PENSAR A ÁFRICA E REPENSAR O BRASIL: UMA REFLEXÃO SOBRE A LEI 10.639/2003

June 15, 2017 | Autor: R. Santos | Categoria: História da África, Relações Étnicorraciais e Educação
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PENSAR A ÁFRICA E REPENSAR O BRASIL: UMA REFLEXÃO SOBRE A LEI 10.639/2003 Raphael Freitas Santos Mestre em História Social (UFMG) Professor de História da África (Faculdade ASA de Brumadinho)

RESUMO: O objetivo do texto é problematizar a importância da aplicação da 10.639/2003 – que torna obrigatório o ensino de História e cultura afro-brasileira e africana –, os resultados esperados desse esforço de inserção do negro e mestiço na história brasileira, e a superação da discriminação racial. Para tanto, foi discutido, primeiramente, a idéia de África e as construções européias sobre o continente e seus habitantes, a fim de apresentar a gênese do preconceito contra o negro. Por fim, foram apresentados alguns aspectos sobre a história africana que serviram de subsídios para uma melhor compreensão de um episódio importante da história do Brasil: o quilombo dos Palmares. PALAVRAS CHAVE: História; África; Lei 10639/2003;

INTRODUÇÃO Em 2003, uma lei aprovada motivou muita discussão e inquietação nos meios acadêmicos e escolares. A lei 10.639/2003 alterou a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de História e cultura afro-brasileira e africana na Educação Básica. Essa foi uma medida tomada em conjunto com uma série de ações afirmativas, que visa criar um novo modelo de inclusão baseado na valorização da diversidade e na inserção efetiva da população negra e mestiça no Brasil.1 Com a lei, passa a ser obrigação do professor o reconhecimento e a valorização da identidade, história e cultura dos afro-brasileiros. Os meios de se fazer isso no ambiente escolar são muitos, como, por exemplo, a Educação Artística, a Literatura e a História. Mas é acompanhado de um grande desafio a nós educadores: apesar de reconhecermos a importância do elemento africano na formação da sociedade brasileira, ainda insistimos em reproduzir as velhas interpretações da história do Brasil, herança de 1

Como é o caso, por exemplo, das vagas reservadas à população negra em universidades e cargos públicos.

uma intelectualidade tributária de um imaginário oriundo de uma sociedade escravocrata. Nessa perspectiva, a África foi apresentada apenas como a origem dos escravos que alavancaram o desenvolvimento do Brasil; e os africanos, como agentes passivos diante do desenrolar da história, que a eles sempre foi bastante injusta (PRADO, 1997; PRADO JUNIOR, 1976; FURTADO, 1976). Para os mais “conscientes” da importância dos africanos na formação da sociedade brasileira, admitiu-se, no máximo, a sua participação como agentes da cultura popular. CUNHA, 1963; BONFIM, s.d; AZEVEDO, s.d). Nos últimos tempos observamos um grande avanço no sentido de uma nova abordagem. 2 Esse é um esforço fundamental na medida em que conhecer melhor a História e a cultura africana nos permite reinterpretar capítulos da História do Brasil e compreender melhor a sociedade brasileira. A fim de superar a ignorância, a principal razão do preconceito e da discriminação, que se segue o esforço em abordar a história da África, dos africanos e dos afro-brasileiros. Mas não há como recuperar a africanidade e superar essa ignorância sem nos despirmos dos preconceitos etnocêntricos. Por isso antes de exercitar um novo olhar sobre a história do Brasil – tendo em vista os conhecimentos sobre a história africana – é importante conceituar África e compreender a origem da descriminação à população desse continente.

A ÁFRICA EM PERSPECTIVA Não se sabe ao certo a origem do termo África, mas sabe-se que a primeira definição européia para a região abaixo do Mediterrâneo foi dada pelos Gregos. Lybia 2

O aumento de publicações sobre essa temática e a criação de cursos de pós-graduação destinados a esse tipo de pesquisa, são exemplos do esforço em um maior entendimento da matriz africana (OLIVA, 2003).

