Pensando o sujeito moderno: um diálogo teórico entre Pierre Bourdieu e Stuart Hall

June 4, 2017 | Autor: P. Bandeira de Melo | Categoria: Self and Identity, Structure, Habitus, Contemporary Subject
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Pensando o sujeito moderno: um diálogo teórico entre Pierre Bourdieu e Stuart Hall1 Rodrigo Vieira de Assis2 Patricia Bandeira de Melo3 Resumo Pensar o sujeito moderno enquanto indivíduo centrado – dotado apenas de uma identidade única – é uma fantasia (HALL, 2006). Mais adequado seria, segundo Hall, perceber e compreender o sujeito moderno enquanto um ser que vive uma história particular, que lhe proporciona, durante as experiências vividas, contatar diversas tradições, inovações culturais, crenças, valores e identidades que, interpelando-o, configuram sua identidade de forma plural. A presente comunicação objetiva apresentar as primeiras discussões teóricometodológicas realizadas em pesquisa de iniciação científica, inscrita na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) sob o auspício do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O Estudo busca compreender e fazer distinções de identidades de grupo entre os jovens assistidos por políticas públicas culturais ofertadas nas cidades do Recife, de Olinda e de Jaboatão dos Guararapes. Esse artigo é fruto do período da construção da fundamentação teórica da pesquisa. Como o principal foco do texto, o embasamento teórico busca estabelecer diálogos entre os estudos culturais, especialmente Hall (2006), e a sociologia pós-estruturalista de Pierre Bourdieu (2008), uma vez que seus escritos tem-nos demonstrado afinidades. Em Hall (2006) identifica-se que, na modernidade tardia (após os anos de 1950), o sujeito social tornou-se mais pluralizado e, muitas vezes, contraditório. Em Bourdieu (2008) é considerada sua interpretação sobre o espaço social, o que possibilita ver, nos sujeitos, os diferentes estilos de vida, expressos em suas práticas e ações sociais que são, ao mesmo tempo, estruturadas e estruturantes. Serão considerados, dessa forma, no presente artigo, os conceitos bourdieusianos de habitus e de campo social e a noção de descentramento do sujeito defendida por Hall, buscando demonstrar relações entre as duas perspectivas da análise cultural. Palavras-chave: sujeito moderno, identidade, habitus, estrutura.

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Este artigo consiste nas primeiras reflexões para a execução do subprojeto de pesquisa “A constituição da(s) identidade(s) dos jovens: aspectos distintivos no consumo cultural”, que integra o projeto “Juventudes, consumo cultural e políticas públicas”, em andamento na Fundação Joaquim Nabuco. 2 Graduando em ciências sociais pela UFRPE e bolsista de iniciação científica da Fundaj. 3 Doutora em sociologia pela UFPE e pesquisadora da Fundaj.

Introdução Pensar a modernidade e suas imbricações é desafiador. Pensar o sujeito no cerne dos processos que dão forma a vida moderna, então, mostra-se uma empreitada significativa e dotada de dificuldades. A modernidade, como já afirmara Giddens (1991), é um momento cujas transformações acontecem rápida e intensamente, ao mesmo tempo em que parecem interligar espaços geograficamente longínquos. Partindo do pensamento desse autor, nota-se o quanto é complexo estudar os processos modernos, principalmente, considerando as descontinuidades existentes nas articulações contemporâneas. Por conseguinte, a permanência de transformações nas concepções de vida, nas perspectivas dos sujeitos sociais e nos seus valores tradicionais pressupõe uma nova lógica no comportamento do sujeito moderno. Muitos autores pensaram o indivíduo enquanto elemento inserido nas estruturas modernas. Marx, por exemplo, ao querer analisar o sistema capitalista e o comportamento da relação de luta entre as classes sociais acabou, mesmo que não fosse sua principal preocupação, observando o indivíduo industrial, moderno de seu tempo. Weber, por sua vez, também se preocupou, entre o final do século XIX e o início do século XX, com o sujeito moderno pelo viés compreensivo, mas, diferentemente de Marx, sua abordagem pretendia conhecer o desenvolvimento da mentalidade do indivíduo capitalista, um sujeito que “nasceu” junto com o advento das grandes estruturas organizadas e racionalizadas, sendo, ele mesmo, capaz de exercer atividades nessas estruturas. Portanto, o sujeito moderno é objeto de estudos há muito tempo. Compreendendo a importância de tais análises, pensadores do século XX debruçaram-se sobre temas que, em maior ou menor grau, viram no estudo do sujeito social moderno uma gama de ricas informações sobre o espaço social. Pierre Bourdieu, fundador de uma das mais significantes teorias sociológicas do século XX, foi um deles. Como muitos sociólogos, ele se lançou na perspectiva de construir uma teoria geral. Para isso, refletiu acerca das tensões entre agente e estrutura, questão central da sociologia, e chegou a conceitos como o de campos sociais e de habitus, fundamentais para entender o indivíduo e as suas interações na lógica bourdieusiana. Por pensar o campos social como espaço de exposição e de expressão do agente, ao mesmo tempo em que admite que este agente se dobra às estruturas do campo, Bourdieu está situado numa perspectiva pós-estruturalista. Já Stuart Hall foi herdeiro das premissas dos estudos culturais, perspectiva teórica surgida com a difusão do pensamento gramsciano sobre a cultura e impulsionado pelos trabalhos de Raymond Williams e David Harvey. Hall é outro autor que merece destaque frente às novas tendências teórico-metodológicas dos estudos da cultura, trazendo ideias

