Pequena Antologia de Contos Goeses

May 24, 2017 | Autor: Paul Melo e Castro | Categoria: Postcolonial Literature, Goan Literature
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Literatura

Coletânea de contos goeses Apresentação

PauL meLo e caStRo*1 duaRte dRumoNd bRaga**2 héLdeR gaRmeS***3

G

oa foi e é uma sociedade multilíngue. Se todas as ex-colônias portuguesas apresentam um poliglotismo que contradiz os antigos intentos centralizadores da metrópole, por vezes continuados por um neocolonialismo disfarçado de “lusofonia”, Goa sobressai no panorama literário das antigas possessões lusas por ter, de longa data, uma produção escrita em vários idiomas, sendo os mais importantes o concani, o marata, o português e, mais recentemente, o inglês. Quem almeja entender o universo literário goês precisa levar em conta não só uma única língua, mas as relações de poder estabelecidas entre elas e as invisibilidades geradas por perspectivas monoglóticas. Fora das relações, paralelismos e descontinuidades com as literaturas em outras línguas, a literatura goesa de língua portuguesa revela-se parcial, empobrecida, tendenciosa. No que concerne ao português, houve em Goa a sistemática publicação de textos desde o século XVI até o século XXI, ainda que sofrendo algumas interrupções. Durante a presença portuguesa (1510-1961), o idioma do colonizador * Professor na University of Leeds. ** Pós-doutorando na Universidade de São Paulo. *** Professor na Universidade de São Paulo.

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dominou institucionalmente. Sem nunca ter sido falado por mais de dez por cento da população – e aqui notamos a inoperabilidade do conceito algo eurocêntrico de “língua mãe” para avaliar o papel do português no contexto goês –, chegou mesmo assim a ser usado como língua principal da elite católica “natural” (etnicamente indiana), assim como pelos chamados “descendentes”, de origem europeia ou mestiça. Produziu um rico acervo de escritos jornalísticos, científicos e literários que ainda aguarda adequada catalogação e pesquisa. Este é, por sinal, um dos principais objetivos do projeto temático “Pensando Goa”, financiado pela Fapesp (Proc. 2014/15657-8), ao qual os organizadores deste número da revista Via Atlântica estão vinculados, como parte do esforço para realizar essa tarefa. Ao contrário dos britânicos, que estudavam e promoviam as línguas ditas bhashas da Índia, com o intuito de constituir uma esfera pública separada dos colonizadores brancos, os portugueses (ao menos no que se refere a decretos e discursos) sempre ambicionaram, entre encorajar e impingir, que os goeses católicos adotassem somente o português, sem contudo tomar medidas eficazes para tanto. Em função disso, o concani foi largamente negligenciado, à exceção do empenho de uns poucos intelectuais naturais, como Waman Ragunath Varde Valaulikar (1877-1947), autor de vasta produção literária naquela língua, ou Sebastião Dalgado (1855-1942), e metropolitanos como Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara (1809-1879), que promoveram a língua consoante projetos políticos diversos e até antagônicos. Dividida em várias formas dialectais, destituída de poder simbólico, acabou por não servir de estandarte a nenhum grupo social específico. Funcionou em larga escala como idioma de família e do dia a dia, sendo, por exemplo, a língua escolhida pela elite católica para expressar seus sentimentos nas letras dos mandós, gênero de música típico de Goa. A situação do concani mudou rapidamente depois de 1961. Após a independência em 1947, a União Indiana foi reorganizada a partir de 1956 em regiões de cariz linguístico. Quando passou a integrar politicamente a Índia, Goa, para fincar a sua existência separada dentro da configuração daquele Estado, precisou redescobrir sua particularidade linguística, ao menos no plano oficial. Uma das consequências dessa tomada de consciência foi um surto de literatura em concani a partir dos anos de 1960. Em 1975 o concani foi reconhecido pelo estado indiano como língua independente, em 1987 tornou-se a língua oficial do estado

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de Goa, na sua versão antruzi em letra nagri, e em 1992 ganhou o estatuto de língua nacional da Índia. Para nós, que estudamos a literatura goesa de língua portuguesa, urge tornar pelo menos as obras mais emblemáticas e influentes da agora vasta produção em concani acessíveis por meio de traduções. Esse passo, que nos revelaria os principais temas, abordagens, técnicas e ideologias que nortearam aquela produção literária, viabilizaria o estudo comparativo com a produção dos escritores goeses de língua portuguesa, o que entendemos ser fundamental para compreender a real dimensão do universo literário goês em seus vários momentos. Outra língua de fundamental importância para se compreender o meio intelectual goês e quase completamente invisível àqueles que se interessam pela produção em português é o marata. Essa língua, cujos falantes nativos residem no estado vizinho de Maharashtra, que engloba a metrópole de Mumbai,1 foi durante o colonialismo português a língua literária de eleição da comunidade hindu, que produziu um rico acervo, quer no espaço público, quer em âmbito privado. Embora ainda muito proeminente em Goa, sobretudo nos meios de comunicação, dispondo de vários diários e periódicos, talvez tenha perdido alguma importância como veículo literário depois da tentativa frustrada, em 1967, de anexar o então território de Goa ao estado de Maharashtra. Essa proposta foi submetida a um referendo e a maioria do eleitorado (54%) votou por Goa se tornar um estado indiano independente. Houve muita produção literária e jornalística em marata descrevendo e analisando o período colonial português, que, por questões linguísticas, está totalmente fora do alcance do pesquisador que só fala português ou inglês, fato que nos lembra a parcialidade inevitável das nossas análises e o reconhecimento das limitações que um crítico deve reconhecer frente a contextos plurilíngues dessa monta. Assim, obras como a novela Mandovi, Tum Attlis? (Ó Mandovi, secaste?), de Laxmanrao Sardesai, publicada nos anos de 1930, ou o romance Bhavin, de Bakibab Borkar, publicado nos anos de 1950, indisponíveis em inglês ou português, não podem dialogar com nossas análises da produção literária em português. Por falta de traduções para o por-

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Batizada primeiramente como Bombaim, em português, ou Bombay, em inglês, seu nome foi alterado somente em 1995 para Mumbai, por ser esta a designação da cidade em marata, língua oficial do Estado de Maharashtra, do qual a cidade é a capital; sem, contudo, deixar de gerar controvérsias entre indianos daquele estado que não têm o marata como língua principal.

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tuguês ou para outra língua de nosso conhecimento, não foi traduzido e reproduzido aqui nenhum conto goês do marata.2 De certa forma, o inglês desempenha hoje em Goa o papel que o português cumpria antigamente, sendo de fato a língua de administração, de ensino (para quem tem a possibilidade de escolher) e dos mais importantes debates da intelectualidade goesa. Os goeses começaram a aprender inglês em maior escala no final do século XIX, quando se deram as primeiras grandes vagas migratórias em direção à Índia e à África Oriental Britânica. À medida que os goeses aproveitavam as possibilidades educacionais e profissionais em espaços onde o inglês era idioma dominante, começavam a despontar escritores goeses de língua inglesa, sendo um poeta como Joseph Furtado (1872-1947), presente em muitas antologias na Índia, considerado com um dos precursores da poesia indiana anglófona. É interessante observar que, se o concani possui uma produção vasta em termos de contos, a maioria dos romances goeses foram escritos em língua inglesa. Hoje em dia os escritores pertencentes a famílias da antiga elite de língua portuguesa escrevem em inglês. A continuidade ou descontinuidade de atitudes e de referências entre estes dois corpora é um assunto à espera de ser pesquisado. O intento desta resumida antologia de contos goeses é apresentar um contributo para o resgate do arquivo em português, assim como abrir possibilidades de diálogo com as literaturas goesas de língua inglesa e concani. Para esse fim, apresentamos dois contos de dois dos melhores contistas goeses de língua portuguesa, publicados originalmente em jornais de Goa e jamais reproduzidos em coletâneas, o que lhes atribui um certo ineditismo. Publicam-se também três traduções para o português de três conceituados escritores de língua concani e inglesa. Como observamos, no contexto de Goa o comparatismo não se pode limitar-se à antiga língua colonial. É preciso colocar o arquivo em português ao lado das outras literaturas goesas. Dado a parca presença de português em Goa de hoje, existe a percepção de que a literatura de língua portuguesa pertence somente ao passado, a uma elite algo desprestigiada, ou somente aos portugueses (ou falantes de português) que podem lê-la, não tendo lugar na Goa 2

Temos conhecimento do livro Novos contos indianos, traduzidos do marata, com seleção, tradução e notas de Prabhakar Kanedar, publicado pela Agência Cultural de Lisboa, em 1945. Se não houve nenhuma tradução de literatura goesa de língua marata para o português, não foi necessariamente por falta de tradutores, mas possivelmente devido ao conteúdo desses escritos, pouco palatável ao colonialismo português.