foi a palavra usava para se referir a esse território. Outro termo utilizado na Antiguidade para designar no mapa a região correspondente à África era Etiópia. A palavra significava em grego “face queimada”. Somente com os romanos que a região ficou sendo conhecida, paulatinamente, como África. 3 Porém até o período das conquistas ultramarinas européias, África e Etiópia eram igualmente utilizadas para definir o continente negro. Por ser uma região brutalmente exposta ao sol, a África passou a ser representada como um lugar em que coabtavam humanos e seres monstruosos. Essa “demonização” do continente foi levada adiante pela cultura cristã, que sempre associou a cor negra ao mal. Nesse sentido imagens do inferno e do Diabo remetiam, no inconsciente europeu à África. Isso fica claro nos exempluns medievais, uma espécie de parábola muito utilizada durante os sermões. Neles a figura de Satã – chamado, muitas vezes, de príncipe negro – era “negra como um etíope” (DEL PRIORE & VENÂNCIO, 2004: 58). A assimilação do africano/etíope ao demônio não era gratuita: a cor negra do demônio se deve ao prolongado estágio no inferno, sua residência habitual. Além disso, interpretações correntes do livro do Gênesis perpetuaram a discriminação dos europeus em relação aos habitantes da África. O continente ficou conhecido por terra dos filhos de Cã, devido a essa passagem do texto bíblico. Cã era o filho mais novo de Noé, que tinha mais dois filhos chamados Sem e Jafet. Durante as comemorações de uma grande colheita de uva, Noé excedeu na quantidade de vinho que tomou e foi encontrado nu em sua tenda por seu filho Cã. Esse, por sua vez, achando graça da situação, começou a zombar do pai para seus irmão, que prontamente foram cobrir a nudez do pai.

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Existe uma dificuldade imensa em definir a etimologia da palavra África. Uma das hipóteses é que África teria sido o nome de um povo (berbere) que se desenvolveu ao sul de Cartago. Outra hipótese é a de que a África seria derivada da palavra aprica, que em latim significa ensolarado (KI-ZERBO,1980: 21).

Para castigar Cã pela ofensa, o patriarca amaldiçoou o filho de Cã – Canaã – e seus descendentes, a servir a Jafet e Sem, e toda sua descendência. Segundo o texto bíblico Noé disse: Maldito seja Canaã! Servo dos servos seja aos seus irmãos. Bendito seja o Senhor Deus de Sem! Seja-lhe Canaã por servo. Alargue Deus a Jafet; habite ele nas tendas de Sem, e seja-lhe Canaã por servo (GN 9:25,27)

Lendas contam que os filhos dos filhos dos amaldiçoados, que migraram para o sul (para a região de Sodoma, Gomorra, Admá e Zeboim), em terras muito iluminadas por um sol que os queimaram, até torná-los negros (DEL PRIORE & VENÂNCIO, 2004). Com base em argumentos como esses, a justificativa para escravidão africana encontrava respaldo entre os cristãos. Escravos africanos eram cada vez mais comuns na Europa, devido ao comércio com os muçulmanos do norte da África.

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Esses

comerciantes, além de escravos, abasteciam a Europa com ouro e marfim de origem etíope. É o que nos contou o cronista João de Barros. Segundo o explorador português, em 1442 o ouro em pó foi obtido pela primeira vez por meio de trocas com os nativos. Não se sabe ao certo a quantidade de ouro que era remetida anualmente para Portugal. Entretanto, segundo Boxer,

deve ter sido uma quantidade substancial, sobretudo nos últimos anos, porque a casa da Moeda de Lisboa retomou, em 1457, a emissão de moedas de ouro, quando da cunhagem do cruzado, quase com a pureza primitiva, que não sofreu nenhuma desvalorização até 1536. (BOXER, 2002: 40)

4 Para saber mais sobre a escravidão negra na Europa medieval ver: SILVA, 2002: 133-147.

Concomitante ao comércio de ouro, crescia gradativamente o tráfico de escravos. Mas a busca por ouro e escravos era parte de um mesmo projeto, principalmente português: a descoberta do Reino do Preste João. De acordo com o imaginário europeu, Preste João era o imperador da Etiópia, que de acordo com a geografia medieval era “uma das três Índias” (BOXER, 2002). Os escritos da época – entre eles uma carta forjada que teria sido enviada por Preste João, alimentaram a credulidade e a esperança dos europeus de encontrar um poderoso rei-sacerdote-cristão que dominava um reino que se estendia desde o Marrocos ao mar Negro. As versões mais extravagantes da lenda de Preste João, dizia, por exemplo, que comiam em sua mesa, feita de esmeraldas, 30.000 pessoas, entre os quais 12 arcebispos e 20 bispos (BOXER, 2002). Dizia que seres fantásticos lhes obedeciam e que esse império era formado por 12 reinos, que os cristãos que lá nasciam era batizados com água e marcados a ferro para se distinguir dos infiéis. Além disso, dizia que seu exército era poderoso e contava com uma feroz cavalaria e 6000 elefantes. (DEL PRIORE & VENÂNCIO, 2004) A presença européia, no primeiro século da expansão marítima, se resumia ao litoral da África. Mas era no interior, ou melhor, na costa oriental do continente que se localizava o Reino de Preste João. Ao progredirem ao longo da costa ocidental, rumo ao sul, a perspectiva de que esse continente pudesse ser circunavegado, aumentava as chances de se chegar ao reino. O sonho português de encontrar esse potentado mítico foi, inclusive, financiado pelo ouro e pelos escravos adquiridos no próprio continente africano. Com isso podemos pensar duas importantes questões: A primeira diz respeito às permanências do imaginário medieval durante a Idade Moderna. As representações sobre a África continuaram relacionadas à religião e a escravidão, inclusive a primeira

