de 1965 (os itálicos são nossos). 227 PICARD, Nouvelle Critique..., op. cit., pp. 113-114 (os itálicos são nossos). 226

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fazendo constantemente intervir "uma sexualidade obcessiva, desabrida, cínica"; afirmam-se "pedantemente"; fazem "extrapolações aberrantes"; utilizam um "modo intemperado, proposições inexactas, contestáveis ou absurdas"; põem em causa a clareza com "o carácter patológico desta linguagem"; utilizam uma "gíria opaca" como "instrumento de exibição", somente dando origem a "absurdos"; não é mais do que uma "sabujice intelectual"; um "livro revoltante"; ferem a razão desobedecendo às "regras elementares do pensamento científico ou mesmo, simplesmente articulado"; cometem "excessos de inconsistência satisfeita", baseados num "reportório de paralogismos"; fazem "afirmações delirantes" e chegam a "generalidades abusivas"; traçam "linhas inquietantes" devido à sua "extravagante doutrina", a qual resulta numa "inteligibilidade desprezível e oca"; torna-se "perigosa"; desprezando o princípio da objectividade chegam a "resultados arbitrários, inconsistentes, absurdos"; só dizem "absurdos e bizarrias"; pautam-se pela "ingenuidade".228 Neste contexto, perfeitamente de acordo com os valores ideológicos dominantes no fim do século XIX, princípio do século XX (Razão, Ciência, Objectividade e Contenção) e por oposição ao "delírio subjectivista" de Barthes, Picard pretende da prática crítica nem mais nem menos do que chegar à Verdade, plena de objectividade, sendo a primeira definida como «acordo entre os espíritos» a a segunda obtida por acumulação de factos, tendo o cuidado de «preservar, nas palavras, a sua significação.»229 Quer isto dizer que, na sua opinião, o objectivo primordial da crítica não é simplesmente fazer interpretações literárias, mas chegar a uma compreensão literal. Nas suas palavras: «Existe uma verdade de Racine, sobre a qual todo o mundo pode chegar a pôrse de acordo. Apoiando-se em particular sobre as certezas da linguagem, sobre as implicações da coerência psicológica, sobre os imperativos da estrutura do género, o investigador paciente e modesto chega a esclarecer as evidências que determinam por assim dizer as zonas de objectividade: é a partir dali que ele pode - muito prudentemente - tentar as interpretações.»230

228 PICARD, idem, pp. 11-12; p.30; p.39; 40; 47; 50; 52; 54; 57; 58; 59; 71; 73 e 75; 85 e 148; 92; 146; 147. 229 Ibidem, p. 45.

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Estas violentas acusações de Picard à nova crítica e os pressupostos que este crítico partilha en relação à sua prática não ficaram sem resposta por parte de Barthes, naquela mesma entrevista por ele concedida ao "Figaro Littéraire": «Picard s'attaque aurtout à moi parce que j'ai écrit sur Racine, qui est sa propriété. C'est sa chasse gardée. (...) Mais alors, les accusations de Picard prennent quelque chose d'obstiné, d'obsessionnel presque. Sa critique (...) c'est le type même de la critique biographique qui établit une relation systématique entre l'oeuvre et la vie de l'auteur. Les nouvelles psychologies interdisent ce genre d'explication dont se servent encore certains universitaires. (...) A partir d'une symbolique, je puis manier certaines règles qui me permettent de retrouver les traits communs, l'unité profonde de symboles apparemment différents. Picard refuse ces psychologies. C'est son droit. Moi, je parle de Racine selon le language de notre époque, en utilisant l'analyse structurale et psychanalytique, au sens culturel du mot. Entre parenthèses, Vatican II vient d'admettre cette dernière, et je ne vois pas pourquoi la critique serait en retard sur l'Église.»231 Nestas circunstâncias, segundo Louis-Jean Calvet, enquanto «les intellectuels "d'avand-garde" rient beaucoup de Picard, la grande presse au contraire l'applaudit.»232 Com efeito, o panfleto de Picard serviu como incentivo aos críticos de referência dominante mais intimidados com os argumentos de Barthes a lançarem-se em força na arena de combate, prestando obviamente palavras de apoio a Picard e de condenação a Barthes. Eis algumas dessas imagens que passaram na comunicação social da época: Jacqueline Piatier refere-se às «surpreendentes interpretações que Roland Barthes deu das tragédias de Racine» como resultado de um «movimento do coração que aquece a pena e a cobre de pontas assassinas», prosseguindo o seu comentário congratulando-se com o «rigor, a coerência e a lógica de espírito» inerentes, na sua opinião, aos argumentos de Picard.233 Jean Cau, por sua vez, demonstra a sua «vontade de abraçar o senhor Raymond Picard por ter escrito (...) o vosso panfleto» e de «torcer o pescoço à nova crítica e

230

Ibidem, p. 69 (os itálicos são nossos). BARTHES, in Figaro Littéraire, 14 de Outubro de 1965 (os itálicos são nossos). 232 CALVET, Roland Barthes, op. cit., p. 187. 233 In Le Monde, 23 de Outubro de 1965 (os itálicos são nossos). 231

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decapitar mesmo um certo número de impostores, entre os quais o do senhor Roland Barthes.»234 Na opinião de Jean Duvignaud, «Barthes não poderia ter feito pior escolha que a de escolher Racine para prolongar a sua investigação. (...) a maneira como ele aborda o autor de "Phèdre" mutila tanto o poeta como o crítico.»235 Em Le XXº Siècle, o panfleto de Picard é apresentado como «um golpe bem aplicado», atingindo o seu objectivo de «esvaziar» a obra de Barthes dos seus «excessos desgraciosos».236 Na Revue Parlementaire, questiona-se sobre se «será possível, sobre a clareza de Racine, construir um novo modo obscuro de julgar e demonstrar o génio? O abstracto desta nova crítica, inumana e anti-literária (...).»237 Numa carta publicada no Le Monde, um seu leitor, de nome Edouard Guitton, declara que «um certo livro da nova crítica está eivado de pecados contra a objectividade. (...) o que me consola ou me tranquiliza quando me afasto das obras dos senhores Barthes, Mauron e Goldmann sobre Racine, é saber que o teatro de Racine sobrevive a estas exégeses.»238 Já há um ano atrás, o mesmo Guitton havia afirmado no mesmo jornal a sua convicção de «que as obras do senhor Barthes envelhecerão mais cedo que as do senhor Picard!»239 A Europe-Action caracteriza os protagonistas da nova crítica como «os que substituem a análise clássica pela sobre-impressão do seu delírio verbal, os maníacos da decifração, que pensam que toda a gente decifra como eles, em função da Cabala, do Pentateuco ou de Nostradamus. A excelente colecção "Libertés", dirigida por JeanFrançois Revel (...), atiçará ainda alguns ânimos, mas nunca os nossos.»240 É ainda de destacar alguns títulos referentes a esta querela241: «Pearl Harbour da nova crítica» «Barthes ao Pelourinho» «Roland Barthes K.-O. em cento e cinquenta páginas»

234

In Pariscope, 27 de Outubro de 1965 (os itálicos são nossos). In Nouvel Observateur, Novembro de 1965 (os itálicos são nossos). 236 In Le XXº Siècle, Novembro de 1965 (os itálicos são nossos). 237 In Revue Parlamentaire, 15 de novembro de 1965 (os itálicos são nossos). 238 In Le Monde, 27 de Novembro de 1965 (os itálicos são nossos). 239 In Le Monde, 28 de Março de 1964. 240 In Europe-Action, Janeiro de 1966 (os itálicos são nossos). 235

349

«La Guerre des Critiques» «La Guerre Civile des Critiques» Todo este léxico de carácter belicista, apelando constantemente à condenação e execução sumária de Roland Barthes, demonstra bem quer o escândalo que, na altura, "Sur Racine" (com tudo o que esta obra representa em termos de valores acerca da prática crítica) causou entre o sector mais conservador do universo da crítica, quer as proporções tomadas pelo conflito entre os partidários da nova crítica e os seus adversários. Mas tal conflito não ficou por aqui. Se o panfleto de Picard veio a agitar fortemente o sector da crítica associado aos orgãos de imprensa de referência dominante em seu favor, a resposta da vanguarda não se fez esperar, tendo surgido com a publicação do manifesto "Crítica e Verdade" por parte de Barthes. O título que apresenta esta publicação na revista Notre République torna-se bastante elucidativo acerca do prolongamento e da intensidade desse conflito, comparando-o a um "match" de boxe: «"Barthes-Picard": terceito round».242 Neste manifesto, Barthes tem a oportunidade de apresentar de uma forma clara e sistemática não apenas os pilares fundamentais em que assenta a nova crítica que propõe (já atrás explicitados), mas também as suas principais contestações à dita "crítica universitária", as quais passamos a explicitar: Acusa-a de retrógada - «teme qualquer inovação» -, de antiquada - «move-se no interior de uma lógica intelectual onde não é possível contradizer o que vem da Tradição, dos Sábios» -, de recatada como um polícia - «torna-se objecto de uma vigilância especial por parte das instituições, que geralmente a mantêm sob um código estreito» - e de conformista - para esta «os desacordos tornam-se desvios, os desvios erros, os erros pecados, os pecados doenças, as doenças monstruosidades. Dada a estreiteza deste sistema normativo (...)»243. Nesta óptica, vai-se afirmar contra os que considera ser os mitos fundamentais em que se alicerça este tipo de prática crítica, que identifica como sendo:

241

In Revue de Paris, Janeiro de 1966; L'Orient, Janeiro de 1966; Journal de Genéve, cit. in CALVET, op. cit., p.188; La Gazette de Lausanne, idem, p.189; Notre Rèpublique, idem, p. 189. 242 Cit. in CALVET, Roland Barthes, op. cit., p.189. 350

- a Objectividade: «dizem que a obra literária comporta "evidências" que é possível destacar com base nas «certezas da linguagem, nas implicações da coerência psicológica, nos imperativos da estrutura do género». (...) Aquilo a que se chama (de preferência ironicamente) "as certezas da linguagem" não são mais do que as certezas da língua francesa, as certezas do dicionário. O problema (ou o prazer) está em que o idioma nunca é mais do que o material de uma outra linguagem, que não contradiz a primeira e que está, por seu lado, cheia de incertezas: a que instrumento de verificação, a que dicionário poderá submeter-se esta segunda linguagem, profunda, simbólica, de que é feita a obra, e que é precisamente a linguagem dos sentidos múltiplos? O mesmo se passa com a "coerência psicológica". Qual a chave para a sua leitura? Há várias maneiras de classificar os comportamentos humanos e, uma vez classificados, várias maneiras de descrever a sua coerência (...). Resta-nos, como supremo recurso, a psicologia "corrente", a que é reconhecível por todos e que por isso mesmo proporciona um grande sentimento de segurança; (...) o que equivale a informarmo-nos sobre um autor através da imagem adquirida que dele temos: bela tautologia! (...) Quanto à "estrutura do género", gostaríamos de saber mais: de há cem anos para cá se discute o termo "estrutura" (...). De que estruturalismo se trata? (...) Estas "evidências" não passam, pois, de opções. Tomadas à letra, a primeira é desprezível ou, se se preferir, impertinente (...). O mesmo sucede às outras "evidências": são já interpretações, uma vez que supõem a escolha prévia de um modelo psicológico ou estrutural; este código - pois trata-se de um código - pode variar; toda a objectividade do crítico dependerá então, não da escolha do código mas do rigor com que aplicará à obra o modelo que escolheu.»244 - o Gosto: «Como designar este conjunto de interdições que dependem indiferentemente da moral e da estética e no qual a crítica clássica investe todos os valores que não pode reportar à ciência? Chamemos, a este sistema de interdições, "gosto". (...) É aqui que o gosto se revela de extrema utilidade: servidor comum da moral e da estética, permite uma ponte cómoda entre o Belo e o Bem, discretamente confundidos sob a égide de uma simples medida.»245 - a Clareza: «Certas liguagens são proibidas ao crítico, sob o nome de "gírias". É-lhe imposta uma linguagem única: a «clareza». (...) trata-se de escrever um certo 243

BARTHES, Crítica e Verdade, op.cit., p.14; 16; 15; 17 (os itálicos são nossos). Idem, pp. 18-21 (os itálicos são nossos). 245 Ibidem, pp. 23-25 (os itálicos são nossos). 244

351

idioma sagrado, aparentado com a língua francesa (...). O idioma em questão, denominado "clareza francesa", é uma língua originariamente política, nascida no momento em que as classes superiores desejaram - segundo um processo ideológico por demais conhecido - erigir a particularidade da sua escrita em linguagem universal, fazendo crer que a «lógica» do francês era uma lógica absoluta. (...) Este mito foi cientificamente demonstrado pela linguística moderna. O francês não é mais ou menos "lógico" do que qualquer outra língua. trata-se de um idioma particular, utilizado por um grupo definido de escritores, de críticos, de cronistas, e que decalca, no essencial, nem sequer os nossos escritores clássicos, mas apenas o classicismo dos nossos escritores. Esta gíria passadista não está de todo marcada por exigências rigorosas de raciocínio ou por uma ausência ascética de imagens (...), mas sim por uma comunidade de esteriótipos, por vezes rodeados e sobrecarregados até ao empolamento pelo gosto por certas construções de frase e, evidentemente, pela recusa de certas palavras afastadas, com horror ou ironia, como intrusas, vindas de mundos estrangeiros e, portanto, suspeitos. Estamos aqui perante uma facção conservadora, (...) particular, uma vez que as palavras estrangeiras não podem nele ser introduzidas (...), vê-se no entanto promovida à dignidade de linguagem universal. (...) é um universal de proprietários. (...) Na verdade, esta linguagem é clara apenas na medida em que como tal é convencionada. (...) A gíria não é um instrumento de exibição como foi sugerido, com uma inútil má-fé; a gíria é uma imaginação (e é, como ela, chocante), a abordagem da linguagem metafórica de que o discurso intelectual um dia necessitará. (...) O tabu que lançam sobre as outras liguagens não passa de uma forma de se autoexcluírem da literatura (...).»246 - a Assimbolia: «Assim vai o verosímil crítico em 1965: é preciso falar de um livro com "objectividade", "gosto" e "clareza". Estas regras não são do nosso tempo: as duas últimas provêm do século clássico, a primeira do século positivsta. Deste modo se constitui um corpo de normas difusas, semi-estéticas (vindas do Belo Clássico), semirazoáveis (vindas do "bom senso"): estabelece-se uma espécie de ponte tranquilizadora entre a arte e a ciência, evitando que alguma vez se esteja plenamente numa ou outra. (...) O antigo crítico é vítima de uma disposição que os analistas da linguagem conhecem bem e a que chamam assimbolia: é-lhe impossível perceber ou manejar símbolos, isto é, coexistências de sentidos; nele, a função simbólica muito geral que

246

Ibidem, pp. 28-34 (os itálicos são nossos). 352

permite aos hoemens construir ideias, imagens e obras, é perturbada, limitada ou censurada logo que se ultrapassem os usos estritamente racionais da linguagem. (...) Não é razoável transformar a letra num império absoluto, para depois contestar, sem prevenir, cada símbolo, em nome de um princípio que não foi deito para ele. (...) Mas porquê, afinal, esta surdez aos símbolos, esta assimbolia? O que será, no símbolo, ameaçador? Fundamento do livro, porque motivo o sentido múltiplo põe em perigo a fala em torno do livro? E porquê, mais uma vez, hoje?»247 Confrontado com estas questões, Barthes procura entender as causas da recusa manifestada pela estrutura universitária em relação à "crítica ideológica" ou à nova crítica que propõe, pondo a hipótese (diga-se de passagem, nada descabida) de tal facto resultar da acumulação na mesma instituição de duas funções não coicidentes: a função de ensino e a função de investigação. Na sua opinião, é na medida em que a Universidade dá notas e fornece diplomas que ela tem a necessidade de recorrer a métodos críticos «que sejam facilmente avaliáveis nos seus resultados segundo critérios medianamente (ou melhor, aparentemente) objectivos». E mais: a Universidade também «precisa de uma ideologia que seja articulada a uma técnica suficientemente difícil para poder constituír um instrumento de selecção; o positivismo fornece-lhe a obrigação de um saber amplo, difícil, paciente; a crítica imanente - pelo menos - não exige, perante a obra, senão um poder de espanto dificilmente mensurável: compreende-se que ela hesite em converter as suas exigências».248 Nesta perspectiva, podemos aperceber-nos de que, para Barthes, a chave fundamental para a resolução das questões que se colocara a si próprio, reside na necessidade objectiva de mecanismos de selecção no ensino associado à crítica literária (ou no ensino da Literatura propriamente dita): na sua concepção, vislumbra-se uma acentuda oposição entre uma metodologia da carácter positivista, simultaneamente difícil q.b. na sua aplicação para que cumpra a função de selecção inerente ao sistema de ensino e suficientemente criteriosa e padronizada de maneira a facilitar o processo de avaliação dos seus resultados, e as metodologias propostas pela nova crítica, as quais, exigindo na sua diversidade sobretudo espontaneidade e perplexidade perante as obras por parte de quem as aplica, tornam-se bastante difíceis de medir em termos de classificação e avaliação os resultados que proporcionam, principalmente se tivermos

247

Ibidem, pp. 35-42 (os itálicos são nossos). 353

em conta as tradicionais formas de mensuração da objectividade (das quais a nova crítica deliberadamente se auto-exclui). Trata-se, no fundo, de privilegiar na prática crítica a aplicação de um capital cultural institucionalizado, conjunto de saberes e saberes-fazer institucionalmente reconhecidos como legítimos, nomeadamente a nível da instituição universitária, e passível de ser convertido e objectivado sob a forma de título escolar ou diploma, "prova" convencional, constante e juridicamente garantida (e colectivamente reconhecida) da sua posse; ou de um capital cultural incorporado, isto é, de um conjunto de saberes e de saberes-fazer resultante de um lento trabalho individual (embora sempre socialmente situado e condicionado) de mobilização, inculcação e de assimilação de instrumentos simbólicos e competências culturais (e não apenas estéticas), conjunto esse que não é passível de ser transmitido instantaneamente na medida em que a sua aquisição, para além de exigir um avultado investimento em tempo, é em grande parte feita de maneira dissimulada e inconsciente. Mas também não podemos esquecer até que ponto a assumpção do "sentido múltiplo" e da consequente subjectividade na crítica se torna ameaçadora da legitimidade do agente que a pratica, na medida em que põe em causa a sua autoridade simbólica sobre o leitor "comum", o privilégio da sua leitura em relação à daquele. Por isso assistimos à estratégia accionada pelos críticos de referência comunicacional ao se socorrerem de uma suposta idealidade do conceito (conceitos cuja posse e a operacionalização legítima está nas suas mãos), afim de garantiram a objectividade do seu discurso, a ilusão de fecharem a obra e, deste modo, a sua autoridade como leitores ideiais ou competentes. Talvez daí a sua "surdez" aos símbolos. Ora, descrito em traços gerais o conflito que, ao longo de toda a década de 60, opôs a dita "crítica universitária" de raíz positivista à Nova Crítica explicitamente assumida como ideológica, conflito esse que teve como principais personagens as figuras de Roland Barthes e de Raymond Picard, torna-se então evidente até que ponto tal fenómeno ultrapassa de longe a dimensão de uma simples querela inter-individual (como algumas das suas interpretações sugerem), tomando proporções e uma tal intensidade (bem patente na agitação massmediática e na violência verbal que lhe esteve subjacente) que demonstram claramente como é marcante e como se encontra

