Percursos da sexualidade feminina

July 22, 2017 | Autor: Ana Paula Portella | Categoria: Sexuality, Gender
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CORPO E HETERONOMIA Sonia Corrêa

PERCURSOS DA SEXUALIDADE (FEMININA) Sonia Corrêa Ana Paula Portella

Recife, Março de 1994

Sonia Corrêa é arquiteta, com pós-graduação em antropologia, sócia fundadora do SOS CORPO, coordenadora de pesquisa na área de População e Direitos Reprodutivos do DAWN (Development Alternatives With Women for a New Era); secretária geral da ABONG (Associação Brasileira da ONG’S). Trabalhos desenvolvidos no campo dos Direitos Reprodutivos, População e Políticas das Organizações não-Governamentais.

Ana Paula Portella é psicóloga, desenvolveu estudos na UNICAMP na área de Ciência Política. Atualmente é pesquisadora do SOS CORPO – Gênero e Cidadania.

Revisão: Taciana Gouveia Digitação: Ângela Araújo Composição: Romag Impressão: Gráfica Flamar Edição: SOS CORPO – Gênero e Cidadania Rua Real da Torre, 593 – Madalena – 50.610000 Tel: 81 – 3445-2086 Fax: 81 – 3445-1905 Apoio: Fundação Mac Arthur Tiragem: 250 exemplares

ÌNDICE



APRESENTAÇÃO



CORPO E HETERONOMIA

1. CORPO: MATÉRIA, ESPAÇO E ENERGIA 2. CORPO – HARMONIA

3. CORPO - NATUREZA, APETITE, IMPUREZA 4. CORPO – LIMITE 5. CORPO – INVÓLUCRO 6. CORPO – PALAVRA 7. CORPO – MÁQUINA 8. CORPO – MORTALIDADE / IMORTALIDADE NATUREZA / CULTURA 

PERCURSOS DA SEXSUALIDADE

1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



APRESENTAÇÃO

Em um tempo que se tem falado tanto de sexualidade e os corpos andam tão à mostra, os trabalhos de Sonia Corrêa e Ana Paula Portella trazem a marca da ousadia, na medida em que se propõe a refletir a construção, os percalços e as possibilidades daquilo que nos constitui e nos dá humanidade. Textos para serem lidos juntos, como entrelaçados estão o corpo e a sexualidade, domínios de fantasmas, medos e culpas que precisam ser desvelados para tornarem-se lugares de autonomia, liberdade e alegria. É este o caminho que nos apontam as autoras e esta edição é um convite para trilhá-lo junto com elas.

Taciana Gouveia



CORPO E HETERONOMIA

Não pretendo aqui mais que um exercício, não exatamente um exercício de método, mas uma primeira marcação de espaço e movimento, se considerarmos que o tema exige uma coreografia muito mais rigorosa. Este formato decorre menos de uma escolha do que das circunstâncias. Desde que o tema me foi proposto os discursos que de alguma maneira,estavam latentes na memória emergiram e tomaram novas formas em muitas horas vagas: os momentos antes do sono, os aeroportos e , sobretudo, os aviões. A memória dentro do corpo, o corpo dentro de outro corpo que sobrevoa o corpo terrestre. As contingências proporcionaram um largo tempo para refletir, mas reduziram definitivamente o tempo da escritura e, sobretudo, impossibilitaram o acesso a textos, cujas alusões e associações iam se acumulando no caderno de anotações. Fiz, porém, duas breves consultas enciclopédicas. No Dicionário de Sociologia inexiste o verbete Corpo, embora meia página seja dedicada ao deliberativo Corporativismo. No Aurélio, temos um verbete densamente definido: Corpo-um significante primário, de múltiplos significados e incontáveis derivações alegóricas. Nesta compilação o corpo se apresenta como um fértil suporte discursivo. Sua ausência no registro enciclopédico da Sociologia é, no mínimo, surpreendente. Esta fertilidade é o que inspira este exercício. Refletir sobre o corpo implica em abrir um campo de tensão entre a banalidade da experiência empírica – estamos aqui porque somos corpos – e a extrema complexidade do existir. No interior desta complexidade deve ser buscada a peculiaridade do feminino ou, se quisermos, dos corpos que definem gêneros, fenômeno natural que condensa tantos, ou mais, discursos que o corpo “neutro” explorado pelo Aurélio. Não pretendo aqui esgotar todas as possibilidades de reflexão sobre o tema, mas apenas explorar alguns dos territórios alusivos ao corpo. As fontes e referências são principalmente da cultura ocidental, mas algumas breves referências são feitas à experiência e fala de outras tradições.

1 . CORPO: MATÉRIA, ESPAÇO E ENERGIA Antes de ser vida corpo é matéria que tem volume e ocupa espaços vazios. Estamos aí no campo da Matemática e da Física. Vêem dos gregos os sólidos geométricos, a teoria das esferas, a relação entre forma e número, a possibilidade de subdivisão dos corpos que leva ao conceito de átomo como dimensão mínima da matéria. O cheio do corpo, pressupõe um vazio anterior, o que instaura a dialética entre material e imaterial desde os primeiros momentos da filosofia. Há cheio e vazio, matéria e éter. Entre os extremos, estados intermediários: gases, líquidos, vapores emanações. É curioso observar que na tradição filosófica ocidental – se tomarmos os gregos como referência – o interesse pelos corpos inertes, que já estão ou que se criam, parece anteceder a inquietação com o corpo vivo: Pitágoras precede Hipócrites. Legados da Física e da Matemática clássica

seriam incorporados pela arte médica deixando marcas definitivas: as noções de equilíbrio e harmonia e, sobretudo, as teorias dos fluidos que continuariam fantasmando diagnósticos e curas até os dias atuais. Ao longo da Idade Média, a matéria retorna à sua impermeabilidade original. Produto da vontade divina, ela se integra à hierarquia do cosmo e não deve ser investigada. Forma define essência e com base neste princípio a matéria inerte ou viva ocupa lugares definidos e eternos. A regra de relação entre os corpos seria estabelecida mais pela similitude e pela diferença do que por sua constituição ou estrutura. A partir do Renascimento reemerge a inquietação clássica com forma e conteúdo, cheio e vazio, e com os princípios decodificáveis de ordenamento do cosmos. O conhecimento dos corpos, tradicionalmente desenvolvido a partir da observação e da abstração teórica, passa a incorporar o uso dos instrumentos. Telescópios e microscópios aproximam os corpos celestes e buscam o interior dos corpos próximos. Estamos sob a hegemonia da visão como caminho do saber: é preciso ver para conhecer. A abstração matemática permanece no campo da Química que separa, classifica, observa e provoca reações. Esta epistême seria decisiva no campo do conhecimento sobre os corpos vivos, de quem é herdeira direta a nossa Medicina. A representação dos corpos celestes e terrestres é menos a da Geometria do Mundo Antigo que a dos mecanismos. A imagem paradagmática é a do relógio que não apenas explicita a relação entre formas e movimentos, como também mede o tempo na sua progressão infinita. Nesta transição, os corpos vivos guardam uma estranha ambigüidade. Seriam gradativamente percebidos como mecanismos que podem ser analisados e transformados. Mas na Arte retomam-se os movimentos irregulares rompendo-se com a estética da Idade Média que instaura um novo padrão de representação. Na Medicina o corpo que se fez mecanismo sujeito à divisão, classificação e reparação guardariam um halo de humores, vapores e líquidos. A nova ruptura epistemológica seria a contemporânea. Einstein desarruma o mundo regular, descoberto por Galileu e conformado por Newton, re-instaurando uma dialética mais complexa na relação entre matéria, espaço, tempo e energia. A teoria da relatividade se constrói muito mais a partir da abstração do que das provas empíricas. Por outro lado, os novos instrumentos facilitam os cálculos, permitem a divisão em fragmentos menores que o átomo e expandem ao infinito a visão do mundo estelar. Quants, quarks, matéria e antimatéria, o tempo imbricado no espaço e vice-versa, caos e ordem confundidos, milhões de galáxias, cada qual contendo milhões de corpos em movimento e em transformação contínua: estrelas, que nascem, estrelas que morrem, pontos negros que emitem energias. Neste complexo universo material as relações de causa e efeito que impregnam as ciências pós-renascentistas vão perdendo substância. O próprio universo é uma singularidade. Há depois mas não há antes... Nele estamos nós pensando sobre os corpos. Resta apenas lembrar que o termo matéria é um derivativo de mater/mãe, o que nos instala de imediato no terreno das relações de gênero.

2 . CORPO – HARMONIA A aspiração de harmonia como possibilidade dos corpos vivos é uma narrativa universal. A referência mais imediata é o yin-yang dos orientais, mas o tema da Harmonia não está ausente da tradição ocidental. Na Grécia Clássica, a integridade corporal constituía um fundamento da cidadania, princípio que se estendia inclusive às mulheres cidadãs, quando tocadas ou agredidas por escravos, bárbaros e estrangeiros. Este princípio das relações sociais na Polis está de alguma maneira associado à teoria física de um cosmo equilibrado onde um corpo não pode ocupar o lugar de outro. A referência mais importante aí é a tradição pitagórica e de harmonia entre corpos vivos, escalas musicais,números e esferas cósmicas. Nela a física celeste e a física humana se imbricam. Na cultura, a harmonia entre corpo e mundo se expressa no segmento áureo, escala que determina as dimensões dos edifícios, principalmente templos, cujos módulos são definidos a partir do corpo humano. As obras físicas que a cultura constrói tem seu equilíbrio formal definido pelas dimensões corporais. O discurso platônico/aristotélico abre um intervalo importante neste holismo original dos gregos, instaurando aí a dualidade entre material e imaterial, entre as formas perfeitas da teoria e as formas imperfeitas do mundo humano, entre a razão e os apetites. A despeito disso o tema do equilíbrio permanece. O segmento áureo continuaria sendo utilizado na Arquitetura durante séculos, enquanto filósofos de gerações consecutivas elaborariam teorias as mais diversas acerca da harmonia entre corpo e espírito, continência e apetites, quietude e movimento, pulsões e serenidade. Esta trajetória vai de Platão aos estóicos, passando por Aristóteles e Epicuro. Diferentemente da tradição Pitagórica, que busca a harmonia através da música e das formas, o platonismo e as demais correntes filosóficas que dela derivam o fazer através do diálogo e das palavras. A dualidade é reconhecida, mas não dicotomiza como aconteceria no neoplatonismo cristão. Ela é fértil, dialética. Inspira princípios éticos e estéticos de que a análise mais acurada talvez seja a de Foulcault no último volume da História da Sexualidade – O Cuidado de si. Atemática da harmonia na tradição ocidental não se esgota nestes conteúdos. Entretanto, resta a certeza de que ela não foi abalada por rupturas tão dramáticas como a dualidade irreconciliável do cristianismo ou a razão incorpórea da modernidade. Para além da esfera mística e religiosa, o tema da harmonia seria integrado à teorias filosóficas que tampouco abdicam da razão e da ética pública, como no casa do Confucionismo. Sobretudo, a tradição oriental de harmonia, ao longo de milênios, vem guardando uma vinculação profunda com o corpo sexuado. Sua dialética não enfatiza tanto a tensão entre material e imaterial,

