Pensamento e Realidade – Reflexões sobre Lógica, Ciência e Filosofia (Tese de Livre-Docência)

Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS – CAMPUS MARÍLIA

PENSAMENTO E REALIDADE: REFLEXÕES SOBRE LÓGICA, CIÊNCIA E FILOSOFIA

RICARDO PEREIRA TASSINARI

Marília – SP 2016

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS – CAMPUS MARÍLIA

PENSAMENTO E REALIDADE: REFLEXÕES SOBRE LÓGICA, CIÊNCIA E FILOSOFIA

RICARDO PEREIRA TASSINARI

Tese apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciência da Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”, Campus Marília, para a obtenção de título de Livre-Docente em Lógica, Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência.

Marília – SP 2016

Sumário Parte I – Entrevista – 1 1. Entrevista com Ricardo Pereira Tassinari – 2 Parte II – Lógica – 7 1. A Lógica como Cálculo Raciocinador – 10 2. Cogito Ergo Sum Non Machina! Sobre o Reconhecimento Humano de Verdades da Aritmética e Máquinas de Turing – 27 3. Formalização Lógico-Matemática de Noções Relativas à Auto-Organização: Um Estudo Comparativo – 37 4. A Lógica e as Lógicas: Sobre a Noção de Sistema Formal e o Princípio da Liberdade Lógica – 54 Parte III – Gilles-Gaston Granger – 71 1. A Ciência Contemporânea e a Noção de Modelo – 74 2. Ciências Cognitivas: Ciência ou Filosofia? – 94 Parte IV – Epistemologia Genética – 111 1. A Epistemologia Genética – 114 2. O Modelo “Grupo Prático de Deslocamentos” em Psicologia e Epistemologia Genéticas e sua Formalização – 132 3. O Caráter a priori das Estruturas Necessárias ao Conhecimento, Construídas segundo a Epistemologia Genética – 145 4. Sobre uma Estrutura Fundamental para a Lógica Operatória Concreta – 162 5. Formalização em Epistemologia Genética e Digrafos – 178 6. O Modelo do Sistema de Esquema de Ações e Operações sobre Símbolos e Signos – 195 7. Jean Piaget, Arauto da Auto-Organização, e Algumas de suas Contribuições ao Estudo da Auto-Organização – 233 Parte V – Idealismo Especulativo – 257 1. Lógica Contemporânea, Filosofia da Ciência e Idealismo Absoluto – 258 2. Sobre a Realidade-Totalidade como Saber Vivo e a Auto-Organização do Espaço Físico – 261 3. Sobre Teorias Físicas da Auto-organização Intencional: Uma Análise a Partir da Proposta de Henri Atlan – 311 4. O Sistema das Autoconsciências: da Epistemologia Genética a um Idealismo Especulativo – 335 Considerações Finais – 373

Introdução Fora as Considerações Finais desta Tese de Livre-Docência (e esta Introdução), os demais textos que a compõe são textos publicados de 2004 (ano seguinte à defesa de minha Tese de Doutorado e ao meu ingresso no Departamento de Filosofia da UNESP de Marília) até 2014 e sistematizam alguns dos resultados de meus estudos e pesquisas. De forma geral, as questões que subjazem tais textos são: O que é a Realidade? Como podemos conhecê-la? Qual é, nesse contexto, o papel das ciências e da Filosofia? Logo, em certo sentido, eles supõem a existência da Realidade, algo que se mantém e que se busca conhecer. A negação da existência da Realidade sempre me pareceu algo descabido: algo se apresenta para nós e existe certa regularidade nesse apresentar, algo se mantém. A busca pela Realidade é uma busca por esse algo que se mantém. Ou ainda: Qual o valor de uma asserção que negue a Realidade? Como se se afirmar “Nada pode ser afirmado!”? Se se nega a Realidade, nega-se que algo se mantenha e, consequentemente, nega que aquilo que se assere se mantenha, logo, a asserção nega a si própria, se auto-aniquila. Admitindo que algo é Real, trata-se, pois, de saber se o podemos conhecer e, se sim, como se daria esse conhecimento. Também sempre me pareceu autoaniquilante afirmar que nada pode ser conhecido. Se fosse assim, como poder-se-ia saber disso? Não se poderia, pois, nada pode ser conhecido. Nesse processo de conhecer a Realidade, o ser humano elaborou as ciências e a Filosofia. Nesse sentido, os textos aqui reunidos supõem a necessidade de análise dos conhecimentos científicos e filosóficos. Embora sempre haja, nos textos aqui publicados, o esforço de realizar uma análise do tema ou do autor estudado, sempre houve também uma certa liberdade reflexiva que visa, mais do que expor o tema ou o autor, construir uma visão própria a respeito do assunto estudado, que o incorpore em uma visão maior. Por fim, existe, nesses textos, também o pressuposto da necessidade de um conhecimento da Realidade que incorpore a possibilidade de autorreferência, uma concepção de Realidade que incorpore a possibilidade de conhecê-la e de conhecer como se dá o conhecimento dela. Logo, o que se encontrará nesses textos são os resultados de um percurso nessa busca de conhecimento do que seria a Realidade com essa característica de autorreferência de autoconhecimento. Devido a própria limitação temporal, alguns temas e autores foram escolhidos nesse percurso: Lógica, Gilles-Gaston Granger, Jean Piaget e Georg W. F. Hegel. É a partir deles que se estabeleceu as divisões dos textos aqui. Cabe ressaltar que o tema da auto-organização, principalmente a de Michel M. Debrun, perpassa os temas e autores aqui discutidos e se encontra, pois, em diversos momentos deste trabalho. Por se tratar de artigos e capítulos publicados em diversos livros e revistas, algumas vezes se encontrará passagens análogas ou mesmo semelhante em diferentes capítulos. A Parte I é constituída por uma entrevista1 e visa apresentar meu percurso de formação e interesses para contextualizar os textos aqui coligidos. A Parte II é sobre Lógica. 1

Realizada por João Antonio de Moraes em junho-julho de 2009 para a revista Filogênese.

Ela começa com o capítulo “A Lógica como cálculo raciocinador”2 que discute a possibilidade de se considerar a Lógica como uma espécie de calculo raciocinador. O segundo capítulo dessa parte “Cogito ergo sum non machina! Sobre o Reconhecimento Humano de Verdades da Aritmética e Máquinas de Turing”3, baseado em uma nova análise feita a partir do Primeiro Teorema da Incompletude de Gödel, discute a existência de limites para a possibilidade de modelagem, por sistemas formais ou algoritmos computacionais, do comportamento humano relativo ao conhecimento matemático. Trata-se de um artigo que resume alguns dos resultados de minha Tese de Doutorado4. O capítulo seguinte “Formalização Lógico-Matemática de Noções Relativas à Auto-Organização: Um Estudo Comparativo” é o Relatório Final de Atividades Docentes relativo ao meu Estágio Probatório do ingresso no Departamento de Filosofia da UNESP. A pesquisa realizada teve por objetivo analisar o porquê determinadas noções, como as de complexidade, organização, ou mesmo, auto-organização, resistem a formalização lógico-matemática. Ele é publicado pela primeira vez aqui. Em certo sentido, ele, conjuntamente com o capítulo anterior e o posterior, explicita porque escolhi, em minhas pesquisas posteriores, não me utilizar de cálculos lógicos particulares para tratar propriamente das questões gerais relativas ao conhecimento. Por fim, o último capítulo dessa parte, “A Lógica e as Lógicas: Sobre a Noção de Sistema Formal e o Princípio da Liberdade Lógica”5, resume e sintetiza alguns aspectos gerais de minha visão da relação entre os cálculos lógicos e o pensamento em geral. Nele se postula, a partir de uma análise da noção de sistema formal e da história da Lógica, a existência da Liberdade Lógica, esta entendida como autodeterminação do pensamento para estabelecer leis lógicas para si próprio, de forma que a autorreferencialidade dos conceitos e das regras do pensamento é autoinstauradora e possibilita estabelecer mais de uma lógica para o pensamento, de forma a não ser possível restringir, necessariamente, a forma lógica do pensamento em geral àquela de um cálculo lógico particular qualquer. A Parte III trata de noções relativas ao pensamento do epistemólogo e filósofo das ciências francês Gilles-Gaston Granger. O professor Granger teve uma forte influência sobre meus estudos e pesquisas6, principalmente pela caracterização da ciência contemporânea por meio da noção de modelo e por apontar a autorreferencialidade do conhecimento filosófico e consequências que dela decorrem. Ver-se-á que a noção de modelo, bem como a distinção de um conhecimento cuja 2

3 4

5 6

Elaborado, conjuntamente com dois outros capítulos “A Ciência Contemporânea e a Noção de Modelo” e “A Epistemologia Genética”, como recurso didático para o programa Rede São Paulo de Formação Docente (Redefor), que é um convênio entre a Secretaria Estadual da Educação de São Paulo (SEE/SP) e as três universidades estaduais paulistas, USP, UNICAMP e UNESP, com o objetivo de formação continuada de educadores do Ensino Fundamental II e Ensino Médio. Publicado na revista Cognitio (PUCSP), em co-autoria com a Profª. Drª. Itala Maria Loffredo D’Ottaviano. Defendida em dezembro de 2003 no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, realizada sob a orientação da Profª. Drª. Itala Maria Loffredo D’Ottaviano. Cabe aqui meu profundo agradecimento à professora Itala pela sua competência, abertura ao diálogo, incentivo, amizade e carinho, desde do tempo em que me orientou em minha Iniciação Científica em Lógica e Fundamentos da Matemática no Bacharelado em Física pela UNICAMP. Publicado em co-autoria com a Profª. Drª. Itala Maria Loffredo D’Ottaviano em GONZALEZ, M.E.Q, BROENS, M.C., MARTINS, C.A., Informação, Conhecimento e Ação Ética, Marília/São Paulo: Oficina Universitária/Cultura Acadêmica, 2012. Em especial, desde que cursei sua disciplina “Epistemologia (Probabilidade, Possibilidade e Virtualidade)” na época do Mestrado em Psicologia no Instituto de Psicologia da USP – São Paulo. O conteúdo dessa disciplina deu origem ao seu livro Le Probable, le Possible et le Virtuel, Paris: Odile Jacob, 1995.

linguagem tem seu domínio de discurso exterior a ela (como nos modelos) e de um conhecimento elaborado em uma linguagem que participa também de seu próprio domínio de discurso (como na Filosofia), ocupam um lugar central nas reflexões aqui desenvolvidas, inclusive nas análises da Epistemologia Genética de Jean Piaget e de algumas visões possíveis da Realidade. O primeiro capítulo dessa parte, “A Ciência Contemporânea e a Noção de Modelo”7, trata, a partir das propostas de Granger, da noção de modelo nas ciências contemporâneas, sobre a impossibilidade de um modelo geral do comportamento humano e sobre a impossibilidade de um único modelo da Realidade. O segundo e último capítulo dessa parte, “Ciências Cognitivas: Ciência ou Filosofia?”8, visa aplicar a análise grangeriana relativa às ciências e a Filosofia ao caso particular das Ciências Cognitivas. Em especial, ele serve para exemplificar a distinção entre Ciência e Filosofia estabelecida por Granger. Cabe ressaltar que, se, por um lado, tal distinção grangeriana entre conhecimento científico e conhecimento filosófico não deve ser tomada de forma dogmática e definitiva, pois existe uma imensa riqueza nas diversas concepções de ciência, de Filosofia, de conhecimento e em sua unidade, por outro, a diferença lógico-conceitual, apontada por Granger, entre dois tipos de conhecimentos, o conhecimento através de modelos (característico das ciências contemporâneas) e o conhecimento autorreferente elaborado em uma linguagem autorreferente (característico da Filosofia), torna-se importante para uma visão filosófica que objetive o conhecimento (de uma Realidade) que incorpore a possibilidade de autorreferência, inclusive que explicite como ele se constitui a si próprio. A Parte IV trata da Epistemologia Genética de Jean Piaget. Pode-se afirmar que uma das maiores contribuições de Piaget para a Epistemologia e para a Teoria do Conhecimento, ainda não levada suficientemente em conta por essas áreas, foi a de construir modelos e verificá-los para responder questões de fato presentes nessas áreas, bem como fornecer uma visão de todo da construção das estruturas necessárias ao conhecimento (como as noções de espaço, tempo, causalidade, permanência dos objetos, conservação da substância, número, classes lógicas etc), desde o nascimento à idade adulta. Alguns dos capítulos dessa parte são relativos a essas modelos e, em especial, proponho um modelo geral que organiza e sistematiza boa parte dos principais resultados a que chegaram Piaget e seus colaboradores: o Modelo do Sistema de Esquemas de Ações e Operações sobre Símbolos e Signos (MoSEAOSS). O primeiro capítulo dessa parte, “A Epistemologia Genética”9, constitui uma introdução ao pensamento de Piaget. O segundo capítulo, “O Modelo ‘Grupo Prático de Deslocamentos’ em Psicologia e Epistemologia Genéticas e sua Formalização”10, descreve e explica o que é o modelo Grupo Prático de Deslocamentos, introduzido por Piaget em 1937, essencial à compreensão da construção da noção de espaço. O terceiro capítulo, “O Caráter a priori das Estruturas Necessárias ao Conhecimento, Construídas segundo a Epistemologia Genética”11, discute a questão do caráter a priori das estruturas necessárias ao conhecimento, segundo a Epistemologia 7 8

Elaborado para o Redefor, como comentado. Publicado em BROENS, M. C., COELHO, J. G., GONZALEZ, M.E.Q., Encontro com as Ciências Cognitivas, São Paulo, Cultura Acadêmica, 2007. 9 Elaborado para o Redefor, como comentado. 10 Publicado em Schème, v. 5, p. 6-18, 2013, em co-autoria com Vicente Eduardo Ribeiro Marçal, exorientando do Curso de Mestrado em Filosofia da UNESP. 11 Publicado em Schème, v. 6, p. 225-241, 2014, também em co-autoria com Vicente Eduardo Ribeiro Marçal.

Genética, por meio de comparações entre a Epistemologia Genética de Jean Piaget e a Filosofia Crítica de Immanuel Kant, centrando, em especial, na noção de espaço. O quarto capítulo, “Sobre uma Estrutura Fundamental para a Lógica Operatória Concreta”12, sintetiza um dos principais resultados de minha Dissertação de Mestrado13. Nele, propõe-se uma única estrutura epistêmico-psicológica fundamental subjacente à Lógica Operatória Concreta, que possibilita aos seres humanos começar a compreender em pensamento seu meio ambiente e estruturar os objetos e os fatos vividos em termos de classes, hierarquia de classes, uniões e interseções, bem como de relações entre membros dessas classes. No quinto capítulo, “Formalização em Epistemologia Genética e Digrafos”14, generalizando alguns aspectos dos capítulos anteriores, apresenta-se, a partir de conceitos gerais da Epistemologia e Psicologia Genéticas e das estruturas lógicomatemáticas de digrafos, algumas reflexões no sentido de propor um método geral de formalização condizente com os resultados e pressupostos gerais dessas áreas, inclusive com a possibilidade de constituição contínua das estruturas. No sexto capítulo, “O Modelo do Sistema de Esquema de Ações e Operações sobre Símbolos e Signos”15, introduz-se e discute-se o MoSEAOSS. Por fim, o sétimo e último capítulo dessa parte, “Jean Piaget, Arauto da AutoOrganização, e Algumas de suas Contribuições ao Estudo da Auto-Organização”16, estabelece uma articulação entre o conceito de auto-organização de Debrun e a teoria piagetiana, visando contribuir para futuros trabalhos interdisciplinares relacionando as duas teorias. A última parte deste trabalho, Parte V – Idealismo Especulativo, trata de uma visão filosófica que possibilite em si a constituição das ciências e da Filosofia, inclusive de si própria, inspirada no pensamento de Georg W. F. Hegel. O primeiro capítulo dessa parte, “Lógica Contemporânea, Filosofia da Ciência e Idealismo Absoluto”17, é uma apresentação geral de algumas idéias que estariam na base de uma possível visão da Ciência em termos de um Idealismo Absoluto. O segundo capítulo, “Sobre a Realidade-Totalidade como Saber Vivo e a AutoOrganização do Espaço Físico”18, é um texto de mais fôlego que propõe um conceito de Realidade, considerada como Totalidade, consoante com o desenvolvimento contínuo das ciências contemporâneas e com a possibilidade permanente de construção de modelos; exemplifica-se ainda essa concepção analisando o conceito de espaço físico. O terceiro capítulo, “Sobre Teorias Físicas da Auto-organização Intencional: Uma Análise a Partir da Proposta de Henri Atlan”19, analisa a questão da elaboração de 12 Publicado em: MONTOYA, A. O. D., MORAIS-SHIMIZU, A., MARÇAL, V. E. R., MOURA, J. F. B. (Org.). Jean Piaget no século XXI: Escritos de Epistemologia e Psicologia Genéticas. Marília/São Paulo: Oficina Universitária/Cultura Acadêmica, 2011. 13 Defendida em 1998, no Instituto de Psicologia da USP, sob a supervisão da Profª. Drª. Zelia RamozziChiarottino. 14 Publicado em Cognitio (PUCSP), v. 14, p. 255-272, 2013. 15 Publicado em Schème, v. 6, p. 7-44, 2014. 16 Publicado em co-autoria com Alexandre Augusto Ferraz e Kátia Batista Camelo Pessoa, exorientandos do Curso de Mestrado em Filosofia da UNESP, em BRESCIANI FILHO, E.; D’OTTAVIANO, I.M.L.; GONZALEZ, M.E.Q.; PELLEGRINI, A.M.; ANDRADE, R.S.C. DE. (Org.). Auto-Organização: Estudos Interdisciplinares. Campinas: Coleção CLE, 2014, v. 66. 17 Apresentado no I Simpósio de Filosofia – Lógica e Filosofia da Ciência da Faculdade João Paulo II (FAJOPA) de Marília e publicado na revista dessa Faculdade na época. 18 Publicado em BRESCIANI FILHO E.; D’OTTAVIANO, I.M.L.; GONZALEZ, M.E.Q. (Org.). Autoorganização: Estudos Interdisciplinares. Campinas: Coleção CLE, 2008, v. 52. 19 Publicado em co-autoria com Márcio Augusto Vicente de Carvalho em In: SOUZA, G.M.; D’OTTAVIANO, I.M.L.; GONZALES; M.E.Q. (Org.). Auto-Organização: Estudos Interdisciplinares. Campinas: UNICAMP, Coleção CLE, 2004, v. 1.

uma teoria física da auto-organização intencional, a partir de um exame crítico da proposta de uma “teoria física da intencionalidade” feita por Henri Atlan, em 1998. Nele se mostra algumas das dificuldades da elaboração de uma teoria da intencionalidade e do sentido, a partir de modelos, e buscam-se critérios para possíveis elaborações de teorias físicas da intencionalidade, principalmente de teorias que venham a incorporar a noção de auto-organização. O quarto e último capítulo, “O Sistema das Autoconsciências: da Epistemologia Genética a um Idealismo Especulativo”20, expõe, sumariamente, alguns dos fundamentos gerais de meu caminho filosófico, que partiu de estudos, pesquisas e reflexões sobre as ciências e a Epistemologia Genética e chegou a uma proposta de metafísica e ontologia idealista especulativa. Dentre as questões que norteiam esse estudo estão “como compreender o sistema dos seres humanos e seus comportamentos?” e “como são possíveis os diversos sistemas filosóficos?”. Nele se propõe um projeto geral de pesquisa que objetiva usar conceitos e argumentos inspirados na Filosofia Especulativa Hegeliana (ou a ela relacionados) para compreender o sistema dos seres humanos e de seus comportamentos, em especial, no cenário de produção da Ciência e da Filosofia Contemporâneas. Por fim, como cabe notar que o percurso que resultou nesta Tese de LivreDocência continua em construção e não atingiu seu fim. É pois a história do percurso até agora realizado que se encontrará aqui.

20 Publicado em Schème, v. 5, p. 247-283, 2013.

1

Parte I – Entrevista

2

ENTREVISTA COM RICARDO PEREIRA TASSINARI Ricardo Pereira Tassinari graduou-se em Física pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em 1992 e em Matemática (60%, Bacharelado, não concluído) em 1994. Obteve o mestrado em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) em 1998 e o doutorado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas em 2003. Atualmente é professor assistente doutor do Departamento de Filosofia e Coordenador do Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Também é pesquisador junto ao Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Universidade Estadual de Campinas (CLE-UNICAMP). A entrevista apresenta o percurso de formação do autor e os interesses que o direcionaram. Ela foi realizada via email em junho-julho de 2009 por meio do entrevistador João Antonio de Moraes. Como interpreta sua produção teórica? Haveria um projeto comum ou uma “linha-mestra” que a percorre? Teria havido rupturas, cortes epistemológicos? Quais e em que momentos? De forma bem geral, penso que o que norteou e norteia minha pesquisa é a compreensão do que é a Realidade. Decidi fazer Física como Graduação, porque ela fazia uma descrição precisa da Realidade, matemática, que se poderia conferir. Mas, relacionado a essa compreensão do que é a Realidade, estava a questão de como fundamentar esse conhecimento da Realidade e de como sistematizá-lo, o que me levou a estudar mais a Matemática e a fazer uma iniciação científica em Lógica, sob a orientação da Profª. Drª. Itala Maria Loffredo D'Ottaviano. Posteriormente, as questões de compreensão das estruturas necessárias ao conhecimento me levaram a estudar, no Mestrado, a teoria epistemológica de Jean Piaget, sob a orientação da Profª. Drª. Zélia RamozziChiarottino. Há uma característica que sempre me influenciou muito, nessa busca, que é a integração daquilo do que consideramos conhecimento com o que pode ser realizado; assim, o conhecimento através de modelos sempre esteve presente, por ter a possibilidade de uma verificação mais direta daquilo que representa e do que pode ser realizado. Na época do Mestrado, tive o prazer de conhecer o Prof. Gilles-Gaston Granger e seu pensamento, com sua análise crítica dos diversos tipos de Conhecimento, em especial do conhecimento científico e o por construção de modelos. Por fim, no Doutorado, novamente sob a orientação da Profª. Itala, pesquisamos as conseqüências do Primeiro Teorema da Incompletude de Gödel na modelagem do comportamento humano, em especial, nos comportamentos de descobertas de verdades lógicas e matemáticas, associando essas implicações a aspectos da Teoria da Auto-Organização de Michel Debrun. Lembro-me do espanto que me causou o estudo do Primeiro Teorema da Incompletude de Gödel, já na Graduação, pois ele implicava a impossibilidade de um fundamento axiomático último para a Matemática, que, por sua vez, serve de fundamento à Ciência. Quanto aos cortes epistemológicos, houve mudanças significativas, pois, na época da Graduação, eu me considerava materialista Vol. 2, nº 2, 2009. www.marilia.unesp.br/filogenese

1

3

ou fisicalista (lembro-me de ter sido muito influenciado, também, pelo pensamento de Nietzsche), enquanto que, no Mestrado, por influência dos estudo em Epistemologia Genética de Jean Piaget, passei a perceber que construíamos o significado do que é "Realidade". Lembro-me de, nessa época, estudar muito a Teoria Geral dos Sistemas, de von Bertalanffy, aspectos da teoria do Caos e, devido a busca de entendimento da afetividade humana, estudar Freud e retomar o estudo da Ética de Espinosa; por influência de minha orientadora, na época, estudei também Kant. Nessa época, marcado pela noção de substância da filosofia espinosiana e pela descoberta de que construímos o que é a Realidade para nós, vim a encontrar, em Hegel, o paradigma de uma nova visão do que é a Realidade, mudando minha ontologia de uma materialismo-fisicalista para um idealismo que comporta sistemas de seres autoconscientes; o que tem norteado, desde então, minhas pesquisas. Vejo que Piaget e Hegel tiveram muita influência em sua formação, você poderia falar um pouco mais sobre a junção Piaget-Hegel na compreensão, ou na construção, da Realidade? De fato, as teorias desses autores me marcaram profundamente. Primeiramente Piaget, pois, como físico, pensava que a noção de que um objeto continua existindo fora de nosso campo de visão seria uma noção primitiva, elementar, quase auto-evidente, "inquestionável", e Piaget mostra que, no início, não temos essa noção e que ela se constrói; mostra também o como ela se constrói. Mais ainda, Piaget mostra como aquilo que um sujeito julga existir (suas significações) depende diretamente do sistema das ações que esse sujeito realiza ou de ações que ele atribui aos elementos que compõem a Realidade. Assim, a Realidade para o sujeito, e sempre é para um sujeito, depende desse sistema. Como dizia a Profª. Zélia, parodiando Wittgenstein, "os limites de seus esquemas [de ação] são os limites de seu mundo". Quando se compreende como a teoria piagetiana explica a construção dessas estruturas que permitem o ser humano construir sua concepção do que é a Realidade, percebe-se quanto o que a Realidade é para nós depende da intelecção. Se pensarmos que a própria Ciência, como a Física, evoluiu e, com ela, nossa própria percepção do que é a Realidade, veremos que isso não é tão absurdo assim; aliás, explicar essa evolução da Ciência sempre foi a meta da Epistemologia Genética, que, não deve ser confundida, como fazem alguns, com a Psicologia Genética. Quanto a Hegel, meu contato com sua obra surge no momento dessa minha virada epistemológica, conjuntamente com minhas leituras da Ética de Espinosa, com sua noção de substância e de que "A ordem e conexão das idéias é a mesma que a ordem e conexão das coisas". Lembro-me de ter encontrado, em uma livraria, uma versão barata, mas não muito confiável, da Introdução à História da Filosofia de Hegel, que exerceu verdadeiro fascínio sobre mim, o que me levou a comprá-la e devorá-la. A partir desse dia, o estudo da obra de Hegel, principalmente da Enciclopédia das Ciências Filosóficas, me propiciou a sistematização de muitos elementos que já vinha pensando sobre a Ciência e sua constituição, tanto no indivíduo quanto de forma universal. Na Enciclopédia, Hegel não apenas sistematiza o Conhecimento, enquanto a Totalidade, mas o coordena com a Ética e o Bem, com o Direito e sua Filosofia, com a Estética e o Belo, com a Religião e nossas concepções do divino, com a História e seus motores e desenrolar, e, enfim, com a Filosofia como livre pensar da própria Totalidade sobre si mesma que direciona a própria história dos homens enquanto seres livres. Quanto a relação entre Piaget e Hegel, costumo brincar Vol. 2, nº 2, 2009. www.marilia.unesp.br/filogenese

2

4

dizendo que a Epistemologia Genética é um estudo mais detalhado do que Hegel chamou de "Espírito Teórico" na Enciclopédia. Em linguagem menos técnica, temos que a Epistemologia Genética é uma das disciplinas que nos mostra, como diz o próprio Piaget, o "aumento dos conhecimentos, isto é, da passagem de um conhecimento inferior ou mais pobre a um saber mais rico (em compreensão e extensão)", bem como das estruturas e noções a eles necessárias; assim, se nos decidimos, enquanto consciências, a nos instalar dentro desse Saber da Totalidade que se auto-expõe a nós, no qual também estão as ciências contemporâneas, principalmente enquanto estruturadoras do que chamei Realidade, então a Epistemologia Genética nos permite retraçar como chegamos a nos compreender dentro desse Saber da Totalidade que se auto-expõe a nós. Retomando seu interesse pela Ciência, enquanto adotada para a compreensão da Realidade, qual seria o papel da Filosofia nas mudanças de paradigmas científicos? Isto é, como a Filosofia deveria se colocar diante das alterações das estruturas científicas que nos auxiliam no entendimento do que é a Realidade? Há duas questões aí: a sobre contribuições da Filosofia para a Ciência e a sobre contribuições da Ciência para a Filosofia. Começando pela contribuição da Ciência para a Filosofia acho que ela é, ou deveria ser, total, pois contemporaneamente a Ciência nos apresenta a imagem mais isomórfica do que é a Realidade. Melhor explicado: na Ciência representamos ações e operações, que podemos realizar, por operações sobre signos e, nesse sentido, a imagem que ela nos apresenta é mais direta e mais testável; logo, acho que a Filosofia deve considerá-la, mesmo que seja para mostrar uma possível insuficiência desse tipo de conhecimento. Penso que a Ciência acaba tocando todas as áreas da Filosofia, mesmo quando se trata de um autor não contemporâneo que fala da Ciência de seu tempo, por exemplo, ou quando se fala de um subjetivo oposto a uma objetividade. Quanto as contribuições da Filosofia para a Ciência, temos que o domínio do pensamento não pode ser completamente modelado; lembremos, por exemplo, da impossibilidade de axiomatização da Matemática, exposta pelo Teorema da Incompletude de Gödel, ou que, para fazer modelos, realizamos necessariamente abstrações que deixam de lado, portanto, elementos que são pensados. Abre-se assim, todo um campo que não é, ou não pode ser, tratado completamente com a construção de modelos, cientificamente. No caso das ciências do homem, o que se faz nesse domínio é importantíssimo e a Filosofia tem muito a contribuir com a Ciência. Quais suas atuais preocupações no campo das ciências humanas? Essa é uma boa pergunta. Há, para mim, pelo menos dois tipos de preocupações atuais: as para o momento e as que estão sempre presentes. Para o momento, quero aprofundar a questão dos modelos em Epistemologia Genética, como parte de uma sistematização desse conhecimento; de fato, a formalização, que passa pela construção de modelos que podem ser testados, permite explicitar as estruturas subjacentes ao comportamento humano com uma clareza ímpar, quando se a entende; por outro lado, quero também discutir o limite desse tipo de conhecimento. Quero ainda continuar a reinterpretar esses e outros temas da Filosofia em termos de um Idealismo Especulativo atual que leve em conta o conhecimento contemporâneo, tornando mais claro essa forma de idealismo. Quanto às preocupações sempre presentes, acho que é da compreensão do Vol. 2, nº 2, 2009. www.marilia.unesp.br/filogenese