248

BARTHES, cit. in COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit., p. 269. 354

cristalizada a clivagem que divide "objectivistas" e "subjectivistas" no campo da crítica até finais dos anos 70. Mas afinal o que é que esteve em causa neste aceso debate? Qual o seu principal objecto de polémica? De uma forma sistemática e abreviada, podemos dizer que, em primeiro lugar, se tratou de um conflito de éticas: à partida, o que nele se encontra em causa são maneiras contraditórias de entender o que implica (ou o que deve implicar) o acto de críticar, que valores e critérios devem estar subjacentes no exercício dessa prática específica. Isto é, por outras palavras, decorre de visões divergentes no que se refere à ética que deve revestir e presidir à prática da crítica. Mas não só. Com efeito, podemos observar que aqui também se encontra nitidamente em questão a dominação da dita "crítica universitária" ou "académica" no campo da crítica, a legitimidade de uma certa forma de apreciar, avaliar e interpretar o objecto estético. Senão atentemos na incomodidade de Picard perante a argumentação de Barthes, a qual, subversivamente, vai corroendo os alicerces em que assenta o poder da crítica praticada a nível institucional. Nesta perspectiva, não é difícil entender que tal conflito não decorre apenas das divergências que realmente acontecem no plano ético da prática crítica, mas também resulta em grande parte da assimetria que caracteriza o posicionamento dos operacionalizadores dessas respectivas éticas na estrutura de relações de força que constitui o campo da crítica, visando sobretudo a defesa ou a conquista do monopólio da autoridade na imposição da sua visão (da sua ética) sobre os restantes elementos do campo (não apenas da crítica, mas também da arte em geral) como a visão efectivamente legítima. Quer isto dizer que tais querelas não revelam somente contradições éticas mas, e fundamentalmente, a um nível analiticamente mais profundo, lutas de, ou melhor, pelo poder. Assim sendo, em última instância, a tendência ora para afirmar a existência de valores e sentidos estéticos objectivos, ora a privilegiar uma relação subjectiva com a obra, surge como racionalização de uma determinada posição na estrutura de relações de poder subjacente ao campo da crítica, o que nos remete directamente para a localização de cada um dos paradigmas atrás apresentados e dos seus respectivos agentes na estrutura hierárquica do campo em causa, assim como para a análise das suas condutas em função da posição que ocupam. Para classificarmos os paradigmas filológico, comunicacional e metapsicológico, assim como os seus respectivos operacionalizadores, do ponto de vista das posições que detêm na estrutura de relações de poder que constitui o espaço da crítica, podemos 355

socorrer-nos de dois indicadores que, para tal, nos parecem adequados: por um lado, a sua antiguidade ou longevidade no campo, tendo em conta uma lógica cronológica de sucessão paradigmática, baseada na ruptura de determinado paradigma com o paradigma precedente; por outro, o seu carácter central ou periférico no campo, aqui medido pelo grau de proximidade e aceitação de cada um dos referidos paradigmas em relação à Universidade, pólo dinamizador, centralizador e legitimador do debate teórico e metodológico acerca da prática da crítica desde a sua fundação e institucionalização social, no seio do qual são votados e vetados os vectores dominantes que informam essa prática através da apresentação e classificação das teses que os discutem e os fundamentam, sendo a partir daí definida a sua legitimidade. Face a estes dois indicadores, a classificação dos referidos paradigmas torna-se evidente: no plano da antiguidade, temos obviamente o paradigma filológico firmado (e afirmado) como tradição no campo, sendo por sua vez os paradigmas comunicacional e metapsicológico os recém-chegados neste; do ponto de vista da sua proximidade e aceitação universitária, se tivermos em conta que desde que o trabalho crítico e a instituição académica aparecem associados, o primeiro é marcadamente atravessado por uma profunda necessidade de aparentar cientificidade e de simular objectividade, o paradigma filológico preenche de longe e incondicionalmente tais requisitos, adquirindo por esta via um lugar central dentro do campo da crítica em relação aos restantes, seus periféricos. É nesta perspectiva que podemos dizer com Prado Coelho que «deste modo, o paradigma comunicacional e o paradigma metapsicológico são sempre paradigmas minoritários, definidos como desvios em relação ao paradigma dominante. Pertencem, portanto, ao domínio das ciências minoritárias.»249 No entanto, se aprofundarmos um pouco mais o corolário de Prado Coelho, podemos notar que apesar de recém-chegado ao campo da crítica, o paradigma comunicacional não pode ser tomado como totalmente periférico, encontrando-se ao mesmo nível do paradigma metapsicológico neste plano. Isto porque ao preocupar-se em tentar satisfazer as exigências de cientificidade e de objectividade requeridas pela instituição universitária, embora em moldes totalmente diferentes dos pressupostos pelo paradigma filológico, o paradigma comunicacional atinge uma maior notoriedade e legitimidade institucional, encontrando-se então bem mais próximo do pólo de centralidade que é a Universidade no campo da crítica (isto,

249

COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit., p. 17. 356

claro, em relação ao paradigma metapsicológico) e, como tal, assumindo neste um lugar que podemos considerar de semi-periférico. Neste contexto, sobrepondo e relacionando os indicadores que acabámos de expôr, torna-se fácil reconhecer como o campo da crítica, em termos de relações de poder, aparece perfeitamente estruturado segundo o esquema proposto por Bourdieu para a análise desta dimensão dos campos: temos o paradigma filológico (e os seus respectivos operacionalizadores) a nele ocupar a posição dominante, o paradigma comunicacional a assumir a posição de pretendente e, finalmente, o paradigma metapsicológico como dominado. Assim sendo, tendo em conta que os interesses e as estratégias accionadas pelos respectivos cultores e operacionalizadores destes paradigmas nas relações que mantêm reciprocamente tendem a variar consoante a posição ocupada dentro da estrutura de relações de força que constitui o campo, podemos mais fácil e aprofundadamente entender a sua atitude perante a prática crítica e o seu comportamento na luta de classificação (em termos do que pode ou não caber no âmbito de tal prática) que a querela atrás descrita representa. De facto, se atentarmos aos pressupostos básicos de cada paradigma e ao material empírico que atrás apresentámos, vêmos efectivamente os protagonistas do paradigma filológico a adoptarem um discurso de defesa da ortodoxia face à prática crítica, visando o seu interesse de manter a doxa do campo (crenças e princípios nele firmados e afirmados como tradição, aqui consubstancializados nos valores da Cientificidade, da Clareza, da Objectividade, do Bom Senso e do Bom Gosto, do respeito pela Verdade da Arte e da Literatura na sua especificidade supostamente ontológica e, como tal, da Modéstia e Passividade do crítico), fundamento da sua autoridade no campo. Vêmo-los também a operacionalizarem constantemente uma estratégia de subvalorização e de ridicularização das acusações e princípios formulados pela Nova Crítica barthesiana, estratégia essa que visa simultaneamente desacreditar a legitimidade daquela corrente e conservar a posição privilegiada que, em termos de dominação simbólica, eles próprios ocupam no estado de relações de força inerente ao campo da crítica. Por outro lado, os interesses e estratégias de sucessão partilhadas pelos protagonistas do paradigma comunicacional, pretendentes aos lugares de dominação no campo, são também bem visíveis: apesar de poder ser considerado um sector "progressista" dentro do espaço da prática crítica (isto na medida em foi responsável pela mudança radical do centro de interesse da prática crítica e do elemento de 357

autoridade sobre a obra do pólo do emissor/criador para o pólo do receptor, transformação essa que introduziu uma série de novas e pertinentes questões no âmbito desta prática, pondo em causa muitos dos pressuposto básicos partilhados pela crítica convencional, muitas das suas "evidências", vindo a quebrar o silêncio imposto por esse sector da crítica), no paradigma comunicacional ainda existe uma acentuada tendência para um desvio positivista e objectivista a nível dos requisitos exigidos aos resultados da prática crítica. Assim sendo, tentando não se comprometer demasiado no que diz respeito à questão da subjectividade do crítico e definindo, para isso, mecanismos que supostamente exercem o controlo desta (alicerçados no princípio da idealidade do conceito), vêmos os protagonistas deste paradigma a assumirem um discurso e a utilizarem uma estratégia que visa uma inovação limitada e prudente, aceitando, no fundo, os princípios e valores oficiais e institucionalizados no campo que tradicional e convencionalmente fundamentam a autoridade simbólica do crítico perante o leitor "comum" e perante a "ala subjectivista" do campo da crítica. Por último, vêmos a Nova Crítica, materializada na figura de Barthes, a adoptar plenamente uma estratégia de subversão, accionando mecanismos que tendem nitidamente para a heresia, para a heterodoxia em relação à doxa estabelecida no campo, pondo em causa todos os alicerces que a fundamentam. Qual é, então, o conteúdo das suas heresias? Em que se firma, concretamente, a transgressão do seu projecto teórico? Ao publicar "Sur Racine", Barthes viola um duplo tabu fortemente arreigado no campo da crítica: por um lado, ele toca sacrilegamente em Racine, amplamente considerado como sendo o último bastião da simplicidade e da clareza na literatura francesa, o clássico dos clássicos, o mais escolar dos escritores, com a agravante de ser considerado propriedade de Picard, seu adversário mais próximo e acérrimo; por outro, põe em questão o sentido tradicional do acto de criticar, denunciando a demagogia inerente aos valores partilhados e aos objectivos exigidos do exercício convencional da prática crítica. Ao analisar e criticar a obra de Racine, Barthes tem uma intenção bem precisa: a de aplicar um método estruturalista, no sentido straussiano do termo, à obra daquele autor, para que dela possam sobressair novos significados. Com vimos, na sua concepção, toda a crítica implica a utilização de um sistema de referências, de um certo ponto de vista, de uma determinada linguagem (que nunca poderá ser clara, dada a sua própria estrutura simbólica), gestos que, para grande escândalo de Picard, implicam sempre uma escolha, uma preferência subjectiva, uma posição ideológica. E por isso 358

mesmo, Barthes acha imperdoavelmente naif por parte da crítica universitária convencional pensar que alguma vez chegará ao "verdadeiro Racine", ao "Racine-emsi", sonho utópico que, na sua opinião, assombra as críticas ditas objectivas. Nesta sequência, o seu projecto teórico afirma-se como totalmente oposto à tradição de ensino da literatura e de investigação crítica que existe desde há muito na Universidade, atacando fortemente a atitude reaccionária desta e os mitos que a informam - a Clareza, o Gosto, a Objectividade, a Verdade Literária, o Bom Senso e a Passividade do crítico no exercício da sua prática - e afirmando novos pressupostos, radicalmente diferentes ou em contradição com os anteriores - o princípio da Língua Plural, o princípio da Subjectividade do Não-Sujeito, o crítico como produtor activo e criativo de sentido, a crítica como forma de Literatura e como tomada de posição individual, baseada em critérios não de objectividade mas de profundidade, rigor analítico e performatividade, etc -, pressupostos esses que tendem a definir as principais coordenadas da prática crítica actual. Com efeito, apesar da articulação ainda existente entre a crítica e a instituição universitária (onde os media vão cada vez mais procurar recrutar as suas ostes de intelectuais-comentadores) estimular ainda hoje a "necessidade" de aparência científica e de simulacro de objectividade nos resultados discursivos decorrentes daquela prática, os eixos fundamentais que definem a Nova Crítica barthesiana tendem actualmente a generalizar-se no âmbito de grande parte da crítica contemporânea. Daí que toda a agitação e violência verbal que presidiu ao desenrolar da querela que envolveu Barthes e Picard e que rapidamente se alargou e dividiu o microcosmos intelectual francês (e não só), nos possa surpreender e parecer tão descabida hoje em dia. A tendência para o reconhecimento generalizado dos princípios desenvolvidos e valores partilhados por Barthes a nível da prática crítica como referência central no campo que lhe é específico, é bem significativa nos depoimentos dedicados ao tema Criticismo que, depois de tal conflito, têm vindo a ser publicados nos diversos orgãos de imprensa ou sob a forma de colectâneas. Senão vejamos alguns excertos desses mesmos depoimentos, bem ilustrativos e ilucidativos dessa tendência. «A critic, however competent he may be, can never do the essencial work of responding for us. He can suggest, persuade, put things in a fresh light, but it is always left to us to try to listen to the voice of true judgement within - to make an act of selfexploration often needing the most delicade and developed self-discipline. (...) is 359

precise, definite, trenchant but never dictatorial (...). Practical criticism is no panacea, but it offers one of the best chances we have of making literature something personal instead of a set of teachings embodied in a series of admired authorities. (...) In practical criticism, where the stress is less on erudition and more insistently on personal response, he is most likely to begin to develop his capacity to read. (...) Critical discussion is not often a matter of driving someone else from an untenable position by irrefutable logic, though this may be involved in an ancillary way. Rather, we are trying to discover our deepest response which the conscious, articulate mind, preoccupied with a more superficial view, has been suppressing or ignoring. To maker a real change of view is to feel an inner, answering assurance, an acknowledgement that this is what we genuinely feel to be right. If we reach agreement, we shall not have proved hard, incontestable fact so much as established an understanding, a full and vital kind of sympathy. This is, of course, what the literary critic seeks to do with his readers, and this aim should always decide the tone of his writing. (...) Reading is a process of individual creative discovery, and the individual with his particular temperament and personal experiense, can always add something that is fresh and distinctively his own (...). They are simply accounts of how the literature appears to one person.»250 «Language articulates humanity, and the valuables uses of language are coextensive with the values we find in and give to our lives. It is thus inevitable that a literary work, as verbal artefact, and as personal utterance, and as social expression, should be indefinitely complex, and should have this indefinite complexity as a literary work and not as something else. Appropriate discussion of it therefore is susceptible os the same indefinite complexity; and if any part of such discussion is not to be called "criticism" we have no other name for it. (...) There can be no method of establishing all and only what has been done in a given work, because no restriction can be set on questions and viewpoints: the critic may have to call on the full range of his sensitivity and experience in affairs of life as well as in the world of books and ressources of linguist skill. His limitation will be his limits of skill and personality, or limits he has

250

RAWLINSON (crítico literário), The Practice of Criticism, op. cit., p.xi, xiii, xv e pp.7-8. 360

chosen, not limits imposed by the nature of critical interpretation.»251 «An awareness of the absense of standards of judgement independent of local, cultural, historical, social, and other specific circunstances, and hence of the impossibility of applying absolute criteria of any kind, does not mean that we cannot reason about works of art within an ordered logical framework: we must merely be aware of the relativity of that framework itself. In other wors: if the convention concerned demands an inner consistency, it there are canons of taste or plausibility or harmony or seemliness applicable to the artifact in question, it is possible to discuss it within that convention, provided always that the limited validity of such a framework is implicitly recognized, and at least occasionally made explicit. If there are no absolute standards of judgement, similarly there are no absolute standards of critical methodology. Here too the analogy with science must be recognized as fallacious and as a source of error. There is not, nor can there be, one all-embracing method of criticism, simply because there is no objective thruth to be uncovered; there is instead a multiplicity of motivations and intentions in the discourse about art, spriging from a wide variety of interests that underlie the desire to enter into the discourse. (...) Each of these, in my view, is valid, so long as it is recognized that each deals with a different aspect of a wide and multifarious subject matter and can yield results only in relation to the intentions that originally motived its formation.»252 Para Morse Peckman, «...there is no immanent or necessary connection between any work of literature and any interpretation of the work. On the contrary, the possibilities of interpreting any work of literature are, if not infinite, at least indefinably great.»253 Também para Roger Dadoum, a crítica hoje já não é entendida «comme contrainte ou servitude (servitude imposée par le text, imposés par l'auteur, imposé par la grille critique), mais au contraire comme voie de libération relativement au texte,

251

SPARSHOTT, Francis (crítico literário), "The Problem of the Problem of Criticism", in HERNADI, What is Criticism, op. cit., 1981, pp.10-11. 252 ESSLIN, Martin (crítico literário), "A Search for a Subjective True", in HERNADI, What is Criticism, op. cit., 1981, pp.203-205. 253 PECKHAM (crítico literário), "Three notions about Criticism", in HERNARDI, What is Criticism, op. cit., 1981, p.39. 361

avec lequel on se met en quelque sorte à respirer: (...) la critique fait danser le texte.»254 Segundo Pierre Dux, o julgamento produzido pela crítica «sera purement subjectif comme il est naturel - dans le domaine de l'art l'objectivité de jugement n'a pas de sens - et, comme il est souhaitable, reflétera l'optique personnelle du critique.»255 Em sintonia com esta posição está também Marie Francoise Christout, para quem «l'objectivité absolue est à peu prés impossible à attendre du critique, humain, trop humain! qui même s'il s'efforce de porter un oeil détaché sur le spectacle, est au font de lui-même soumis à des attirances, dominé par des prédilections qui, dans le meilleur des cas, et, mise à part tout attache personnelle, parvient à définir, conscienment ou non, les cannons esthétiques qui dominent son jugement.»256 Também os críticos da nossa praça demonstram já não acreditar nas virtualidades científicas da sua prática, não detendo, por consequência, qualquer espécie de ilusão quanto à objectividade dos enunciados discursivos que empreendem, no sentido de neutralmente chegar a uma "verdade" única e perene acerca do significado e do valor estético da obra. Na melhor das hipóteses, admitem deter uma resumida margem de objectividade nas componentes informativas do seu discurso, isto é, na apresentação do objecto ou evento que criticam, assim como na identificação dos seus elementos morfológicos, materiais e/ou técnicos. De resto, nas suas componentes interpretativas e judicativas, a subjectividade é vista por eles como uma inevitabilidade, uns mais resignadamente que outros. Em relação àquelas "verdades universais" e "objectivas" a que alguns críticos supostamente chegam, há a consciência de que estas não dependem senão de consensos sociais em torno do que, aqui sim, objectivamente, corresponde a determinados efeitos subjectivos decorrentes de uma leitura, efeitos esses que evoluem progressivamente no espaço e no tempo no sentido de uma cada vez maior concordância de subjectividades, sendo ao longo dessa dinâmica que vão adquirir o estatuto de "efeitos objectivos", de "verdades universais". A lição do M. Barthes foi bem aprendida. No entanto, quer se sintam mais resignados, quer se sintam mais insatisfeitos com a condição subjectiva do seu discurso, num ou noutro caso, ambos desenvolvem 254

DADOUN (crítico literário), "Pour une critique ironique (et tendre)", in Corps Écrits..., op. cit., p.

