PENA, Will Lucas; JÓIA, Taísa Corrêa; ROSA, Luiz Alberto e SOARES, Fernanda Codevilla. A (des) Construção da Embriaguez em Solos Antárticos. In: SOARES, Fernanda Codevilla (org.). Comida, cultura e sociedade: Arqueologia da alimentação no Mundo Moderno. Recife: Editora da UFPE, 2016: 139-168.

May 22, 2017 | Autor: Fernanda Codevilla | Categoria: Arqueologia, Bebidas, Vidro, Alimentação, Arqueologia da Alimentação
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F e r na ndaCode v i l l aS oa r e s ( Or g a ni z a dor a )

Comi da ,Cul t ur aeSoc i e da de ue ol ogi adaa l i me nt a ç ã onoMundoMode r no

Comi da , Cul t ur aeS oc i eda de Ar queol og i adaa l i ment a ç ã onoMundoModer no

E s t udosCont empor â neosnaAr queol og i a2

SUMÁRIO

Prefácio

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Os autores

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Introdução – F. Codevilla Soares

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Capítulo 1 – Comendo o Que Ninguém Quer: Consumo de Cabeça de Boi entre Escravos Urbanos do Rio de Janeiro, Século XVIII

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Tania Andrade Lima Martha Locks Capítulo 2 – A alimentação em dois engenhos brasileiros nos séculos 18 e 19: circulação, sujeitos e materialidades

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Marcos André Torres de Souza Gilberto Guitte Gardiman Capítulo 3 – Alimentação, socialização e reprodução cultural na comunidade escravizada do Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes (RJ)

95

Luís Cláudio Pereira Symanski Geraldo Pereira de Morais Júnior Capítulo 4 – Gênero, alimentação e cultura material em contextos urbanos do século XIX: mulheres, corpos e vida cotidiana. Algumas diretrizes para o estudo em arqueologia histórica

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Glaucia Malerba Sene Capítulo 5 – A (des) Construção da Embriaguez em Solos Antárticos

139

Fernanda Codevilla Soares Luiz Alberto Silveira da Rosa Taísa Corrêa Jóia Will Lucas Silva Pena Capítulo 6 – Incorporando comidas e contextos: a alimentação dos grupos foqueiros nas Shetland do Sul (Antártica, século XIX)

169

María Jimena Cruz Capítulo 7 – Mudarse por mejorarse. Traslado y cambio en la alimentación en Nuestra Señora de Talavera (Salta, Argentina, s. XVI-XVII) y en la Colonia de Floridablanca (Santa Cruz, Argentina, s. XVIII) María Marschoff

6

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CAPÍTULO 5

A (Des) Construção da Embriaguez em Solos Antárticos Fernanda Codevilla Soares Luiz Alberto Silveira da Rosa Taísa Corrêa Jóia Will Lucas Silva Pena

Drunken sailor (sea shanty) 37 What can we do with a drunken sailor (3x) Early in the morning Way, hey, and up she rise (3x) Early in the morning What can we do with a drunken sailor (3x) Early in the morning Into the scuppers, ahoy there sailors (3x) Early in the morning What can we do with a drunken sailor (3x) Early in the morning Give him a lick o´ the bosun´s flipper (3x) Early in the morning What can we do with a drunken sailor (3x) Early in the morning Take him an´ shake him an´try to wake him (3x) Early in the morning What can we do with a drunken sailor (3x) Early in the morning Into the brig till he gets up sober (3x) Early in the morning ENTRE MARES, NEVASCAS E UMA GARRAFA EE GIM Para aqueles que se dirigem ao oceano na condição de trabalhadores ou em missões que fogem dos objetivos turísticos, o mar tem contornos particulares e múltiplos, de difícil apreensão aos que limitam suas vocações à firmeza do continente. É fácil amá-los 37 Canção

folclórica popular do mar (RAPH, 1986: 32).

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e igualmente simples o sentimento antagônico. O mar pode ser tanto um lar quanto um não-lugar, que se interpõem entre o marinheiro e seu objetivo primordial. As águas que aprisionaram Robinson Crusoe em uma ilha do Pacífico, na célebre obra de Daniel Defoe, são as mesmas que libertaram Ishmael do mundo melancólico das cidades, em Herman Melville. Os mares que separaram Ulisses de casa, na epopeia homérica, são os que guiaram Enéias até o Lácio, na Eneida de Virgílio. Nada tão fluído e tão singular quanto um universo cercado pelo inconstante. Velas aos ventos, seguiremos, no correr deste capítulo, às águas navegadas por caçadores de baleias, focas e lobos marinhos até as ilhas Shetland do Sul (Antártica) em finais do século XVIII e início do XIX. Essa região foi palco de um largo processo de exploração de recursos oriundos dos grandes mamíferos marinhos, como peles, óleos, barbatanas de baleia e âmbar-gris. Visitadas sob uma ótica capitalista de apropriação, a região foi explorada apenas durante a rentabilidade de seus recursos, e os grupos que se dispuseram à empreitada no cenário oitocentista - foqueiros, lobeiros e baleeiros tornaram-se hoje não mais do que notas menores na história oficial da Antártica, cujo foco central tem sido as disputas coloniais e científicas pelo continente, sobretudo no século XX. Como nos coloca o protagonista de Moby Dick: [E]mbora o mundo nutra desprezo por nós, caçadores de baleia, nem por isso deixa de nos prestar, sem o saber, a mais profunda homenagem; sim, uma adoração exuberante! Porque quase todas as velas, as lamparinas e as tochas que queimam por este mundo, diante de tantos santuários, queimam por glórias nossas! (MELVILLE, 2010 [1851]:126). Nos séculos XVIII e XIX, antes da descoberta do petróleo, a gordura de mamíferos marinhos era a matéria-prima fundamental para a iluminação das cidades; os lubrificantes de maquinário que alimentaram a Revolução Industrial tiveram como fonte o óleo animal, sobretudo de cetáceos (CREIGHTON, 1995 e HOHMAN, 1928); as peles de foca tornaram-se bens de valor, requisitados pelo mercado da moda chinesa (BUSCH, 1985 e ZARANKIN e SENATORE, 2007); ossos ou barbatanas de baleia eram usados na confecção de espartilhos (STEELE, 2001); o âmbar-gris, que servia à fabricação de perfumes, era encontrado no intestino de cachalotes constipados e tinha altíssimo valor agregado (PHILBRICK, 2000). A procura por esses recursos fez movimentar uma economia própria, de forma que, no século XIX, a caça às baleias constituiu o quinto maior setor da economia estadunidense (CASTELLUCCI JUNIOR, 2015). Aqueles que se dispunham a ir ao oceano, em viagens cada vez mais longas na busca por mamíferos marinhos, criaram uma cultura própria, elegida para a vida em alto-mar, com particularidades e nuances distintos: “a blue-water brotherhood 38” (uma fraternidade do mar aberto), nas palavras de Creighton (1995). É nessa irmandade marítima que encontramos nossos sujeitos de estudo. Com a balada do “marinheiro bêbado”, apresentada na epígrafe, apontamos nosso interesse de estudo particular, qual seja, os comportamentos associados ao consumo de bebidas alcóolicas entre foqueiros, lobeiros e baleeiros em fins do século XVIII e início do XIX. Pretendemos, através da análise do material vítreo recuperado em expedições arqueológicas 38

A tradução de trechos e termos em outros idiomas são de responsabilidade dos autores.

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realizada na Península Byers, ilha Livingston (a segunda maior ilha das Shetland do Sul), propor questões acerca da inserção do consumo do álcool entre os caçadores de recursos faunísticos que ganharam os mares do sul e montaram acampamentos nas ilhas antárticas com finalidade de caça. 39 Mais detidamente, nosso trabalho intenciona refletir sobre as construções socioculturais que podem ser evidenciadas por um olhar atento às características das garrafas encontradas nos sítios antárticos, bem como os vestígios remanescentes em seus interiores e a disposição espacial dos fragmentos que as compõe nos domínios intra e inter-sítio.

Figura 1: Acampamento do LEACH em Punta Elefante, ilhas Shetland do Sul, Antártica. FONTE: LEACH, 2014 (foto: Andres Zarankin).

Se a canção que pergunta “o que fazer com um marinheiro bêbado?” rodou os oceanos, cantarolada pelos trabalhadores do mar nos cursos de suas longas viagens, voltamos nosso foco de interesse para a própria construção da embriaguez associada às particularidades dos agentes estudados e do contexto espacial vivenciado por eles durante a estadia de caça na ilha Livingston. A esse fim, à análise do material serão confrontadas questões referentes aos usos do álcool e aos discursos a ele correlacionados no século XIX, o qual viu o auge e o declínio da caça marítima enquanto atividade industrial, bem como uma série de usos, contra usos, compreensões e agenciamentos específicos à bebida alcoólica. 40 Atentamo-

Este trabalho integra o projeto marco Paisagens em branco: arqueologia histórica antártica, realizado em 1995 sob a coordenação do prof. Dr. Andrés Zarankin e da prof.ª Dr.ª María Ximena Senatore. A partir de 2009, o projeto passou a ser realizado com a logística do Programa Antártico Brasileiro (PROANTAR), fruto de uma parceria entre a Marinha do Brasil e o CNPq. Vinculado ao Laboratório de Estudos Antárticos em Ciências Humanas (LEACH), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenado pelo prof. Dr. Andrés Zarankin,o projeto tem como objetivo compreender as estratégias humanas de ocupação do território antártico, em fins do século XVIII e início do XIX. Atualmente, o “Paisagens em branco” incorporou uma linha de análise antropológica, que visa pensar a Antártica a partir de macroprocessos, os quais, através do tempo, outorgaram-lhe diferentes identidades. Conta ainda com parcerias internacionais do Chile, Argentina, EUA e Austrália. 40 Considerando que, na segunda metade do século XVIII, bebidas fermentadas, como o vinho e a cerveja, eram classificadas enquanto alimentos (DIETLER, 2006), entendemos que a proposta dessa pesquisa alinha-se aos estudos de foodways (ANDERSON, 1971 apud DEETZ, 1996), segundo os quais a concepção da comida, os significados das etapas do sistema social 39