3

5

que é o ser humano, no qual as pesquisas atuais estão também contidas. De alguma forma, parece que voltamos sempre ao início, ao "Conhece-te a ti mesmo!". Quais as determinações da formação cultural brasileira que geraram o surgimento e o desenvolvimento do seu trajeto teórico? Podemos dizer que a cultura brasileira, enquanto tal, surgiu a meio século em uma fusão desigual entre os povos europeus e as comunidades que aqui estavam. Meus avós paternos eram filhos de italianos e, por parte de minha mãe, há uma certa mistura. As concepções acima de Realidade que citei são de origem européia (é claro que retomadas antropofagicamente); não vejo como negar essa nossa herança: comunicamo-nos em Português! Penso então que as determinações da formação cultural brasileira que me influenciou são aquelas das instituições, mestres e autores, que citei acima. Quais foram as condições institucionais que possibilitaram e têm possibilitado a realização de seu trabalho teórico? Acho que a maior delas foi a possibilidade de ter mestres (digo "mestre", pois para mim foram mais que professores) extremamente competentes e comprometidos com o rigor e qualidade da pesquisa, bem como com o espírito aberto a discutir novas concepções e posições. Penso que, quanto mais a universidade dá condições de trabalho a pessoas com esse perfil, mais cresce em excelência e, quanto menos condições oferece, mais a universidade se distancia de uma pesquisa em que haja alguma relevância. As determinações institucionais têm limitado, neutralizado ou integrado os resultados da sua produção? Eu diria que os professores, pelo menos aqui da UNESP, e, principalmente, de nosso departamento, têm sido heróis em conseguir manter com quadro tão reduzido de professores (somos 11 efetivos no momento) um Curso de Graduação em Filosofia e um Curso de Pós-Graduação em Filosofia, além de exercer as atividades de gestão e extensão. Além disso, a UNESP tem nos passado muitas atividades que são funções de funcionários especializados, mas não propriamente de docentes. Toda essa sobrecarga influencia certamente no que pode ser produzido. O que deve ser exigido hoje num curso de formação de filósofos? Acho que duas coisas: formação histórico-filosófica consistente e rigorosa, inclusive no que diz respeito aos resultados já consolidados e básicos da Lógica, e que o aluno consiga se posicionar frente às eternas questões da Filosofia, para além de um mero jogo intelectual. Como ensinar a Lógica na Filosofia, uma vez que a maioria dos alunos que passam no vestibular pensam que nunca mais irão lidar com fórmulas matemáticas ou lógicas? Essa é uma pergunta ácida, mas extremamente pertinente. Acho que a Lógica é eterna. Vol. 2, nº 2, 2009. www.marilia.unesp.br/filogenese

4

6

Nunca poderemos fazer Filosofia sem Lógica; mesmo para superar verdadeiramente certos formalismos em Lógica é preciso conhecê-los. Acho que os bons alunos, que não estão só de passagem, sentem isso, por mais que não venham a se dedicar seja à Lógica seja às suas implicações. Sempre foi assim, desde o Lógos grego, antes mesmo do Órganon aristotélico. E, independente de nossa vontade, estamos no Século XXI e nosso conhecimento atual da Natureza e do Homem, em particular, é permeado pelas estruturas lógico-matemáticas. De certa forma, só quem não as conhece não vê isso. Acho que, por essas razões, os alunos têm se mostrado receptivos à Lógica, mesmo com as dificuldades e esforço que seu aprendizado suscita. Tendo em vista que esta entrevista é para uma revista de pesquisa na graduação em Filosofia, e dado que o senhor é o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNESP, o que acha da pesquisa na graduação? E como considera que ela deveria ser feita? A pesquisa na Graduação é essencial. Graduação não é um curso técnico, não deve criar robôs que seguem algoritmos. Claro que as técnicas são importantes e devem ser ensinadas (inclusive as técnicas de leitura e escrita de textos, por exemplo), mas não podemos nos restringir a elas. Ora, essa síntese de aprendizado de técnicas e pensamento crítico só se dá na pesquisa. Quando um graduando pesquisa um tema de seu interesse, e sempre deveria ser de seu interesse, mesmo que parcial, ele cresce, academicamente falando, adquire autonomia, maturidade intelectual. Deve haver espaço para o livre pensar, junto é claro com a exposição rigorosa do próprio pensamento e o estudo honesto de outros pensamentos, honesto no sentido de buscarmos realmente compreender o que o outro disse e não apenas de o interpretarmos ao nosso bel prazer. Acho então que a Graduação sem pesquisa é como comida sem sabor: é o que fazemos para sobreviver, mas também o que nos distancia da Vida! E a Pós-Graduação é uma extensão natural da própria pesquisa na Graduação; mesmo quando mudamos de tema de pesquisa, levamos conosco o que pesquisamos anteriormente, seja em termos de um conteúdo que podemos comparar, seja em termos da forma de como pesquisar (ou não pesquisar). Estamos chegando ao final da entrevista. O Sr. tem algo em especial que gostaria de dizer? Gostaria de agradecer a você e à Revista Filogênese pela oportunidade desta entrevista. É bom ver que nossos alunos têm se dedicado com seriedade e comprometimento com a qualidade da produção acadêmica e da formação humana. Claro que expresso aqui posições pessoais, que, apesar de contundentes, não pretendo que sejam tomadas de forma dogmáticas. Penso que o que expressei em relação à pesquisa na Graduação deveria também pautar nossa convivência e diálogo na Universidade. Sem dúvida, a Revista Filogênese é um exemplo vivo dessa forma de convivência e diálogo.

Vol. 2, nº 2, 2009. www.marilia.unesp.br/filogenese

5

7

Parte II – Lógica

8

Filosofia COLEÇÃO TEMAS DE FORMAÇÃO VOLUME 1

COORDENADORES Lúcio Lourenço Prado Klaus Schlünzen Junior Elisa Tomoe Moriya Schlünzen AUTORES André Leclerc Antonio Trajano Menezes Arruda Jézio Hernani Bonfim Gutierre Lúcio Lourenço Prado Márcio Benchimol Barros Maria Eunice Quilici Gonzalez Mariana Claudia Broens Reinaldo Sampaio Pereira Ricardo Monteagudo Ricardo Pereira Tassinari

9

© BY UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Pró-Reitoria de Pós-Graduação – UNESP Rua Quirino de Andrade, 215 CEP 01049-010 – São Paulo – SP Tel.: (11) 5627-0561 www.unesp.br NEaD – Núcleo de Educação a Distância – UNESP Rua Dom Luís Lasagna, 400 - Ipiranga CEP 04266-030 - São Paulo/SP Tel.: (11) 2274-4191 www.unesp.br/nead/

F488

Filosofia [recurso eletrônico] / Lúcio Lourenço Prado, Klaus Schlünzen Junior [e] Elisa Tomoe Moriya Schlünzen (Organizadores). – São Paulo : Cultura Acadêmica : Universidade Estadual Paulista ; Núcleo de Educação a Distância, [2013]. – (Coleção Temas de Formação; v. 1) Requisitos do sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web Acesso em: www.acervodigital.unesp.br Textos provenientes do Programa Rede São Paulo de Formação Docente (Redefor) Resumo: Trata de aperfeiçoamento da formação em Filosofia de docentes da rede pública estadual de ensino para ministrarem a disciplina no Ensino Fundamental II e Ensino Médio. Acessibilidade: Videos com libras e legendas. ISBN

1. Filosofia – Estudo e Ensino. 2. Professores – Educação Continuada. I. Prado, Lúcio Lourenço. II. Schlünzen Junior, Klaus. III. Schlünzen, Elisa Tomoe Moriya. IV. Universidade Estadual Paulista. Núcleo de Educação a Distância da Unesp. CDD 107

Todos os direitos reservados. De acordo a Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998).

10

363

Capítulo 29 A Lógica como cálculo raciocinador87

C

omo diversas áreas atuais do conhecimento, a Lógica é hoje um vasto campo de conhecimento com uma profundidade e complexidade que uma vida humana parece não ser suficiente para abrangê-lo. Portanto, não é nossa intenção, neste texto, tratar dos diversos conteúdos da Lógica atual, mas apenas abordar o tema A Lógica como um cálculo raciocinador a fim de estimular o leitor a reflexões sobre o assunto.

29.1. O início da Lógica Comecemos pelo início histórico da Lógica. Muitos lógicos consideram o filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.) como o fundador da Lógica. Isso porque, apesar de certos temas da Lógica terem sido tratados por pensadores anteriores a ele, é Aristóteles quem realiza um primeiro estudo sistemático que permanecerá como referência por vários séculos, a ponto do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), em 1787, mais de dois mil anos depois, escrever, no início do Prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura, que: “É ainda digno de nota que também ela [a Lógica desde

87 Agradeço a Thiago Carreira Alves Nascimento pela leitura e sugestões que permitiram melhorar o texto deste capítulo.

11

364

Aristóteles] até agora não tenha podido dar nenhum passo adiante, parecendo, portanto, ao que tudo indica, completa e acabada”. Ironicamente, menos de cem anos depois, devido principalmente aos trabalhos do filósofo e matemático inglês George Boole (1815-1864) e do filósofo e matemático alemão Friedrich L. G. Frege (1848-1925), a Lógica começará um desenvolvimento que culminará na disciplina ampla que se tornou em nossos dias. Mas não adiantemos as coisas… voltemos ao nosso velho Aristóteles. O conjunto das obras de Aristóteles que trata da Lógica foi tradicionalmente chamado de Órganon (palavra grega que significa “instrumento”), a denominação da área com o termo “Lógica” só surgiu posteriormente, na medievalidade (cf. Blanché; Dubucs, 2001, cap. 6). O Órganon se constitui de seis obras nas quais Aristóteles trata da significação dos termos (em Categorias), das proposições (em Da interpretação), dos raciocínios (em Analíticos anteriores) e do uso correto e incorreto dos raciocínios (nas três últimas obras: Analíticos posteriores, Tópicos e Refutações dos sofistas). É importante salientar que, nesse contexto, a Lógica surge como um instrumento ao conhecimento (em grego, “episteme”) contraposto à mera opinião (em grego, “doxa”), distinção essa (entre conhecimento e opinião) que remonta, ao menos, ao filósofo grego Platão (429-347 a.C.), mestre de Aristóteles. Vamos aqui assumir que, em especial, essa noção de conhecimento satisfaz as exigências que Platão expõe em seu livro Teeteto: opinião verdadeira racionalmente justificada. Nesse sentido, a função mais importante da Lógica, segundo Aristóteles, é ser instrumento para o conhecimento do verdadeiro, daquilo que é (oposto ao que não é, ao falso). Mais ainda, por meio do “raciocínio demonstrativo”,88 segundo Aristóteles, podemos não apenas vir a conhecer o que é (o verdadeiro), mas também a razão de ser das coisas, suas causas, permitindo-nos atingir o inteligível daquilo que é. Assim, a Lógica é condição necessária (mas não suficiente) para chegar ao conhecimento.

88 Também chamado de “raciocínio dedutivo”.

12

365

Em grego, o termo “silogismo” significa raciocínio. Em português, mantivemos os dois termos “raciocínio” e “silogismo”, atribuindo ao termo “silogismo” uma acepção mais estrita, qual seja, a acepção que o próprio Aristóteles define, no Órganon, a partir de uma análise mais profunda do raciocínio a fim de desvelar seus constituintes mais elementares e suas relações. Em Aristóteles (2005) temos: O silogismo é um discurso argumentativo no qual, uma vez formuladas certas coisas [as premissas], alguma coisa distinta destas coisas [a conclusão] resulta necessariamente através delas pura e simplesmente (Tópicos, I.1.100a 25; cf. também Analíticos anteriores, I.1.24b; Refutações sofísticas, 1.165a.1).

Consideremos um dos modos de silogismo, chamado posteriormente, por lógicos medievais, de Barbara. Todo M é P. Todo S é M. Logo, todo S é P.

Um exemplo de um silogismo desse modo é: Todo homem é animal. Todo grego é homem. Logo, todo grego é animal.

13

366

O desenho a seguir representa esse modo.

Notemos que não importa quais letras usamos para representar os termos do silogismo: poderiam ser quaisquer, desde que diferentes entre si; aqui, usamos a letra “M” para indicar o termo que aparece nas duas primeiras premissas (chamado, por Aristóteles de termo médio), “S” para indicar o sujeito da conclusão (chamado, por Aristóteles de termo menor) e “P” para indicar o predicado da conclusão (chamado, por Aristóteles de termo maior). A premissa que contém o termo menor é chamada de premissa menor e a que contém o termo maior é chamada de premissa maior. A seguir temos um outro modo importante, chamado posteriormente por lógicos medievais, de Celarent. Nenhum M é P. Todo S é M. Logo, nenhum S é P.

Um exemplo de um silogismo desse modo é: Nenhum animal é imortal. Todo homem é animal. Logo, nenhum homem é imortal.

14

367

O desenho a seguir representa esse modo.

Aristóteles mostra, em Segundos analíticos, que todos os outros modos de raciocínios válidos podem ser reduzidos a esses dois modos. De certa forma, a ciência, segundo Aristóteles, deveria vir a classificar adequadamente os seres do mundo e podemos perceber como os modos de silogismo citados permitem uma classificação perfeita dos seres. Assim, esse resultado de redução de todas as formas de raciocínio aos dois que nos referimos é muito importante na filosofia de Aristóteles. Falamos até aqui sobre Aristóteles devido ao seu importante papel como fundador da Lógica e pela grande influência que exerceu na história da Lógica; entretanto, devemos salientar que, depois da formulação aristotélica da Lógica, diversos outros autores, com filosofias muito diferentes, usaram as distinções e análises lógicas feitas pelo filósofo grego. Nesse sentido, a Lógica foi se liberando dos pressupostos ontológicos e metafísicos da filosofia aristotélica e se constituindo como uma disciplina autônoma, isto é, com grande independência das filosofias deste ou daquele autor. No entanto, a grande área da Lógica nunca deixou de ser uma disciplina filosófica, por estar diretamente relacionada à questão do conhecimento (e à Teoria do Conhecimento, como, por exemplo, vimos antes, na questão do conhecimento como opinião verdadeira racionalmente justificada) e às diversas formas de se pensar a existência e os valores, principalmente na medida em que o pensamento da existência e dos valores se faz por juízos de existência (também chamados de juízos existenciais, de realidade ou de fato) e juízos de valor (como, por exemplo, os juízos morais e estéticos), bem como pela justificação desses.

15

368

29.2. A Lógica como calculus ratiocinator Vimos que a Lógica veio a descrever os raciocínios válidos apenas a partir da forma sintática desses argumentos, como nos casos citados de Barbara e Celarent. De um ponto de vista mais contemporâneo, podemos nos colocar as seguintes questões que nos interessam em específico neste texto: Seria possível fazer uma língua artificial em que os raciocínios corretos fossem reduzidos a operações precisas sobre os termos dessa língua? Seria possível uma língua na qual as características daquilo que existe fossem expressas adequadamente a tal ponto que pudéssemos, com um cálculo dessas características, deduzir fatos sobre a realidade?

Essas duas ideias foram expressas pela primeira vez na história da Filosofia de forma direta pelo filósofo e matemático alemão Gottfried W. Leibniz (1646-1716): a primeira levaria ao que Leibniz chamou de “calculus ratiocinator” (uma espécie de cálculo raciocinador) e a segunda a uma “lingua characteristica universalis” (uma espécie de língua universal das características). De uma forma geral e esquemática, podemos dizer que a primeira ideia deu origem à Lógica Simbólica contemporânea e a segunda à Ciência contemporânea (Física, Química, Biologia, Psicologia, Sociologia etc.). Interessa-nos aqui, neste texto, o primeiro tópico. Desenvolveremos o segundo quando tratarmos do tema da noção de modelo na Ciência contemporânea. Tratando então do primeiro tópico, podemos dizer que Frege é um dos principais autores que vem a desenvolver melhor a proposta leibniziana de um calculus ratiocinator. Para termos uma ideia desse desenvolvimento, vamos considerar alguns pequenos exemplos da aplicação da nova análise que Frege realiza em relação à Lógica (o que nos levará a definir, logo a seguir, as noções de sujeito e predicado lógicos).89

89 Os termos “sujeito lógico” e “predicado lógico” são usados aqui para designar as expressões linguísticas do que Frege (2009, cap. 6) distingue como “objeto” e “conceito”.

16

369

Vimos que uma das formas das proposições que interessa à Lógica são aquelas expressas por sentenças da forma AéB

na qual “A” é o sujeito da sentença e “B” é o predicado da sentença. Porém, essa forma tem uma ambiguidade que do ponto de vista da Lógica é importante desfazer. A sentença “A é B” pode significar, por um lado, que um indivíduo expresso por “A” (por exemplo, Aristóteles) tem uma certa propriedade expressa por “B” (por exemplo, ser sábio); assim, a sentença a seguir tem a forma “A é B”. (1) Aristóteles é sábio.

Por outro lado, assim como “B” expressa uma propriedade (por exemplo, ser sábio), “A” também pode expressar uma propriedade (por exemplo, ser filósofo); assim, a sentença a seguir também tem a forma “A é B”. (2) Filósofo é sábio.

Ora, mas, no caso (1), a sentença “A é B” tem o sentido de que um indivíduo pertence à classe dos B (Aristóteles pertence à classe dos sábios), enquanto no caso (2), a sentença “A é B” tem o sentido de que a classe dos A está contida na classe dos B (a classe dos filósofos está contida na classe dos sábios), o que é bem diferente do caso (1). Podemos então propor que se diferencie os termos que designam indivíduos, que nomeamos sujeitos lógicos, dos termos que designam propriedades, que nomeamos predicados lógicos. Nesse sentido, sujeito lógico e predicado lógico não se confundem com o sujeito gramatical (isto é, o sujeito da sentença) e o predicado gramatical (ou seja, o predicado da sentença): por exemplo, na sentença (2) “Filósofo é sábio”, o termo “filósofo” é um sujeito gramatical, entretanto, não é um sujeito lógico, já

17

370

que não designa um indivíduo, mas é um predicado lógico, pois designa uma propriedade. Contemporaneamente, para designar um predicado lógico usamos uma letra maiúscula, por exemplo, “B”, e usamos uma letra minúscula, por exemplo, “a”, para designar um sujeito lógico. Para afirmar que um sujeito a tem propriedade B, escrevemos “B” seguido de “a” entre parênteses; assim, a sentença (1) “Aristóteles é sábio” tem a forma B(a)

na qual “a” designa Aristóteles e “B” designa ser sábio. Podemos então nos perguntar: e como fica a sentença (2) “Filósofo é sábio” na escrita Lógica contemporânea? Ora, como dissemos, a sentença (2) “Filósofo é sábio” indica que se alguém é filósofo, então ele é sábio; em notação contemporânea, essa sentença tem a forma A(x) → B(x)

que pode ser lida como “se x é A, então x é B”, na qual “x” designa um indivíduo qualquer. Se “A” designa ser filósofo e “B” designa ser sábio, a sentença também pode ser lida: se x é filósofo, então x é sábio. Por fim, para expressar a ideia de totalidade, como na sentença “Todo homem é animal”, usamos o signo “∀” que se lê “para todo”. Assim, a sentença ∀x(A(x) → B(x))

pode ser lida: “para todo x, se x é A, então x é B”, ou ainda, mais resumidamente, “todo A é B”. Se “A” designa ser filósofo e “B” designa ser sábio, a sentença acima significa que “para todo x, se x é filósofo, então x é sábio”, ou ainda, “todo filósofo é sábio”.

18

371

Podemos agora voltar à ideia de um calculus ratiocinator e mostrar como se representa um raciocínio válido como um cálculo nessa língua artificial. Retomemos um exemplo em Barbara: Todo homem é animal. Todo grego é homem. Logo, todo grego é animal.

Se usarmos as letras “M” para designar “homem”, “P” para designar “animal” e “S” para designar “grego”, o silogismo aristotélico Todo M é P. Todo S é M. Logo, todo S é P.

pode ser expresso por ∀x (M(x) → P(x)) ∀x (S(x) → M(x)) ∀x (Sx → P(x))

As regras que nos permitem passar de certas fórmulas a outras, realizando uma espécie de “cálculo” dedutivo em nossa língua lógica, são chamadas de regras de inferência.90

90 Na dedução a seguir, usamos três regras de inferência, chamadas de instanciação universal, silogismo hipotético e generalização universal. Não vamos dar aqui as definições de cada regra; vamos apenas indicar, na nota seguinte, a forma de usá-las no caso específico dessa dedução.

19

372

Temos a seguinte dedução formal do silogismo acima: 1. 2. 3. 4. 5. 6.

∀x (M(x) → P(x)) Premissa. ∀x (S(x) → M(x)) Premissa. M(x) → P(x) Instanciação Universal de 1. S(x) → M(x) Instanciação Universal de 2. S(x) → P(x) Silogismo Hipotético de 4 e 3. ∀x (S(x) → P(x)) Generalização Universal de 5.

Logo, realizando só um cálculo sobre as fórmulas, a partir das premissas ∀x (M(x) → P(x)) e ∀x (S(x) → M(x)), chegamos à conclusão ∀x (S(x) → P(x)).91 Ou ainda, a partir das fórmulas que representam as premissas de que todo homem é animal e todo grego é homem, esse cálculo nos permite concluir que todo grego é animal. Vemos assim, em linhas gerais, como um raciocínio seria reduzido a um cálculo sobre signos de nossa língua lógica. Essa nova forma de ver a Lógica, conjuntamente com o sucesso da Lógica contemporânea em expressar a grande maioria dos raciocínios realizados nas ciências contemporâneas, levam-nos a questões sobre as consequências filosóficas de se pensar a Lógica como um cálculo raciocinador, bem como a se pensar sobre os limites dessa proposta. É o que veremos no item a seguir. 91 Na dedução formal apresentada, em cada linha, temos: o número da linha, a fórmula lógica e a regra que permite inferi-la. Assim: Nas Linhas 1 e 2, temos as premissas do argumento acima: ∀x (M(x) → P(x)) e ∀x (S(x) → M(x)). Na Linha 3, pela regra de inferência chamada de “instanciação universal”, inferimos a sentença M(x) → P(x) (“se x é homem, então x é animal”) a partir da Linha 1 ∀x(M(x) → P(x)) (“para todo x, se x é homem, então x é animal”). Na Linha 4, pela mesma regra, inferimos a sentença S(x) → P(x) (“se x é grego, então x é homem”) a partir da Linha 2 ∀x(S(x) → M(x)) (“para todo x, se x é grego, então x é homem”). Na Linha 5, pela regra de inferência chamada de “silogismo hipotético”, inferimos a sentença S(x) → P(x) (“se x é grego, então x é mortal) a partir da Linha 3 M(x) → P(x) (“se x é homem, então x é animal”) e da Linha 4 S(x) → P(x) (“se x é grego, então x é homem”). E, por fim, na Linha 6, por uma regra de inferência chamada de “generalização universal”, inferimos a sentença ∀x (S(x) → P(x)) (“para todo x, se x é grego, então x é animal”) da Linha 5 S(x) → P(x) (“se x é grego, então x é animal”).

20

373

29.3. A Lógica como um cálculo raciocinador: consequências e limites Vimos, no item anterior, como o raciocínio pode ser visto como apenas um cálculo sobre signos de uma língua lógica. Mas podemos nos perguntar, então: Será que todo raciocínio pode ser visto como um cálculo? Em nossa história recente, essa pergunta foi respondida tanto de forma afirmativa quanto de forma negativa. Para citar um exemplo de uma resposta afirmativa, a possibilidade de se ver o raciocínio como um cálculo influenciou o desenvolvimento de uma área da Computação, chamada de Inteligência Artificial, cujas bases se encontram principalmente na noção teórica de “máquina de Turing” e na ideia de que “Pensar é computar”, proposta pelo matemático, lógico e cientista da Computação Alan Turing (1912-1954), no artigo “Computing Machinery and Intelligence” [Máquinas de computação e inteligência], de 1950. Os estudos de Turing contribuíram para o desenvolvimento da parte da Lógica relacionada com a análise simbólica do raciocínio, principalmente aqueles realizados em teorias formais axiomáticas. Entretanto, nessa área, existem também importantes resultados que apontam no sentido contrário da interpretação feita por Turing, indicando os limites dessa interpretação. Dentre esses resultados, alguns dos mais importantes da Lógica contemporânea são os descobertos pelo lógico e matemático Kurt Gödel (1906-1978): os teoremas da incompletude. Em especial, os teoremas da incompletude formam a base de interpretações epistemológicas que concluem que “mentes não podem ser explicadas por máquinas” (Lucas, 1991, p. 1; Penrose, 1993, 1995, 1998; Tassinari, 2003; Tassinari; D’Ottaviano, 2009), pois as máquinas não teriam a capacidade de compreensão matemática que é possível aos seres humanos e que, em um sentido mais geral, o “mecanicismo é falso” (Lucas, 1991, p. 1). Não vamos entrar aqui nos detalhes de como podemos mostrar que “mentes não podem ser explicadas por máquinas”. Em relação ao critério de inteligência de Turing, ou como é mais conhecido, teste de Turing (segundo o

21

374

qual uma máquina seria inteligente se pudesse se passar por um ser humano sem que percebamos que se trata de uma máquina), vamos apenas sugerir ao leitor que acesse o link JoVIA e realize, por si mesmo, um pequeno “teste de Turing”, em relação ao Jogo da Velha. Quanto à frase, o “mecanicismo é falso”, ela pode ser interpretada também no sentido de que tais resultados implicam na impossibilidade de uma teoria formal axiomática ou de uma modelagem finita completa da realidade física, de acordo com o que foi apresentado por Stephen Hawking (2002) em uma conferência intitulada “Gödel and the End of the Physics”, no Dirac Centennial Celebration, realizado na Cambridge University, pelo DAMTP/CMS, em 20 de julho de 2002: Qual a relação entre o Teorema de Gödel e se podemos formular a teoria do universo, em termos de um número finito de princípios. Uma conexão é óbvia. De acordo com a filosofia da ciência positivista, uma teoria física é um modelo matemático. Então, se existem resultados matemáticos que não podem ser demonstrados, existem problemas físicos que não podem ser preditos. [...] Assim, uma teoria física é autorreferente, como o Teorema de Gödel. Podemos esperar, portanto, que seja inconsistente ou incompleta. [...] Algumas pessoas ficarão muito desapontadas, se não existir uma teoria última que pode ser formulada com um número finito de princípios. Eu pertenci a este grupo, mas mudei de ideia. Agora estou contente porque nossa busca pelo conhecimento nunca chegará ao fim, e que sempre teremos o desafio de novas descobertas. Sem isso, estagnaríamos. O Teorema de Gödel nos assegura que sempre existirá um trabalho para os matemáticos. (trad. Tassinari) Voltando para o campo da Lógica, no sentido estrito, temos que, na história da Lógica, a partir dessa forma de simbolização, começou-se a se estudar outras formas de raciocínio que não apenas a forma clássica; por exemplo, ao invés de se assumir que proposições sejam apenas ou verdadeiras ou falsas, podemos estudar formas de raciocínio em que as proposições tenham valores intermediários. Assim, se considerarmos a sentença “João é músico”, na qual João ainda está estudando música, podemos atribuir valores intermediários à

22

375

sentença “João é músico”, sem ter que ficar restrito a dizer que “Verdadeiramente, João é músico” ou que “Não, João não é músico”.92 Para o leitor ter uma noção de forma rápida da enorme expansão e da velocidade com que se desenvolveu a Lógica contemporânea no último século e das diferentes lógicas atuais (isto é, dos estudos de diferentes formas de raciocínio), sugerimos visitar o site da Stanford Encyclopedia of Philosophy e fazer uma pesquisa usando o termo “logics”. O leitor interessado em saber mais sobre o pensamento do autor sobre a implicação da Lógica como calculo raciocinador e da sua relação com a Filosofia em geral, pode consultar meu site institucional: Ricardo Tassinari.