quanto a coreografia entre masculino e feminino, tomados como princípios constitutivos e imutáveis da natureza e da construção humanas. Retornando ao Ocidente, vale lembrar que a partir da hegenomia cristã as teorias de equilíbrio e harmonia ficariam submersas. Fertilizariam heresias e, sobretudo, as tradições esotéricas da qual a alquimia é o exemplo mais conhecido. O que é pedra filosofal senão um copo material que contém em si harmonia e imortalidade? Ele pode ser criado pelas habilidades do corpo humano e, curiosamente, no limiar do Renascimento a pesquisa alquímica agrega a busca da pedra filosofal à fantasia da criação de novos corpos vivos: os homúnculos. Esta vertente submersa teve múltiplas heranças, sendo uma delas a própria medicina alopática, onde os homúnculos contemporâneos podem ser reconhecidos nos bebês de proveta. Num outro campo estão as práticas e teorias marginais – homeopatia é uma delas – que hoje parecem confluir com as concepções de harmonia entre corpo e mundo que nos chegam do Oriente num contexto inédito de globalização cultural. 3 . CORPO – NATUREZA, APETITE, IMPUREZA Imbricado nos discursos ocidentais acerca da harmonia do corpo e do equilíbrio entre corpo e mundo estiveram sempre latentes as concepções negativas da corporalidade. Nelas, a materialidade humana aparece como o lastro que amarra a cultura transcendente à natureza incontrolável e imanente. Ao longo da Antiguidade, este seria o campo dos apetites, paixões e, em várias circunstâncias, da impureza, já que o corpo não apenas contém matérias indistintas como, sobretudo, é o lócus da morte. Com o Cristianismo, esta pólo negativo da dialética da Harmonia se despreenderia definitivamente. Santo Agostinho é possivelmente, o autor do discurso mais emblemático sobre o corpo impuro: “Nascemos entre fezes e urina para arrastar nossos desejos na cloaca mundi”. O corpo vivo dos humanos passa a coincidir com o mundo que os humanos constroem e, portanto, é preciso erigir sobre a impureza – de uma natureza que se fez cultura – a cidade de Deus. Esta inflexão se dá no contexto de uma profunda crise civilizatória. A Polis e a Pax Romana estão sendo derrocadas por contradições internas e pelo assédio dos novos povos que invadem suas fronteiras. Num caldeirão cultural heterogêneo e instável se misturam e se dissociam a tradição greco-romana, o judaísmo e variadas concepções orientais. É interessante sublinhar que os pensadores da cristandade não são romanos, mas vêm da periferia do Império. Paulo é judeu, Agostinho é cartaginês e inúmeros serão os novos seguidores godos, celtas e gauleses.

Se a harmonia grega continha, desde sempre, o demérito da exclusão, e a democracia perde ainda substância e sentido no curso imperial de Roma. As concepções estóicas do equilíbrio continuam florescendo – são exemplos Sêneca e os escritos políticos do imperador Marco Aurélio. Seu sentido, porém, já não é o de construir um marco para o ordenamento do mundo, mas sim o de criar um guia ético e estético para nobres e patrícios. Trona-se um manual de sobrevivência. Escravos, plebeus e bárbaros que se cristianizam conhecem, sobretudo, a face bárbara do estoicismo imperial, sua experiência é a prova mesma da dualidade. Esta transição foi, no entanto, mais lenta e tumultuada do que podemos imaginar a partir da leitura de Paulo ou Agostinho. Especialmente na área mediterrânea seriam inúmeras as dissidências e seitas que exacerbam ou invertem o tema da dualidade, tendo como centro de gravitação o conceito de um harmônico, onde nascem, vivem e morrem os corpos. Num extremo estão os agnósticos, em outros os cátaros que ainda na alta Idade Média buscam a divindade através do corpo e da sexualidade. Embora a tradição do corpo como natureza e apetite seja a que conhecemos mais de perto, os discursos e práticas que se constroem a partir do corpo impuro não são exclusivos da cristandade. A negatividade do corpo que o cristianismo institucionaliza e dissemina é, em parte, herdeira da tradição judaica. Porém, no interior mesmo da tradição judaica há correntes dissidentes, do qual são exemplos os salmos prezeirosos de Davi e na era contemporânea as celebrações hassídicas. A impureza corporal que tabus e procedimentos rituais é praticamente universal nas sociedades primitivas que foram estudadas, a partir do século XVIII, pela etnografia do Ocidente. Os rios de iniciação da puberdade, a menstruação, as regras rigorosas que cercam o parto, o puerpério e a morte e os acidentes como sinal de impureza, estão presentes nos relatos mais variados acerca de tribos amazônicas, sociedades africanas e da Oceania. Isto faz-nos crer que tradições similares integravam o ethos cultural de populações que lentamente se cristianizam a partir do século III de nossa era. Ao voltarmos os olhos para as concepções orientais de harmonia veremos que, embora mais matizada, a polaridade entre negativo e positivo, ativo e passivo, não está ausente. O yin é frio, inerte, agregante; o yang é quente, ativo, disruptivo, e estas representações que se apegam ao masculino e ao feminino organizando-se numa hierarquia que conjuga gênero e qualidade.

4 . CORPO – LIMITE Vencermos os limites do corpo é um tema que se associa ao discurso da impureza quanto ao da harmonia. Os limites do corpo podem ser superados através do próprio corpo: a dor e a auto-flagelação, as práticas sexuais dos orientais e dos cátaros, a dança ritual e a magia. Sob a égide do equilíbrio estão o esporte, a dança e, de alguma maneira, a guerra, que transforma o guerreiro mortal em herói imortal. Sair do corpo nos lembra, sobretudo, o misticismo. As práticas iogues e a meditação oriental permitem a neutralização e a evasão do corpo físico. Xamãs, curandeiros, sacerdotes deixam o corpo para curar ou viajar ao mundo dos mortos. Na tradição ocidental cristã o espírito deixa sua carcaça na morte. Os santos do deserto, como os faquires orientais, superam os limites do corpo e chegam ao espírito através da dor e da carência. O misticismo cristão medieval faz do corpo um trampolim de partida para esferas mais altas da espiritualidade. E os exemplos mais densos e poéticos vêm de mulheres: Santa clara e, sobretudo, Teresa d’Ávila. Entretanto, na trajetória ocidental o desejo de sair do corpo não é encontrado apenas no marco da tradição religiosa. A razão moderna, que se inaugura com o Renascimento, guarda uma curiosa afinidade com este impulso de descorporificação que está presente na tradição mística. Há exceções, é claro. Spinoza, ao construir uma ética que integra razão e afeição, deixa vislumbrar sob o discurso filosófico corpos que riem, que se entristecem, que sentem dor, medo e prazer. Há também os filosóficos políticos que continuam explorando a relação entre a organização social e os apetites humanos, num tom que por vezes lembra os gregos. Contudo, desde Galileu a razão gradualmente se descoporifica e, depois de atravessar as experimentações de Francis Bacon, faria de Descartes seu personagem mais emblemático. A razão incorpórea do Dubito, Cogito, ergo Sum abre campo para que os corpos e o mundo se esvaziem de substância e sejam reificados como “objetos do saber”. Ao descolar a razão do corpo que a produz, descartes concede - e autoriza-a sujeito o direito ao conhecimento, rompendo com a longa tradição que associava o discernimento à forma/essência/condição dos corpos humanos. Desde Aristóteles mulheres, escravos e crianças – para não falar dos bárbaros – detinham a capacidade de discernimento, mas num grau menor que os homens.

São decididamente contraditórias as heranças cartesianas. Na filosofia política a razão sem corpo teria longa trajetória, o que parece tanto mais contraditório se tivermos em conta que a modernidade é também a era que se institui o conceito de indivíduo. Kant e Hegel desenvolvem teses fundamentais acerca da relação entre o indivíduo e a sociedade, mas não absorvem a “equidade cartesiana” na medidas em que continuam desconhecendo a capacidade racional de mulheres, crianças e dos não proprietários. Hegel, sobretudo, retira a razão do corpo social para projeta-la no Estado como forma definitiva do espírito. Marx é seqüência. Sua tese de doutorado em filosofia foi sobre Epicuro e não sobre Descartes, entretanto, é possível perceber que o sujeito-para-si da utopia socialista tem uma relação direta com a razão cartesiana liberada do corpo e da condição de classe, cuja plenitude apenas permanece limitada pela dominação econômica e pela ideologia. Marx revira Kant e Hangel pelo avesso: ao relacionar economia e política, termina de abrir as portas para a consciência das mulheres como sujeitos históricos. Porém, a marca da razão sem corpo é flagrante e limitante em alguns de seus conceitos centrais como, por exemplo, reprodução e reposição da força de trabalho. Sobretudo no contexto da filosofia moderna, Marx revivifica uma universalidade que não tem gênero. Neste sentido, Engels, ao perscrutar o campo da família e da sexualidade com os instrumentos racionais do materialismo histórico, reintegra, ainda que parcialmente, as dimensões corporais à esfera da consciência e da razão. Não sem razão, sua História da Família, da Propriedade Privada e do Estado foi intensamente revista quando da emergência do feminismo contemporâneo. Entretanto, ainda nos anos “70 desde século, Althusser, no seu trabalho de revisão do marxismo, produz uma elaboração sofisticada que busca identificar e interpretar as estruturas, depurando o marxismo dos sujeitos – portanto, de corpos – numa perspectiva que tem como referência a objetividade de Galileu. Numa outra vertente está a Fenomenologia, cujo legado origina-se mais da dúvida do que da certeza cartesiana. Dela se desprende os conceitos de contingência e intencionalidade, cuja densidade é inequívoca. Na sua trilha está o Existencialismo que reinstaura a dialética entre corpo e espírito. Seu discurso, porém, é menos o da harmonia que o do dilaceramento. Alguns títulos e idéias sartreanas ilustram bem este caminho: A Náusea, Sursis – da trilogia Caminhos da Liberdade – o longo capítulo d’A Idade da Razão em que Mathieu reflete sobre o aborto e a partir daí desenvolve um discurso preciso e denso sobre a criação de outros corpos e outras consciências, implícita na reprodução biológica. Não é, portanto, surpreendente que a obra primeira do feminismo contemporâneo – O Segundo Sexo – tenha sido produzida a partir do caldo da cultura existencialista.

