PENALIDADES RELATIVAS A OBRIGAÇÕES ACESSÓRIAS DIGITAIS: ALGUNS APONTAMENTOS

May 29, 2017 | Autor: Luciana Aguiar | Categoria: Direito Tributário (Tax Law)
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Artigos São Paulo MAIO 2016

Artigo publicado na Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT - Belo Horizonte, ano 14, n. 80, mar./abr. 2016.

DATA: 04.05.2016 NOME: Luciana Ibiapina Lira Aguiar

PENALIDADES RELATIVAS APONTAMENTOS

A OBRIGAÇÕES

ACESSÓRIAS

DIGITAIS:

ALGUNS

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar algumas questões acerca de multas lavradas pelas autoridades fiscais, com referência em parâmetros como percentual do faturamento ou de transações financeiras ou comerciais, sob a alegação de cumprimento inadequado das obrigações acessórias digitais. Trata-se de uma análise relevante e atual em vista das notícias sobre significativas multas pecuniárias lavradas contra os contribuintes em 2015. Palavras-chave: Obrigação acessória digital. SPED. Multas proporcionais. Art. 57 da Medida Provisória nº 2.158-35. Governança corporativa tributária. Sumário: Introdução – 1 Das obrigações acessórias digitais: características essenciais – 2 Algumas questões relativas à aplicação do art. 57, da MP nº 2.158 – 3 Diferenças entre as hipóteses previstas no inc. III, do art. 57, da MP nº 2.158 e no inc. I, do art. 12, da Lei nº 8.218 – 4 Governança corporativa tributária – Considerações finais – Referências. Abstract: This paper aims to examine some issues regarding penalties assessed by Tax Authorities, based on parameters such as percentage of revenues or financial or comercial transactions, alleging inappropriate compliance of digital ancillary obligations. This is a relevant and current theme in light of news about significant penalties issued against taxpayers in 2015. Keywords: Digital ancillary obligation. SPED. Proportional penalties. Article 57 of Provisory Measure nº 2.158-35.

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Introdução No final de 2015, profissionais dedicados aos temas tributários constataram algo que já se configurava como uma possibilidade desde o início do Sistema de Escrituração Pública Digital – o SPED 1 a intensificação 2 de cobrança de multa por supostas irregularidades verificadas nos arquivos digitais referentes aos anos de 2010 em diante, o que se fez por meio de lavratura de autos de infração. As alegações referiram-se tanto ao atraso da entrega, quanto ao conteúdo dos arquivos. No que se refere ao atraso na entrega, as autuações tiveram por fundamento o inc. I, do art. 57, da Medida Provisória nº 2.158-35, de 24.8.2001 (MP nº 2.158). Já em relação ao cumprimento de obrigação acessória com informações inexatas, incompletas ou omitidas, em geral, o fundamento para os lançamentos foi o inc. III, do mesmo art. 57 da MP nº 2.158, mas também se tem notícia de autuações com base no inc. I, do 12 da Lei nº 8.218, de 29.08.11 (Lei nº 8.218). Várias são as questões jurídicas que devem ser cautelosamente analisadas em relação a este tema, que ganha especial relevância em função dos valores significativos que essas multas podem alcançar. Essas questões, obviamente, variam a depender dos casos concretos que se apresentam. Este artigo, sem a pretensão de esgotar o tema, tem por objetivo analisar algumas dessas situações, relacionadas às obrigações acessórias estabelecidas no âmbito do SPED, as quais vão abaixo relacionadas: (i).

Lançamento de multas com fulcro no art. 57, da MP nº 2.158, em relação a fatos ocorridos no período a partir de 2010, especialmente no que tange a alegadas inexatidões e incorreções nas informações prestadas.

(ii).

Diferenças entre as hipóteses previstas no inc. III, do art. 57, da MP nº 2.158 e no inc. I, do art. 12, da Lei nº 8.218.