fundamentais para pensar o sujeito moderno, especialmente ao categorizar de forma metodológica os tipos de sujeito. O estudo desses dois autores promoveu este artigo, numa tentativa de localização de pontos de articulação e tensão entre os pensamentos de ambos. A nossa pesquisa, vale ressaltar, objetiva identificar, em grupos de jovens assistidos por políticas públicas culturais promovidas nas cidades do Recife, de Olinda e de Jaboatão dos Guararapes, aspectos de diferenciação das identidades dos grupos juvenis, considerando, para tanto, o consumo cultural. Este artigo é fruto do período de construção da fundamentação teórica da pesquisa. O principal foco deste trabalho, portanto, é a apresentação de parte do embasamento teórico, que busca estabelecer diálogos entre os estudos culturais, especialmente Hall (2006), e a sociologia pós-estruturalista de Pierre Bourdieu (2008), uma vez que seus escritos tem-nos demonstrado afinidades. É de fundamental importância, para alcançar o objetivo proposto, que é identificar os pontos de convergência entre o pensamento de Stuart Hall e Pierre Bourdieu, expor as concepções desenvolvidas pelo primeiro sobre as noções de identidade. Partindo dessa apresentação, buscar-se-á relacionar a concepção de descentramento do sujeito pós-moderno de Hall com o conceito de habitus de Bourdieu. E, por fim, verificar como o sujeito moderno, constituído pela soma de especificidades de identidades, estabelece-se no espaço social, considerando a dinâmica dos campos. Para Bourdieu, os campos estavam todos imersos no campo religioso, do qual foram se desvinculando aos poucos. É nesta ruptura que surgem os demais campos sociais, lugar onde os grupos sociais lutam para obter o direito de entrada, que se dá segundo o capital acumulado dos indivíduos, capital esse que vai além do econômico: reúne o capital cultural e simbólico de cada um. E é no campo social que se constrói o habitus do indivíduo. A sociedade estaria organizada em campos sociais, que se comunicam e intercambiam informações, ao mesmo tempo em que se fortalecem em suas posições de campos autônomos e representativos, constituídos de capitais próprios além do capital econômico. Assim, é possível pensar em diversos campos: jurídico, político, científico, da comunicação etc. A autonomia de um campo social está inserida na sua história, contextualizada no lento e longo trabalho que se processa para a formação, construção e afirmação do campo. Desse modo, as mudanças num dado campo se dão historicamente pelos agentes e seus produtos, que se esforçam por reforçar ou romper com práticas e discursos estabelecidos como próprios do campo. A ação do agente será tanto mais significativa quanto melhor é a sua posição no campo, o prestígio que detém. Os produtos, discursos, são frutos dos interesses do agente ligado a uma posição, numa luta pelo poder no campo. Isso nos leva a considerar