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atual. Debater essa literatura no contexto do resto da produção literária goesa (e traduzi-la para as línguas mais faladas na região), demonstrando a maneira como explora temas semelhantes de perspectivas distintas, pode acabar por revelar sua pertinência para o leitor goês na atualidade, ajudando a abrir novas perspectivas críticas, além de possibilitar a troca de ideias e de impressões entre públicos diversos. Talvez o contista aqui traduzido mais próximo do gosto do público contemporâneo seja Epitácio Pais (1928-2009).3 De estilo pujante, até brutal, no que denuncia a influência de uma certa literatura norte-americana, ficou conhecido como o autor de uma coletânea de contos intitulado Os javalis de Codval, publicada em Lisboa em 1971, em que retrata fenômenos como a febre do minério que assolou Goa nos anos de 1950 ou os descalabros praticados pela elite católica. Embora nunca emita explicitamente juízos de valor sobre suas personagens, Pais é um escritor profundamente interessado (e cético) na condição moral dos seus semelhantes. Autor de mais de uma dezena de contos espalhados pelos jornais de Goa ou mesmo ainda inéditos, muitos deles são de particular interesse para a história literária goesa, pois colocam em cena a Goa dos anos de 1960 e 1970, que em larga medida escapou à representação literária em português. Aqui apresentamos o conto “Contrabandistas”, que se volta para o período colonial. Foi publicado em 1965 no jornal O Heraldo. Na sua introdução a Os javalis de Codval, Manuel de Seabra observa que os personagens de Epitácio Pais “se recusam a abandonar os seus contos e aparecem e reaparecem insistentemente, como pretendendo recordar ao leitor a sua existência” (apud PAIS, 1971, p. 10). Em dois dos principais contos dessa coletânea, “História de minas” e “Outra história de minas”, é mencionado um certo agente Faria, aparentemente um policial ou militar metropolitano encarregado de vigiar a fronteira da colônia portuguesa com a União Indiana. No primeiro desses contos o leitor descobre que o plano do protagonista Caetano para contrabandear mercadoria por aquela fronteira foi inviabilizado pela ida do Faria a Codval “para resolver a questão do palmar da devalaia” (ibidem, p. 16) na mesma zona. No conto “Outra história de minas”, continuação do anterior, que se passa tempos depois e resolve o enredo de Caetano, descobre-se que o agente Faria agora “encontrava-se metido 3

Em Goa, tivemos a oportunidade de editar e publicar um romance inédito de Pais, intitulado Preia-Mar (2016), publicado pela editora 1556 e resenhado neste número da Via Atlântica.

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num grande sarilho, andava de orelha caída, em vias de ser transferido, demitido ou coisa pior” (ibidem, p. 151). “Contrabandistas” parece contar algo de que se passou com Faria entre os outros dois contos anteriormente mencionados, além do que estabelece uma provocante ligação entre o comportamento de Caetano e as aparentes atitudes de Faria, supostamente o representante da ordem e da justiça portuguesas que a ele se opõe. São “aparentes atitudes” porque “Contrabandistas” não conta o que se passou com Faria; limita-se a sugerir. Aqui encontramos uma técnica muito recorrente nos contos de Pais não incluídos em Os javalis de Codval, como “Sangue na praia” ou “Os ratos”, revelando um certo virtuosismo técnico. A chave de toda a história está no título. São vários os críticos do conto que defendem que o conto sempre envolve duas histórias, uma relatada abertamente e outra presente somente nas entrelinhas (ver, por exemplo, PIGLIA, 2011, p. 63). Neste caso, é o título que indica a possível existência de alguma negociação entre Faria e o temido freedom fighter4 Vassanta, que estaria envolvido com contrabando, fazendo com que nem o agente justiceiro, nem o político rebelde sejam o que supostamente aparentam ser. Sugere-se, ao final, que Faria não teria matado Vassanta, permitindo que Jilá, a namorada do terrorista sequer chore no dia em que sucede seu assassinato. Aqui, como no excelente conto “Um português em Baga”, Pais demonstra não só sua rejeição ao discurso colonial português, mas também seu distanciamento a certas vertentes do contradiscurso anticolonialista. Já Maria Elsa da Rocha (1924-2007) dedicou mais atenção à experiência das mulheres em Goa. Ora suas histórias focam os subalternizados do território – os mundkars (trabalhadores do campo), os ghantis (migrantes de além da cordilheira das Gates), as peixeiras, entre outros. Mas também possui contos que privilegiam a vida e a experiência da elite católica, na qual tem origem sua família. O título do conto aqui reproduzido, “Êtê, êtê, Morhà”, que em concani significa “o pavão vem vindo”, foi retirado de uma cantiga infantil que ensina as crianças a lidar com números. Foi publicado no jornal A Vida, no Dia das Mães5 de 1964. 4

Designação que se dava àqueles que lutavam pela independência da Índia e, no contexto goês, àqueles que lutaram pelo fim do colonialismo português em Goa. 5 Vale notar que na Goa pós-1961 o Dia das Mães passou a ter a data fixa de 10 de maio, e não o primeiro domingo desse mês, como em Portugal, ou o segundo domingo, como no Brasil, sendo muito comum entre os goeses publicar contos em datas comemorativas como essa, como no Natal, no Ano Novo, entre outras.

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Enquanto D. Laura é mulher que preza os mínimos valores de sua classe e casta, sua filha Fatiminha, uma adolescente, parece ser a representante da nova geração goesa. No conflito entre gerações que ocorre no conto, há uma evidente denúncia da tentativa, por parte da educação formal das elites católicas goesas, em excluir o concani e os hábitos indianos de seu cotidiano, revelando, em contrapartida, o quanto tais aspectos culturais se encontravam profundamente arraigados mesmo no interior daquela elite, o que se faz no conto a partir da relação entre Fatiminha e sua avó. A intimidade que se estabelece entre ambas, numa atitude transgressiva em relação aos valores caros à mãe, fortemente ligada aos preceitos e preconceitos da elite a que pertencia, revelam a ambiguidade e contradição em que viveu essa elite não somente no final do colonialismo português, mas durante todo o período colonial. Natural de Bombaim, Manohar Shetty (n. 1953), escritor de língua inglesa, vive há largos anos em Goa. Conhecido por sua poesia intimista, já publicou diversas coleções que mereceram excelente recepção crítica. Também é autor de contos, vários dos quais estão ambientados em um fictício colony (como são chamados os condomínios em Goa) de Saint Jerome, em Dona Paula, bairro ao sul da capital Pangim, onde o autor reside. Embora reflitam alguns dos temas presentes em seus versos – tais como a solidão, o tédio, o ennui do cotidano –, os contos de Shetty desenvolvem a sátira de costumes, muito presente na literatura goesa desde Francisco João da Costa (1959-1900), passando por José da Silva Coelho (1889-1944) e continuando até Augusto do Rosário Rodrigues (1911-?), um dos últimos contistas goeses de língua portuguesa. O conto publicado aqui, “Senhor Segundamão” (“Mr Secondhand”, no original), apresenta-nos um pacato goês retornado da Beira, em Moçambique, conhecido pelos seus vizinhos por sua parcimônia. Apesar de avançado na idade, e da má língua dos seus vizinhos, casa-se com mulher de sua idade e encontra o seu pequeno pedaço de felicidade. Os últimos dois contistas são de língua concani. As traduções foram feitas a partir das versões em língua inglesa realizadas por Augusto Pinto, cuja colaboração e esclarecimentos sobre a biografia dos autores muito agradecemos. Hoje em dia, são pouquíssimos aqueles que podem traduzir do concani para o português, uma vez que a língua portuguesa tem se tornado cada vez mais desconhecida por falantes do concani. Isso nos obrigou a utilizar o inglês como

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língua ponte para trazer para este número da Via Atlântica obras de Damodar Mauzó (n. 1944) e de Soter Barreto (n .1944). O primeiro é um vulto maior da literatura goesa de língua concani, tendo desenvolvido uma vasta atividade como romancista, crítico e roteirista de cinema. É considerado o maior contista goês da atualidade. Tem publicado inúmeros livros e contribuído com diversas publicações em Goa, assim como no resto da Índia e ao redor do mundo. Seu conto “O homem de Teresa”, originalmente escrito e publicado na década de 1970, é uma de suas histórias mais conhecidas, mostrando a evolução da mobilidade da mulher na Goa pós-1961 e as atitudes patriarcais que demoram a mudar e que, neste território como em muitos lugares do mundo, ainda não se transformaram suficientemente. Em 2015, sua coletânea Teresa’s man and other stories from goa, na tradução para o inglês de Xavier Cota, foi indicada para o Frank O’Connor International Short Story Award, que visa premiar o melhor livro de contos do ano. Soter Barreto já é menos conhecido do grande público, mas nem por isso revela menor qualidade. Cursou até o quinto ano do liceu português, fez carreira na função pública depois de 1961 e foi muito ativo no movimento em prol do concani, desempenhando papéis importantes em várias associações dedicadas à promoção dessa língua. Publicou em diversos periódicos e fez leituras transmitidas pela All-India Radio. O conto aqui reproduzido intitula-se “O africanista”; no original concani, “Afrikanist”, evidentemente uma adaptação do termo português, que se referia a alguém que estava ou tinha estado como emigrante na África, quer britânica, quer portuguesa. Um africanista, já de meia-idade, volta da África casado com uma bela jovem e logo tem um filho. O conto gira em torno da possibilidade de o filho ser de fato dele ou não. Como em muitos outros contos goeses do período pós-1961, está presente o tema da ilegitimidade, aqui com efeitos humorísticos, mas não desnudado de um certo teor político num contexto em que hierarquias e atitudes de casta, baseados em filiação, estavam no centro do debate. Esperamos que a presente coletânea desperte o interesse de críticos e pesquisadores da literatura para a produção literária goesa, assim como contribua para que o leitor de língua portuguesa tenha aqui um estímulo para refletir sobre as conexões entre aquelas diferentes tradições literárias.