92. 255

DUX (crítico de teatro), "Reflexions sur la Critique Dramatique", ibidem, p. 103. 362

estratégias e atitudes através das quais tentam controlar e arbitrar essa mesma subjectividade, de modo a não caírem (como recomendava Barthes) num impressionismo superficial e prejudicial para o seu próprio estatuto de receptor privilegiado ou comentador credível, os primeiros tão somente na intenção de validar e fundamentar as suas conjecturas individuais (assumindo o princípio barthesiano da subjectividade do não-sujeito), os segundos crendo daí obter "ganhos de objectividade" para a sua acção (assumindo um princípio que poderíamos designar de objectividade da não-ciência, no sentido tradicional e positivista desta257): por um lado, há a tentativa de desenvolver na abordagem da obra uma estratégia de distanciação do eu pessoal em relação a um eu impessoal, recorrendo à operacionalização de determinados dados históricos acumulados e de determinados instrumentos e critérios que, actualmente, tendem a ser consensualmente vistos na comunidade académica como detendo um valor cognitivo, senão mesmo científico; por outro lado, tentam ao mesmo tempo desenvolver uma estratégia de aproximação e fidelidade constante à obra, nas suas mais variadas componentes imanentes, num esforço de depuração dos efeitos subjectivos mais desnecessários à enunciação crítica, porque de algum modo estranhos à obra, não autorizados por ela. Isto é, retirar aquela prosa que se faz pela prosa e não pela obra. A articulação virtuosa destas duas estratégias, trabalho que se faz sempre no fio da navalha, pressupõe-se pautada por valores de "independência electiva" e de "abertura estética", de "rigôr" e "aprofundamento analítico", de "argumentação informada" e de "honestidade intelectual", valores esses que, mesmo que operacionalizados com objectivos mais objectivantes, já não se encontram arreigados às noções de "verdade" e de "neutralidade" associadas a uma prática crítica tradicional, de cariz positivista. O esforço na operacionalização desses mesmos valores, na opinião dos nossos críticos, será mais ou menos recompensado consoante o seu próprio treino, que pressupõe um capital de experiência e de saberes diversos acumulado ao longo da sua trajectória 256

CHRISTOUT (crítica de dança), "La Critique Choreógraphique", ibidem, p.137. O que se quer fazer ver com esta distinção é que, no fundo, ambos os princípios traduzem-se no desenvolvimento das mesmas estratégias, tendo porém na sua base motivações divergentes, consoante os objectivos supostamente a atingir sejam a objectivação ou a validação do discurso crítico, ou seja, a tentativa de um "ganho de objectividade" ou da "fundamentação da subjectividade". Esta diferenciação põe-se entre os críticos que, reconhecendo a interferência da sua subjectividade no discorrer da sua prática discursiva, ainda desejam e procuram, utopicamente, uma certa "objectividade" na análise do objecto que propõe; e aqueles que, do mesmo modo que reconhecem a inevitabilidade da condição subjectiva da sua prática, não consideram sequer desejável e/ou vantajoso (porque impossível e, como tal, desnecessária) a sua objectivação, procurando conscientemente aproveitá-la no sentido da análise produtiva da obra e, através das mesmas estratégias accionadas, apenas validar a sua argumentação, a sua ideia pessoal sobre, nunca objectivar.

257

363

profissional que lhe permite, supostamente, uma maior gestão e auto-controle sobre a sua própria subjectividade. É na base destes princípios que os críticos tentam negociar as componentes de emoção e razão sempre subjacentes ao exercício da sua prática, promovendo uma atitude que poderíamos designar, recorrendo à expressão de Herman Parret, de pathos razoável258, fundamento da legitimidade do privilégio concedido à sua recepção. «Acredita na existência de uma crítica objectiva? Não, não acredito. Acredito pura e simplesmente que é necessário nós definirmos as regras, as formas da nossa própria subjectividade, para que ela seja mais ou menos conhecida pelos outros. Para que a subjectividade possa ser decifrada enquanto tal. Sobretudo a subjectividade não deve passar nunca por objectividade. (...) Ninguém exerce crítica como estivésse situado num lugar atópico e acrónico, isto é, sem espaço e sem tempo. O próprio espírito do tempo interfere bastante, dita leis, é coercivo nesse aspecto.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso) «É difícil, não é? Eu dantes acreditava, sabe? Se você me fizesse esta entrevista há três anos atrás eu diria "Claro! Evidentemente!". Uma vez, numa entrevista com uma jornalista do Sete, fui completamente bardina. O que eu disse aquela rapariga, meu Deus!! Claro que não! Claro que não! A subjectividade pode é ser pautada por um esforço de rigôr, por um esforço de honestidade. Agora objectividade... Para já, é subjectivamente que eu vou ler a obra, e depois é com base na minha subjectividade que eu vou criar um tecido de interpretação. Logo, subjectivo é desde a base, sem dúvida. Da forma como eu entendo a crítica, ou seja, sempre pautada por regras, por critérios visíveis de ombridade, esta subjectividade é a subjectividade de qualquer intérprete, seja o intérprete da Bíblia, seja o intérprete de um texto poético, seja um intérprete de que obra de arte fôr. Ora, a subjectividade é que fundamenta a interpretação. Claro que há componentes de objectividade. Eu não vou chamar a uma peça de teatro um quadro de pintor. Então eu estava passada dos carretos, tinha perdido o controle das minhas capacidades de percepção, intelectuais, etc. Portanto, dentro do bom senso, que é realmente aquela coisa larga mas ao mesmo tempo apertada que condiciona a interpretação, eu vou procurar para cada objecto que me é

258

PARRET, "O Pathos Razoável", in Comunicação e Linguagens, nº 10-11, Março de 1990, pp. 189364

dado ver, criar parâmetros de entendimento dele.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso) «Pode-se falar em objectividade em qualquer outra coisa? Objectivação! Objectividade, acha que o telejornal é objectivo? Acha que as notícias são objectivas? Então não sei, essa questão da objectividade é para aquele senhor que estava sentado ali fora, para aqueles grandes pensamentos que ele tem, chamado Miguel Sousa Tavares, isso é que deve discutir com ele. (...) Honestidade parece-me também uma coisa importantíssima, de modo a poder exprimir essa sua sensibilidade da maneira mais objectiva possível. Isto é uma asneira! Eu quando estou a dizer "objectivo" não quero dizer... É de forma a objectivar aquilo que se sente. Ser-se honesto em relação àquilo que se sente.» (Patrícia Cabral, crítica de literatura no Diário de Notícias) «Eu gosto sempre de ressalvar que a crítica, no fundo, para nós sermos honestos, temos que reconhecer que não passa de uma opinião pessoal. A crítica é também, como a arte, um exercício de subjectividade. Não existe crítica científica, isso foi um mito totalmente derrubado. Uma crítica não é por exemplo, como uma fórmula química que sempre que você repete a experiência obtém sempre o mesmo resultado. A crítica não é assim. É por isso que muitas pessoas se admiram de que quatro críticos tenham opiniões absolutamente divergentes sobre o mesmo filme, ou o mesmo livro. Portanto, não se pode dizer, no fundo... Quer dizer, dizer-se pode, não se pode é documentar se uma coisa presta ou não presta. O que nós podemos é honestamente exprimir a nossa opinião da forma mais fundamentada possível.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente) «Um crítico é sempre "engagé", não "engajado", não comprometido partidariamente, que não deve ser, quando olha para uma determindada obra de arte e diz "Isto não é realismo socialista, detesto!, ou isto é Brecht e detesto". Não! Estar aberto a todas as correntes, mas tem as suas preferências. Eu por exemplo, gosto do teatro de texto, de emoções, de actores, embora também esteja aberto a outras coisas. Mas claro que não vou dizer que sou imparcial, porque ninguém é. Eu gosto mais ou menos daquilo que vejo a partir de um conjunto de pressupostos que me são mais

206. 365

agradáveis a mim. Detesto coisas chatas. Tenho visto peças de sete horas que me parecem que têm uma, e tenho visto peças de três quartos de hora que tenho a impressão que têm sete. O tempo é muito subjectivo e a crítica também é, por muito que se diga, é de facto.» (Tito Lívio, crítico de teatro na Capital) «Só é objectiva no sentido em que informa. Mas se eu estou a dar a minha opinião, a objectividade é um bocado relativa. Há pessoas que continuam a achar que a crítica pode adquirir o estatuto de ciência. Eu desse lado não gosto nada. (...) Eu acho que isso não existe. Pode-se ser independente, pode-se ser apartidário, pode-se ser uma data de coisas, mas a visão é sempre nossa. É evidente que há factos que são factos, e a partir daí, não há hipótese de os contornar. Mas depois, a partir daí, formula-se a opinião sobre as coisas.» (João António Dias, crítico de literatura no Independente) «Objectividade não tem nada a ver com neutralidade. Pode não ter. Objectividade tem a ver com tudo o que é o relacionamento com determinada obra em termos objectivos, quer dizer, com aquilo que é, por exemplo, os processos de construção implicados nessa obra. É objectivo dizer que não é acrílico e que não é óleo, e que o acrílico se determina de determinado tipo de características físicas efectivas, em termos de transparências e de não sei quê. A esse nível, há uma abordagem objectiva, mas não me parece que seja esse o elemento mais determinante da relação que se estabelece com a obra. (...) Não existe qualquer vontade de circunscrever a crítica numa posição de não-subjectividade, não há qualquer vantagem nisso.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso) «É caso para perguntar o que é a objectividade. A objectividade é um consenso, é chegarmos a um consenso, em que não será só a opinião de um mas a opinião de muitos, que nos leva a dizer que Picasso é um dos maiores artistas modernos do século XX, senão o maior de todos. Há um certo consenso, isto acaba por ser objectivo. É difícil rebater esta afirmação, já somos muitos a dizê-la. Mas para isso houve uma prova longa, uma vida de artista de mais de 50 anos de prática. E em face dessa prova longa é que hoje é possível dizer isso. Mas quando ele surgiu era uma grande asneira dizer que o Picasso era o maior pintor do século XX. Era impossível dizer isso. Com a distância do tempo, não há dúvida que é um dos melhres artistas do século XX e um dos 366

maiores de toda a história da arte. Já podemos afirmar isso assim, mas para isso foi preciso tempo. Portanto isso é objectivo, mas exige tempo e consenso, a convergência de opiniões de pessoas com responsabilidade na matéria.» (Eurico Gonçalves, crítico de artes plásticas no Diário de Notícias) «Penso que o estudo das letras, ao abdicar das miragens de uma cientificidade que nunca possuirá, deve assumir sem má consciência nem complexos de inferioridade dois aspectos fundamentais: em primeiro lugar, a percepção de que todo o texto é escrito para ser lido e que, ao pressupor essa leitura, ele só existe graças aos efeitos que consegue criar ao nível de cada leitor individualmente considerado. Assim, aquilo que alguns quiseram designar por "literalidade" (...) não se define abstracta ou cientificamente, pois trata-se de um efeito subjectivo que varia de leitura em leitura e que só adquire maior peso graças a uma progressiva confluência de subjectividades que com o tempo se vão tornando mais (ou menos) consensuais.» Em segundo lugar, «a consciência de que todo o sentido, ao transmitir-se, sofre um desvio, uma incessante refracção que irreversivelmente o afasta daquilo que, no limite, corresponderia à sua utópica ou pressentida verdade.» (Fernando Pinto do Amaral, crítico de literatura no Público)259 «Conforme o ponto de vista em que nos colocamos, e colocamo-nos sempre em algum ponto de vista, o cineasta X ou Y é bom ou mau, o livro X ou Y é bom ou mau, e portanto a relação com a arte é sempre uma relação de valor. Isto é, objectividade é de facto uma treta, porque não há ninguém que de repente se retire da sua própria subjectividade e consiga, como se fosse desejável, o que de facto não é, manter uma relação objectiva com os objectos artísticos. Aliás, fico sempre desconcertado quando veja algum artista ou algum cineasta a pedir que a crítica tenha uma relação objectiva com o seu próprio trabalho. Não tem, nunca terá, e acho que é bom que não tenha, nem a procuro. (...) (a crítica) não é a revelação de nenhuma verdade, isto é, eu não tenho nenhuma verdade para oferecer às pessoas sobre aquele filme. O que eu posso ter, e tento ter, é a minha própria verdade na relação com o filme. Portanto, a crítica será de algum modo algo que começa nessa relação, e que envolve um acto de exposição. Isto

259

Palavras citadas do seu artigo "O Céu e a Terra", in Ler, nº14, 1991. 367

é, ao fazer uma crítica eu estou sempre a expôr algo que é muito meu, e que tem a ver com essa relação com o filme. (...) Depois, há factores de outra ordem, que têm a ver com os próprios elementos que constituem o filme, isto é, eu tenho o mais possível de trabalhar com aquilo que está no filme, com aquilo que o filme é, com aquilo que o filme me dá, e não com aquilo que o filme poderia ter sido, ou que eu imagino que poderia ter sido. (...) a minha relação com o filme não pode partir disso, tem que partir daquilo que eu encontro lá. Isto para dizer que a tal relação singular que eu estabeleço com o filme tem, apesar de tudo, modos de validade, e esses modos de validade, sendo obviamente discutíveis, sempre discutíveis, jogam-se na relação directa com elementos específicos que estão no filme e não com aquilo que poderia estar ou com aquilo que foram as intenções do autor.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso) «Poder-se-á falar de objectividade na crítica? Não. Pode-se falar em criação de instrumentos que tendam a garantir a máxima objectividade. Instrumentos e atitudes. (...) (a crítica...) não pode ser definitiva, tem que revelar os pressupostos da sua construção, como o discurso científico. Se bem que a crítica não seja um discurso científico... Como um raciocínio científico. (...) há uma implicação subjectiva, que eu não estava a menorizar...» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público) «Acha que a crítica poderá assumir o estatuto de ciência? Nunca. Nem a ciência é ciência, é uma pura especulação. Tudo o que dependa da argumentação não pode ter um critério científico, pelo menos em termos mais ou menos positivistas. Como hoje em dia a própria ciência depende mais da argumentação do que da experiência, a coisa é um bocado difusa. Eu valho o que valem os argumentos. E como eu disse, pode aparecer um fulano a dizer exactamente o contrário com argumentos até, se calhar, melhores que os meus. E quem é que tem razão? A objectividade não é mensurável, pelo menos no cinema, por causa das emoções, por causa da ideia de arte, etc. Quando se perde a medida, não sei se não se perde também a ideia de ciência. (...) é impossível não ter preconceitos. Creio que uma crítica excessivamente apaixonada, e não estou a pôr no excesso nenhuma carga pejorativa, deixa de ser crítica e, no entanto, pode ser belíssimo. Estou a falar dos textos do João Bénard da Costa. Aquilo não é crítica, porque aquilo, de facto, é uma divagação amorosa entre ele e aquelas pessoas. Mas já não é crítica, ele próprio o reconhece. Aquilo é outra coisa, que por acaso é 368

extremamente indefinível. Mas não é crítica, porque não tem nenhum lado de análise, tem só um lado relacional, um lado puramente afectivo. Prescinde do rigôr. Aqueles textos são muito pouco rigorosos, faz citações que não estão no filme, vê coisas que só ele é que viu, mas isso é a força daquilo. (...) Agora, nunca por nunca a razão está contra a emoção. Pelo contrário, alimentam-se uma à outra. Então como é que consegue a objectividade na crítica? Se o filme trata de emoções, eu consigo aceder a essas emoções, à verdade dessas emoções, mediante alguma bagagem de cultura cinematográfica que sou suposto ter, e mediante alguma capacidade de raciocínio, de razão que o filme possa suscitar.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público) «É evidente que a crítica faz-se sempre de um ponto de vista pessoal. Por mais objectiva que eu tente ser, sou eu que estou a escrever. Mas tem que haver uma tentativa de separarmos as coisas, ou seja, se eu não gosto de policiais, tenho de separar isso, tenho que arrumar isso quando estou a ler um policial, e tenho de tentar distinguir porque é que aquilo é bom ou é mau. Não é a minha opinião que interessa ali. Há, apesar de tudo, um certo número de regras e de princípios que são mais ou menos abstractos e que nos podem levar a dizer se dentro daquele género é um livro bem feito ou mal feito. (...) E como é que consegue manter essa objectividade? Isso é treino, também. Podemos pôr a paixão entre parentesis e tentarmos ser objectivos ao analisarmos as coisas. Há parâmetros para essas coisas, que são esses da construção do livro, das personagens, do tipo de narrativa, como é que as coisas se articulam... Falar do texto segundo as regras que há para se falar do texto literário é sempre uma maneira segura.» (Tereza Coelho, crítica de literatura no Público) «A crítica tenderá procurar a objectividade. Há sempre uma carga de subjectividade muito forte. Eu julgo que se um dia, e espero que nunca aconteça, existirem máquinas a fazer as críticas em vez de seres humanos, a critica será objectiva, mas não sei se haverá alguma vantagem nisso. O próprio pendor subjectivo daquele que se responsabiliza pelo que diz e por aquilo que ajuiza é uma componente muito forte, isso faz parte da vida, nós não somos máquinas. (...) E como consegue equilíbrio entre subjectividade e objectividade? É uma questão de treino também. Naturalmente isso hoje é-me extremamente fácil, mas inicialmente não seria tão fácil. Mas é uma questão realmente de treino, prática. Procurar o equilíbrio nessas 369

situações. Muitas vezes acabei por escrever um adjectivo, eu risco pouco quando escrevo, e de repente altero para outro porque pode ser mal interpretado ou porque tem razão a mais ou coração a mais, e prefiro outro que possa ser entendível de uma maneira, talvez quem sabe um pouco mais neutra.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de Notícias) «Pode-se falar de objectividade na crítica, mas existe também uma dose de subjectividade, necessariamente. São indissociáveis. E de que forma é que consegue estabelecer essa objectividade? Consigo estabeleccer essa objectividade da seguinte maneira: pega num crítico com muita experiência, põe-no perante um filme de um qualquer autor difícil, Woody Allen, apresente um filme dele a criticar a um novato e a um crítico que já tenha trinta anos de experiência. E tem conclusões completamente distintas, tem formas de análise completamente distintas. O que mostra que há certas ideias que se vão sedimentando, como é natural, permitindo ao crítico fazer uma análise tendo em conta tudo o que ele teve para trás.» (Francisco Perestrello, crítico de cinema na Capital) «Acho que sim. Eu acho que a objectividade é inerente à crítica... Como é que eu hei-de dizer? Mas também não é importante que o seja a 100%. A crítica pode ser um texto criativo, aliás é defendido pelo Barthes que o texto pode ser desmontado e depois remontado, e que nessa situação de remontagem se possa introduzir uma certa criação, portanto, o crítico transformava-se também em criador literário. A objectividade aí tem as costas um bocado largas. Sim senhor, eu sou pela objectividade, mas predominatemente eu penso que um texto pode ser desmontado e remontado e aí a objectividade ser um bocado mal tratada. O que não é negativo, do meu ponto de vista. E que formas é que encontrar para atingir uma maior objectividade? Por exemplo, não sair do texto. Ler o texto, criticar o texto sem sair dele. Sem remontar ao autor nem aos arredores do texto, quer dizer, aos elementos que possam ter interferido perifericamente no texto.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras) «Sim, claro, a crítica tem que ser objectiva. Tem que ser, o que não quer dizer que seja. A crítica impressionista e poética é uma crítica subjectiva. Agora, a crítica deve ser objectiva, na medida em que ela se deve submeter à integridade do objecto da própria crítica, ou seja, deve partir da integridade do objecto para elaborar o seu 370