que, quanto mais força tiver um indivíduo em um dado campo, mais força terá o seu discurso. Logo, está agindo com intencionalidade e, para isso, recorre à linguagem, recurso que efetivamente somente a agência humana pode utilizar. As três concepções de sujeito em Stuart Hall É de fundamental importância, para alcançar o objetivo proposto por este artigo, expor as concepções desenvolvidas por Stuart Hall sobre as noções de identidade. Afirmar que a noção de sujeito modificou-se, juntamente com as transformações sociais, não é uma assertiva passível de objeção. Ora, se a sociedade é dinâmica, logo, o sujeito também é passível de mudanças. Considerando a dinâmica da sociedade, identificam-se em Hall (2006), três noções de sujeito, a saber: o sujeito do iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. O sujeito do iluminismo seria um ser centrado e unificado, dotado da capacidade de razão. Sua essência seria o seu interior e sua identidade considerada natural, uma vez que ela o pertencia desde o seu nascimento e com ele se desenvolvia. Logo, suas capacidades individuais seriam inatas, não um processo de aprendizado. Esse sujeito seria o mesmo desde a sua origem, não se modificando ou sendo (res)significado com sua história. Em seu centro haveria um núcleo que com ele se desenvolvia, ainda que permanecesse o mesmo ao longo de sua existência. O “indivíduo soberano”, centrado, nasce entre o Humanismo Renascentista do século XVI e o Iluminismo do século XVIII, e marca um corte com o passado, determinando o começo da modernidade. Hall aponta um momento intermediário do sujeito centrado ao ressaltar que Raymond Williams (1976, apud HALL, 2006) destaca que a história moderna do sujeito individual possui dois sentidos: ora sujeito é “indivisível”, ou seja, é único em seu interior; ora é também uma entidade “singular, distintiva, única”. Seria como um rito de passagem, em que se reconhece o momento em que se inicia a fragmentação do sujeito. O sujeito sociológico está relacionado ao olhar de um ser interativo, configurado pelo seu processo de socialização e absorção de caracteres de sua cultura. Este sujeito refletia “a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente” (HALL, 2006, p. 11). Seus principais promotores foram G.H. Mead, C.H. Cooley e os interacionistas simbólicos. Essa percepção da identidade representa a visão sociológica clássica da questão. Assim, a identidade resultaria da interação entre o eu e a sociedade. De partida, já percebemos aqui as ideias que vão fundamentar também o conceito de habitus de Bourdieu:

A identidade, na concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis (HALL, 2006, pp. 11 – 12). Essa concepção de identidade seria “interativa”, pois o sujeito seria constituído pelas relações e experiências vividas junto aos sujeitos que o rodeiam. A posição de Hall (2006) em relação à atual situação da identidade na pós-modernidade coloca o sujeito enquanto dotado “não de uma, mais de várias identidades”, ou seja, não seria um ser configurado de forma plena e estável, mas estaria tornando-se fragmentado – partilhando, por vezes, identidades contraditórias entre si. O sujeito pós-moderno tem uma identidade provisória, variável e problemática. A identidade é, portanto, “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados e interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 1987 apud HALL, 2006, p. 13). No deslocamento contínuo das identificações, perde-se a noção de coerência do eu. Aqui, percebe-se um contexto negativo para o indivíduo, que se perde acerca de uma ideia sobre si. Como ele diz, “a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 2006, p. 13). Ao contextualizarmos as noções de Hall no estudo sobre a juventude, observamos que os indivíduos são capazes de reconhecer a representação de seu grupo nos produtos culturais, ou seja, o jovem pertencente a um determinado grupo social se percebe em determinados objetos. Assim, subentende-se que eles são capazes de identificar quando há uma representação de si baseada em um olhar do outro, podendo ou não compartilhar e consumir os produtos a eles destinados. Essa “crise de identidade” seria parte de um processo mais amplo de mudança, que, por sua vez, desloca “as estruturas e processos centrais das sociedades modernas”. No esquema proposto pelo autor para verificar as três disposições de identidade, entende-se que as duas primeiras retratadas servem, apenas, para possibilitar o entendimento acerca do desenvolvimento da noção de identidade pós-moderna. E, consequentemente, permitem colocar em evidência a noção de descentramento do sujeito, contribuição de importância significativa para pensar o sujeito na modernidade, na lógica de Hall.