92 A área da Lógica que estuda formas de raciocínio em que os juízos podem ter outros valores além do verdadeiro e do falso é chamada de Lógica Polivalente ou Lógica Multivalorada (tradução do termo inglês “Many-valued Logic”).

23

417

Referências Bibliográficas ARISTÓTELES. Obras. Tradução Francisco de P. Samaranch. Madrid: Aguilar, 1967. ARISTÓTELES. Órganon. Tradução Edson Bini. Bauru: Edipro, 2005. BETH, E. W.; PIAGET, J. Épistémologie mathematique et psychologie. Paris: PUF, 1961. (Étude d’épistémologie génétique, v. 14). BLANCHÉ, R.; DUBUCS, J. História da lógica. Lisboa: Edições 70, 2001. CHALMERS, A. O que é ciência afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993. DEBRUN, M. Por que, quando e como é possível falar em auto-organização e a ideia de auto-organização. In: DEBRUN, M.; GONZALES, M. E. Q.; PESSOA JR, O. Auto-organização: estudos interdisciplinares. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. FREGE, G. Lógica e filosofia da linguagem. São Paulo: Edusp, 2009. GRANGER, G.-G. A ciência e as ciências. São Paulo: Editora Unesp, 1994. GRANGER, G.-G. La vérification. Paris: Odile Jacob, 1992.

24

418

HAWKING, S. Gödel and the End of the Physics. 2002. Disponível em: . Acesso em: 09 maio 2013. KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova Cultural, 1996. LATANSIO, V. D. A significação na epistemologia genética: contribuições para uma teoria do conhecimento. 2010. 108f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2010. Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2011. LEWIN, K. Princípios de psicologia topológica. São Paulo: Cultrix, 1973. Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2011. LUCAS, J. R. Minds, machines and Gödel. In: SAYRE, K. M.; CROSSON, F. J. (Eds.). The modeling of mind. Notre Dame: Notre Dame Press, 1963. p. 269-270. MAGEE, B. As ideias de Popper. São Paulo: Cultrix, 1973. MATTOS, I. L.; et al. Peróxido de hidrogênio: importância e determinação. Química Nova, São Paulo, v.26, n.3, p.373-380, 2003. Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2011. PENROSE, R. A mente nova do rei: computadores, mentes e as leis da física. Rio de Janeiro: Campus, 1993. PENROSE, R. O grande, o pequeno e a mente humana. São Paulo: Editora Unesp, 1998. PENROSE, R. Shadows of the mind: a search for the missing science of consciousness. Oxford: Oxford University, 1995.

25

419

PIAGET, J. A epistemologia genética; Sabedoria e ilusões da filosofia; Problemas de psicologia genética. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Col. Os Pensadores). PIAGET, J. Biologia e conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1973. PIAGET, J. Introduction a l’épistémologie génétique. Paris: PUF, 1950. PIAGET, J. O estruturalismo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970. PIAGET, J. Psicologia e epistemologia: por uma teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1973. PIAGET, J. Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro: Forense, 1967. PIAGET, J.; INHELDER, B. A psicologia da criança. São Paulo: Difel, 1986. POPPER, K. R. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2000. POPPER, K. R. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix, 1977. POPPER, K. R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999. POPPER, K. R. Conjecturas e refutações. Brasília: UnB, 1980. RAMOZZI-CHIAROTTINO, Z. Piaget: modelo e estrutura. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1972. TASSINARI, R. P. Incompletude e auto-organização: sobre a determinação de verdades lógicas e matemáticas. 2003. 238 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003.

26

420

TASSINARI, R. P. Lógica, matemática e psicologia [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por em 19 dez. 2009. TASSINARI, R. P. Pesquisa analisa a “sistêmica” da matemática. Toque da Ciência. Podcast. 26 ago. 2008. Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2013. TASSINARI, R. P.; D’OTTAVIANO, I. M. L. Cogito ergo sum non machina! sobre o reconhecimento humano de verdades da aritmética e máquinas de Turing. Cognitio, São Paulo, v.10, p.221-230, 2009. TURING, A. M. Computing machinery and intelligence. Mind, Oxford, n.49, wp. 433-460, 1950.

27

Cogito ergo sum non machina! Sobre o Reconhecimento Humano de Verdades da Aritmética e Máquinas de Turing Cogito ergo sum non machina! On the Human Recognition of Truths in Arithmetic and Turing Machines Ricardo Pereira Tassinari1 Departamento de Filosofia Universidade Estadual Paulista - UNESP / Campus Marília – SP [email protected] Itala M. Loffredo D’Ottaviano Grupo de Lógica Teórica e Aplicada Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência Departamento de Filosofia Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP – SP [email protected] Resumo: O objetivo deste artigo é discutir sobre a existência de limites para a possibilidade de modelagem do comportamento humano por sistemas formais ou algoritmos computacionais. Mais especificamente, o artigo trata da impossibilidade de modelagem completa por algoritmos ou teorias formais da capacidade humana de estabelecer a veracidade de fórmulas da aritmética de primeira ordem. A resposta aqui apresentada, baseada em uma nova análise feita a partir do Primeiro Teorema da Incompletude de Gödel, busca apresentar o porquê e como esse teorema implica na impossibilidade de construção de tal modelagem. Palavras-chave: Sistemas formais. Algoritmos. Teoremas de Gödel. Abstract: The objective of this paper is to discuss the existence of limits in the possibility of modeling human behavior by formal system or computational algorisms. More specifically, we will discuss herein the impossibility of completely modeling by algorisms or formal theories the human capability of establishing the truth of first order arithmetical formula. The answer exposed here is based on a new analysis of the consequences of Gödel’s First

1

Este artigo corresponde a parte dos resultados da Tese de Doutorado Incompletude e auto-organização: sobre a determinação de verdades lógicas e matemáticas do primeiro autor, sob a orientação do segundo, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, em dezembro de 2003.

Cognitio, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 221-230, jul./dez. 2009

Cognitio10n2.pmd

221

221

21/10/2009, 17:43

28 Cognitio: Revista de Filosofia

Incompleteness Theorem and we will show here why and how this Theorem implies the impossibility of such a modelling. Keywords: Formal systems. Algorithms. Gödel’s theorems.

1. Introdução Conhece-te a ti mesmo! Podemos expressar por teorias formais, ou modelar por algoritmos, de forma completa, a capacidade humana de identificar verdades aritméticas? Alguns autores, como Lucas (1961) e Penrose (1989; 1995), insistem em que a resposta a essa questão é negativa. Penrose (1989; 1995) busca argumentar a favor da não mecanicidade do pensar humano, a partir de uma extensa análise do Problema da Parada. Lucas (1961) busca mostrar a impossibilidade de simular-se a capacidade humana de reconhecimento de verdades aritméticas, não de forma direta, mas a partir de um “esquema de refutação”: dado um programa computacional qualquer que avalie verdades da aritmética tal como os seres humanos conseguiriam fazer, Lucas mostra como se pode utilizar o Primeiro Teorema de Gödel para exibir-se uma fórmula que deveria ser reconhecida como verdadeira, mas não estaria dentro desse modelo. Porém, será que podemos apresentar, de forma mais resumida que a de Penrose (1989; 1995) e de uma forma mais direta que a de Lucas (1961), uma resposta à questão inicial? É o que buscamos desenvolver no presente trabalho. A perspectiva aqui adotada é a de um teórico que visa descrever por algoritmos ou teorias formais a capacidade cognitiva humana, a quem a questão inicial necessariamente se coloca. Trata-se, assim, da análise de algumas das formas em que se apresenta a capacidade humana de verificação de fórmulas da aritmética de primeira ordem2, a partir de uma análise epistemológica e metamatemática, e de saber se essa forma pode ser expressa por uma teoria formalizada ou modelada por um algoritmo. A primeira dificuldade para responder à questão proposta é a de definir o que seja a capacidade humana de verificação de uma fórmula da aritmética de primeira ordem. Podemos, de início, admitir que a questão surge no âmbito da Lógica Matemática, ou mais exatamente, da Metamatemática, já que é nesse contexto em que são definidas as teorias aritméticas de primeira ordem. Nesse caso, temos uma definição precisa do que seja a veracidade de uma fórmula, introduzida rigorosamente por Tarski (em 1936-7, cf. tradução em 1983) e utilizada comumente nos livros introdutórios de Lógica Matemática. Entretanto, não temos, à primeira vista, uma definição do que seja a capacidade humana de reconhecimento da veracidade, segundo a definição tarskiana, de uma fórmula da aritmética de primeira ordem.

2

Entendemos, neste trabalho, que uma fórmula da aritmética de primeira ordem é uma fórmula da linguagem da aritmética de primeira ordem cujos símbolos não lógicos são: a constante 0 (que representa o zero); o símbolo de função unário S (que representa a função sucessor); os símbolos de função binários + e . (representando as operações soma e multiplicação); e os predicados binários < e = (representando a relação menor que e a igualdade). Para detalhes, cf. TASSINARI, 2003, p.36-37. Cognitio, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 221-230, jul./dez. 2009

222

Cognitio10n2.pmd

222

21/10/2009, 17:43

29 Cogito ergo sum non machina!

Por outro lado, para o teórico que se coloca a questão do que seja o reconhecimento da veracidade de uma fórmula da aritmética de primeira ordem, a questão pode ser analisada a partir de casos em que se consegue, em princípio, determinar o valor de verdade das fórmulas. Por exemplo, em princípio, o teórico sabe que se poderia determinar a veracidade de qualquer fórmula fechada livre de quantificadores: basta fazer o cálculo estabelecido pelas funções sucessor, adição e multiplicação sobre os termos aos quais elas se aplicam, caso as funções apareçam na fórmula dada, e verificar a igualdade do resultado desses cálculos. Notemos que a consideração da capacidade humana de verificação de fórmulas da aritmética de primeira ordem, tomada em princípio, exclui as limitações de memória e de tempo para realizar-se a verificação, pois, como se está buscando expressar essa capacidade por teorias formais ou por algoritmos computacionais, podemos supor haver tanto espaço e tempo quanto o necessário, como se supõe ocorrer na execução ideal de um programa ou na dedução ideal de teoremas de teorias. A posição aqui é clara: como se trata de averiguar se, em princípio, é possível uma modelagem da capacidade humana de verificação de fórmulas, como, em princípio, não existe um limite máximo de passos para todas as demonstrações em uma teoria e como, também, em princípio, uma máquina de Turing ideal pode executar um algoritmo tendo tanta memória e tempo quanto precisar (cf. TURING, 1965), então assumiremos que, em princípio, dispomos de tanta memória e tempo quanto precisarmos para averiguar a veracidade de uma fórmula. Assim, o contexto em que se coloca a reflexão sobre a capacidade humana de estabelecer verdades da aritmética de primeira ordem e de sua comparação com as possibilidades de dedução em um sistema formal ou com as possibilidades permitidas por algoritmos é o contexto metamatemático, no qual o Primeiro Teorema da Incompletude de Gödel constitui um dos resultados mais importantes. De uma forma geral, trata-se do como se faz Matemática, ou melhor, uma pequena parte dela, a que se expressa na linguagem da aritmética de primeira ordem. É, portanto, a partir de análises epistemológicas e metamatemáticas sobre as implicações do Primeiro Teorema de Gödel para o fazer Matemática, que os argumentos gödelianos, aqui apresentados, são utilizados para buscar mostrar que máquinas de Turing não podem fazer Matemática como (pelo menos alguns) seres humanos o fazem, ou, ainda, que existe algo no fazer Matemática que não é mecânico no sentido de Turing.

2. A Impossibilidade de Teorias Formais Completas em Relação ao Reconhecimento de Verdades da Aritmética de Primeira Ordem Note that the results mentioned in this postscript do not establish any bounds for the powers of human reason, but rather for the potentialities of pure formalism in mathematics. Gödel (1965, p. 72-73)3 3

Notemos que os resultados mencionados neste pós-escrito não estabelecem nenhuma fronteira para os poderes da razão humana, mas antes para as potencialidades do puro formalismo em matemática.

Cognitio, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 221-230, jul./dez. 2009

Cognitio10n2.pmd

223

223

21/10/2009, 17:43

30 Cognitio: Revista de Filosofia

Em um primeiro momento, podemos tentar verificar se se pode construir uma teoria formal T de primeira ordem cujos teoremas sejam exatamente as fórmulas que podem ser reconhecidas, em princípio, por seres humanos, como verdadeiras, no Modelo Padrão dos Números Naturais.4 Para simplificar a exposição, consideremos a seguinte convenção. Convenção de Notação. Se A é uma fórmula da aritmética de primeira ordem, denotamos por ψ(A) o fato de a fórmula A ser verdadeira no Modelo Padrão dos Números Naturais e poder ser reconhecida como tal, em princípio, por um lógico ou matemático. ψ” denota um predicado unário da Metamatemática. Além Notemos, então, que “ψ disso, admitimos que ψ é um predicado parcial, ou seja, não precisa estar definido para toda fórmula A da linguagem da aritmética de primeira ordem, o que equivale a dizer que não consideramos ser obrigatório o reconhecimento da veracidade ou falsidade de todas as fórmulas da aritmética de primeira ordem. Consideremos, então, a seguinte versão do Metateorema da Incompletude de Gödel: Metateorema de Gödel. Se T é uma teoria formal axiomática consistente dos números naturais, cuja linguagem é uma extensão da linguagem da aritmética de primeira ordem e na qual as funções recursivas são representáveis, então existe e se pode exibir uma fórmula GT de primeira ordem, tal que: (1) GT é verdadeira no Modelo Padrão dos Números Naturais; (2) GT não é teorema de T.

Notemos que a fórmula GT tem a forma:5 Πv [~B(v, S(w, w))]

na qual Π é o quantificador universal, v e w são variáveis individuais, B é um símbolo de predicado binário e S é um símbolo de função binária que designam, respectivamente, a relação B recursiva primitiva e a função γ recursiva primitiva, definidas em Gödel (1965) e das quais falaremos mais adiante. Assim, GT é uma fórmula de primeira ordem. Notemos que, tal como são definidas, B é uma relação entre números naturais e γ é uma função de pares de números em números (e não uma relação entre fórmulas e uma função de pares de fórmulas em fórmulas, respectivamente, como alguns costumam erroneamente pensar), definidas por meio de composição e recursão primitiva das funções constantes, projeções e sucessor. Na demonstração do teorema, Gödel mostra: (1) que a cada fórmula se pode associar um número, hoje chamado número de Gödel da fórmula; (2) que a cada sequência de fórmulas se pode também associar um número, hoje chamado de número

4

5

O Modelo Padrão dos Números Naturais é a estrutura para a linguagem aritmética de primeira ordem cujo domínio são os números naturais e na qual os símbolos 0, S , +, . , < e = são interpretados da forma usual. Conservaremos, aqui, os símbolos usados por Gödel (1965), cujo significado é indicado a seguir. Cognitio, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 221-230, jul./dez. 2009

224

Cognitio10n2.pmd

224

21/10/2009, 17:43

31 Cogito ergo sum non machina!

de Gödel da sequência de fórmulas; (3) que a relação B recursiva primitiva, designada no sistema formal por B, é tal que B(x, y) ocorre entre os números x e y se, e somente se, x é o número da sequência de fórmulas que constitui uma demonstração da fórmula cujo número é y; e (4) que a função recursiva primitiva γ, designada no sistema por S, é tal que, dados dois números x e y, seu resultado γ(x, y) é o número de Gödel da fórmula que resulta de se substituir, na fórmula de número x, todas as ocorrências livres da variável w pelo termo que é o numeral que representa o número y. A partir daí, denotando por zp o numeral, no sistema formal, que representa o número p, introduzido a seguir, Gödel (1965, p 60) conclui: Seja U(w) a fórmula Πv[~B(v, S(w, w))] e seja p o número de U(w). Assim, U(zp) é a fórmula que resulta de substituirmos todas as ocorrências livres de w por zp, na fórmula cujo número é p, e, então, tem o número γ(p, p). Assim, se U(zp) é demonstrável, existe um k tal que kBγγ(p, p). Mas, desde que S(u, v) representa γ(p, p) e B(u, v) representa xBy, segue que B( zk, S(zp, zp)) é demonstrável. É uma propriedade de nosso sistema, também, que, se P v F(v) é demonstrável, então F(zl) é demonstrável para todo l; conseqüentemente, se U(zp) é demonstrável, ~B(zk, S(zp, zp)), bem como B(zk, S(zp, zp)), é demonstrável, e o sistema contém uma contradição. Portanto, concluímos que U(zp) não pode ser demonstrado a menos que o sistema contenha uma contradição.

Interpretando a fórmula de Gödel Πv[~B(v, S(w, w))], temos que Πv[~B(v, S(w, w))] ocorre se, e somente se, não existe um número de Gödel k tal que kBγγ(p, p), o que equivale a afirmar que não existe demonstração, no sistema formal considerado, da fórmula de número de Gödel p. Ora, essa é a própria fórmula de Gödel Πv[~B(v, S(w, w))], assim, se o sistema for consistente, sua veracidade equivale à sua indemonstrabilidade no sistema. Logo, se o sistema é consistente, a fórmula de Gödel é verdadeira e indemonstrável no sistema. De nossa compreensão dessa demonstração do Primeiro Teorema de Gödel, podemos dizer que, em princípio, se conseguimos reconhecer que uma teoria T é consistente, então conseguimos reconhecer que a fórmula de Gödel GT é verdadeira. Por outro lado, por um resultado simples da Teoria de Modelos, temos que se uma teoria T tem modelo, i.e., se seus axiomas são verdadeiros em uma estrutura para a linguagem de T, então T é consistente. Ora, por esse resultado, temos que, se reconhecemos que os axiomas de uma teoria aritmética T são verdadeiros no Modelo Padrão dos Números Naturais, então reconhecemos que T é consistente. Assim, combinando esse resultado com a análise da demonstração do Primeiro Teorema de Gödel feita acima, temos que, se reconhecemos que todo axioma A de uma teoria aritmética T é verdadeiro no Modelo Padrão dos Números Naturais, i.e., ψ(A), então reconhecemos que T é consistente e, daí, reconhecemos que GT é verdadeira no Modelo Padrão dos Números Naturais, i.e. ψ(GT). Podemos então admitir que, em relação ao problema principal desta seção, que consiste em exibir uma teoria axiomática T cujos teoremas são todas as fórmulas que reconhecemos como verdadeiras, a capacidade humana de reconhecer verdades aritméticas, representadada pelo predicado ψ, segue o seguinte princípio:

Cognitio, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 221-230, jul./dez. 2009

Cognitio10n2.pmd

225

225

21/10/2009, 17:43

32 Cognitio: Revista de Filosofia

Princípio de Gödel-Autossuperação. Dada uma teoria T axiomática sobre os números naturais, cuja linguagem seja uma extensão da linguagem da aritmética de primeira ordem, na qual as funções recursivas são representáveis, tal que ψ(A) para todo axioma A de T, então existe, e podemos, em princípio, exibir, uma fórmula GT de primeira ordem, tal que: (1) y(GT); (2) GT não é teorema de T.

Desse principio segue, então, a resposta à nossa questão inicial. Consequência 1 do Princípio de Gödel-Autossuperação. Não existe uma teoria T axiomática sobre os números naturais, cuja linguagem seja uma extensão da linguagem da aritmética de primeira ordem, na qual as funções recursivas são representáveis, tal que ψ(A) se, e somente se, A é teorema de T; ou seja, tal que os teoremas de T sejam todas as fórmulas que reconhecemos como verdadeiras no Modelo Padrão dos Números Naturais. Com efeito, se houvesse uma teoria T nessas condições, então, pelo Princípio de Gödel-Autossuperação, existiria uma fórmula GT, tal que ψ(GT), que não seria teorema de T, o que contradiz a nossa hipótese inicial de que T satisfaz as condições da asserção acima.

3. A Impossibilidade de Algoritmos que Simulem Completamente o Reconhecimento de Verdades da Aritmética de Primeira Ordem We now define the notion, already discussed, of an effectively calculable function of positive integers by identifying it with the notion of a recursive function of positive integers (or of a l-definable function of positive integers). This definition is thought to be justified by the considerations, which follow, so far as positive justification can ever be obtained for the selection of a formal definition to correspond to an intuitive notion. Church (1965, p.100)6 Podemos agora estudar as implicações da Consequência 1 quanto à existência de um algoritmo executável por uma máquina de Turing que simule completamente o reconhecimento humano da verdade de fórmulas aritméticas de primeira ordem no Modelo Padrão dos Números Naturais.

6

Definimos agora a noção, já discutida, de uma função efetivamente calculável de inteiros positivos, identificando-a com a noção de função recursiva de inteiros positivos (ou de função l-definível de inteiros positivos). Essa definição é pensada para ser justificada pelas considerações que seguem, tanto quanto justificações positivas podem ser obtidas pela seleção de uma definição formal para corresponder a uma noção intuitiva. Cognitio, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 221-230, jul./dez. 2009

226

Cognitio10n2.pmd

226

21/10/2009, 17:43

33 Cogito ergo sum non machina!

Primeiramente, lembremos que existe uma máquina de Turing que calcula o resultado da aplicação de um predicado se, e somente se, o predicado é recursivo, como podemos demonstrar a partir de Turing (1936-7, Apêndice, cf. reimpressão de 1965) e de Church (1936, Teoremas XVI-XVII, cf. reimpressão de 1965); e que, analogamente, existe uma máquina de Turing que calcula um predicado parcial P (claro que somente para os casos em que P está definido) se, e somente se, o predicado P é recursivo parcial. Consideremos, então, as seguintes definições e o resultado obtido por Kleene (1965, p. 271). Seja P(x1, ..., xn) um predicado que pode não estar definido para todas as nuplas de números naturais, no seu argumento. Pelo completamento de P entendemos um predicado Q, tal que, se P(x1, ..., xn) está definido, então Q(x1, ..., xn) está definido e tem o mesmo valor, e se P(x1, ..., xn) não é definido, então Q(x1, ..., xn) está definido. Em particular, ao completamento P +(x1, ..., xn) que é falso quando P(x1, ..., xn) é indefinido, e ao completamento P-(x1, ..., xn) que é verdadeiro quando P(x1, ..., xn) é indefinido, chamamos, respectivamente, de completamento positivo e completamento negativo de P(x1, ..., xn). (Em P e P +, a “parte positiva” coincide; em P e P -, a “parte negativa” coincide.) Teorema Vi. O completamento positivo P +(x1, ..., xn) de um predicado recursivo parcial P(x1, ..., xn) é expressável na forma (Ey)R(x1, ..., xn, y), na qual R é uma relação recursiva primitiva; e, conversamente, qualquer predicado expressável na forma (Ey)R(x1, ..., xn, y), na qual R é recursiva geral é o completamento positivo P +(x1, ..., xn) de um predicado recursivo parcial P(x1, ..., xn).

A partir dessas definições e resultados, podemos mostrar que, se existe um predicado recursivo parcial (ou equivalentemente um algoritmo executável por uma máquina de Turing) que desempenha o papel de ψ, i.e., da capacidade humana de reconhecimento de verdades da aritmética de primeira ordem, então existe uma teoria axiomática T de primeira ordem, tal que ψ(A) se, e somente se, A é teorema de T. Ou seja, podemos mostrar o que segue. Asserção. Se ψ é recursivo parcial, então existe uma teoria T axiomática de primeira ordem dos números naturais, tal que: ψ(A) se, e somente se, A é teorema de T. Com efeito, denotando por [A] o número de Gödel da fórmula A, temos, pelo teorema acima, que existe um predicado recursivo geral R tal que ψ+([A]) se, e somente se, EyR([A], y), e, portanto, ψ(A) é verdadeiro se, e somente se, EyR([A], y). Seja T a ∧(xi= xi), tal que teoria cujos axiomas são as fórmulas de primeira ordem da forma A∧ R([A], i). Primeiramente, T é uma teoria de primeira ordem, já que tem apenas fórmulas da linguagem aritmética de primeira ordem e T é axiomática, pois existe um procedimento recursivo para reconhecer os axiomas de T. Além disso, temos que, se y(A), ∧(xi= xi) é axioma de T e, assim, pela Regra de Inferência de então existe i tal que A∧ Simplificação, temos que A é teorema de T. Logo, se ψ(A), então A é teorema de T. Por outro lado, se A é teorema de T, então A pode ser obtida por regras de inferências lógicas a partir dos axiomas de T, ou seja, de fórmulas Ai tais que ψ(Ai). Ora, mas se supõe que a capacidade de reconhecimento de fórmulas de L é tal que: se A é uma fórmula que segue por regras de inferência lógica de fórmulas que podem ser identificadas como verdadeiras, então a própria fórmula A pode ser identificada como verdadeira, ou Cognitio, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 221-230, jul./dez. 2009

Cognitio10n2.pmd

227

227

21/10/2009, 17:43

34 Cognitio: Revista de Filosofia

seja, ψ(A); portanto, temos que, se A é teorema de T, então ψ(A). Concluímos, então, que se ψ é recursivo parcial, então existe uma teoria T axiomática de primeira ordem sobre os números naturais tal que: ψ(A) se, e somente se, A é teorema de T. Da asserção acima e da Consequência 1, temos imediatamente que: Consequência 2 do Princípio de Gödel-Autossuperação. ψ não é recursivo parcial e, portanto, não existe algoritmo executável por uma máquina de Turing que simule completamente a capacidade humana de reconhecimento da veracidade de fórmulas aritméticas de primeira ordem. Assim, certamente, pelo que foi exposto acima, as máquinas de Turing não podem satisfazer o Princípio de Gödel-Autossuperação. É esse princípio que, se atribuído aos seres humanos, e parece poder necessariamente ser atribuído já que foram os seres humanos que o descobriram pela análise do próprio pensar, leva a considerar que mentes não são apenas e tão somente máquinas de Turing.

4. Conclusão …minds cannot be explained as machines. John R. Lucas (1961, p.1)7 Os resultados obtidos nas seções anteriores mostram então que, devido ao Princípio de Gödel-Autossuperação, que foi estabelecido em relação à capacidade humana de identificação da verdade de fórmulas da aritmética de primeira ordem, a partir de uma análise epistemológica e metamatemática do Primeiro Teorema da Incompletude de Gödel, pudemos mostrar que não existe uma teoria de primeira ordem sobre números naturais que seja completa em relação à referida capacidade e que não existe algoritmo ou máquina de Turing que simule completamente tal capacidade. Tais resultados são importantes não apenas do ponto de vista epistemológico e metodológico, mas também têm importantes implicações ontológicas que não serão analisadas aqui (cf., e.g., LUCAS, 1961, que conclui que o “mecanicismo é falso”). Tais implicações, bem como a consideração de como se pode estender esse resultado de incompletude para teorias formais que sejam extensões de teorias de primeira ordem, serão desenvolvidas em trabalhos posteriores.

7

... mentes não podem ser explicadas como máquinas. Cognitio, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 221-230, jul./dez. 2009

228

Cognitio10n2.pmd

228

21/10/2009, 17:43

35 Cogito ergo sum non machina!

Referências Bibliográficas CHURCH, Alonzo. An Unsolvable Problem of Elementary Number Theory. In: DAVIS, 1965, p. 88-107. [Apresentado para a American Mathematical Society, em 19 de abril de 1935 e impresso, pela primeira vez, no American Journal of Mathematics, v. 58, p.345-363, 1936.] DAVIS, Martins. The Undecidable. Basic Papers on Undecidable Propositions, Unsolvable Problems and Computable Functions. New York: Raven Press, 1965. GÖDEL, Kurt. On Undecidable Propositions of Formal Mathematical Systems. In: DAVIS, 1965, p. 39-74. [Notas de lições dadas por Gödel no Institute for Advanced Study, durante a primavera de 1934, que trata tópicos muito similares aos do artigo original de Gödel de 1931.] KLEENE, Stephen Cole. Recursive Predicates and Quantifiers. In: DAVIS, 1965, p. 254287. [Reimpressão de Transactions, v.53, n.1, p. 41-73. American Mathematical Society, 1943.] LUCAS, John Randolph. Minds, Machines and Gödel. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2001. [Impresso primeiramente em Philosophy, XXXVI, p.112-127, 1961.] PENROSE, Roger. The Emperor’s New Mind: Concerning Computers, Minds and Laws of Physics. Oxford: Oxford University Press, 1989. ________. Shadows of the Mind: a Search for the Missing Science of Consciousness. Oxford: Oxford University Press, 1995. TARSKI, Alfred. Logic, Semantic, Metamathematics. 2. ed. Indianapolis: Hackett Publishing Co., 1983. TASSINARI, Ricardo Pereira. Incompletude e auto-organização: Sobre a determinação de verdades lógicas e matemáticas. Tese (Doutorado em Filosofia), orientada por Ítala Maria Loffredo D’Ottaviano. Campinas: IFCH/UNICAMP, Dezembro de 2003. TURING, Alan Mathison. On Computable Numbers, with Application to the Entscheidungsproblem. In: DAVIS, 1965, p. 115-154. [Reimpresso de Proceedings of the London Mathematical Society, Ser. 2, v. 42, 1936-7, p. 230-265.]