A última herança de Descartes foi o positivismo. Sua origem, como já vimos antes, remota a Galileu. O apego do método à experimentação é mais um legado de Bacon. Entretanto, o corpo teórico cartesiano consolida e completa esforços anteriores de sistematização racional, criando bases sólidas para o que depois seria interpretada pela escola de Frankfurt como “razão instrumental”. A ciência e a tecnologia moderna condensam, nos dias atuais, os méritos e perversões deste legado. 5 . CORPO – INVÓLUCRO Pesquisar os corpos que constituem o mundo, incluindo-se aí os seres vivos, é observa-los, mas também romper seu invólucro para saber o que contém. No Renascimento se refazem as imagens do corpo na Arte, investigam-se os corpos celestes, Da Vinci e Bartolomeu de Gusmão inventam máquinas de voar e se iniciam as pesquisas de anatomia e fisiologia nos cadáveres. Instala-se uma curiosa e contraditória dialética entre sair do corpo terrestre, refazer os movimentos do corpo humano e, ao mesmo tempo, romper os invólucros dos corpos vivos e inertes. O corpo como invólucro não é, porém, uma criação Renascentista. A concepção vem de muito antes. Os egípcios esvaziam os cadáveres e guardam suas vísceras em vasos sagrados para permitir a maturação do espírito que buscam o mundo dos mortos; os sacerdotes sumérios e romanos buscavam presságios no interior dos animais sagrados. De alguma maneira o antropofagismo ritual pressupõe que o corpo possui um conteúdo, substância que pode ser absorvida por via digestiva em um ritual que chega até nós na comunhão cristã. O corpo é vaso do espírito que deve ser mantido puro. É carcaça que se esvazia quando a morte permite a liberação da alma. Mas é também a hóstia que transmite a graça do Filho de Deus que morreu por nós. A modernidade alteraria, porém, o tratamento do corpo como invólucro. Perder-se-ia a complexidade, sendo o corpo gradativamente reproduzido à condição matéria. A medicina moderna e científica abre corpos vivos encontrando dentro deles outros corpos, cujas formas e funções descritas em analogia com o funcionamento das máquinas, permanecendo as imagens no nosso cotidiano e imaginário pela via dos manuais de Anatomia e Fisiologia. Estamos no terreno da objetificação que marca a trajetória da arte médica desde o século XVII ou XVIII. Reordenada a partir da razão instrumental, a Medicina passa a dividir, classificar e observar reações parcializadas. A imagem emblemática deste percurso está na cena final de Kaspar Hausen (filme do cineasta alemão Wener Herzong), quando o notário anota detalhadamente e os resultados da autópsia cerebral daquele ser diferente dos outros.

Sem eliminar o caráter perverso que esta trajetória de investigação do corpo-invólucro contém, permanece a ambigüidade. No campo da pesquisa empírica o desenvolvimento da Biologia avançou no sentido da ruptura com os paradigmas clássicos do positivismo médico. As incessantes tentativas de encontrar na matéria o sentido dos corpos vivos, terminam por chegar a alguma coisa que já não é física ou química, mas sim informação. Por outro lado, as concepções de causa e efeito que caracterizam o campo da diagnose e da cura seriam questionadas pelas novas concepções de ‘acaso e necessidade” que se constituem a partir dos estudos biológicos contemporâneos. Os inúmeros avanços nas áreas da Bacterologia e da Infectologia, que determinam os procedimentos médicos ao longo do século XX, estão sob escrutínio crítico e observa-se um paulatino renascimento da Clínica, que tem no corpo inteiro sua principal referência. Do ponto de vista epistemológico novas convergências se anunciam entre as ciências dos corpos vivos e dos corpos inertes. Num outro campo, é a partir do positivismo médico que, no século XIX, Freud reconceitualiza o corpo como invólucro. Sua tese de doutorado em Neurofisologia, sobre a sexualidade das enguias, situava-se em um marco científico que o obrigava tanto a observar o comportamento quanto à autópsia dos animais, com o objetivo de investigas in vitro suas reações químicas e hormonais. Sua trajetória acadêmica e profissional subseqüente também se fez no marco da Medicina clássica, do qual o estágio com Charcot em Paris é a melhor ilustração. Como se sabe, o psiquiatra francês levava histéricas em crise ao anfiteatro do hospital durante as aulas de diagnóstico. Foi portanto, a partir do suporte cartesiano que Freud avançaria na direção de novas concepções acerca das relações entre corpo e sujeito, permitindo, inclusive, questionar a arrogância da razão descorporificada e onipotente do discurso do método. No terreno da relação/tensão em que se articulam razão, sujeito e corpo, as contribuições de Freud são extremamente complexas e permanecem definitivas. Sem pretender esgotar aqui suas possibilidades e limites, quero sublinhar alguns elementos estruturais para a temática que aqui desenho: - O corpo físico da unidade aos sujeitos humanos, é a pele da identidade. Constitui o invólucro de um interior cindido e em tensão permanente. A tensão entre paixões/apetites e razão/consciência renasce complexificada na teoria psicanalítica. A economia e a topologia em que se articulam Id, Ego e Superego rompe com a dualidade clássica e deixa pouco espaço para harmonia. No discurso freudiano o corpo é, sobretudo, o lugar onde se expressam,via sintomas as pulsões internas.

- A razão auto-determinada, cuja sede é o Ego consciente, tem origens perdidas nas pulsões, nos afetos, na corporalidade primitiva. A teoria restabelece a ponte entre corpo e razão e, neste contexto, retoma e re-interpreta o sentido da palavra. Transportada para a historia, a tese freudiana compreende a cultura como um resultado encantador e dramático da sublimação dos apetites. - O corpo biológico e sua anatomia, tem um valor simbólico que impregna a constituição consciente e inconsciente dos sujeitos. Mas a anatomia é também apenas superfície, pois os corpos masculinos e femininos são cindidos em seu interior por pulsões e fantasmas que podem estar em condições com a natureza biológica. A androgenia dos pequenos humanos, a tória sobre o corpo materno como objeto primário, a abordagem freudiana do homossexualismo marca uma ruptura fundamental com a tradição anterior, em que os corpos de gênero se definiam não apenas como desiguais e diferentes, mas sobretudo como impermeáveis um ao outro. - Freud retoma e sofistica o tema clássico do corpo como lócus que contraditoriamente abriga Vida e Morte. - Finalmente, no campo do diagnóstico e da cura a Psicanálise – em pleno auge da Bacteriologia-re-instaura o valor da clínica e, sobretudo, desloca a possibilidade de harmonização da esfera da intervenção biológica para o terreno do diálogo e da intersubjetividade. 6 . CORPO – PALAVRA Ao recriar a relação entre palavra e corpo, no limiar do século XX, a Psicanálise, de fato, retoma uma antiga vertente da tradição ocidental. Na cosmogonia judaica o verbo se fez carne tão logo se fez o mundo, uma concepção que se desdobra na trajetória do Judiaísmo: a cabala, as sephirots da árvore da vida, as leituras continuadas da Torah, a tradição do Talmud. Esta associação tem inspirado inúmeros trabalhos que buscam identificar em Freud vínculos profundos com a tradição judaica. Outros percursos podem ser identificados na relação palavra-corpo. O uso da palavra na magia e no exorcismo atravessa a história e cruza culturas. Ritos religiosos de povos primitivos, do cristianismo e do idealismo não precisam nunca dos cânticos, sermões e invocações. Numa outra esfera, a retórica como arte necessária dos corpos políticos, está presente na cultura ocidental desde os primeiros sofistas. Entre Homero e Carlos Drummond de Andrade, a trajetória humana foi continuamente narrada pela poesia que, simétrica da retórica, dá corpo à história e a política.

Num outro campo, estão as tradições que fazem do silêncio um caminho para a sabedoria. No Ocidente e no Oriente o tema do silêncio é central nas culturas monásticas, para as quais a simbiose profunda entre corpo e palavra impede uma relação mais harmônica entre o espírito e o cosmos. Sair do corpo, em muitos casos, é deixar que as palavras passem como nuvem sem deixar registro. Esta prática parece apenas confirmar que na cultura humana corpo e palavra se imbricam, o que pode esclarecer, ao menos parcialmente, os percursos contraditórios que, na tradição filosófica ocidental, reuniam e separam corpo, palavra, razão consciência. Talvez por isso, depois de Freud, a Psicanálise toma derivações que parecem reproduzir dilemas anteriores. Num campo estão os herdeiros que retornam ao corpo como lócus da decisão e da possibilidade de cura: Melanie Klein e Reich. No outro, o filósofo Lacan faz de seu “retorno a Freud” um caminho em que mais uma vez o corpo desaparece, restando os símbolos e a palavra. Também na modernidade e para além da Psicanálise, as tensões entre corpo e palavra se desdobrariam no âmbito do Estruturalismo e do Existencialismo. Aí neste contexto assinalo duas referências significativas: - Em Estruturas Elementares de Parentesco (final dos anos ’40), Lévi-Strauss afirma que as mulheres são como símbolos, palavras. Os Símbolos circulam numa direção, as mulheres em outra...O curioso, diz ele, é que as mulheres são símbolos que falam. -

Um pouco mais tarde (década de ’50), ao escrever suas memórias, Simone de Beauvoir dedicam um capítulo inteiro de A Força da Idade a uma reflexão sobre o absurdo da mortalidade humana. Conclui dizendo que o sentido da vida é a comunicação.

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A teoria da ação comunicativa, formulada por Hebarmas, como caminho para superação da modernidade incompleta e crítica da razão instrumental, está, de algum modo, inscrita nesta linhagem de discursos.

7 . CORPO – MÁQUINA Sua imagem original é o corpo-mecanismo que lentamente vai se construindo entre o Renascimento e o século XIX. Em pleno Iluminismo, Sade constrói o texto mais paradagmático desta transição, definindo um cenário onde prazer e perversão se desprendem de exercícios sexuais em que o ritmo e, sobretudo, a repetição têm um parentesco mais íntimo com as máquinas de Bacon e Lavosier do que os espaços, a música e a arte barroca. Sade é um anúncio.