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Referências MAUZÓ, Damodar. Teresa’s man and other stories from Goa. Trad. de Xavier Cota. New Delhi: Rupa Publications, 2014. PAIS, Epitácio. Os javalis de Codval. Lisboa: Editorial Futura, 1971. PIGLIA, Ricardo. Theses on the short story. New Left Review, 70, p. 63-66, jul-ago. 2011.

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Contrabandista

H

ePitácio PaiS

avia entre Uguém e Tamboxém uma ponte de madeira já meio carunchosa, pintada de preto, pendendo sobre um rio de águas sempre a correr, saltando grandes fragas de basalto e espumando nos declives. Atravessámo-la, embrenhamo-nos no matagal que se estendia a nossa frente e tomamos a direção de Foquir-pattô. Com o tempo que fazia, uma tarde quente e nebulosa, o vento do mar a crestar-nos a pele e fazendo suar em bica, apetecia-me despir a farda, dar uns bons mergulhos na água, deitar-me à sombra dos cajueiros e tirar uma boa soneca. Eu perdera duas noites na jogatina com os rapazes do quartel e trazia os olhos cheios de sono. A maleta de coiro, pesada, fazia-me doer o braço. E depois roíam-me lembranças de Mariana que talvez teria de celebrar sozinha a noite de Natal. Mas o agente Faria tinha pressa de chegar a Foquir-pattó. Queria falar com o alferes Concha, acampado algures com os seus homens e chegar ao seu destino antes que a escuridão nos estendesse os atalhos. Estava sucumbido de uma missão altamente secreta, que eu já sabia qual era: matar o Vassanta, perigoso agitador das fronteiras, que todas as noites descia a doutrinar os camponeses da região, pondo em sobressalto os cidadãos fiéis ao governo. O bandido tinha no seu sinistro rol meia dúzia de mortes de pessoas inocentes e a cegueira de uma criança, que perdera os olhos ao pisar um engenho explosivo. O que Faria tinha de fazer era colocar uma dose de dinamite no pontão por onde o revolucionário devia passar para que o diabo o levasse para o inferno.

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Por isso, sem mais delongas, fomos seguindo caminho até o posto do alferes, mandando eu às malvas a alhada da aventura e a hora em que fora escolhido para a tarefa. Mas depressa se mo desvaneceram os fumos que sufocavam o meu entusiasmo. Os soldados do posto contaram-me anedotas de levantar um morto, enchendo-me os bolsos de cigarros. O alferes Concha era uma jóia de homem. Ofereceu-me grandes fatias de pão com carne e uma garrafa de vinho do Porto que me tomou o resto do caminho, já agora ladeado de casinhas de terra batida, revendo-se na calma do rio, onde uma e outra rapariga lavava a roupa. Havia ali paisagens de maravilha, tintas rubras de sol pincelando a troncagem negra dos coqueiros e os cumes das montanhas, sombras que se curvavam e dançavam e se deliam nas pregas sedosas da água. E um cheiro que vinha descendo dos oiteiros vivificava-me e tirava-me do quebranto. Vê aquela rapariga a lavar roupa e a cantar? Quem é – perguntei a Janum, o velho subsidiado pelo governo para prestar informações à polícia e que nos servia de guia. Janum segredou-me que era a tal do Vassanta, que a mantinha bem paga, bem nutrida e vestida, pelo que se via. Era a Jilá. Amanhã já ela não estaria a cantar. Jilá era nova e bonita. Sentada à beira do rio, respingando água como as flores silvestres, orvalhadas em manhãs de friúra. Tive pena dela e do seu amor por um homem que tinha as horas contadas. Mas que é que se podia fazer em seu favor? O Vassanta era inimigo da Pátria e era mister que fosse sacrificado. Fiquei uns breves minutos admirando-a atrás de uns arbustos e fui seguindo o agente já com redobradas forças que o excelente licor me dava. Quando chegamos ao término da jornada, um ermo onde Janum tinha a sua cabana, Faria disse-me que podia dormir que o resto corria por sua conta. Ele, sozinho, queria ter a glória de matar o mais temido inimigo da ordem e da soberania. A mim, só me cabia assinar o auto, que seria remetido ao ministro, que me guindaria de posto. Eu exultei. Ia ser cabo! Que alegria! Havia de ganhar mais umas dezenas rupias por mês, ter as minhas divisas novas, ser olhado com inveja pelos amigos. Poderia comprar as jóias para a Mariana, os vestidos que ela cobiçava e, enfim, dizer que queria casar com ela. Tudo aquilo me parecia um sonho. Mas não era.

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Eu estava acordado apesar de cheio de sono. Ia ser cabo! Dei um pulo. A alegria brincava dentro de mim. Tirei a roupa do corpo. Deitei-me no chão embostado e morno da casa de Janum. Dormi que nem um justo. Horas depois acordei sobressaltado por um estampido que me deixou surdo. Ao meu lado Faria, colado ao solo, impunha-me calma. Nada havia a recear. Absolutamente nada. A missão estava cumprida. Vassanta não podia ter escapado. Devia ter ficado reduzido a pedaços. Agora toda aquela gente podia viver em sossego e dormir em paz. Eu seria promovido logo que o ministro tomasse conhecimento do relatório. E ele, Faria, tinha o nome feito. No dia seguinte a imprensa falaria da sua bravura. Talvez houvesse uma manifestação de apreço na Câmara Municipal e, seguramente, seria proclamado herói nacional depois de lhe ser conferida a mais alta comenda da Nação. A mim não interessava que ele fosse proclamado herói nacional, que cidadãos proeminentes enaltecendo a sua acção de benemérito da sociedade. Se a missão estava terminada eu queria ir-me embora dali o mais depressa possível a fim de pôr em práctica os meus planos de futuro. Sentia um grande desejo de falar com Mariana, abraçá-la, devorá-la com beijos e dizer-lhe que já era cabo! Que bom Natal que vamos ter! Por isso, quando depois de saborearmos por dois dias, às instâncias de Jarum, as delícias daquela Cápua, agora que tomamos o caminho de regresso, eu ia contente que nem bulbull retolçando na água dos lameiros. O sol nascia atrás do arvoredo. Dos lados do mar a névoa dissipava-se rapidamente. As aves deixavam os seus poisos e descreviam círculos sobre as nossas cabeças. A ramagem fazia-me carícias. Eu ia arrancando e trincando frutos silvestres que apanhava à mão. Depois, o sol subindo começava a iluminar as colinas enodoadas de vermelho e a faixa do rio, onde a Jilá lavava a roupa e cantava uma canção do cinema. A sua voz clara e maviosa chegava-me aos ouvidos num murmúrio suave. Ergueu os grandes olhos para nós, sorriu e ficou batendo compasso sobre as pedras ruídas da margem, entre flocos de espuma. Acenei-lhe com a mão. Dirigi-lhe, num impulso de alegria incontida e quase infantil uns galanteios aprendidos no quartel. Queria gritar para ela que ia ser cabo, depois, quando subíamos o oiteiro para encurtar a distância ainda lhe ouvi a canção elevando-se no ar em surdina entre os revérberos do sol que tingiam de oiro tudo em volta.

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Etê Etê Morhà…

maRia eLSa

D

da

Rocha

ona Laura é, ou julga ser, uma senhora bem da nossa sociedade. Muito pedante e com grande lata para exibicionismo, compõe com requintes de arte as pregas do seu sari Khatau. Virando-se e revirando-se à mesa de toilette de três grandes espelhos que refletem a sua figura ainda com laivos de frescura, olha de esguelha a filha, refastelada no divã e adverte-a mal humorada: “Não te vais arranjar ainda? Já sabes, hoje vais passar a tarde com a avó e diz-lhe que eu não te pude acompanhar porque tenho uma reunião de Mahila Mandal... Percebes?” “Percebo, percebo que me mandas fazer o frete e vais para onde muito te apetece”. E dizendo isto, a morena Fatiminha encolheu os ombros e, num gesto arrapazado, jogou o magazine para a mesinha de cabeceira que recebeu um choque de um abalo sísmico, derrubando os objetos aí colocados. Coçou com estilo a sua penteada grenha, segundo o modelo em voga para maiores de catorze anos, e plantou-se ao lado da mãe... “Menina!”, respondeu a mãe. “Onde arranjaste tão lindas maneiras e como te atreves a pensar que eu não vou a essa reunião?” “Saibá! Eu não penso nada; só disse que me mandas fazer o frete! Acho que não há nada de mal em dizer isto... A avó já me disse que tu, quando tinhas a minha idade, ainda eras pior do que eu...” “Pois fica sabendo que ela não me aturou nem metade do que eu te suporto, bruxa!” Por resposta a jovem Fátima atirou um assobio de gaita de foles, seguido de um teatral Saibá que pôs os nervos da mãe em franja.