Vale ressaltar que o processo de globalização foi fundamental para o desenvolvimento dessa noção de sujeito pós-moderno, uma vez que as identidades, para o autor, estão entrando em colapso principalmente devido às mudanças estruturais e institucionais promovidas por esse processo. Até mesmo o “processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático” (HALL, 2006, p. 12). Para o autor, “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado” (HALL, 2006, p. 7). Para Hall, há uma crise de identidade, o que abala a ideia que cada um tem de si mesmo. Ele afirma: Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo (HALL, 2006, p. 9). As sociedades modernas foram, ao longo de suas transformações, tornando-se mais complexas. Isso trouxe, consequentemente, novas problemáticas sociais, culturais e políticas. Hall (2006) afirma, também, que essas sociedades adquiriram “uma forma mais coletiva e social”. O sujeito, aos poucos, é percebido no interior das grandes estruturas, logo, não mais tão individualizado como à época do Iluminismo. Seria uma “concepção mais social do sujeito”, uma vez que era percebido no cerne dessas “formações sustentadoras da sociedade moderna”. Esse pensamento já qualifica o conceito de “descentração do sujeito” como fundamental para um estudo adequado da identidade, principalmente ao se tratar da identidade dos jovens, uma vez que esses sujeitos são constantemente motivados a partilharem novos produtos culturais, os quais, por seu turno, desenvolvem sentimentos de pertencimento, ou não, em quem os consome. O que percebemos é que Hall imagina uma quebra a partir de um dado momento da história da humanidade, como se o indivíduo estivesse centrado até o iluminismo. O descentramento ocorreria em seguida, marcando uma crise: Tanto em extensão, quanto em intensidade, as transformações envolvidas na modernidade são mais profundas do que a maioria das mudanças características dos períodos anteriores. No plano da extensão, elas serviram para estabelecer formas de interconexão social que cobrem o globo; em termos de intensidade, elas alteraram algumas das características

mais íntimas e pessoais de nossa existência cotidiana (GIDDENS, 1990, p. 21 apud HALL, 2006, p. 16). Ele leva em consideração o caráter da mudança no decorrer da história, assim, considera-se que a estrutura da identidade permanece aberta, para assim, consequentemente, continuar havendo a história. Os pontos positivos seriam então a configuração de novas identidades, advindas da nova fase de uma determinada sociedade e da produção de novos sujeitos. Esse processo, para ele, denomina-se “recomposição da estrutura em torno de pontos nodais particulares de articulação” (LACLAU, 1990, p. 40 apud HALL, 2006, p. 18). Hall afirma: Essas mudanças sublinham a afirmação básica de que as conceptualizações do sujeito mudam e, portanto, têm uma história. Uma vez que o sujeito moderno emergiu num momento particular (seu “nascimento”) e tem uma história, segue-se que ele também pode mudar e, de fato, sob certas circunstâncias, podemos mesmo contemplar sua “morte”. (HALL, 2006, p. 24). Para Hall (2006), o primeiro movimento de descentração ocorre com o pensamento marxista. A ideia de que os homens fazem a história a partir das condições que lhe são dadas é fundadora deste momento. O segundo movimento acontece a partir dos estudos do inconsciente promovidos por Freud, que aborda as questões da sexualidade e do desejo como partes de um processo psíquico e simbólico, dentro de uma lógica diversa da razão. Aqui, o indivíduo perde a identidade fixa e única. Hall põe como terceiro descentramento a lógica desenvolvida pela teoria de Ferdinand de Saussure, para quem a língua é um sistema social dinâmico, cujos sentidos não estão dados em regras fixadas anteriormente. Para Saussure, não somos autores de nossos próprios discursos: na verdade, há uma determinação do outro sobre a produção do pensamento de cada indivíduo. O quarto descentramento da identidade e do sujeito ocorre no trabalho de Michel Foucault. Foucault desenvolve uma espécie de “genealogia do sujeito moderno” e destaca um novo tipo de poder, que ele chama de “poder disciplinar”. Por fim, o quinto descentramento “é o impacto do feminismo, tanto como uma crítica teórica quanto como um movimento social” (HALL, 2006, pp.43-44). A partir deste ponto, verifica-se uma posição positiva de Hall em relação à fragmentação, uma vez que, assumindo a inexistência de centro, a construção de identidades