No século seguinte, a força de trabalho descorporificada do marxismo se vincula teoricamente à alienação do sujeito na linha de produção. De novo se desdobram imagens contraditórias: o Realismo Socialista, o Cubismo, o Futurismo, cujo apogeu coincide com a Revolução de 17. Na arquitetura estão as “máquinas de morar” de Le Corbusier e os vidros e aços da Bauhaus que iriam definir os espaços urbanos dos tempos contemporâneos. O segmento áureo dos gregos seria sepultado sob a macro-escala das novas cidades que parecem mimetizar – tanto na prosperidade quanto na miséria – a voracidade da acumulação. Os mecanismos terminam por se diluir na abstração e na geometria das artes plásticas dos anos ’60 e ’70, constituindo os quadros negros de Reinhardt uma espécie de ápice. Este cenário é habitado por trabalhadores, cujo gênero se neutraliza e, mais que máquinas de produzir, são máquinas de consumir. Estão também aí os simulacros onde a diferença sexual se densifica. Satélites, aviões, pornografia. Dialeticamente, no interior desta exaustão, vagarosamente as imagens dos corpos que são feitos de líquidos, tecidos, olhar, consciência, sensação e palavra vão se refazendo. Este é o nosso tempo. O discurso de referência talvez seja Eros e Civilização, de Marcuse, em que Freud e Marx se interfertilizam. Ocidente e Oriente se confrontam, se espelham, se interpretam. No discurso do feminismo o corpo se condensa como fundamento e argumento dos diálogos que se estabelecem com a política e, sobretudo, a filosofia. As traduções póstumas de Walter Bemjamim introduzem o tema da memória e da reminiscência na teoria da história. Não pode haver reminiscência e memória se não há uma corpo que experimenta as sensações da existência. Nas artes plásticas há um sutil renascimento da figuração. Os corpos materiais e inertes da natureza reagem aos efeitos da tecnificação e de novo voltamos a nos inquietar com os vegetais e animais. Novas epistêmes se anunciam no terreno da Física e da Biologia. O novo da Arquitetura parece exprimir o estado dos espíritos que habitam os corpos nesta encruzilhada civilizatória. Na geléia geral da pós – modernidade não poderia faltar o eterno retorno a essencialidades e espiritualidades de corte místico. 8 . CORPO – MORTALIDADE/IMORTALIDADE NATUREZA/CULTURA A cultura humana se constrói tanto a partir da criatividade, quanto da morte dos corpos individuais. A construção humana que deixa sua marca no mundo, sublima e ameniza a angústia que brota da consciência de cada um acerca de sua própria mortalidade. O corpo que nasce e morre mimetiza a natureza cíclica. Já o mundo construído aspira transcender esta repetição inexorável. Mito, arte, história, política são resíduo e forma desta busca incessante.

Em todas as culturas pode-se identificar uma dialética profunda entre corpo vivo e corpo morto. Da passagem paleolítica da natureza à cultura nos chegam não apenas os instrumentos e a arte da magia, mas também, e sobretudo, os ritos funerários como primeiros signos culturais. Beira do terceiro milênio – se pensarmos em Aushwitz, Hiroshima, Hánoi, Bagdad e nas ruas de nossas cidades – a morte do corpo individual parece ter se banalizado, enquanto corpos vivos, por todas as partes. Mergulham no hedonismo narcísico e, porque não dizer autofágico. Entremeados nesta esterilidade estão reminiscências e projetos: a harmonia, a profundidade dos sentidos, o corpo como lugar das afeições e não apenas dos apetites, o invólocro do corpo gestando e recriando a consciência e a palavra, transcendência sem arrogância, razão corporificada que transite da obsessão para com os objetos para a comunicação entre os sujeitos.

Texto redigido em outubro de 1991



PERCURSOS DA SEXUALIDADE Estamos historicamente consagrados à história, à paciente construção de discursos sobre os discursos, à tarefa de ouvir o que já foi dito. Michel Foucault – O Nascimento da Clínica

Falar de sexualidade não é uma tarefa fácil. Há sempre a expectativa de que se pode falar da sexualidade, quando, de fato, o que se faz é percorrer . Assim, necessariamente nos aproximamos das metáforas da linguagem: há quem fala, há do que se fala e há para quem se fala. Há ainda quem ouve, e há aqueles cujas falas tem sido silenciadas ou, ao menos, expressas num tom abaixo do usualmente permitido. Percorrer discursos, num exercício de comentar a História, implica, portanto, em descobrir quem são e como se relacionam, os seus protagonistas, os coadjuvantes e os excluídos da trama. Há uma segunda dificuldade: aparentemente, falar sobre sexualidade tem sido considerado um exercício moderno e libertário, que implicaria em ruptura com a tradição concebida com repressão. Porém, uma análise mais cuidadosa da trajetória do pensamento ocidental nos informa que, desde a própria gênese da filosofia, são inúmeros e variados os textos e as reflexões sobre a sexualidade. E quando se trata de discorrer sobre a sexualidade no feminino são os limites e os obstáculos. Na maioria das sociedades se nega culturalmente às mulheres a legítima autoridade nas esferas públicas e qualquer poder que chegam a ter é considerado ilegítimo, negativo e destrutivo. Mas, esta ilegitimidade é conferida a partir da perspectiva do homem, onde os poderes femininos são definidos como uma inversão da ordem social e sexual1.Isto acontece, inclusive, pela ótica das próprias mulheres, na medida em que internalizam os valores da ordem simbólica dominada pelos homens, constituindo-se aqui o verdadeiro princípio da heteronomia: as mulheres reproduzem o discurso do outro sobre elas mesmas 2. Os lugares de sujeição ocupados pelas mulheres, embora não lhes tenha impossibilitado a construção de compreensões próprias a respeito do mundo, lhes negaram a legitimidade necessária para que as suas falas tornassem-se visíveis. Podemos mesmo dizer que os homens, enquanto sujeitos do conhecimento, eliminaram da consciência histórica a experiências das mulheres 3. __________________________________________________________________ 1. BEHAR, Ruth – Brujería Sexual, Colonialismo y Poderes Femininos: Opiniões del Santo Ofício de la Inquisicion in México LAUVRIN. Asunciõn (coord) Sexualidad y Matrimonio in la America Hispanica, Siglos 2. ÁVILA, Betânia. A Natureza da Razão do Sexo (em preparação) 3. ÁVILA, op cit.

Dos discursos construídos sobre a sexualidade muito pouco foi elaborado pelas próprias mulheres e, deste pouco, quase nada permaneceu registrado. Nesta longa trajetória, esteve a cargo de um grupo restrito de homens a tarefa de compreender e explicar a sua própria sexualidade e a sexualidade das mulheres. Esta exclusão torna-se tanto mais problemática se lembrarmos que, além da variável sexual, opera ainda as variáveis econômicas, raciais, étnicas entre outras etc... Nos últimos dois séculos, contudo, através do feminismo, vem tomando uma fala política das mulheres onde a sexualidade – para além de ser vivida como um lugar de constrangimento, opressão e perigo – vêm sendo constituída como um terreno de exploração, prazer e atuação 4.

Este ensaio é uma tentativa de mapear alguns dos discursos sobre a sexualidade humana, explorando as tensões existentes entre as concepções calcadas na heteronomia e a lenta, mas segura construção de um sujeito feminino/feminista que, a partir de um dado momento da história, autoriza-se a fala sobre a sua própria sexualidade, construindo novos discursos, para os quais exige e confere legitimidade, através de uma forte presença política e da sua definitiva inscrição nos marcos da cultura ocidental. Uma análise de cultura brasileira, considerando estes mesmos aspectos, parece-nos interessante por algumas razões. Uma delas refere-se à formação escravocrata da nossa sociedade, que nos coloca questões importantes para uma análise da sexualidade feminina. Em outro plano, noções como democracia racial e liberdade sexual, que têm sido entendidas como importantes definidoras de uma possível identidade nacional, tornam-se extremamente problemáticas quando analisadas sob os marcos de gênero e raça.

Sexualidade e reprodução constituem interrogações centrais da cultura humana. Foram compreendidas, ordenadas, mistificadas e questionadas de muitas maneiras nas diversas sociedades que nos antecederam. Embora as atuais percepções e vivências da sexualidade nos induzam a pensar numa herança milenar, a sua ordenação como conhecemos no social e na intimidade contemporânea é relativamente recente. Ele tem raízes no século XIX, cuja semelhança com o nosso século é muito maior do que geralmente se admite. Mas também é verdade que a sexualidade é uma espécie de obsessão da cultura ocidental. Da filosofia grega a Freud, há bibliotecas volumosas que versam sobre o assunto, circulando em torno de uma mesma tese: os homens, enquanto sujeitos, se definem ou se redifinem pela sexualidade. _________________________________________________________________ 4. VANCE, Carole S. El Placer y el Peligro: hacia una Politica de la Sexualidad. in VANCE, C. (org) Placer y Peligro:Eplorando la Sexualidade Femenina. Madri, Ed. Revolución, 1989

Em nossos dias, os discursos sobre a sexualidade são, com freqüência, remetidos ao ato sexual em si ao exercício das sexualidades individuais, ou ainda, às funções reprodutivas. São muitas as falas que se organizam em torno do funcionamento dos órgãos sexuais e do aparelho reprodutivo,das descrições sobre as diferentes formas de relações sexuais e das definições sobre o que seriam práticas sexuais “normais” e pervertidas. Outras linhas de discussão incluem as questões referentes ao prazer e aos afetos. Estes dois eixos do mesmo discurso possuem pontos de intersecção e são, muitas vezes, permeados pelas noções de saúde/doença e repressão/liberação que nos enviam para o campo das patologias, sejam de ordem orgânica ou psíquica. Contudo estas são inflexões que, parecem minimizar aquela que pensamos ser a principal característica da sexualidade: a sua complexidade. A sexualidade é uma construção social que se articula em muitos pontos com as estruturas econômicas, sociais e políticas do mundo material. Ainda que a sexualidade, como toda atividade cultural humana, se baseie no corpo a estrutura, a fisiologia e o funcionamento corporais não determinam direta nem simplesmente a sua configuração ou os seus significados. A sua construção social inclui ainda a forma de conceituar, definir, nomear e descrever o sexo em diferentes tempos e culturas. Se o sexo é um produto cultural, todas as representações, descrições e imagem dessa sexualidade também o serão. As informações e descrição das experiências individuais estão mediatizadas por formas, convenções e códigos de significação culturais 5, dos quais nem mesmo o discurso feminista está isento. O corpo e seus atos são sempre compreendidos segundo os códigos de significação dominante. Nas últimas décadas, a investigação histórica vem se dedicando cada vez mais a buscar as articulações entre os discursos dominantes a respeito da sexualidade e a realidade das condutas individuais. É possível traçar uma grande linha que se inicia com a constituição do pensamento cristão ocidental e vem até os nossos dias, com a instituição da moderna sexologia. Ao longo deste percurso, há que poderíamos chamar não apenas das práticas desviantes – que, de alguma maneira, revelam as fissuras no pensamento dominante – mas também lenta construção de outros discursos – entre os quais incluímos o próprio feminismo – numa constante tensão entre heteronomia e autonomia.