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Contudo, a mãe da Fátima achou bem passar por cima daquilo e virou às recomendações: “Toma sentido nos assuntos de que falas com a avozinha! Estás feita uma Maria portuguesa e isto pode aborrecê-la muito! Tens de ser mais calma e-” “Oh mãe, é o sermão de sempre, não?” “Quem devia fazer o sermão eras tu, pois não? Deves refletir no que dizes!” “Bem, Saibá, não te zangues!” “Não estou a zangar-me!” “Mas parece!” “Não quero que faças má figura...”. Aqui D. Laura hesitou e prosseguiu como quem se aventura a escalar o Sidnath: “De resto a avó é uma pessoa de outros tempos, não gosta de ouvir certas coisas e reprova-as embora pareça animar as pessoas a falar nelas...” “Mas isso não era só noutros tempos que se fazia, há muita gente que usa agora esse processo para tirar cagalhões....” “Vai, vai com esse palavreado para ao pé da avó! Ouve ao menos. Por exemplo, a tua avó não gosta de gente alcoólica, mas quando quer entusiasmar as pessoas a falar, oferece-lhes da sua garrafaria, que, apesar de tudo, está bem provida, e, se elas mostram apreciar os licores, insiste em que bebam mais, e fica a ouvi-las, mas no seu íntimo reprova-as, percebes.” “Ah! É só isso, tá descansada, mãe!” Aqui, a Fatiminha lançou mão ao crayon e brincou com as suas sobrancelhas almejando o dia em que poria o lápis de verdade no seu bonito rosto de pele de cetim. “Tem juízo”, volveu a mãe, agora mais tranquila. “Se a avozinha te oferecer licores, já sabes que é para te soltar a língua e depois censura-me porque te eduquei mal...” “Ora e depois?” “Depois vem para ao pé do teu pai e faz-lhe queixas, portanto o melhor é evitares isso; quando ela te oferecer licores pede-lhe que te dê Coca-Cola!” Fátima riu-se muito diante daquela ideia de Coca-Cola e, ajeitando a bandolete pela décima vez, desapareceu como uma bólide para ir visitar uma pessoa que já era de idade avançada, que tinha uma bela garrafaria, que gostava de tagarelar e que era sua avó. É noite; depois do jantar, diante do pai e irmãos, D. Laura perguntou à Fátima: “Então, a avó estava bem?”

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“Estava, guê, estava...” “Disseste que eu fui ao Mandal?” “Disse, guê, disse...” A mãe, algo alarmada, encarou com atenção a sua morena vergôntea e inquiriu já de pé para atrás: “Houve alguma novidade? Não beberam Coca-Cola?” “Não, guê, não! A avó não quis, disse que dos fracos não reza a história!” O pai da Fatiminha deixou cair o Times, pasmado, enquanto a sua cara metade avançava precipitada: “Deixa aquele guê e conta lá, a avó não te convidou a provar dos licores da garrafaria, pois não?” “Não! Não bebemos licor.” “Ainda bem...”, disse aliviada D. Laura. “Tomámos whisky puro e genuíno, as duas.” “Whisky?! Alfredo estás a ouvir a tua filha?” “Não te preocupes, mãe, fiquei fixe como uma rocha e quem falou foi a avó. Calcula que até me contou que tu, levada por teu racial pedantismo, não deixavas que ela me embalasse em concani quando eu era bebé e, sempre que ela começasse a ensinar-me o tão lindo été été mohrá, tu vinhas a correr tirar-me do colinho d’avó e começavas desafinadamente querendo imitar portuguesinhas: – Papãozinho, vai-te embora... E eu punha-me a chorar porque não percebia o canto.” “Na verdade, ninguém pode enganar a avó!” – rematou Fatiminha, dando por findo o serão, enfiada num florido babydoll ante o ar miserável dos seus progenitores. *No acima aludido não há referências a ninguém. Personagens e situações são produto de mera imaginação.

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O homem de Teresa*1

damoNdaR mauzó

J

á não estava sonolento, mas o seu corpo entorpecido não estava de acordo. Arrepiou-se na frescura da manhã e anichou-se ainda mais no conforto do seu leito. Teresa estava na casa de banho. Peter ouvia o barulho da água a cair e teve uma repentina irritação. Fui eu que enchi o tanque e ela gasta a água como se nada fosse, pensou. Mas ele não ousava dizê-lo em voz alta. Ela ter-lhe-ia atirado à cara: “e eu ganho o meu salário para tu o desperdiçares?”. Depois de lavar a cara, Teresa entrou no quarto. Peter olhava-a de olhos semicerrados. Molhada, a sua camisa de noite colava-se intimamente ao seu corpo. Já em bicos de pés, ela tentava alcançar uma toalha pendurada no estendal. Peter arregalou os olhos ao ver suas axilas expostas. Fechou-os para depois espreitar de novo. Ela continuava em bicos de pés, a camisa agora pelas coxas, as suas macias coxas, jovens e claras. Maravilhado com a sua beleza, Peter fechou os olhos. Se até há pouco não acordara, agora estava bem desperto. Alcançando a toalha, Teresa enxugou o rosto, depois a nuca, descendo vagarosamente, deixando a sua pele limpa e fresca enrubescida. Na cozinha, a mãe de Peter preparava o chá, fazendo tudo de forma barulhenta como de costume. Era da opinião que tachos e panelas de alumínio amolgavam-se só de serem manuseados, portanto não adiantava ter cuidado com eles. Há muito tempo que os outros desistiram de ralhar com ela por causa disso. Peter não se achava no direito de dizer nada já que nunca comprara um novo jogo de panelas. Teresa, sabendo que nunca teria dinheiro para uma panela de * Traduzido do inglês por Duarte Braga e Paul Melo e Castro.

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inox – pelo menos nesta vida –, nada dizia para não entrar numa discussão. Por isso a barulheira continuava como de costume. “Pedrú!”, gritou Teresa. A maioria das esposas transforma carinhosamente os seus Antônios em Tonis e Vitorinos em Vítores, mas Teresa não. Ela transformava o pobre Peter num campônio. Peter não gostava nada, mas o que poderia ele fazer? “Por que é que esta cabra não se levanta mais cedo?”, resmungou Peter. “Levanta-te, Pedrú! Levanta-te! O comboio está quase a sair. Hoje tens que me levar à estação.” “São quase oito horas, Pedrú!” Aproximando-se irada da cama, puxou Peter pelo braço. “Sai, seu vagabundo. Se eu me atrasar para o serviço, não és tu que vais para o olho da rua, és?” Resignado mas ressentido, Peter arrastou os pés até o banheiro. Molhou a cara, esperando que a água fresca acalmasse a sua raiva. Sentindo-se um pouco melhor, voltou para o quarto. Ao apertar as calças, ainda esboçou um trejeito de irritação. Vestindo a camisa, disse entredentes: “Já se tornou hábito. Nem um único dia me deixa ficar na cama até tarde. Esta preguiçosa podia perfeitamente acordar mais cedo e caminhar até a estação. A cabra!” Mas Teresa deve ter ouvido o que ele disse. Furiosa, chegou-se ao pé dele e gritou: “Como é que tens a lata de dizer isso! Seu verme! Passas o dia a fazer nada, vivendo às minhas custas. E, se um dia eu me atraso, nem uma boleia na bicicleta és capaz de me dar. Esfalfo-me por ti e ainda vens com estas queixas! Estraguei a vida ao casar contigo!”. “Disseste que querias casar por amor, não era? É muito bem feito!” Entretanto, da cozinha, a mãe deitava mais querosene para as brasas. Teresa rompeu num choro convulsivo, o que fez com que Peter serenasse. Calçando as sandálias, ele saiu discretamente para a cozinha. Serviu-se de chá quente que rapidamente engoliu. A ponta do nariz da Teresa ficara da mesma cor que a sua blusa encarnada. As suas faces estavam igualmente coradas. Tinha posto uma saia justa que realçava as suas curvas. Ao retirar a bicicleta, Peter franziu a testa novamente ao pensar na maneira como a Teresa se vestira. Peter estava sentando na bicicleta à espera da Teresa, com um pé no chão. Há dois anos atrás era comum vê-lo à espera dela na mesma posição em frente à estação... mas naquela altura ele estava apaixonado por ela.