Cognitio, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 221-230, jul./dez. 2009

Cognitio10n2.pmd

229

229

21/10/2009, 17:43

36 Cognitio: Revista de Filosofia

Endereços / Addresses Ricardo Pereira Tassinari Departamento de Filosofia Universidade Estadual Paulista - UNESP / Campus Marília – SP Faculdade de Filosofia e Ciências Av. Hygino Muzzi Filho, n.º 737 Marília – SP CEP 17525-900 Itala M. Loffredo D’Ottaviano Universidade Estadual de Campinas — UNICAMP Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência — CLE Cidade Universitária “Zeferino Vaz” Rua Sérgio Buarque de Holanda, 251 Barão Geraldo – Campinas – SP Caixa Postal 6133 CEP 13083-970 Data de recebimento: 10/8/2008 Data de aprovação: 20/10/2008

Cognitio, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 221-230, jul./dez. 2009

230

Cognitio10n2.pmd

230

21/10/2009, 17:43

37

ANEXO AO RELATÓRIO FINAL DE ATIVIDADES DOCENTES RELATÓRIO DE ESTÁGIO PROBATÓRIO 15/10/2003 - 31/12/2006



Título da pesquisa concluída: Formalização Lógico-Matemática de Noções Relativas à Auto-Organização: Um Estudo Comparativo.



Linha de pesquisa: Lógica e Teoria do Conhecimento



Sumário da pesquisa: Objetivo do Projeto O objetivo do projeto de pesquisa foi, através de um estudo comparativo das diferentes exposições e formalizações apresentadas na literatura da Teoria Geral dos Sistemas (em especial, em Bresciani Fº. & D’Ottaviano, 2002) e das Teorias de Auto-Organização (em especial, Debrun, 1996a, b e c), analisar por que determinadas noções como, as de complexidade, organização, ou mesmo, auto-organização, resistem a formalização lógico-matemática. Em particular, visamos com esse projeto estabelecer em que medida alguns dos sistemas lógicos não-clássicos, já desenvolvidos (intuicionistas, modais, paraconsistentes, polivalentes, etc.), podem se prestar a uma formalização das noções envolvidas, e se eles se prestam a servir como lógica subjacente à Teoria Geral dos Sistemas ou à Teoria da Auto-Organização. No caso de inadequação desses diversos sistemas lógicos, verificar a possibilidade de introdução de um particular sistema lógico que possa servir como lógica subjacente a essas teorias.

1

38

Resultados Obtidos Feita uma análise das formalizações apresentadas na literatura da Teoria Geral dos Sistemas (em especial, em Bresciani Fº. & D’Ottaviano, 2002) e das Teorias de Auto-Organização (em especial, Debrun, 1996a, b e c), verificamos que, de forma geral, todas se baseavam na noção de sistema formal. Um sistema formal é a parte sintática de um sistema axiomático, i.e., de um sistema com axiomas e regras de inferência que permitem derivar as verdades (teoremas) de uma teoria formal. Um sistema formal se constitui, basicamente, de: um conjunto de símbolos (chamado de alfabeto do sistema formal), sendo as expressões do sistema formal qualquer seqüência finita de símbolos de seu alfabeto; um conjunto de fórmulas (que é um subconjunto do conjunto de expressões do sistema formal); um conjunto de axiomas (que é um subconjunto do conjunto de fórmulas); e, por fim, um conjunto de regras de inferência (que são relações entre fórmulas tais que, dadas certas fórmulas, as premissas da regra de inferência, delas podemos inferir uma fórmula, chamada de conclusão da regra de inferência). A partir daí, verificamos que o ponto central do porquê certas noções, como as de complexidade, organização, e auto-organização, resistem a formalização lógico-matemática: é que o jogo sintático que é estabelecido por elas não se deixava explicitar, de forma completa, somente por regras sintáticas. Ou seja, tecnicamente, trava-se do problema de completude e incompletude dos sistemas formais. Decidimos então delimitar a pesquisa à noção de auto-organização para poder realizar um estudo mais aprofundado. Demarcado o problema dessa forma, procedeu-se a um estudo sobre Incompletude e Auto-Organização que resultou em minha tese de doutorado (Tassinari, 2003), sob a orientação da profª.drª. Ítala Maria Loffredo D’Ottaviano, que foi defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, intitulada Incompletude e Auto-Organização: Sobre a Determinação de Verdades Lógicas e Matemáticas (segue mais abaixo, neste relatório, o resumo e as conclusões finais desse trabalho). Nossas pesquisas sobre Incompletude e Auto-Organização (principalmente em 2

39

relação a resultados centrais em Lógica Matemática relativos aos Teoremas da Incompletude de Gödel) nos levaram a identificar processos auto-organizados de cognição que não se deixam descrever por algoritmos (e, consequentemente por procedimentos mecânicos) ou sistemas formais. A partir daí, pudemos traçar alguns limites em relação ao uso de sistemas formais e algoritmos na ciência em geral e, em particular, em relação à cognição, mostrando a existência de noções semânticas cujo jogo sintático estabelecido por elas não se deixa definir em termos de regras sintáticas; em particular, verificamos ser esse o caso da própria noção de auto-organização. Devido, portanto, à incompletude essencial relativa à noção de auto-organização, verificamos que qualquer sistema formal usado na sistematização dessa noção será incompleto. Nessa medida, constatamos que não existe, em geral, a possibilidade de introdução de um particular sistema lógico que possa servir como lógica subjacente, de forma completa, às teorias de auto-organização; o que vale, também, para os sistemas lógicos não-clássicos (intuicionistas, modais, paraconsistentes, polivalentes, etc.). A conclusão geral da pesquisa proposta foi então que devido à incompletude essencial da noção de auto-organização (em especial, a de Debrun, 1999a, b e c) diversas caracterizações da noção de auto-organização em sistemas formais são possíveis, mas sempre serão parciais e provisórias.

Resumo da Tese de Doutorado: Os Teoremas da Incompletude de Gödel têm sido, recorrentemente, citados nos estudos sobre auto-organização, como propiciando exemplos de processos nãomecânicos e verdadeiramente auto-organizados. Um dos fundamentos desses estudos está relacionado às análises que afirmam que os resultados obtidos por Gödel, associados à Tese/Definição de Church sobre calculabilidade, implicam na impossibilidade de uma modelagem mecânica completa de processos relativos à cognição humana. Dois desses processos que podem ser citados como auto-organizados, e cuja não-mecanicidade decorreria dos teoremas de Gödel, seriam os 3

40

processos de determinação de fórmulas verdadeiras de teorias aritméticas de primeira ordem e de determinação de fórmulas verdadeiras de lógicas de ordens superiores, já que existem resultados lógico-matemáticos de incompletude desses sistemas formais. O objetivo central desta Tese consiste em analisar esses processos de determinação de verdades aritméticas e de verdades de lógicas de ordens superiores, a partir de uma análise dos resultados decorrentes dos teoremas de Gödel e da Teoria da Auto-Organização de Debrun, para mostrar que eles constituem processos não-mecânicos, segundo a acepção da Tese/Definição de Church, e auto-organizados, segundo Debrun. Apresentamos, preliminarmente, uma demonstração cuidadosa do Segundo Teorema da Incompletude de Gödel e uma introdução à Teoria da Auto-Organização de Debrun; bem como realizamos uma análise detalhada de como os resultados obtidos a partir do Segundo Teorema de Gödel permitem concluir que existem processos não-mecânicos, no sentido da Tese/Definição de Church, por argumentos distintos dos utilizados em alguns trabalhos da literatura. Mostramos que sempre existe um sistema formal cujo conjunto de teoremas é exatamente o conjunto de fórmulas determinadas como verdadeiras por qualquer função recursiva parcial que simule a capacidade humana de determinação de verdades aritméticas de primeira ordem e de verdades de lógicas de ordens superiores, enquanto, segundo o Segundo Teorema da Incompletude de Gödel, não existem sistemas formais cujos teoremas sejam todas as fórmulas que conseguimos identificar como verdadeiras.

Conclusões Finais da Tese de Doutorado: A seguir apresentamos, com algumas pequenas modificações, as conclusões finais da Tese de Doutorado. As citações entre parênteses são referentes à Tese, a menos que, explicitamente, referirem às outras obras. Os processos humanos de determinação de verdades aritméticas, de determinação de teoremas e não-teoremas de1 N e de determinação de casos de parada 1

N é uma teoria aritmética de primeira ordem, na qual os axiomas não-lógicos definem as

funções: sucessor, adição e multiplicação (cf. Seção 1.4). 4

41

e não-parada2 (cf. Seção 5.3), bem como o processo humano de determinação de verdades de lógicas de ordem superiores, são tais que: A1. Não existem sistemas formais axiomatizados para descrevê-los completamente; A2. Não podem ser simulados mecanicamente e, portanto, não podem ser realizados por um mecanismo – se, de acordo com Correlato Mecânico Geral da Tese/Definição de Church (Asserção 3.2.11), entendermos por mecanismo aquilo cujo funcionamento pode ser simulado por uma função recursiva parcial, incluindo aí, aquilo que pode ser modelado finitamente (cf. Observação 3.2.13)3; Essas características implicam então que: B1. Se, como em Penrose (1989 e 1995), chamamos de Inteligência Artificial Forte o Projeto da Teoria da Inteligência Artificial que busca reduzir todas as capacidades humanas a algoritmos, temos que os resultados acima implicam que esse projeto nunca poderá ser realizado; o que está de acordo com os resultados obtidos por Penrose (1989 e 1995), apesar de terem sido obtidos por outro caminho. B2. Os resultados acima também implicam a impossibilidade de se desenvolver, em Ciências Cognitivas ou Filosofia da Mente, uma teoria formal axiomática, ou ainda uma teoria mecanicista, que dê conta do funcionamento mental, já que os processos acima são processos mentais; o que está de acordo com as conclusões, obtidas por outra via, de Lucas (1961, p.1), de que “o Mecanicismo é falso”, ou ainda, de que “mentes não podem ser explicadas por máquinas”. B3. Mais ainda, a frase “o Mecanicismo é falso” parece poder ser interpretada também no sentido de que tais resultados implicam a impossibilidade de uma teoria formal axiomática ou de uma modelagem finita completa da realidade física, de acordo com o que foi apresentado recentemente por Stephen Hawking em uma conferência intitulada “Gödel and the end of the Physics”, no Dirac Centennial Cel2

O Problema da Parada é o de se saber se, dada um algoritmo e uma entrada para ele, a aplicação do

algoritmo sobre essa entrada para e retorna um resultado, ou não. 3

Nessas Considerações Finais, sempre que utilizarmos a palavra “mecanismo” será nesta

acepção. 5

42

ebration, realizado na Cambridge University, pelo DAMTP/CMS, em 20 de Julho de 20024: Qual a relação entre o Teorema de Gödel e se podemos formular a teoria do universo, em termos de um número finito de princípios. Uma conexão é óbvia. De acordo com a filosofia da ciência positivista, uma teoria física é um modelo matemático. Então, se existem resultados matemáticos que não podem ser demonstrados, existem problemas físicos que não podem ser preditos. ... ... uma teoria física é auto-referente, como o Teorema de Gödel. Podemos esperar, portanto, que seja inconsistente ou incompleta. ... Algumas pessoas ficarão muito desapontadas, se não existir uma teoria última que pode ser formulada com um número finito de princípios. Eu pertenci a este grupo, mas mudei de idéia. Agora estou contente porque nossa busca pelo conhecimento nunca chegará ao fim, e que sempre teremos o desafio de novas descobertas. Sem isso, estagnaríamos. O Teorema de Gödel nos assegura que sempre existirá um trabalho para os matemáticos...

B4. Se levarmos em conta que esses processos mentais se expressam no funcionamento de um organismo, temos que B3 implica na impossibilidade de uma teoria formal axiomática completa do comportamento dos organismos biológicos e que nem todos os comportamentos poderão ser descritos como fruto do funcionamento de um mecanismo. Por outro lado, podemos, como vimos no Capítulo 6, usar as categorias desenvolvidas na Teoria da Auto-Organização de Debrun (1996a, b e c) para compreender minimamente esses processos. Com efeito: C1. Para o caso do processo , em particular, vimos que o processo  de determinação de verdades aritméticas é um processo de auto-organização secundária (p.163), pois:

4

O texto da conferência pode ser encontrado no site de Stephen Hawking da Cambridge

University. Agradeço ao colega de doutorado Tadeu Fernandes de Carvalho pela informação sobre a existência desse texto. 6

43

a. É um processo de aprendizagem (de aquisição de conhecimento, tomado em um sentido amplo, tanto como processo, quanto como produto; cf. Observação 6.2.13 e comentário a ela); b. Apresenta patamares i, com organização crescente (os patamares i são formados com a descoberta de novas verdades aritméticas emergentes, decorrentes do processo ), que podem ser descritos formalmente; c. Os patamares i são construídos a partir da interação do lógico matemático com as fórmulas, com os patamares anteriores e com o Modelo de Marcas (o lógico matemático interage, inicialmente, com a fórmula A, da qual se propôs a determinar a veracidade e posteriormente, talvez, com outras que entram na determinação da veracidade de A, dentre as quais estão, principalmente, as fórmulas já interpretadas e que expressam fatos a respeito do Modelo Padrão). d. O processo tem, pelas razões apresentadas na Observação 6.3.2, a direção hegemônica, mas não-dominante, do lógico matemático. e. Neste caso, há encontros dos elementos distintos, fórmulas de L(N) e lógico matemático, que têm autonomia um em relação ao outro, devido, pois, a uma distinção real, o que leva à construção do conjunto i de fórmulas interpretadas, que, enquanto tais, possuem partes (sintática e semântica) semi-distintas que têm um acavalamento entre si, na medida em que se co-determinam, já que temos a parte sintática como expressão da parte semântica e esta como significado daquela. d. Os patamares são elaborados dentro de certo contorno, inicialmente, “ser fórmulas de L(N) e ser válidas no Modelo Padrão”, e, posteriormente, no patamar atual de elaboração do patamar seguinte; esta totalidade formando então um dispositivo organizacional que não é um simples amontoado e que se desenrola no interior de um quadro. C2. Assim, as categorias desenvolvidas na Teoria da Auto-Organização de Debrun (1996a, b e c) possibilitam compreender minimamente o processo  e mostramos, na Seção 6.4, como este fato implica que podemos compreender também

7

44

que o processo de determinação de fórmulas válidas de lógicas de ordens superiores é auto-organizado.5 Esses são, pois, os principais resultados obtidos neste trabalho. Em relação a seus objetivos, temos que o objetivo principal – que era analisar o processo de determinação de verdades aritméticas e de verdades de lógica de ordens superiores a partir de uma análise dos resultados decorrentes de Gödel (1931), sob o prisma da Teoria da Auto-Organização de Debrun (1996a, b e c) e sob o enfoque da Sistêmica – foi desenvolvido nos Capítulos 5 e 6; e o objetivo preliminar – que era realizar uma análise detalhada dos resultados obtidos a partir de Gödel (1931), no sentido de identificar se esses resultados implicam na existência de processos não-mecânicos na acepção da Tese/Definição de Church – foi desenvolvido nos Capítulos de 1 a 4. Por fim, quanto à discussão de aplicação dos resultados obtidos a partir de Gödel (1931) a algumas áreas específicas do saber, temos que: 1. Em relação à Inteligência Artificial, podemos concluir por uma impossibilidade de uma Inteligência Artificial Forte (B1 acima). 2. Em relação à Teoria da Auto-Organização, os processos acima fornecem exemplos de processos verdadeiramente auto-organizados e se prestam, como vimos, à aplicação e à avaliação da adequação dos conceitos da Teoria da AutoOrganização de Debrun. 3. Em relação à Sistêmica, os resultados acima impõem limites à possibilidade de simular mecanicamente certa capacidade da inteligência humana, o que impõe limitações essenciais à aplicação da metodologia de modelagem, pelo menos quanto à sua aplicação nas Ciências Humanas.

5

Este resultado pode ser estendido para o processo N de determinação de teoremas e

não-teoremas de N e para o processo PP de determinação de casos de parada e não parada (cf. Seção 5.3), já que esses processos são realizados também por uma técnica de auto-Gödel-superação (Observação 6.3.5), um dos principais fatores que nos permitiu concluir que o processo  é auto-organizado. De modo geral, todo processo que se fundamenta nessa operação parece ser auto-organizado. 8

45

4. Os resultados acima são importantes, ainda, na medida em que demandam uma nova forma de explicação de certos fenômenos da cognição humana, o que constitui um dado importante para a Metodologia da Ciência, para a Epistemologia, para a Teoria do Conhecimento, e para as Ciências Cognitivas e Filosofia da Mente. Apontemos, por fim, alguns rumos para trabalhos futuros. As teorias da auto-organização e as teorias de sistemas permitem identificar pelo menos dois tipos diferentes de métodos, não-excludentes e complementares, para o tratamento de sistemas ou de partes de sistemas: 1. A utilização de teorias axiomatizadas ou de modelos mecanicistas; 2. A utilização de conceitos metateóricos em relação à área de aplicação (e.g., Física, Química, Biologia, Psicologia, etc.), que acabam por fazer referência aos conceitos já elaborados nos métodos de tipo 1 acima. Temos ainda que, na elaboração de categorias para se entender os processos auto-organizados, Debrun (1996a) insiste na necessidade de uma definição de auto-organização, além das de tipo científica, que contemple o senso comum: Nessas condições uma definição de auto-organização que, por falta de ênfase sobre “auto”, não poderia ser “reconhecida” e portanto ser admissível pelo Senso Comum (mediante, eventualmente, uma “maiêutica”) seria totalmente arbitrária. Seria um mero jogo de palavras. Muitas palavras podem ser trocadas entre si para designar a mesma coisa. Não é o caso de uma “palavra raiz”, que serve de âncora e doadora de sentido para outras.

Porém, para balizar esta caracterização da auto-organização, Debrun (1996a) finaliza propondo alguns critérios de operacionalidade da definição, que serão desenvolvidos em Debrun (1996b e c): 1. Embora não formalizável, a definição deve ser tal que ela permita identificar de modo claro os processos que serão considerados auto-organizadores. 2. Ela deve também apontar, embora em termos genéricos, para os ingredientes e mecanismos desses processos. 3. No entanto ela não deve ser tal que nos permita produzir ou reproduzir a vontade –

9

46

usando uma “lei de construção” (algoritmo, programa) – os fenômenos de auto-organização. Se fosse assim (ou quando é assim), lidaríamos na verdade com fenômenos héteroorganizáveis disfarçados em fenômenos auto-organizados. 4. A definição, mesmo que original, não deveria se afastar em demasia das concepções que “sedimentaram” desde os anos 50, e que têm contribuído para a elaboração de uma tradição filosófico-científica. Devemos procurar nos inserir nessa tradição. Do contrário nosso procedimento poderia ser gratuito e arbitrário. 5. É possível que várias definições satisfaçam simultaneamente a esses critérios. Nesse caso consideraremos que essas definições não são simples concepções da autoorganização, mas modalidades da auto-organização.

É, pois, nessa perspectiva que entendemos porque podemos utilizar a Teoria da Auto-Organização de Debrun para compreender os processos aqui estudados: os patamares do processo podem ser descritos axiomaticamente, enquanto não se pode axiomatizar o processo como um todo; porém, a existência de processos desse tipo, nos quais os estágios de desenvolvimento podem ser formalizados, permite-nos então elaborar categorias relativas à formação desses patamares, nas teorias de sistemas e nas teorias de auto-organização, que, retroativamente, nos possibilita compreender seu desenrolar. Essa perspectiva nos permite então esperar estreitas correlações entre as diversas teorias de auto-organização existentes na literatura. Porém, como a elaboração de categorias das teorias de auto-organização se dá na própria reflexão e exposição do autor (veja-se, por exemplo, os “macroconceitos” de Morin, 19771991, ou o conceito de “autopoiese” em Maturana &Varela, 1980), temos que um estudo das relações entre quaisquer teorias de auto-organização entre si, ou mesmo o estudo do processo  segundo qualquer outra teoria de auto-organização, pressupõe uma exposição detalhada do encadeamento das categorias originais de cada uma delas que, portanto, reservamos a trabalhos posteriores. Notemos, porém, que, como as teorias de auto-organização tratam inicialmente de uma classe comum de processos auto-organizados, as categorias elaboradas por diversas teorias têm que manter algo em comum, o que permitirá a compara-

10

47

ção e a possibilidade de elaboração de uma teoria síntese mais abrangente, que contenha os resultados das teorias comparadas. Vejamos apenas um exemplo de relação desses resultados a respeito do processo  com a Teoria de Auto-Organização de Atlan (1998, p.24). Sob a influência da teoria matemática da computabilidade, é geralmente assumido que tudo na natureza é ou computável ou aleatório. Esta assunção, conhecida pelo nome de tese física de Church-Turing (Davis, 1965), implica que sistemas verdadeiramente auto-organizados não poderiam existir na natureza. Ela está baseada sobre considerações sobre o poder das linguagens computacionais e suas equivalências ao que toca ao conjunto de seqüências computáveis. Aplicada ao mundo físico, esta tese afirma que tudo é computável, desde que tudo obedece a leis físicas que são computáveis. A única exceção pode ser os fenômenos aleatórios se admite-se que existe na natureza aleatoriedade irredutível. Entretanto, em dois livros provocativos, Penrose (1989, 1995) argumenta a favor da idéia de que a tese de Church-Turing não pode ser aplicada a todos fenômenos físicos por causa das limitações impostas pelo teorema de Gödel. Ele também salienta a distinção entre computar e entender para mostrar que o cérebro humano (e outros?) capaz de entender pode ser instância de tais sistemas físicos para os quais a tese de Church-Turing não se aplicam. Este trabalho é particularmente interessante porque não recorre a uma ontologia dualista na qual a mente sem nenhuma substância material não seria computável, contudo seria capaz de disparar ações e impor propriedades não-computáveis sobre os corpos materiais. Agora, é claro que se algo é programável, não pode ser dito ser verdadeiramente auto-organizado desde que sua organização é o efeito de um programa preexistente, em um sentido de fora, e independente, de sua própria existência. Este é o porquê instâncias das redes auto-organizadas analisadas acima não podem ser consideradas verdadeiramente auto-organizadas, mesmo ainda que sua estrutura e comportamento macroscópicos não possam ser preditos antes de serem computados por uma simulação computacional do modelo. Chamamos eles auto-organização em um sentido fraco ou mesmos forte, mas deixamos de lado a discussão sobre o que chamamos de auto-organização intencional. E claro agora que um sistema auto-organizado verdadeiramente não seria nem programável, nem aleatório. Sofisticação infinita fornece uma definição formal destes sistemas.

Damos, então, a seguir, uma pequena classificação das auto-organizações segundo Atlan, cujo propósito é esclarecer o significado dos termos empregados pelo autor (pp. 14, 15 e 23). O autor denomina auto-organização fraca aquela na 11

48

qual a meta a ser atingida – que define o significado da estrutura e operação da máquina – é imposta de fora; auto-organização forte, aquela na qual é reduzida ao máximo possível a geração de sentido externo ao sistema, como pela interpretação por observadores humanos, sendo ela uma propriedade que emerge da evolução da máquina mesma; e auto-organização verdadeira, aquela do sistema que tem sofisticação infinita, sendo a sofisticação de um objeto ou seqüência o mínimo comprimento de uma parte de programa na descrição mínima capaz de gerar este objeto ou seqüência, que, como Atlan mostra, acaba servindo como uma medida da complexidade significativa. Notemos, então, que objetos com sofisticação infinita têm a propriedade peculiar de não serem nem recursivos, i.e. programáveis, nem aleatórios. Neste caso, um “programa” que o descrevesse deveria ter um comprimento infinito. O processo  acima, e conseqüentemente o processo i também, seria então um exemplo de processo com sofisticação infinita. Com efeito, um programa que descrevesse o comportamento de , i.e., os diferentes valores para os diferentes argumentos, não poderia ter um comprimento finito, já que isto implicaria na existência de uma teoria axiomatizada na qual  seria representável, o que, como vimos, não é possível. Por outro lado, podemos conceber um “programa infinito” que determinasse o valor de : basta considerar o “programa infinito” composto dos comandos “se x = a então (x) = b”, para cada valor definido (a) = b de . Vemos assim como as categorias elaboradas nas teorias de auto-organização de Debrun e Atlan mantém aspectos comuns por tratarem de uma classe comum de processos auto-organizados, o que justamente motiva a esperança de elaboração de uma teoria síntese mais abrangente, que contenha os resultados das teorias comparadas. O que pode constituir um projeto para trabalhos futuros. Terminemos este trabalho nos permitindo tecer algumas reflexões e especulações em relação aos resultados obtidos, à Sistêmica e à Teoria da Auto-Organização. Vimos que os processos aqui estudados são processos de aprendizagem (cf., logo acima, a aplicação da definição de auto-organização secundária de Debrun 12

49

aos processos), ou ainda, de aquisição de conhecimento lógico-matemático, no qual há a determinação de certas verdades lógicas e matemáticas ou, podemos dizer que, por se tratar de seres humanos, há o reconhecimento dessas verdades lógicas e matemáticas. Temos então que os resultados a respeito do processo  de determinação de verdades aritméticas permitem supor a existência de um processo de reconhecimento não-algorítmico e, daí, a possibilidade de se diferenciar “reconhecer algoritmicamente” e “reconhecer não-algoritmicamente”. Analisemos este aspecto com maior detalhe. Inicialmente, podemos considerar  como um predicado de fórmulas, no sentido de que  classifica as fórmulas em válidas ou não-válidas no Modelo de Marcas. Como temos que a predicação que resulta da aplicação de  pode ser considerada um processo determinativo (na acepção da Observação 6.2.12), podemos, então, falar de predicados determinativos mecânicos (aqueles que seriam recursivos ou, ainda, recursivamente enumeráveis) e de predicados determinativos nãomecânicos, como no caso de . No caso da aplicação de predicados determinativos mecânicos falaremos de reconhecimento algorítmico e no caso da aplicação de predicados determinativos não-mecânicos falaremos de reconhecimento nãoalgorítmico. Notemos que, apesar de ser determinativo, esse processo não-mecânico não é completamente determinado, já que não há uma única lei ou razão da sua evolução. Com efeito, determinativo pressupõe uma determinação devido ao próprio processo, enquanto determinado indica uma determinação do próprio processo, o que parece não ser o caso aqui, pelo menos, não por uma única lei ou regra6. Observemos ainda que a existência de predicados determinativos não-mecânicos não contradiz a Tese/Definição de Church, pois, como vimos, o que se procura definir com a Tese/Definição de Church é a noção de calculabilidade como expressão de um processo mecânico, com procedimentos que possam ser formalmente descritos, e não processos que envolvam, por exemplo, aspectos criativos. Com 6

Evitamos o uso da palavra determinismo devido às diversas acepções que carrega e que

poderia mais obscurecer do que clarificar as propriedades do processo em questão. 13

50

efeito, notemos que, apesar de podermos considerar  como determinativo, não somos capazes de descrever formalmente o processo representado por . Apesar de diferenciarmos “reconhecer algoritmicamente” e “reconhecer nãoalgoritmicamente”, temos que ambos tipos de reconhecimento são relativos ao processo humano de reconhecimento, ao qual, por conter também o processo , podemos atribuir então as características análogas as características A1 e A2 descritas acima, ou seja: A1’. Não existem sistemas formais axiomatizados para descrever completamente o processo humano de reconhecimento; A2’. O processo humano de reconhecimento não pode ser simulado mecanicamente e, portanto, não pode ser realizado por um mecanismo. Mais ainda, na análise da Asserção 5.2.10, vimos que o que nos diferencia das máquinas é que a máquina não realiza o reconhecimento da validade da fórmula de Gödel e que esse reconhecimento pressupõe o reconhecimento da consistência do conjunto de fórmulas que reconhecemos como válidas no Modelo de Marcas, o que explicita a capacidade de auto-referência da compreensão humana, que a máquina não tem. Com efeito, vimos que a máquina “é incapaz de “reconhecer” que o conjunto  (das fórmulas que ela própria “reconhece” como válidas) é consistente !” Lembremos ainda que a auto-referencialidade que atribuímos à fórmula de Gödel tem por base a auto-referencialidade desse processo humano de reconhecimento (cf. Item 6 da Observação 6.3.2). Assim sendo, esse processo humano de reconhecimento pode voltar-se sobre si mesmo. Nesse sentido: 1. Abre-se espaço para a pesquisa desse processo com teorias em linguagens formais que permitam a auto-referência, o que pretendemos realizar em trabalhos futuros. 2. Parece que a análise dos significados dos termos das linguagens naturais e formais e a elaboração de categorias, como realizada nas teorias de auto-organi14

51

zação, são elas próprias o resultado de um processo humano auto-organizado de reconhecimento. 3. O que sugere uma determinação de si mesmo do processo humano de reconhecimento nessa aplicação de si sobre si mesmo; Haveria, portanto, uma capacidade autodeterminativa desse processo humano de reconhecimento que possui todas as características acima (A1, A2, B1, B2, B3 e B4), mas que, apesar disso, não é incompreensível. Haveria, pois, um processo humano de reconhecimento, auto-referente, autoorganizado, não-mecânico e autodeterminativo, que estaria por detrás dos processos aqui estudados de elaboração do conhecimento lógico e matemático e, por que não dizer, das elaborações das próprias teorias de auto-organização. Fica então a interrogação: como especificar mais esse processo humano de reconhecimento ? Que, talvez, possa ser substituída pela indagação: como reconhecer o que seja reconhecer ? E essa reformulação da questão já nos mostra a autoreferencialidade inerente à amplitude da noção de reconhecimento e que, junto com os resultados obtidos neste trabalho, motiva-nos a esperar que, em novos trabalhos, essa auto-referencialidade e identidade do processo de reconhecimento nos leve a um reconhecimento desse mesmo processo de reconhecimento, que, como vimos, não poderá ser esgotado em uma teoria formal axiomática ou em modelos mecânicos – o que parece impor a necessidade de novos conceitos autoreferentes, como alguns daqueles elaborados na Sistêmica e na Teoria de AutoOrganização.