5. VANCE, op. Cit

Na tradução cristã, o discurso sobre a sexualidade é recorrente. No pensamento cristão pré-agostiniano os apetites sexuais eram entendidos como parte integrante da grande catástrofe primitiva da existência física. Não havia um lugar próprio para a sexualidade. Quando muito a voracidade física destacava-se como um pequeno relevo do borrão generalizado do sensualismo e da dolorosa preocupação associada à perda humana do estado angelical. À ela portanto, faltava uma toque característico 6. É Santo Agostinho quem definitivamente aponta para a força compulsiva do hábito sexual. Para ele, a sexualidade era uma corrente cruel que só Deus era capaz de conter. Para sua continuidade a raça humana ainda dependia do impulso sexual. Mas no estado decaído do ser humano a natureza exata no intercurso sexual já não podia ser simplesmente presumida. Ele não era um remédio misericordioso, embora desajeitado, contra a morte; era em si mesmo uma minúscula sombra da morte. Tal como a morte, o surgimento e o auge da sensação sexual zombavam da vontade e revelava um princípio permanente de discórdia alojado no ser humano desde a Queda 7. Nesta herança, a característica principal do discurso está na associação entre sexualidade e instinto, afastando-a do , que é definido pelo . Para Santo Agostinho, o corpo, como instância humana, revela aos seres a cloaca mundis. Aqui, a sexualidade define o humano pela negação. Os textos cristãos podem ser interpretados como discurso do poder durante os quinze séculos medievais e o fato de que circulem ainda hoje indica uma substancial capacidade de recorrência. No entanto, a história da Idade Média e o Renascimento informa que tais concepções constituiam mais um código ético – referência do que dever-se-ia almejar – do que uma expressão da sexualidade. Os textos medievais sobre este tema são como um projeto, cuja instalação nas subjetividades masculina e feminina só se viabilizaria mais tarde contando com a concorrência de novos elementos. Se na Europa o momento fundamental para o processo de estreitamento da definição de moralidade e para a imposição restritiva de códigos de conduta – especialmente na área das relações sexuais – pode ser demarcado no século XVIII, não é aí contudo que tal processo se origina 8. As transformações que culminam no moderno discurso setecentista,são em parte, resultado do trabalho do Concílio de Trento, que encerrou as suas atividades em 1563

6. BROWN, Peter. Corpo e Sociedade. O Homem, a Mulher e a Renúncia Sexual no Início do Cristianismo. RJ, Zahar, 1990. 7. BROWN,op.cit 8. LAVRIN, Assunción.op.cit

Ainda que a reprodução da espécie e a formação da família para a educação dos jovens tenham sido considerados como o objetivo fundamental da união entre os sexos, o Estado e Igreja têm visto na instituição familiar um meio de socialização da moral e da política. O Estado se interessava basicamente em aspectos mais concretos e concentrava-se nos aspectos legais relacionados com o comportamento sexual e com a instituição matrimonial. A Igreja estabeleceu uma coesão sacramental para vincular o material com o espiritual, cuja finalidade era demarcar todas as manifestações da sexualidade em um objetivo teológico: a salvação da alma 9. O conceito de conduta sexual pós-concílio de Trento conservava muito a dialética medieval sobre a carne e o espírito como duas forças antagônicas em constante luta. O predomínio da primeiro podia significar a condenação eterna da alma. Para evitá-lo homens e mulheres deviam controlar continuamente as necessidades de seu corpo, seguindo as regras de conduta estabelecidas pela Igreja. Pecar significava quebrar voluntariamente estas regras e, em decorrência disto, levar a alma a perder a graça divina. Mas era possível absorver os pecados e devolver à alma a sua comunicação com Deus através da comissão e da penitência 10. De fato, acontecia aí um verdadeiro processo de educação dos fieis a partir dos cânones da Igreja, em que o controle individual da própria sexualidade ocupava um lugar de destaque. Como parte deste processo, os teólogos criaram catecismos e confessionários, com o que se estendia a ortodoxia desde o berço até a tumba. Os pecados são descritos e são regulados os procedimentos de julgamento, punição e absolvição. A lascívia, que nos interessa mais diretamente, podia se apresentar de sete maneiras: fornicação (relações sexuais fora do casamento), adultério, incesto, estupro, rapto, pecados contra natureza e sacrilégio (rompimento do voto de castidade). Os pecados contra natureza eram a masturbação, a sodomia e a bestialidade. A masturbação, sempre descrita como um problema exclusivo do homem, era condenada pelo princípio de que os espermatozóides só deveriam ser introduzidos na vagina com fins reprodutivos. A sodomia exigia uma posição que a Igreja não considerava natural e, mais uma vez, é utilizado o argumento reprodutivo. Todas as práticas sexuais aprovadas pela igreja tinham um objetivo legítimo e admitido: a perpetuação da espécie. Uma regulação de tal ordem só foi possível graças ao profundo conhecimento que tinha a Igreja sobre a filosofia e a psicologia dos desejos carnais, adquirindo depois de vários séculos de minuciosos estudos e dissecação de cadáveres. As sombras e os matizes da conduta e do pensamento forma completamente encobertos de forma a reduzir-se ao mínimo a margem de desvio por omissão 11.

9. LAVRIN, op. Cit. 10.LAVRIN, op. Cit

11. LAVRIN, op. Cit

As restrições e o controle da sexualidade de homens e mulheres eram também definidos em termos de honra. Tais restrições, definidas por homens, conferiam à mulher as mais pesadas cargas cuidado com a honra: a proteção da sua própria e da familiar. O objetivo fundamental da honra familiar era garantir a legitimidade dos filhos. A virgindade, por sua vez, denotava uma qualidade social que valia a pena conservar, mas não era uma condição absolutamente necessária para matrimônio ou a honra. A fidelidade e uma vida de recolhimento eram virtudes que salvaguardavam a honra de uma esposa. Esta tensão entre honra e sexualidade afetava as mulheres de todas as classes sociais 12. É neste momento que se constituem os primeiros Estados nacionais europeus e isto se dá em íntima conexão com as estruturas e princípios da Igreja Católica e, posteriormente, dar-se-á o mesmo com relação à Igreja Protestante. Se o campo religioso é um dos lugares de ordenamento e normatização das sociedades, no caso da Europa ocidental - institucionalizando-se e legitimando seus fortes poderes econômicos, as religiões cristãs irão participar não apenas da formação dos Estados Nacionais, como também da formação das próprias sociedades modernas européias e, como resultado do expansionismo que ali também se iniciava, essa participação irá se estender para as terras do Novo Mundo. Para além da própria presença econômica, a Igreja participará da formação das sociedades americanas especialmente pela via de catequese e, posteriormente, através da enorme rede de estabelecimentos de educação formal. As idéias que informam a ação católica neste período têm um importante lugar de produção e difusão no Tribunal do Santo Ofício que instalou o processo da Inquisição em 1536. Em Portugal, a Inquisição foi mantida por quase trezentos anos (até 1821) e, ao longo deste período, processou e sentenciou mais de 40 mil pessoas. Entre estas, os cristãos novos representavam mais de 80%. Na Penísula Ibérica, a Inquisição foi, sobretudo, um tribunal contra o judaísmo 13. Os países da América Latina não conheceram uma vaga de caça bruxas. Isto se deu, em parte devido à limitada difusão da obsessão pelas bruxas na própria Penísula Ibérica e, também, pela necessidade de se resolver aspectos mais importantes de conversão religiosa. A bruxaria feminina era enfrentada com enorme seriedade pelas elites religiosas do Norte da Europa. Era distinto o caso Espanha e Portugal, onde havia verdadeiros hereges a combater: os judeus convertidos e os muçulmanos. A opinião generalizada da elite ibérica era de que a bruxaria representava mais um sinal de ignorância do que de heresia 14. Por outro lado, alguns desvios sexuais foram perseguidos, entre eles a sodomia, a bigamia e a solicitação a atos luxuriosos feita pelos sacerdotes. O bestialismo não foi incluido por Portugal no rol dos crimes. O incesto, adultério, concubinato, estupro,

masturbação e lesbianismo foram tratados apenas como pecados e atos gravemente anti-sociais como o estupro - eram indiferentes aos Inquisidores 15.

Se os impulsos sexuais são um mal em si mesmo, no interior do discurso cristão, muito maior mal será a sexualidade feminina. Lugar demonizado, onde as forças sem freios dos instintos não medem esforços na sua tentativa de atrair os fiéis, é aí que um maior controle deverá ser exercido. O assustados na sexualidade feminina parece ser, na verdade, o simples fato de que ela existe de uma maneira própria, diferenciada da masculina, mesmo em um lugar de exclusão e de minoridade social e religiosa. Tal raciocínio aplica-se na mesma medida para a sexualidade dos negros indígenas também socialmente "menores", possuidores de sexualidades consideradas selvagens e irreprimiveis, inequivocamente associadas ao pecado. Esta sexualidade, sem controle e apresentando condutas profundamente diferenciadas com relação ao modelo europeu, tornou-se uma das preocupações centrais da Inquisição no Novo Mundo. A normalização das relações sexuais teria que se iniciar com a execusão das novas leis sobre o casamento emitidas pelo Concílio de Trento, o que implica na imposição de novos modelos 16. A heterogeneidade dos padrões culturais presentes na recente sociedade colonial brasileira, colocava problemas de várias ordens: a sexualidade precisava ser disciplinada, sem que se abrisse mão de uma política natalista de povoamento da nova terra. A aplicabilidade dos princípios cristãos, por outro lado, deveria supor algum nível de igualdade espiritual entre os vários grupos éticos que ali viviam-negros, indígenas e brancos - o confrontava diretamente com a manutenção da ordem escravocrata. No plano das condutas sexuais, foram inúmeros os desviantes que não acataram integralmente os ensinamentos impostos pela Inquisição. Foram muitas e variadas as alternativas sexuais praticadas pelos negros e mestiços na sociedade colonial que, redefinidas pela moral sexual dominante, forem igualmente alvo de perseguição inquisitorial. A homossexualidade, depois do judaísmo, foi o crime mais perseguido pela Inquisição no Brasil 17. Mesmo entre os brancos, cujo controle era facilitado pela identidade linguística e cultural, não se tem notícia de que seguissem rigidamente os padrões ditados pela Igreja.