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nos, assim, às taças de champagne dispostas nos grandes jantares vitorianos e ao consumo informal de bebidas nas tabernas das grandes cidades para em seguida nos colocarmos em solo antártico e nos debruçarmos então sobre as singularidades atribuídas ao álcool em meio aos ventos enregelantes das altas latitudes do hemisfério sul. A MATERIALIZAÇÃO DO ÉBRIO: CONSIDERAÇÕES SOBRE UMA ARQUEOLOGIA DA PRÁTICA DO CONSUMO DE ÁLCOOL A fim de apresentar a perspectiva que orientou o estudo sobre o consumo de álcool pelos caçadores da Antártica no século XVIII e XIX, desenvolvemos uma proposta que denominamos arqueologia da prática do consumo de álcool. Apropriamo-nos de referenciais de historiadores e antropólogos para discutir como entendemos essa prática social e como direcionamos nossas análises e interpretações sobre a construção sociocultural da bebida em solos antárticos. Inicialmente, é importante considerar que o consumo de bebida alcoólica em excesso, se hoje vinculado ao universo da doença e do vício, nem sempre carregou esses contornos. A inserção do álcool em uma rede patológica aditiva remonta apenas ao final do século XVIII (CARNEIRO, 2010 e FERNANDES, 2011). A preocupação social com o exagero etílico, porém, não é particular à contemporaneidade. Nas palavras de Fernandes (2010: 22), “a ideia de que algumas pessoas possuem uma relação especial, e negativa, com a bebida são tão antigas quanto o próprio álcool”. Já na Antiguidade, filósofos helênicos e romanos debruçavam-se sobre a questão do vinho na tentativa de encontrar uma justa medida. A filosofia cristã, igualmente, atentava-se a um controle da liberdade etílica, arquitetando uma correlação entre o prazer inebriante e o pecado (FERNANDES, 2010). Em cada contexto e nas diferentes épocas, o descomedimento alcoólico é lido a partir de uma trama ontológica própria e os significantes gerados – bárbaro, pecador, alcoólatra – carregam especificidades que não podem ser subsumidas. Partindo desse princípio, o historiador Carneiro (2010) propôs o campo de estudos nomeado por ele de “história da embriaguez”. Nessa delimitação, distanciou-se de uma “história das bebidas” - na qual o foco estaria na narrativa da invenção, produção ou disseminação de alguma bebida em particular - e fincou-se em um esforço de, através dos métodos historiográficos, fazer uma leitura que não separe a bebida alcoólica dos agentes sociais que com ela interagem. Segundo Carneiro (2010: 13): “Mais do que uma história dos produtos, a história da embriaguez deverá ser uma história das ideias, assim como das práticas, dos atos, dos discursos, dos gestos e das palavras”. Por nossa vez, afeitos a essa proposta da história da embriaguez como campo de estudos, tencionamos nos guiar por um campo que nomeamos de arqueologia da prática de consumo de álcool. Dessa forma, apartamo-nos, igualmente, de um estudo apenso à arqueologia das bebidas, como os trabalhos de Smith (2008), ou focado nas garrafas (cultura material) em si, como em Moreno (1997, 2000), para ter como ênfase a relação disposta entre a bebida e nossos sujeitos de estudo. As obras de Smith (2008) e Moreno (1997, 2000), vale pontuar, são de grande valia para a arqueologia e também para nosso caso de estudo, posto que trazem um compêndio de informações e fontes úteis às análises de

alimentar (GOODY, 1995 e MARSCHOFF, 2010) e as ideias, comportamentos e fenômenos materiais da alimentação fazem parte dos objetos da análise. 142

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material; contudo, nos afastamos do foco primário de ambos, dado que a análise material não é nosso objetivo, mas o método para atingi-lo. 41 Não fizemos simplesmente um pastiche para a arqueologia da embriaguez, como se poderia esperar, porque, apesar de concordarmos com os nuances que a história da embriaguez apresenta (história das ideias, práticas, atos, discursos, gestos e palavras; trazendo à tona a dimensão humana do consumo de álcool), entendemos que enunciar uma arqueologia nomeada da embriaguez poderia insinuar, de forma pré-concebida, uma associação direta ao consumo exagerado de bebidas alcólicas. Apoiamo-nos, assim, na história da embriaguez, porém remodelando nosso campo para o da arqueologia da prática de consumo de álcool, tentando evitar pré-julgamentos no trato com os sujeitos de estudo e com as construções discursivas atreladas ao álcool em cada contexto. Dessa forma, nos estudos que propomos, não só a quantidade de álcool consumida pelos sujeitos estudados - e a conseguinte criação de signos atribuídos àqueles que excedem os padrões estabelecidos - é de importância, mas toda a construção perceptiva que circunda seu consumo. Uma diversidade de campos de ação pode ser alocada na mesma dose de bebida - nutrição básica, nutrição periférica, prazer da carne, uso sacro-religioso, elemento mágico, diversão festiva, diversão cotidiana, função medicinal, entre muitos outros -, variando não apenas com o contexto sócio histórico, mas dentro de uma mesma concepção de mundo. O vinho, em nossos dias, é tanto encontrado em cerimônias cristãs, substancializando o sangue de Cristo, quanto em inúmeros bares e prostíbulos, constituindo aí o campo do secular e do festivo. O entendimento da bebida, nesses conformes, só pode ser feito a partir de uma contextualização que anuncie em qual enredo ela se insere – uma descrição densa, nos termos de Geertz (2008), ou uma arqueologia contextual, conforme Hodder (2009). Em suma, a arqueologia da prática de consumo de álcool se atenta às questões da quantidade da ingestão de álcool (recomendadas ou reprimidas em dado contexto), da construção perceptiva que envolve o ato de beber em uma conjuntura particular, dos protocolos de comensalidade que o circunscrevem, da seleção de bebidas para determinadas situações e da seleção dos próprios agentes a quem beber é permitido (ou censurado), observando as materialidades que são actantes nessas dimensões. Compactuando com a colocação de Spode (2003: 20), vemos o álcool como um líquido capaz de anunciar “a fronteira entre nós e eles, sagrado e profano, controlado e descontrolado, decente e indecente, alto e baixo, masculino e feminino, normal e patológico”, e seu estudo, destarte, possibilita uma leitura rica do tecido social com o qual ele dialoga. Nessa aposta, julgamos pertinente juntar os fragmentos de vidro resgatados da Antártica e questioná-los acerca do modo de vida que se estabeleceu nas ocupações episódicas da ilha Livingston. Com as ferramentas

As primeiras análises sistemáticas do material vítreo de ocupações destinadas à exploração de recursos marinhos na Antártica, realizadas pelo projeto Paisagens em Branco, foram desenvolvidas por Moreno (1997 e 2000), em um olhar técnico e de aproximação inicial. Siqueira (2014), em um segundo momento, propôs uma narrativa na qual a garrafa foi o principal sujeito da pesquisa e, a partir da história de vida daquele material, valendo-se de uma construção textual em storytelling, apresentou aspectos subjetivos do tema. Stehberg (2003) e Lawrence (2006) também realizaram estudos com este tipo de material, o primeiro associado ao contexto antártico, e a segunda, ao contexto da Tasmânia. Ambos, no entanto, não se focaram exclusivamente nos artefatos vítreos, estudando-os, por sua vez, conjuntamente aos demais vestígios. 41

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arqueológicas, é possível a construção de um cenário que, fugindo das narrativas oficiais, pode ser evidenciado por outros meios. Se nos propomos valer dos métodos arqueológicos, para além das colocações sobre o campo da embriaguez, são válidas algumas pontuações sobre o conceito de cultura material, já que a principal diferença entre uma história da embriaguez e uma arqueologia da prática de consumo do álcool parece referir-se ao uso (ou à importância) desse. Trata-se, segundo Lima (2011) e Stark (1998), de um conceito central à arqueologia, não havendo, porém, um consenso sobre sua definição. Sua adoção não se limitou à disciplina arqueológica, expandindo-se a outras áreas e originando novas linhas de estudo em todo espectro das ciências sociais. Entretanto, apesar dos sucessos e inovações, o conceito não está isento de falhas, sustentando diversas incongruências, centradas principalmente na dicotomia estabelecida entre o material e o imaterial. Essas rachaduras têm se expandido ainda mais nos últimos anos, com um crescente movimento por diversos autores de “retorno às coisas” e críticas a oposições puras como estruturas explicativas capazes de abarcar a complexidade do mundo (HODDER, 2012; OLSEN, 2012; SHANKS, 2007 e LATOUR, 2005). Tomamos a crítica como ponto de partida para colocar a alternativa sobre a qual sustentamos nosso trabalho, qual seja, uma arqueologia da embriaguez voltada ao campo da construção social da bebida, levando em conta os diversos participantes dessa disposição. Isso significa estabelecer como seara do trabalho arqueológico não apenas o produto da ingerência humana sobre o mundo – os artefatos – e sim a própria relação entre o elemento humano e o mundo que o cerca (TRAMASOLI, 2015). Como resultado, descartamos o produto como elemento central e colocamos a totalidade do fenômeno como centro da análise, evitando, assim, a dualidade mente/matéria e suas complicações decorrentes (KNAPPETT, 2014), bem como elegendo elementos que, de outra forma, poderiam ser vistos como apenas correlacionados e pertencentes a outras esferas da experiência humana (BRUNEAU e BALUT, 1994). REGRAS PARA A INGESTÃO DE PREPARADOS ETÍLICOS: ETIQUETA DO CONSUMO DE ÁLCOOL E DA EMBRIAGUEZ Desenvolvendo a proposta de uma arqueologia da prática de consumo de álcool, esboçada anteriormente, optamos por tratar neste tópico da construção perceptiva da bebida em fins do século XVIII e início do XIX, bem como das regras de comensalidade que envolveram o consumo de álcool, tendo como enfoque o beber em lugares possivelmente praticados por foqueiros, lobeiros e baleeiros, antes ou depois de se dirigirem à Antártica. Dessa forma, será possível compreender variados contextos nos quais as bebidas foram consumidas e, partir daí, traçar paralelos comparativos com nossos sujeitos de estudo. É importante lembrar que até o final do século XVIII, diferentes preparados alcoólicos não só eram listados como essencialmente distintos entre si, como também pertenciam a esferas distintas de consumo. Bebidas como vinho, cerveja, cidra e fermentados de modo geral eram muito mais próximas aos alimentos ou à água. Seu fator intoxicante era secundário e não comparável ou associável com o proveniente de destilados como rum, uísque ou gim. Assim, ainda que os efeitos fisiológicos pudessem, em última instância, ser similares, o consumo de diferentes bebidas era tido e regulado, jurídica e socialmente, de forma dicotômica (DIETLER, 2006). A associação do consumo do álcool a um processo patológico de entorpecimento químico com efeitos nocivos a toda a sociedade é resultante de um longo processo 144