Por fim, mas não menos importante, também é objetivo do presente estudo chamar a atenção para a necessidade da diligência no preenchimento das obrigações

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Instituído pelo Decreto nº 6.022, de 22.1.2007, com alterações pelo Decreto nº 7979, de 8.4.2013, SPED é “instrumento que unifica as atividades de recepção, validação, armazenamento e autenticação de livros e documentos que integram a escrituração contábil e fiscal dos empresários e das pessoas jurídicas, inclusive imunes ou isentas, mediante fluxo único, computadorizado, de informações”. 2 Apenas a título de exemplo, cita-se MARKUS, Leandro. Cruzamento dos SPEDS: Existe saída? Rede Jornal Contábil, 13 ago. 2015. Disponível em: . Acesso em: 18 fev. 2016. 2

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acessórias digitais, as quais trazem consigo uma grande complexidade e um enorme volume de dados e informações. 1.

Das obrigações acessórias digitais: características essenciais

As obrigações acessórias estão definidas no art. 113, §2º, do Código Tributário Nacional (CTN) e consistem em deveres instrumentais, sem cunho patrimonial. Esse tipo de obrigação tem por principal finalidade agilizar a fiscalização que a administração tributária tem por dever fazer, contribuindo para o cumprimento do princípio da eficiência, previsto no art. 37, da Constituição Federal (CF/88). As obrigações acessórias digitais foram introduzidas como forma de modernização da sistemática de cumprimento dos deveres instrumentais e formam um conjunto de informações que devem ser consignadas em arquivos disponibilizados pela Receita Federal do Brasil (RFB) para download e que, depois de devidamente preenchidas, devem ser transmitidas pelos contribuintes às administrações tributárias e aos órgãos fiscalizadores. O SPED teve início com três grandes projetos: a Escrituração Contábil Digital (ECD), a Escrituração Fiscal Digital (EFD) e a NF-e – Ambiente Nacional. Outras obrigações foram introduzidas desde 2008, incluindo o FCONT, 3 sendo a mais recente a Escrituração Contábil Fiscal (ECF). Os objetivos declarados 4 das obrigações no âmbito do SPED são: (i) promover a integração dos fiscos, mediante a padronização e compartilhamento 5 das informações contábeis e fiscais, (ii) racionalizar e uniformizar as obrigações acessórias, com o estabelecimento de transmissão única de distintas obrigações, (iii) tornar mais célere a identificação de ilícitos tributários, com a melhoria do controle dos processos, a rapidez no acesso às informações e a fiscalização mais efetiva das operações com o cruzamento de dados e auditoria eletrônica. Assim sendo, diferentemente de outras antigas obrigações acessórias, as declarações digitais são preenchidas em formato especificado, em arquivos elaborados a partir dos programas disponibilizados pela RFB e são transmitidas via rede mundial (internet), permitindo a formação de banco de dados, por parte das autoridades fiscais, os quais podem ser comparados e cruzados de forma automática pelos sistemas dos agentes fazendários.

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FCONT – obrigação descontinuada consistente na escrituração, das contas patrimoniais e de resultado, em partidas dobradas, que considera os métodos e critérios contábeis vigentes em 31.12.2007. 4 OBJETIVOS. SPED. Disponível em: . Acesso em: 18 fev. 2016. 5 Não é objeto deste estudo, mas não se pode deixar de observar que muitas das obrigações digitais são disponibilizadas a outras autoridades fiscais (estaduais e municipais), em função dos convênios estabelecidos, em cumprimento ao que determina a Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003, que alterou o art. 37, inc. XXII, da CF/88. 3