justificando a segunda – situação essa que mudaria apenas no século XIX, quando a ciência e o capitalismo passaram a ser os responsáveis pela conquista e partilha do continente. A segunda questão está relacionada aos interesses econômicos europeus que em África encontraram terreno fértil para desenvolvimento. Portanto, durante a expansão marítima européia, a África era mais do que um obstáculo a ser ultrapassado para se cruzar o cabo da Boa Esperança e alcançar as Índias era um objetivo europeu. O resultado desse esforço foi a criação de um negócio extremamente lucrativo: o tráfico atlântico de escravos. Esse grande negócio criou laços de dependência, direta ou indireta, entre a Europa e suas “descobertas” na América e na África. Mais do que isso, o tráfico atlântico de escravos consolidou um processo de desumanização ideológica do negro, que podemos encontrar ecos até os dias atuais. Muitas pessoas ao fechar os olhos e imaginar um escravo, provavelmente pensariam em um africano. Isso acontece mesmo entre as pessoas que sabem que durante muito tempo os árabes, armênios, berberes, búlgaros, eslavos, gregos e turcos podiam ser encontrados como escravos no sul da Europa. Apesar de a escravidão branca fazer parte da história da civilização ocidental, o Ocidente passou a associar, principalmente a partir do século XVII, escravo ao negro. Essa associação imediata remonta, como vimos ao pensamento cristão, e se consolidou, como veremos a seguir, durante os mais de três séculos do tráfico de escravos.

A ESCRAVIDÃO: NA ÁFRICA E NA AMÉRICA Existem diversas hipóteses para explicar a escolha pela utilização da força de trabalho africana em muitas regiões da América. A constatação da possibilidade de enriquecer com o comércio de pessoas, evidenciada nas primeiras experiências

comerciais européias no litoral africano, é a mais usual explicação para a existência do tráfico atlântico de escravos (NOVAIS, 1986). Porém existe outra explicação, muitas vezes complementar, que precisa ser analisada cuidadosamente: a existência anterior da escravidão entre os africanos. De fato a escravidão na África é muito anterior à chegada dos europeus ao continente. Entretanto, antes de discutir a validade desse argumento para explicar a utilização de africanos como escravos – em detrimento dos indígenas, no caso do Brasil, por exemplo –, vale a pena conceituar escravidão e identificar as particularidades entre a escravidão na África e na América. Primeiramente é importante ressaltar que a escravidão era uma forma de exploração, seja na África ou na América. O que variou, por sua vez, foi a forma de exploração de um modelo para outro. O escravo era uma propriedade. Enquanto propriedade os escravos eram bens móveis, isto é, podiam ser comprados e vendidos. Porém é preciso salientar que, apesar disso, raramente os escravos eram simples mercadorias, devido a sua importância econômica e/ou ao seu grau de aculturação. A escravidão era fundamentalmente uma forma de exclusão social, de negar aos estrangeiros os direitos e privilégios de uma determinada sociedade. Dessa forma, na medida em que os escravos eram aculturados, suas possibilidades de inserção na sociedade, dentro dos limites impostos por elas, eram maiores. Na América, a preocupação moral em não desmantelar as famílias escravas, durante a venda dos plantéis, pode ser um exemplo disso.5 Já na África, em locais que seguiam a doutrina islâmica, as mulheres escravas, tomadas por concubinas, não podiam ser legalmente vendidas uma vez que tivessem filhos com seu senhor (LOVEJOY, 2002).