__________________________________________________________________ 12. LAVRIN, op. Cit. 13. MOTT, Luiz. O Sexo Proibido. Virgens, Escravos e Gays nas Garras da Inquisição. Campinas Papirus, 1988 14. BEHAR, op. Cit 15.MONT, op. Cit. 16. LAVRIN, op. Cit

17. MOTT, op. Cit

Investigações recentes a respeito da América Espanhola indicam, por exemplo, que era elevado o número de mulheres polígamas, assim como o de filhos ilegítimos que eram reconhecidos pala Igreja e pelo Estado, sem que a mulher tivesse que retirar-se da vida social 18. Supostamente, as mulheres ou estavam dentro do controle sexual perpretado pela Igreja, ou estavam fora dele. A sociedade não admitiria termos médios. O código de honra enfatizava o controle da sexualidade feminina através da virgindade e da fidelidade conjugal. Contudo, uma análise mais detalhada da realidade, mostrou que as mulheres não apenas podiam estar dentro ou fora do controle, mas também estavam em uma posição intermediária. Elas aproveitavam as ambiguidades inertes ao código de honra para manter esta posição e, por vezes ainda, recuperar sua honorabilidade, apesar de haver transgredido os códigos sexuais predominantes. Para isto contribuía a dicotomia, reconhecia publicamente, entre a realidade particular e a reputação pública 19. A possibilidade de encontrar atalhos em meio à moral dominante aparece ainda nos casos de bruxaria. As tradições peninsulares, indígenas e africanas contribuíram para a formação de uma rica ciência popular de bruxaria sexual, cujos principais interesses eram as curas médicas e o controle da sexualidade. De acordo com BEHAR (1991), a bruxaria era a maneira pela qual uma mulher pobre buscava o controle sexual, ético ou de classe; era uma ferramenta eficaz para criar uma mística de poder ao alcance dos que tinham menos possibilidade de possui-lo na sociedade colonial. Mas as mulheres exerciam tais poderes no interior de um sistema dominado pelos homens e assim, no melhor dos casos, sua resistência se via limitada e fragmentada, como se observa na depreciação do seu próprio poder. Não obstante, a simples existência de um discurso das mulheres a respeito dos seus próprios poderes sobrenaturais permitiu-lhes questionar e desafinar, ainda que com pouco êxito, as estruturas de desigualdade; as mesmas estruturas que as levam a utilizar armas simbólicas para combater o domínio e a opressão reais.

_______________________________________________________________ 18. TWINAM, Ann. Honor, Sexualidad y Ilegitimidad en la Hispanomérica Colonial. In LAVRIN, op., cit. 19. TWINAM, op., cit

Se tentarmos pensar a construção do discurso cristão a partir de um ponto de vista que considere a heteronomia ou autonomia do estabelecimento desta fala, já temos algo profundamente emblemático. É certo que o discurso católico tem suas raízes nas narrativas bíblicas, onde toda e qualquer fala sobre a mulher tem origem do homem ou no deus, supostamente homem. Assim, ao dizer-se que a mulher é a encarnação do mal, não é a mulher que o diz, mas os outros que a ela se referem a partir de um ponto de vista próprio. Parece-nos digno de nota o fato de que, nas origens mais remotas do discurso ocidental sobre sexualidade, está exclusão das mulheres e a construção de uma fala sobre e para elas que não lhes leva absolutamente em conta. Pelo contrário, a fala das mulheres sobre si mesmas é compreendida como fala do mal e, pelo simples fato de Ter sido exposta, é passível de condenação e punição. A mulher é vista como um continente misterioso a ser desbravado pelo olhar masculino. O mistério parece esta na relação deste olhar com o objeto ser desvendado. Há mistério sim, mas porque o conhecimento da natureza é o conhecimento construído pelo Outro, porque na mulher não há lugar do conhecimento e do reconhecimento de si. A sexualidade feminina é vista como transbordante, perigosa, lugar de perversão, porque é a sexualidade de Outra, diferente e inatingível na sua experiência. Por isso, desviante e necessitada de controle 20. São complexas, ambíguas e pouco lineares as transformações que têm lugar no mundo ocidental entre os séculos XV e XIX. Há, certamente, inúmeras leituras possíveis desses quatro séculos de mutação, sendo impossível falar a respeito de todas elas nesse ensaio. Resta-nos a evidência de que, durante o século XIX, essas transformações assumem uma afeição mais definida no terreno da economia, das estruturas sociais e das mentalidades. Configuram-se relações e padrões de comportamento que ainda podemos reconhecer nas nossas próprias vidas. Consolida-se o capitalismo urbano e industrial - inicialmente na Europa e nos Estados Unidos para depois se disseminar como organização econômica hegemônica no resto do mundo. O fato de que existam formas socialistas de gestão da economia não altera substâncias alguns traços característicos do modo urbano industrial no que se refere à organização familiar à introjeção de modelos de sexualidade e ao agenciamento social pela via institucional.

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20. ÀVILA, op., cit.

Ë interessante reter alguns deste traços. As famílias se reestruturam, deixando de ser unidades extensas no interior das quais pais, filhos, parentes e contraparentes de diferentes gerações produzem em conjunto e, em grande medida, para consumo próprio. A organização familiar, gradativamente, reproduzir-se-á à unidade restrita (nuclear), onde vivem apenas pai, mãe e filhos, sendo que alguns ou todos trabalham fora da unidade familiar (no mundo público), embora o consumo seja de caráter privado. Em função da heterogenidade dos processos de desenvolvimento econômico essa transição não foi completada em várias regiões do mundo, sendo a família das áreas rurais do Nordeste do Brasil apenas um exemplo desta situação. Pode-se até mesmo perguntar se a nuclearização familiar tende a ser homogênea em todo o planeta. Entretanto, isto não impossibilita o reconhecimento de que ela se constitui em modelo hegemônico, no sentido de que parece ser um , buscando mesmo por homens e mulheres que vivem em outras circunstâncias. A configuração que se instaura é geralmente interpretada como sendo burguesa na ideologia e vitoriana na moral. Ela rearticula antigas concepções do Cristianismo numa nova moldura. Não sem razão, é então que a virgindade de Maria e, pouco depois, o celibato - temas que haviam sido polemizados na igreja durante os dezesseis séculos anteriores - são dogmatizadas. O modelo da organização familiar, ainda que , destina-se prioritariamente às camadas trabalhadoras, pois os elementos que contém favorece a fixação populações migratórias e a normatização do comportamento individual para adequá-lo às linhas de produção industrial. Por outro lado, pode ainda ser compreendido como uma das formas para favorecer o desmantelamento da solidariedade e da resistência dos grupos populares. Se na família burguesa a moral vitoriana parece assegurar a acumulação de riquezas e garantir o direito de herança, nas outras classes ela funciona como mecanismo de controle social. Uma percepção mais superficial diz que o é repressivo, explicitando sob a forma dos mecanismos familiar e social a cristalização do discurso medieval sobre a sexualidade. Ele expressa com suas normas rigorosas o controle necessário do identificado por Santo Agostinho. Mas, ao procurar compreendê-lo nas suas ambiguidades e, em particular, na articulação com os mecanismos econômicos, a questão complexifica-se. A moral vitoriana proíbe atos e gestos, tornando os mais valiosos e atrativos no campo do imaginário. Isso induz, por um lado, à punição das transgressões e, por outro, à recuperação social e econômica dos absurdos objetos da fantasia reiterados pelo controle. A representação atua transformando instâncias profundas e íntimas dos sujeitos em formas e simulacros sociais que podem ser recuperados pelo mercado. É um ágil dispositivo de controle e regulação, mas um aparo repressivo

e estático. As proibidas num momento são vendáveis em outro no interior de uma lógica mercantil.

Estas lógicas se imbricam produzindo deslocamentos permanentes entre o permitido e o proibido, num jogo ilusório. Os sujeitos sociais interiorizam tais oscilações sem se perguntar sobre suas origens e sem perceber o quanto elas trazem implícitas novos mecanismos de controle. A flutuação intensa enter antigo e moderno, liberado e reprimido, fechado e aberto, é compensada pela individualidade, outro elemento fundamental da nova organização simbólica.

Em paralelo, reordenam-se os sistemas médico e educacional, sob a forma institucional, e passam a operar na mediação entre o universo doméstico da reprodução e o mundo exterior da produção. O sistema médico, em particular, vem a desempenhar um papel vital na regulação do corpo e da sexualidade, enquanto lugar de redefinição dos sujeitos sociais nas condições modernas. A ciência moderna afirma as suas bases e passa a avalizar políticas e prescrever ações de caráter social. As sociedades são compreendidas como organismos, o que deveria possibilitar a descoberta das funções dos seus membros e as suas ações: o que anuncia é a possibilidade de predizer-se os movimentos futuros das formações sociais. Tal tipo de afirmação confere um enorme poder aos seres humanos: poder de intervir e transformar conscientemente o mundo em que vivem. É, evidentemente, um discurso sedutor e, mais que isso, um discurso difícil de ser refutado, tal a quantidade de provas e evidências com que os cientistas se municiam para justificar o que pensam.

A medicina moderna fixou sua própria data de nascimento em torno dos últimos anos do século XVIII e identifica a origem de sua positividade com um retorno à modéstia eficaz do percebido. A relação entre visível e o invisível , necessária a todo saber concreto, mudou de estrutura e fez aparecer sob o olhar e na linguagem o que se encontrava aquém e além de seu domínio. Para FOUCAULT (1977), as formas de racionalidade médica penetram na maravilhosa espessura da percepção, oferecendo como face da verdade, a tessitura das coisas, sua cor, suas manchas, sua dureza, sua aderência. O espaço da experiência parece identificar-se com o domínio do olhar atento, da vigilância empírica aberta apenas à evidência dos conteúdos visíveis. O olho tornar-se depositário e a fonte da clareza; tem o poder de trazer à luz uma verdade que ele só recebe à medida que lhe deu à luz; abrindo-se abre a verdade de uma primeira abertura: flexão que marca, a partir do mundo da clareza clássica, a passagem do para o século XIX.