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Nesse sentido cabe ressaltar a importante iniciativa por parte da RFB de investir para agregar técnicas de inteligência artificial (combinação e análise de informações de contribuintes, a partir da utilização de ferramentas tecnológicas), as quais foram viabilizadas com a implementação do SPED, como meio para a coleta dos dados em formato padrão, prontos para os cruzamentos e análises qualitativas e quantitativas. Devese pontuar que a RFB sempre fez cruzamento de dados, a novidade relevante decorrente do SPED é a construção de um ambiente que permita a adoção de técnicas de analytics (área multidisciplinar que aplica estatística, matemática, computação e pesquisa para descobrir e relacionar padrão de dados (VIOL, 2014)) e a capacidade para que esses cruzamentos sejam feitos de forma automática, 6 abrangendo um volume extraordinário de informações. Feitos tantos investimentos na informatização das obrigações acessórias, visando à melhoria do nível informacional e base de dados à disposição da autoridade para fins de um controle mais eficiente e redução das “brechas de cumprimento” (VIOL, 2015, p. 52), é de se esperar que sejam adotadas medidas que incentivem o contribuinte a cumprir de forma diligente o seu dever de informar. Essa atuação pode-se dar de forma de voluntária, proativa e pedagógica, como campanhas de educação fiscal, interações colaborativas (processos de consultas, divulgação de perguntas e respostas), mas também pode decorrer de ações coercitivas, como a aplicação de sanções em virtude do descumprimento das obrigações ou do cumprimento de maneira inadequada. A sanção pela não observância dos deveres acessórios se dá por meio de aplicação de multas pecuniárias, o que, nas palavras de Geraldo Ataliba, é feito porque o legislador recorre à “técnica milenar de compelir à obediência, mediante cominação de medida que sacrifica bens mais caros aos destinatários das normas jurídicas. Nada mais” (ATALIBA, 1975, p. 142). Sobre a função das sanções em geral, Hugo de Brito Machado (2002), no mesmo sentido que Ataliba, afirma que: “A sanção é o meio de que se vale o Direito para desestimular a conduta, ou a omissão, consistente na não prestação. Em outras palavras, a finalidade da sanção é dar maior eficácia à norma que institui o dever jurídico”. As sanções, no campo tributário, sejam elas pecuniárias ou de outra natureza, têm por finalidade última preservar a arrecadação tributária, ou forçar o pagamento do tributo no tempo e na forma legal (MARTINS, 1998). Mesmo as sanções que envolvem deveres instrumentais e não a obrigação principal têm esse objetivo, como será analisado adiante. Feito o contexto geral sobre as obrigações acessórias digitais, passa-se à análise das questões específicas relativas às multas por inobservância das regras para o cumprimento dessas obrigações. 6

Mais detalhes em SAMPAIO, Fernando Márcio Souza. Seminário Cruzamentos Fiscais das Obrigações Acessórias. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2016. 4

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2.

Algumas questões relativas à aplicação do art. 57, da MP nº 2.158

Para introduzir as questões relativas à aplicação do art. 57 da MP nº 2.158, deve-se mencionar o processo de alteração pelo qual passou o referido dispositivo, em 2012 e 2013. Buscando facilitar a visualização dessas mudanças ao longo do tempo, o quadro abaixo contempla o artigo, em suas diferentes versões e apenas nos aspectos que importam para as questões objeto de análise:

REDAÇÃO ORIGINAL “Art. 57. O descumprimento das obrigações acessórias exigidas nos termos do art. 16 da Lei nº 9.779, de 1999, acarretará a aplicação das seguintes penalidades: CAPUT

ENTREGA EXTEMPORÂNEA

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I - R$5.000,00 (cinco mil reais) por mêscalendário, relativamente às pessoas jurídicas que deixarem de fornecer, nos prazos estabelecidos, as informações ou esclarecimentos solicitados;

REDAÇÃO 2012 (LEI Nº 12.766)

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REDAÇÃO ATUAL, 8 DESDE 20138 (LEI Nº 12.873)

“Art. 57. O sujeito passivo7 que deixar de apresentar nos prazos fixados declaração, demonstrativo ou escrituração digital exigidos nos termos do art. 16 da Lei nº no 9.779, de 19 de janeiro de 1999, ou que os apresentar com incorreções ou omissões será intimado para apresentá-los ou para prestar esclarecimentos nos prazos estipulados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil e sujeitar-se-á às seguintes multas: I - por apresentação extemporânea:

“Art. 57. O sujeito passivo que deixar de cumprir as obrigações acessórias exigidas nos termos do art. 16 da Lei nº no 9.779, de 19 de janeiro de 1999, ou que as cumprir com incorreções ou omissões será intimado para cumpri-las ou para prestar esclarecimentos relativos a elas nos prazos estipulados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil e sujeitar-se-á às seguintes multas:

a) R$500,00 (quinhentos reais) por mês-calendário ou fração, relativamente às pessoas jurídicas que, na última declaração apresentada, tenham apurado lucro presumido;

a) R$500,00 (quinhentos reais) por mêscalendário ou fração, relativamente às pessoas jurídicas que estiverem em início de atividade ou que sejam

I - por apresentação extemporânea:

Lei n. 12766, de 27.12.2012. Lei n. 12973, de 24.10.2013. 5

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REDAÇÃO ORIGINAL

REDAÇÃO 2012 (LEI Nº 12.766)

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b) R$1.500,00 (mil e quinhentos reais) por mês-calendário ou fração, relativamente às pessoas jurídicas que, na última declaração apresentada, tenham apurado lucro real ou tenham optado pelo autoarbitramento; [...]

OMISSÃO, INEXATIDÃO OU INFORMAÇÕES INCOMPLETAS

II - cinco por cento, não inferior a R$100,00 (cem reais), do valor das transações comerciais ou das operações financeiras, próprias da pessoa jurídica ou de terceiros em relação aos quais seja responsável tributário, no caso de informação omitida, inexata ou incompleta”.

III - por apresentar declaração, demonstrativo ou escrituração digital com informações inexatas, incompletas ou omitidas: 0,2% (dois décimos por cento), não inferior a R$100,00 (cem reais), sobre o faturamento do mês anterior ao da entrega da declaração, demonstrativo ou escrituração equivocada, assim entendido como a receita decorrente das vendas de mercadorias e serviços; [...]”.

REDAÇÃO ATUAL, 8 DESDE 20138 (LEI Nº 12.873) imunes ou isentas ou que, na última declaração apresentada, tenham apurado lucro presumido ou pelo Simples Nacional; b) R$1.500,00 (mil e quinhentos reais) por mês-calendário ou fração, relativamente às demais pessoas jurídicas; [...] III - por cumprimento de obrigação acessória com informações inexatas, incompletas ou omitidas: a) 3% (três por cento), não inferior a R$100,00 (cem reais), do valor das transações comerciais ou das operações financeiras, próprias da pessoa jurídica ou de terceiros em relação aos quais seja responsável tributário, no caso de informação omitida, inexata ou incompleta; [...]”.

Como se vê, o dispositivo prevê penalidades distintas em virtude de duas condutas infracionais: (i) atraso no cumprimento da obrigação acessória e (ii) incorreções no cumprimento da obrigação quanto ao seu conteúdo. Enquanto a primeira conduta é punida com multa fixa em função do tempo de atraso, a segunda é estabelecida de forma proporcional, ou seja, mediante a aplicação de um percentual sobre determinado parâmetro/base.

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Esse dispositivo abrange, de forma geral, as obrigações acessórias no âmbito federal, por força da referência ao art. 16 9 da Lei nº 9.779, contudo, em relação à Escrituração Contábil Fiscal (ECF), entregue por pessoas jurídicas optantes ou obrigadas ao Lucro Real, 10 a penalidade está prevista no art. 8-A do Decreto-Lei nº 1.598, de 26.12.1977, com a redação dada pela Lei nº 12.973, de 13.5.2014, que determina a aplicação de percentual sobre o valor omitido, inexato ou incorreto, sem fazer referência a transações comerciais ou financeiras. Feito este pequeno introito, passa-se à análise das questões controvertidas vislumbradas, relativas à interpretação e aplicação do art. 57 da MP nº 2.158. 2.a.