discurso. E não partir prioritariamente dos fantasmas do crítico. Nesse sentido, a crítica deve ser objectiva. Portanto, no meu ponto de vista, a crítica de arte não é uma crítica do gosto, não se trata de explicar ao público se se gosta ou não gosta de uma coisa. Isso é relativamente fácil e, como tal, é desinteressante, não leva a lado nenhum. Uns gostam e outros não gostam. Acha que a crítica poderá então assumir o estatuto de Ciência? Sim, quer dizer, pode assumir um estatuto de ciência tal como as ciências são hoje em dia, que são científicas até certo ponto, não é? (António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente) «Eu penso que o crítico quando trabalha, tenta ser o mais objectivo possível. Eu penso que há parâmetros de objectividade essenciais. Por exemplo, perante a instalação do Bob Wilson eu posso dizer muita coisa, eu não posso é fazer um discurso sobre o branco (há uma dominância do branco na instalação). Dizer que o branco, suponhamos, retrata uma imagem do corpo calcinado... Há parâmetros de objectividade, não há objectividade. E há discursos completamente estemporâneos, completamente exteriores à obra, que não têm nada a ver com a obra e que estão a encher papel. Há exercícios líricos perfeitamente inúteis, que não se inserem em nenhum dos parâmetros de objectividade. A ideia de estabelecer parâmetros de objectividade é um pouco uma forma de dizer que não há objectividade, mas há parâmetros de objectividade. Tudo o que está fora desses parâmetros de objectividade corre o risco de se tornar prosa inútil, elocubrações meramente poéticas, sem qualquer relação com o objecto em causa. (...) Também dependem dos a prioris, porque herdamos todo um património conceptual que vem da crítica de arte, da história e da filosofia, herdamos tudo, temos de trabalhar com tudo isso. E isso faz parte da metodologia da crítica.» (Carlos Vidal, crítico de artes plásticas na Capital) Nesta perspectiva, como podemos constatar, as apregoadas virtudes de uma crítica, mesmo que académica, fundada em critérios de cientificidade e/ou articulada por uma linguagem universalizante e objectiva, estão hoje em dia despidas que qualquer credibilidade, tanto teórica, como prática. A pluralidade, a relatividade, a individualidade e a subjectividade são valores que actualmente tendem a ser tranquilamente assumidos no campo da crítica em geral, tendência essa que com certeza não se encontra desligada das mutações que têm vindo a ocorrer a nível dos valores, representações e concepções relacionadas com a noção de Ciência e de todo o 371

vocabulário a esta comummente associado (noção de "certeza", de "verdade", de "objectividade", etc), a nível da abertura da Universidade às novas ideias relativistas, e nomeadamente a nível da própria noção de Arte, com a desmistificação da idealidade desta e do suposto "olhar puro" ou "ontogenético" que, como tal, se exigia sobre ela. O facto do crítico académico se ter deslocado da instituição universitária para as instituições massmediáticas, deslocação que veio a modificar profundamente a sua cultura profissional e as suas rotinas produtivas (em termos de espaço de aprofundamento e de tempo de reflexão), é um importante factor que, com certeza, também não se encontra alheio ao avultado ganho de lucidez que este conseguiu em relação ao valor dos resultados da sua prática. Pelo que nos é dado a observar, a querela Barthes-Picard não foi, de forma alguma, uma batalha em vão, sendo os seus efeitos hoje bastante notórios. A partir dela, não verificamos ter ocorrido uma ampla reestruturação no campo da crítica, ou seja, uma profunda e acelerada mudança ao nível da estrutura de relações de força que vinha desde há longa data a caracterizar aquele campo? Se tivermos em conta que, de facto, os recém-chegados ao campo, conjuntamente com os sistemas de valores, normas e princípios por eles promulgados em relação à actividade que exerçem, tendem actualmente a adquirir uma maior centralidade, notoriedade e operacionalidade no campo, assim como uma mais alargada visibilidade e reconhecimento público fora dele, isto, claro, em comparação aos mais antigos e convencionais, tudo indica que sim. É a mudança de testemunho que, de tempos a tempos, acontece nos lugares de dominação de todos os campos por via das lutas, mais ou menos violentas, que

neles se

desenrolam. E no caso concreto da República dos Críticos, o que assistimos nessa Grande Batalha foi à vitória do desejo sobre a frigidez.

372

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegámos finalmente ao termo da jornada que decidimos empreender ao longo dos tempos do espaço da crítica. Muito ficou, com certeza, por aprofundar e até mesmo por referir e discutir, mas também nunca foi nossa pretensão tudo abarcar, nomeadamente tendo em conta que este trabalho corresponde à 1º fase de um projecto com mais largas ambições, como indicámos na nossa introdução. Bastantes questões ficaram então, decerto, a pairar nas nossas mentes, atitude de resto salutar, principalmente perante um universo tão pouco abordado na àrea disciplinar em que nos achamos, como tem sido o da crítica. Podemos dizer que os objectivos centrais deste trabalho consistiram, no seu essencial em posicionar o lugar da crítica no sistema de acção colectiva em que se fundamenta o jogo da nomeação, legitimação e consagração artística, dando conta, simultaneamente, das funções e efeitos que a partir dele são cumpridas; em estabelecer o enquadramento teórico-prático para a abordagem do espaço da crítica na sua especificidade, tentando vislumbrar como é mantido e gerido o seu nível de autonomia relativa face aos campos que com ele se interseptam; e, finalmente, em restituír, com a preocupação de um olhar sociológico, o longo trabalho histórico que presidiu ao processo de institucionalização e de autonomização desse espaço concreto que lhe é hoje socialmente reservado - espaço esse, sem dúvida, fluído, considerando quer a pluralidade de situações institucionais e àreas culturais em que tal prática intervém, cada uma delas dotada das suas particularidades específicas, quer a diversidade de actos envolvidos no seu exercício, os quais, ao serem valorizados e privilegiados de modo diferente pelos seus agentes (consoante os seus respectivos sistemas de referências e contextos de produção), vão consubstancializar diversas formas de desempenho da prática crítica. Recordemos então, em tom de síntese conclusiva, os principais passos do itenerário que percorremos. Enquanto participante activo no sistema de acção colectiva que funda o mundo da arte, começámos por situar o lugar do crítico como dispositivo institucionalizado de mediação cultural, estrategicamente localizado entre a esfera de produção-criação e a esfera de consumo cultural e, nesta medida, operando como destacado interface ou

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zona-filtro, sendo a sua intervenção importante no modo como se articulam as relações existentes entre essas duas esferas que, apesar de separadas e relativamente autónomas no respectivo quadro de existência material e social, são, como vimos, indissociáveis e imprescindíveis uma em relação à outra para que a noção de arte viva e sobreviva. De facto, a interferência constante e omnipresente da prática crítica, nomeadamente via massmediática, no dito universo das artes e letras, funciona neste como um importante mecanismo de arbitragem das relações que se estabelecem entre o pólo do sujeito criador e o pólo do sujeito consumidor, proporcionando um contínuo acordo e/ou reajustamento entre os quadros de referência, códigos de leitura e modelos de conduta inculcados e operacionalizados face aos diversos artefactos que naquele campo são fabricados. Fazedora de encontros e desencontros, promovendo amores e desamores, a acção social da crítica, todavia, não funciona apenas enquanto simples dispositivo de mediação cultural, mas também, e sobretudo, como uma importante instância de produção de realidade estética e artística. Efectivamente, ao pressupor um investimento de sentido e de valor estético em determinados eventos e/ou artefactos materiais, a intervenção discursiva do crítico detém o poder de os transmutar em realidades artísticas ou, pelo menos, em realiades susceptíveis de serem discutidos no âmbito desse julgamento, tornando-se assim numa das principais instâncias activas no processo de produção simbólica dos objectos de arte. As ficções cognitivas e modelos de apreciação que os críticos fabricam sobre a realidade material com que se defrontam, dadas as suas várias componentes discursivas (informativas, contextualizadoras, judicativas e analíticas ou de reflexão), a par do lugar mediaticamente destacado por onde são difundidas e legitimadas, tenderão a instituir-se socialmente como quadros de referência "legais" diante dos quais a realidade cultural e artística poderá ser legitima e credivelmente aferida, ou seja, a partir dos quais os agentes internos ou externos ao campo artístico poderão estruturar os seus valores e representações acerca do que nele é produzido e orientar os seus interesses e actuações estratégicas dentro desse mesmo campo. Significa isto que a produção de discurso crítico implica sempre a incorporação na sua matéria significante de noções, conceitos, representações, valores, normas e princípios éticos e estéticos que, ao serem processados receptivamente, tenderão a ser inculcados e a afectar os quadros de referência através dos quais os seus leitores orientam a sua inserção social no universo das artes e letras, fornecendo modelos de 374

compreensão e de apropriação simbólica do que nele é fabricado. Podemos, nesta perspectiva, concluír que o crítico funciona como destacado operador entre a realidade material e a consciência estética, concorrendo de forma determinante na produção simbólica desta última. Esta maneira de encarar a prática crítica enquadra-se perfeitamente, aliás, no contexto das novas tendências de pesquisa sobre os agentes mediáticos em geral, as quais tendem a conceptualizar actualmente os meios de comunicação social como «instituições que exercem uma actividade-chave que consiste na produção, reprodução e distribuição de conhecimentos (...), conhecimentos que podem dar um sentido ao mundo, moldam a nossa percepção e contribuem para o conhecimento do passado e dar continuidade à nossa compreensão presente.» Ajudam «a estruturar a nossa imagem da realidade social a longo prazo, a organizar novos elementos dessa imagem, a formar opiniões e crenças novas.»260 De facto, ao contrário do ponto de vista tradicional que considera a comunicação de informação como relato, como mera transmissão - quase transparente - de um real evidente (ponto de vista este associado à designada Teoria Hipodérmica e às suas diversas versões desenvolvidas pela tradição americana de pesquisa sobre os meios de comunicação de massa), o ponto de partida das actuais tendências de estudo sobre os mass media baseia-se no pressuposto de que estes contribuem, de formas diversas, na formação da noção que temos do real (material ou social), que eles próprios constroem, fabricam, produzem grande parte das representações acerca da realidade que os sujeitos possuem. E o que significa tal forma de apresentar o problema? Segundo José Jorge Barreiros, «falar de produção de real implica, desde logo, considerar que o conhecimento e representações da realidade não são espontâneos, ocasionais ou inatos, obra de uma qualquer natureza humana ou da vontade divina, mas produzidos socialmente, fruto de influências, condicionamentos, orientações - indicativas ou normativas - resultantes das múltiplas situações de inserção e relacionamento social em que os sujeitos vão participando.» Resultam também, em grande parte, da actuação estratégica e objectivamente orientada e orientadora de determinados «agentes sociais portadores de algum grau de intensionalidade e com algum nível (poder) de intervenção

260

McQUAIL, cit. in WOLF, Teorias da Comunicação, op. cit., p. 13 e 126. 375

(socialmente legitimado) no património cognitivo e cultural dos sujeitos e na estruturação das suas práticas (sociais e culturais).»261 O crítico é, sem dúvida alguma, um destes agentes. A legitimidade que possui por ordem das competências especializadas que se pressupõe deter, conjuntamente com o poder simbólico que lhe advém dos meios de difusão e de circulação do seu discurso que actualmente tem ao seu dispôr, são factores que, entre outros, o transformam hoje num dos principais agentes intervenientes no processo de produção de realidade estética, traduzindo-se a sua acção em consequências significativas ao nível da formação da consciência estética dos indivíduos, dos modelos de apreensão e cognição e sistemas de representações, valores e normas que a consubstancializam, assim como ao nível da orientação e regulação da sua conduta social no campo das artes. Em que consiste então, mais concretamente, a acção de produção de realidade estética empreendida pelo crítico? Como opera este actor no processo de produção do real estético? Como tivemos oportunidade de constatar, o trabalho social do crítico implica desde logo a selecção e a apresentação pública dos acontecimentos e/ou obras que considera passíveis de serem olhadas, pensadas e discutidas como artísticas, actuando a este nível como mecanismo de gatekeeping no domínio das artes e letras. Este mecanismo sugere desde já a importância que a dimensão visibilidade pública intrínseca à prática crítica adquire hoje em dia, dando conta do facto de, actualmente, serem susceptíveis de assumirem o estatuto de realidades estéticas e artísticas apenas os bens ou acontecimentos que, triados por aquela instância, são mediaticamente apresentadas e discutidas como tal, operando assim como mecanismo de controlo e de protecção do acesso ao campo artístico. Quer-se dizer com isto que o próprio acto de seleccionar objectos ou eventos merecedores de destaque público em termos de discussão estética implica desde logo uma mais-valia simbólica sobre os mesmos, a partir do qual é gerado o contexto de apreciação, classificação e organização hierárquica destes na sua relação com outros objectos e em função de critérios sempre histórica e contextualmente situados, sendolhes atribuídos conteúdos e valores simbólica e socialmente diferenciados. Nesta perspectiva, a acção do crítico revela aqui a sua importância fulcral como produtora de visibilidade e de notoriedade pública sobre o artefacto ou acontecimento que realça (assim como sobre a reputação social do respectivo criador), integrando-os na lista

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BARREIROS, Imprensa Escrita e Produção de Real (Provas Académicas), Lisboa, ISCTE, s.d., p. 376

daquilo que é publicamente considerado "necessário" ver, ter opinião e discutir em termos estéticos. Mas o crítico não se limita a orientar os seus leitores no sentido de informar sobre que bens ou eventos eles se deverão prenunciar esteticamente. A sua acção vai intencional e manifestamente mais longe, pretendendo também conduzi-los no modo como poderão olhar, pensar e discutir sobre esses mesmos objectos, concedendo-lhes pistas e possibilidades sobre a maneira, na sua opinião, mais "conveniente" ou "adequada" de fruí-los, fornecendo-lhes determinados modelos de enquadramento simbólico de apreciação e compreensão que, ao serem incorportados no património cognitivo e cultural dos sujeitos receptores, vão servir-lhes como matrizes práticas de referência perante tais objectos, aquando da sua apropriação material e/ou simbólica. Nesta óptica, o crítico não se apresenta no campo artístico apenas como gatekeeper, mas também como opinion-maker e taste-maker, na medida em que o objectivo central da sua acção discursiva não se reduz à mera informação mas também, fundamentalmente, à formação dos seus respectivos leitores, de maneira a proporcionar-lhes uma certa competência estética e uma certa ordem de inteligibilidade que lhes permita uma fruição mais profunda e activa do objecto que lhes é apresentado. Daí que a intenção pedagógica inerente ao exercício da crítica também não deixe de ter as suas consequências ao nível do processo de produção de realidade estética: ao permitir-se e ao ser-lhe permitido, pelas competências estéticas que lhe são socialmente reconhecidas, formular e divulgar publicamente as suas apreciações e interpretações sobre determinados objectos ou eventos, o crítico não está, como é aliás a sua intenção declarada, somente a tentar mobilizar a atenção e o interesse do seu público específico perante tais objectos e/ou eventos, fornecendo-lhe pistas para uma apreciação e interpretação dita competente; objectivamente, ele está também a operar uma injecção de valor estético (passível de ser convertido em valor económico e social) e de sentido(s) sobre os bens em questão, valor e sentido(s) esses que tenderão a fixar-se publicamente como os legítimos, porque credíveis. Assim sendo, a acção do crítico, nas suas componentes judicativas e interpretativas - que passam pela atribuição de determinada cotação estética e conteúdo significativo a determinada realidade material -, adquire uma considerável centralidade no processo de produção de valor e de sentido(s) estéticos sobre os diversos artefactos

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materiais pretendentes ao estatuto de artísticos, concorrendo em larga escala para a aceitação, integração e consagração destes no interior de um artworld. Nesta perspectiva, não podemos deixar de considerá-la como um dos principais dispositivos sociais institucionalizados de produção de real estético, assumindo um papel preponderante na construção quer da própria noção de realidade estética, quer dos sistemas de normas, valores e princípios através dos quais aquela tende a ser aferida pelos restantes agentes sociais, regulando o comportamento destes no universo das artes e letras. Interessa, no entanto, precisar que não pretendemos nunca, de todo, dar a entender a intervenção social do crítico como uma interferência directa e automática, como uma acção de imposição mecânica e determinista, como uma influência tipo correia de transmissão em relação à qual os seus receptores se encontram necessária e inevitavelmente sujeitos, conformando acrítica e passivamente a sua conduta no campo artístico em função das apreciações e orientações cognitivas propostas nas versões discursivas do crítico. Com efeito, a acção cultural deste agente social não resulta imediatamente em doutrinamento, não constitui, inevitavelmente, palavra de ordem: se, por um lado, o discurso que produz incorpora sempre determinadas referências simbólicas subjectivamente investidas e socialmente diferenciadas, por outro, a recepção e apreensão desse discurso por parte dos seus leitores implica sempre por parte destes o reprocessamento cognitivo dessas mesmas referências nele veículados, reprocessamento esse também realizado a partir dos respectivos sistemas de disposições e pressuposições éticas e estéticas incorporados e partilhados pelos sujeitos destinatários, podendo traduzir-se na concordância total, parcial ou nula com as opiniões, apreciações e interpretações publicamente apresentadas pelo crítico. Assim sendo, se entre os diversos sistemas de disposições e pressuposições éticas e estéticas socialmente partilhadas e operacionalizadas nas esferas de produção e de recepção de discurso crítico não existir, a priori, uma coincidência, uma afinidade, um ajustamento mais ou menos perfeito, é provável que entre ambas as partes ocorram múltiplas dissonâncias semânticas e hiatos culturais que virão, de alguma forma, a comprometer a operatividade e a eficácia simbólica da acção persuasiva do crítico ao nível da formação dos gostos e opiniões estéticas dos seus receptores, da estruturação e actualização dos sistemas de valores, normas, representações e princípios estéticos por estes partilhados, e da orientação pragmática das suas práticas e consumos culturais ou mais propriamente artísticos. 378