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histórico decorrido nos últimos dois séculos. Como uma de suas maiores causas, e de particular importância para a nossa discussão, o Movimento da Temperança foi uma das primeiras manifestações coletivas contra o consumo do álcool. Com origens em diversas manifestações contra excessos de embriaguez no cenário pós-revolucionário dos Estados Unidos, o movimento inicialmente se focava no incentivo à abstinência de beberagens destiladas. Foi somente com o avanço do movimento durante as primeiras duas décadas do séc. XIX, quando a causa angariou adesão maciça de boa parte do território norteamericano, que diversas das organizações envolvidas passaram a pleitear o banimento total, por proibições legais, do consumo e da fabricação de quaisquer preparados capazes de induzir a embriaguez (TRACY e ACKER, 2004). Apesar do forte cunho moralista e calcado em uma ideia de fortitude do espírito individual e coletivo, a temperança rapidamente se tornou também uma bandeira prática, defendida por setores associados aos emergentes contextos urbanos-industriais. A paulatina substituição de bebidas leves produzidas em contextos locais, como a cidra, por preparados mais baratos e comercializados em ampla escala, como o rum, levaram a um “estado de descontrole” com grandes contingentes de desempregados e dificuldades para a manutenção de níveis de produção industrial (RORABAUGH, 1981). O incentivo do movimento permitiu, assim, a introdução de novas estruturas de disciplina e controle sob a égide de um benefício moral coletivo (DIETLER, 2006). Nesse conjunto de regras que passaram a controlar o consumo de bebidas e definir o que era, ou não, alcoólico, é importante discutir a etiqueta que envolveu o hábito de beber no século XIX e traçar um panorama histórico geral sobre as bebidas em lugares possivelmente praticados pelos trabalhadores do mar. Antes de mais, acerca das regras de comensalidade, é importante ressaltar que o período oitocentista viu consolidarem-se, em diferentes nações, comportamentos com relação às práticas de comer e beber que já vinham se esboçando desde fins do século XVIII nas grandes metrópoles, especialmente na França e na Inglaterra (LIMA, 1995). A ascensão econômica da burguesia e a produção de bens de consumo em massa permitiram que artigos domésticos fossem adquiridos pelos grupos emergentes. Nessa disposição, a aristocracia, em uma ânsia por demarcar limites sociais, adotou uma série de regras comensais que tinham por finalidade evidenciar aqueles que eram “ricos de berço” e diferencia-los dos “novos ricos” (LIMA, 1995). Os elegantes e requintados jantares e chás do século XIX materializavam essas práticas na esfera doméstica. Neles, as refeições eram servidas em cobertas, 42 seguiam as regras dos manuais franceses (jantar à la française ou jantar à la russe), e possuíam uma infinidade de louças, cristais e/ou outros artigos importados (LIMA, 1995 e LIMA, 1997). Saber manusear talheres, taças, xícaras e comer ou beber “adequadamente” tornou-se tão (ou mais) importante do que possuir artigos caros. No cenário público, especialmente nos hotéis, teatros, clubes, cafés e confeitarias, essa comensalidade elitizada também era praticada. Segundo Graça (2005: 177), nesses espaços, “o champanhe e os finos vinhos, com as suas delicadas taças de cristal, eram símbolos de requinte e status social”. Por outro lado, e em contraste, as tabernas eram lugares públicos para se beber de maneira informal, descontraída e indisciplinada. Na primeira metade do século XIX, aliás, as tabernas eram os lugares, por excelência, onde se ia para beber. Os bares,

42 Segundo Lima (1995), o termo coberta pode ser entendido como o conjunto de serviços de mesa trocado a cada vez que uma nova etapa da refeição era servida.

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restaurantes, cafés, botequins e casas de pasto 43 eram conhecidos pelas suas comidas e bebidas, mas as tabernas eram os lugares, por primazia, da bebida alcoólica (GRAÇA, 2005). Conforme Graça (2005), as tabernas eram frequentadas por diferentes públicos, sendo os mais assíduos aqueles das camadas populares, principalmente os artesãos, mascates, taberneiros, caixeiros, carregadores, prostitutas e marinheiros. Esses viam na bebida “uma forma de se afastar ou esquecer da sua difícil condição [e ao mesmo tempo], representava (...) um complemento alimentar” (GRAÇA, 2005:168). O autor entende que o prazer e a necessidade eram instâncias indissociáveis na ingestão de bebida alcoólica em tabernas (ANDRADE, 1988 apud GRAÇA, 2005). De modo geral, as tabernas eram palco de sociabilidades, convívios, encontros, trocas de informação, reciprocidades, solidariedades, informalidades, desavenças e trabalhos lícitos e ilícitos (GRAÇA, 2005). Esses estabelecimentos tornaram-se o alvo das autoridades que buscavam controlar os corpos e domesticar seus frequentadores, potenciais operários. Regras de ética e moral, adequadas ao bom desempenho do trabalhador nas fábricas eram impostas aos seus usuários, acompanhadas de um enunciado estético, criminológico e higienista. Controle acerca do horário de funcionamento, limitação de atividades aos domingos, feriados e festas religiosas e a própria localização das tabernas passaram a ser regrados e impostos. Adjetivos como “libertinagem”, “obscenidade”, “perdição” ou “nefasto” eram difundidos de “boca em boca” e nos jornais. Para seus frequentadores, porém, o “bebericar estava, isto sim, ligado a uma atividade social, [e fazia parte da] sua rotina diária” (GRAÇA, 2005: 179). Nas tabernas, o compartilhamento do mesmo copo, 44 “o gesto rápido de emborcá-lo, a contração do rosto ao ingerir uma grande quantidade de bebida e o posterior e vigoroso golpe do copo de encontro ao balcão são códigos de conduta que vão [ao] encontro [da] constituição deste ambiente” (GRAÇA, 2005: 171). O vozerio, as risadas, os jogos, as apostas, as fofocas, as brigas, os gritos e os negócios também eram próprios ao local. Percebe-se, assim, que as tabernas também possuíam seus códigos com relação ao ato de beber, não estando esses, porém, ligados a uma etiqueta europeia difundida pela aristocracia, mas a uma atmosfera particular, na qual a informalidade, a indisciplina e o excesso somavam-se aos ideais de masculinidade, virilidade e convívio grupal. Nessas condições, não seria incomum encontrar baleeiros, lobeiros e foqueiros nas tabernas que entusiasmavam a vida pública do século XIX. Se, como propõe Graça (2005), as tabernas tinham sua clientela mais usual nas camadas populares, a correspondência com caçadores de recursos faunísticos fica ainda mais clara. Embora a indústria de caça tenha sido extremamente lucrativa no século XIX, os ganhos de um marinheiro comum, sobretudo um iniciante, eram mínimos. As promessas de uma fortuna rápida através das viagens extrativas era antes uma ilusão do que uma realidade. Muitos Graça (2005) explica que as diferenças entre taberna, botequim e casas de pastos não eram rigorosamente delimitadas. Segundo ele “com certeza existia uma confusão entre a função de cada um. No entanto, é possível afirmar que os botequins e as casas de pasto, além do fornecimento da bebida, eram reconhecidos por servirem pequenas refeições, almoços e jantares. Uma casa de pasto era obrigada ter uma cozinha, mas a taberna não. Isto não quer dizer, também, que a taberna não pudesse oferecer alguma refeição ou aperitivo, além da venda de outros artigos, o que em muitas vezes ocorria. Em várias ocasiões a taberna era reconhecida como uma casa de pasto inferior ou ordinária” (GRAÇA, 2005:165). 44 Conforme enuncia Graça (2005: 177) “um copo podia dar voltas e voltas” nas tabernas. 43

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marinheiros voltavam para casa, terminada uma expedição, endividados e sendo forçados, assim, a logo retornar ao mar (DRUETT, 2001). O modo de vida dos trabalhadores do mar, unidos por uma fraternidade específica, ganhava não raro uma afeição pela bebedeira desmedida: Longe de casa e das influências restritivas do direito, da ordem e da opinião pública, os oceanos Índico e Pacífico eram, efetivamente, um mundo de homens. As bebedeiras, por exemplo, eram lendárias. Era tradicional para marinheiros procurar farras quando nos portos, e os baleeiros o faziam de forma mais extravagante do que a maioria, independente de o lugar da baderna ser em Honolulu, no Taiti, na cidade de Sydney ou em Kororareka, na região de Bay of Islands (DRUETT, 2001:02). Apesar dos excessos festivos quando em cidades portuárias ou nas ilhas do Pacífico e Índico, responsáveis pela construção de um estereótipo pantagruélico dos homens do oceano, a associação entre marinheiros e álcool deve ser problematizada no contexto dos navios, suas casas em alto mar. No final do século XVIII e nas primeiras décadas do XIX, uísque e rum faziam, de fato, parte dos suplementos indispensáveis de uma embarcação, e cabia ao Imediato racionar a quantidade e a frequência com que eram dados à tripulação (CREIGHTON, 1995 e HOHMAN, 1928). Brown (1887) aponta que sete ou oito barris de rum ou uísque eram levados em uma viagem baleeira. A partir das décadas de 1830 e1840, porém, o Movimento da Temperança ganhou forte adesão na indústria de caça marítima, motivando que as bebidas fortes não fossem mais levadas ao oceano. Com efeito, já na década de 1840, o número de embarcações baleeiras viajando sem intoxicantes tornou-se majoritário (CREIGHTON, 1995 e HOHMAN, 1928). A inserção das reformas morais, cabe apontar, não extinguiu por completo as bebidas fortes nos navios. Mesmo nas embarcações temperantes, havia uma certa quantidade a bordo guarnecida para fins medicinais, bem como alguma porção resguardada para uso pessoal do Capitão e dos Imediatos. As bebidas fortes, porém, deixaram de fazer parte dos suplementos fornecidos obrigatoriamente aos marinheiros e, ao fim do estoque pessoal, a sobriedade tornava-se um caminho inevitável (CREIGHTON, 1995 e HOHMAN, 1928). Capitães que, por sua vez, liam a temperança como uma necessidade de moderar o uso do álcool, mas não da abstinência total (teetotalers), ofereciam rum eventualmente, como recompensa à caça de algum mamífero ou ao fim do refinamento de sua gordura. Em festividades como o 4 de Julho (para as embarcações estadunidenses), na passagem de ano ou quando se atravessa um cabo tormentoso, spirits também poderiam ser disponibilizados (CREIGHTON, 1995). Além disso, a tripulação comum poderia contrabandear um pequeno estoque próprio quando vinha a bordo – em alguns casos, sob pena de punição caso fosse descoberta (CREIGHTON, 1995 e HOHMAN, 1928). Como base no exposto, é possível perceber que apesar dos navios, portos e tabernas terem sido lugares experenciados por foqueiros e baleeiros, havia quase uma oposição entre as regras de beber em cada um deles: nos navios, o controle era prática rotineira (com algumas exceções); nos portos e tabernas, a indisciplina e a liberdade eram mais habituais. Assim, para um mesmo grupo social, a bebida assumiu diferentes significados e foi realizada de diferentes formas de acordo com o contexto em que era consumida. Outro sítio comum aos caçadores do mar eram as estações baleeiras, construídas em algumas praias para facilitar a caça e o processamento de baleias, bem como (e 147