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“Por que é que estás a demorar? Despacha-te!”, gritou Peter, impaciente. Teresa saiu. Ouvia-se o toque-toque do seu salto alto no pavimento. Ela sentou-se no guião da bicicleta e partiram. À medida que seguiam, ela ia se lembrando de dias passados. Todas as manhãs Peter vinha até minha casa de bicicleta. Esperava que saísse para oferecer uma boleia. Fazia isso todos os dias sem falta. Não aceitava se eu recusasse. Dizia que não era incômodo nenhum. Lembro-me de ter rido muito um dia. Como de costume, ele chegara cedo e se deixava ficar frente à casa. Já estava lá desde as sete e meia mas passada uma hora eu ainda não tinha saído. Ao dobrar a esquina, chegando da missa, via que ele estava muito nervoso. Vinha correndo ao meu encontro e perguntou: “Teresa, por que não foste hoje ao escritório?”. Eu fiquei a rir, e à medida que ria ele ficava mais e mais perplexo até que resolvi aliviá-lo. “Tontinho! Hoje é domingo, não é?” Ah, a cara com que ficou! Esquecendo a desavença de há pouco, Teresa começou a rir, o que pôs Peter ainda mais nervoso. Esta era afinal a mulher que há poucos minutos chorara com tanta tristeza. Olha como ela se ri agora. Ela devia estar ansiosa por se encontrar com alguém no escritório. Aquelas lágrimas deviam ser apenas um pequeno teatro. Ao aproximarem-se da estação, repararam que o comboio já lá estava. Peter pôs-se a pedalar desalmadamente para chegar à plataforma. Ouviu-se o apito. O guarda agitou a bandeira. Bolsa numa mão, Teresa largou a correr. O comboio já arrancara. Antes que saísse da plataforma, conseguiu agarrar-se à porta da última carruagem, mas a saia dela era demasiada justa e não podia alçar a perna. Peter ficou embasbacado. Pendurada, ele viu de novo as axilas. O comboio estava a ganhar velocidade. Teresa fez uma tentativa falhada para entrar e começou a ficar em pânico. Neste preciso instante, um jovem debruçou-se para fora e sem esforço puxou-a para dentro da carruagem. Teresa nem olhou para trás. Mas Peter ainda conseguiu ouvi-la dizer obrigado ou coisa semelhante ao homem. “Espertalhão! Viste como ele a agarrou?” “Viu a oportunidade e aproveitou.” “Estas tipas gostam disto. Para que é que pensas que vão trabalhar?” “É verdade. Lá no escritório metem-se com toda a gente. Ninguém as pode parar.”

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Os comentários dos homens no cais deixaram Peter furioso. Sentiu vontade de chegar ao pé deles e de esbofeteá-los um por um. Mas pensou duas vezes e conteve-se. Eram quatro. Peter continuou na sua bicicleta. Neste momento estava ainda mais zangado com a Teresa. Por que ela não se levanta mais cedo? Já não lhe disse tantas vezes para ela não trazer aqueles vestidos justos? Mas ela faz o que quer e eu que aguente a vergonha... Ao ver aquele rapaz puxar a Teresa pelos braços, aquela gente disse que lhe oferecera uma boa “oportunidade”... Realmente o indivíduo deve se ter sentido muito orgulhoso daquele ato heroico! De Teresa disseram: “Estas tipas gostam disto. Para que é que pensas que vão trabalhar?”. Portanto a partir de agora é isso. Vou dizer a Teresa logo à noite: Chega de escritórios! Chega de vestidos provocantes! Depois de casarem, Peter dissera-lhe várias vezes para parar de usar estas roupas sensuais. Mas Teresa respondeu que no seu serviço de recepcionista era esperado as mulheres se vestirem assim. Porém, ela cedeu num ponto: em casa nunca usava aquelas blusas sem manga e saias estilosas. Isto só piorou a situação do ponto de vista de Peter. Ele achava que na sua presença ela deveria permitir-se uma roupa mais ousada caso o desejasse. Ele ficava embasbacado olhando para Teresa naqueles vestidos apertados, saias que revelavam as suas coxas e blusas com decotes muito generosos. Mas não queria partilhar o seu prazer com os homens do escritório dela. Por que é que ela se comportava daquela forma provocativa diante de estranhos? Mas não importava agora. Achando que Peter não gostava delas, ela nunca usava aquelas roupas quando estava com ele e ele não tinha coragem de lhe mandar vesti-las na sua presença e não na rua. “Pee-terr!’” Era Guilherme a chamá-lo. Normalmente Peter não se dignaria a parar. Mas ele tinha ouvido dizer que no dia anterior o pai de Guilherme regressara do estrangeiro e tinha curiosidade em saber o que trouxera com ele. Inflectiu o rumo e parou em frente a casa de Guilherme. O pai estava sentado na parte de fora numa cadeira de baloiço. “Olá! És o Peter, não é? Como estás?”, disse o pai num sotaque estrangeiro. “Bem, onde trabalhas agora?” “Nos negócios”, foi a primeira resposta que lhe ocorreu, mas o pai de Guilherme nunca a teria aceite sem mais nem menos. “Nos negócios”, com a cabeça levantada e o peito emproado era a resposta que sempre dava a questão “o que

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fazes?”. Também tinha uma resposta pronta para a questão inevitável que se seguia: “que tipo de negócio?”. “Negócios não têm limites. Negoceio em todo o tipo de coisas. Quando o preço dos cocos dispara, então é cocos. Se estamos na estação das patecas, é pateca. Em último recurso, há sempre o peixe!” Na verdade, Peter nunca se aventurara nestes lides. Depois de passar por um triz a matriculation, o décimo ano, só conseguira dois empregos. O primeiro foi numa farmácia. Ele tinha de acordar cedo de manhã para ir para Margão de bicicleta e só voltava depois das oito da noite. Lá não havia sesta depois do almoço, o que não lhe alegrava a alma. Assim, quando o seu chefe lhe dera mais uma bronca, Peter saiu de mansinho para nunca mais regressar junto da sua presença intimidante e mesmo para buscar os treze dias de salário pelos quais ele se matara a trabalhar. Desde então, se a sua mãe ou outra pessoa perguntava, ele respondia sempre “negócios”. Antes de casar com a Teresa dissera-lhe o mesmo. E ela, como o amor é cego, acreditara ingenuamente nele. Já casado, a sua segunda experiência de trabalho fora obra de Teresa. Usando a sua influência junto a seu patrão, conseguiu por portas travessas que Peter arranjasse emprego noutra repartição da sua companhia, totalmente contra a vontade de Peter. Ele tinha que se levantar cedo, apanhar o comboio, e ficar sentado numa cadeira o dia todo no escritório, de caneta na mão. Nem cinco minutos lhe davam para tirar uma soneca à tarde. Esta privação, junto com frete, moratória, arquivamento, nota de despacho, extrato, remessa e outros jargões incompreensíveis, tornaram-se demais para Peter e um dia ele caiu de cama com febre alta. Sob este pretexto voltou para casa e nunca mais lá pôs os pés. “Não me digas que ainda estás desempregado. Arranja trabalho, homem, ou então vá para fora!” O pai de Guilherme não ia de modos. “Como é que vais fazer sem trabalho?” “A mulher dele trabalha num escritório”, disse Guilherme, espicaçando-o. “O quê? Mandas a tua mulher trabalhar? Que gênero de homem és tu? Nunca se deve deixar uma mulher ser livre. Ela sentará na tua cabeça! Podes crer! Um homem é...” Neste momento a mãe de Guilherme apareceu. E quase se ouvia o chiado quando o pai travou bruscamente a sua língua. Peter só queria sair dali. Acabara de saber que o camião trazendo a bagagem do pai de Guilherme devia chegar a qualquer momento. Se ele estivesse por lá

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quando chegasse, teria que ajudar. Assim, à primeira oportunidade, sumiu-se. Passando pelo mercado, comprou algum peixe e veio diretamente para a casa. “És tu? Vem, babá. Estava a pensar o que é que se tinha passado”, disse a mãe de Peter. Peter sabia o que ela queria dizer. Dirigiu-se ao poço com o pote e começou a tirar água. Disto não podia fugir. A mãe disse que sozinha não conseguia e desta vez não estava disposto a enfrentar a habitual descompostura. “Já é mau o suficiente não arranjares emprego, nem consegues dar uma mãozinha com isto?” Mais tarde, Peter deitou-se na cama, mas não conseguia dormir. O que estaria Teresa a fazer. Provavelmente flertando no escritório. Mas com quem? Com o chefe? Ou com aquele jovem que a puxara para o comboio? Quem é ele? Se calhar alguém que a Teresa conhece. Mas “conhece” em que sentido? É esta a questão. A blusa sem mangas da Teresa, as axilas nuas, a saia curta, ela sendo puxada para o comboio, os comentários daquelas pessoas, “ele aproveitou-se”, o pai de Guilherme dizendo “nunca deixas uma mulher ser livre”. Todos estes pensamentos afluíram à mente de Peter como um enxame de abelhas enlouquecidas. “Sua excelência deseja almoçar?” Por que a minha mãe tem de ser tão sarcástica? Depois de se repastar, Peter dormiu uma sesta e só acordou às cinco da tarde. “Estás acordado? Onde é que vais perder o teu tempo hoje?” A sua mãe fazia pouco dele enquanto ele voltava a si. “Não queres trabalhar e nem sequer tens vergonha. E ainda por cima, tiveste a ideia de casar. Nem consegues sustentar a mulher, quanto mais pô-la no lugar. Aquele vestido! Aquele cabelo! Que espetáculo! Até os homens são mais decentes! Ela tem o marido de mãos e pés atados e folga tanto quanto quer. Vê o carnaval que ela faz quando volta! O que é o marido nesta casa? Um bon’no de coco vazio! E a sogra? Nada além de uma casca seca!” “Para, pelo amor de Deus!”, gritou Peter desesperado. “Dizes para eu parar! Mas a ela não dizes nada! És um verme, é isso que és! Qualquer marido a sério lhe teria pregado dois estalos na cara para chamá-la à realidade. Mas tu! Que o senhor me leve daqui rapidamente. Ao menos morta, estarei longe disto...” Peter já estava farto de ouvi-la. Pegando na bicicleta, seguiu direto para a tasca de Caetano.