Daí a importância das ditas homologias que, no dizer de Bourdieu, tendem a caracterizar as relações que se estabelecem entre o campo da crítica e o campo dos orgãos de imprensa e destes, por sua vez, com os seus respectivos leitores, efeito esse que vem proporcionar o reencontro entre a esfera da produção e a esfera da recepção ao nível das "gramáticas" e dos diversos sistemas de disposições e pressuposições éticas e estéticas inculcadas e operacionalizadas em ambos os pólos, reencontro esse objectivamente necessário para que aconteça o fenómeno de semiose social previsto por Véron na passagem de qualquer operação de produção de sentido e de valor sobre qualquer matéria significante entre intérprete e receptor e, nesta sequência, para que a acção persuasiva do crítico seja exercida com a máxima eficácia. Por outro lado, interessa também realçar que o crítico não é, de modo algum, o único intermediário activo, sequer o mais poderoso, no processo de produção de real estético e artístico. As acções objectivamente concertadas e cúmplices entre toda a rede de agentes mediadores presente no sistema de acção colectiva em que se funda o campo artístico, embora tomem formas e conteúdos diferentes entre si e dos da prática crítica, também interferem activamente naquele processo, esbatendo-se igualmente aqui a ilusão da acção determinista e mecânica do crítico que, sem intenção, poderíamos ter criado ao longo deste trabalho. Convém, todavia, ter presente que: a visibilidade pública desta figura; a sua omnipresença nos mass media e destes na nossa vida quotidiana, geradora de um misto de familiariedade e de naturalidade perante a actividade crítica; o forte impacto comunicativo e cultural do seu discurso por via da sua difusão mediática; a acessibilidade (material) do seu discurso relativamente ao produzido por outras instâncias de mediação e de produção cultural; a sua proximidade de instituições com elevado grau de notoriedade e de credibilidade social (como a Universidade e os Media); e as competências estéticas especializadas que tendem a ser-lhe socialmente reconhecidas e exigidas, são factores que, reunidos, decerto contribuem na recente tendência de crescimento da parcela de participação e de poder do crítico no modo de funcionamento do campo artístico e nos consensos informais que a partir dele se estabelecem em torno de determinados nomes, possibilitando o alargamento do grau de eficácia da sua acção de nomeação e de consagração na esfera de produção artística, assim como da sua acção de persuasão na esfera do consumo (secundarizando e diminuindo

a

consciência

e

a

resistência

aos

mecanismos

objectivamente

manipulatórios inerentes à sua acção e aos efeitos sociais dela decorrentes enquanto 379

prática de mediação) e, desta forma, a ampliação do significado e dos efeitos sociais da sua acção de mediação cultural e de produção de real estético. De facto, ainda que não entendamos a intervenção social do crítico de uma maneira determinista, imediata e mecanicista, considerando que existem outros agentes envolvidos e que os sujeitos não são receptores passivos e acríticos, provavelmente ela constituirá uma das mais visíveis interferências mediadoras a nível do processo de produção de realidade estética, detendo uma importante influência sobre o modo como os indivíduos apreendem e valorizam esteticamente determinados artefactos materiais, singularizam os seus criadores e reconhecem os seus méritos criativos, estabelecendo com estes relações de afinidade em termos de "gosto" e de representações sobre a arte. Quer isto dizer que embora não resulte necessariamente numa inculcação automática e mecânica, a prática crítica nem por isso deixa de constituir uma das mais participantes e eficazes intervenções no património cognitivo e cultural dos agentes sociais activos no campo das artes, contribuindo em larga escala para a (re)organização e (re)configuração dos quadros de referência a partir dos quais se opera a sua inserção social e se regulam e orientam os seus interesses e estratégias neste universo. Mas a preocupação analítica deste trabalho não recaiu apenas sobre a definição das características e dos efeitos do lugar da crítica no campo da produção cultural e artística, tendo também se orientado para a análise desse lugar na sua especificidade, cuidando de justificar-lhe a pertinência da adopção do conceito de "campo", considerando aí o seu grau de autonomia relativa em relação aos espaços que o interseptam, nomeadamente nas condições actuais do exercício da crítica em Portugal. Apesar de se caracterizar por um grau de codificação institucional relativamente fraco (na medida em que não exige, à partida, a detenção de um título oficialmente reconhecido, embora se note que esta vai sendo cada vez mais valorizado), vimos que o direito de entrada no campo da crítica pressupõe objectivamente a incorporação por parte dos agentes que lhe acedem de um conjunto de capitais culturais especializados na área de intervenção onde se propõem agir (conjunto esse configurado em requisitos de ordem teórica, técnica e histórica, de experiência prática sistemática com a área em que irá intervir, de uma disposição de sensibilidade sobre os objectos culturais que se propõem abordar e, finalmente, de ordem linguística e performativa), assim como a posse de um capital social acumulado especificamente junto dos campos da arte e/ou do jornalismo. 380

É através do conjunto destes capitais instrumentais específicos que é operado o processo de selecção, regulação e protecção do acesso ao espaço restrito da crítica, conjunto esse que, reunido, não é a priori exigido nem ao criador de arte, nem ao receptor cultural "comum", nem ao jornalista cultural, nem sequer a qualquer outro intermediário cultural activo no campo artístico, constituíndo a sua posse referência privilegiada no jogo de demarcações que o crítico empreende face a estes protagonistas, seus concorrentes mais próximos na luta historicamente travada pela autonomia do seu espaço de actuação. Se outrora o literato, por razão da sua contiguidade ao processo de criação e do dom da palavra que lhe era reconhecido, detinha legitimidade para fazer crítica fosse em que área fosse, hoje tal situação já seria difícil de conceber. O mesmo acontece com o consumidor ou o jornalista diletante no mundo das artes, figuras que no passado também ocupavam frequentemente os lugares destinados à crítica. De facto, tendo em conta que o processo de autonomização do espaço da crítica foi concomitante a um reforço, elevação e especialização de competências culturais específicas, este encontra-se actualmente reservado a uma minoria, a uma certa intelligentsia cultural, sendo a sua permeabilidade cada vez mais restrita. Já não basta saber-fazer arte, gostar de arte ou deter uma certa familiaridade com o mundo da arte para aceder ao lugar da crítica, importa sim saber sobre arte e saber racionalizar sobre a arte, o que pressupõe a posse de determinadas competências e instrumentos a nível histórico e conceptual que se irão traduzir numa determinada abordagem do objecto e numa determinada linguagem sobre o objecto distinta, porque especializada, das que supostamente seriam operacionalizadas pelos restantes protagonistas activos nesse mundo. Nesta perspectiva, é o reconhecimento social da posse e da legitimidade destes capitais culturais por parte do crítico, que garante o "crédito" de autoridade que o conjunto de agentes que se movem e se relacionam no campo artístico conferem àquela figura, fundamentando toda a rede de crenças que a envolvem e se reforçam mutuamente: a crença dos artistas na legitimidade dos críticos e dos seus veredictos, a crença do público no valor estético por eles atribuido e para o qual eles próprios contribuem, a auto-crença do próprio crítico na legitimidade da sua prática e dos efeitos sociais e culturais que dela resulta. A própria doxa em que se fundamenta o campo da crítica contemporânea apresenta também características que traduzem uma preocupação de manutenção da autonomia conquistada por parte dos seus agentes. Localizado numa zona de 381

intersepção entre o pólo da criação e o pólo do consumo cultural, o espaço da crítica estabelece com ambos os pólos relações privilegiadas na medida em que destas depende a sua sobrevivência - o crítico necessita do criador na medida em que é este que fabrica o seu referente discursivo, ao mesmo tempo que, sendo fundamentalmente representada como actividade ao serviço do consumidor, a sua prática terá sempre como destino um determinado público que a justifique e a legitime. Essas relações são hoje, no entanto, estabelecidas tendo como matriz de orientação alguns valores fundamentais como sejam os da independência, da abertura, do distanciamento crítico, do rigôr e do aprofundamento. No caso das relações mantidas com o pólo da criação, estes traduzem-se na preocupação do crítico, no exercício da sua prática, em evitar militâncias e contaminações decorrentes de cumplicidades vivenciais e de afectividades que porventura poderá ligá-lo aos artistas criticados (como era corrente quando a crítica se via aplicada na defesa incondicional de um dado grupo ou corrente estética), preocupação essa que, como vimos, poderá tomar a forma de afastamento físico e/ou de convivialidade artística pluralística. Desta forma, o crítico propõe manter a sua acção interpretativa e judicativa relativamente autónoma das intenções programáticas subjacentes à acção criativa. Já no caso das relações estabelecidas com o pólo da recepção cultural, embora o crítico faça associar à sua prática uma certa atitude pedagógica, esta não se traduz no abandono dos valores de aprofundamento e de rigôr analítico e, consequentemente, não se compadece com o leitor que não detenha ele próprio, a priori, os instrumentos necessários à compreensão do discurso do crítico. Ou seja, a expressão da vocação pedagógica do crítica não pressupõe uma nivelação de abordagem e de linguagem ao nível do receptor "comum", mas será este que, quando interessado, deverá "esforçar-se" tentar acompanhar o raciocínio do crítico. Isto porque o espaço da crítica, reivindicando-se da posse dos instrumentos adequados a uma recepção cultural credível, porque aprofundada e rigorosa, estabelece a partir do seu interior uma diferenciação qualitativa (e assimétrica) entre a fruição e o juízo estético do receptor cultural "comum" e a do receptor especializado que se pressupõe que ele seja, estipulando a existência de diversos níveis qualititivos e de aprofundamento de abordagem de qualquer obra de arte. Fundamenta-se então o princípio segundo o qual a abordagem estética da obra, no caso do consumidor cultural "comum", baseia-se numa lógica de adesão emocional (que consiste numa atitude de recusa ou de aceitação intuitiva) e de apreensão apenas táctil (que se resume ao acto de 382

gostar), enquanto que, no caso do crítico, implica para além desta, que é donde parte, uma lógica de inteligibilidade ou de racionalidade, que resulta no acto de compreender. Deste modo, o espaço da crítica autonomiza-se no campo da recepção cultural e fechase enquanto corpo dotado de uma autoridade própria, invocando para os seus agentes o estatuto de experts, de receptores culturalmente privilegiados. Todavia, dada a ausência de revistas e de circuitos de divulgação culturalmente especializados, vendo a sua prática circunscrita ao espaço da imprensa generalista, os críticos sentem, em Portugal, a insuficiência a nível das suas condições de produção e de difusão discursivas como ameaçadora de alguns parâmetros da sua margem de autonomia relativa, nomeadamente aqueles críticos que mais se distanciam em relação ao que se poderá designar como crítica jornalística, valorizadora das componentes informativas, contextualizadoras e judicativas em detrimento das suas componentes de reflexão. Este sentimento de privação acontece na medida em que se vêem muitas vezes comprometidos a deixar para trás alguns dos princípios e critérios operativos mais valorizados na sua doxa interna em detrimento dos próprios critérios orientadores da lógica de funcionamento produtivo dos media, como se passa, por exemplo, em relação ao princípio do prazer na selecção das matérias a criticar, que se vê substituído pela obrigatoriedade ao princípio da actualidade mediaticamente interessante (que nem sempre será, para os nossos críticos, equivalente à esteticamente mais interessante), ou aos princípios da profundidade e rigôr analítico e da reflexão maturada, que se vêem restringidos a espaços e a tempos demasiado curtos, assim como à aplicação de uma linguagem mais simplificada, que não raramente obrigam a indesejadas abordagens impressionísticas das matérias tratadas. Isto sem esquecer que, frequentemente, a visibilidade mediática que em termos gráficos é concedida pelos orgãos de comunicação aos eventos criticados, não é da responsabilidade do crítico mas do jornal que os propõe, obedecendo mais a critérios de importância jornalística associados à noção de acontecimento mediaticamente interessante do que a critérios de relevância estética. Estes constrangimentos são, todavia, atenuados, como vimos, logo desde o início, na fase de recrutamento do crítico (sempre através de convite pessoal) - na qual o jornal tenta adequar ao seu espírito programático e estilístico e entre os vários críticos disponíveis no mercado, o perfil que mais convém (que será o mesmo que convém aos seus leitores) -, assim como, num momento mais avançado, entre os vários processos de negociação que decorrem entre 383

editores e equipas operativas de críticos, através dos quais são estabelecidos e geridos os compromissos entre o esoterismo e subjectivismo dóxico do trabalho crítico e o exoterismo e critérios de relevância noticiosa prescrito pelo trabalho jornalístico. O nível de dependência que o espaço específico da crítica demonstra possuír em relação aos constrangimentos externos provenientes do espaço mediático acresce ainda na medida em que, fracassadas as tentativas associativas implementadas com o objectivo estratégico de aumentar institucionalmente e a partir do seu próprio interior a capacidade de demarcação e de auto-protecção do campo da crítica, ser o próprio campo jornalístico a gerir as entradas e as saídas daquele espaço, assim como a aplicação do sistema de sanções (como a expulsão do campo) e promoções (como a legitimação e credibilização social da assinatura do seu agente) no seu interior. Mas também temos que considerar que, não raramente, os seus superiores hierárquicos dentro do jornal, ou seja, aqueles que detêm o poder na regulação das entradas e na aplicação desse sistema de sanções, eles próprios serem ou terem sido protagonistas do espaço da crítica (como acontece com os casos Alexandre Pomar e o João Lopes no Expresso, Paulo Nogueira no Independente, ou Torcato Sepúlveda no Público), o que faz com que, em última instância, a gestão do espaço da crítica não se encontre totalmente alienado ao espaço da imprensa generalista. Nesta perspectiva, embora nas suas actuais condições de produção e de difusão em Portugal, o espaço da prática crítica seja bastante disponível às interferências (quer a nível da contaminação da sua doxa, quer a nível da gestão e organização da sua estrutura interna) decorrentes da sua total integração no campo alargado da imprensa generalista, caracterizado por uma situação que poderemos designar de autonomia ameaçada, denota-se a partir dele uma capacidade de gestão desses mesmos constrangimentos através de múltiplas soluções de compromisso que demonstram a sua vontade na preservação de um mínimo de autonomia relativa nas suas fronteiras e na definição da sua doxa particular enquanto corpo social específico (e enquanto outras alternativas não se vislumbrarem), dotado de interesses comuns e de uma legitimidade relativamente soberana por via dos saberes instrumentais que lhe são exigidos e reconhecidos, corpo social esse que reage como actor colectivo sempre que os seus interesses são postos em causa. Nesta óptica, é um verdadeiro campo que se define ou, pelo menos, que se pretende definir como tal.

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Quanto ao processo histórico subjacente à génese e autonomização deste corpo social de especialistas, vimos que foi durante o Renascimento que o espaço da crítica foi encontrar as suas proto-condições de possibilidade de emergência histórica, nomeadamente junto do processo de legitimação da prática artística enquanto prática intelectualmente informada e não apenas como prática artesanal. Neste âmbito, vêmos surgir a partir do interior do espaço artístico uma prática discursiva com objectivos teorizadores, intelectualizantes e implicitamente críticos em relação à arte (sob a forma de Tratados, Elogios, Biografias e Comentários), tomada a cargo dos intelectuaishumanistas da corte, primeira casta de letrados conhecedores de arte a reivindicarem-se das competências legítimas para a aferição, compreensão e apreciação do objecto de arte enquanto objecto dotado já não apenas de mão e suor, mas também, e sobretudo, de espírito, de ideia, de génio criativo. A valorização na prática artística de um saber técnico-teórico em detrimento de um saber técnico-prático, veio assim possibilitar a instauração de um lugar social para uma certa intelligentsia cultural (que se foi instalar nas academias que se propagaram na altura), lugar esse que foi monopolizado pela figura carismática do intelectualhumanista, a qual veio confiscar e intermediar o terreno da nomeação e consagração artística até aí encontrado nas mãos dos nobres e religiosos, principais consumidores de objectos de arte. No entanto, foi somente com o processo de fragmentação e racionalização dos saberes próprios do campo das artes encetado a partir do século XVIII, no contexto de uma cultura iluminista que cultivava o poder ilimitado na Razão e que se insurgia contra a arbitrariedade da mera opinião diletante e sensitiva que tendia a imperar entre os comentaristas de arte, que a Crítica veio a institucionalizar-se como disciplina autónoma, discurso específico e prática especializada, a par da Estética e da História de Arte, suas companheiras disciplinares onde, embora orientando-se para objectivos teórico-práticos distintos, muitas vezes passou a ir procurar elementos conceptuais para a fundamentação da sua abordagem. Na sua génese, vai ser no âmbito do espaço das Academias e dos Salões que populavam com vivacidade nos principais centros de irradiação artística e cultural e, consequentemente, das oportunidades discursivas que tais instâncias concediam (em algumas publicações específicas, anuários, conferências e palestras por eles organizados), que a prática da crítica emerge na sua especificidade e especialidade, sendo daí por diante assumida como principal modalidade discursiva de imputação de 385

sentido e de valor estético à obra de arte e de nomeação e consagração do seu respectivo criador, em detrimento das tradicionais biografias e tratados. Assim sendo, já longe da velha figura palaciana do humanista, vêmos a figura do crítico a institucionalizar-se como especialista independente e a autonomizar o seu saber e a sua prática discursiva sobre as artes em relação às que provinham dos campos religioso, científico ou até mesmo artístico. Não obstante ser durante o período setecentista que a crítica afirma a sua indepedência como género discursivo relativamente autónomo de outros saberes e práticas discursivas de temática artística, somente a partir de meados do século seguinte é que a figura do crítico salta para a ribalta do mundo das artes e letras, tornando-se personagem pública e imprescindível na sua dinâmica de funcionamento, vendo o seu poder de intervenção largamente dilatado em relação ao século precedente. Tal acontece, como vimos, na medida em que é por essa altura que se reunem toda uma série de factores que, reciprocamente, irão convergir nesse desenlace. Por um lado, encontramos a prática crítica a deixar de se circunscrever ao espaço formal e privado da Academia para passar a integrar o espaço público da imprensa, que começa a organizar-se segundo o padrão de mercado criado pelo processo de produção capitalista e que, nesta medida, vislumbra no campo de produção cultural uma fonte interminável

de

acontecimentos

mediaticamenta

interessantes

e

noticiáveis,

aproveitando o processo de reorientação da audiência da arte de uma elite hereditária para um público mais geral que era tentado e, simultaneamente, estimulando alguns mais a disfrutar com maior intimidade de formas de expressão que haviam sido apanágio de categorias sociais culturalmente privilegiadas. Desta forma, saíndo do espaço restrito da Academia e expandindo-se pelos muitos jornais quotidianos e especializados que surgiam, a crítica vê substancialmente alargado o espaço dos possíveis socialmente disponibilizado para si em termos de acção e de difusão pública, assim como o seu poder de nomeação, legitimação e consagração no interior do campo artístico. Por outro lado, é também a partir de meados do século XIX que encontramos alguns segmentos de artistas mais heterodoxos a decidir romper definitivamente com a cultura da figuração que havia até aí dominado na Academia e se acomodado ao gosto dominante do grande público. O objectivo destes movimentos de ponta era, em grande medida, o de serem reconhecidos mais pelo seu pensamento pictórico do que pela sua perícia técnica, entendida como submissão à Academia e à cristalização dos modelos 386

estéticos. Pelo que o virtuosismo técnico e representativo deixa de ser um objectivo em si e o experimentalismo ligado à vanguarda torna-se um experimentalismo de ordem conceptual. Os movimentos vanguardistas do início do século levaram até às últimas consequências esse egoísmo estético que já caracterizava os premonitórios artistas românticos, conduzindo a arte a um fenómeno de comunicabilidade social não-imediata em termos semânticos e valorativos, quer através da des-figuração da sua morfologia, quer através da problemática objectualidade dos ready mades, quer ainda, mais actualmente, pela desmaterialização do objecto artístico (Conceptualismo), ou pela desvalorização das técnicas artísticas artesanais em favor das de reprodução industrial. O processo de entropia artística empreendido a partir da acção estética destas primeiras vanguardas, consubstancializado na transformação radical que aconteceu a nível da sua morfologia e das técnicas de expressão nelas utilizadas ao pôr em causa todos os seus referentes históricos e empíricos e a auto-referenciar-se, veio igualmente acentuar a importância do lugar crítico no espaço das artes. Estigmatizadas pelas instituições até aí consagratórias - mas já em falência - devido à sua intenção subversiva de quebrar o ciclo da crença figurativa instalado, as suas acções vieram a ser convertidas em acções artísticas, registadas e consagradas como tal, em grande parte graças ao facto de terem sido perserverante e convictamente apoiadas e participadas pela acção discursiva e intelectualizante do crítico, tido a partir daqui como o único agente realmente habilitado a distribuir os elogios e as censuras, a apreciar e a descodificar essa nova arte que pretendia o incomensurável. Efectivamente, a extrema ambiguidade na definição do estatuto dessas obras como arte, deslocando os seus elementos institucionalizadores para domínios imprevistos, foi pôr o artista na estreita dependência das instâncias discursivas que o acompanhavam, as quais vão a partir daqui garantir o coeficiente de valor e de sentido estético necessário ao reconhecimento estético do seu objecto e à sua consagração como artista. Quer isto dizer que com as novas condições estéticas inauguradas, a recorrência à palavra escrita tornou-se cada vez mais necessária, num jogo de permanente articulação entre os actos de designação e de demonstração discursiva, como fiança do coeficiente de valor e de sentido artístico da obra de arte, jogo esse que vai começar desde logo pela assinatura do artista na obra e continuar no título que a acompanha gestos nominalistas e singularizadores da responsabilidade do próprio artista que, se não vão de imediato garantir a passagem do objecto ao estatuto de arte, vão pelo menos reservar-lhe a oportunidade de serem ajuizados e interpretados esteticamente, sem os 387