Comida, Cultura e Sociedade

especialmente) para demarcar territorialmente a presença da metrópole nas suas colônias. Acompanhando o movimento das baleias, as quais circundavam a área costeira em alguma fase do ano, montaram-se estações para onde as baleias eram levadas e o refinamento de sua gordura era feito. A Tasmânia, por exemplo, foi cenário de 45 estações baleeiras entre as décadas de 1820 e 1850, e duas delas foram escavadas pela arqueóloga Lawrence (2006). Seu trabalho, assim, pode nos dar pistas sobre os hábitos de comensalidade dispostos nesses abrigos ocupados durante os meses de inverno e ajudar na compreensão de nossos sujeitos de estudo comparativamente. A partir de pesquisas documentais e materiais, Lawrence (2006) afirma que o gim, o rum, a cerveja e o vinho foram consumidos nessas estações. Nenhum deles fazia parte das rações semanais fornecidas aos trabalhadores, porém o proprietário Kelly e seus parceiros os faziam disponíveis para seus trabalhadores de forma sistemática. A partir de pesquisas documentais, a autora identificou que “em 1834, ele [Kelly] comprou 71 galões de rum para a embarcação baleeira Mariane e em 1836 ele comprou 547 galões para o mesmo navio. Em 1841, James Hewitt, de Twofold Bay, informou Kelly que havia 80 galões de cerveja e 6 galões de rum no estoque” (LAWRENCE, 2006: 114). Ou seja, Kelly (o proprietário) controlava o estoque de bebidas das estações e as adquiria para seus homens, mesmo que fazê-lo não fosse seu dever. Durante os trabalhos arqueológicos realizados, a arqueóloga identificou o número mínimo de 33 garrafas cilíndricas de cerveja ou vinho, 4 garrafas troncopiramidal de gim ou licores em Lagoon Bay e 16 garrafas de vinho ou cerveja em Adventure Bay. Sobre os recipientes onde eram servidos, recuperou apenas 7 peças de vidro (copos) para uma média de 20 ou 30 homens por estação. Confrontando os dados materiais e documentais, Lawrence (2006) coloca que a dimensão social do beber angariou formatos tradicionais e populares nessas estações. Segundo ela, a presença de copos foi muito reduzida, o que sugere seu compartilhamento entre os caçadores, reforçando laços de identidade entre eles. A bebida adquiriu um aspecto comunal de compartilhamento e encontro: todos bebiam em um mesmo copo que circulava entre os caçadores. Alguns homens, porém, optavam por modos mais requintados. Essa constatação foi sugerida a partir da localização de 2 taças de vinho em Adventure Bay, que podem indicar uma maior formalidade no consumo da bebida, possivelmente utilizada pelo “headsman” e seus convidados ou pelos capitães do navio. Certamente, a presença dessas taças de vinho demonstra que a hierarquia da estação foi demarcada materialmente, tornando visível para quem lá estava os limites sociais existentes entre empregados e empregadores. Especificamente com relação ao compartilhamento de copos, prática comum nas estações e tabernas, cabem algumas reflexões quanto à natureza coletiva que a ação e o ato de beber assumiram nesses contextos. Stone (1988:75 apud SMITH 2008:62) afirma que o compartilhamento da bebida contribuiu para a criação de uma “cultura com distintas características coletivas”. Yentsch (1990 apud SMITH 2008) interpreta as práticas comunais de beber como parte da tradição popular. Bond (1989: 29 apud SMITH 2008: 76) entende que “o consumo do álcool fortaleceu a solidariedade entre os trabalhadores e promoveu meios de fugir do anonimato do trabalho industrial”. Nas tabernas, nos portos e nas estações, o compartilhamento de copos e o entendimento da bebida como algo antes coletivo do que individual são indicativos das identidades desses grupos e suas construções de mundo. Essa disposição particular pode ser lida como um traço identitário elegido por esses trabalhadores na lide com si mesmo e com os diversos grupos contemporâneos. Da mesma forma, as regras "indisciplinares" dos homens do mar nos espaços citados materializavam, entre um gole e outro, seu 148

Soares et al. – A (des)construção da embriaguez em solos antárticos

entendimento particular de mundo. Tendo esse pano de fundo, sigamos às análises, a partir das garrafas da ilha Livingston, buscando as especificidades do contexto antártico e pensando de que forma esses trabalhadores incluíam-se, ou não, nessa etiqueta popular da embriaguez. AS DESVENTURAS DE UMA GARRAFA: CONSTRUÇÕES METODOLÓGICAS Há cerca de 20 anos, deu-se o início do projeto Paisagens em Branco. A partir de intervenções arqueológicas, foi constatada a presença de cerca de 30 sítios referentes às primeiras ocupações humanas da Antártica, na ilha Livingston. Os sítios anunciam um capítulo esquecido da história do último continente. Na tentativa de construir um relato alternativo, mais atento às personagens comuns, o projeto vem desenvolvendo estudos sistemáticos com interesse em entender o cotidiano que se construiu no encontro dos trabalhadores do mar com as ilhas rochosas dos mares do sul.

Figura 2: Mapa das ilhas Shetland do Sul, Antártica, em detalhe sítios arqueológicos identificados pelo LEACH na Península Byers e Punta Elefante, ilha Livingston. FONTE: LEACH, 2015. Esse encontro não veio sem empasses. O trabalho de caça em um terreno tão pouco afeito à domesticidade exigiu improvisos e adaptações. Desse esforço, restam-nos os refúgios e os artefatos, que esboçam as maneiras pelas quais esse ambiente foi vivenciado. Os refúgios foram construídos a partir de afloramentos rochosos locais, além de ossos de cetáceos e madeiras trazidas dos barcos. Destinavam-se à proteção contra o frio ou à delimitação de espaços para atividades de trabalho, alimentação, bebida, jogos, estocagem de caça e outros. Na maioria dos casos, pelo que os sítios nos apontam, todas essas atividades concentravam-se em um único local, delimitado por paredes rochosas improvisadas e atingindo não mais do que 1.60m de altura. Os refúgios não possuíam área maior do que 20m2, com disposições bastante variadas - formas quadradas, retangulares, semicirculares ou irregulares. Distribuem-se pelas praias, com distâncias distintas em relação ao mar, mas sempre o tendo como referência. Alguns possuem refúgios menores imediatos a eles, outros se encontram próximos entre si e a associação é proposta por essa vizinhança (ZARANKIN e SENATORE, 1996, 2007 e ZARANKIN et al, 2011). 149

Comida, Cultura e Sociedade

No interior dos refúgios, é comum encontrar fogões e vértebras de baleias adaptadas como mobiliário. Associados aos fogões (mas não exclusivamente), concentramse grande soma de artefatos, que se caracterizam por vestígios relacionados às atividades de lobeiros e baleeiros no continente em fins do século XVIII e princípios do XIX. Podem ser classificados quanto ao tipo de material que o constituem (louça, grés, caulim, tecido, couro, osso, pele, madeira, metal, vidro, rocha e outros) ou pelo objeto/peça que integram (facas, garrafas, cachimbos, roupas, sapatos, luvas, pregos, jogos e outros) (ZARANKIN e SENATORE, 1996, 2007 e ZARANKIN et al, 2011). Constatando a representatividade dos vestígios vítreos na coleção e as possibilidades interpretativas de uma análise pormenorizada desse material, decidimos nos debruçar sobre ele, sem perder de vista sua relação com os demais. Procedemos, antes de mais, a um mapeamento da dispersão dos vestígios nos sítios. Esse processo evidenciou que os artefatos vítreos estão localizadas em diferentes refúgios e em diferentes partes nos refúgios. O estudo do contexto arqueológico onde os fragmentos foram recuperados foi realizado a partir do software systat, que gera “mapas de contorno” capazes de expressar “gradientes de densidade de artefatos”, possibilitando, assim, uma análise distribucional intra e inter-sítio (SOUZA e SYMANSKI, 1996: 25). 45 Optamos por elaborar os gráficos systat apenas nos sítios onde os fragmentos de vidro foram encontrados em profundidade, visto que a possibilidade de terem sofrido qualquer tipo de perturbação na sua disposição espacial (ocasionada por animais marinhos ou demais condições climáticas, como chuva, neve ou vento) era menor e justificava sua aplicação. A partir deles, torna-se visível os locais de concentração dos fragmentos vítreos no interior dos refúgios (figura 3). A maioria está concentrada próxima aos possíveis fogões, porém há dispersão também nas áreas “de dormitório” ou áreas “de trabalho”, ainda que esses espaços não fossem rigidamente delimitados. Figura 3: (a) foto do sítio arqueológico Pencas 3. FONTE: LEACH, 2011 (foto Andrés Zarankin). (b) croquis do sítio Pencas 3. No primeiro, dispersão dos vestígios de todas categorias, concentrados no entorno de um fogão e vértebra de baleia; no segundo, dispersão exclusiva dos vestígios vítreos, concentrados em espaços opostos no A utilização do programa systat para análise de sítios arqueológicos históricos foi proposta, pela primeira vez no Brasil, pelos arqueólogos Souza e Symanski (1996: 25), com a finalidade de “apresentar algumas alternativas analíticas e interpretativas para a realização de estudos sobre espacialidade em sítios históricos”. 45

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Soares et al. – A (des)construção da embriaguez em solos antárticos

(a)

sítio, porém, dispersos por todo ele. FONTE: LEACH, 2014.