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Na varanda, jogava-se acaloradamente um partida de tablam. Os jogadores gritavam excitados, batendo com as peças na mesa, contagiando os espectadores com o seu entusiasmo. Peter bebeu um copito e voltou ao jogo. “Oito!” “Doze!” “Taa-blaaam!” “Parabéns! Uma salva de palmas!” Os jogadores ergueram-se saudando o vencedor. Toda a gente começou a falar ao mesmo tempo. Que barulheira! Peter ficou a par das últimas coscuvilhices. De repente, Agnel bateu as mãos a pedir silêncio. “Oiçam! Alguém viu o comboio para Vasco partir esta manhã?” “Eu...”, disse Menino. “Cala-te!”, rosnou Agnel. “Estava lá mais alguém?” Peter estava agora apreensivo e rezou para que Agnel não o tivesse escolhido para ser ridicularizado naquele dia. “Então, ouçam. A mulher do nosso querido Peter, a jovem Teresa, quase que foi esmagada pelo comboio hoje!” “O quê!”, disse a multidão espantada. “Mas ela teve sorte. Um bom amigo da nossa jovem Teresa estava no comboio. Quem sabe, talvez ele estivesse mesmo à sua espera. Então, como o herói de uma fita hindi, agarrou-a debaixo dos braços assim e puxou-a para a carruagem num piscar de olhos”, disse Agnel, representando a cena com vivos gestos. “Agnel!”, disse Peter, perdendo a cabeça. “Vê lá o que estás a dizer!” “Será que me enganei? Bom. Então, conta-nos como realmente aconteceu”, troçou Agnel. “Chega dessas conversas de merda”, gritou Peter, pálido. “O quê? O quê! O que vais fazer? Diz isso aqui ao pé de mim, miúdo.” Agarrando Peter pelo braço, puxou-o violentamente. Ficaram cara a cara. Peter estava baralhado e agitado e começou a gaguejar. A sua figura já pobre entrou em bancarrota completa. “Olhem como ele é corajoso, o nosso menino”, rosnou Agnel perante a risota geral. “Agora volta para a casa e mostra essa coragem a tua mulher!”

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Peter estava num turbilhão. Tenho que tolerar isso tudo por causa da Teresa. Para onde quer que eu vá, sou insultado. Não, humilhado! Hoje primeiro na estação, depois pelo pai do Guilherme, depois pela mãe, e agora – não vou tolerar mais isto! Emborcou mais um copito. Puro. Pedalou até a estação e chegou a tempo de ver Teresa sair do comboio. Peter observou a cena cuidadosamente. Sentado a uma das janelas estava “o rapaz”. Teresa sentou-se na bicicleta. Parecia contente consigo própria, o que só tornou o humor de Peter ainda mais negro. “Peter, hoje de manhã foi por pouco. Se ele não me tivesse segurado...” Teresa tagarelava à medida que eles seguiam. Sentada no guião, ela não podia ver a cara de Peter, senão ela ter-se-ia espantado dos seus olhos injetados de sangue e a veia que estalava na sua fronte. A bicicleta parou à porta deles. Teresa apeou-se. “Pedrú! Vê lá se me vens buscar um bocado mais cedo amanhã, tá? Senão acontece o mesmo que aconteceu hoje...” Peter levantou a mão e esbofeteou-a. As bochechas de Teresa ficaram escarlates e ela começou a gritar, enquanto a mãe acompanhava o espetáculo pela janela. Peter ia ficando cada vez mais desvairado. Batia nas faces, no estômago, nas mãos, nas pernas, em tudo que era parte... cada vez mais e mais...

O africanista

SoteR baRReto

A

lsu tirou de trás da orelha meio viddi e depois de cuidadosamente limpá-lo colocou-o na boca. Riscou um fósforo e acendeu-o. Inspirou profundamente, revelando a sua dentadura estragada. Na verdade, aqueles dentes podres e aquela ponta de viddi pareciam feitos um para outro. Alsu era paddecar, um apanhador de cocos da aldeia. Hoje a colheita de cocos tinha sido boa. Depois de ter ido a casa lavar-se dos pés à cabeça, foi para o gaddhi de Kistu. Neste dia tinha algo de especial para lhe perguntar. Espera, disse gaddhi? Arrecha! Antigamente podia-se chamar gaddhi sem problemas. Mas agora não era apenas um pecado, era pecado mortal. Tal como outros gaddhis tinha-se transformado num bar – “Bar and Restaurant Vailankanni”. Mas para Alsu e para os outros paddecares e trabalhadores braçais da aldeia, continuava a ser o gaddhi de Kistu como nos velhos tempos. Eles reuniam-se lá, bebendo e dando à língua, e assim se passava o tempo. Mas uma coisa já tinha mudado – o bar agora pertencia ao filho do velho Kistu, que também se chamava Christopher, ou Kistu para abreviar. Como já disse, Alsu tinha algo a perguntar a Kistu, uma dúvida que o inquietava, e que só o dono do bar era capaz de esclarecer. Na verdade, Kistu era o guardião de todos os pequenos e grandes segredos da aldeia e um poço inesgotável de informações. Um dia as fontes de Kesarval e Torsam poderão estancar mas o manancial de revelações de Kistu nunca secaria. Um bocado medricas por natureza, hoje Alsu estava resoluto: iria tirar aquela questão a limpo. Mas primeiro precisava de molhar a garganta e de aquecer a barriga. Para ganhar coragem ele pediu: “Kistu, um pav de alem, se faz favor”.

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Segurando o pav de fenim de coco com gengibre, Kistu ia apanhar uma garrafa de soda com a outra mão, mas Alsu disse-lhe: “Não, não! Hoje nada de soda para mim. Estou com a garganta irritada – acho que estou a ficar constipado”. Alsu hesitou: será que lhe podia dizer que a sua pergunta precisava de coragem, e que era por isso que ele não diluía a sua bebida? Xi! Tinha muita vergonha! Fitando o encorpado e bem apessoado Kistu, que parecia o protagonista de um filme hindi, Alsu empinou o copo e tomou um bom trago do seu alem. Pela sua cara quase que dava para ver o caminho fogoso da aguardente pelas goelas abaixo até o fundo do estômago. “Xi, Kistu. O teu alem é bem forte, re.” Foram estas as palavras que Alsu conseguiu balbuciar depois de tossir com força e massajar a sua garganta. “Claro, Alsu-bab! Não te dei uma porcaria qualquer. Esse alem é maduro. Está posto de parte. Só o tiro para ocasiões especiais e quando me der na gana”, disse Kistu, enchendo o seu copo outra vez. Uma coisa era certa. Se alguém da aldeia quisesse álcool da terra ou até do estrangeiro, era com Kistu que era preciso falar. Noutros tempos, quando o maior proprietário da aldeia, também conhecido como vhoddlo batcar ou africanista, queria vinho branco ou tinto, conhaque, uísque ou o que quer que fosse, ele ia entregar-lhe à casa. Kistu era muito prestável por natureza. Quando o batcar africanista estava fora, ele cuidava da sua casa e propriedade, até por ser seu vizinho. Só recentemente é que se tinha afastado um pouco. E a informação que Alsu queria saber era precisamente acerca dele! Nesse preciso momento, dois dos seus companheiros paddecares, Ruzai e Sodu, chegaram e sentaram-se à sua mesa. Assim que os viu, Alsu sentiu-se mais confiante. O pav de alem já tinha assentado bem e aquecia o seu estômago. Na distância ouvia-se música. Sodu disse: “Parece que há festa em casa do batecar africanista. Esta música e aquelas luzes são da casa dele”. Ruzar olhou para Kistu em silêncio, enquanto Sodu retomou: “É por causa do novo filho do africanista, que acabou de nascer. Dia sim dia não festejam o acontecimento. E o mais incrível é que o pai já tem quase oitenta anos”. Alsu estava apenas à espera de uma desculpa para se introduzir na conversa. Alguma coisa ele já sabia do passado do africanista, mas não tanto como Kistu. O batecar era o maior proprietário da aldeia. Embora o seu verdadeiro nome fosse José Emerciano Teodósio de Castelo Branco e Dias, os aldeões chamavam-