quais tal pretensão não teria viabilidade -, para chegar finalmente a essa instância decisiva que constitui o discurso crítico, no qual se concentra o poder de produzir as condições mínimas de inteligibilidade para que tais objectos sejam publicamente vistos, entendidos e apreciados como artísticos. Torna-se então notório como a presença e a acção do crítico, designadamente do crítico de vanguarda, ou seja, aquele que se consagra como tal na medida em que consagra obras e criadores cujo valor e sentido estético é dificilmente apreendido pelos amadores mais cultos ou até mesmo pelos seus concorrentes mais ortodoxos, veio a adquirir uma relevância fulcral no campo artístico na viragem para o nosso século, quando nele se começaram a desenvolver todo um conjunto de movimentos iconoclastas em relação à tradição, os quais a crítica protegeu e estimulou do ponto de vista da inovação estética, colaborando activamente na sua promoção social e legitimação cultural como seu porta-voz. Neste contexto, abre-se à crítica, a partir do final do século XIX, um espaço de autonomia e um poder de intervenção bastante mais alargado em relação ao que detinha anteriormente, agindo enquanto actividade especializada na produção de discurso compreensivo e judicativo sobretudo sobre a arte contemporânea no espaço da imprensa. Ao concentrar no seu perímetro o poder de designar e de demonstrar discursivamente o sentido e o valor estético que faz existir a obra de arte enquanto tal, o lugar da crítica torna-se num espaço simbolicamente investido no campo de produção artística, necessário ser trabalhado no âmbito de qualquer movimento que se queira ver reconhecido nesse estatuto. É nesta óptica que o crítico passa a ser uma presença constante e necessária no seio das vanguardas, e já não na condição de diletante eloquente dotado de dom da palavra, praticante de uma crítica literarizante, mas no estatuto de especialista dotado de conceito, praticante de uma crítica teorizadora, usurpando assim o terreno da crítica que até aí havia sido doado ao literato (nomeadamente daquela que era promovida no âmbito do espaço público). A ruptura destes movimentos iconoclastas com o sistema centralizado da Academia veio paralelamente acompanhada da dissociação e/ou indiferenciação em relação ao potencial público comprador e/ou contemplador das suas obras, público esse que se alargava na medida do interesse de uma burguesia que crescia em quantidade e poder em investir simbólica e materialmente em objectos de arte, mas numa arte segura na sua legitimidade. Com efeito, ao pôr em causa todos os referentes históricos e empíricos tradicionais da prática artística, as vanguardas deram origem a uma arte que 388

já não fazia imediatamente sentido como tal entre esse público, massa anónima e de vesgo olhar comercial a que o artista, em nome da sua irrevogável liberdade e autonomia de criação, não se queria ver sujeito. Tal situação faz, mais uma vez, com que a dependência dos artista em relação ao crítico acresça, na medida em que irá ser esta personagem que, armado de uma atitude pedagógica e civilizadora, virá a assumir-se (e será socialmente pretendido) como portavoz do programa e intérprete ou descodificador da obra destes artistas junto do público, enquanto agente de enunciação programática e de recepção especializada e credível, funcionando como agente mediador entre o mundo da artes e os seus público potencialmente interessados. Dando a sua caução intelectual a tais artefactos, acção do crítico vai chamar publicamente a atenção para o facto de que "afinal, aquilo também será arte", explicando o seu ponto de vista justificativo. Essa função de intermediário ao serviço do consumidor cultural ganhou ainda mais primazia aquando da intensificação da mercantilização dos produtos culturais e da dilatação das fronteiras da arte às comumente designadas indústrias culturais, traduzindo-se não apenas em ganhos de inteligibilidade sobre os artefactos que eram fabricados em ambos os pólos (que cada vez mais se encontravam), mas desdobrando-se também em elementos de informação, contextualização e judicação que, de diversos modos, viessem facilitar e orientar o trabalho de selecção do consumidor entre o inumerável cultural que cada vez mais encontrava diante de si. O alargamento e a valorização dos tempos de lazer como tempos susceptíveis de investimento cultural também teve a sua cota parte de responsabilidade no acrescer do valor de uso da prática crítica junto do consumidor, por quanto existe hoje uma disponibilidade para a arte e a cultura em geral que não existia até à bem pouco tempo, tendo-se dilatado substancialmente nos recentes anos, adquirindo uma centralidade social que não detinha. Entrando no nosso imaginário colectivo como objecto de consumo, investido de distinção social e de prazer cultural e intelectual, a arte e a cultura tomaram uma centralidade enorme nos nossos dias, quer em termos teóricos, quer em termos pragmáticos: o seu interesse já não revela uma atitude diletante e fútil ou, pelo contrário, altamente sofisticada e intelectualizada, verificando-se quer no domínio político, quer no nosso quotidiano. É neste contexto profundamente marcado pela intensidade, pela complexidade e pela pluralidade, quer a nível da produção cultural e de novas formas expressivas a considerar como artísticas, quer a nível das instâncias para a sua respectiva legitimação, 389

quer ainda a nível do seu consumo, que assistimos recentemente a uma ampla inflação dos discursos críticos na nossa imprensa escrita, com os acontecimentos culturais e artísticos a tornarem-se regularmente noticiados, comentados e debatidos como temas na ordem do dia. Os discursos críticos tornam-se omnipresentes no universo das artes e letras, sendo o processo de autonomização e de institucionalização que descrevêmos, próprio para assegurar a existência e o reconhecimento dessa categoria, demonstrativo de que o alto grau de especialização e o peso cultural cada vez maior da crítica até à actualidade, corresponde a uma necessidade social objectiva e não pode ser considerada uma actividade secundária, auxiliar ou parasita relativamente à própria arte. O processo de institucionalização e autonomização do espaço da crítica que descrevêmos e analisámos no seu plano propriamente social, foi paraleo a um desenvolvimento teórico e paradigmático em torno do modo de conceber e de praticar a crítica que, como vimos, também se traduziu ele próprio no desenrolar de um processo pela luta autonomica. Se a prática da crítica, até ao século XVIII, se encontrava associada a um conjunto rigoroso de regras que possuíam um valor de orientação vinculativo e normativo (quer sobre os modos de produção artística, quer sobre os modos de apreciação crítica), com a progressiva subjectivação da regra de arte, sustentada pela tradição do novo, enquanto estética de constante inovação, instituída pela modernidade, os códigos de descodificação e de apreciação crítica também se desmultiplicaram. Neste contexto, o fundamento de legitimidade na aferição crítica da obra passou a encontrar-se já não junto de um conjunto de regras arquetípicas associadas a um ideal de Beleza e de Representação objectiva da realidade material, mas junto da intenção do autor, fonte de autoridade na determinação prévia do simbolismo da obra e, como tal, supostamente reveladora do seu verdadeiro corpo de significado, sendo a sua autenticidade e originalidade aferida na base de uma análise sincrónica e diacrónica da produção dos artistas enquanto individualidades historicamente participantes de uma dada época e de um dado contexto. Em contradição com este paradigma, a aproximação da crítica formalista, de orientação idealista, veio, por sua vez, insistir no anonimato do autor e na independência da significação estética da obra em relação à sua intenção. Neste paradigma, a prática da crítica não teria de perscrutar fontes extra-estéticas e exógenas à própria obra para descobrir a sua verdade intrínseca, pois se esta lhe era intrínseca, somente através da sua análise meticulosa em-si-mesma e por-si-mesma, nas 390

suas componentes formais e imanentes, se chegaria à sua essência perene, transideológica e intemporal. Nesta óptica, se este último paradigma já pressupunha a autonomia do trabalho crítico em relação às intenções do autor, silenciando-o e exilando-o da relação privilegiada que mantinha com a obra, a ética positivista de que, tal como o anterior, também partilhava, pressupunha porém o valor da objectividade consubstancializado no apagamento pessoal do crítico como agente interventivo no processo de produção de sentido e valor estético. A relação daquele com a obra deveria ser totalmente isenta e neutra, de modo a permitir o trabalho de restituição de sentido pretendido. Em reacção a estas aproximações para-objectivistas, as várias teorias da recepção vieram desmistificar a ilusão de objectividade na crítica, despromovendo o Autor e a própria Obra como fundamento ou garantia de legitimidade do seu discurso, e proclamando no lugar destas instâncias o receptor como elemento fundamental no processo de significação e valoração estética. Assim sendo, no interior destes paradigmas, já não irá ser o código da produção, na sua componente intencional ou morfológica, que despotamente dita e impera sobre a descodificação empreendida pela da crítica, é a própria crítica que, apesar de subjectiva mas enquanto instância de recepção especializada e competente conceptual e performativamente, define a sua legitimidade como instituição produtora de códigos interpretativos e apreciativos legítimos. Afirmando o princípio da polivalência semântica de qualquer obra de arte, pressupondo a sua abertura no sentido em que as suas imagens exprimem um significado particular consoante o espaço e o tempo em que são lidas assim como a consciência de quem as recebe, o pensamento crítico, inicialmente submetido em termos de poder à intenção do autor ou à própria obra enquanto causa ou origem de significado, recupera então aqui o seu domínio e a sua independência, na medida em que a obra passa a apenas poder exercer o seu poder no espaço de actuação que o crítico, intersubjectivamente, lhe concede. E se no caso do paradigma comunicacional, numa atitude de inovação reconciliadora, ainda se tentaria, derradeiramente, amarrar a crítica à ilusão de um eixo de objectividade, na medida em que nele a operacionalização do conceito pressupunha a depuração dos efeitos subjectivos do crítico sobre a obra, já Barthes, esse herético inveterado, virá afirmar que a crítica nunca conseguirá atingir senão uma anamorfose da obra que tem por referência, deformação inevítável essa que, sendo constantemente vigiada durante a aplicação dos modelos conceptuais empregues 391

na sua produção, se não pretenderá jamais passar demagogicamente por verdade objectiva e pura, simultaneamente também não correrá o risco de caír na ordem do subjectivismo ingénuo e impressionista. É o limite da conquista da liberdade de acção e de expressão do crítico, conseguindo assim autonomizar o seu próprio campo de legitimidade discursiva, apreciativa e interpretativa já longe da referência à objectividade sobre a qual anteriormente se fundamentava. Com efeito, a crítica já havia conseguido afirmar totalmente a sua autonomia face ao espaço de criação e ao espaço da recepção cultural "comum", pelo que a referência à objectividade tornava-se disponível na luta para assegurar esse mesmo estatuto. Deste modo, vê-se assim consideravelmente aumentada no seu grau de independência no que respeita à doxa que funda a relação entre o crítico e a obra, resultado das lutas pela liberdade em relação aos campos científico, ao pólo da recepção e ao pólo da produção artística, constituindo-se como espaço social relativamente autónomo dos outros com que se intercruza e que o interseptam, ocupando um corpo distinto de legitimidade social assente numa ordem específica de dominação, a dominação sobre a ordem discursiva da aferição, classificação e interpretação do estético.

392

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404

ANEXOS

405

QUADRO Nº 1 (*) TEMATIZAÇÃO DOS ARTIGOS DE OPINIÃO (%) (Diário de Notícias)

TEMAS

1979

1984

1986

Política Nacional Política Internacional Temas Económicos Comunicação Social Forças Armadas / Defesa Temas Científicos Temas Culturais / Arte Educação / Ensino Temas Sociais Segurança Social Ecologia / Ambiente / Nuclear Informação Geral Espetáculo/Cinema/Teatro/ Música Saúde Temas Religiosos Temas Laborais / Sindicalismo Turismo Terrorismo Novas Tecnologias Temas jurídicos Desporto

46.05 12.5 8.55 3.29 7.24 3.95 3.29 3.29 1.97 1.97 1.97 1.97 1.32 1.32 0.66 0.66 0.0 0.0 0.0 0.0 0.0

37.63 13.62 7.17 7.53 2.16 0.72 6.81 4.66 3.58 0.35 2.87 1.08 2.51 1.79 1.79 3.23 1.08 0.72 0.35 0.35 0.0

39.73 11.87 5.48 5.02 1.37 1.37 10.96 2.74 7.76 0.0 2.28 0.46 0.91 0.91 3.2 3.2 0.0 1.37 0.91 0.0 0.46

Total

100.00

100.00

100.00

(*) FONTE: OLIVEIRA, Paquete , Formas de "Censura Oculta" na Imprensa Escrita em Portugal no pós 25 de Abril, Lisboa, ISCTE, 1988, p. 437.

406

QUADRO Nº 2 (*) TEMATIZAÇÃO DOS ARTIGOS DE OPINIÃO (%) (Expresso)

TEMAS

1979

1984

1986

Política Nacional Temas Jurídicos / Direito Comunicação Social Política Internacional Temas Económicos Temas Científicos Temas Laborais / Sindicalismo Temas Religiosos Temas Culturais / Arte Crónica Negra / Ocorrências Ecologia / Ambiente / Nuclear Novas Tecnologias Educação / Ensino Saúde Forças Armadas / Defesa Temas Sociais

22.5 16.13 0.0 4.85 9.68 3.24 14.52 4.85 1.62 1.62 6.45 1.62 8.06 3.24 1.62 0.0

23.08 10.26 5.13 5.13 17.95 2.56 0.0 5.13 2.56 0.0 2.56 2.56 5.13 0.0 7.69 10.26

56.0 4.0 4.0 4.0 4.0 4.0 0.0 0.0 12.0 0.0 0.0 0.0 0.0 4.0 8.0 0.0

Total

100.00

100.00

100.00

(*) FONTE: OLIVEIRA, Paquete , Formas de "Censura Oculta" na Imprensa Escrita em Portugal no pós 25 de Abril, Lisboa, ISCTE, 1988, p. 438.

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QUADRO Nº 3 (*) PROTAGONIZAÇÃO DE ENTREVISTADOS PERSONALIDADES ENTREVISTADAS (%) (Diário de Notícias, entre Agosto de 1983 e Junho de 1984)

ESTATUTO PÚBLICO DAS PERSONALIDADES ENTREVISTADAS

%

Artistas Economistas Eclesiásticos Escritores Gestores Historiadores Jornalistas Militares Políticos Nâo Identificados

19.4 2.8 5.5 19.4 2.8 8.4 2.8 5.5 30.6 2.8

Total

100.0

(*) FONTE: OLIVEIRA, Paquete , Formas de "Censura Oculta" na Imprensa Escrita em Portugal no pós 25 de Abril, Lisboa, ISCTE, 1988, p. 444.

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GUIÃO DE ENTREVISTA 1. Trajecto Profissional 1. Quando e de que maneira aconteceu começar a exercer a sua actividade como crítico? 2. E que razões o levaram a dedicar-se a essa actividade? 3. Em que jornais ou meios de comunicação social já exerceu a sua actividade como crítico? . Se já trabalhou noutros para além daquele que trabalha actualmente, quais as razões da(s) sua(s) transferência(s)? 4. Quando e de que forma se começou a interessar pela área artística em que hoje intervém como crítico? 5. Desde que iniciou a sua actividade como crítico, esta tem-se restringido à área artística sobre a qual trabalha actualmente? . Se não, sobre que outras áreas artísticas tem trabalhado? E a que razões se deve essa mudança de área de intervenção crítica? 6. No passado, que outras profissões já exerceu para além de fazer crítica? 7. E actualmente, para além da sua actividade como crítico, exerce alguma(s) outra(s) actividade(s), quer seja(m) relacionada com arte quer não o seja(m)? . Se sim, qual/quais? O que o leva a exercer essa(s) outra(s) actividade? 8. No caso de exercer mais do que uma actividade, de que forma encara a sua actividade crítica do ponto de vista profissional? 9. Caso a sua actividade como crítico seja exercida como uma actividade paralela/secundária, gostava de dedicar-se a ela a tempo inteiro?

2. Representações da Arte e do Artista 10. O que é para si Arte? Como definiria esse conceito? 11. O que é para si ser Artista? Como é que se reconhece um Artista? 12. No seu entender, um Artista possui características específicas que o tornam diferente das outras pessoas ou, pelo contrário, é uma pessoa como outra qualquer? 13. Na sua opinião, que requisitos determinado objecto deve preencher para que possa ser considerado artístico? 14. Considera haverem formas artísticas susceptíveis de serem consideradas «artes menores»?

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. Se sim, quais? E porque é que as classifica dessa forma? . Se não, porquê? 15. Para que um objecto seja susceptível de ser considerado obra de arte, acha importante que se trate de uma peça única? 16. Na sua opinião, acha que a criação artística é passível de estar inserida num processo de produção industrial ou de produção em série (limitada ou não)? Acha que os objectos culturais produzidos industrialmente ou em série (limitada ou não) são susceptíveis de poderem ser considerados obras de arte? Porquê? 17. A distinção que muitas vezes se faz entre Arte (com letra grande) e arte comercial faz algum sentido para si? . Se sim, de que forma? . Se não, porquê? 18. Quais pensa serem as consequências da actual tendência da crescente orientação da Arte para o mercado? Serão positivas ou negativas? Quais as positivas e quais as negativas? 19. Na sua opinião, existe um «mínimo denominador comum» na Arte em Portugal? Acha que existe o que podemos considerar uma Arte Portuguesa? Porquê? O que a caracteriza? 20. E acha que o crítico deve ter a preocupação de tentar proteger os produtos culturais que se fazem em Portugal em relação aos que vêm do estrangeiro? Porquê?

3. Representações da Crítica e do Crítico 21. O que entende por Crítica? Que actos implicam a acção de criticar? 22. Que características deve assumir, no seu entender, uma «boa crítica»? 23. No seu entender, qual a utilidade da crítica? Quais considera serem as suas funções no contexto do actual universo cultural ou artístico? 24. Considera a crítica como uma actividade mais ao serviço do criador ou do consumidor cultural? Porquê? 25. Quais são, a seu ver, as responsabilidades do crítico perante o leitor? 26. E quais são, no seu entender, as responsabilidades do crítico perante o criador? 27. Na sua opinião, o crítico deve preocupar-se em integrar o ponto de vista do autor/criador sobre a sua obra na crítica que dela faz? Cabe ao crítico explicitar a intenção do autor/criador na criação da sua obra?