(b)

Por cerca de 200 anos deitado em solo antártico, sob a forma de fragmentos, o material vítreo foi submetido à remontagem no LEACH-UFMG, anunciando sua configuração primeira: garrafas. São elas as responsáveis pelos nossos questionamentos acerca das práticas alimentares que se fizerem presentes naquela disposição de mundo. Dentro dos refúgios rochosos, em um território milhas distantes das nações de origem, o que os caçadores antárticos bebiam? Naquelas estruturas improvisadas, como arquitetavam regras de comensalidade para o ato de beber? É possível pensar a embriaguez e a performance festiva no hemisfério sul oitocentista? O que, afinal, essa materialidade pode nos narrar a respeito do cotidiano dos caçadores que, também remontados, tornaram-se nossos sujeitos de estudo? O processo de remontagem teve por finalidade estimar o número mínimo de peças (NMP) e, assim, evitar distorções nos resultados correntes quando se trabalha com fragmentos. O quadro abaixo reúne informação sobre os sítios que sofreram intervenções pelo LEACH-UFMG onde havia artefatos vítreos e a sua disposição quando coletados: Tabela 1: Sítios arqueológico antárticos com vestígios vítreos analisados. IDENTIFICAÇAO DE GARRAFAS POR SÍTIOS Ano da intervenção Sítio Sealer 4

Garrafa

Coleta

Garrafa “H”

superfície

2010 Punta Del Diablo Garrafa “J”

superfície

151

Comida, Cultura e Sociedade

Rocas Largas

Garrafa “I”

superfície

Punta Varadero

Garrafas “F” e “G”

profundidade

Pencas 3

Garrafas “A”, “B” e “C” profundidade

PX-2

Garrafa “E”

profundidade

Punta Elefante

Garrafas “L” e “O”

profundidade

X-1

Garrafas “M” e “N”

profundidade

2011

2012

2014

A partir das questões trazidas pelas garrafas e de revisões bibliográficas, construímos fichas de análises que contemplaram atributos formais e métricos do material (tabela 2). A compreensão da história de manufatura das garrafas permitiu que realizássemos a identificação do período e o local em que as garrafas foram fabricadas, bem como para que tipo de líquido haviam sido destinadas. Jones (1971, 1986) e Jones et al (1989) foram pioneiros nesse tipo de análise, elencando atributos datáveis a partir de pesquisas sistemáticas em coleções de museus, documentos históricos e sítios arqueológicos do Canadá, com ocupação entre 1760-1850. Nossas principais referências foram: Jones (1971,1984 e 1985), Jones et al (1989), Moreno (1997, 2000), Graça (2005), Smith (2008) e Stone (1986).

152

Soares et al. – A (des)construção da embriaguez em solos antárticos

Tabela 2: Atributos de análise das garrafas antárticas. De acordo com esses autores, a produção das garrafas de vidro iniciou-se por volta do século XVII, na Inglaterra, sendo um dos resultados da substituição da madeira pelo carvão no processo de queima do vidro. Nesse período, os recipientes de vidro passaram a competir com o stoneware (grés), e a sua produção espalhou-se por outros países devido à fama que ganharam de serem contentores mais resistentes que seus predecessores cerâmicos (JONES et al 1989). As garrafas inglesas eram usadas para produção, armazenamento, transporte e consumo de uma variedade de líquidos, sendo os mais comuns o vinho, a cerveja, a sidra, os destilados, o uísque, o brandy, a ginebra, o rum e outros não alcoólicos, como o vinagre, a água mineral e o azeite (JONES, 1986 e MORENO, 2000). As garrafas possuíam paredes grossas, ideais para o transporte; custo baixo de produção, já que feitas em massa; e poderiam ser hermeticamente fechadas, evitando a evaporação do álcool de seu interior e permitindo o armazenamento de bebidas mais concentradas (MORENO, 2000 e SMITH, 2008) 46. 46 Além das garrafas cilíndricas serem chamadas de garrafas inglesas, também eram comumente denominadas de garrafas champagnes ou de vinho, ainda que seu conteúdo não fosse, de fato, champagne ou vinho. Sobre esse aspecto, Stone (1986) explica que as garrafas fabricadas em maiores quantidades no século XVIII eram denominadas como champagnes ou “moulded champagnes”, “moulds” e “champagne wine quarts”; comparando a importância deste grupo de garrafas na documentação histórica e a recorrência numericamente esmagadora das garrafas de

153

Comida, Cultura e Sociedade

Além das garrafas cilíndricas, datam desse contexto as garrafas quadradas, comumente denominadas de “garrafas de ginebra” ou “case bottle”. Essa segunda denominação deriva da prática de estocá-las em caixas de madeira com divisões internas, onde cabiam 12 garrafas (MORENO, 1997:8). A exemplo das anteriores, as garrafas quadradas não eram fabricadas exclusivamente para ginebra, mas também para outros tipos de licores. Associado ao estudo formal do material, procedemos ao levantamento bibliográfico e documental da história da Antártica. Segundo Lima (2002: 12), o confronto entre o registro histórico e o registro arqueológico é o que caracteriza o campo de atuação da arqueologia histórica, gerando “um terceiro nível de informação, nem propriamente arqueológico, nem propriamente histórico, mas profundamente fecundo”. Funari (2004) afirma que nos trabalhos de arqueologia histórica os artefatos e os documentos escritos são interdependentes, contraditórios e complementares ao mesmo tempo, e é justamente o confronto entre artefatos e documentação textual que traz à tona elementos que não seriam observados a partir de uma análise isolada. Durante o desenvolvimento do projeto-marco, vêm sendo realizados levantamentos de informações em diários, cartas, jornais da época e cadernos de bitáculas elaboradas por foqueiros, lobeiros e baleeiros no século XIX. Alguma dessa documentação está disponíveis em sítios on line,47 outra foi publicada (sobretudo diários de viagens). O Prof. Dr. Andrés Zarankin esteve nos Estados Unidos digitalizando informações de arquivos e museus de cidades portuárias da Nova Inglaterra, para integrá-las ao acervo do projeto. A partir dessa rede de documentos, é possível coletar informações relativas às atividades realizadas na Antártica ou nos navios que rumaram a ela, buscando interpretar, de forma associada ao material arqueológico, como se deu a ocupação do continente polar. UM GROGUE ABAIXO DE ZERO: A (DES) CONSTRUÇÃO SOCIAL DA EMBRIAGUEZ EM SOLOS ANTÁRTICOS No caminho para a construção de nossa narrativa, confrontamos documentos, bibliografia e o material recolhido em sítio. Os vestígios vítreos foram nosso guia, demandando um esforço específico para sua análise. A existência dessas coisas-garrafas, seus potenciais e limites, foram elementos ativos na materialização de mundo dos foqueiros, baleeiros e lobeiros antárticos, e tornaram-se, portanto, centrais em nossa elaboração discursiva. Inicialmente, cabe pontuar que a aplicação das fichas, anunciada no tópico anterior, permitiu evidenciar que a coleção vítrea antártica é formada por 13 garrafas, sendo 12 delas cilíndricas e 1 troncopiramidal, todas na cor verde escuro. Denominamo-las como garrafas “A”, “B”, “C”, “E”, “F”, “G”, “H”, “I”, “J”, “L”, “M”, “N” e “O”. 48 vidro cilíndricas de cor verde escuro encontradas nos sítios arqueológicos, o autor conclui que se tratavam da mesma coisa, ou seja, as garrafas “moulded champagnes”, “moulds”, “champagne wine quarts” e inglesas são, na verdade, as garrafas cilíndricas de cor verde escuro recorrentes arqueologicamente (Stone, 1986 e Jones, 1989). 47 Uma pesquisa já iniciada, sob a coordenação do Prof. Dr.ª Melisa Salerno, acerca dos periódicos semanais do Whalemen's Shipping List and Merchant's Transcript, publicadas entre 1843 e 1914 em New Bedford (Massachusetts, EUA), vêm apresentando dados significativos para o confronto de informações. Os jornais podem ser acessados no site: http://nmdl.org/wsl/wslindex.cfm. 48 As peças “D” e “K” acreditamos que não sejam garrafas, por isso não as incluímos nesse capítulo. A peça “D”, por exemplo, caracteriza-se por um fragmento de cor ambar e a peça K, um pequeno fragmento plano transparente, ambos encontrados em superfície. 154

Soares et al. – A (des)construção da embriaguez em solos antárticos

Figura 4: Coleção vítrea antártica: da esquerda para direita, parte superior: garrafas “L”, “O”, “C” e “B”; parte inferior: garrafas “F”, “E”, “M”, “J” e “A”. FONTE: LEACH, 2015 (foto Fernanda Codevilla Soares e Taísa Jóia). O quadro abaixo sintetiza as principais informações acerca do material analisado: Tabela 3: Datação das garrafas da Antártica. DATAÇÃO DAS GARRAFAS DA ANTÁRTICA Garrafa

Fragmentos Sítio

Datação

Garrafa A

13 frags.

1730 1865

- Marcas manufatura do corpo (Moreno, 2000 e Jones, 1986).

1793 1859

- Fórmula da base/corpo garrafa (Jones, 1986).

1776 1806

- Fórmula da garrafa inteira (Jones, 1986).

Pencas 3 (Byers)

Garrafa B

27 frags.

Pencas 3 (Byers)

Garrafa C

24 frags.

Pencas 3 (Byers)

Fontes da datação

da

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Comida, Cultura e Sociedade

Garrafa E

3 frags.

Px - 2 (Byers)

Garrafa F

3 frags.

Punta Varadero

1766 1810

- Fórmula do pescoço da garrafa (Jones, 1986).

1766 1810

- Fórmula do pescoço da garrafa (Jones, 1986).

1770 1850

- Marcas de manufatura do pescoço (Moreno, 2000 e Jones, 1986).

(Byers) Garrafa G

1 frag.