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-no africanista e havia boas razões para essa alcunha. Ele tinha passado a maior parte da vida em Moçambique. A sua mãe, D. Telma, filha única do proprietário da aldeia, tinha-se apaixonado por um pacló português, como os brancos eram conhecidos, quando estudava no liceu. Ela fê-lo ghorzavoim, um genro que vive em casa do sogro. José Emerciano-bab, único filho deles, fora nomeado para um posto importante na administração colonial da África oriental portuguesa. Viveu lá uns bons anos. Depois da morte dos seus pais, e temendo que a casa e suas propriedades se degradassem, viu-se forçado a voltar para Goa já com idade avançada. Antes disso, era Kistu quem cuidava de todos os seus assuntos. Contava-se que durante a sua juventude em África levou uma vida de estroina. Embora tivesse adentrado na má-vida até quase perder o pé, conseguia manter seco o langotim; mais picante ainda é que há dois anos atrás ele foi de férias e voltou casado. E a esposa que trouxe com ele era uma boneca de vinte e cinco anos, uma verdadeira beleza. Um ano mais tarde nasceu-lhes um rapaz. Hoje era aniversário dele, e daí a festa. Mas Kistu já não ia a casa deles como dantes. Por esta altura, Alsu já tinha emborcado o segundo pav e queria ainda mais apaziguar a sua dúvida. Ele chamou Kistu num tom mais alto: “Kistu-bab, chega-te aqui. Tenho uma coisa importante para te perguntar. Arre! Tu conheces ao pormenor tudo aquilo que se passa na aldeia, não é?”. Já se via que Alsu estava meio borracho. Kistu pôs-se a pensar se não teria cometido um erro ao servir-lhe o seu alem mais maduro. Mesmo assim, colocou o pav de lado e perguntou: “Diz, Alsu, o que querias saber?”. “Olhe, Kistu-bab... O africanista está mesmo velho, não está?” Kistu concordou. “E a mulher do africanista é mesmo um bom pedaço, não é?” Outra vez Kistu anuiu com a cabeça. “Nesse caso, diz-me uma coisa. Numa idade daquelas, dá para fazer filhos tão... rapidamente?”, disse ele, batendo na mesa com o punho. Por sorte, Ruzar, Sodu e Kistu conseguiram agarrar os copos e garrafas a tempo. Antes de Kistu ter tempo para responder, Ruzar entrou na conversa: “E isso é estranho porquê? Dizem que homens e coqueiros dão frutos até morrer.” Alsu perdeu a cabeça. “Ruzar, ninguém pediu a tua opinião. Sim, Kistu, fala!”, disse, encarando-o de novo.

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Kistu olhou em redor. Quis a sorte que mais ninguém nesse momento estava no bar salvo eles. “Alsu, vou-te contar uma história. Ouve com atenção. É uma história africana, acerca de um caçador. Um dia foi passear na floresta sem levar consigo a sua espingarda. Tudo o que ele tinha era uma bengala. De repente, apareceu-lhe um tigre ao caminho. Petrificou, mas como era um bom caçador, não queria mostrar medo diante da fera. Instintivamente, levou a bengala ao ombro como se fosse uma arma e fez um ‘dum!’ com a boca. E o mais incrível é que o tigre caiu logo morto. O caçador pensou que o tigre tinha morrido de choque, por causa do barulho pavoroso que ele tinha feito. E passou a contar esta história a todos, cheio de orgulho. Mas a verdade era outra. Quando o caçador levou a bengala ao ombro e fez aquele ruído, escondido num arbusto, atrás dele, estava o homem que realmente tinha disparado o tiro.” O efeito do alem que o Alsu tinha disfrutado dissipava-se rapidamente. “Se são pretos, meu amor, Teu pai e tua mãezinha, Como é que tu saíste Branco tal como a farinha? Senhor, não me queira mal Por esta cor que é minha. É que nasci sexta-feira, noite de lua-cheinha.” Cantando esta canção, Alsu foi andando para casa.

Senhor Segundamão*1

maNohaR Shetty

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uando Cajetan Xavier trocou sua Vespa de dez anos por um Maruti 800 de dez anos, os outros residentes do condomínio St. Jerome em Dona Paula não ficaram nada surpresos. A estrutura seca de Cajetan subindo a encosta íngreme em frente ao National Institute of Oceanography ou atravessando as ruelas de Panjim em forma de cerqueira, sua Vespa já desgastada trepidando, era uma visão familiar. Em seu condomínio era uma figura bem conhecida por remendar a sua velha Vespa, injetando nela mais alguns meses de força vital na sua improvisada garagem cheia de entulhos, ou por subir a ladeira da sua casa com o piso da Vespa, a garupa e o guidão carregados de sacolas com as provisões semanais. Ao passar por ele, os outros residentes, nos seus espalhafatosos carros de luxo, perguntavam por gestos se ele necessitava de alguma ajuda com a sua carga, mas Caji era um tipo independente e simplesmente acenava para que seguissem. Agora estavam contentes e aliviados por vê-lo na relativa segurança de seu carro. Um carro em segunda mão, sem dúvida, mas mesmo assim mais seguro que aquela velha rodada Vespa. Um solteirão de sessenta anos, Caji adorava mais que tudo ficar fuçando naquela garagem e arrumando seu pequeno bangaló, que comprara há uns vinte anos de um casal que migrara para Abu Dhabi. Era visto constantemente dentro e fora dele, dando uma demão de tinta nas paredes externas ou martelando numa peça ou outra de mobília que estava consertando. Vinte anos atrás, Cajetan aposentara-se antecipadamente como vice-diretor de uma escola portuguesa na Beira, em Moçambique, e retornara a sua terra. O que não era comum para um goês, não * Traduzido do inglês por Paul Melo e Castro e Hélder Garmes.

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tinha parentes próximos no seu lugar de origem. Os seus antepassados vinham da aldeia de Chinchinim em Salcete mas mesmo lá só tinha uns primos afastados de segundo ou terceiro grau, com os quais havia perdido todo contato. A Cajetan bastava a sua vida solitária em St. Jerome em companhia de alguns daguerreótipos com seus ancestrais de fraques, chapéus e bigodes grisalhos nas paredes de sua sala de jantar. Não contratava faxineiras, fazia sua comida frugal, varria e esfregava seu próprio assoalho, depositava o lixo nos contentores verdes e negros disponibilizados pelo município de Panjim. Ele assistia regularmente à missa dominical na capela mais próxima, vestido de seu terno cinza, camisa bege, gravata listrada, e sapatos precisando de graxa – em todos os anos que ele ia a missa naquela capela nunca mudou a sua aparência. Os outros residentes do condomínio St. Jerome, que não se surpreenderam nada quando comprou o carro em segunda mão, perguntavam-se se ele possuía outro terno, camisa e gravata. Nas suas costas, trocavam comentários maldosos. Sobre sua última aquisição, alguém disse: “Talvez o governo em Lisboa tenha dobrado sua aposentadoria.” “Finalmente eu acho que mexeu na sua poupança... Que mão-de-vaca!”, disse outro. “Por que ele não compra uma coisa nova para variar? Ainda que a prestações”, disse seu vizinho de lado Hector Gonsalves. Esse último comentário, apesar do tom irritado, era o mais pertinente. Desde que Cajetan se instalou no condomínio há todos estes anos, nunca nenhum dos residentes se lembrava de o ver comprar algo novo. Sua compra do Maruti em segunda mão depois da venda da Vespa em segunda mão seguira um padrão fixo. Seus vizinhos sabiam que toda a mobília da sua casa tinha sido comprada em segunda mão, algumas do antigo dono da casa e outras de famílias que migraram para o Oriente Médio ou para o Canadá. Até os ventiladores, a geladeira, o fogão a gás e o liquidificador tinham sido comprados de terceiros. Havia boatos no condomínio de que mesmo as roupas, incluindo os sapatos e terno domingueiros, haviam sido comprados de segunda mão no Chor Bazaar de Bombaim. Ninguém tinha certeza quanto a origem da sua louça e talheres. Alguns dos residentes estavam mesmo convencidos de que todos tinham sido legados para ele por algumas famílias caridosas da Beira. Para ser justo para com os Jeromites (como os condôminos se autointitulavam), eles acertaram na mosca quanto a serem objetos usados os seus pertences e a seu cognome de “Senhor Segundamão”.