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Existem diversos estudos que apontam essa preocupação. Ver, por exemplo, SLENES, 1999.

Os critérios utilizados para negar aos estrangeiros direitos, variaram de uma região para outra. Na América, os escravos eram vistos como pessoas racialmente distintas (LOVEJOY, 2002). Por isso, na América, apesar da aculturação e da mestiçagem, os escravos (negros e indígenas) eram ainda mais claramente definidos como estrangeiros. Isso porque era a cor da pele definia o acesso aos mesmos direitos das pessoas de origem européia. Durante o século XVIII, por exemplo, foram necessárias leis para proibir o acesso de mulatos aos cargos da administração local portuguesa já que na teoria não se tratavam mais de estrangeiros (SOUZA, 2004). Por outro lado, era impensado um escravo branco no Brasil e, por isso, não faltariam pessoas que se dispusessem a alforriar um mulato que fosse tão claro que pudesse passar por branco – haja vista o exemplo literário da escrava Isaura, de Bernardo Guimarães. Isso porque tal condição afetava a lógica aparente das coisas: branco, senhor e negro, escravo. Já na África, a ausência de parentesco era o principal critério de negar aos estrangeiros direitos e, portanto, de escravizar. Isso significa dizer que, ao contrário do que se pensou por muito tempo, os africanos não escravizaram seus irmãos. Ao contrário. Escravizava-se, na África, inimigos! A maioria dos escravos, seja para o mercado local africano ou para o mercado Atlântico, era capturada em guerras. Mas essa não era a única possibilidade de escravização. Punição judicial – principalmente para crimes como assassinato, roubo, adultério e bruxaria – e endividamento eram também formas comuns de se tornar escravo na África (LOVEJOY, 2002). Conclui-se, dessa forma, que, inexoravelmente, toda escravidão tinha origem na violência, uma vez que retirava a liberdade que uma pessoa possuía anteriormente.

Além disso, seja na América ou na África, a escravidão esteve sempre vinculada ao trabalho. No entanto, na África, os escravos não eram adquiridos para substituir o trabalho de seu senhor e sua família. Ao contrário. Eles eram incorporados às linhagens de seu senhor. Dessa forma, trabalhavam com base nos laços que ligavam um chefe de uma família6 e seus dependentes (esposas, filhos, primos, irmãos, sobrinhas, sogras). Como o escravo na África tinha como função integrar à linhagem de seu senhor, o tipo de escravidão desenvolvida na África foi chamado de “escravidão de linhagem”. Na América, a função do escravo era essencialmente produtiva. Desde a agricultura e a mineração, até a pecuária e o pequeno comércio eram atividades exercida principalmente por cativos. Por isso, na América, privilegiava-se a compra de escravos do sexo masculino. Os homens seriam mais aptos, do ponto de vista europeu, às atividades produtivas. Nesse sentido, vigor físico, força e conhecimentos técnicos (como na mineração e fundição, por exemplo) eram quesitos importantes na escolha dos escravos. Porém, ao contrário da América, na África, era mais comum a utilização de escravos do sexo feminino. Isso porque a função do escravo na África era essencialmente doméstica. Dessa forma, as mulheres escravas eram adquiridas normalmente para se tornarem concubinas de seus senhores. Procurava-se, sobretudo, uma escrava fértil capaz gerar muitos filhos. Com isso garantia para seu senhor maior acesso a terra, o bem-estar na velhice e a sua sobrevivência como ancestral.7

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É importante ressaltar que a noção de família entre os africanos, normalmente, era bastante diferente do modelo europeu. Na África eram raras as famílias nucleares. A poligamia era uma prática social importante em um contexto onde inexistia a propriedade privada. Isso porque era o número de dependentes que garantia o maior ou menor acesso à terra. (THORNTON, 2004 e DEL PRIORE & VENÂNCIO, 2004) 7 Eram os filhos que determinavam a existência de grupos familiares em sociedades, por vezes, violentas. Uma família sem filhos ou com uma descendência restrita Corria o risco de ser absorvidos por grupos cujas parentelas fossem mais amplas e mais fortes. Nesse sentido, que a captura de prisioneiros, adultos ou recém-nascidos, era um dos principais objetivos das guerras na África (DEL PRIORE & VENÂNCIO, 2004: 12)

Devido a essa diferença de demanda por escravos – enquanto africanos comercializam no próprio continente as mulheres, os europeus privilegiaram os homens para o trabalho – não havia uma reprodução natural estável de escravos na América. Por isso, a população cativa precisou ser constantemente reabastecida. Desenvolveu-se, dessa forma, uma grande dependência da América por escravos africanos, vendidos por comerciantes europeus. Portanto, foi o comércio de escravos, apesar de negociar, indiretamente, exclusão social e violência, que ligou as populações dos três continentes que deram origem ao brasileiro. Vimos como entender a história da África significa entender um passado que diz respeito ao Brasil. Vejamos a seguir mais um exemplo de como o conhecimento sobre o continente negro nos permite reler importantes episódios da história do Brasil.