O olhar não é mais redutor, porém fundador do indivíduo em torno do qual tornar-se possível organizar uma linguagem racional. O objeto do discurso também pode ser um sujeito sem que as figuras da objetividade sejam por isso alteradas. Foi esta reorganização formal em profundidade que criou uma possibilidade de uma experiência clínica: poder-se-á, finalmente, pronunciar sobre o indivíduo um discurso de estrutura cientifica. Esta abertura do indivíduo concreto à linguagem da racionalidade é a primeira ocidental. Faz-se, então, um uso absolutamente novo do discurso científico e obediência incondicional ao conteúdo da experiência, fazendo ver, dizendo o que se via. Foi necessário situar a linguagem médicas neste nível aparentemente muito superficial, mas, na verdade, profundamente escondido, em que a fórmula de descrição é ao mesmo gesto de desvelamento. E este desvelamento por sua vez implica, como campo de origem e de manifestação da verdade, no espaço discursivo do cadáver; o interior desvelado. É aqui que se constitui a anatomia patológica, disciplina que será fundamental para os desdobramentos posteriores do conhecimento sobre a sexualidade. No discurso minuncioso sobre as práticas sexuais então inaugurado há, há o objetivo de classificar, categorizar, determinar lugares e definir funções, separando-se o normal do patológico, inventando-se uma nova divisão para substituir aquela entre o pecado e a sanidade. É este o momento da afirmação da clínica média do higienismo e em que novas forças sociais vêm rivalizar com a Igreja Católica. É neste contexto que o sexo re-pensado. Têm início séries de experimentos sobre o sexo dos animais, dissecação de cadáveres, observação de práticas sexuais diversas. E é aqui que toma forma um discurso totalizante inequivocadamente legitimado pela ciência sobre as práticas sexuais humanas pautado sobre os conceitos de normalidade e patogenia. Curiosamente, muitas das práticas anteriormente condenadas pelo cristianismo passam a ser também condenadas pela ciência emergente, justificadas agora por razões de ordem médica. O anti-naturalismo é invocado para condenar alguns comportamentos como a sadomia, por exemplo. Os danos à saúde física e mental serão razão para a condenação da masturbação. É ainda desta teia que irá surgir a sexologia, hoje, definitivamente autorizada a proferir o moderno discurso sobre a sexualidade. Parece que a sexologia teve duas origens, ambas na segunda metade do século XIX, através de duas obras com o mesmo título: Psychopatia Sexuais, uma assinada por Heinrich Kaan e outra por Krafft-Ebing. Nos seus primórdios, a sexologia esteve mais atenta à nosografia que à terapêutica e centrada e acertada fundamentalmente nas enfermidades venérias, na psicopatologia da sexualidade e na eugenia. É depois

da Primeira Guerra Mundial que toma forma a sexologia atual. A partir dos trabalhos de Wilhelm Reich e de Kinsey, a sexologia define o seu problema central: o orgasmo. A racionalização da sexualidade se afirma cada vez mais e, junto com ela, eleva-se a influência dos sexólogos. Esta legitimação parece vir, em primeiro lugar, do seu êxito terapêutico e, em seguida, do recurso a um corpus de enunciados científicos experimentais. No mesmo contexto, ou um pouco antes, formula-se, pela primeira vez, uma teoria que articula economia pública e reprodução privada. Malthus lança suas idéias pessimistas, no final do século XVIII, que seriam retomadas, revistas e elaboradas continuamente pelos mais diversos atores durante os últimos duzentos anos. Falamos de neo-malthusiaos, higienistas, eugenistas e até mesmo militares pela livre contracepção, cujos discursos foram essencialmente libertários entre o final do século XIX e início do século XX. Tampouco podem ser excluídos os planejadores familiares contemporâneos. No início do século XX a sexualidade, enquanto tema, parece ramificar-se e é tratada pelas ciências médicas e biológicas, articulada com a psicologia profunda e ocupando um lugar central na psicanálise. No campo da nascente antropologia adquire um status também privilegiado e, no Brasil, é utilizada por Gilberto Freyre como um elemento fundamental para a análise sociológica. Em Gilberto Freyre há uma articulação entre sexualidade e raça que, se a ela associamos a variável de gênero, torna-se profundamente problemática. O elogio da miscigeração pacífica, de escravidão que é quase parceira e compadrio entre o senhor e o cativo, traz uma compreensão da sexualidade feminina em que o corpo e o desejo nada mais são do que os lugares de prazer do homem e de reprodução para a empresa colonial. É aqui que começa a tomar forma uma compreenção da sociedade brasileira – que sobrevive até hoje – onde a sexualidade , e, segundo Freyre, desbragada, pouco atenta à considerações outras que não a vivência do prazer, tem sido apresentada como um dos elementos centrais de nossa identidade cultural. É difícil analisar positivamente esta sexualidade se recordarmos que o seu exercício se fazia sobre o corpo escravo, onde por princípio, não há vontade. Como a maioria dos pensadores da sua época, Gilberto Freyre só poderia pensar em vontade, desejo e prazer localizados em um único lugar: no corpo do homem branco. Ele ignora completamente a violência existente numa relação de gozo que se exerce sobre um corpo sem vontade. A vida reprodutiva das negras – uma sucessão quase animal de partos e abortos – só é mencionada positivamente como parte da política natalista dos colonizadores. É difícil encontrar outro discurso sobre a sexualidade feminina onde a perversidade seja tão explicita: daquelas que têm corpo é dito que vivem para o prazer, que recebem e procurando o homem com alegria e satisfação. O corpo que não lhes pertence é vivido e querido como o lugar da felicidade. Nunca um discurso tão claro: o corpo como definidor da mulher, corpo que é negação do sujeito, é controle e, ao mesmo tempo, o centro, o Um da mulher.

Resta perguntar: onde está a mulher no meio desse labirinto? Dela, dir-se á (outros, que não Gilberto Freyre) que é portadora de um corpo onde o desejo sexual ameaça ocupar o lugar daquela que é a principal função feminina: a reprodução. Àquelas cujo desejo insiste em revelar-se para além da reprodução, sobrará o epíteto de ninfomaníacas e histéricas, possuidoras de distúrbios orgânicos que lhes fazem semelhantes aos homens. As novas descobertas sobre as funções reprodutivas servem como reforço para a definição do lugar da maternidade como sendo o lugar da mulher. Se o prazer, de modo geral, é circunscrito à relação heterossexual com penetração no interior de um casamento e com o objetivo de reproduzir a espécie, à mulher será negada a busca do prazer, mesmo neste lugar. A geografia da feminilidade que herdamos se constrói efetivamente no interior desse enredo. Se, por um lado, é verdade que o patriarcado antecede em muito no século XIX, por outro é também fundamental reconhecer que os tempos o reorganizam. A tradicional hegemonia política e jurídica do gênero masculino ligava-se à garantia do direito de herança e expressava-se através da monogamia e dos direitos inabaláveis do pátrio poder sobre os membros da família. Mas sabemos que a sexualidade dos indivíduos se organizava de outra maneira. Na família nuclear, pela primeira vez na história humana, uma mulher e um homem estão sozinhos frente a frete. Da mulher , isolada, se quer que reproduza filhos sadios e que faça a gestão do universo doméstico. Das camadas mais pobres, exige-se ainda à força de trabalho industrial, segundo as necessidades conjunturais da economia. A mulher deve ainda recanalizar o erotismo de suas relações – filhos, irmãs, mães – concentrando-o inteiramente na interação com o marido, com um foco e não difuso. A estrutura da família nuclear se apóia simultaneamente, no investimento erótico da mulher e do homem e na capacidade reprodutiva da mulher. Seu espaço adquire um caráter sagrado. A sexualidade fica por trás de portas fechadas, em casa e o exercício da prostituição se torna uma atividade mercantil. Antes do capitalismo houve sociedades em que a prostituição era associada ao sagrado. Não sem razão, o século XIX também produz o que chamamos de histeria, palavra que vem do latim hysterus (útero). O que é a histérica? É a mulher confiada nesse mundo estreito e regulado que se recusa corporalmente. Ela grita, enrijece-se, tem asma, paralisa, queixas vagas. Ela também fantasia relações sexuais que não existem, gestações fantasmas. Ela se torna objeto de interrogação científica, de cuidados médicos e, finalmente de psiquiatrização. Mais tarde, transforma-se em tema central das teorias psicanalísticas da sexualidade feminina.

Pouco a pouco, todo um discurso sobre a sexualidade feminina será construído nestes séculos. No final do século XIX, Freud dedicou-se a estudar a histeria feminina e abriu o caminho para que mais tarde denominaria do da psicanálise. A sexualidade feminina seria um lugar de difícil acesso. Perplexo, ao final dos seus trabalhos, Freud pergunta-se: o que quer uma mulher? E conclui pela ignorância. Mas enquanto defrontava-se com esta dificuldade, Freud construiu toda uma teoria a respeito da sexualidade humana onde a mulher, mesmo problematicamente, estava também incluída. É Freud quem diz que, para a mulher, a anatomia do destino. Mais uma vez, a fixidez do corpo. É comFreud, também, que os aspectos sexuais irão assumir um lugar central no desenvolvimento da personalidade humana, e ampliando as explicações para metáforas antropológicas as experiências sexuais passarão a fazer parte da própria constituição das sociedades humanas como um dos seus elementos fundamentais. A noção de libido, associado à repressão e sublimação, modificam por completo o quadro das ciências médicas e sociais. O lugar atribuído à mulher fica, a partir daí, inteiramente articulado ao sistema médico. Como gestora da saúde doméstica é através dela que invadem o universo familiar as normas higiênicas e terapêuticas. Ela é a amiga do médico na família burguesa, ele é quase seu confessor. Mas quando o corpo, à sua revelia, recusase ao seu papel, ela é diagnosticada como louca, exibida nos auditórios acadêmicos de psiquiatria, impregnada de medicamentos. Isso é o mais freqüente entre as camadas trabalhadoras onde, além da depressão para representar irrepreensivelmente seu papel doméstico, ela deve ainda ser expoliada nas jornadas de doze horas na linha de produção. A histérica e o esforço sistemático de sua normatização – ela precisa voltar ao normal- definem cruamente o lugar da sexualidade feminina na trama da sociedade moderna. Mas este é também o momento em que o princípio da heteronomia na construção dos discursos começará a ser questionado. Emergem os movimentos socialistas e feministas, reinvidicando uma nova inscrição cultural para os trabalhadores e as mulheres. Suas inquietações se referem às condições econômicas de exploração, cruzam o campo dos chamados direitos sociais e questionam as condições privadas de reprodução e sexualidade. O feminismo é inegavelmente, um dado inédito na cultura ocidental: pela primeira vez, sujeitos humanos que ocupavam lugares de exclusão ocupam o espaço público e constroem uma fala sobre si próprios e sobre a civilização em que vivem. As mulheres vivenciaram e vivenciam uma outra experiência, diferente da dos homens, ocuparam e ocupam espaços e funções diferenciadas e, ao estarem em cena como reivindicando a protagonia da ação e da fala, revelam também que toda experiência teórica se faz a partir de uma experiência real. Ao se instituírem como o sujeito políticos e sujeitos do conhecimento trouxeram para