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28. E o ponto de vista do leitor? Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com o leitor «normal» ou o leitor «médio»? 29. Exerce, exerceu ou alguma vez gostaria de ter exercido uma actividade artística como criador na área em que intervem como crítico? . Se exerceu ou gostaria de ter exercido, porque não seguiu? . Se não exerceu, porque não? 30. É comum ouvir-se dizer que os críticos são normalmente artistas frustrados ou falhados. No seu caso pessoal, identifica-se com esta afirmação? Porquê? 31. E pensando na generalidade dos críticos que conhece, concordaria com essaa afirmação? Porquê? 32. Se não concorda com tal afirmação nem no seu caso pessoal nem para a generalidade das situações dos críticos que conhece, porque será então uma ideia tão generalizada, esta do crítico como «artista frustrado»? 33. Como caracteriza, em traços gerais, o panorâma actual do universo da crítica? 4. O Poder do Crítico 34. Face à multiplicidade de protagonistas que hoje se movem dentro do universo das artes e letras, que poder afere à prática crítica? Como avalia o poder do crítico dentro do actual universo cultural? 35. É comum ouvir-se dizer que os críticos, pelo poder que detêm, são capazes de comprometer o êxito de um espetáculo ou arruinar uma carreira artística se publicamente manifestarem o seu desagrado face à obra em causa ou ao seu autor. Concorda? Assume para si essa responsabilidade? 36. Na sua opinião, em que é que se fundamenta a legitimidade do crítico para publicamente manifestar as suas opiniões estéticas? Em que se baseia a autoridade das suas apreciações? 5. A Formação do Crítico 37. Na sua opinião, que capacidades e/ou qualidades são necessárias possuir-se para se ser um bom crítico? Que tipo de competências este deve possuir para exercer essa actividade? 38. Provavelmente já ouviu criadores reclamarem que os críticos não deveriam escrever sobre o que eles próprios nunca praticaram. Concorda? Considera a experiência «nos bastidores da arte», digamos assim, necessária para um bom desempenho do trabalho crítico? 39. Considera necessário um crítico possuir algum tipo de formação académica relacionada com a área de actividade artística em que intervem? Porquê?

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40. No seu caso pessoal, possui alguma formação académica relacionada com a área de actividade artística em que intervem como crítico? . Se sim, qual? Onde e como a obteve? . Se não, nunca procurou obtê-la? Porquê? 41. Considera importante «credenciar» legalmente a profissão de crítico, ou seja, regulamentar juridicamente as competências exigidas à profissão de crítico? 6. Associativismo e Ética do Crítico 42. É membro de alguma Associação de Críticos? Porquê? . Se sim, que tipo de acontecimentos e/ou actividades organiza a Associação de que faz parte? Costuma participar nesses acontecimentos e/ou actividades? Com que objectivos? 43. Em que medida considera as associações de críticos importantes? 44. Na sua opinião, que princípios éticos devem orientar o crítico no desempenho dessa sua actividade? Com que limites éticos se deve preocupar quem faz da crítica profissão? 45. Quais são, na sua opinião, os principais «perigos» com que, do ponto de vista ético, o crítico se defronta hoje em dia? 46. Considera importante haver uma ética profissional legalmente regulamentada que oriente a actividade do crítico ou acha que a ética deste deverá estar vinculada às suas decisões pessoais? Porquê? 7. Rede de Relações do Crítico . Com os Criadores 47. Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido de artistas? .Se sim, que forma tomam esses contactos? (são relações de amizade, são apenas contactos profissionais, etc) Como caracterizaria esse círculo de artistas? Em que ocasiões se dão esses contactos? . Se não, porque não? 48. Normalmente conhece pessoalmente os artistas de cujos objectos/obras critica? . Se sim, de que forma isso se reflecte nas suas críticas? . Se não, é uma preocupação sua criticar apenas os trabalhos de quem não conhece pessoalmente? Porquê? 49. Os críticos são muitas vezes acusados de estarem organizados em «capelinhas» no universo cultural, de estarem integrados em grupos cujos membros vão privilegiar nas suas críticas desprezando ou maldizendo os membros de outros grupos. Concorda?

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50. Pensa que o facto do crítico manter relações de amizado ou contactos regulares com os artistas de cujos trabalhos critica pode de algum modo comprometer o resultado do seu trabalho? Porquê? . Com os Críticos 51. Mantém contactos regulares estáveis com outros críticos? . Se sim, que forma tomam esses contactos? Em que ocasiões se efectuam? Qual o objectivo desses contactos? Mantém esses contactos apenas com críticos da mesma área de actividade artística em que trabalha ou também de outras áreas? . Se não, porque não? . Com os Agentes de Comercialização 52. Mantém contactos regulares e estáveis com os agentes económicos ou de comercialização que intervêm na sua área de actividade artística? . Se sim, que forma tomam esses contactos? Como é que se estabelecem esses contactos? Em que ocasiões se efectuam? Qual o objectivo desses contactos? . Se não, porquê? 53. Quais são, a seu ver, as responsabilidades do crítico perante os vários agentes económicos intervenientes no mercado artístico (editores, galeristas, distribuidores, etc)? 54. É comum ouvir-se acusar a crítica de ser conivente com os vários agentes económicos do mercado artístico e com as suas manobras especulativas. Concorda? Não desempenhará o crítico também uma função económica junto do mercado de bens culturais? 8. O Estatuto do Crítico e o Estatuto do Consumidor Cultural 55. Na sua opinião, o crítico confunde-se por inteiro com o consumidor cultural «comum», chamemos-lhe assim, ou trata-se de um receptor ou consumidor cultural «privilegiado»? Porquê? 56. Na sua opinião, existe alguma diferença qualitativa entre a relação que se estabelece entre o crítico e a obra e a relação que se estabelece entre o leitor/consumidor cultural «comum» e essa mesma obra? . Se sim, que diferença é essa? . Se não, porquê? 9. Relação Crítico - Público 57. A que tipo de público se pretende dirigir quando faz as suas críticas? Dirige-se ao público em geral ou pretende atingir um público específico? . Se se dirige a um público específico, qual o seu perfil? Como caracterizaria esse público?

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58. O público para o qual dirige as suas críticas confunde-se totalmente com o público do seu jornal? . Se sim, porquê? . Se não, quais serão então as diferenças que encontra entre os leitores das suas críticas em particular e os leitores do jornal em que trabalha em geral? 59. O facto de supostamente atingir esse público faz modificar o «tom» da sua crítica? No fundo, que preocupações que tem com o público no acto de criticar? 60. Na sua opinião, acha que público a que se dirigem as suas críticas têm em conta os seus conselhos e opiniões? Qual a sua opinião acerca da sua fidelidade? 10. Relação Crítico - Jornal 61. Como é que se processou o seu «recrutamento» nos vários orgãos de comunicação social em que já trabalhou? 62. Porque é que acha que foi escolhido para nele trabalhar? 63. Quais são, a seu ver, as responsabilidades do crítico perante o orgão de comunicação social para que trabalha? 64. Pelo facto de trabalhar num jornal sente-se um jornalista? . Se sim, porquê? . Se não, que semelhanças e diferenças encontra então entre a figura do jornalista e a figura do crítico? 65. Sente-se de algum modo incomodado pelo facto de exercer a crítica num orgão de comunicação social? Porquê? 66. Quais são os condicionalismos, limitações ou pressões a que, na sua opinião, um crítico está sujeito pelo facto de trabalhar num orgão de comunicação social? 67. Qual a sua opinião acerca das novas formas de crítica que actualmente surgiram, como são, por exemplo, o «sistema das estrelinhas» ou o sistema das pequenas notas informativas e/ou de recomendação? 68. Qual a sua opinião acerca da crítica que se faz noutros jornais que não o seu? 11. Fase de Selecção das Matérias Criticáveis 69. De que forma escolhe os factos culturais que vai criticar? Quais os critérios que normalmente utiliza na selecção de acontecimentos ou objectos culturais a criticar? 70. O jornal para que trabalha interfere de alguma forma na fase de selecção dos factos culturais sobre os quais se deve pronunciar criticamente? Se sim, como interfere? E como reage a essa interferência?

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71. E quanto aos elementos constitutivos do próprio evento, o jornal dá algum tipo de indicação quanto ao que deve incluir, realçar e/ou omitir no seu discurso acerca desse mesmo evento? Que tipo de indicações? Costuma normalmente tê-las em conta? 72. Nesta fase de selecção de factos culturais, tem algum tipo de preocupação com o público ao qual vai apresentá-los criticamente? . Se sim, que formas toma essa preocupação? . Se não, porquê? 12. Fase de Elaboração do Discurso Crítico 73. Quais as suas principais preocupações ao elaborar/redigir um discurso crítico? 74. Tem alguma preocupação com o público que supostamente vai atingir quando escreve as suas críticas? Que forma tomam essas preocupações? 75. Acha que o crítico deve ter a preocupação de se fazer entender junto da generalidade do público? 76. A crítica é frequentemente acusada de uma certa arrogância, hermetismo e intelectualismo na sua forma de escrever, patente na falta de simplicidade e clareza do seu discurso. Concorda? 77. E o jornal para que trabalha, interfere de algum modo nesta fase de elaboração do discurso crítico? Como? 78. Costuma ter que dar a ler e a apreciar as suas críticas a algum representante do jornal? Se sim, a quem? Com que objectivo? 79. Depois de ler, é comum esse personagem aconselhá-lo a fazer alguma modificação no seu discurso? Se sim, que tipo de modificações são normalmente aconselhadas? 80. Como costuma reagir a esses conselhos? Tem-nos normalmente em conta? 81. Sente de algum modo posta em causa a sua autonomia ou liberdade como crítico quando isso acontece? Porquê? 82. Já alguma vez teve de modificar o conteúdo da sua crítica, em termos de opiniões e/ou apreciações, a conselho do jornal para que trabalha? O jornal já alguma vez o admoestou acerca de qualquer sua opinião nele expressa? 13. Relação Crítico - Obra Criticada 83. O que é que busca na obra a que se propõe criticar? 84. Como avalia esteticamente uma obra? Quais são, na sua opinião, os princípios ou critérios básicos por que se deve orientar a avaliação estética de qualquer obra?

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85. Quando pretende avaliar uma obra do ponto de vista estético, tem em conta apenas a sua «forma» ou também o seu «conteúdo»? 14. A Objectividade e a Subjectividade na Crítica 86. No seu entender, o crítico deve manter com a obra a que se propõe abordar uma relação o mais neutra possível ou, pelo contrário, uma relação «apaixonada»? 87. Poder-se-á falar de objectividade na crítica? Acredita na existência de uma crítica objectiva? . Se sim, como e até que ponto? Acha que a crítica pode ou poderá assumir o estatuto de Ciência? O que garante então a objectividade na crítica? Qual a forma de neutralizar ou restringir a subjectividade na crítica? . Se não, porque não? Assume então uma crítica sempre totalmente subjectiva? 88. E que espaço reserva para a criatividade na crítica? 89. Pensa que a crítica pode tornar-se ela própria uma forma de literatura? . Se sim, não acha que dessa forma o crítico é susceptível de tornar-se rival do criador, confundindo-se essas duas personagens? 15. Imagens da Segmentação do Campo da Crítica 90. Como designa e caracteriza o «estilo» de crítica que faz? 91. Tem notado modificações nesse «estilo» desde que iniciou a sua actividade crítica? Quais? Ao que se devem essas modificações? 92. O Universo da Crítica não é, decerto, homogéneo. Como acha que esse universo aparece segmentado? Que tipos diferentes de críticos consegue identificar? 93. Alguns críticos sugerem existir um divórcio entre duas supostas formas de intervenção crítica: uma jornalística e uma académica. Concorda com a existência desta clivagem? 94. Que vantagens e desvantagens encontra no facto da crítica se fazer num contexto académico? 95. E que vantagens e desvantagens encontra no facto da crítica ser exercida num contexto massmediático? 16. Ficha de Caracterização Sociográfica 1. Idade: /___/___/ 2. Sexo: M /___/

F /___/

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3. Estado civil: Solteiro /___/ Casado /___/ União de Facto /___/ Divorciado /___/ Viúvo /___/ 4. Profissão principal: ___________________________________________________ 5. Habilitações literárias: __________________________________________________ 6. Profissão do pai: ______________________________________________________ 7. Profissão da mãe: ______________________________________________________ 8. Profissão do Cônjuge: __________________________________________________ 9. Estatuto no jornal para que escreve: ______________________________________

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CATEGORIAS DA GRELHA DE ANÁLISE DAS ENTREVISTAS - Trajectos - Especialização - Profissionalização - Associativismo - Ética - Poder - Fundamentos da legitimidade e da autoridade - Competências - Representações da Arte - Critérios de Avaliação Estética - Artes Maiores / Artes Menores - Reprodutibilidade / Raridade - Arte / Mercado - Representações da Arte Portuguesa e Proteccionismo - Representações do Artista - Representações da Crítica - Funções da Crítica - Relação Crítico - Criador - Estatuto do Crítico e Estatuto do Consumidor Cultural - Relação Crítico - Público - Relação Crítico - Agentes Económicos - Relação Crítico - Jornal - Selecção das Matérias Criticáveis - Fase de Elaboração do Discurso Crítico - Relação Crítico - Obra - Objectividade - Subjectividade - Relação Crítico - Crítico - Clivagens no Campo da Crítica. - Tendências Recentes no Campo da Crítica

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1. Trajecto Profissional 1. Quando e de que maneira aconteceu começar a exercer a sua actividade como crítico? 2. E que razões o levaram a dedicar-se a essa actividade? 3. Em que jornais ou meios de comunicação social já exerceu a sua actividade como crítico? . Se já trabalhou noutros para além daquele que trabalha actualmente, quais as razões da(s) sua(s) transferência(s)? . Se trabalhou sempre no mesmo orgão de comunicação social, quais as razões da sua permanência? 4. Quando e de que forma se começou a interessar pela área artística em que hoje intervem como crítico? 5. Desde que iniciou a sua actividade como crítico, esta tem-se restringido à área artística sobre a qual trabalha actualmente? . Se sim, porquê? . Se não, sobre que outras áreas artísticas tem trabalhado? E a que razões se deve essa mudança de área de intervenção crítica? 6. No passado, que outras profissões já exerceu para além de fazer crítica? 7. E actualmente, para além da sua actividade como crítico, exerce alguma(s) outra(s) actividade(s), quer seja(m) relacionada com arte quer não o seja(m)? . Se sim, qual/quais? Porquê? O que o leva a exercer essa(s) outra(s) actividade? . Se não, porquê? 8. No caso de exercer mais do que uma actividade, encara a sua actividade crítica como a sua profissão principal ou como uma actividade paralela/secundária, como uma actividade de «recurso», como um «trabalho-extra»? Ou tem outra forma de encarar essa actividade? 9. Caso a sua actividade como crítico seja exercida como uma actividade paralela/secundária, gostava de dedicar-se a ela a tempo inteiro? Porquê?

2. Representações acerca da Arte e do Artista 10. O que é para si Arte? Como definiria esse conceito? 11. O que é para si ser Artista? Como é que se reconhece um Artista? 12. No seu entender, um Artista possui características específicas que o tornam diferente das outras pessoas ou, pelo contrário, é uma pessoa como outra qualquer?

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. Caso seja diferente, que características são essas? . Caso seja uma pessoa como outra qualquer, porque assim o considera? 13. Na sua opinião, que requisitos determinado objecto deve preencher para que possa ser considerado artístico? Porquê? 14. Considera haverem formas artísticas susceptíveis de serem consideradas «artes menores»? . Se sim, quais? E porque é que as classifica dessa forma? . Se não, porquê? 15. Para que um objecto seja susceptível de ser considerado obra de arte, acha importante que se trate de uma peça única? Porquê? 16. Na sua opinião, acha que a criação artística é passível de estar inserida num processo de produção industrial ou de produção em série (limitada ou não)? Acha que os objectos culturais produzidos industrialmente ou em série (limitada ou não) são susceptíveis de poderem ser considerados obras de arte? Porquê? 17. A distinção que muitas vezes se faz entre Arte (com letra grande) e arte comercial faz algum sentido para si? . Se sim, de que forma? . Se não, porquê? 18. Quais pensa serem as consequências da actual tendência da crescente orientação da Arte para o mercado? Serão positivas ou negativas? Quais as positivas e quais as negativas? 19. Na sua opinião, existe um «mínimo denominador comum» na Arte em Portugal? Acha que existe o que podemos considerar uma Arte Portuguesa? Porquê? O que a caracteriza? 20. E acha que o crítico deve ter a preocupação de tentar proteger os produtos culturais que se fazem em Portugal em relação aos que vêm do estrangeiro? Porquê? Como?

3. Representações acerca da Crítica e do Crítico 22. O que entende por Crítica? Que actos implicam a acção de criticar? 23. Que características deve assumir, no seu entender, uma «boa crítica»? 24. No seu entender, qual a utilidade da crítica? Quais considera serem as suas funções no contexto do actual universo cultural ou artístico? 25. Considera a crítica como uma actividade mais ao serviço do criador ou do consumidor cultural? Porquê?

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26. Quais são, a seu ver, as responsabilidades do crítico perante o leitor? 27. E quais são, no seu entender, as responsabilidades do crítico perante o criador? 28. Na sua opinião, o crítico deve preocupar-se em integrar o ponto de vista do autor/criador sobre a sua obra na crítica que dela faz? Cabe ao crítico explicitar a intenção do autor/criador na criação da sua obra? 29. E o ponto de vista do leitor? Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com o leitor «normal» ou o leitor «médio»? 30. Exerce, exerceu ou alguma vez gostaria de ter exercido uma actividade artística como criador na área em que intervem como crítico? . Se exerceu ou gostaria de ter exercido, porque não seguiu? . Se não exerceu, porque não? 31. É comum ouvir-se dizer que os críticos são normalmente artistas frustrados ou falhados. No seu caso pessoal, identifica-se com esta afirmação? Porquê? 32. E pensando na generalidade dos críticos que conhece, concordaria com essaa afirmação? Porquê? 33. Se não concorda com tal afirmação nem no seu caso pessoal nem para a generalidade das situações dos críticos que conhece, porque será então uma ideia tão generalizada, esta do crítico como «artista frustrado»? 34. Como caracteriza, em traços gerais, o panorâma actual do universo da crítica? 4. O Poder do Crítico 35. Face à multiplicidade de protagonistas que hoje se movem dentro do universo das artes e letras, que poder afere à prática crítica? Como avalia o poder do crítico dentro do actual universo cultural? 36. É comum ouvir-se dizer que os críticos, pelo poder que detêm, são capazes de comprometer o êxito de um espetáculo ou arruinar uma carreira artística se publicamente manifestarem o seu desagrado face à obra em causa ou ao seu autor. Concorda? Assume para si essa responsabilidade? Porquê? 37. Na sua opinião, em que é que se fundamenta a legitimidade do crítico para publicamente manifestar as suas opiniões estéticas? Em que se baseia a autoridade das suas apreciações? 5. A Formação do Crítico 38. Na sua opinião, que capacidades e/ou qualidades são necessárias possuir-se para se ser um bom crítico? Que tipo de competências este deve possuir para exercer essa actividade?

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39. Provavelmente já ouviu criadores reclamarem que os críticos não deveriam escrever sobre o que eles próprios nunca praticaram. Concorda? Considera a experiência «nos bastidores da arte», digamos assim, necessária para um bom desempenho do trabalho crítico? 40. Considera necessário um crítico possuir algum tipo de formação académica relacionada com a área de actividade artística em que intervem? Porquê? 41. No seu caso pessoal, possui alguma formação académica relacionada com a área de actividade artística em que intervem como crítico? . Se sim, qual? Onde e como a obteve? . Se não, nunca procurou obtê-la? Porquê? 42. Considera importante «credenciar» legalmente a profissão de crítico, ou seja, regulamentar juridicamente as competências exigidas à profissão de crítico? 6. Associativismo e Ética do Crítico 43. É membro de alguma Associação de Críticos? Porquê? . Se sim, que tipo de acontecimentos e/ou actividades organiza a Associação de que faz parte? Costuma participar nesses acontecimentos e/ou actividades? Com que objectivos? 44. Em que medida considera as associações de críticos importantes? 45. Na sua opinião, que princípios éticos devem orientar o crítico no desempenho dessa sua actividade? Com que limites éticos se deve preocupar quem faz da crítica profissão? Porquê? 46. Quais são, na sua opinião, os principais «perigos» com que, do ponto de vista ético, o crítico se defronta hoje em dia? 47. Considera importante haver uma ética profissional legalmente regulamentada que oriente a actividade do crítico ou acha que a ética deste deverá estar vinculada às suas decisões pessoais? Porquê? 7. Rede de Relações do Crítico . Com os Criadores 48. Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido de artistas? .Se sim, que forma tomam esses contactos? (são relações de amizade, são apenas contactos profissionais, etc) Como caracterizaria esse círculo de artistas? Em que ocasiões se dão esses contactos? . Se não, porque não?