Referências: ATLAN, Henri 1998. Intentional Self-organization. Emergence and Reduction: Towards a Physical Theory of Intentionality. Thesis Eleven. London: Sage, No 52, February 1998. pp. 5-34. BRESCIANI Fo, Ettore; D’OTTAVIANO, Ítala Maria Loffredo. Conceitos Básicos de Sistêmica. In: D’OTTAVIANO & GONZALES (ORGS.). Auto-Organização. Campinas: Unicamp, Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, 2002. (Coleção CLE, vol. 30) pp. 283-306.

15

52

DAVIS, Martin (ed.) 1965. The Undecidable: Basic Papers on Undecidable Propositions, Unsolvable Problems and Computable Functions. New York: Raven Press. DEBRUN, Michel 1996a. Por Que, Quando e Como é Possível Falar em Auto-Organização? In: Debrun, M.; Gonzales, M.E.Q.; Pessoa Jr, O. (orgs.) 1996, pp. xxxiii-xliii. 1996b. A idéia de Auto-Organização. I n : Debrun, M.; Gonzales, M.E.Q.; Pessoa Jr, O. (orgs.) 1996, pp. 3-23. 1996c. A Dinâmica da Auto-Organização Primária. In: Debrun, M.; Gonzales, M.E.Q.; Pessoa Jr, O. (orgs.) 1996, pp. 25-59. DEBRUN, Michel; GONZALES, Maria E.Q.; PESSOA JR., Oswaldo (orgs.) 1996. Auto-Organização: Estudos Interdisciplinares em Filosofia, Ciências Naturais e Humanas e Artes. Campinas: Unicamp, Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência. xliii-455 p. (Coleção CLE, vol. 18). GÖDEL, Kurt 1979[1931]. Acerca de Proposições Formalmente Indecidíveis nos Principia Mathematica e Sistemas Relacionados. In: Lourenço 1979, pp. 245-290. LOURENÇO, Manuel (org.) 1979. O Teorema de Gödel e a Hipótese do Contínuo. Antologia organizada, prefaciada e traduzida por Manuel Lourenço. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. xciv-900 p. LUCAS, John R. 1961 Minds, Machines and Gödel. Philosophy, XXXVI, pp.112-127; reimpresso em Sayre, Kenneth M. & Crosson, Frederick J. (eds), The Modeling of Mind, Notre Dame Press, 1963, pp. 269-270 e em Anderson, Alan R., Minds and Machines, Prentice-Hall, 1954, pp.43-59. Agora no site do autor: http://users.ox.ac.uk/~jrlucas/ index.html. MATURANA, Humberto & VARELA, Francisco 1980. Autopoiesis and Cognition: The Realization of the Living. Boston: Reidel. (Boston Studies in the Philosophy of Science 42). MORIN, Edgar 1987/1992[1977/1991]. O Método: vol. I – A Natureza da Natureza, 1987; vol. II – A Vida da Vida, 1987; vol. III – O Conhecimento do Conhecimento, 1987; vol. IV – As Idéias: A Sua Natureza, Vida, Habitat e Organização, 1992. Lisboa: Europa-América. Tradução de La Méthode: I. La Nature de la Nature, 1977; II: La Vie de la Vie, 1980; III: La Connaissance de la Connaissance, 1986; IV: Les Idées - leur Habitat, leur Vie, leurs Moeurs, leur Organization, 1991. Paris: Seuil. PENROSE, Roger 1989. The Emperor’s New Mind: Concerning Computers, Minds and Laws of Physics. Oxford: Oxford University Press. 1995. Shadows of the Mind: a Search for the Missing Science of Consciousness. Oxford: Oxford University Press. TASSINARI, Ricardo Pereira. Incompletude e Auto-Organização: Sobre a Determinação de Verdades Lógicas e Matemáticas. Campinas, SP: UNICAMP/IFCH, 2003. Tese de Doutorado orientada por Ítala Maria Loffredo D’Ottaviano.

16

53

Marília, 28 de fevereiro de 2007. _______________________ Assinatura do Docente

17

54

A LÓGICA E AS LÓGICAS: SOBRE A NOÇÃO DE SISTEMA FORMAL E O PRINCÍPIO DA LIBERDADE LÓGICA1

Ricardo Pereira Tassinari Itala M. Loffredo D’Ottaviano

INTRODUÇÃO: A NOÇÃO DE SISTEMA FORMAL

De forma geral e resumida, para tratarmos da noção de

sistema formal, a Lógica pode ser definida como o estudo das formas dos argumentos válidos.

Lembremos que um argumento, que parte de certas asserções (chamadas de premissas do argumento) e chega a uma asserção final (chamada de conclusão do argumento), é válido (por definição), se a conclusão segue necessariamente das premissas. Em sentido amplo, essa é a própria definição de silogismo dada por Aristóteles (2005, p. 347): 1

Apoio FAPESP.

153

55

Gonzalez, M. E. Q.; Broens, M. C.; Martins, C. Ap.(Org.)

O silogismo é um discurso argumentativo no qual, uma vez formuladas certas coisas [as premissas], alguma coisa distinta destas coisas [a conclusão] resulta necessariamente através delas pura e simplesmente.2 Podemos dizer, ainda de forma geral, que explicitar esse “necessariamente”, ou mais exatamente, a necessidade lógica (por vezes denominada de inferência válida ou inferência lógica), foi, e continua sendo, um dos principais objetivos da Lógica. Além disso, a partir de uma caracterização da necessidade lógica, estudamos também, na Lógica, os sistemas axiomáticos, que servem à sistematização de uma área do conhecimento na qual necessitamos de deduções e demonstrações. Vejamos então o que vem a ser o sistema axiomático a partir de algumas definições introduzidas informalmente para depois mostrar uma caracterização formal das mesmas. Em geral, assumimos que uma dedução de uma asserção (chamada de conclusão da dedução) a partir de outras asserções (chamadas de premissas da dedução) é um argumento válido (sendo as premissas e conclusão da dedução, respectivamente, as premissas e conclusão do argumento). Na sistematização de uma área do conhecimento, como as deduções sempre se apóiam em asserções anteriores, devemos aceitar determinadas asserções como primeiras para não cairmos em um regresso infinito; essas primeiras asserções, que aceitamos sem delas ter uma dedução, são chamadas de axiomas. A partir dos axiomas, regras de inferência estabelecem então como passar de uma asserção à outra, em deduções e demonstrações, gerando asserções chamadas de teoremas. Notemos que as regras de inferência também são argumentos válidos. Uma demonstração de uma asserção (ou seja, de um teorema) é uma dedução dessa mesma asserção a partir apenas dos axiomas. Assim, axiomas, deduções, demonstrações e teoremas são partes integrantes dos sistemas axiomáticos estudados pela Lógica. Contemporaneamente, para o estudo da forma dos argumentos válidos e dos sistemas axiomáticos, elaborou-se um recurso de análise, 2

Tópicos I.1.100a 25, cf. também Analíticos Anteriores I.1.24b e Refutações Sofísticas 1.165a.1

154

56 Informação, conhecimento e ação ética

denominado sistema formal (ou teoria formal). Essa noção nasce propriamente, na Filosofia da Lógica e da Matemática, com a corrente formalista, que toma como um de seus objetos de estudos os sistemas de operações3 sobre signos gráficos4. Notemos que a corrente formalista referida aqui tem em David Hilbert seu principal representante e se constitui, principalmente, a partir de reflexões sobre as grandes sistematizações da Lógica, como os trabalhos de Johann Gottlob Frege (dentre eles, Conceitografia: uma Linguagem de Fórmulas dos Pensamentos Puros Copiada da Aritmética, de 1879, e Leis Fundamentais da Aritmética: Exposição do Sistema, de 1893-1903) e de Alfred North Whitehead e Bertrand Arthur William Russell (Principia Mathematica, em 3 volumes, publicados entre 1910-1913)5. Podemos dizer que um sistema formal é a parte sintática de um sistema axiomático. Com efeito, um sistema de signos e de operações sobre eles possui tanto uma parte semântica (relativa aos significados dos signos) como uma parte sintática (que aqui será considerada como as marcas no papel usadas para representar os significados6). Nesse sentido, as operações sobre a parte sintática dos signos representam operações sobre a parte semântica dos signos. A idéia é então estudarmos as relações e operações semânticas a partir das relações e operações sintáticas dos signos. A vantagem desse estudo é a de substituir elementos abstratos e invisíveis por outros elementos concretos e visíveis7 e, a partir daí, definir, de forma mais rigorosa, noções lógicas como as de dedução, consequência sintática, demonstração e teorema. Passemos então a uma definição geral de sistema formal.

Ao leitor mais especializado na área, observamos que o termo operação, neste trabalho, designa uma função matemática parcial; i.e., uma função f que associa, a cada elemento (ou lista de elementos) de um domínio D, para o qual f está definida, um elemento de D, podendo não estar definida para todo elemento (ou lista de elementos) de D. 3

4

Cf. Bocheński (1966, p. 299, 306-307).

5

Cf. Kneale, W. e Kneale, M. (1962, p. 697) e Bocheński (1966, p. 299).

Distinguem-se, relativamente à parte sintática de um signo, tipo e ocorrência (em Inglês, type e token). Por exemplo, para um mesmo tipo “u” podemos ter várias ocorrências, como no caso da palavra “Curupira”. Podemos então operar sobre os tipos operando sobre as ocorrências.

6

7

Cf. Frege (1983) e Shoenfield (1967, p.2).

155

57

Gonzalez, M. E. Q.; Broens, M. C.; Martins, C. Ap.(Org.)

Definição 1: Um sistema formal (ou teoria formal) se constitui dos seguintes elementos. 1. Um conjunto de signos, chamado de alfabeto do sistema formal. Dado o alfabeto do sistema formal, podemos definir seu conjunto de expressões, sendo que uma expressão do sistema formal é qualquer sequência finita de signos do alfabeto. 2. Um subconjunto do conjunto de expressões do sistema formal, cujos elementos são denominados de fórmulas-bem-formadas do sistema formal ou, simplesmente, de fórmulas do sistema formal (a linguagem do sistema formal constitui-se então do alfabeto e das fórmulas do sistema formal). 3. Um subconjunto do conjunto de fórmulas do sistema formal, cujos elementos são denominados de axiomas do sistema formal. 4. Um conjunto de relações entre fórmulas do sistema formal, que são chamadas de regras de inferência do sistema formal (as premissas ou hipóteses da regra de inferência são as fórmulas às quais se aplica a regra para, a partir delas, obter-se uma nova fórmula, chamada de conclusão, ou consequência imediata, da regra de inferência)8. Em um sistema formal, os axiomas são, usualmente, classificados em axiomas lógicos e axiomas não-lógicos, que correspondem, respectivamente, na Lógica Tradicional9, aos axiomas e postulados de uma teoria10, distinção essa que remonta ao próprio Aristóteles11. Podemos dizer, em poucas palavras, que os axiomas lógicos são “as verdades da Lógica”, enquanto os axiomas nãológicos são “as verdades do domínio particular estudado”. Dados os elementos de um sistema formal S, podemos então definir, rigorosamente, as noções de demonstração, teorema, dedução e consequência sintática. Terminemos esta seção introduzindo estas definições. 8 Notemos que as regras de inferência são operações sobre fórmulas (no sentido empregado na Nota 1) e, consequentemente, operações sobre signos (pois, estamos considerando que uma expressão, isto é, uma sequência de signos, ainda é um signo). 9 Usaremos, como se faz habitualmente, o termo Lógica Tradicional para designar a teoria lógica de Aristóteles (principalmente a teoria dos silogismos) e suas posteriores sistematizações. 10

Cf. Eves (2004, p. 179).

11

Cf. Aristóteles (Analíticos Posteriores 72a, 2005, p.255).

156

58 Informação, conhecimento e ação ética

Definição 2: Uma demonstração de uma fórmula B em um sistema formal S é uma sequência de fórmulas F1, ..., Fn do sistema formal tal que: 1. Cada uma das Fi (1 ≤ i ≤ n): a) ou é um axioma do sistema formal S; b) ou é uma consequência imediata de alguma regra de inferência de S a partir de fórmulas anteriores na sequência; 2. Fn é a própria fórmula B. Definição 3: Um teorema do sistema formal S é qualquer fórmula para a qual existe uma demonstração em S. Definição 4: Uma dedução, no sistema formal S, de uma fórmula B (chamada de conclusão da dedução) a partir de um conjunto de fórmulas de S (chamadas de premissas ou hipóteses da dedução) é uma sequência de fórmulas F1, ..., Fn de S tal que: 1. Cada uma das Fi (1 ≤ i ≤ n): a) ou é uma fórmula de ; b) ou é um axioma do sistema formal S; c) ou é uma consequência imediata de alguma regra de inferência de S a partir de fórmulas anteriores da sequência; 2. Fn é a própria fórmula B. Definição 5: Em um sistema formal S, uma fórmula B é uma consequência sintática, de um conjunto de fórmulas de S se, e somente se, existe uma dedução de B, em S, a partir de . Em geral, escrevemos: S

B

157

59

Gonzalez, M. E. Q.; Broens, M. C.; Martins, C. Ap.(Org.)

para denotar a existência de uma dedução, em S, da fórmula B a partir das fórmulas do conjunto de fórmulas; S

para denotar a existência de uma dedução, em S, da fórmula C a partir da fórmula B e das fórmulas do conjunto de fórmulas; e S

para denotar que B é teorema de S (a idéia aqui é que a demonstração é um caso particular da dedução, uma dedução a partir de um conjunto vazio de premissas, e que S B denota que existe uma demonstração para B, ou seja, B é teorema de S)12. LÓGICA CONTEMPORÂNEA: A LÓGICA E AS LÓGICAS Introduzidas as definições de sistema formal, demonstração, teorema, dedução e consequência sintática em um sistema formal, podemos, então, discutir o papel dos sistemas formais na Lógica Contemporânea e sua relação com alguns usos do termo “lógica”. Como vimos, em geral, em um sistema formal ou teoria formal, os axiomas são divididos em axiomas lógicos e axiomas não-lógicos, sendo que os axiomas não-lógicos dizem respeito ao domínio específico do conhecimento que sistematizamos com a teoria. No caso de não termos axiomas não-lógicos, todos os axiomas do sistema formal são axiomas lógicos, o que significa que esses axiomas, juntamente com as regras de inferência, regulam as inferências válidas (demonstrações e deduções) e determinam as proposições demonstráveis (os teoremas) e, portanto, definem formalmente a lógica estudada. Assim, a noção de sistema formal permite introduzir uma primeira acepção usual do termo “lógica”:

Notemos que, como as regras de inferência são operações sobre signos (confira Nota 6 acima), a demonstração e a dedução podem ser consideradas ainda operações sobre signos (que partem das premissas e dos axiomas e resultam, respectivamente, em teoremas e consequências sintáticas); o signo “ S”, usado nos três casos acima, denota então a possibilidade de realização dessas operações. 12

158

60 Informação, conhecimento e ação ética

Uma lógica, em sentido estrito, é um sistema formal Com efeito, tanto Frege quanto Russell, nas obras citadas na seção anterior, propuseram sistemas formais que pretendiam sistematizar o conhecimento lógico e, também, parte do conhecimento matemático13. Já na Conceitografia (Begriffsschrift) de Frege, que exibe um sistema sintático que representa operações semânticas válidas realizadas na Lógica, podemos encontrar a crença de que a Lógica se deixaria expressar por um único sistema formal14. Mas a questão da existência de um único sistema formal para a Lógica se apresentou mais complexa do que parecia à primeira vista, como mostrará o desenvolvimento histórico posterior da Lógica. Comentemos, então, a questão dos princípios lógicos, que nos sistemas formais são expressos pelos axiomas lógicos. Na Lógica Tradicional, uma das exigências que se fazia em relação aos seus axiomas lógicos é que esses fossem auto-evidentes15. Dessa forma, os axiomas seriam imediatamente aceitos por qualquer um e não precisariam de demonstrações, o que evitaria uma regressão ao infinito para justificálos, e garantiriam a veracidade das proposições apoiadas sobre eles. Porém, o critério para se determinar o que é ou não auto-evidente foi sofrendo uma extensão que, aos poucos, foi descaracterizando-o. Um momento importante dessa descaracterização foi o da descoberta, por Bertrand Russell, da possibilidade de derivação de uma contradição no Leis Fundamentais da Aritmética: Exposição do Sistema de Frege16. Frege, em um Postscriptum ao segundo volume da obra17, reconhece a existência do problema e expõe um outro paradoxo que ficará conhecido, posteriormente, como o Paradoxo de Russell (mas que, na verdade, é diferente daquele que Russel relata em sua carta). Expomos, a seguir, o Paradoxo de Russel em uma versão contemporânea. Ambos são considerados, na Filosofia da Lógica e da Matemática, representantes da corrente logicista, justamente por acreditar que conhecimentos matemáticos fundamentais (e.g. da Aritmética) poderiam ser deduzidos das sistematizações da Lógica propostas por eles.

13

Podemos encontrar raízes dessa concepção na lingua characteristica universalis e no calculus ratiocinator de Leibniz. (Cf. Granger (1955), Blanché (1985), Kneale, W. e Kneale, M. (1962)).

14

15

Cf. Aristóteles (2005, p. 254-255).

16

A tradução da carta em que Russell comunica a Frege sua descoberta pode ser encontrada em Carta... (2012).

17

Cf. Kneale, W. e Kneale, M. (1962, p. 659-660).

159

61

Gonzalez, M. E. Q.; Broens, M. C.; Martins, C. Ap.(Org.)

Parece auto-evidente que podemos assumir que a todo predicado está associada sua extensão, isto é, a classe dos objetos que o satisfazem. Assim, por exemplo, ao predicado “homem” está associada a classe dos homens. Vamos chamar tal classe de H. Por outro lado, temos que a classe dos homens não é um homem e, assim, a classe dos homens não pertence a si própria, ou seja, em uma notação contemporânea, H H. Podemos então considerar o predicado “classe que não pertence a si própria” que, em notação contemporânea, pode ser expresso pela fórmula “x x”, ou seja, a classe x não pertence a x. Vamos chamar de R (em homenagem a Russell) a seguinte classe: R = {x | x x}. Ou seja, R é a classe de todas as classes que não pertencem a si próprias. Podemos agora perguntar: R é uma classe que pertence a si própria, ou seja, R R? Ora, um elemento x pertence a R se, e somente se, não pertence a si próprio, ou seja, x x; em signos: x R

x x

A resposta a nossa pergunta é então: R R

R R

o que é uma contradição! Portanto, não é verdadeiro que a todo predicado está associada sua extensão, contrariando a aparência de auto-evidência evocada para justificar esse princípio. A partir daí, como nos diz Haack (2002, p.36, grifo do autor): A resposta de Frege à descoberta da inconsistência foi admitir que ele nunca tinha realmente pensado que o axioma relevante fosse tão autoevidente quanto os outros – um comentário que bem pode levar a um saudável ceticismo a respeito do conceito de auto-evidência.

Se a auto-evidência dos princípios assumidos foi se mostrando cada vez mais fraca e, também, difícil de ser caracterizada, por outro lado, a partir da meta-reflexão a respeito dos sistemas lógicos percebeu-se a possibilidade de se assumir outros princípios lógicos.

160

62 Informação, conhecimento e ação ética

Com efeito, se podemos por em questão certos princípios, é porque eles não se mostram como necessários – “necessário” equivalendo a “não é possível ser de outra forma”. E como um princípio (axioma) não pode ser demonstrado (pois, se o fosse, não seria verdadeiramente um “princípio”), neste caso, só resta uma argumentação retórica para justificálo. Aí começa a possibilidade de se ter diversos sistemas formais e, a partir daí, diversas lógicas18. Para citar um exemplo, consideremos um dos princípios basilares da Lógica Clássica, o Princípio da Não-Contradição, segundo o qual nenhuma proposição pode ser, ao mesmo tempo, verdadeira e falsa. Notemos que este princípio não pode ser demonstrado, por se tratar de um princípio. Notemos ainda que um princípio lógico deve se aplicar à totalidade das proposições e basta que se admita apenas um caso em que o princípio não valha, para que, portanto, ele deixe de ser um princípio. No caso do Princípio da Não-Contradição, se admitirmos de fato que há uma proposição que é verdadeira e falsa ao mesmo tempo, como por exemplo, o Paradoxo do Mentiroso19, então, o Princípio da Não-Contradição deixa de valer para nós. Neste caso, deixam de valer algumas regras de inferência da Lógica Clássica, derivadas, como por exemplo, que de uma contradição tudo segue (que tem o belo nome latino ad falsum quod libitum ou, também, ex contradictio sequitur quodlibet). A partir daí, podemos elaborar sistemas em que a existência de contradições não torne os sistemas triviais, que são exatamente os sistemas chamados de paraconsistentes20. Mais ainda, como a linguagem do sistema formal é artificial e convencional, a aceitabilidade dos axiomas e das regras de inferência depende também da interpretação de cada um dos signos21, ou seja, do que 18 Para uma introdução a História da Lógica e o surgimento das lógicas não-clássicas, consulte D’Ottaviano e Feitosa, 2003.

De forma resumida podemos explicar a admissão da existência do Paradoxo do Mentiroso da seguinte forma: seja “Paradoxo do Mentiroso” o nome dado à sentença “O Paradoxo de Mentiroso é falso”. Admitimos então que essa sentença existe, já que a estamos exibindo, e que ela expressa uma proposição que é exatamente sua própria negação. Uma rápida análise nos mostra então que o Paradoxo do Mentiroso é verdadeiro se, e somente se, é falso, o que é uma contradição. Assim, se assumimos que o Paradoxo do Mentiroso existe e expressa sua negação, assumimos que existe uma contradição. 19

20 Notemos que a paraconsistência nos permite admitir a existência do Paradoxo do Mentiroso sem que da existência dessa contradição infiramos que tudo pode ocorrer, pela regra do ad falsum quod libitum; na visão dos autores, é uma expressão de paraconsistência na metalinguagem. 21

Cf. Haack (2002, p. 60).

161

63

Gonzalez, M. E. Q.; Broens, M. C.; Martins, C. Ap.(Org.)

chamamos semântica do sistema formal. Daí a dificuldade ainda maior em se estabelecer um único sistema formal que expressaria toda a Lógica. Por exemplo, usualmente, o signo “ ” é utilizado para indicar a conjunção de duas proposições, isto é, que duas proposições tem que ser verdadeiras simultaneamente. Assim, se temos as sentenças B e C tais que: “O homem é racional” “O homem é mortal” A fórmula “B C” é lida como “O homem é racional e mortal”. Uma das regras da Lógica Clássica é que, da premissa “B C”, podemos inferir “C B”. No caso, do exemplo acima, ela significa que, da premissa “O homem é racional e mortal”, podemos concluir que “O homem é mortal e racional”. Entretanto, podemos considerar que a conjunção deva representar também uma ordem temporal, como no caso em que: B

“O homem vive”

C

“O homem morre”

Neste caso, não podemos, da premissa “B C”, inferir “C B”, ou seja, não podemos da premissa “O homem vive e morre”, inferir que “O homem morre e vive”. Essas duas interpretações da conjunção “ ” nos permitem então ver como a aceitabilidade dos axiomas e das regras de inferência dependerá da semântica estabelecida para ela e, portanto, da semântica do sistema formal. Com a possibilidade de existir mais de um sistema formal que expresse inferências válidas e, portanto, várias formas de pensar, a Lógica passa, então, a ser um campo de estudo dos diversos sistemas formais (lógicas e teorias construídas sobre elas), seus pressupostos e consequências, bem como das semânticas a eles associadas. Nesse sentido, podemos estabelecer uma segunda acepção do termo “lógica”, que designaremos pelo substantivo próprio “Lógica”:

162

64 Informação, conhecimento e ação ética

A Lógica, em sentido amplo, é uma disciplina, uma ciência, um ramo do saber, na qual se estuda diversos sistemas formais, e não se constitui, necessariamente, em apenas um sistema formal. E, por isso, em Lógica, estudamos lógicas. Por fim, identificamos, na literatura sobre Lógica, uma terceira acepção do termo “lógica”, que também é usual: O termo “lógica”, como, por exemplo, em “Lógica Modal”, é empregado para indicar uma sub-área da Lógica, na qual se estuda algumas noções conexas à Lógica e alguns sistemas formais a elas relacionados. Vemos então como o movimento histórico de análise dos elementos da Lógica levou a mudanças fundamentais na área; não apenas criando uma nova terminologia, na qual o próprio termo “lógica” recebe diferentes acepções (vimos aqui, sem pretender sermos exaustivos, três acepções usadas), mas também e principalmente modificando nossa própria forma de entender o que é a Lógica22. A LIBERDADE LÓGICA E SEU PRINCÍPIO Como entender então esse panorama de evolução da Lógica? Em uma primeira aproximação, podemos dizer que, na investigação lógica, o pensar, pensando sobre si mesmo, busca regras gerais subjacentes às suas inferências particulares, buscando estabelecer as leis lógicas. Também podemos dizer que os axiomas lógicos e regras de inferência de um sistema formal são princípios que expressam essas leis lógicas. Esses princípios não são demonstráveis (pois são “princípios”) e necessitam de critérios para serem estabelecidos. Em especial, na Lógica Tradicional, o principal critério é o da auto-evidência. Entretanto, a auto-evidência dos princípios assumidos foi se mostrando cada vez mais fraca e, nesse sentido, cada vez mais difícil de ser caracterizada. Na meta-reflexão a respeito dos sistemas lógicos, percebeu-se a possibilidade de assumir outros princípios lógicos. Conjuntamente a essa possibilidade, como a linguagem do sistema formal é artificial e convencional, a aceitabilidade dos axiomas e das regras Sobre os fundamentos da Lógica assim concebida, recomendamos a leitura do livro Ensaio sobre os Fundamentos da Lógica do eminente lógico brasileiro Newton da Costa (DA COSTA, 1994).