Punta Varadero (Byers)

Garrafa H

1 frag.

Sealer 4

-

-

-

-

(Byers) Garrafa I

2 frags.

Rocas Largas (Byers)

Garrafa J

1 frag.

Punta Del 1790 1870 Diablo (Byers)

Garrafa L

19 frags.

Punta Elefante 2

- Marcas de manufatura do pescoço (Moreno, 2000 e Jones, 1986).

1750 1850

- Marcas de manufatura corpo (Moreno, 1997).

1748 1778

- Fórmula do pescoço da garrafa (Jones, 1986).

1760 1800

- Marcas de manufatura do bico (Moreno, 2000 e Jones, 1986).

(Punta Elefante) Garrafa M 3 frags.

X-1 (Punta Elefante)

Garrafa N

1 frag.

X-1 (Punta Elefante)

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Soares et al. – A (des)construção da embriaguez em solos antárticos

Garrafa O

44 frags.

Punta Elefante 2

1780 1805

- Fórmula da garrafa inteira (Jones, 1986).

(Punta Elefante) De modo geral, as análises realizadas nos remetem às seguintes considerações sobre a construção social da bebida em solos antárticos: Cronologia. As garrafas datam do fim do século XVIII e princípio do XIX, com pequenas variações entre elas (tabela 3). Aplicando o gráfico de barras e a fórmula de South (1977), podemos afirmar que a amostra possui um período de ocupação mais intensa entre 1766 e 1793, tendo como data média o ano de 1799. 49 É importante considerar, contudo, que o recuo na anterioridade em que se deu a conquista da Antártica baseada nas fontes materiais, no caso garrafas vítreas, merece ponderações. Conforme explicaremos a seguir, o reuso e reciclagem de garrafas são práticas comuns, e isso pode gerar distorções nas datações de sítios baseadas no período de produção das garrafas. Ainda assim, conforme afirma Smith (2008: 21), “garrafas de vidro são, geralmente, bons marcadores cronológicos de depósitos arqueológicos porque elas frequentemente possuem uma vida de uso mais curta do que outros artefatos diagnósticos, como cerâmicas, e porque são usualmente abundantes em sítios arqueológicos”. Logo, ainda que seja necessário apresentar uma margem de erro nas datas fornecidas pelas garrafas, podemos considerá-las como indicativos relevantes para se pensar o processo histórico de ocupação da Antártica. Espera-se aprofundar na análise de outros materiais para confirmar ou refutar essas datações. Se nos atentarmos à historiografia oficial, a descoberta das ilhas Shetland do Sul decorreu de um acidente de percurso na viagem do Capitão William Smith, navegador britânico que fazia expedições comerciais de Buenos Aires (Argentina) a Valparaíso (Chile). O marinheiro, na tentativa de se desviar de ventos indesejados, acabou navegando ao sul do cabo Horn e, em 19 de Janeiro de 1819, avistou as ilhas Shetland do Sul, confirmando a descoberta no dia posterior (BUSCH, 1985 e STACKPOLE, 1953). O anúncio de que havia naquelas ilhas rochosas elefantes marinhos, focas e outros recursos faunísticos de As datações das peças foram estimadas a partir da aplicação das fórmulas de Jones (1986: 115, 116), que variam de acordo com o grau de integridade e componentes que a peça possui: Fórmula para datar a garrafa inteira: Data = 1779.5 + 1.1183 (diâmetro do meio pescoço) 1.2207 (altura do pescoço) - 0.65191 (altura do corpo) - 1.1309 (diâmetro da base) + 0.79558 (diâmetro do ponto de apoio) - 0.41244 (diâmetro da marca de pontil) + 0.86582 (altura da garrafa) + 2.7918 (lábio) - 6.6852 (indicador do bico: 1-lábio, 2-anel). Atribui-se uma margem de 15 anos para mais e para menos a partir da data estimada. Fórmula para datar a partir de fragmentos de pescoço: Data = 1740.0 - 1.1332 (diâmetro do meio) + 1.7357 (altura do bico - lábio e anel) + 2.0156 (diâmetro do pescoço próximo ao lábio) + 2.1880 (lábio) - 20.296 (indicador do lábio: 1-lábio, 2-anel). Atribui-se uma margem de 22,4 anos para mais e para menos a partir da data estimada. Fórmula para datar a partir de fragmentos da base/corpo: Data = 1925.1 + 1.3838 (diâmetro do corpo perto da base) - 3.2425 (diâmetro da base) + 1.4577 (diâmetro do ponto de apoio) 0.47098 (altura push-up) - 1.0197 (marca do ponto pontil). Atribui-se uma margem de 33 anos para mais e para menos a partir da data estimada. 49

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interesse extrativo logo atraiu a atenção dos caçadores do mar e, já em Janeiro de 1820, um compêndio de embarcações, britânicas e norte-americanas em sua maioria, direcionaram-se a elas. No verão de 1821/1822, o número de caçadores foi ainda maior e, com o intenso processo de abatimento, já no início de 1822, os lobos marinhos estavam quase extintos na região (HEADLAND, 2009). O material vítreo analisado, sobretudo o proveniente dos sítios de Punta Elefante (garrafas “L”, “M”, “N”, “O”), sugere, a princípio, uma ocupação anterior à prevista pela história canônica. A possibilidade de a descoberta das ilhas Shetland do Sul anteceder o ano de 1819 é anunciada por Headland (2009), que aponta haver marinheiros reclamando sua descoberta, sem, contudo, dispor da documentação que a confirme. Busch (1985) indica que, muitas vezes, foqueiros e lobeiros não revelavam as áreas de caça encontradas, intencionando, assim, resguardar a fonte de recursos para si até que se desse seu esgotamento. Nessas condições, é possível contestar as datas oficiais que demarcaram o primeiro contato, o que se atrela, mais propriamente, a uma corrida pelos mamíferos marinhos em uma perspectiva antes sigilosa do que notável ou glorificante. Em se tratando do território antártico, ademais, o empreendimento das nações em afirmar seu direito sobre o continente apoiaram-se, como um dos critérios, na procura pelo primeiro ser humano a alcançá-lo. Com relação às ilhas Shetland do Sul, a busca pela anterioridade foi luta corrente entre ingleses e norte-americanos. Embora o Capitão W. Smith, de origem britânica, tenha sido o primeiro a avistá-la, segundo os relatos, os Estados Unidos reclamaram a área pelo fato de, em Novembro de 1819, a tripulação da brigue Hersilia, sob comando do Capitão James P. Sheffield, ter lá aportado (STACKPOLE, 1953). O encontro com a Antártica logo tomou ares de um embate colonial, e as tentativas de encontrar o pioneirismo da descoberta são obscurecidas pela trama da disputa. A análise das garrafas amplia as possibilidades de compreensão do encontro com as ilhas Shetland do Sul. Torna-se mais evidente que, paralela à concorrência colonial, havia uma corrida por recursos faunísticos que, com efeito, foi essencial ao desbravamento de novos mares e à expansão das fronteiras conhecidas (SENATORE, 2011; ZARANKIN e SENATORE, 2007; SENATORE e ZARANKIN, 2011 e ZARANKIN et al, 2011). Aos propósitos deste trabalho, focado nos agentes envolvidos na atividade baleeira, lobeira e foqueira, é-nos possível, através da datação do material, inseri-lo em um contexto datado que não tenha como fonte somente a documentação histórica. Além disso, a partir da análise arqueológica, reforça-se uma crítica às grandes narrativas da história oficial antártica, entrelaçadas a uma perspectiva colonial e perdendo de vista, por vezes, macroprocessos essenciais ao contexto do encontro. Tipos de recipientes. As garrafas com alto grau de integridade (garrafas “C”, “L” e “O”) permitem afirmar que se tratam de 1 galões de cerveja (garrafa “C”), 1 galão de vinho (garrafa “O”) e 1 garrafa de ginebra ou licor (garrafa “L”). Essa análise foi realizada a partir da aplicação da fórmula 50 de Jones (1986) que auxilia a estimar a capacidade volumétrica dos recipientes vítreos cilíndricos e, com base nisso, identificar para que tipo de bebida foram fabricadas. Segundo Jones (1986), galões de cerveja (beer-style quarts) possuem capacidade entre 950 e 1250ml; os galões de vinho (wine style quarts), entre 675 e 950ml, e os Fórmulas para estimar as capacidades das garrafas cilíndricas a partir de Jones (1986: 163): Loge = -9.3011 + 1.97 loge (diâmetro da base) + 1.3779 loge (altura da garrafa - altura do pescoço).