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49. Normalmente conhece pessoalmente os artistas de cujos objectos/obras critica? . Se sim, de que forma isso se reflecte nas suas críticas? . Se não, é uma preocupação sua criticar apenas os trabalhos de quem não conhece pessoalmente? Porquê? 50. Os críticos são muitas vezes acusados de estarem organizados em «capelinhas» no universo cultural, de estarem integrados em grupos cujos membros vão privilegiar nas suas críticas desprezando ou maldizendo os membros de outros grupos. Concorda? Qual a sua opinião sobre este assunto? 51. Pensa que o facto do crítico manter relações de amizado ou contactos regulares com os artistas de cujos trabalhos critica pode de algum modo comprometer o resultado do seu trabalho? Porquê? . Com os Críticos 52. Mantém contactos regulares estáveis com outros críticos? . Se sim, que forma tomam esses contactos? Em que ocasiões se efectuam? Qual o objectivo desses contactos? Mantém esses contactos apenas com críticos da mesma área de actividade artística em que trabalha ou também de outras áreas? Porquê? . Se não, porque não? . Com os Agentes de Comercialização 53. Mantém contactos regulares e estáveis com os agentes económicos ou de comercialização que intervêm na sua área de actividade artística? . Se sim, que forma tomam esses contactos? Como é que se estabelecem esses contactos? Em que ocasiões se efectuam? Qual o objectivo desses contactos? . Se não, porquê? 54. Quais são, a seu ver, as responsabilidades do crítico perante os vários agentes económicos intervenientes no mercado artístico (editores, galeristas, distribuidores, etc)? 55. É comum ouvir-se acusar a crítica de ser conivente com os vários agentes económicos do mercado artístico e com as suas manobras especulativas. Concorda? Como comenta estas acusações? Não desempenhará o crítico também uma função económica junto do mercado de bens culturais? 8. O Estatuto do Crítico e o Estatuto do Consumidor Cultural 56. Na sua opinião, o crítico confunde-se por inteiro com o consumidor cultural «comum» (chamemos-lhe assim) ou trata-se de um receptor ou consumidor cultural «privilegiado»? Porquê?

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57. (Para os que respondem que se trata de um consumidor cultural «privilegiado») Em que se fundamenta então o privilégio do crítico em relação aos demais consumidores culturais? 58. Que diferenças e semelhanças encontra entre a figura do crítico e a figura dos demais consumidores culturais «comuns»? 59. Na sua opinião, existe alguma diferença qualitativa entre a relação que se estabelece entre o crítico e a obra e a relação que se estabelece entre o leitor/consumidor cultural «comum» e essa mesma obra? . Se sim, que diferença é essa? . Se não, porquê? 9. Relação Crítico - Público 60. A que tipo de público se pretende dirigir quando faz as suas críticas? Dirige-se ao público em geral ou pretende atingir um público específico? . Se se dirige a um público específico, qual o seu perfil? Como caracterizaria esse público? 61. (Para os que dizem que é o público do jornal para que trabalham) O público para o qual dirige as suas críticas confunde-se totalmente com o público do seu jornal? . Se sim, porquê? . Se não, quais serão então as diferenças que encontra entre os leitores das suas críticas em particular e os leitores do jornal em que trabalha em geral? 62. O facto de supostamente atingir esse público faz modificar o «tom» da sua crítica? No fundo, que preocupações que tem com o público no acto de criticar? 63. Na sua opinião, acha que público a que se dirigem as suas críticas têm em conta os seus conselhos e opiniões? Qual a sua opinião acerca da sua fidelidade? Porquê? 10. Relação Crítico - Jornal 64. Como é que se processou o seu «recrutamento» nos vários orgãos de comunicação social em que já trabalhou? 65. Porque é que acha que foi escolhido para nele trabalhar? 66. Quais são, a seu ver, as responsabilidades do crítico perante o orgão de comunicação social para que trabalha? 67. Pelo facto de trabalhar num jornal sente-se um jornalista? . Se sim, porquê? . Se não, que semelhanças e diferenças encontra então entre a figura do jornalista e a figura do crítico?

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68. Sente-se de algum modo incomodado pelo facto de exercer a crítica num orgão de comunicação social? Porquê? 69. Quais são os condicionalismos, limitações ou pressões a que, na sua opinião, um crítico está sujeito pelo facto de trabalhar num orgão de comunicação social? 70. Qual a sua opinião acerca das novas formas de crítica que actualmente surgiram, como são, por exemplo, o «sistema das estrelinhas» ou o sistema das pequenas notas informativas e/ou de recomendação? 71. Qual a sua opinião acerca da crítica que se faz noutros jornais que não o seu? 11. Fase de Selecção das Matérias Criticáveis 72. De que forma escolhe os factos culturais que vai criticar? Quais os critérios que normalmente utiliza na selecção de acontecimentos ou objectos culturais a criticar? 73. O jornal para que trabalha interfere de alguma forma na fase de selecção dos factos culturais sobre os quais se deve pronunciar criticamente? Interfere de algum modo nas escolhas que faz acerca dos factos culturais a criticar (sugerindo o que criticar)? Se sim, como interfere? E como reage a essa interferência? 74. E quanto aos elementos constitutivos do próprio evento, às suas características próprias, o jornal dá algum tipo de indicação quanto ao que deve incluir, realçar e/ou omitir no seu discurso acerca desse mesmo evento? Que tipo de indicações? Costuma normalmente tê-las em conta? 75. Nesta fase de selecção de factos culturais, tem algum tipo de preocupação com o público ao qual vai apresentá-los criticamente? . Se sim, que formas toma essa preocupação? . Se não, porquê? 12. Fase de Elaboração do Discurso Crítico 76. Quais as suas principais preocupações ao elaborar/redigir um discurso crítico? 77. Quando faz uma crítica, pensa nas pessoas que vão lê-la? Tem alguma preocupação com o público que supostamente vai atingir quando escreve as suas críticas? Que forma tomam essas preocupações? 78. Acha que o crítico deve ter a preocupação de se fazer entender junto da generalidade do público? 79. Quando elabora o seu discurso crítico, tem alguma preocupação com o tipo de linguagem que utiliza? De que forma se manifesta essa preocupação?

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80. A crítica é frequentemente acusada de uma certa arrogância, hermetismo e intelectualismo na sua forma de escrever, patente na falta de simplicidade e clareza do seu discurso. Concorda? Porquê? 81. E o jornal para que trabalha, interfere de algum modo nesta fase de elaboração do discurso crítico? Como? 82. Costuma ter que dar a ler e a apreciar as suas críticas a algum representante do jornal? Se sim, a quem? Com que objectivo? 83. Depois de ler, é comum esse personagem aconselhá-lo a fazer alguma modificação no seu discurso? Se sim, que tipo de modificações são normalmente aconselhadas? 84. Como costuma reagir a esses conselhos? Tem-nos normalmente em conta? 85. Sente de algum modo posta em causa a sua autonomia ou liberdade como crítico quando isso acontece? Porquê? 86. Já alguma vez teve de modificar o conteúdo da sua crítica, em termos de opiniões e/ou apreciações, a conselho do jornal para que trabalha? O jornal já alguma vez o admoestou acerca de qualquer sua opinião nele expressa? 13. Relação Crítico - Obra Criticada 87. O que é que busca na obra a que se propõe criticar? 88. Como avalia esteticamente uma obra? Quais são, na sua opinião, os princípios ou critérios básicos por que se deve orientar a avaliação estética de qualquer obra? 89. Quando pretende avaliar uma obra do ponto de vista estético, tem em conta apenas a sua «forma» ou também o seu «conteúdo»? 14. A Objectividade e a Subjectividade na Crítica 90. No seu entender, o crítico deve manter com a obra a que se propõe abordar uma relação o mais neutra possível ou, pelo contrário, uma relação «apaixonada»? 91. Poder-se-á falar de objectividade na crítica? Acredita na existência de uma crítica objectiva? . Se sim, como e até que ponto? Acha que a crítica pode ou poderá assumir o estatuto de Ciência? O que garante então a objectividade na crítica? Qual a forma de neutralizar ou restringir a subjectividade na crítica? . Se não, porque não? Assume então uma crítica sempre totalmente subjectiva? 92. Na sua opinião, há espaço para a criatividade na crítica? De que forma? 93. Pensa que a crítica pode tornar-se ela própria uma forma de literatura? Acha legítimo a crítica tornar-se numa forma de literatura? Porquê?

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. Se sim, não acha que dessa forma o crítico é susceptível de tornar-se rival do criador, confundindo-se essas duas personagens? Que diferenças estabeleceria então entre o criador e o crítico? 15. Imagens da Segmentação do Campo da Crítica 94. Como designa e caracteriza o «estilo» de crítica que faz? 95. Tem notado modificações nesse «estilo» desde que iniciou a sua actividade crítica? Quais? Ao que se devem essas modificações? 96. O Universo da Crítica não é, decerto, homogéneo. Como acha que esse universo aparece segmentado? Que tipos diferentes de críticos consegue identificar? 97. Alguns críticos sugerem existir um divórcio entre duas supostas formas de intervenção crítica: uma jornalística e uma académica. Concorda com a existência desta clivagem? 98. Que vantagens e desvantagens encontra no facto da crítica se fazer num contexto académico? 99. E que vantagens e desvantagens encontra no facto da crítica ser exercida num contexto massmediático? 16. Ficha de Caracterização Sociográfica 1. Idade: /___/___/ 2. Sexo: M /___/

F /___/

3. Estado civil: Solteiro /___/ Casado /___/ União de Facto /___/ Divorciado /___/ Viúvo /___/ 4. Profissão principal: ___________________________________________________ ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ 5. Habilitações literárias: _____________________________________________ ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ 6. Profissão do pai: 7. Profissão da mãe: 8. Profissão do Cônjuge: 9. Estatuto no jornal para que escreve:

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Opções Metodológicas

- Orgãos de Comunicação Social Seleccionados: «Público» Diários

«Diário de Notícias» «A Capital» «Expresso»

Semanários

«O Independente» «Jornal de Letras»

- Razões para a selecção destes jornais: . são os jornais de maior circulação e tiragem que incluem rubricas culturais com grande regularidade (incluindo críticas), representando diferentes formas de conceber e de praticar o jornalismo e a crítica, assim como diferentes visões do mundo (designadamente do mundo das artes). . representam posições diferentes na rede de relações de poder inerente ao campo dos media. . dirigem-se a diferentes tipos de público. . são os jornais que nos acompanham no nosso quotidiano, onde a crítica terá portanto uma maior visibilidade pública e, como tal, um maior poder de influência. . são jornais onde os críticos actuam de uma forma regular (ao contrário das revistas especializadas, onde o contributo dos críticos tem um carácter esporádico) e onde a crítica se exerce de um modo mais ou menos profissional. . são os jornais onde se encontram os críticos com uma maior credibilidade e uma maior notoriedade pública. - Áreas Artísticas de Intervenção Crítica Seleccionadas: - Artes Plásticas - Teatro - Cinema - Literatura - Razões para a selecção destas áreas artísticas: . são as áreas sobre as quais se produz crítica mais regularmente.

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. são áreas artísticas cuja intervenção crítica já se encontra organizada em associações (Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários, Secção Portuguesa da Associação Internacional de Críticos de Arte, Secção Portuguesa da Associação internacional de Críticos de Teatro, Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, Associação Portuguesa de Críticos Cinematográficos). - Críticos Seleccionados: Artes Plásticas - João Pinharanda (Público) - Eurico Gonçalves (DN) - Carlos Vidal (A Capital) - José Luís Porfírio (Expresso) - António Cerveira Pinto (Independente) - Cristina Azevedo Tavares (JL) Teatro - Manuel João Gomes (Público) - Fernando Midões (DN) - Tito Lívio (A Capital) - Eugénea Vasques (Expresso) - Henrique Burnay (Independente) - Carlos Porto (JL) Cinema - José Navarro de Andrade (Público) - Augusto Seabra (Público) - Eurico de Barros (DN) - João Antunes (DN) - Francisco Perestrello (A Capital) - João Lopes (Expresso) - Manuel Cintra Ferreira (Expresso) - João Bernard da Costa (Independente) - Paulo Nogueira (Independente) - Paulo Portugal (JL) - Maria João Martins (JL) Literatura - Tereza Coelho (Público) - Gustavo Rubim (Público) - António Carvalho (DN) - Maria Teresa Horta (DN) - Águeda de Brito (A Capital) - António Guerreiro (Expresso) - Fátima Maldonado (Expresso) - João António Dias (Independente) - Manuel Filipe Canaveira (Independente) - Fernando Guimarães (JL) - Manuel Frias Martins (JL)

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- Critérios para a selecção destes críticos: . Especialidade (tentámos ser ecléticos nas áreas de criação abrangidas, tentando descobrir dentro de cada uma quais os críticos que sobre elas escrevem nos meios de comunicação seleccionados). . Regularidade (críticos com maior regularidade nos jornais para que escrevem; procedeu-se à contagem dos artigos assinados em cada orgão de comunicação nos últimos três meses de 1993). . Visibilidade/Notoriedade Pública (tentámos entrevistar os críticos com maior visibilidade pública, considerando como indicadores desta a sua participação em debates e querelas sobre a problemática que envolve a actividade crítica). . Geração/Estilo (tentámos entrevistar críticos representativos de várias gerações e com estilos de escrita e proveniências culturais diversas).

Área Artística Jornais Público Diário de Notícias Capital Expresso Independente Jornal de Letras

Artes Plásticas

Teatro

Cinema

João Pinharanda Eurico Gonçalves Carlos Vidal Alexandre Pomar Antº Cerveira Pinto Cristina Azev. Tavares

Manuel João Gomes Fernando Midões Tito Lívio Eugénia Vasques ---Carlos Porto

José N. de Andrade

João Lopes * Paulo Nogueira * Paulo Portugal

Alguns Itens Para Grelha de Análise - Trajectos (compreender como «nasce» um crítico. Primeiro há uma proximação ao mundo das artes, seguido de uma aproximação ao mundo do jornalismo - importância do capital social. Razões para a dedicação a essa actividade). Perguntas 1 - 5, 65. - Profissionalização (como o crítico encara e vive essa actividade do ponto de vista profissional. Acumulação de actividades e que tipos de actividades - dentro ou fora do mundo das artes -, e razões para essa acumulação. De que forma encaram a profissionalização da actividade crítica). Perguntas 6 - 9, 43. - Associativismo (de que forma encara o associativismo na crítica e que importância atribui às associações de críticos. Objectivos das associações. Razões para a fraca eficácia e importância dada às associações de críticos. Esta questão pode estar ligada à profissionalização). Perguntas 44 - 46.

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Te

Ant Jo Jú

- Ética (valores éticos do crítico, centrados na sua autonomia face ao mercado e face ao criador. De que forma encaram a existência de uma ética regulamentada ou de um código deontológico. Na ausência desta, como é exercido o controle ético? Inter-pares polémicas - e através do próprio código jornalístico). Perguntas 46 - 48. - Arte (representações da arte. Como a entendem? Como a valorizam? Relação objecto artístico-mercado. Relação objecto artístico-funcionalidade. Representação da arte portuguesa e proteccionismo*. Critérios de avaliação estética). Perguntas 10, 13 - 18, 19 - 20, 91 - 92. - Artista (representação do artista. Contraste entre o profissional e o romântico. O talento e a formação). Perguntas 11 - 12. - Crítica (actos que implicam a acção de criticar - a análise/interpretação e o juízo fundamentado; informar e comentar/opinar. Como representam a crítica. Valores que privilegiam na crítica). Perguntas 22 - 24. - Funções (qual a sua utilidade actualmente). Perguntas 25 - 26. - Relação crítico-criador (Responsabilidades. Autonomia. Tensões. Relações, afinidades e seus reflexos na crítica. Isenção e tendência. Quando o crítico é ele próprio criador). Perguntas 28, 29, 31 - 34, 49 - 52. - Relação crítico-leitor (responsabilidades. Autonomia. Afinidades. Imagens dos públicos. Reflexos na crítica). Perguntas 27, 30, 61 - 63. - Clivagens (segmentação. Relação crítico-crítico. Imagens da produção crítica). Perguntas 35, 53, 74, 99, 101, 104. - Poder (auto-avaliação do poder e dos efeitos da sua acção junto dos vários agentes activos no mundo artístico - criador, consumidor e instituições). Perguntas 36 - 37, 64. - Fundamentos da legitimidade e da autoridade. Pergunta 38. - Competências (formação do crítico, meios de a obter, qualidades/capacidades). Perguntas 39 - 42. - Relação crítico-agentes económicos (responsabilidades, mal-entendidos, objectivos e formas da relação). Perguntas 54 - 56. - Estatuto do crítico e estatuto do consumidor «comum» (demarcações, autonomia. diferenças na relação com a obra).

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Perguntas 57 - 60, 90. - Relação crítico-jornal (afinidades de ideias e «tom» - identificações com perfis; responsabilidades; aproximação entre a figura do crítico e a figura do jornalista; integração no meio jornalístico e nas suas condições de produção). Perguntas 67 - 73, 105 - 106. - Selecção das matérias criticáveis (critérios, constrangimentos jornalísticos, adaptações entre políticas editoriais e critérios pessoais ou cultura profissional do crítico - o princípio do prazer e o princípio do dever; constrangimentos externos; negociações; constrangimentos ao nível dos critérios de noticiabilidade mas quase total liberdade em matéria de valores-notícia; o factor «público»). Perguntas 75 - 78. - Fase de elaboração do discurso crítico (constrangimentos - o tempo e o espaço; o público e o hermetismo; o hermetismo no início funciona como estratégia de marcação no terreno e de demarcação do terreno, mas vai sendo abandonado ao longo da carreira: porquê? - o crítico ganha nome e já não tem que se preocupar em marcar uma posição; o próprio jornal pressiona-o para o abandono dessa linguagem, quer directamente com conselhos do editor e dos seus pares, quer indirectamente através dos constrangimentos de tempo e de espaço). Perguntas 79 - 88, 100. - Objectividade - Subjectividade (resolução de tensões, como se estrutura a relação com a obra, o que garante o máximo de objectividade, espaços para a criatividade). Perguntas 94 - 98. - Tendências recentes no campo da crítica (inflação do discurso sobre arte nas últimas décadas, nomeadamente nos jornais e em Portugal. A crítica tem a tendência a universitalizar-se: mesmo nos jornais diários, onde a crítica tem um carácter mais informativo e impressionista, os críticos mais jovens já não são apenas diletantes, como acontecia antes do 25 de Abril, mas têm formação universitária na área em que intervêm).

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