múltiplas permite que um novo sujeito venha à tona numa nova sociedade, onde estão disponíveis novas formas de agir, consumir e pensar. De certo modo, Hall se reencontra com Bourdieu, que não problematiza o descentramento do indivíduo. Para o teórico francês, a fragmentação é algo dado, na medida em que o indivíduo possui um habitus, mas se mantém em constante circulação pelos diversos campos sociais. O habitus bourdieusiano e a identidade cultural pós-moderna: um diálogo possível? O conceito de habitus em Bourdieu (1996) permite analisar os indivíduos em suas práticas exercidas no espaço social representado, ou seja, no espaço dos estilos de vida. O habitus é a externalização da estrutura social interiorizada pelos indivíduos, os quais ocupam posições variadas nos campos sociais em que circulam. Assim, o mesmo sujeito pode ser em determinado momento um empregado de uma grande indústria, tendo obrigação apenas com as atividades que lhe são designadas, agindo de acordo com as funções determinadas para sua posição. Dessa forma, esse indivíduo tem, nesse ambiente, uma forma de portar-se, de falar, de agir específicas. No entanto, esse mesmo sujeito pode ser, no ambiente familiar, o porta voz das decisões legítimas, uma vez que neste espaço, a casa, ele ocupa uma posição de autoridade que lhe permite tal ação. Logo, a posição ocupada pelo sujeito no espaço social específico permite identificar a prevalência de características expressas pelo habitus. O habitus é um processo de transformação que torna alguém parte do grupo ao qual pertence, através de ritos de instituição, ou seja, dos processos sociais. Ou seja, o habitus é construído dentro da estrutura de campo ao qual o indivíduo integra. Para Bourdieu (1996), não é possível determinar quem faz a escolha, se o sujeito ou a instituição, não se sabe quando o bom aluno escolhe a escola, ou se é o contrário, pois a sua conduta dócil ou arisca evidencia o quanto ele efetivamente escolhe. O processo de definição do habitus é perpassado pela doxa, a crença sem discussão, quando o indivíduo aceita sem saber, promovendo a tolerância do dominado sobre a dominação por crer ser de fato o que é. Assim, a doxa é a internalização de crenças dominantes e opressoras, determinada pela ordem social. Por isso, a intercomunicação entre agente e estrutura, na perspectiva bourdieusiana, põe em proporções desiguais o campo e o sujeito: nem todo indivíduo pode se expressar da mesma forma no campo ao qual pertence ou circula. O laço social que une os indivíduos em sociedade é o sistema de signos. Por outro lado, cada indivíduo possui um conjunto de disposições adquiridas em um contexto e uma

situação particular, o habitus, a forma como absorve socialmente e externaliza algo. Para Bourdieu, “a cada classe de posições corresponde uma classe de habitus (ou de „gostos‟) produzidos pelos condicionamentos sociais associados à condição correspondente” (BOURDIEU, 1996, p. 21). Na clássica tensão sociológica indivíduo X estrutura, enquanto a perspectiva humanista impõe o subjetivismo à realidade, a perspectiva estruturalista realça a força da estrutura na sociedade, deixando o indivíduo submetido à sua ordem. Pierre Bourdieu (1996) tenta solucionar a questão ao definir habitus. O conceito permite a visualização de certa liberdade de ação do indivíduo dentro de parâmetros estruturais previamente dados. O indivíduo não fica refém da estrutura, agindo dentro das disposições subjetivas do indivíduo e das estruturas objetivas, ainda que permaneça uma relação de desigualdade. Considerando que o habitus de um indivíduo é constituído na relação com outros agentes, que se aproximam na medida em que compartilham similaridades e que ao terem em interesses, capitais econômico e cultural, gostos comuns, verifica-se o processo de formação dos grupos humanos. Assim, os jovens que consomem determinado produto cultural tendem a aproximar-se, da mesma forma que, quando há uma distinção muito acentuada no gosto, o contrário é previsível. As práticas dos agentes, por sua vez, são expressões da interiorização de classificações resultantes dos julgamentos classificatórios, que são gerados pela posição ocupada pelos agentes no espaço social e que, pensando na categoria “juventude”, relaciona-se fortemente com o que se é consumido culturalmente. Para Bourdieu, o habitus é um “principio gerador de práticas objetivamente classificáveis e, ao mesmo tempo, sistema de classificação (principium divisionis) de tais práticas” (BOURDIEU, 2008, p. 162). Esse conceito, compreendido como estrutura estruturante e estrutura estruturada, apresenta-se como essencial para fazer distinções de grupos, uma vez que o agente interioriza e exterioriza, em ações condicionadas e em práticas sociais condicionantes, o habitus. Para Bourdieu, o habitus consiste em disposições do indivíduo a um modo de conduta, a exteriorização de um conhecimento incorporado acrescido de sua própria prática. Ele acredita que opera no sujeito, através do habitus, além da reprodução de estruturas internalizadas, o seu poder consciente, colocando em evidência as capacidades “criadoras, ativas, inventivas, do habitus e do agente” (BOURDIEU, 2004, 61). O agente está agindo, é ativo, e mesmo sendo impulsionado por seu inconsciente, atua como operador prático no discurso e nas ações. A localização do sujeito no espaço social é de suma importância para poder identificar, analisar, interpretar, explicar e, posteriormente, fazer distinções entre as identidades, as