Da retroatividade benigna

A primeira questão que se coloca em relação a este dispositivo legal é a necessidade de verificação do texto aplicável em relação a fatos ocorridos ou autuados no período compreendido entre 2010 e 2015, em conexão com o princípio da retroatividade benigna. A irretroatividade das leis é, antes de tudo, de um princípio previsto na CF/88, em seu título de Direitos e Garantias Fundamentais (art. 5º, XXXVI), 11 em um sentido geral, e que também está contemplada na seção das limitações do poder de tributar (art. 150, III, a), 12 de forma direcionada às questões de natureza tributária. O princípio da irretroatividade das leis visa conferir segurança jurídica ao indivíduo e à sociedade (na regra geral), bem como limitar o poder tributante (na previsão específica), sendo esta a interpretação já manifestada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). 13 É um princípio vinculado aos conceitos de previsibilidade e estabilidade, condições essenciais ao Estado Democrático de Direito. Logo, as hipóteses de aplicação retroativa de uma lei devem estar devida e expressamente excetuadas no ordenamento jurídico, e de forma harmoniosa com princípio constitucional, ou seja, sempre no sentido de assegurar a segurança jurídica. A retroatividade benigna é uma das exceções ao princípio da irretroatividade das leis e está prevista no Código Tributário Nacional (CTN) que, em seu art. 106, inc. II, 9

Esclareça-se que o art. 16, citado no caput do art. 57, trata da competência atribuída à Secretaria da Receita Federal para dispor sobre as obrigações acessórias relativas aos impostos e contribuições por ela administrados, estabelecendo, inclusive, forma, prazo e condições para o seu cumprimento e o respectivo responsável. É, portanto, apenas uma norma de caráter geral. 10 O art. 57 permanece válido para os demais casos em relação à ECF. 11 “XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. 12 “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] III - cobrar tributos: a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado”. 13 Por exemplo, Supremo Tribunal Federal, Plenário, Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 712-2-DF (ML), em 9.7.1992; 2ª Turma, Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 603323-SC, em 13.3.2012. Veja-se, também: 1º Conselho de Contribuintes, 6ª Câmara, Acórdão nº 106-17029, em 7.8.2008. 7

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estipula três hipóteses em que a lei poderá alcançar fatos pretéritos não definitivamente julgados, entre eles a cominação de “penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo de sua prática”. Segundo Schoueri (2013, p. 760) trata-se da extensão do princípio da Lex Mitior, 14 inspirado no direito penal e transportado para o direito tributário penal. O disposto no comando do inc. II, do art. 106 do CTN, acima citado, tem por finalidade atribuir ou garantir um direito individual do contribuinte, consistente em receber a menor penalidade dentre as hipóteses possíveis (vigente à época dos fatos ou à época do julgamento em definitivo). Sendo uma garantia do contribuinte, a retroatividade benigna se reveste da condição de obrigação por parte do agente público, que não pode ignorá-la quando da constituição de eventual crédito tributário. De acordo com a jurisprudência que se formou no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), 15 a aplicação da retroatividade benigna é pacífica e deve ser avaliada à luz dos parâmetros de mensuração da penalidade a ser aplicada (percentuais, limites e bases para cálculo), bem como da coincidência da conduta infracional a que se referem as penalidades, nas versões de legislação analisadas. Pois bem. Em relação às multas por atraso, a observância do princípio é simples. Como a penalidade prevista nas três versões do art. 57 é fixa (valores fixos por mês ou fração de atraso) e a conduta punida é coincidente (“apresentação extemporânea”), rapidamente constata-se que a redação atual é mais benéfica ao contribuinte em relação à redação original, razão pela qual a retroatividade benigna deve ser aplicável em relação a fatos autuados a partir de 2013, referentes a períodos anteriores. Já nos casos de informações inexatas, omitidas ou incompletas a situação é um tanto mais complexa. A redação que vigorou até 2012 previa a quantificação da multa proporcional com base no valor das transações comerciais ou das operações financeiras. Já a redação dada pela alteração promovida em 2012 fixou o faturamento como parâmetro para a mensuração da penalidade. Por fim, a nova alteração introduzida em 2013 retornou ao parâmetro original, mas reduziu o percentual aplicável. Comparando-se a penalidade da redação original com a da terceira versão, esta última é claramente mais benéfica ao contribuinte, pois prevê percentual menor, mantendo o mesmo parâmetro. Mas a mesma verificação não é imediata quando da comparação destas com a penalidade descrita na segunda redação (Lei nº 12.766), que contempla parâmetro de cálculo diverso. Diante desse cenário, a aplicação da retroatividade benigna, em se tratando da multa proporcional prevista no art. 57 da MP nº 2.158, requer que o lançamento tributário, ato