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De fato, Cajetan tinha uma queda compulsiva por coisas usadas. Mas não era uma idiossincrasia nascida de sovinice ou necessidade financeira. Caji simplesmente gostava de coisas antigas e não conseguia descartar coisas usadas. Tinha muito jeito com tudo o que era descartado, especialmente maquinarias velhas. Com um toque habilidoso de suas mãos e uma reserva de paciência, ele conseguia injetar vida nova em um ventilador, ar-condicionado ou carburador descartados. Cajetan detestava jogar fora velharias e sua garagem improvisada e seu quintal estavam apinhados com peças enferrujadas de todo tipo de máquinas domésticas e automotoras. Aliás, em Moçambique ele ganhara uma certa reputação de fazer milagres com caminhões e carros, máquinas agrícolas, bombas d’água e outras tais geringonças. Na escola onde ele dera aulas era muito conhecido por consertar velhos equipamentos e máquinas de laboratório e as bicicletas dos seus numerosos estudantes. Por sinal, foi esse talento particular de fazer ressuscitar maquinários que o obrigara a fugir do país. Nos muitos conflitos fratricidas que assolaram Moçambique, os serviços de Caji foram frequentemente solicitados para reparar armas enferrujadas e encravadas e veículos quase militares. Caji era um homem de paz, neutro como Berna nas suas opiniões políticas, mas os seus préstimos e talentos foram apropriados à força pelas duas frentes em combate. Foi esta situação de dois gumes em que ele se encontrou que finalmente o compeliu a deixar Moçambique. Ele tentara ser imparcial em seus serviços forçados, mas em tempos de conflito isso se revelara ser a mais ingrata posição possível. Deste modo ele relutantemente abandonou o país e a sua vocação. Mas, em troca por seus muitos anos de serviço, o governo português ainda o enviava a sua aposentadoria mensal. E chegou a Goa com seu talento de consertar máquinas velhas e outros bens intactos. Quando os condóminos de Saint Jerome o procuravam com centrífugas ou ventiladores portáteis com problemas, Cajetan estava sempre disposto a dar uma mãozinha. E como nunca cobrava por seus serviços havia uma atitude pouco generosa e algo mesquinha em o apelidarem de “Senhor Segundamão”. Caji agora disfrutava do conforto do seu velho carro. Com as suas mãos destras e versáteis, ele havia aprimorado o motor, trocado as lâmpadas dos faróis, e alinhado as pastilhas do freio e costurado um rasgão no banco traseiro. Ele amara a sua fiel Vespa, mas se vira forçado a desfazer-se dela não porque esta se tornara pouco confiável ou obsoleta, mas por causa de um novo status que recentemente adquirira – ou estava prestes a adquirir. As suas roupas, embora velhas e gastas,

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estavam agora sempre frescas, lavadas e passadas. E ultimamente seus sapatos tinham adquirido um novo brilho. Não que Caji fosse desleixado ou mal-vestido no passado, era só agora que tomava cuidados extras com o seu jeito e aparência geral. Mesmo o Maruti 800 adquirira uma nova camada brilhante de tinta amarela, arranjada sem dúvida a partir das sobras de donos simpáticos de mecânicas e de oficinas especializadas em Marutis, mas que nas suas habilidosas mãos ainda foi capaz de cobrir a totalidade do seu automóvel. Só uns poucos, como a fofoqueira Isobel Cotta, que picava como uma folha de pinheiro, notaram a mudança na postura e comportamento geral de Caji. “Esse Caji, aí tem coisa”, disse ela numa voz ácida e adstringente feito caju. “Até me sorriu e me deu bom dia.” “Talvez tenha recebido um bónus de natal. É por isso que pôde comprar aquele carro”, disse sua amiga Lavina, uma funcionária aposentada do Cooperative Bank of Mapusa. “Para mim, ele parece exatamente o mesmo”, disse Winston Dourado, que vendia apólices de seguros de vida. “Ainda paga seus prémios em dia.” “Definitivamente, aí tem coisa”, repetiu Isobel. Passadas duas semanas, o aí tem coisa tomou um rumo claro e impressionante. O condomínio inteiro estava curiosíssimo, com um arrepio de excitação, quando cada um dos residentes encontrou um convite nas suas caixas de correio. O cartão, com sinos prateados em relevo nos quatro cantos, dizia simplesmente: John e Joanna Pacheco têm o prazer de convidá-los para as Núpicas de sua filha Christobel com Cajetan Xavier Filho de falecido Martin e falecida Belinda Xavier (Chinchinim) a 25 de Janeiro Na Igreja Nossa Senhora da Imaculada Conceição, Praça Municipal, Panjim às 17h30 Seguida de Cocktails e Jantar no Taj Holiday Village, Candolim às 20h30 Sem presentes, por gentileza Embora impressionados com o local da recepção e o tom polido do convite, as primeiras perguntas dos estupefatos condóminos de St. Jerome foram obviamen-

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te quem é Christobel Pacheco? e quantos anos ela tem? Queriam saber se ela era filha dos Pachecos da aldeia de Betalbatim, que eram donos da Pacheco Wines and Spirits no tintó. Ou seria ela dos Pachecos de Rivona que recentemente migraram para Portugal? Mesmo usando toda a sua rede de contatos, cruzando todos os dados, e aproveitando suas conexões na Igreja, os Jeromites não conseguiam descobrir a procedência da noiva. Até uma noite quando Isobel e Lavina, armadas de flores e uma garrafa de vinho, bateram na porta de Cajetan. Ele as recebeu amavelmente e as convidou para se sentarem na sua reformada namoradeira entalhada – ao menos era isso que Isobel imaginava que fosse. Após darem os parabéns e fazerem algumas alusões canhestras, Caji se abriu um pouco. Contou-lhe que os Pachecos eram velhos amigos de colegas de trabalho em Moçambique. Christobel tinha sido professora primaria exatamente na mesma escola em que ele tinha ensinado por muitos anos na Beira. As duas senhoras disseram a Caji o quanto essa tardia união de duas almas apaixonadas as empolgava, ao que Lavina interveio com um comentário um tanto grosseiro: “Antes tarde do que nunca”. Na sua franca felicidade, Cajetan pareceu não se dar conta do comentário e até deixou escapar aquilo que elas queriam ouvir: “Ela tem 52, oito anos mais nova do que eu...”. Depois que a dupla saiu com a preciosa novidade, Isobel observou: “52? O Sr. Segundamão vai se casar com a Srta. Segundamão”. Essa piada tão previsível se alastrou como queimada no verão entre os Jeromites, e era complementada pela mais generosa “Toda panela tem sua tampa”. Outro elogio para a “noiva outonal” era “panela velha é que faz comida boa”. Outro se perguntava de forma mais maldosa se “Caji iria conseguir não deixar a peteca cair”, mas, conhecendo a disposição frugal de Caji, todos concordavam que esse casamento não seria nada luxuoso. Nisso, todos estavam enganados. No dia da cerimônia, entre os homens mais velhos, os educados votos de felicidade se transformaram em inveja quando viram Christobel. Alta e elegante, com um cabelo escuro e lustroso, ela sorria timidamente, acompanhando Caji, que vestia um terno transpassado novinho em folha, colete, gravata nova em folha e novíssimos sapatos, caminhando pelo centro da igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição de Panjim. E a recepção que se seguiu em um hotel cinco estrelas foi verdadeiramente grandiosa, com um espetáculo de fogos de artifício que durou seis minutos e um suntuoso jantar. E uma muita animada e agradável marcha nupcial, com o pai da noiva fazendo um brinde comovente e bem humorado,

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com comentários como “envelhecidos uísques, finos e amaciados” e “a sabedoria que vem com a idade”. A noiva, por sua vez, estava muito graciosa, circulando discretamente entre os convidados, falando com aqueles que conheciam o português de forma tão refinada e eloquente quanto qualquer um deles. Alguns, claro está, se acomodavam pelos cantos com os seus maridos obesos e entediados, comentando a pele clara dela e se perguntando se ela teria algum sangue português. O fato de essa suposição ser completamente falsa não impediu que Isobel fizesse um ácido comentário sobre os “libidinosos” oficiais portugueses servindo em Maputo e na Beira. Essas desagradáveis observações e a inveja desses casais em decadência não teve efeito sobre os recém-casados. Assim que se instalaram no bangalô de Caji, Christobel pôs-se a trabalhar. Limpou o jardim de ervas daninhas, mandou pintar o interior da casa, comprou alguns equipamentos para a cozinha (novinhos em folha), impôs uma espécie de ordem na garagem-lixão e com bastante facilidade convenceu seu marido a dar entrada em um novo carro da Maruti, a partir de um substancial empréstimo de seus pais. E embora sem a sua maquilhagem de noiva Christobel parecesse mais a sua idade, tinha em cada gesto uma energia desenfreada. Ela tagarelava com seus vizinhos e mantinha relações cordiais com os outros Jeromites. Havia boatos de que ela tivesse sido casada anteriormente e que seu primeiro marido tinha desaparecido numa das numerosas guerras civis que arrasaram Moçambique, reforçando a piada sobre Senhor Segundamão e sua esposa de segunda mão. Mas Caji sabia que não era assim. Os portugueses, apesar de todos seus defeitos, eram mestres em registros. Registros de nascimentos, mortes e estados civis. E Caji ainda mantinha contatos com a Igreja e os velhos amigos no cartório da Beira.... Mas em sua nova e profunda felicidade os recém-casados não perdiam nem tempo – nem seu mútuo desejo – com fofocas infundadas e histórias passadas. Aliás, eram como nervosos adolescentes que, com risinhos, exploravam um território desconhecido. Sua concupiscência inexperiente alcançava a parte mais profunda e terna de si mesmos. E Caji sendo Caji, ele comia os restos do prato de Christobel e adorava o gosto de sorvete derretido em sua língua. FIM

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