relações decorrentes da convivência em determinado grupo, classe, campo – considerando a pluralidade dos sujeitos modernos e, consequentemente, evidenciando uma variedade de habitus. Esta variedade, para o sociólogo, funciona como uma marca de sua condição no campo social e a sua forma de consumir e apreciar, sem carregar o peso do conceito de descentramento de Hall. Bourdieu diz: Pelo fato de que as condições diferentes de existência produzem habitus diferentes, sistemas de esquemas geradores suscetíveis de serem aplicados, por simples transferência, às mais diferentes áreas da prática, as práticas engendradas pelos diferentes habitus apresentam-se como configurações sistemáticas de propriedades que exprimem as diferenças objetivamente inscritas nas condições de existência sob a forma de sistemas de distâncias diferenciais que, percebidos por agentes dotados dos esquemas de percepção e de apreciação necessários para identificar, interpretar e avaliar seus traços pertinentes, funcionam como estilos de vida (Bourdieu, 2008, p. 164). Bourdieu, nessa passagem, menciona os pontos de codificação e decodificação que permitem determinados sujeitos se distinguirem de outros, por exemplo, na observação de uma obra de arte: o crítico de literatura na avaliação de um texto literário terá – ao menos se espera que assim aconteça - uma percepção da obra melhor que um leitor de simples curiosidade, uma vez que possui capitais simbólicos específicos para tal avaliação; um bom fotógrafo percebe, ao olhar uma realidade captada pela lente de uma máquina, todo o procedimento executado por profissional da mesma classe, diferentemente de um leigo na área que, provavelmente, buscaria, a priori, apenas admirar a beleza da imagem. O habitus e a identidade pós-moderna Podemos pensar em relacionar o habitus de Bourdieu com a noção de identidade pósmoderna de Hall. De acordo com o pensamento bourdieusiano, o habitus é estrutura estruturante e estrutura estruturada, porque, ao mesmo tempo em que determina o indivíduo em suas ações e crenças, também permite a ele a subversão da ordem estabelecida. Nessa perspectiva, não é equivocado pensar a noção de identidade de Hall enquanto uma estrutura que condiciona, produz e reproduz habitus. Ora, se para Bourdieu o agente, no espaço social representado, ocupa posições que lhe proporcionam, em maior ou menor grau, a capacidade de agir sobre este mesmo espaço, suas ações (estruturantes) vão gerar um conjunto de outras ações de intervenção no campo (estruturadas). É possível, por conseguinte, compreender que a identidade do sujeito pós-