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Expressão latina que significa “lei mais benéfica”. Nesse sentido são os acórdãos nºs 9202003.708 e 9202003.709, todos da 2ª Turma, de 28.1.2016. 8

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administrativo vinculado, 16 quando se referir ao período abrangido pela vigência de sua segunda versão (Lei nº 12.766), seja precedido da análise da hipótese legal mais benéfica ao contribuinte: se a vigente à época dos fatos ou do lançamento. Caso o lançamento seja efetuado sem a demonstração inequívoca da observância do princípio da retroatividade benigna, a autoridade fiscal terá laborado em erro. 2.b.

Dos parâmetros para a quantificação da penalidade por apresentação de declaração, demonstrativo ou escrituração digital com informações inexatas, incompletas ou omitidas.

É no mínimo curioso constatar que a redação original do art. 57, no que toca a infrações por apresentação de declaração, demonstrativo ou escrituração digital com informações inexatas, incompletas ou omitidas, tenha sido modificada duas vezes no espaço de menos de um ano, para alterar o parâmetro de cálculo da penalidade, retornando-o, em seguida, ao original. O comando contido na versão original menciona como base o valor das “transações comerciais ou das operações financeiras, próprias da pessoa jurídica no caso de informação omitida, inexata ou incompleta”. A primeira alteração no art. 57 veio pela Emenda Aditiva nº 65, proposta durante a tramitação da Medida Provisória nº 575, de 7.8.2012, convertida na Lei nº 12.766. A justificativa apresentada para a propositura da referida emenda foi a necessidade de aperfeiçoamento das penalidades “tornando-as mais razoáveis e suprimindo lacunas existentes”. Nessa oportunidade, o parâmetro previsto na redação original foi alterado para o faturamento, portanto, a multa passou a ser calculada com base em um percentual do faturamento (inc. III, art. 57). Durante a tramitação da Medida Provisória nº 582, de 20.9.2012, o Senador Francisco Dornelles apresentou a Emenda Aditiva nº 4, também com o fito de alterar a redação do art. 57, buscando adequar o dispositivo a “um tratamento mais justo e proporcional quanto à aplicação de penalidades por descumprimento de obrigações tributárias acessórias, com a redução e escalonamento das multas por regime de tributação”. A emenda, no entanto, foi rejeita, possivelmente pelo fato de o assunto estar encaminhado na MP nº 575. Em 2013, a matéria retornou, na tramitação da Medida Provisória nº 619, de 6.6.2013, por meio de alteração no Projeto de Lei de Conversão nº 25, sem registros oficiais quanto a justificativas, quer seja na Mensagem nº 236 ou no Parecer nº 57/2013. 17 As 16

James Marins resume que, de acordo com o CTN, o lançamento é o principal ato administrativo tributário, “competindo à autoridade administrativa verificar a ocorrência do evento imponível, procedendo à descrição do conceito do fato e enquadrando-o no conceito de norma jurídica tributária de modo a extrair suas consequências jurídicas que conduzam à determinação do montante da obrigação tributária [...]” (MARINS, 2012, p. 179). 17 Disponíveis para consulta no website da Câmara (). 9