UMA REFLEXÃO SOBRE HISTÓRIA DO BRASIL: O CASO DE PALMARES Para exercitar a releitura da História do Brasil, utilizando para tanto instrumentos adquiridos a partir de um conhecimento maior dos nossos ancestrais africanos e sua história, foi escolhido um importante ícone da resistência negra à exploração escravista: o quilombo dos Palmares. O Quilombo do Palmares foi formado, inicialmente, por cerca de 30 negros que fugiram de um engenho em Pernambuco para uma serra, situada nas terras das Alagoas. Era um lugar estratégico, porque permitia a visão de tudo o que acontecia ao redor; e uma terra bastante fértil, cercada por alguns rios. Com o tempo mais e mais escravos, nascidos na África ou na América, buscavam o refugio no que ficou sendo conhecido como Angola Janga (Pequena Angola). Por isso, Palmares se tornou uma ameaça à Coroa Portuguesa. Além do não pagamento dos impostos por parte dos quilombolas, os senhores de engenhos e

fazendeiros das regiões vizinhas ao Quilombo estavam perdendo parte de seus escravos, que fugiam em proporções cada vez maiores. Palmares chegou a ser habitado por cerca de 30 mil pessoas. Por isso várias incursões particulares e financiadas pela Coroa foram empreendidas para desmantelá-lo. Essa é, resumidamente, a história de Palmares, que na verdade não era um único quilombo, mas vários quilombos que formavam uma verdadeira fortaleza. Os palmarinos viviam da agricultura, da pecuária e da coleta, além do comércio feito com vilas e fazendas vizinhas (CARNEIRO, 1966). Como o próprio nome sugere (Pequena Angola), Palmares buscava reproduzir, em terras americanas, modelos africanos de viver em sociedade. Assim como na África, em palmares não existia a propriedade privada da terra. Isso significa que o acesso a terra era definido por meio das estruturas de linhagens, ou seja, pelo tamanho das famílias. 8 Nesse sentido cada “estrangeiro” que chegava à Palmares eram, como os escravos na África, incorporados em alguma linhagem. A sociedade se dividia, de acordo com o trabalho, em quatro grupos. A agricultora e os utensílios eram funções exercidas principalmente por mulheres, reproduzindo a divisão do trabalho na África Centro-Ocidental – região onde está situada. Já os guerreiros – pessoas consideradas “nobres”, devido à origem de sua linhagem ancestral africana – e funcionários (fiscais e militares) eram essencialmente do sexo masculino. Entre os funcionários era possível encontrar muitos escravos (MUNAGANA, 1996). Além disso, as decisões sobre os rumos dos quilombos eram tomadas em conjunto, em uma assembléia de conselheiros que representava cada quilombo que 8

A escravidão era difundida na África atlântica porque os escravos eram a única forma de propriedade privada que produzia rendimentos, reconhecida nas leis africanas. Nesse sentido, a ausência de propriedade privada de terras levou a uma importância muito grande da linhagem, já que era o tamanho da linhagem – incluindo os escravos incorporados – que determinava o acesso a terra (THORNTON, 2004: 125)