moderno de Hall, por ser constituída na relação com outras identidades, é uma estrutura estruturada e também estruturante. O próprio Hall afirma que a identidade é “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados e interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 1987 apud HALL, 2006, p. 13). Além do mais, vê-se em seu pensamento que as identidades são configuradas no diálogo com outras identidades, ou seja, que uma identidade promove outra identidade que é diferenciada na medida em que o conjunto de identidades que constituem cada uma modifica-se de acordo com as experiências particulares vividas no decorrer do constante processo de internalização. Este conceito, intrinsecamente dinâmico, possibilita a aproximação com as ideias de Pierre Bourdieu. Com essa lógica, Bourdieu explica a noção de estrutura estruturante e estrutura estruturada do habitus em conformação com as práticas e a identidade: Estrutura estruturante que organiza as práticas e a percepção das práticas, o habitus é também estrutura estruturada. (...) Cada condição é definida, inseparavelmente, por suas propriedades intrínsecas e pelas propriedades relacionais inerentes à sua posição no sistema das condições que é, também, um sistema de diferenças, de posições diferenciais, ou seja, por tudo o que a distingue de tudo o que ela não é e, em particular, de tudo o que lhe é oposto: a identidade social define-se e afirma-se na diferença (BOURDIEU, 2008, p. 184). (Grifo nosso) Hall, por sua vez, justifica que a identidade é colocada em evidência quando se encontra em crise. Assim, verifica-se que, para ele, a diferença contribui para analisar as identidades em seu processo de afirmação. Enquanto Bourdieu naturaliza a diferença em decorrência do habitus do indivíduo e da sua posição no campo, Hall fala de descentramento como uma condição negativa do sujeito, posição que somente é percebida como positiva mais adiante, ao considerar a constituição de novas sociedades, para as quais devem existir novos sujeitos. A identidade fabricada e tida como natural, na verdade, é reconhecida por Bourdieu. O que ele naturaliza é a diferença, que é extremamente importante para pensar a questão da identidade da juventude. A identidade é construída historicamente, mas o processo histórico trata de apagá-lo de sua memória, apagamento que gera a naturalização do fato. Ao serem objetivadas, ganham caráter de imanência e perdem a subjetividade. Assim, a sensação de pertencimento – o lugar de fala – é também uma luta para manter seu lugar, ficar em seu lugar, lugar ocupado e definido, aceito, respeitado e defendido.

O habitus é, reforçamos aqui, o que é internalizado e externalizado pelo indivíduo, e o campo social agrupa os indivíduos que mais se assemelham entre si e que são muito diferentes de membros de outros campos. Isso não impede a dinâmica, a circulação de indivíduos nos variados campos e mesmo a apropriação de práticas (gostos) de um grupo pelo outro (música, dança, alimentação etc.). O indivíduo que circula num dado campo é detentor de determinado capital – social, econômico, cultural. Este sujeito, que incorporou um modo de agir que é exteriorizado por sua prática, pensamento e sentimento, detém o capital social que o permite estar neste e naquele campo social e não em outro(s). Conclusão Nas sociedades modernas há uma ênfase discursiva, nos meios de comunicação, no campo político e no campo econômico sobre qual o futuro que está por vir para a vida do indivíduo no tempo próximo. Esses discursos trazem as posições e a atenção dos aparatos de manutenção da sociedade – principalmente no que tange à formulação e aplicação de políticas públicas – para a juventude, uma vez que esse agrupamento humano é considerado, de modo geral, pelos gestores da sociedade, como “a geração do futuro”. Em nossa pesquisa em andamento, considera-se que os jovens têm interesses coletivos de geração, assim, estendem-se além dos interesses unicamente particulares de classe ou de campo social (BOURDIEU, 1983). Logo, os jovens são essenciais para o estudo do sujeito moderno, uma vez que representam para a sociedade uma categoria específica dotada de capacidade de manter e de inovar a ordenação e as tradições, nos anos que virão, do tempo presente. Com as identidades em desintegração e reforma, é fundamental a reflexão a ser feita na pesquisa para pensar em que medida a(s) identidade(s) dos jovens se articulam no consumo e nas práticas culturais contemporâneas. Para isso, é fundamental entender a fragmentação do sujeito, que vai permitir ver estes jovens para além de um conjunto formado por indivíduos de idades próximas: na verdade, a determinação reúne dados muito mais complexos para que possamos definir de que jovem(ns) estamos falando. Por isso, Hall mostra-se fundamental na medida em que teremos que compreender os processos de globalização que fizeram aflorar identidades marcadas pelo consumo na contemporaneidade. Já Bourdieu vai contribuir ao fornecer instrumentos de percepção das inúmeras possibilidades de gostos e estilos de vida, determinantes do indivíduo no ato de consumir produtos e bens culturais.

Bibliografia: BOURDIEU, Pierre. A “juventude” é apenas uma palavra. In: BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983, pp. 112-121. _________________. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. _________________. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. _________________. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2008. GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1991. HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do “popular”. In. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: Unesco, 2003. pp. 247 - 263. ___________. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

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