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notícias 18 da época, no entanto, dão conta de que a nova mudança teve por motivação a discussão da aplicação desta penalidade para fins do Siscoserv, 19 sistema instituído em 2012 com objetivo de registrar informação sobre transações entre residentes ou domiciliados no Brasil e residentes ou domiciliados no exterior que compreendam serviços, intangíveis e outras operações que produzam variações no patrimônio. Ocorre, porém que o art. 57 é aplicável a um grande número de obrigações acessórias digitais, as quais têm escopo absolutamente diverso do Siscoserv. Analisando as informações requeridas nestas outras obrigações, é possível vislumbrar dificuldades relevantes para fins de estabelecimento do aspecto quantitativo da multa prevista no inc. III do art. 57. Em outras palavras, os parâmetros previstos na legislação podem ser de difícil, para não dizer impossível, aplicação em determinadas situações. Por exemplo, como deve ser calculada a multa caso a informação inexata seja a referente a um lançamento de “zeramento de balanço” na ECD? Certamente este lançamento contábil não expressa hipótese de transação comercial 20 ou operação financeira. E, em caso de informações cadastrais sobre clientes e fornecedores ou mesmo sobre o próprio contribuinte, estas são exigidas em detalhe nessas obrigações digitais? Nesta hipótese, a conclusão só pode ser pela inaplicabilidade de qualquer penalidade em função de incorreções ou omissões. Essa conclusão encontra respaldo no art. 112 do CTN, in verbis: “Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto: I - à capitulação legal do fato; II - à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos; III - à autoria, imputabilidade, ou punibilidade; IV - à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação”. (Grifos nossos)

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Nesse sentido, vide SINDICOMIS/ACTC conseguem importante vitória na Câmara sobre o Siscoserv com o Apoio do Deputado Guilherme Campos. Sindicomis. Disponível em: e MP 619 foi aprovada e aguarda sanção presidencial. CNF, 7 out. 2013. Disponível em: . 19 Sistema Integrado de Comércio Exterior de Serviços, Intangíveis e Outras Operações que Produzam Variações no Patrimônio, introduzido pela Lei nº 12.546, de 14.12.2011. 20 De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, transação significa “operação ou ato comercial; ato por meio do qual se trocam ou transferem valores” (HOUAISS, 2004, p. 2749). 10

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Assim, conclui-se que revelar de forma acurada o aspecto quantitativo previsto no art. 57, inc. III, em casos de constatação de irregularidades no preenchimento das obrigações acessórias digitais, pode ser um desafio que acabe por frustrar a pretensão punitiva por parte do Fisco, notadamente em função de os parâmetros legais previstos não serem aplicáveis a todas as categorias de informações requeridas nas referidas obrigações. Por fim, cabe mencionar que, apesar de o art. 57, inc. III, ter como parâmetro para fins de proporcionalização da multa o valor de transações comerciais e operações financeiras, já em sua redação original, não há jurisprudência formada acerca da aplicação das multas por informações omitidas ou inexatas com base nesse dispositivo, até porque pouco se via, na prática, a imposição dessa penalidade. Assim, este é um tema que ainda merecerá a apreciação pelos tribunais (administrativos e judiciais) brasileiros. 2.c.

Retificações de obrigações acessórias digitais

Como já mencionado no início deste estudo, não se nega a legitimidade da imposição de deveres instrumentais aos contribuintes e a previsão de penalidades para fins de desestimular que essas obrigações sejam negligenciadas. Mas, sendo a multa pecuniária relativa ao cumprimento de obrigação, um instrumento de coerção, deve-se avaliar a sua relação com a conduta objeto de punição e mais propriamente com o dano que se pretende mitigar a partir da previsão legal da penalidade. Nesse sentido, alegações de informações inexatas que tenham por fundamento versões originais de obrigações retificadas de forma regular não podem prevalecer por carecerem de respaldo jurídico. Muitos contribuintes, primando pela conformidade tributária, envidaram esforços no sentido de cumprir tempestivamente e de forma correta as novas obrigações acessórias digitais, porém, diversos fatores ocasionaram dificuldades práticas, incessantemente enfrentadas nesses primeiros anos do SPED. Em função da complexidade das novas obrigações, da novidade de leiaute e até de requisitos relacionados à tecnologia, retificações dessas obrigações foram frequentemente observadas nesse período. O FCONT, por exemplo, foi disciplinado pela Instrução Normativa RFB nº 949, de 16.6.2009, e era obrigação acessória que visava informar lançamentos enquadrados no conceito de “ajustes de RTT”. 21 A elaboração do programa do FCONT 2010 representou um 21