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galões de cerveja menores (undersized beer-style quarts), capacidade menor que 950ml. 51 Entre um galão de vinho (wine style quarts) e um galão de cerveja menor (undersized beer-style quarts), deve ser levado em conta, para além da capacidade, as medidas das garrafas, especialmente sua altura e diâmetro, sendo que as primeiras são maiores e estreitas; e as segunda, menores e largas. A garrafa “C” possui capacidade de 703,45ml, altura de 231mm e diâmetro da base de 93,86mm; e a garrafa “O”, capacidade de 866,79ml, altura de 258mm e diâmetro da base de 92,33mm. Portanto, concluímos que a primeira seria um galão de cerveja menor e a segunda um galão de vinho. Já a garrafa “L” foi identificada como de ginebra ou licor devido ao seu formato troncopiramidal, “típico envase de ginebra”, segundo Moreno (1997: 8). As demais garrafas (total de 10), devido a sua forma cilíndrica e características de manufatura, podem ser caracterizadas como de cerveja ou vinho, não sendo possível diferenciar entre os dois tipos por não estarem inteiras ou com elementos que permitam essa análise (JONES, 1986). É importante considerar que as garrafas possuíam várias usos para além daqueles destinados quando da sua fabricação, podendo ser reutilizadas para armazenar outros líquidos e sólidos diferentes dos “originais”. Segundo Smith (2008: 23), é possível que fossem usadas, inclusive, para práticas não alcoólicas, como preparo do terreno para plantio, ferramentas líticas, propósitos espirituais e outros. Jones et al (1989) e Jones (1986) sugerem que garrafas eram também recicladas para armazenamento de grãos, sementes e outros. Assim sendo, não podemos supor, de forma direta, que os galões de vinho e cerveja e a garrafa de ginebra identificadas na coleção antártica tenham sido usados pelos caçadores do mar para consumo exclusivo dessas bebidas alcoólicas - em outras palavras, constatar que os recipientes vítreos sejam de vinho, cerveja ou ginebra não nos permite afirmar o consumo dessas bebidas em solo antártico. Por outro lado, quando confrontamos esses dados com informações históricas, chegamos a algumas hipóteses sobre o que lobeiros, foqueiros e baleeiros da Antártica bebiam de forma indireta. Analisando listas de provisões de navios e listas de bebidas em estações baleeiras, é possível levantar tipos de bebidas consumidas por marinheiros que caçavam mamíferos marinhos de modo geral. Como colocado previamente, Brown (1887) afirma que, em fins do século XVIII e início do XIX, o uísque e o rum faziam parte dos suprimentos indispensáveis de uma embarcação, chegando a quantidades de 7 a 8 barris em uma viagem baleeira. Melville (2010 [1851]) apresenta uma lista de itens para abastecer a dispensa de 180 navios baleeiros holandeses, dentre os quais havia, 550 galões de genebra e 10.800 barris de cerveja. Essa quantidade era consumida em cerca de 3 meses, já que as caçadas polares dos mares de Spitzberg se restringiam ao período de verão. Tendo por media 30 homens por embarcação, o autor calcula dois barris de cerveja para cada um, sem contar os 550 galões de gim, que talvez não fossem divididos entre todos. De modo geral, a literatura baleeira é farta em informações sobre bebidas em navio: Melville (2010 [1851]) cita a presença de aguardente, rum, genebra, cerveja; Victor Hugo (2002 [1866]) enuncia vinho e sidra; Jack London (2011 [1904]) escreve sobre uísque e rum. Nas estações baleeiras da Tasmânia, Lawrence (2006) encontrou documentos históricos que afirmam a presença de rum e cerveja. Confrontando essas informações, entendemos que as garrafas de vinho, cerveja e ginebra identificadas na coleção antártica, de fato, poderiam ter sido utilizadas para As garrafas “Imperial Wine-Style Quarts”, sugeridas por Jones (1986), não foram consideradas nessa classificação por serem fabricadas a partir de 1825 e as datas das garrafas antárticas serem anteriores a isso. 51

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armazenar outros tipos de líquido, como rum e uísque (entre outros). No momento, estamos realizando análises de microvestígios arqueobotânicos para apoiar ou refutar essas informações. Preliminarmente, em um total de 4 garrafas analisadas, foi identificado a presença de grãos de amido de cevada em 1 delas (garrafa “J”), porém este estudo encontra-se em fase inicial e por isso não discorreremos profundamente sobre o mesmo nesta publicação.52 Cabe considerar ainda, conforme afirmado anteriormente, que cerveja e vinho, até fim do século XVIII, não eram classificados na mesma categoria que rum e ginebra. Fermentados no geral, como vinho e cerveja, eram mais próximos dos alimentos e água do que os destilados, como rum e ginebra. Entendia-se que os fatores intoxicantes dos primeiros eram menores dos que os dos segundos e, por isso, não deveriam ser classificados como spirits. Nesse sentido, podemos afirmar que a cerveja e o vinho eram consumidos como uma classe de alimentos, os quais, por acaso, vinham a ter princípios psicoativos (DIETLER, 2006). Acerca das aproximações entre bebidas e comidas, cabe lembrar Hohman (1928:133), que informa ser um hábito comum entre baleeiros molhar o pão no rum visando matar os vermes e depois ingeri-los. Esse exemplo nos permite refletir sobre o uso do rum, considerado um spirit, acoplado a propósitos alimentares, e não à embriaguez. Assim, entendemos que, ainda que não seja possível afirmar que nossos sujeitos de pesquisa consumissem vinho, cerveja e ginebra baseando-nos nos recipientes identificados durante a análise da coleção vítrea, não se pode deixar de considerar que em um conjunto de 13 garrafas, 12 delas serem possivelmente de vinho ou cerveja 53 e 1 de ginebra ou licor. Além disso, conforme as informações históricas levantadas anteriormente, as cervejas e os vinhos foram amplamente consumidos entre grupos de marinheiros e caçadores de mamíferos marinhos de modo geral. Dessa forma, pode-se sugerir que a maior quantidade de garrafas de cerveja ou vinho da coleção antártica está associada ao maior consumo desse tipo de líquido, levando em conta as informações históricas e a classificação dessas bebidas como alimento e não como spirits. Complementar a isso, cabe considerar que a ingestão de ginebra fez-se presente na vivência antártica, em menores quantidades, consumida em momentos particulares de sociabilidade e com o provável propósito de embriaguez. Essas informações nos levam a refletir sobre o mito que atrela marinheiros ao alcoolismo. A associação dilui-se quando a confrontamos com a cultura material antártica. Segundo percebemos, apenas 1 garrafa das encontradas nos sítios arqueológicos polares caracteriza-se como um spirit. Dessa forma, embora possamos atestar seu consumo, os vestígios não apontam para graus de embriaguez desmedida. Lawrence (2006: 114) constrói a mesma crítica, afirmando que:

As análises de microvestígios faunísticos estão sendo realizadas a partir de uma parceria entre o LEACH-UFMG e o Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos (LEEH) do Instituto de Biociências (IB) da Universidade de São Paulo (USP), coordenador pelo prof. Dr. Walter Neves. A pesquisa está sendo realizado por Gilberto G. Gardiman, com participação de Leandro M. Cascon, ambos integrantes do LEEH-IB/USP. 53 Desse conjunto de 12 garrafas que podem ser de vinho ou cerveja, temos a certeza que 2 são de vinho, as outras 10 não podemos fazer essa afirmação visto que não apresentam um grau de integridade que permita essa análise, porém, seu formato cilíndrico e características de manufatura, nos leva a afirmar que são ou de vinho ou de cerveja. 52

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O consumo excessivo de álcool faz parte da mitologia popular atrelada aos caçadores de baleia, mas as evidências arqueológicas e documentais relacionadas ao ato são menos abundantes. Alguma bebida alcoólica chegou aos sítios em garrafas. Entretanto apenas 23 garrafas foram encontradas no lixo das estações baleeiras em Adventure Bay e somente 38 em Lagoon Bay. Em uma estação com capacidade para 3 barcos, com tripulação de aproximadamente 20 homens, ocupada por pelo menos quatro temporadas de inverno, como era Lagoon Bay, poderia facilmente ser esperado contabilizar muito mais álcool do que isso. Adventury Bay, ocupada por mais de uma década com mais de 30 homens por vez, parece similarmente abstêmia quando as garrafas são contabilizadas. (LAWRENCE, 2006: 114) Sobre a questão, é relevante ainda mencionar a American Seaman’s Friend Society, fundada em 1828 como parte de um esforço nacional estadunidense em reformar os marinheiros (HOHMAN, 1928). Com relação às embarcações baleeiras, a Sociedade publicou, em 1845, que estavam entre as mais adeptas à temperança entre as embarcações marítimas (CREIGHTON, 1995). A constatação possivelmente traz exageros, mas torna notável a ascensão de políticas eficazes contrárias ao uso de álcool em mar aberto, com ênfase em nossos sujeitos de estudo. Nesse aporte, vale apontar que, dos 21 sítios arqueológicos que sofreram intervenções sistemáticas pelo projeto Paisagens em Branco, apenas 12 deles apresentaram vestígios vítreos.54 Essas ausências - ou mesmo a pequena quantidade encontrada nos outros sítios - podem estar associadas a inúmeros fatores, entre eles, o fato de que a escavação apresenta uma amostragem do conjunto de garrafas que os caçadores possuíam e não a sua totalidade. Sendo assim, é possível que mais garrafas tenham sido utilizadas e levadas de volta aos navios, existindo o descarte apenas para aquelas que se quebraram na estadia em acampamento. Outra possibilidade é de que as ausências estejam associadas aos reflexos das campanhas de reforma moral, em vigor nos séculos XVIII e XIX. Se o encontro com a Antártica deu-se em função de uma larga exploração dos recursos faunísticos e se boa parte dessas embarcações levantaram bandeiras da abstemia alcoólica, é possível que a Antártica, no contexto de sua exploração, tenha se deparado com uma disposição pouco afeita à embriaguez. O registro material, ainda que não seja definitivo em estabelecer um ambiente totalmente abstêmio, apresenta um panorama distinto ao tradicionalmente associado às profissões do mar: beberrões inveterados. Dispersão espacial. De modo geral, os fragmentos de garrafas encontram-se dispersos por diferentes refúgios antárticos e em diferentes partes dentro dos refúgios. Conforme informado anteriormente, a análise da dispersão espacial dos fragmentos vítreos foi realizada a partir do systat. Esta indicou os lugares em que as garrafas de bebidas foram descartadas, os quais, de acordo com os gráficos produzidos, ocorreram em diversas áreas. Conseguintemente, presumimos não haver um espaço circunscrito específico para o Os sítios pesquisados pelo projeto Paisagens em Bancos e que contém com artefatos vítreos são: Sealer 4, Pencas 3, Punta Varedero, Px2, Punta Elefante 2, X1, Cutler 1, Punta Ocoa, Rocas Largas, Playa Lair, Punta Lair 2 e Punta del Diablo. Os sítios Cutler 1, Punta Ocoa, Playa Lair e Punta Lair 2 não foram analisados nesse capítulo, porque a coleção arqueológica deles encontra-se no CONICET-Argentina. 54

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consumo de bebidas alcoólicas. É possível que essa prática fosse realizada tanto nos abrigos onde se realiza as atividades cotidianas (comer, dormir, vestir) quanto nos refúgios onde se processava a caça e, quiçá, fora deles (figura 5). Ainda que não sejamos capazes de estimar, com precisão, a quantidade de álcool ingerida pelos caçadores na Antártica, podemos levantar algumas informações sobre como a bebida era consumida. Nesse sentido, pensando no local onde a bebida era compartilhada, concluímos que a prática dava-se com bastante informalidade e liberdade. De fato, não existia o lugar certo para consumir álcool, ele era ingerido onde fosse possível, associado ou não a outras atividades. Bebia-se enquanto se comia, antes ou depois de dormir, enquanto se jogava, quando a caça era processada, enfim, em qualquer lugar. Figura 5: Acampamento foqueiro na Península Byers, ilhas Falkland, litogravura de 1833. FONTE: FANNING (1924 [1792 - 1832]:297).