22

163

65

Gonzalez, M. E. Q.; Broens, M. C.; Martins, C. Ap.(Org.)

de inferência depende também da interpretação de cada um dos signos, da semântica do sistema formal. Esse cenário mostrou a impossibilidade de se estabelecer um único sistema formal que expressaria, de forma unânime, toda a Lógica. Ora, na medida em que não é possível estabelecer um único sistema formal que expresse toda a Lógica, vários sistemas são possíveis. Porém, para que um sistema formal seja efetivamente regulador de nossas inferências, todas as inferências realizadas devem estar no sistema formal (devem ser demonstrações e deduções possíveis de serem representadas no sistema formal). Nesse sentido, propomos então a seguinte interpretação: 1. podemos dizer que leis lógicas são leis que o pensamento estabelece a si próprio; 2. mas, na medida em que ele “estabelece a si” essas leis e pode manterse efetivamente dentro delas, então, elas se tornam, efetivamente, leis para o pensamento; 3. nesse sentido, existe o que podemos chamar de autodeterminação do pensamento; e 4. logo, não se pode restringir, necessariamente, a forma lógica do pensamento em geral àquela de um cálculo lógico particular qualquer. Nesse sentido, a auto-referencialidade dos conceitos e regras do pensamento é auto-instauradora23 e permite estabelecer mais de uma lógica para o pensamento em geral. Denominamos essa interpretação ou esse factum, para usar a terminologia de Granger24, de Liberdade Lógica e o princípio que afirma existir a Liberdade Lógica de Princípio da Liberdade Lógica. Nossa posição pode ser interpretada, segundo as categorias estabelecidas por Haack (1998, p. 291-292), como sendo um caso de pluralismo global; aqui pluralismo significa que “há mais de um sistema lógico correto” e global significa que 23 Com efeito, nesse caso, a autodeterminação de um sistema lógico pelo e para o pensamento é um caso particular da auto-instauração da realidade por um conhecimento filosófico tal como exposto em Tassinari, 2007, p. 240-242. 24

Cf. Granger (1989, p. 264, 275) e Tassinari (2007, p. 242).

164

66 Informação, conhecimento e ação ética

[…] princípios lógicos deveriam valer independentemente do assunto. Contudo [...] nega[mos] ou que os lógicos clássico e alternativo estejam realmente usando “válido”/“logicamente verdadeiro” no mesmo sentido, ou então que eles estejam realmente discordando sobre um e o mesmo argumento.

Com relação a não se poder restringir a forma do pensamento à de um sistema axiomático25, notemos que não há um sistema axiomático completo já para o Cálculo de Predicados de Segunda Ordem26 (e também para os de ordem superior, que ainda seguem princípios da Lógica Clássica, como o Princípio da Não-Contradição e o Princípio do Terceiro Excluído). Mas, o que o Princípio da Liberdade Lógica afirma é bem mais que isso. Com efeito, o Princípio da Liberdade Lógica se expressa, em relação à constituição de sistemas formais, da seguinte forma: a escolha da linguagem estabelece o conjunto de fórmulas possíveis e esse conjunto já pode ser interpretado como um sistema formal, chamado, em geral, de trivial; a partir desse conjunto, temos então vários subconjuntos que, desde que tenhamos regras que permitam defini-los, essas regras também definem um sistema formal, uma lógica; podemos, a partir daí, estabelecer, para nós, que nosso pensar siga um desses sistemas formais; e, se, de fato, podemos nos manter dentro dessas regras, o sistema formal escolhido estabelece uma forma possível para o pensamento. É, portanto, a possibilidade de nos mantermos dentro das regras estabelecidas por uma lógica (sistema formal) que faz dela uma lógica possível. CONCLUSÃO Em resumo, podemos então considerar a Lógica como o estudo das diversas formas de expressão das leis do pensamento, enquanto livre pensamento, i.e., daquele que pode dar as suas regras e torná-las efetivas. Ou ainda, na medida em que essa liberdade se estabelece pelo pensamento que se pensa a si próprio, enquanto meta-reflexão, a Lógica é o estudo das próprias formas do (auto)pensamento livre. 25

Em termos mais técnicos o termo “sistema axiomático” indica “sistema formal recursivamente axiomatizável”.

26

Cf. Mendelson, 1997, p. 376.

165

67

Gonzalez, M. E. Q.; Broens, M. C.; Martins, C. Ap.(Org.)

Vemos assim, porque, nesse estudo, tornou-se importante e uma tarefa quase que obrigatória a um lógico contemporâneo que propõe uma nova lógica, não apenas determinar se um sistema formal S proposto é decidível – i.e., se, para toda fórmula F, existe um método efetivo (algoritmo) para decidir se F é ou não um teorema de S –, mas também determinar o quanto S “cobre” do campo semântico que sistematiza, ou seja: estudar o que se chama usualmente de correção e de completude do sistema formal S em relação a uma semântica para S27. Podemos, então, dizer que a Lógica se nutre dos diversos resultados sobre os sistemas formais. E, enquanto o estudo do autopensamento livre, a Lógica se torna cumulativa e descobridora de suas próprias formas28. Notemos que essa concepção não está necessariamente em contradição com uma concepção platônica, usual na Lógica e na Matemática, da existência atual de um universo das formas (possíveis). Com efeito, nesse universo encontramos, também, as diversas formas dos sistemas formais e, portanto, as diversas formas do autopensamento estudadas pela Lógica; e o Princípio da Liberdade Lógica ainda se mantém válido na medida em que, apesar de se encontrarem no universo das formas possíveis, essas formas seriam aquelas do autopensamento, que ele explicita para si através de suas próprias escolhas. Por último, podemos dizer que a Lógica enquanto disciplina caminhou, em seu movimento histórico, desde Aristóteles até o período contemporâneo, no sentido de se descobrir como estudo das formas válidas do autopensamento livre, ou seja, de efetivar e descobrir o Princípio da Liberdade Lógica.

Para introduzir aqui as definições de correção e completude, podemos dizer, de forma bem geral e abstrata, que estabelecer uma semântica para um sistema formal S significa definir uma propriedade P para as fórmulas de S. Denotaremos, nesse caso, essa semântica por SP. Por exemplo, no caso da Lógica Proposicional Clássica, a propriedade P é ser uma tautologia, i.e., ser verdadeira em todos os casos possíveis de veracidade e falsidade das proposições atômicas que compõe a fórmula e, no caso da Lógica de Primeira Ordem, a propriedade é ser válida. Temos, então, as seguintes definições. Definição. Um sistema formal S é correto, em relação a uma semântica SP, se todo e qualquer teorema de S tem a propriedade P. Definição. Um sistema formal S é completo, em relação a uma semântica SP, se toda e qualquer fórmula de S que tem a propriedade P é teorema de S. 27

Podemos aqui identificar diferentes tipos de processos auto-organizados, porém reservamos para outros trabalhos a discussão mais detalhada desse tópico. Para uma discussão sobre Lógica e Auto-Organização, cf. Tassinari (2003). 28

166

68 Informação, conhecimento e ação ética

REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Órganon: categorias, da interpretação, analíticos anteriores, analíticos posteriores, tópicos, refutações sofísticas. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2005. BLANCHÉ, R. História da lógica de Aristóteles a Bertrand Russell. Trad. de António J. P. Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1985. BLANCHÉ R.; DUBUCS, J. História da Lógica. Lisboa: Edições 70, 1996. BOCHEŃSKI, I. M. Historia de la lógica formal. Trad. de Millán Bravo Lozano. Madri: Gredos, 1966. CARTA de Frege para Russell. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2012. DA COSTA, N. C. A. Ensaio sobre os fundamentos da lógica. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1994. D’OTTAVIANO, I. M. L.; FEITOSA, H. de A. Sobre a história da lógica, a lógica clássica e o surgimento das lógicas não-clássicas. 2003. Disponível em: Disponível em: . Acesso em: 12/12/12. EVES, H. Introdução à história da matemática. Trad. de Higyno H. Domingues Campinas: Ed. da Unicamp, 2004. FREGE, G. Sobre a justificação científica de uma conceitografia. In: PEIRCE, C. S.; FREGE, G. Escritos coligidos, Sobre a justificação científica de uma conceitografia, Os fundamentos da aritmética. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores, 3ª ed.) p. 177-276 ______. Grundgesetze der Arithmetik, begriffsschiftlich abgeleitet. Iena: Pohle, 1903. v.2. ______. Grundgesetze der Arithmetik, begriffsschiftlich abgeleitet. Iena: Pohle, 1893. v.1. ______. Begriffsschift, eine der arithmetischen nachgebildete Formelsprache des reinen Denkens. Halle: Nebert, 1869. GRANGER, G.-G. Por um conhecimento filosófico. Trad. de Constança Marcondes Cesar e Lucy Moreira César. Campinas: Papirus, 1989. ______. Lógica e filosofia das ciências. São Paulo: Melhoramentos, 1955. KNEALE, W.; K., M. O desenvolvimento da lógica. Trad. de M. S. Lourenço. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1962. MENDELSON, E. Introduction to mathematical logic. 4. ed. London: Chapman & Hall, 1997. HAACK, S. Filosofia das lógicas. Trad. de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique Araújo Dutra. São Paulo: Ed. da Unesp, 2002.

167

69

Gonzalez, M. E. Q.; Broens, M. C.; Martins, C. Ap.(Org.)

SHOENFIELD, J. R. Mathematical logic. Boston: Addison-Wesley, 1967. (AddisonWesley Series in Logic). TASSINARI, R. Ciência cognitiva: ciência ou filosofia? In: BROENS, M. C.; COELHO, J. G.; GONZALEZ M. E. Q. Encontro com as ciências cognitivas. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2007. (Encontro com as Ciências Cognitivas, 5). ______. Incompletude e auto-organização: sobre a determinação de verdades lógicas e matemáticas. 2003. 238 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003.

168

70

71

Parte III – Gilles-Gaston Granger

72

Filosofia COLEÇÃO TEMAS DE FORMAÇÃO VOLUME 1

COORDENADORES Lúcio Lourenço Prado Klaus Schlünzen Junior Elisa Tomoe Moriya Schlünzen AUTORES André Leclerc Antonio Trajano Menezes Arruda Jézio Hernani Bonfim Gutierre Lúcio Lourenço Prado Márcio Benchimol Barros Maria Eunice Quilici Gonzalez Mariana Claudia Broens Reinaldo Sampaio Pereira Ricardo Monteagudo Ricardo Pereira Tassinari

73

© BY UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Pró-Reitoria de Pós-Graduação – UNESP Rua Quirino de Andrade, 215 CEP 01049-010 – São Paulo – SP Tel.: (11) 5627-0561 www.unesp.br NEaD – Núcleo de Educação a Distância – UNESP Rua Dom Luís Lasagna, 400 - Ipiranga CEP 04266-030 - São Paulo/SP Tel.: (11) 2274-4191 www.unesp.br/nead/

F488

Filosofia [recurso eletrônico] / Lúcio Lourenço Prado, Klaus Schlünzen Junior [e] Elisa Tomoe Moriya Schlünzen (Organizadores). – São Paulo : Cultura Acadêmica : Universidade Estadual Paulista ; Núcleo de Educação a Distância, [2013]. – (Coleção Temas de Formação; v. 1) Requisitos do sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web Acesso em: www.acervodigital.unesp.br Textos provenientes do Programa Rede São Paulo de Formação Docente (Redefor) Resumo: Trata de aperfeiçoamento da formação em Filosofia de docentes da rede pública estadual de ensino para ministrarem a disciplina no Ensino Fundamental II e Ensino Médio. Acessibilidade: Videos com libras e legendas. ISBN

1. Filosofia – Estudo e Ensino. 2. Professores – Educação Continuada. I. Prado, Lúcio Lourenço. II. Schlünzen Junior, Klaus. III. Schlünzen, Elisa Tomoe Moriya. IV. Universidade Estadual Paulista. Núcleo de Educação a Distância da Unesp. CDD 107

Todos os direitos reservados. De acordo a Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998).

74

387

Capítulo 31 A ciência contemporânea e a noção de modelo

S

abemos da importância que a ciência contemporânea adquiriu em nossas vidas e que, por isso, vários pensadores se debruçaram sobre a tarefa de exibir critérios que permitam determinar se um conhecimento é ou não científico. Certamente, ao exibirmos critérios para caracterizar o conhecimento científico, estamos prescrevendo como a ciência deve ou não ser feita. Mas como determinar esses critérios? Dentre as diversas maneiras de se determinar tais critérios, podemos considerar a oposição entre aquelas que são meramente prescritivas e as que são descritivas, isto é, as que realizam uma análise da forma geral do conhecimento científico para, a partir daí, chegar a um critério geral do que deve ser e do que não deve ser considerado como ciência. Dentre os filósofos da ciência que tem uma atitude descritiva, em oposição a uma atitude meramente prescritiva, encontra-se o filósofo francês Gilles Gaston Granger (1920-). Granger tem uma forte ligação com a formação do pensamento filosófico no Brasil e com seu desenvolvimento posterior, pois foi um dos professores franceses enviados pelos Serviços Culturais da Embaixada da França no Brasil para exercer uma das cátedras do Curso de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), função que exerceu de 1947 a 1951. De 1986 a 1991, foi professor da cadeira de Epistemologia Comparativa no Collège de France, uma das mais prestigiadas instituições de ensino e pesquisa da França, tendo se tornado professor honorário do Collège de France em 1990.

75

388

Para entender a força do pensamento de Granger, vamos começar por uma reflexão geral sobre como o conhecimento pode ser expresso até culminar na caracterização proposta por ele.

31.1. Como é a realidade? Consideremos a questão: Como é a realidade? Notemos que a pergunta feita é “Como é a realidade?” e não “O que é a realidade?”, porque não se trata aqui de exibir critérios que permitam determinar o que é a realidade em oposição ao que não é realidade, mas trata-se apenas de, suposto que algo é real, simplesmente explicitar como é a realidade. Tornando mais precisa a questão inicial, podemos perguntar: (1) Como explicitar, ainda que parcialmente, como é a realidade? (2) Como explicitar, ainda que parcialmente: (2.1) os elementos que a constituem?; e (2.2) os comportamentos desses elementos? Respondendo à questão (2.1), temos que uma das formas de se explicitar, ainda que parcialmente, os elementos que constituem a realidade é fazer uso de signos para designar seus elementos. Sem nos aprofundar na discussão sobre o que é um signo, assumiremos que dentre os signos estão as palavras, as letras ou, de forma mais geral, as marcas sobre o papel (ou sobre a tela de um computador), ou os sons da voz, ou seja, o que podemos usar para designar algo. Assim, por exemplo, a palavra “Sol” (escrita ou falada) designa o Sol, a estrela mais próxima da Terra. Ou ainda, a letra “H” designa um átomo de hidrogênio e a letra “O” um átomo de oxigênio, bem como um traço “-” pode designar o compartilhamento de pares de elétrons entre átomos, de forma que o signo “H-O-H” designa uma molécula de água, composta por dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio com o compartilhamento de dois pares de elétrons pelos átomos de hidrogênio e o átomo de oxigênio.

76

389

Respondendo, então, à questão (2.2), podemos, por meio de signos, usar as ações e operações sobre esses signos para representar as ações possíveis dos elementos que os signos designam, ou seja, seus comportamentos possíveis. Por exemplo, a própria junção dos elementos hidrogênio e oxigênio, na formação da água, pode ser representada pela operação de agrupar os signos que representam os átomos desses elementos, respectivamente “H” e “O”, e o signo que representa o compartilhamento de elétrons “-”, escrevendo então “H-O-H”, como fizemos acima. Chamando de significados aquilo que é designado por um signo, temos, então, o seguinte diagrama, que chamaremos de Diagrama R para signos. Significados

Signos







Ações e operações Operações sobre signos ↔ sobre ou dos significados Diagrama 1: o Diagrama R para signos.

No exemplo da formação da molécula de água, o Diagrama R se torna: Átomo de hidrogênio Átomo de oxigênio Compartilhamento de elétrons





H O -



Formação da molécula de H-O-H ↔ água Diagrama 2: o Diagrama R para signos no caso da formação de molécula de água

Esta forma de representação (por sistema de operações sobre signos) é exatamente aquela presente na ciência, o que é o tema do nosso próximo tópico.

77

390

31.2. A caracterização da ciência empírica segundo Granger: os modelos Neste tópico, veremos como, segundo o pensamento de Gilles Gaston Granger, o sistema de operações sobre signos, exposto no tópico anterior, nos permite caracterizar o conhecimento científico. Segundo Granger (1994, p. 70-71): O conhecimento científico do que depende da experiência consiste sempre em construir esquemas ou modelos abstratos dessa experiência, em explorar por meio da lógica e das matemáticas, as relações entre os elementos abstratos desses modelos, para finalmente deduzir daí propriedades que correspondam, com uma precisão suficiente, a propriedades empíricas diretamente observáveis.

Nesse sentido, a ciência é uma das formas de se explicitar, ainda que parcialmente, uma resposta à questão posta no início deste capítulo: Como é a realidade? Ou seja, para se responder a essa questão constrói-se “esquemas ou modelos abstratos” com as características descritas por Granger. Assim, de forma geral, os modelos da ciência são sistemas de operações sobre signos, como descritos no tópico 30.1., que visam explicar um conjunto de elementos da realidade e seus comportamentos presentes nos experimentos científicos. Para dar uma ideia mais precisa do que vem a ser os modelos científicos, vamos, ao invés de entrar nos detalhes da análise procedida por Granger, dar alguns exemplos de modelos nas diversas áreas da ciência. Lembremos que, como dissemos na introdução deste capítulo, Granger não postula o critério de ciência (exposto na última citação) de forma a priori, mas sim a partir de análises da forma geral do conhecimento científico existente.

78

391

A. Em Física: a queda de corpos soltos de uma altura H0 Consideremos então os seguintes signos e suas designações. “H0” → a medida da altura inicial em que é solto o corpo. “H” → a medida da altura que se encontra o corpo no instante T. “T” → o próprio instante em que pode ser medida a altura H. “K” → uma constante determinável experimentalmente. Temos então que a altura H de corpos em queda, soltos de uma altura H0, segue a lei: H = H0 – K .T ² As operações sobre signos (e consequentemente sobre as medidas que eles representam) são regradas pelas operações aritméticas usuais. Podemos observar, desse exemplo, que um modelo é abstrato (desconsidera-se, no caso, por exemplo, o atrito do corpo com o ar).

B. Em Química: a constituição da água por combustão de gás hidrogênio Como vimos, o signo “H-O-H” é usado para representar a molécula de água. Os signos, nele usados, designam, respectivamente: “H” → um átomo de hidrogênio; “O” → um átomo de oxigênio; e “-” → um par de elétrons compartilhados. Em temos das operações sobre signos, podemos considerar, por exemplo, a equação: H -H + O= O + H-H → H-O-H + H -O -H

79

392

Esta representa a combustão do hidrogênio, resultando em água; nela o signo “+” designa a coexistência das moléculas em uma certa região do espaço, e o signo “→” designa a transformação que implica na recombinação dos átomos presentes.

C. Em Biologia: a hereditariedade mendeliana As Leis de Mendel permitem relacionar características dos indivíduos biológicos (chamada, por definição, de fenótipos) com certos elementos endógenos que possibilitam essas características (chamados, por definição, de genótipos, constituído de genes) para, a partir daí, estudar a hereditariedade dos seres vivos e suas variações. Assim, por exemplo, usamos dois signos “V” e “v” para designar dois genes de ervilhas que podem vir a pertencer a um indivíduo, cujas combinações apresentam os seguintes fenótipos: vv Vv VV

→ → →

ervilhas verdes ervilhas amarelas ervilhas amarelas

Notemos que devido à presença de V determinar sempre a cor amarela, ele é chamado, por definição, de gene dominante. Assim, por exemplo (veja Tabela 1, a seguir), podemos realizar a operação de compor pares de signos para determinar que o cruzamento de dois indivíduos amarelos de genes Vv (dispostos na primeira linha e na primeira coluna) pode resultar indivíduos verdes (vv) e amarelos (Vv e VV), respectivamente, com a proporção (ou probabilidade): 25% e 75%.

80

393

V

v

V

VV (25% amarelo)

Vv (25% amarelo)

v

Vv (25% amarelo)

vv (25% verde)

Tabela 1: resultado do cruzamento de dois indivíduos amarelos de genes Vv.

D. Em Economia: leis da oferta e da demanda Se os signos “P” e “Q” designam, respectivamente, o preço e a quantidade demandada de um produto, podemos então representar certa ação geral do mercado pelas leis a seguir, na qual o signo “↑” representa um aumento na quantidade considerada e “↓” representa uma redução na quantidade considerada e o signo “⟹” representa uma relação de causa e efeito. Lei da demanda – o aumento do preço P causa a redução da quantidade demandada Q, que pode ser representada pelo esquema a seguir. ↑P ⟹ ↓Q Lei da oferta – a diminuição do preço P causa a o aumento da quantidade demandada Q, que pode ser representada pelo esquema a seguir. ↓P ⟹ ↑Q

E. Em Psicologia: a Psicologia Topológica Na Psicologia Topológica, usamos a noção de “espaço vital” que é, por definição: A totalidade de fatos que determinam o comportamento (C) de um indivíduo num certo momento. O espaço vital (E) representa a totalidade de possíveis eventos. O espaço vital inclui a pessoa (P) e o ambiente (A). [Assim, o comportamento C é função de E, ou ainda, de P e A] C = f (E) = f (P, A). (Lewin, 1973, p. 242).

81

394

A partir daí, podemos utilizar representações gráficas do espaço vital para estudar o comportamento. Assim, por exemplo, a Figura 1 a seguir representa uma situação de um rapaz que quer ser médico (Lewin, 1973, p. 67).

Situação de um rapaz que quer ser médico P, pessoa; O, objetivo; ac, exame de admissão; c, colégio; m, escola médica; i, internato; cl, prática clínica.

É interessante notar que para aplicação dos conceitos da Psicologia Topológica usamos um método sempre aberto, o método da aproximação, tal que “este método determina, primeiro, a estrutura do espaço vital como um todo e avança gradualmente, determinando cada vez mais propriedades específicas até ser atingido o máximo de exatidão” (Lewin, 1973, p. 236). Isto é, primeiro o psicólogo desenha um conjunto sem regiões, como o contorno da figura acima que representa o espaço vital como um todo, ou seja, o conjunto dos fatos que determinam o comportamento do sujeito em relação àquele momento; depois, o psicólogo vai determinando as regiões que estariam envolvidas na explicação do comportamento do indivíduo, como no caso das regiões P, ac, c, m, i, cl e O. Tal método de aproximação permite que sempre adaptemos a análise da Psicologia Topológica às diversas situações peculiares a cada sujeito. Para uma pequena introdução à Psicologia Topológica e Vetorial de Kurt Lewin, consultar Tassinari (2009).

82

395

Visto alguns modelos científicos das diversas áreas da ciência, passemos agora a outra característica essencial da ciência contemporânea segundo Granger: a verificação.

31.3. A verificação do conhecimento científico Voltando ao contexto geral, vimos como a constituição de modelos é característica da ciência contemporânea. Podemos nos perguntar então: como saber se um modelo está correto? A resposta a essa questão, segundo Granger (1992), está relacionada a uma forma de procedimento que ele denomina de verificação. De forma geral e esquemática, a verificação pode ser entendida como a comparação entre o jogo das operações sobre signos admitidas como possíveis pelo modelo e o jogo das ações e operações possíveis dos seus significados, estabelecido pelos resultados dos experimentos científicos. Considerando o procedimento de verificação em seu aspecto mais geral, podemos dizer que, na medida em que um modelo se constitui de signos, de relações e operações sobre esses, o modelo estabelece, no domínio desses signos, uma estrutura matemática abstrata93 que pode ser posta em correspon93 De forma geral, podemos caracterizar uma estrutura matemática como constituída por um conjunto de elementos (chamado de “domínio” da estrutura) e por um conjunto de relações entre os elementos desse domínio. Nesse contexto, uma estrutura matemática pode ser completamente abstrata e as relações são definidas como um conjunto de listas de elementos (escrevemos para denotar a lista com dois elementos a e b, escrevemos para denotar a lista com três elementos a e b, e c, etc.). Exemplo de estrutura matemática abstrata: a estrutura constituída pelo conjunto {a, b, c} e pela relação R = {, }. Um exemplo concreto dessa estrutura abstrata é a estrutura constituída pelo conjunto {Sócrates, Platão, Aristóteles} (ou seja, a = Sócrates, b = Platão, c = Aristóteles) e pela relação R definida por “ser mestre de”, ou seja, R = {, }, já que Sócrates é mestre de Platão e Platão é mestre de Aristóteles. As operações são vistas como relações. Por exemplo, no domínio dos números naturais {0, 1, 2, 3, ...}, podemos definir a relação soma entre os números x, y e z tal que os números x, y e z estão na relação soma (ou seja, pertence ao conjunto soma) se, e somente se, x + y = z.

83

396

dência (total ou parcial) com a estrutura existente no domínio dos significados que esses signos designam, ou seja, na experiência. Notemos, de início, que existem inúmeras operações possíveis de serem realizadas sobre signos, como por exemplo, composições e decomposições; no entanto, no caso dos modelos, apenas algumas são admitidas (aquelas que representam as ações e operações possíveis dos significados, na experiência); a verificação é relativa então apenas a essas operações admitidas pelo modelo. É nesse sentido que podemos compreender a parte final da citação de Granger (1994, p. 70-71) acima: de que a ciência consiste também de se “explorar por meio da lógica e das matemáticas as relações entre os elementos abstratos desses modelos, para finalmente deduzir daí propriedades que correspondam, com uma precisão suficiente, a propriedades empíricas diretamente observáveis”. Por exemplo, considerando o conhecimento sobre química relativo à formação de moléculas com átomos de hidrogênio e oxigênio e que, no modelo, podemos realizar operações tais que cada átomo de hidrogênio (H) faz uma ligação (H-) e cada átomo de oxigênio (O) faz duas ligações (-O-), como na molécula (H-O-H), podemos “explorar por meio da lógica e das matemáticas as relações entre os elementos abstratos desses modelos” e nos perguntar: existe a molécula (H-O-O-H)? O Diagrama 3 representa essa exploração “por meio da lógica e das matemáticas” desse modelo. Átomo de hidrogênio Átomo de oxigênio



H O

Compartilhamento de elétrons

-





Formação de molécula



H-O-O-H

Diagrama 3: o Diagrama R para um modelo de uma possível molécula.

No caso, a verificação da possibilidade de existência experimental da molécula (H-O-O-H) significa a investigação da possibilidade de existência experimental de substâncias com moléculas desse tipo, tal que essas substâncias

84

397

tenham “propriedades empíricas diretamente observáveis” decorrentes das propriedades deduzidas teoricamente no modelo da molécula em questão, como, por exemplo, em relação aos seus processos de formação ou de decomposição. De fato, essa molécula existe experimentalmente e é chamada de peróxido de hidrogênio. O artigo “Peróxido de hidrogênio: importância e determinação” (MATTOS et al., 2003) dá uma ideia de como está verificada a existência dessa moléculas atualmente pela Química contemporânea.94 Em especial, a água oxigenada que compramos na farmácia é uma mistura de água e peróxido de hidrogênio e quando em contato com a pele ou com o sangue, que contém uma enzima chamada de catalase, favorece a reação de decomposição do peróxido de hidrogênio em água (H-O-H) e gás oxigênio (O=O) pela reação representada por: H-O-O-H + H-O-O-H → H-O-H + O=O + H-O-H E, neste caso, a liberação do gás oxigênio pode ser notada pela formação de várias bolhinhas, formando uma espuma. Voltando ao aspecto mais geral do procedimento de verificação, podemos dizer que, na medida em que o procedimento de verificação consiste em comparar a estrutura das relações e operações sobre signos, constitutiva do modelo, com a estrutura existente no domínio dos significados na experiência, as ciências fornecem, em um certo momento histórico, a representação mais adequada do domínio da realidade que elas descrevem. Em um momento posterior, a representação mais adequada pode vir a ser outra, mas a nova representação conserva, em certa parte, o que foi estabelecido pelo modelo anterior, pois sua sistematização das ações e operações possíveis de serem feitas na realidade se conserva, ainda que parcialmente. Terminemos este tópico observando que, como para Granger a existência de modelos e de verificações deles é condição essencial do conhecimen94 Agradeço ao prof. Marcelo Maia Cirino pela referência bibliográfica e pelas dúvidas respondidas a respeito.

85

398

to científico, então os critérios de Granger para caracterizar um conhecimento como científico é mais estrito que o critério de falsificabilidade de Karl Popper (visto no capítulo 30): o conhecimento científico, segundo Granger, tem que fornecer a representação mais adequada possível da realidade em termos das ações e operações possíveis de realizarmos experimentalmente nela, em dado momento histórico.