Em linhas gerais, o FCONT objetivava informar os lançamentos: (i) que, efetuados na escrituração comercial, não deveriam ser considerados para fins de apuração do resultado com base na legislação vigente em 31.12.2007. Ou seja, os lançamentos existentes na escrituração comercial, mas que deveriam ser expurgados para remover os reflexos das alterações introduzidas pela Lei nº 11638, de 28.12.2007 e Lei nº 11.941, 27.5.2009, que modificassem o critério de reconhecimento de receitas, custos e despesas computados na escrituração contábil, para apuração do lucro líquido do exercício; (ii) não efetuados na escrituração comercial, mas que deveriam ser incluídos para fins de apuração do resultado com base na legislação vigente em 31.12.2007. 11

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desafio enorme para a própria RFB, que, excepcionalmente, estendeu o seu prazo de entrega em função das dificuldades de disponibilização do programa para o ano-calendário 2010, como se lê na notícia veiculada em seu website: “Publicada a Instrução Normativa nº 1.164/2011, que prorroga o prazo de entrega do Fcont para novembro de 2011, tendo em vista que o programa do Fcont para o ano-calendário 2010 somente estará disponível para download no final de agosto” (grifos nossos). 22 A obrigação foi originalmente instituída em 2009. O ano-calendário de 2010 foi o segundo do FCONT e o primeiro em que o Plano de Contas Referencial foi adotado, o que gerou a necessidade de diversas adaptações (o preenchimento do Plano de Contas Referencial nem mesmo era obrigatório). Só em novembro de 2011, mês de entrega do FCONT 2010, foram disponibilizadas três diferentes versões do programa, sendo a última em 30.11.2011 (versão 4.6), 23 prazo fatal para a transmissão do arquivo do FCONT 2010, conforme a notícia veiculada no website da RFB. Diante desse cenário, muitos contribuintes optaram por fazer a entrega tempestiva da obrigação, ainda que sabedores das necessidades de retificação do arquivo anteriormente transmitido. Desafios similares foram observados em outras obrigações como a EFD-Contribuições e, mais recentemente, a ECF. As obrigações acessórias, como já dito, são instrumentos de que se vale o Fisco para desempenhar sua função administrativa no que tange à preservação da arrecadação. Cuida-se de questão relacionada ao exercício do direito (dever-poder) de que goza a administração tributária em sua atividade de exigir do contribuinte o devido recolhimento dos tributos. O cumprimento tempestivo e adequado (ou seja, nos termos e formato requerido) é o que se espera para que a fiscalização possa utilizar as informações prestadas em sua atividade fiscalizatória. A correção espontânea de erros contribui para que os objetivos da administração tributária sejam atendidos, logo, a retificação a posteriori dessas obrigações nas formas ou hipóteses previstas na lei não pode ser considerada evidência de declaração de informações inexatas a partir da comparação das versões original e retificadora, para fins de cominação de sanções. A inexatidão passível de penalidade é aquela identificada na comparação das informações prestadas em relação aos fatos efetivamente ocorridos e deve ser comprovada 22

PUBLICADA a Instrução Normativa nº 1.164/2011, que prorroga o prazo de entrega do Fcont para novembro de 2011, tendo em vista que o programa do Fcont para o ano-calendário 2010 somente estará disponível para download no final de agosto. SPED. Disponível em:
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