É interessante notar que essa informalidade não era comum a todos os grupos sociais no interior do navio. A divisão hierárquica presente nas embarcações refletia-se nas regras de comensalidade. Hohman (1928) relata existirem três secções formalizadas em navios baleeiros: a dos oficiais, a dos arpoadores e a da tripulação comum. Havia significativa distinção não apenas entre os alimentos para cada um desses grupos, mas também na etiqueta durante as refeições. O Capitão e os Imediatos eram servidos na cabine por um camareiro e cercados por fina louçaria. Em seguida, era a vez dos arpoadores, que também faziam as refeições na cabine, mas não antes que alguns artigos de comida (como açúcar e manteiga) fossem retirados da mesa. A tripulação comum, por sua vez, servia-se no convés ou no próprio castelo de proa (onde dormiam). A comida era disposta em baldes de madeira, logo as formalidades perdiam seu espaço. Entre cotoveladas e empurrões, a lógica das refeições era: “First come, first served” (Quem chegar primeiro serve-se primeiro) (HOHMAN, 1928:135) (figura 6).

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Figura 6: Refeição no navio baleeiro. FONTE: BROWNE, 1846:143. A disposição do material vítreo antártico nos sugere uma ausência de hierarquia no trato com a bebida. Em todas as áreas dos refúgios, como colocado, o ato de beber fazia-se presente. A rígida estruturação social do navio, dessa forma, era posta de lado, e o que vemos surgir são regras de comensalidade mais ligadas à informalidade e ao consumo coletivo, próximas aos hábitos da tripulação comum. Ausências. Como um reforço a esse argumento, constata-se a ausência de copos ou outros tipos de recipientes para o consumo individualizado das bebidas. Supomos que a falta indica uma partilha das garrafas e seus conteúdos entre todos, estabelecendo hábitos comunais entre os desembarcados. Essa conformação nos propicia as seguintes correlações: se a etiqueta vitoriana vigente estabelecia protocolos para o consumo apropriado das bebidas, com recipientes e momentos específicos para cada tipo de preparado alcoólico, sua negação pode ser interpretada como mais que uma simples carência dos utensílios adequados, e sim como uma forma própria (particular) de ingerir bebidas, não afeita à formalidades vigentes. Acerca das regras de comensalidade, cabem alguns paralelos sobre o consumo de bebidas em tabernas e estações de caça às baleias, mencionados anteriormente, tendo em vista semelhança nas práticas de beber que sugerem uma possível identidade entre caçadores marinhos e grupos populares. Analisando as estações baleeiras da Tasmânia, Lawrence (2006) atesta que foi identificado um total de 7 copos nos dois sítios estudados, em sua maioria recuperados em Adventure Bay, somando 4 copos e 2 taças; em Lagoon Bay, foi identificado 1 único copo. A autora interpreta essa escassez como a sobrevivência de um costume tradicional do consumo de bebida. Segundo ela, tradicionalmente, o hábito de beber era realizado de forma grupal. Nele, o convívio ou os aspectos sociais da atividade eram tão (ou mais) importantes que a própria ingestão da bebida. A ênfase no compartilhamento, aspecto comunal da aglomeração, materializava-se na circulação dos copos entre os participantes. As duas taças recuperadas em Adveture Bay, por outro lado, chamaram a atenção da pesquisadora, que as interpretou como uma ritualização da prática, restrita a um grupo específico da estação. Segundo a arqueóloga, essas taças, provavelmente, foram usadas para 163

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ingerir vinhos do Porto ou outras bebidas fortificadas e pertenceram ao headsman da estação e seus convidados. Tal fato nos leva a considerar a existência de uma hierarquia no contexto da estação, que não vigorava, porém, entre os trabalhadores do mar, os quais incorporavam uma etiqueta tradicional popular. Graça (2005), complementando, ao analisar o hábito de beber nas tabernas, afirma que um mesmo copo poderia dar voltas e voltas nesse estabelecimento, trazendo à tona, da mesma forma, esse hábito comunal e grupal. Segundo o autor, os artefatos vinculados às bebidas alcóolicas podem ser compreendidos como bens que expressam as concepções do grupo social ao qual pertencem, atuando como um fator de unidade e integração ou de afastamento e exclusão. Especificamente com relação às tabernas, o autor entende que se estimulava ali “o convívio de pessoas de diferentes grupos e a difusão de companheirismo, o que era quase inviável em outros espaços de convivência diária e, que até certo ponto, contrariava os grupos ligados à administração e ao poder econômico” (SCARANO, 2001 apud GRAÇA, 2005: 166). As tabernas, portanto, criavam condições para uma “possível estruturação de laços de solidariedade entre os menos favorecidos” (GRAÇA, 2005: 166). Na tecedura desenvolvida pelos dados coletados e as analogias expostas, acreditamos que o resultado é um entendimento de que o ato de beber era um elemento corporificante das identidades amalgamadas nos primeiros momentos da ocupação humana no continente Antártico. Em uma formação dinâmica, o consumo dos preparados alcoólicos entrelaçava sentimentos de informalidade e camaradagem, dando vez às partilhas comunais e às experiências horizontais. Enfrentando a inclemência do frio e o isolamento à beira de tímidos fogos, nossos caçadores atenuavam as agruras da lida antártica com um calor que não desprendia apenas dos carvões e lenha, mas através das relações com e entre pessoas e coisas. Dividindo vasilhames de vinho e cerveja, acreditamos que esses indivíduos materializavam as relações necessárias para sua resistência a dois extremos que os cortavam: o ambiente agreste do mundo após o paralelo 60° e a crescente individualidade e controle dos contextos capitalista-industriais dos quais eram oriundos. A partir da materialidade recuperada nos sítios arqueológicos, cremos ser possível levantar conjecturas acerca do modo de vida desses trabalhadores, os quais certamente estavam em diálogo com o mundo moderno que se internacionalizava, mas que também apresentavam particularidades e adaptações. Nessa linha, Ginzburb (2006: 10) nos coloca que a cultura popular deve ser entendida a partir de um “relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo”. O modo de vida popular, destarte, não pode ser entendido como subordinado à cultura dominante ou totalmente alternativo a esta, mas como o resultado de influxos recíprocos entre o subalterno e o hegemônico, o popular e o dominante, o pré-industrial e o moderno. No contexto antártico, a análise das garrafas de bebidas recuperadas nos conduzem a pensar nossos sujeitos de estudo como personagens que construíram sua etiqueta própria, com influências diversas, pontuando elementos informais e comunais em suas escolhas. Apesar de estarem inseridos em um mundo cada vez mais global e serem agentes desse processo de mundialização do capital - o qual motivou a ida para Livingston - estes caçadores não renunciaram à sua forma de beber tradicional. As garrafas eram inglesas, as bebidas do país de origem ou de qualquer porto pelo qual passassem, porém o hábito de beber mantinha-se o mesmo; beber em qualquer lugar e compartilhar as mesmas garrafas (negando regras de comensalidade estruturadas ou ideais higienistas) são características que marcam o relacionamento de foqueiros, lobeiros e baleeiros com a bebida, entre si e com o território antártico. 164

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Como em um olhar ao horizonte que divisa os primeiros contornos de um destino distante, nossa aproximação permitiu o desvelamento do objetivo, mas ainda se encontra limitada a uma figura longínqua de contornos tênues. Diversos apontamentos importantes para a interpretação das primeiras ocupações humanas na região antártica foram constituídos ao longo do texto: a desmitificação do ébrio permanente nas profissões do mar, a construção social do consumo do álcool e suas implicações identitárias, as possíveis práticas de partilha e fraternidade entre as agruras do gelo no cenário oitocentista e, principalmente, as histórias alternativas possíveis ao registro oficial. A resultante nos surgiu como uma amalgama contraditória, na qual a recente lógica imperante e expansiva do sistema capitalista conviveu com uma construção alternativa de comportamentos mesclando o popular e o dominante, o industrial e o pré-industrial, o hegemônico e o conta-hegemônico - por parte dos caçadores de mamíferos marinhos nas ilhas Shetland do Sul. No entanto, não consideramos que, ao fecharmos nosso texto, estejamos de qualquer forma próximos de cristalizar essas questões e dá-las como satisfatoriamente respondidas. Esse desencontro, surgido pelas próprias limitações do reduzido universo amostral empregado e o estágio inicial da análise, acreditamos, não se estabelece como um problema, e sim como uma nova vereda em uma senda antiga. Essa caminhada compartilhada é um dos focos centrais de nosso projeto-marco, o Paisagens em Branco, que por seu escopo múltiplo ainda apresenta uma grande gama de temas a serem aprofundados. Ao levantarmos questões através da própria materialidade dos vestígios encontrados, consideramos que nossa empreitada, ainda que limitada, teve sucesso. Prolongamentos futuros necessariamente se inclinam à análise de outras categorias materiais, visando estabelecer um quadro mais amplo das vidas desenroladas abaixo do paralelo sessenta sul. AGRADECIMENTOS Gostaríamos de agradecer as contribuições que recebemos para a realização dessa análise e do capítulo. Especialmente do Prof. Dr. Andrés Zarankin, que forneceu condições essenciais à realização desse estudo, bem como apontou revisões necessárias, e do Marcelo Rocha Brugger, responsável pela correção gramatical do texto. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRUNEAUS, P. e BALUT, P. Artistique et Archéologie. Paris: Presses de l'Université de paris-Sorbonne, 1997. BROWN, J. Whalemen, Vessels, Apparatus, and Methods of the Fishery. In: GOODE, G. B. (org.). The Fisheries and Fishery Industries of the United States (Volume II). Washington: Government Printing Office, 1887: 218-293. BROWNE, J. Etchings of a whaling cruise. New york: Harper & Brothers, 1846. BUSCH, B. The War Against the Seals: A History of the North American Seal Fishery. Kingston e Montreal: McGill-University Press, 1985. CARNEIRO, H. Bebida, Abstinência e Temperança: na História Antiga e Moderna. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010. CASTELLUCCI JUNIOR, W. Histórias conectadas por mares revoltos: uma história de caça de baleias nos Estados Unidos e no Brasil. Revista de História Comparada, Rio de Janeiro, v.9, n.1, 88-118, 2015. 165

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