integrava Palmares. Cada quilombo, que era formado por uma espécie de linhagem, que pagava tributo a uma liderança que agregava os interesses dos quilombolas, a fim de garantir a defesa e o comércio. No contexto de maior repressão da Coroa sobre Palmares, dois grandes líderes se destacaram: Ganga Zumba e Zumbi. Francisco era o nome cristão recebido por Zumbi, um morador de Palmares, que, quando criança, foi aprisionado em uma emboscada. Um padre de Porto Calvo comprara a criança e batizara com o nome de Francisco. Aos 15 anos de idade, Zumbi fugiu de seu senhor e retornou para Palmares. De acordo com algumas formas de organização familiar entre os africanos, os estrangeiros (inclusive escravos, conforme foi afirmado anteriormente) eram incorporados, como dependentes a uma família, ou linhagem. Foi isso que aconteceu com o jovem Francisco, que foi incorporado a família de Ganga Zumba, conselheiro chefe dos Palmares. Nesse momento Francisco ganhou um novo nome: Zumbi (MUNAGANA, 1996). Em 1677 iniciou o maior ataque que Palmares até então tinha vivido. Em uma dessas batalhas, Ganga Zumba saiu ferido e vários quilombolas foram presos. O resultado foi a assinatura, no ano seguinte, de uma acordo com a Coroa.9 No entanto, alguns quilombolas, liderados por Zumbi, decidiram ficar em Palmares e resistir até que em 1694 eles foram derrotados pela tropa de Manoel Velho. Essa breve história de Palmares nos permite pensar duas questões fundamentais. A primeira, e mais evidente, é que a partir da experiência de Palmares percebe-se que a as práticas sociais, econômicas e culturais africanas permaneceram vivas nas pessoas que foram transportadas como escravos para o Brasil. E por isso, foi escolhido o dia 20

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Segundo esse acordo, os quilombolas que aceitassem a paz receberiam terras e seriam vassalos da Coroa e seus filhos considerados livres.

de novembro – Dia da morte de Zumbi – como a data de comemoração do Dia da Consciência Negra no Brasil. Mas outra questão, pouco problematizada, mas muito importante, é que o Quilombo dos Palmares não era um símbolo de resistência à escravidão, no período colonial. Os palmarinos – que eram antes de tudo africanos e afro-descentes – não lutaram contra a escravidão, enquanto instituição. Isso porque a escravidão fazia parte das práticas sociais que trouxeram com eles da África. Tanto que em Palmares existiam escravos que, ora eram incorporados às linhagens, ora integravam o “exército” e a “burocracia” palmarina. Palmares nesse sentido, assim como os demais quilombos, foram espaços de resistência ao sistema escravista desenvolvido na América pelos Europeus, em que os escravos eram tratados, fundamentalmente, como força de trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Como se procurou evidenciar nesse texto é preciso conhecer a história da África para combater a gênese de todo o preconceito: a ignorância. Entender como a Civilização Ocidental construiu, ao longo de sua história, uma imagem negativa dos africanos e, consequentemente, de seus descendentes, ajuda a desconstruir as idéias racistas. Mas, além disso, significa também compreender melhor a História do Brasil. Não se trata, portanto, de mudar o foco etnocêntrico da matriz européia para a africana, mas ampliar o conhecimento de nossas heranças, a fim de compreender melhor o brasileiro e sua história. A lei 10639, nesse sentido, pretende mais do que inclusão de novos conteúdos. Ela nos permite repensar as relações étnico-raciais, a identidade nacional e a própria história do Brasil. Além disso, a lei visa à valorização da história

dos povos africanos e de seus descendentes. Reconhecendo-se na História, a população afro-descendente se reconhece como sujeito histórico e, portanto, como parte da nação.

BIBLIOGRAFIA AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. Introdução ao estudo da cultura no Brasil. 4 ed. São Paulo: Melhoramentos, s.d. CARNEIRO, Nelson. O Quilombo dos Palmares, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966. CUNHA, Euclides da. Os Sertões: campanha de Canudos. Brasília: UNB, 1963. BONFIM, Manoel. O Brasil na História: deturpação das tradições, degradação política. Rio de Janeiro: Franciso Alves, s.d DEL PRIORE, Mary. Ancestrais: uma introdução à história da África Atlântica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. KI-ZERBO, Joseph. (Coord.) Historia Geral da África. São Paulo: Atica/Unesco, 1980. LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: Uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. MUNANGA, Kabengele, “Origem e Histórico do Quilombo na África”, Revista da USP, 28 , 1995/6. NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (17771808). 4ª Edição. São Paulo: Hucitec, 1986. OLIVA, Anderson Ribeiro. A História da África nos bancos escolares. Representações e imprecisões na literatura didática. Estudos Afro-Asiáticos, ano 25, n .03, 2003. PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1976. PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1997. SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo. A África e a escravidão, de 1500 a 1700. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, Fundação Biblioteca Nacional, 2002. SILVA, Alberto da Costa. Um rio chamado Atlântico - a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Ed. UFRJ, 2003. SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e reconciliações da família escrava - Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. THORNTON, John. A África e os Africanos na Formação do Mundo Atlântico (14001800). Rio de Janeiro, Campus, 2004.

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