31.4. Consequências da definição de ciência e a impossibilidade de um único modelo da realidade Voltando ao contexto geral, temos que a constituição do conhecimento científico contemporâneo implica a possibilidade da constituição de modelos e verificações deles. Relacionando então o conteúdo exposto nos últimos tópicos, temos que, na medida em que conhecemos bem um domínio de objetos e as ações possíveis de se realizar sobre eles (tópico 31.1), torna-se natural representar o conhecimento desse domínio em sistemas de operações sobre signos e, portanto, proceder à construção de modelos, como defende Granger (tópico 31.2), sendo que esse conhecimento tem que estar sempre sujeito à verificação (tópico 31.3). Nesse caso, quanto mais as operações sobre signos, presentes nos modelos científicos, descrevem os comportamentos dos elementos, mais precisa se torna a representação de como é a realidade e mais confiança ganhamos em relação aos modelos propostos. Em particular, isso explicaria a confiança e consideração que temos em relação à ciência. É interessante notar que qualquer discurso sobre como é a realidade pode ser interpretado como um jogo de operações sobre signos na medida em que o próprio discurso é constituído de signos (palavras) e operações sobre esses (estabelecidas pelo próprio discurso); no caso do conhecimento científico, a explicitação dos elementos (através dos signos) e de suas correlações (através das operações sobre signos) permite um maior controle sobre a explicitação do comportamento da realidade. Do ponto de vista da linguagem do conhecimento científico, é interessante notar também como, de uma forma geral e esquemática, a ideia do

86

399

filósofo e matemático alemão Gottfried W. Leibniz (1646-1716) de uma “lingua characteristica universalis” (como vimos no capítulo 29 – A Lógica como cálculo raciocinador) veio a se realizar pela ciência contemporânea (Física, Química, Biologia, Psicologia, Sociologia etc.), na medida em que ela elabora uma língua artificial, com os diversos modelos criados, na qual podemos deduzir fatos sobre a realidade, com uma espécie de cálculo das características dos elementos expressos nos modelos. Notemos que o termo “caracteres” denota, por um lado, os próprios signos e, por outro, propriedades, e que esse duplo aspecto é considerado pela ideia de uma língua característica. Por exemplo, no caso do modelo da formação de moléculas com átomos de hidrogênio e oxigênio, temos a constituição de uma linguagem que, por um lado, convenciona certos signos, como “H”, “O”, “-”, para designar, respectivamente, um átomo de hidrogênio, um de oxigênio e uma ligação eletrônica entre átomos, bem como, por outro lado, permite expressar diretamente suas propriedades, como, por exemplo, as expressões “H-” e “-O-”, que designam o fato de que átomos de hidrogênio fazem uma ligação e átomos de oxigênio fazem duas ligações. Assim, a ciência, como uma espécie de língua das características, torna possível deduzir fatos da realidade, a partir das operações sobre signos regradas pela Lógica e pela Matemática, em uma espécie de cálculo raciocinador. Por fim, a partir dessa caracterização da ciência, e se considerarmos o conjunto de todas as ciências contemporâneas e suas relações, que vamos chamar de sistema das ciências, podemos chegar a um importante resultado sobre um dos principais limites da ciência contemporânea: a impossibilidade de um único modelo completo para o sistema das ciências. Para analisar a questão da impossibilidade de um único modelo completo para o sistema das ciências, notemos inicialmente que as ciências do homem fazem parte desse sistema, e que um modelo completo para este implica a existência de um modelo que explique completamente o comportamento humano. Granger mostra que existe uma séria limitação na construção de modelos nas ciências humanas, que, de forma geral, decorre da singularidade (e multiplicidade) das significações envolvidas nos fatos humanos atuais, vividos aqui e agora. Fazendo uma análise geral, podemos dizer que, para construir um modelo qualquer, é necessário sempre fazer abstrações de certas qualidades.

87

400

Porém, tais qualidades, na medida em que são notadas por nós, influenciarão o comportamento humano em algum outro contexto. Logo, o modelo construído não explicará, completamente, o comportamento humano. Claro que um novo modelo poderá então ser construído; mas, novamente, teríamos outras abstrações na sua construção, as quais farão com que esse modelo não dê conta de outros novos tipos de comportamentos; como o processo continua sempre, nunca teremos um modelo único que explique os atos humanos em sua totalidade. Granger nos diz: O obstáculo único, mas radical [ao conhecimento científico], me parece ser a realidade individual dos acontecimentos e dos seres. O conhecimento científico exerce-se plenamente quando pode neutralizar essa individualidade, sem alterar gravemente seu objeto, como acontece em geral nas ciências da natureza (Granger, 1994, p. 113). O obstáculo fundamental está, evidentemente, na natureza dos fenômenos de comportamento humano, que carregam uma carga de significações que se opõem a sua transformação simples em objetos [dentro de modelos], ou seja, em esquemas abstratos lógica e matematicamente manipuláveis (Granger, 1994, p. 85). Um sentimento, uma reação coletiva, um fato de língua parece que dificilmente podem reduzir-se a tais esquemas abstratos (Granger, 1994, p. 86).

Apesar dessa dificuldade, Granger não pretende diminuir o papel do conhecimento científico do homem, caracterizado pela construção de modelos, para substituí-lo por outro tipo de conhecimento ou recair em um ceticismo profundo; pretende sim refletir sobre as insuficiências essenciais de um conhecimento por modelos. No caso das ciências do homem, temos que o modelo constitui uma representação parcial de um limite jamais atingido:

88

401

No caso dos fatos humanos, ela [a ciência] se empenha por envolver cada vez mais estreitamente o individual em redes de conceitos, sem esperar um dia poder atingi-lo (Granger, 1994, p. 113). Assim, a questão não é reduzi-los, e sim representá-los, ainda que parcialmente, em sistemas de conceitos (Granger, 1994, p. 86).

Não se trata de substituir, neste caso, o conhecimento através de modelos por outro tipo de conhecimento, pois essa situação não pode ser superada por nenhuma teoria que expresse em detalhes o comportamento humano, já que, como vimos antes, qualquer discurso sobre como é a realidade pode ser interpretado como um jogo de operações sobre signos (na medida em que o próprio discurso se explicita por palavras e operações sobre elas) e que, por esse motivo, os modelos em ciências humanas expressam o comportamento humano com a máxima adequação. Além dessa limitação do conhecimento científico do ser humano, destacada por Granger, podemos citar ainda as limitações do uso das estruturas lógico-matemáticas (inerentes aos modelos) para explicar o processo de cognição em geral. Essas limitações são estabelecidas a partir de análises epistemológicas dos teoremas da incompletude de Gödel (já comentados no tópico 29.3, A Lógica como cálculo raciocinador, e que não vamos retomar aqui). Por fim, gostaríamos de citar uma das consequências da impossibilidade de um único modelo completo para o sistema das ciências que é a constituição das teorias da Auto-organização como uma parte da metodologia da ciência e da sistêmica na qual se elaboram conceitos e métodos para o estudo de fenômenos classificados como auto-organizados (Debrun, 1996). Em especial, segundo uma concepção radical de auto-organização, na construção de modelos ou teorias para a explicação de fenômenos de um sistema auto-organizado, temos uma sequência de modelos que explicam cada vez melhor esse sistema, mas sem que exista algum deles que o explane de forma completa, pois, caso existisse, a organização do sistema não seria “auto” (como referido na expressão “autoorganizada”), isto é, ela não dependeria apenas de si própria, mas se restringiria a apenas uma forma geral de organização aplicável a diversos sistemas.

89

402

Um dos domínios em que ocorre esse tipo de auto-organização é aquele da construção do conhecimento em geral e, em particular, dos conhecimentos lógicos e matemáticos (Tassinari, 2003), que, por sua vez, são usados, como vimos, em diversos modelos no sistema das ciências. Nesse sentido, a auto-organização surge também na medida em que a própria Epistemologia, ou seja, o estudo do conhecimento científico, acaba por se voltar sobre si mesmo, ao buscar se conhecer utilizando os próprios métodos da ciência (cf. Tassinari, 2008) Um exemplo histórico da utilização dos métodos científicos para se estudar a própria ciência é a Epistemologia Genética, na qual seu fundador Jean Piaget e seus colaboradores estudam a constituição do conhecimento científico não apenas do ponto de vista histórico-crítico, mas também do ponto de vista psicológico, com a construção de modelos no seio da Psicologia Genética, também fundada por Piaget. É o que veremos, mais detalhadamente, no capítulo 32.

90

417

Referências Bibliográficas ARISTÓTELES. Obras. Tradução Francisco de P. Samaranch. Madrid: Aguilar, 1967. ARISTÓTELES. Órganon. Tradução Edson Bini. Bauru: Edipro, 2005. BETH, E. W.; PIAGET, J. Épistémologie mathematique et psychologie. Paris: PUF, 1961. (Étude d’épistémologie génétique, v. 14). BLANCHÉ, R.; DUBUCS, J. História da lógica. Lisboa: Edições 70, 2001. CHALMERS, A. O que é ciência afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993. DEBRUN, M. Por que, quando e como é possível falar em auto-organização e a ideia de auto-organização. In: DEBRUN, M.; GONZALES, M. E. Q.; PESSOA JR, O. Auto-organização: estudos interdisciplinares. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. FREGE, G. Lógica e filosofia da linguagem. São Paulo: Edusp, 2009. GRANGER, G.-G. A ciência e as ciências. São Paulo: Editora Unesp, 1994. GRANGER, G.-G. La vérification. Paris: Odile Jacob, 1992.

91

418

HAWKING, S. Gödel and the End of the Physics. 2002. Disponível em: . Acesso em: 09 maio 2013. KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova Cultural, 1996. LATANSIO, V. D. A significação na epistemologia genética: contribuições para uma teoria do conhecimento. 2010. 108f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2010. Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2011. LEWIN, K. Princípios de psicologia topológica. São Paulo: Cultrix, 1973. Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2011. LUCAS, J. R. Minds, machines and Gödel. In: SAYRE, K. M.; CROSSON, F. J. (Eds.). The modeling of mind. Notre Dame: Notre Dame Press, 1963. p. 269-270. MAGEE, B. As ideias de Popper. São Paulo: Cultrix, 1973. MATTOS, I. L.; et al. Peróxido de hidrogênio: importância e determinação. Química Nova, São Paulo, v.26, n.3, p.373-380, 2003. Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2011. PENROSE, R. A mente nova do rei: computadores, mentes e as leis da física. Rio de Janeiro: Campus, 1993. PENROSE, R. O grande, o pequeno e a mente humana. São Paulo: Editora Unesp, 1998. PENROSE, R. Shadows of the mind: a search for the missing science of consciousness. Oxford: Oxford University, 1995.

92

419

PIAGET, J. A epistemologia genética; Sabedoria e ilusões da filosofia; Problemas de psicologia genética. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Col. Os Pensadores). PIAGET, J. Biologia e conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1973. PIAGET, J. Introduction a l’épistémologie génétique. Paris: PUF, 1950. PIAGET, J. O estruturalismo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970. PIAGET, J. Psicologia e epistemologia: por uma teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1973. PIAGET, J. Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro: Forense, 1967. PIAGET, J.; INHELDER, B. A psicologia da criança. São Paulo: Difel, 1986. POPPER, K. R. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2000. POPPER, K. R. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix, 1977. POPPER, K. R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999. POPPER, K. R. Conjecturas e refutações. Brasília: UnB, 1980. RAMOZZI-CHIAROTTINO, Z. Piaget: modelo e estrutura. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1972. TASSINARI, R. P. Incompletude e auto-organização: sobre a determinação de verdades lógicas e matemáticas. 2003. 238 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003.

93

420

TASSINARI, R. P. Lógica, matemática e psicologia [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por em 19 dez. 2009. TASSINARI, R. P. Pesquisa analisa a “sistêmica” da matemática. Toque da Ciência. Podcast. 26 ago. 2008. Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2013. TASSINARI, R. P.; D’OTTAVIANO, I. M. L. Cogito ergo sum non machina! sobre o reconhecimento humano de verdades da aritmética e máquinas de Turing. Cognitio, São Paulo, v.10, p.221-230, 2009. TURING, A. M. Computing machinery and intelligence. Mind, Oxford, n.49, wp. 433-460, 1950.

94

Encontro com as Ciencias Cognitivas

Mariana Claudia Broens Jonas Gon9alves Coelho Maria Eunice Quilici Gonzalez Organtzadores

95

Universidade Estadual Paulista Faculdade de FI/osofla e Clencias Conselho Cientifico Ann Maria Pellegrini Andre Leclerc Debora Cristina Morato Pinto. Elias Humberto Alves Franklin Leopoldo e Silva Hercules de Araujo Feitosa Jonatas Manzolli Jose de Carvalho Sombra Lauro Frederico Barbosa da Silveira, MArio Ariel Gonzalez Porta Moacyr Ayres Novaes Filho Silene Torres Marques Willem Ferdinand Gerardus Haselager Editora~o Mariana Claudia Broens

Capa Edevaldo D. Santos Enrique Raul Broens Encontro com as CiancIas Cognitivas I organtZll~iio de Mariana Claudia Broens; Jonas Gon~lves Coelho. Maria Eunice Quilici GonZllfez. Silo Paulo. Cultura Academica, 2007. P. 346; 21 cm. (Encontro com as Ciencias Cognitivas; v. 5) ISBN 978-85-98605-26-5 I. Naturalismo. 2. Meconicismo. 3. Percep~iio/a~iio. 4. Verdade e Cientificidade. 5. CoglllltBO.

Indice para cntnlogo sistematico I. Cogni••i!o-conhecimento-153.4 2. Epistemologia - 121

96

RA, E.

contro

ritiba:

OrigiComo earacterizar a Ciencia Cognitiva: eieneia ou filosofia? Utilizandose de definiyoes e considerayoes do epistemologo franees Gilles-Gaston Granger, 0 presente texto fomece uma res posta a essa questao. mostrando que existe, no eonjunto dos conhecimentos do que se produz hoje sob 0 nome de Ciencia Cognitiva, tanto conhecimentos cientffieos quanta filosofieos. Segundo Granger. uma das principais caracterfstieas do conhecimento cientifico da empiria e a construyao de modelos e uma das principais caracteristicas do conhecimento filosofico a meta-reflexao e auto-instituiyao de interpretayao da Realidade. 0 objetivo deste trabalho. entretanto, nao e apenas mostrar a existencia de ambos tipos de conhecimento na Ciencia Cognitiva atual, nem 0 de bus car defender a utiliza~ao dos termos 'conhecimento cientffico' e 'conhecimento filosofico' tais como caracterizados por Granger, mas mostrar algumas conseqUencias, limitayoes e interrela~oes desses do is tipos de conhecimentos (por construcrao de modelos vs. metateorico e auto-instaurador de sentido da realidade) para esclarecer algumas dificuldades te6ricas (tanto cientificas quanta filos6ficas) que surgem a partir da nao considerayao dessa distinyao.

e

Trala-se, com efeilo. /Ilia de afirmar a correIa au eslabe/ecer /11/10 regra, mas, 11/11/1 carlo selJlido que sera necessaria explicar, de deserever. Gilles-Gaston Granger

Antes de iniciarmos a apresentayao das reflexoes de Granger,

e impor-

tante salientarmos que Granger nao pretende postular extemamente criterios que urn conhecimento deve satisfazer para ser classificado como cientifico ou filosofico, mas busca estabelecer tais criterios. analisando 0 que ha de comum nas diversas formas de conhecimento cientifico e de cunho filosofico; bem como, busca analisar 0 que as diferencia e diferenclOu de demais tipos de conhecimen-

1 Doeente do Departamento [email protected]

de Filosofia

da UnespfFFC-Mnrilia.

Enderec;;o eletronieo:

near-

97

to. Em poucas palavras, sua epistemologia

nao pretende ser normativa e dogma~

tica, mas comparativa e critica. Comeryando nossa analise, podemos assumir, com Granger, que uma das principais caracteristicas do conhecimento cientlfico, no que concerne a empiria, e a explicayao e previsao de fatos e que, nesse sentido. 0 conhecimento cientifico pressupoe a prescriryao de urn conjunto de fatos possiveis, denominado, por Granger de fatos virtuais, estabelecidos por uma teoria cientlfica, aos quais se contrapoem os, denominados por Granger, fa/os a/uQ/'s, que se encontram em nossa experiencia atual. vivida por nos aqui e agora. Com efeito. nos diz Gran~

tos no yoes ger6 q

ge?: [...] se quisermos sustentar que 0 poder de prediyao e uma condiyao necessar~a de validade [de uma teoria clentlfiea], e importante. considerar que u~a teona cientlfica nao trata diretamente de fatos atUalS, e slm do que chamel de fatos virtuais, ou seja, de fatos esquematicos, completamenle determinados na rede de conceitos da propria teoria, mas incompletamente determinados enquanto realiziIvets aqui e agora numa experiencia. Em consonancia com uma das acepryoes usada na propria Ciencia. Gran~

a

ger denomina de mode/o representayao abstrata e esquematica, que determina e sistematiza 0 conjunto de fatos virtuais e que possui uma estrutura matematica impHcita oU explicita. A partir desse conceito (ou metaconceito, na terminologia de Granger, cuja acepyao iremos comentar mais adiante), Granger mo~tra. ern sua obra3, que, e como, 0 conhecimento cientifico da empiria se caractenza pela construyao de model os. De fato, se pensarmos no surgimento da ciencia moderna com Kepler. Galileu, Newton, ou mesmo no conhecimento cientlfico atual (e.g., a Tabela Periodica dos atomos, os ciclos bioquimicos, os modelos psicol6gicos, economicos, sociol6gicos. etc.) veremos que a construyao de modelos e uma das mais fortes caracteristicas do conhecimento cientifico. Em particular. 0 modele que permite a compararyil.o entre a estrutura estabelecida por ele proprio e a ~~tr~tura dos relacionamentos entre os objetos nOS experimentos de lima dada ClenCla e,

e

assim, permite

0

4

processo de verificaya0

tao caro a Ciencia.

nossa

menta . tlpo, tern s plicida agora.

model Po rem compo nao ex

te, ter mod~l eontm nos em

GrangerS nos diz, entao: 6

Granger. 1994a, p. 48. ) Cf.. c.g., Granger, 1994a, p. 70.1989, p. 13.1992, p. 14. e 1994b, p. 245. 4 Cf. Granger, 1992. l Granger, 1994a, pp. 70·71.

2

238

Idem,

c.f. as unlmal ~embrem Grang 1

98

o conh~cimento cientlfico do que depende da experiencia consiste sempre 'em constrll/I' eS9uemas 011 model.os abstl'atos dessa experiencia, em explorar por melOda 16glca e das matematlcas, as rela~oes entre as elementos abstratos desses modelos, para finalmente deduzir dal propriedades que correspondam, com uma precisiio suficiente, a propriedades empiricas diretamente observaveis.

e dogma~ uma das

a empiria, cientifico nado, por quais se ntram em diz Gran~

necessar~a u~a teona el de fatos os na rede s enquanto

cia. Gran~

etermina e matematica rminologia mo~tra. ern tenza pela

om Kepler. , a Tabela economia das mais modele que a ~~tr~tura a ClenCla e,

Te~os, ainda, que as caracteristicas e comportamento dos objetos (objetos no sentldo gera!) sao estabelecidos, nas ciencias da empiria. a partir das relayoes descritas nos pr6prios modelos. Nesse senti do, podemos dizer com Granger6 que: Os objetos das ciencias empfricas, portanto, slio rigorosamente abstra90es. mas abstravoes suscetfveis de serem vinculadas segundo procedimentos regulados por constata90es de nossos sentidos. Vemos, po is, 0 profundo papel que os model os tern na constituiyao de nossa compreensao cientffica da realidade. A partir dessa caracterizayao do conhecimento cientifico, Granger argu~ menta entao que existem limita\loes para a constituiyao de conhecimentos desse . 1 • tlpo, concementes aos fatos humanos , Ern particular, Granger mostra que exis~ tern serias Iimitaryoes, que, de forma geral, decorrem da singularidade (e multiplicidade) das significayoes envolvidas nos fatos human os atuais. vividos aqui e agora. Fazendo uma analise sumaria, podemos dizer que, para construir urn modele qualquer, e necessario sempre fazer abstra~oes de certas qualidades. Po rem, tais qualidades, na medida em que sao notadas por n6s, influenciarao 0 comportamento humano em algum outro contexto. Logo, 0 modelo construido nao explicara. compJetamente, 0 eomportamento humano. Claro que urn novo modelo podera entao ser construido; mas. novamente, teriamos outras abstrayoes na sua construyao e essas farao com que 0 esse mod~lo nao de conta de outros novos tipos de comportamentos; como 0 processo eontmua sempre, nunea teremos urn modelo \inico que explicaria os atos humanos em sua totalidade. Granger no diz8:

6

Idem, p. 71.

c.f. as pa:'es subseqiientes aquelas citadas na nota 2 acuna. Notar que a oposlvflo humano vs. unlmal sena aqui dcscabidll, jd que. nesse caso. homem e considerndo umn cspecie de animal. ~embremos amda que se !mla de analises a partir do conheCimento clentlfico jd constituido. Granger. 1994a, respectivamente, pp.I 13, 85 e 86. 1

99

o obstacufo unico. mas radical. [ao conhecimento cientifico] me parece ser a realidade individual dos acontecimentos e dos seres. 0 conhecimento cientifico exerce~se plenamente quando pode neutralizar essa individualidade. sem alterar gravemente seu objeto, como acontece em gera! nas ciencias da natureza. [...] 0 obstaculo fundamental esta. evidentemente, nn natureza dos fenomenos de comportamenlo humano. que carregam uma carga de significar;oes que se 0poem a sua transforma9ao simples em objelos [dentro de modelos], ou seja. em esquemas abstratos 16gica e matematicamente manipuhiveis. [...] Um sentimen10, uma rea~ao coletiva. um fato de lingua parece que dificilmente podem ser reduzir-se a tais esquemas abstratos. Apesar dessa dificuldade. Granger nao pretende minimizar 0 papel do conhecimento cientifico do homem, para substitui-lo por um outro tipo de conhecimento ou recair em um ceticismo profundo, mas sim refletir sabre as insuficiencias essenciais do conhecimento cientifico, caracterizado pela constrw;ao de modelos. No caso das ciencias do Homem. tern os que 0 modelo constitui uma representayiio parcial de urn limite jamais atingido9; No caso dos fatos humanos. ela [a Ciencia] se empenha por envolver cada vez mais estreitamente 0 individual em redes de conceitos, sem esperar um din poder atingi-Io. [...] Assim, a questao nao e reduzi-Ios. e slm representa-/os, ainda que parcia!mente. em sistemas de conceitos. Alem dessa limitayiio do conhecimento cientifico do ser humano destacada por Granger, podemos citar ainda as limitayoes impostas pel as analises epistemol6gicas dos Teoremas da Incompletude de Godel, analisadas por nos ern outro lugarlO• Porem, como esse nao eo ponto essencial deste artigo, reservamos a exposiyao dos argumentos centrals dessa discussao para outros trabalhos. Por fim, se nao quisermos fixar 0 termo "conhecimento cientifico" tal como caracterizado por Granger, em termos principal mente da construyao de modelos, importante notar que tal delimitayao nos permite inferir de certas caracteristicas, tanto positivas como negativas, dos conhecimentos que satisfazem essa definiyao. Em particular. estabelecer os limites apontados acima e 0 diferenciar de outros tipos de conhecimento. Urn outro tipo de conhecimento. que nao se identifica com 0 conhecimento cientifico (e com sua construyao de modelos) ~, segundo Granger, aquele

e

Idelll, respcclivamenlc, pp. 113 e. 86. C/ Tassinnn, 2003. 240

q

10

relativo a experienc situam o ceitos de partir daq mento ci com Iiber ceitos se eles pr6pr de de au intelpretar P co, cujo t de regras origimiria ceitos. F chat. urn cimento C principios: tra-Ios; o mente ind N suposto c taconceitos sao possfv argumenta adesao. ou tal entao, discordar mostrar qu

R interpretay rentes prin

100

ser a ntifico alterar [...] 0 os de se 0ja. em timenm ser

el do de coinsuw;ao uma

da vez in poainda

destaalises os ern amos

" tal o de certas atisfaa e 0

heciquele

relativo ao que ele denomina de metaconceito. "que se aplica nao direfamellte a' experiencias, mas a representa90es da experiencia" I I , Ora, se os conceitos se situam oa representac;ao da Realidade, entao os metaconceitos - isto e. os conceitos de conceitos direfamerzte aplicaveis experiencia (que denominaremos. a partir daqui. com Granger, apenas de conceitos, e que sac proprios do con11ecimento cientffico tal como definido acima) - permitem fundar urn jogo proprio. com Iiberdade plena. na medida em que determinam como os pr6prios metaconceitos se relacionam entre Sl. Nesse caso. os metaconceitos determinam como eles pr6prios se aplicam a sf e aos conceitos (e seus objetos) e, dessa possibilidade de auto-referencia. surge a possibilidade de livre auto-instaura9aO de como intelpretar e esfruturar a realidade vlvida. Propriamente. e nesse terreno que se desdobra 0 conhecimento filos6fico, cujo tipo nao se confunde com 0 de tipo cientffico e depende de urn conjunto de regras interpretativas da realidade vivida, estabelecidas a partir de decisoes origimirias do proprio filosofo e que se express am em seu sistema de metaconceitos. Fazendo uma pequena digressao e retomando a analise de Oswaldo Porchat. urn de nossos renomados fil6sofos brasileiros, podemos dizer que 0 conhecimento filos6fico lida com prillcipios e esses nao podem ser demonstrados. Com efeito. se pudessem ser demonstrados. nao sedam verdadeiramente principios: os principios seriam as proposiyoes iniciais que usamos para demonstra-Ios; ou ainda, dizendo de outra forma, 0 termo 'principio' deve necessariamente indicar de onde partimos na demonstrac;ao. Nessa medida, como nao podemos demonstrar os principios de nosso suposto conhecimento filos6fico (ou verifica-Io, comparando a estrutura de metaconceitos com os experimentos, ja que diversas estruturas de metaconceitos sao possfveis, com uma mesma subestrutura de conceitos) enmo so podemos argumentar retoricamente a seu favor, tendo apenas a esperanya do acordo ou da adesao. ou mais propriamente. da persuasao. de nosso interlocutor. 0 fundamental entao, para nos aqui. que: se noSSo interlocutor quiser, ele pode sempre discordar dos principlos colocados, e nunca teremos, verdadeiramente. como mostrar que nossa posic;ao e necessariamente verdadeira.

a

e

Retomando a analise de Granger. podemos dizer entao que as varias interpretayoes pelas diversas estruturas de metaconceitos, que estabelecem diferentes principios. acabam por estruturar a Realidade em termos daquilo que ele

101

denominou defactum, em oposiyao aos fatos representados em modelos e sUJeil3 tos a verificayao12• Como nos diz 0 proprio Granger ; Falamos defactl//lI para refor~ar que nao se trata, evidentemente, de fatos empiricos, mas de constata,.:oes de segundo grau, referindo-se a enunciados que pertencem a uma linguafactual e que remetem a experiencia. [...] 0 factum filosofico funciona finalmente nao como um 'fato', na percepcao ou na ciencia, mas antes como uma 'regra' de formacao e de organiza"iio dos conceltos expressos numa Iinguagem. [...] De sorte que um enunciado filos6fico, enquanto metaenunciado, nao poderia reduzir-se nem Ii expressao de um fato - embora ponha o que chamamos de facta - nem a descriyao ou prescri,.:8.o de urn encadeamento forma/mente regrado de pensamento - em bora os principios dos quais procedem possam ser chamados de regras. Sobre a questao da veracidade dos enunciados tilos6ficos, Granger

14

nos

diz que: (No campo das ciencias da empiria] Faz-se uso evidentemente da noqao de verdade tal como aparece nos sistemas formais. tanto que toda ciencia tende a se constituir em tais sistemas. [...] [Quanto a cntegoria 'verdade' no contexto filos6fico. temos que] Nestas condicoes, se nos repugna estender e diluir inconsideradamente a aceprrao dos tennos, nilo aplicamos a tais enunciados a categoria de verdade, a que ja tentamos dar diversos sentidos. 0 valor que substitui a verdade deve, contudo. permanecer conceitual. Mas e no interior de cada sistema ftlos6fico que e posslvel determimi-lo, filosofando e nesta filosofia mesma. Encontramos entao decisoes origimirias, que ela propoe para orientar a organizaCao dos sentidos do vivido. [...] A partir de decisoes origimirias. que sac apenas regras de interpretaryao do vivido como totalidade, a metateoria filos6fica determina, superposta a coerencia 16gica, uma certa coerencia, a qual seu proprio autor e mais ou menos fiel. E ela quem governa 0 tipo de argumentaryao [a filos6fica] da qual se falou antes. Finalizando. vemos enta~ como, devido as diferenya entre os dois tipos de conhecimento, encontram-se distante 0 processo de convencimento relativo ao conhecimento caracterizada aqui como 'cientifico', que pressupoe a construc;:aode modelos e sua verificar;:ao, e 0 processo de convencimento relativo ao conhecimento caracterizado aqui como filos6fico, construido com metaconceitos e que permite a auto-referencia e auto-instauracrao de como interpretar a realidade. Nesse ultimo caso, a nOyao do que verdadeiro ou falso pass a a ser estabele-

e

13

Sobre a verificaryao na Ciencia. ver Granger. 1992. Granger. 1989. respectivamentc, pp. 264, 265 e 274-275.

14

Idem, p.275.

12

242

cida "n expressa estabele ver, per em con relativas cientffic

termos: Ciencia

damos de verifi cimento nela des

nao bus diversas cientffico mos aqu filos6fico para des produzid mostrar, entre as mos nest

no termo mo sendo

truyao d como aq

102

e sUJei-

s empiue perfilosoa, mas pressos metaponha eamenais pro-

r

14

nos

de verde a se to filoconsidegoria de a verdaema ftma. Enrganiza-

pretaryao a coemenos fise falou

is tipos relativo construtivo ao

nceitos realidastabele-

cida "no interior de cada sistema filos6fico", a partir de "decisoes origimi.rias" expressas pela escolha dos metaconceitos da pr6pria metateorla filos6fica, que estabelecem os principios de onde se deve partir. E essa diferenr;:a que, a nosso ver, permite explicar a diversidade de sistemas filos6ficos, sem acordo com urn, em contraposiyao as unidades interpretativas existentes na ciencia, ainda que relativas e contextuais, possibilitadas pela comparayao e verificayao das teorias cientfficas e seus modelos.

Podemos entao retomar a pergunta inicial desse trabalho nos seguintes termos: 0 conhecimento gerado ate agora sob 0 escapo do que foi chamado de Ciencia Cognitiva e urn conhecimento cientifico ou filos6fico? Notemos, inicialmente, que nao e.por autodenominayao que caracterizadamos a Ciencia Cognitiva, automaticamente, como ciencia, ja que se trata aqui de verificarmos a aplicayao das categorias 'conhecimento cientifico' vs. 'conhecimento filos6fico' segundo Granger. Para tal, temos que averiguar 0 papel que nela desempenham os modelos. Notemos tambem que. apesar de usarmos a terminologia de Granger, nao buscamos fazer aqui uma defesa da utilizayao dessa tenninologia frente as diversas outras, apesar de acreditarmos que essas definiyoes de conhecimento cientffico e conhecimento filosofico sac bastante adequadas e proficuas. Buscamos aqui apenas nos utilizar de tais categorias de conhecimento, cientffico e filos6fico. como duas categorias, 1 e 2, independentes dos termos que usamos para designa-Ias, para, a partir dai, responder Ii questao sobre ser 0 conhecimento produzido sob 0 nome de Ciencia Cognitiva de tipo 1. de tipo 2, ou ambos; e mostrar, a partir dal, a importlncia do reconhecimento. na area, da diferens:a entre as diversas propriedades desses dois tipos de conhecimento. E 0 que faremos nesta seyao. Comecemos, entilo, nossa analise, a partir da autodenominayao existente no termo 'Ciencia Cognitiva' e caracterizemos seu objeto, de forma global, como sendo a cogniyao. Cabe entilo uma pergunta inicial: sera que a cogniyao se presta a construyao de modetos e, portanto, pode ser objeto de urn conhecimento cientffico, como aqui caracterizado?

103

Como vimos. existem limites a aplicayiio de modelos em relayao a totalidade das cargas de significayao contida nos fatos humanos atuais e na realidade individual dos acontecimentos e dos seres. Podemos. ainda, dizer que a presenya de significayoes e caracterfstica essencial do que entendemos ordinariamente por processo cognitivo. Em que medida. enta~, podemos fazer uma cienda da cogniyao? Nilo terfamos uma contradiyao nos termos e ab origine? A res posta a essa pergunta nilo e tilo negativa quanto as linhas acima parecem sugerir. Podemos. com efeito, construir modelos da cogniy8.o, ou ainda, do comportamento que a supoe. Nesse sentido, podemos fazer uma cienda da cogniyao, como e a propria Psicologia Cognitiva (que. convem ressaltar, nao estuda apenas o comportamento humano, mas tambem 0 animal's, e nao se reduz somente a Psicologia Behavioristal6). Podemos ainda dar uma definiyao abstrata de 'cognic;ao' que possa ser l7 tratada por modelos e teriamos. tambem nesse caso, uma ciencia • Vemos, pois, que, nesses do is casos, por exemplo, nada ha de contraditorio em construir ciencias da cogniyao. Porem. 0 que se faz hoje sob 0 nome de Ciencia Cognitiva nao para por ai. Com efeito, no Guest Editorial da edic;:ilo do Cognitve Science, de 2006. Goldstone e Leydesdorff8,

elaboray aqui.

distinya mente l

crenya que ele mento cientific lar, isso

a antolo do por T

portanto ceito 'm

Jar the r

escrevem:

as desafios de construir e entcnder sistemas inteligentes sao suficientemente grandes que, muito provavelmente, irao requerer as habilidades de psic610gos. cientistas computacionais, fil6sofos [grifo nosso], educadores, neurocientistas e lingUistas, colaborando e coordenando seus esforvos. E, mais adiantel9, afirmam ser a Filosofia uma das "disciplinas nudeares da ciencia cognitiva". Notemos, enHio, que, naturalmente, uma ciencia sempre demanda uma analise metaconceltual e epistemologica. seja para discutir questoes metodol6gicas, seja para fazer uma amilise crftica de seus conceitos, 0 que faz com que, atrelado a uma ciencia, sempre surja a necessidade de urn conhecimento filos6fico. Vemos. entao, como tambem existe, sob 0 nome de Ciencia Cognitiva, a

conceito conceito uma das

mesmas

delimitad

relaqiio tomada

illspirou. Cf e.g. Fraisse e Pingel, 1968, pAO. Cf. idem, Cnpitulo I: Evolu"iio dn Psicologm 17 Cf Dupuy 1996, p. 38 sqq. 18 Goldslone e Leydesdorff, 2006, p. 983. 19 Idem, p. 991.

1\

16

244

Experimental.

70 Thagard, 21

Idem, p.

22 MOIs pre

104

o a totaealidade presenya nte por da cog-

s acima

do comogniyao, apenas mente a

ossa ser

contradi-

para por de 2006.

elaborayao de urn conhecimento aqui.

da uma odol6giom que, filos6finitiva, a

filos6fico,

como caracterizado

Gostariamos, entao, de discutir, a partir daqui. uma questao que surge da distinyao apontada neste trabalho e que, aigumas vezes, nao nos parece devidamente levada em conta. As vezes, a partir do trabalho desenvolvido em uma cienda. fonna-se a crenya de que 0 conhecimento cientffico, produzido no interior dos contextos que ele organiza, pode tomar-se, imediatamente, 0 fundamento de um conhecimento filos6fico com 0 mesmo grau de certeza. ou quase, que 0 conhecimento cientifico, que 0 inspirou, possui dentro de seu contexto especifico. Em particular, isso tambem pode ocorrer na Ciencia Cognitiva. Para cltar urn exemplo, que, parece-nos, nao ser tao incomum. tomemos a antologia Mind Readings: IlltroductOlY Selections on Cognitive Science. editado por Thagard20, com varios artigos significativos para a area. Ja 0 titulo da obra nos e infonnativo sobre a posiyao metaconceitual e. portanto. filosofica do editor e de diversos de seus autores, ao tratar 0 metaconceito 'mente' dentro da Ciencia Cognitiva. Com efeito, Thagard, em seu Guide Jar the reader, diz2': [as] Capitulos 1-8 dessa antologia apresentam a mais importante abordagem da cienda cognitiva da perspectiva que pensar (thinking) consiste em processamentos computacionais sobre representa~oes mentais. As selcvoes restantes concemem aos importantes desafios para 0 entendimento computacionalrepresentacional da mente.

ntemente ic610gos. entistas e

nudea-

propriamente

Nilo se percebe entao, nesse caso, a fragilidade de se generalizar urn conceito cientifico de cogniyii022, relativo aos modelos apresentados, a urn metaconceito (filosofico) de cogniyao. Niio se nota 0 quanto essa posic;:ao apellas uma das diversas poslr;:oes possfvels e, como tal, 1100 necessaria e noD tem as mesmas garantias e direitos que 0 conhecimento cientifico dentro de seu escopo delimitado.

e

e

Notemos que a questao nao esta em adotar certa posir;:oo cognitivista em Realidade, 0 que legitimo, mas em acreditar que a natureza dessa tomada de posic;:ao e a mesma que a do proprio conhecimento cientifico que a

relaqiio

a

e

illspirou.

70 Thagard, 21

1998.

Idem, p. ix.

22 MOIs preclsnmenle,

pensor (thl1lking).

105

Analisemos urn pouco melhor essa transformayao de urn conceito de cogni9ao (elaborado dentre de urn modelo) em urn metaconceito de cogniy8.o. Se estendermos uma definiy8.o particular de cognic;:ao para 0 processo cognitivo em geral, temos por principio que todos os processos de cogni~ao podem ser completamente analisados em termos daquela definic;:ao. Trata-se assim de urn principio estruturador da Realidade para n6s. ou seja, de uma posic;:aointerpretativa da Realidade, e nao apenas urn modelo estruturador de alguns fatos da Realidade. Colocando 0 problema de outra forma, podemos nos perguntar: como garantir essa generaliza9ao do conceito de cogni9ao? Vemos enta~ que a propria justificac;:ao dessa generalizayao se apoiara na defini9ao de cognic;:ao e. portanto, em uma justificac;:ao auto-referente e auto-instauradora, caracteristica dos metaconceitos como definidos acima; ou seja, no caso dessa generalizayao, a cogni9ao nao permanece apenas urn conceito, mas se toma urn metaconceito. Como analisamos na primeira sec;:ao, tais principios nao podem ser demonstrados (nem mesmo verificados no mesmo senti do que os modelos 0 podem), devido auto-referencialidade que comportam (diferentemente do conhecimento cientffico que os inspiraram), restando. pois. para 0 convencimento do interlocutor apenas a persuasao e. consequentemente. a ret6riea, sem se poder ter a esperan~a de se resolver a contenda, sem. por exemplo. impor urn metaconcei-

a

to proprio de 'racional' ou 'razoavel'. AIem desse aspecto da instaurac;:ao. consciente ou inconsciente. de urn conhecimento filos6fico, e nao propriamente cientffico, por parte do tearico que generaliza seus dados particulares, gostarfamos de comentar tambem. a partir da distinc;:ao dos dois tipos de conhecimentos tratados aqui, sobre a possibilidade de se ignorar ou se descartar intencionalmente: (1) as diversas outras interpretayoes filos6ficas possiveis; ou (2) os diversos dados de outras ciencias que tratam da cogni9ao (como por exemplo, os da Psicologia Genetica de Jean Piaget. do qual voltaremos a falar mais adiante). Em rela9ao a (1), devido a possibilidade de auto-instaurayao da realidade pelo sistema de metaconceitos, a COmparayaO entre os diversos sistemas filos6ficos acaba por ser uma das poucas fonnas de garantirmos certa objetividade e universalidade do conhecimento filos6fico proposto frente a propria cultura em que estamos inseridos; e devemos lembrar que 0 problema da cogniyao, ou mais propriamente do conhecimento em geral, sempre permeou toda nossa tradic;ao filos6fica ocidental, desde seu infcio. com gregos antigos. ate hoje em dia. Em particular. gostaria de lembrar dos metaconceitos de consciencia ou de Ell, ta~

bem por ac tivos

tanto, dos n filosof

da con da co

Gestal

dados Vemos model yao d que es ver a preend

aqui) senvol princip plo, a ele se

temos fundam compa exame

de uma cionais pretens de cog

E mle (Thagar uma "leo 23

106

eito de 8.o. rocesso ogni~ao Trata-se ma posi-

alguns

como propria ortanto, s meta-

a cogniser de-

s 0 poconhento do oder ter concei-

de urn ico que

partir da dade de etayoes atam da do qual

ealidade filos6fividade e ltura em ou mais tradic;ao dia. Em e Ell, ta~

bem desenvolvidos em certas filosofias (como, por exempl0, em Hegel) e, riiio por acaso, Hio dificeis de serem tratados dentro de certos paradigmas interpretativos que se ap6iam em uma visao cientificista do processo de cognic;:ao23• Se levarmos em conta a distin~ao apontada neste trabalho, temos, portanto, que e importante reconhecer que, sem menosprezar os dados ja conquistados nos terrenos particulares por urn conjunto de model os, 0 terreno da discussao filosofica e outro e se encontra sempre em aberto (mais que 0 da ciencia). Urn outro ponto importante, passando Ii discussao do item (2) acima, 0 da considerac;:ao dos diversos dados jli acumulados por outras ciencias que tratam da cogni9ao. Pensamos, por exemplo, nos efeitos de campos da Psicologia da Gestalt, nos arquetipos de lung, no simbolismo inconsciente de Freud, ou nos dados obtidos pel a Psicologia Genetica de Piaget. Vemos, nesse caso, que a explicas:ao cientffica exige uma construyao efetiva de modelos que permitem explicar - mostrar como se dao em tennos da organizayao de seus elementos - os comportamentos humanos e 0 grau de dificuldade que essa empresa suscita. Na realidade, construir essas explica90es desenvolver a propria Psicologia Cognitiva e a dificuldade nisso aquela do proprio empreendimento cientffico.

e

e

e

Com efeito, por exempJo, urn conhecimento eientffieo (como entendido aqui) a respeito da subjetividade human a deve ter modelos suficientemente desenvolvidos que expliquem, no detalhe, diversas formas de eomportamento, principalmente aquelas eonsideradas proprias Ii subjetividade, como por exemplo, a arte, a etiea. a Matematica e a propria forma do fazer filosofico tal como ele se deu em nossa cultura. Dada a complexidade do conjunto de teorias e nos:oes relativas a elas. temos que urn filosofo da Ciencia Cognitiva nao pode simplesmente, se quer fundamentar devidamente sua posiyao. acreditar que sua nOyao de cogniyao compatfvel com as nOyoes possfveis das diversas teorias psicol6gicas, sem urn exame pormenorizado.

e

E, no entanto, nas posis:oes mais extremadas de generalizayao imediata de uma definiyao espeeffica de cognis:ao (com, e.g., "processamentos computacionais sobre representas:oes mentais") que vemos quao distante se encontra a pretensao da realidade; e quae inconsciente da propria atividade historica e rea! de cogni9ao se en contra uma posis:ao filos6fica desse tipo. E mleressanle ver, par excmpla, a esfon;:ode Flanagan em A Unified Theory o/Consclousness? (Thagard, 1998, Cap. 10) para juslificar melaconceitunlmenle n possibilidnde de elnbarnciio de uma "leoria conslrullva naluralisla" (p. 268) do consciencia. 23

107

Por outro lado. sem duvida, como comentado anteriormente. sempre existe a necessidade de uma epistemologia au uma filosofia da ciencia que parta dos dados j$3#+&'(&"5'*/(*%/$?*1*"%,"-( +('$,2'(1'%;"1*6"%,'(&","26*%+&'(>$3#+&'(&"5'*/(/$5"2*'2(5"3+(1'%/1*=%1*+( 1'6$6(&'/(+&"5,'/(&"/,+(&*/1*53*%+%%2)B#0+#;"09)%B#%#4"04$42L$%#N"24$%#$49#3+J"B# O#

F#

>%#$I'2#*3$)$!$%#50#$'#'$90*5/)0#=2)(%>/0)(%3?4)(90*%/+#8$(4"#!+#I'"#>XY$Z[==E0$%)/1!1',%3#!$%2*&0$%$)%/,&/$(1$+#'+1&,#!$51/%&!$ (%$;)&!,13#I#5&%$:1'C,&+%$1$(%$4!&+#I#5&%$:1'C,&+%$7%G"#0$1!2*13%$(1$%G"#0$!&!,13%$ (1$1!2*13%!$(1$%G"#$1$#)1/%G"#E$1$(%!$1!,/*,*/%!$3%,13L,&+%!$(1$(&5/%-#!0$%I5*3%!$ /1-I1NW1!$'#$!1',&(#$(1$)/#)#/$*3$3C,#(#$51/%I$(1$-#/3%I&K%G"#$+#'(&K1',1$+#3$ #!$/1!*I,%(#!$1$)/1!!*)#!,#!$51/%&!$(1!!%!$L/1%!6 4#(13#!$ /1!!%I,%/$ 2*1$ #$ 1!)M/&,#$ (1!,1$ %/,&5#$ C$ %2*1I1$ 1N)/1!!#0$ (1$ -#/3%$ 51/%I0$'%!$)%I%F/%!$(1$4&%51,0$13$=>\Z0$'#$&'M+&#$(1$!"#$$%$&'(%"#)*+,$'%)'-+./0%$H 4#/$ 2*1$ %$ ]#5M!,&+%0$ +*^%$ ,C+'&+%$ (1(*,&F%$ %(2*&/&*$ *3%$ )/1+&!"#$ /&5#/#!%0$ 1$ %$ 4!&+#I#5&%$ (%$ 8',1I&5S'+&%0$ +*^#!$ 3C,#(#!$ !1$ %(12*%3$ O!$ /15/%!$ (%$ #J^1,&F&(%(1$ 1N)1/&31',%I0$ '"#$ +#I%J#/%3$ O$ 3%'1&/%$ (%$ _%,13L,&+%$ 1$ (%$ VM!&+%`$ a15*/%31',10$ %$ &',1I&5S'+&%$ ,13$ *3%$ b&!,./&%0$ 1$ '"#$ !%J1/M%3#!$ (1(*K&/$ %!$ I1&!$ (1$ *3$ (1!1'F#IF&31',#$ b&!,./&+#6$ _%!$ )#(13#!$ +%I+*I%/$ #!$ 1!,%(#!$ (1$ 12*&IMJ/&#$ (#$ )1'!%31',#$ 1$ /1+#//1/$ %$ 1!,1!$ 1!,%(#!$ )%/%$ %'%I&!%/$%!$/15*I%GW1!$#*$%!$#!+&I%GW1!$(%$F&(%$31',%I0$#$2*1$+#'(*K&/&%$%$ +#3)/11'(1/$+#3#$%$1F#I*G"#$!1$#/&1',%$%$*3$12*&IMJ/&#$-&'%I6$4#/$2*1$1',"#$ %$]#5M!,&+%$'"#$C$*,&I&K%(%$)1I#!$)!&+.I#5#!$+#3#$&'!,/*31',#$(1$+LI+*I#$#*$ (1$(1(*G"#0$1$)#/2*1$#!$I#5M!,&+#!$'"#$!1$&',1/1!!%3$)1I%$4!&+#I#5&%$)%/%$ J*!+%/$%$#)#/,*'&(%(1$(1$'#F#!$)/#JI13%!$#)1/%,./&#!`$7489:;\Z0$)6$=E6 !"#

!"#$%&%"'()*"(+,-."'(/0(12'($0(3'(40(3556373'(8-.09:;

182

!"#$%"&'$()'$"*#'+$,)'-&"$!.'/0%$%#'%'$&'$1"#2'3.4'56"+$030$.-(.(%0$,)0$03'$7$)2$ 8#"90(("$0$-6"$'80-'($)2$0(%'&"+$8#"90(("$,)0$(0$03'*"#'$(0/)-&"$-:;0.($0$,)0$ (0$.-.9.'$9"2$'($'52'%02R%.9"($0$'$(0)($(.(%02'(+$'$,)'3$)('#02"($8'#'$0O83.9.%'#$'($0(%#)%)#'($ 3=/.9">2'%02R%.9'($ 02$ ,)0(%6"+$ 9"2$ *'(0$ -'$ 8'#%0$ (02Z-%.9'+$ ,)0#$ &.40#+$ -"($ 03020-%"($0$-'($-"58(.9"3=/.9'($&"$()?0.%"$08.(%[2.9"A

H-.9.'320-%0+$8"#$9"-(0/).-%0+$;'2"($9"-(.&0#'#$,)0$)2$&"($8#.-9:8."($2'.($*R(.9"($ &'$ B8.(%02"3"/.'$ I0-7%.9'$ 7$ ,)0$ "($ (.(%02'($ &0$ '53"$02$1)-56"$&"($(.(%02'($&0$%#'-(1"#2'56"$'"($,)'.($0(%6"$ 3./'&'($0(%'($'5#0!.,#!)!A#$.,#4(!"#B!"#$/)*(4#'-)!C!)!.,#!*(0(*-#0%>(!#$$($!(17#$! #!.,#!)!$,+#%-)9!'(!4#"%"(!#4!.,#!)!$,+#%-)!-#4!)!#$.,#4(!"#!"#$/)*(4#'-)9!C! *(3(>!"#!0#(/%>(0!(17#$!"#!"#$/)*(4#'-): D!#'-2)!%43)0-('-#!$(/%#'-(0!(!"%5#0#'1(!#'-0#!$%-,(17#$!%'%*%(/!#!5%'(/!"#!,4(! (12)!#!)$!#$-(")$!"($!$%-,(17#$!%'%*%(/!#!5%'(/!"#!,4(!(12):!E%4)$!.,#!(!,4(!(12)! "9!.,#!4)"%5%*(!,4(!$%-,(12)!"#!,4!#$-(")!0!3(0(!,4(!"#!#$-(")!-9!#$-F!($$)*%(")! ,4! 3(0! )0"#'(")! "#! #$-(")$! 10$# -2:! G)-#4)$9! (%'"(9! .,#! ,4! 3(0! )0"#'(")! "#! #$-(")$!3)"#!#$-(0!($$)*%(")!(!4(%$!"#!,4(!(12):!#4)$! .,#! )! 3(0! )0"#'(")! "#! #$-(")$! 10$# -2! 3#0-#'*#! ()! -,.7(./,#*%#8"9%&#*%#%&/"*,&#*%/%9):."*,#8%+,#%&'(%)"#!!$#!#=%$-#!,4(!(12)!"!"#! #$.,#4(!!!-(/!.,#!0!C!)!#$-(")!%'%*%(/!"#!"!#!-!C!)!#$-(")!5%'(/!"#!": G)! .,#! *)'*#0'#! ()$! *)'+,'-)$! "#! 3(0#$! )0"#'(")$9! -#4)$! .,#9! #4! �(/9! ')$!4(',(%$!"#!R_&%*(!#!"#!S(-#4F-%*(9!,4(!0#/(12)!?%'F0%(!A%$-)!C9!,4(!0#/(12)! .,#!0#/(*%)'(!*,:&!#/#4#'-)$B!C!6%$-(!*)4)!,4!*)'+,'-)!"#!3(0#$!)0"#'(")$:!^#$$#! !"!

!"#$%&%"'()*"(+,-."'(/0(12'($0(3'(40(3556373'(8-.09:;

186

!"#"$%&"'%()(!&*"$%+%'(*+,-"%!"#$%&'("$%'(&'(.(/0+#+%&(*+%.12/"%345$%/"%6"/78/0"% #".% 9:!('".% 9+08'+1.$% &"#(% .('% ;1.0+% ,'%)7',!"@W0!#"'*F"%0,HN,',U,')0&,)', $"%').'I_,#,H$I,'&,0!#"'.B#&,!"0!"%'(#)*#,7%*'&,7',%)*#>%8;)$%'2,0-,'.B#&, %)*#"%0"%C'7'&2,"#6#"&J6#%&2,#,1-#,&#,$00"7#)'(,#(,#&*"-*-"'&,7#,$0):-)*0&, #,*"')&90"('.B#&4,H=OP?AQ_,O(!;#+*!#3&(!/*',%Y9@(#('/B%#2+#0*&G/(&#$1:2&*9;#,1&(/%#E!"#$%&$# ,(# +%61+('/%!;# (/07H# %2# !1+-"910%# E1+*:('!# ,(# /&*'!$%&+*)>(!H7# Z!# *!3(0/%!#%3(&*/16%!#1'01,(+#3%&#!(2#9*,%#!%-&(/2,%#'*!#/&*'!$%&+*)>(!;# *1',*#C2(#!(#3%!!*#0*&*0/(&1I*&#%3(&*/%&1*+('/(#2+#(!/*,%;#0%+%#&(!29/*,%# ,*!# /&*'!$%&+*)>(!# *'/(&1%&(!;# 3%'/%# ,(# 3*&/1,*# ,*!# /&*'!$%&+*)>(!# 29/(&1%&(!#%2#!1/2*)>(!#,(#/&*'!$%&+*)>(!#'29*!#%2#0%+3('!*,*!7#E?JKLMND# JOPMQRMS;#TUWW;#37#X]H7

^(&1$10*+%!;#*!!1+;#C2(#3%,(+%!#2!*&#*!#(!/&2/2&*!#*C21#1'/&%,2I1,*!#E(#!(2!# &(!29/*,%!#$%&+*1!H#3*&*#(!/2,*&#%!#!1!/(+*!#,(#(!C2(+*!#,(#*)B%#(#,(#%3(&*)B%# E0%+%# 2+# /%,%H# ,%# !2.(1/%# (31!/4+10%;# (+# !(2!# ,16(&!%!# '_6(1!# (# 3*!!*:('!# ,(# '_6(1!7#M+#(!3(01*9;#2+#(!/2,%#,(!!(#/13%#$%1#$(1/%#3%&#N*!!1'*&1#ETUU`#(#a]TTH;#3*&*# %#?(&_%,%#Z3(&*/"&1%#b%'0&(/%7

J',1C2(+%!# ('/B%;# '(!/*# 3('c9/1+*# !()B%;# *# *3910*)B%# ,*# '%)B%# ,(# ,1:&*$%# (+# (!/2,%!#,%!#3(&_%,%!#,(#,(!('6%961+('/%!#,*#(!/&2/2&*#+('/*9#,%#!2.(1/%#(31!/4+10%7 O%#?(&_%,%#d('!"&1%Y8%/%&;#(!!*!#(!/&2/2&*!#3(&+1/(+#(!/2,*&#%#!1!/(+*#,(# (!C2(+*!#,*!#*)>(!#(5/(&1%&(!#,%#!2.(1/%#EC2(#'B%;#'(0(!!*&1*+('/(#3&(!!23>(#*# &(3&(!('/*)B%;#3%1!;#0%+%#'%!#&(!!*9/*#?1*:(/#ETUWX-;#37#TVH;#[e*f#1'/(91:4'01*#!('!"&1%Y +%/%&*#0%'!1!/(#(+#0%%&,('*&#,1&(/*+('/(#*)>(!;#!(+#3*!!*(9*#&(3&(!('/*)B%#%2# 3(9%#3('!*+('/%\H7#?%,(Y!(;#3%�%'!(:21'/(;#+%!/&*+*#0%&&(9*)B%#,1&(/*#,(9*!# 0%+# %!# !1!/(+*!# ,(# (!C2(+*!# ,(# *)>(!# !('!"&1%Y+%/%&*!# (;# (+# (!3(01*9;# 0%+# *!# (!/&2/2&*!#,(#L&23%#?&G/10%#,(#R(!9%0*+('/%#(#0%+#*#?(&+*'4'01*#,%#Z-.(/%#E0$7# ?JKLMN;#TUUV;#(;#(!3(01*9+('/(;#?JKLMND#JOPMQRMS;#TU`V;#37#aTH;#%2#+(!+%#0%+# *#Q":10*#,*!#K)>(!#E0$7#?JKLMN;#TUWg;#(#?JKLMND#JOPMQRMS;#TU`V;#b*37#J;#d()B%#JJH;# %#C2(#3&(/(',(+%!#$*I(&#(+#/&*-*9@%!#$2/2&%!7 O%# ?(&_%,%# Z3(&*/"&1%# b%'0&(/%;# N*!!1'*&1# ETUU`# (# a]TTH# +%!/&*# 0%+%# %# !2&:1+('/%#,%#?(&_%,%#Z3(&*/"&1%#b%'0&(/%#!(#,G#3(9*#3%!!1-191,*,(#,(#%3(&*&#!%-&(# !_+-%9%!;#0%+%#,($1'1,%!#3(9*#?!10%9%:1*#(#M31!/(+%9%:1*#L('
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.