o campo da razão a elaboração de teorias e conceitos baseados em experiências, cujo lugar de transcendência era até então negado. Se a medicina moderna retirou as práticas sexuais do lugar da intimidade, legitimando-as enquanto objeto do saber cientifico, ao mesmo tempo em que instalava a individualidade no campo da ciência, o feminismo não retira do privado a experiência da sexualidade. Num movimento inverso, traz o olhar para dentro deste lugar, desnaturalizando-o. nesse sentido, não individualiza, mas culturaliza e politiza. No campo da sexualidade são muitas as novidades traduzidas pelas mulheres. No século XIX, a prostituição e a violação são os principais temas do feminismo, sempre referidos como símbolos importantes da coação sexual masculina. O olhar sobre a violência sexual revelava de maneira clara as desigualdades de gênero. Para além do dano físico ou psicológico real se fazia vítimas da violência sexual, a ameaça doa taque sexual servia como potente advertência do privilégio masculino, limitando os movimentos e o comportamento das mulheres. O desejo sexual masculino, apresentado como algo intrínseco, incontrolável e facilmente excitável mediante qualquer demonstração de desejo e sexualidade feminina, leva à culpabilização da vítima ao mesmo tempo em que se desculpabiliza o homem. Se o desejo sexual das mulheres desncadeia o ataque masculino, esse desejo não pode jamais manifestar-se livre nem espontaneamente, nem em público nem em privado. Através de um raciocínio ditado pela cultura, as mulheres convertem-se nas custódias morais do comportamento masculino que supões que elas instigam e desencadeiam. Assim, as mulheres herdam uma considerável tarefa: o controle de seu próprio desejo sexual e da sua expressão pública. O autodomínio e a vigilância se convertem em virtudes femininas principais e necessárias. Os efeitos da desigualdade entre os gêneros podem supor não apenas a violência bruta, como também o controle interiorizado dos impulsos femininos. A vivência do desejo supõe para as mulheres a renúncia à vigilância e ao controle, o que provoca um profundo desasossego com relação à violação dos limites da feminilidade e evoca o fantasma da separação das outras mulheres.26 Na verdade, a emergência do feminismo revelou a completa ausência de legitimidade conferida à sexualidade feminina e não só à sexualidade, mas tudo o que viesse do lugar da mulher e que não partisse do campo da reprodução ou da vida privada. Instala-se, neste momento, uma tensão permanente na cultura ocidental: de um lado, os discursos ditos , que insistem em construir-se como explicações dos outros do homem branco, heterossexual e rico e, de outro, proliferam os discursos dos que, através de continuados embates políticos, já não aceitam o que deles se diz e propõe alternativas próprias à organização da sociedade.

26 . VANCE, op., cit.

Podemos demarcar alguns cortes importantes no desenvolvimento do discurso feminista sobre sexualidade. O primeiro feminismo, este a que acabamos de nos referir, centrou as suas atenções sobre a prostituição e a violência sexual. Na década de ’40 , Simone de Beauvoir lança O segundo Sexo, considerado o marco filosófico para o feminismo que se seguiria. A máxima , abre um vasto caminho para análise da condição feminina onde a inscrição cultural e nas tentativas de desnaturalização serão as principais vias de elaboração discursiva. A sexualidade irá ocupar um lugar central na maioria destas análises e isto não se dá gratuitamente. O discurso feminista não se constrói a partir de nada, mas sim através do diálogo com os discursos da ciência e da filosofia, onde as referências à mulher são feitas a partir do corpo, do sexo e da reprodução. São as tentativas de desconstrução destes discursos e de formulação de novas idéias a partir da experiência particular das mulheres que irão originar o feminismo dos anos ’60. Dois dos seus temas centrais têm sido a sexualidade e a relação do sistema médico com o feminismo. Assim como já haviam feito os filósofos gregos e romanos e os teólogos medievais, algumas mulheres começaram a interrogar: quem somos nós na nossa sexualidade? E, naturalmente, tem sido difícil abrir um caminho nessa teia. A idéia de sexualidade que aí se gesta traz como princípio a noção de autonomia : agora são as mulheres que falam e agem e as suas referências são referências dos seus lugares de mulher. Da sexualidade reivindica-se o prazer e a separação da vida reprodutiva; para esta, reivindicar-se a liberdade de escolha, a maternidade sendo uma opção e não mais condição. O auto-conhecimento do corpo aparece como uma necessidade fundamental e um pressuposto da elaboração teórica : não posso pensar sobre aquilo que desconheço, parece ser a afirmação que sustenta os grupos de auto-exame. Há um exaustivo descrever de histórias individuais, baseado na premissa de que o pessoal é político, que muitas vezes tomou formas confessionais. Por outro lado, a noção de repressão sexual assume um papel preponderante nas análises e nas propostas de ação política. No limite, a busca de alternativas para uma vida sexual limitada chegou à idéia do lesbianismo como o lugar das vivências igualitárias e, durante um bom período, sustentou a idéia de sororidade. O feminismo moderno dos anos ’60 foi estigmatizado publicamente : eram as que não gostavam de homens, que queimavam soutiens, gritavam e não ouviam. Mas seguiu seu caminho a despeito disso. Contudo, outros problemas surgiram. A sexualidade também era de forma redutora, como o coito, como genitalidade. Isso foi um beco sem saída, pois não se tratava apenas de ter orgasmo, mas de se sentir melhor no mundo. Nesse processo, tentamos reconhecer nossa própria imagem nos espelhos que o mundo nos oferecia : as mulheres, as crianças, os velhos, os homens. Por outro lado, a tentativa mesma de circunscrever a vivência da sexualidade num corpo explicativo totalizador

exauriu-se em pouco tempo. Cedo se percebeu que aquilo que identificava as mulheres enquanto gênero – o corpo sexuado – não poderia funcionar como elemento de identidade: porque não há corpo sem história e, portanto, sem cultura. A ênfase desloca-se, então, do corpo para a condição social e política, sempre inferiorizada em qualquer sociedade conhecida. Por outro lado, a sexualidade pensada pelo feminismo foi a sexualidade da mulher branca ocidental: isso as negras e latinas dos EUA têm insistido em colocar como ponto de discussão. Os rearranjos no mundo ocidental, absorvendo o próprio feminismo como elemento cultural e político, trazem ainda outras questões. É certo que ainda estão aí a família nuclear, o sistema médico e a feminilidade cordata, carinhosa, disponível, irrepreensível, silenciosa. Esse modelo doméstico e privado tem um duplo que é o público: a ninfa da sexualidade, fogosa, poderosa,rapariga e mulher de rua. Nem todas as mulheres chegam às fronteiras extremas desta espécie de esquizofrenia, mas todas vivem essas pressões, fantasmas a dicotomia com a outra, têm momentos viscerais de recusa, adoecem sem saber por quê, têm enxaquecas, tensões pré-menstruais, apoplexias. Esses sintomas deságuam nos serviços de saúde, onde são percebidos como doenças e normatizados. Para as queixas vagas se receita Diazepan, para as queixas ginecológicas pomadas e se a histeria se apresenta nas suas formas puras da frigidez ou conversão, há sempre solução. Para a primeira prescreve-se hormônio masculino, para segunda assina-se uma guia de internação.. Há, contudo, importantes modificações e rearticulações do dispositivo de controle da sexualidade humana e, especialmente, da feminina. Nos cem anos que nos separam das primeiras histéricas tratadas por Charcot, a mercantilização da sexualidade vazou dos limites marginais da prostituição. Hoje, ela não vende apenas o corpo da própria mulher, mas pneus, televisões, quartos de motel. Já há um vasto campo de coisas permitidas porque lucrativas. Estamos todos presos nessa curiosa trama: homens, mulheres, crianças. Aqui também entre a moral tradicional e religiosa de nossos pais e avós e os novos modelos de comportamento sexual. Uma observação cuidadosa indica, porém, que as instâncias de transgressão são sempre reiteradas, mudando apenas os comportamentos considerados desviantes. Num resumo exagerado podemos afirmar que o lucrativo é permitido: motéis, revistas, filmes, nudez na publicidade de produtos. O Brasil parece ser um caso exemplar dessa tensão entre transgressão e obediência a um código de atitudes baseado nas posições sociais de gênero. Há, de fato, uma supervalorização do sexo e do prazer sexual que aparece de maneira clara nos programas de televisão, no cinema, nas revistas, mas também nas conversas informais e na moda. Ao mesmo tempo, a sexualidade tem sido um dos temas mais discutidos em universidades e outros espaços acadêmicos e, nos últimos dez anos, tem ocupado também os espaços dos movimentos sociais e políticos. O corpo erotizado parece ser a principal mediação social no Brasil contemporâneo. A valorização que se faz destes corpos sempre bonitos,

sedutores e nus, parece-nos muito semelhantes à valorização operada por Gilberto Freyre nas suas análises sobre o Brasil colonial. Atualmente, ao observarmos as grandes cidades brasileiras, temos nítida impressão de que a tensão entre repressão/liberação já foi completamente superada, sem variação de gênero, classe, idade ou condição social. Richard Parker, (1990) em uma análise sobre a cultura sexual brasileira, refere-se a três sistemas simbólicos que convivem, em certa medida, harmoniosamente na nossa sociedade. Os dois primeiros são comuns às modernas sociedades industrializadas: o sistema de gênero e o sistema da sexualidade. No primeiro, ordenam-se os papéis e os atributos masculinos e femininos, no caso brasileiro, de uma forma profundamente desigual, apontando para fortes elementos patriarcais. O segundo refere-se às ordenações médicas e cientificas a respeito da sexualidade. Há o terceiro, porém que parece ser um elemento que não está presente em outras sociedades. Trata-se do sistema erótico, cuja principal característica está na transgressão de todas as interdições e de todas as normas ditadas pelos outros sistemas. É o lugar de realização do proibido que, no nosso caso, é vivenciado com um certo orgulho. Esta cultura do erotismo e da sedução, para além do fato de ser perfeitamente capaz de conviver com as desigualdades de gênero no campo da sexualidade, tem trazido como efeitos perversos a gravidez indesejada, os abortos clandestinos, as doenças sexualmente transmissíveis e, mais recentemente, a disseminação da AIDS. Parece-nos, contudo, que a sua principal inflexão se dá justamente no campo da construção dos sujeitos: não há lugar para a autonomia em uma configuração como esta e, se não há, é certamente porque dela está ausente a possibilidade de se pensar politicamente questões como sexualidade. O feminismo dos anos ’60 tentou construir uma via de agenciamento social e político que partia do corpo para a polis, em busca da cidadania feminina. O desafio que a atual situação brasileira nos coloca é o de um corpo saturado de sexualidade, onde a banalização de experiência heterônomas comprometem em muito uma politização deste lugar que não seja feita pela via da denúncia da comercialização. Se antes questionava-se a repressão, talvez estejamos no momento de problematizarmos esta . Se dirigirmos a nossa atenção para o campo dos direitos reprodutivos outras questões se colocam. O projeto dos neo-malthusianos de obtenção de meios para limitar o crescimento populacional atingiu os seus objetivos. Nos últimos cem anos, foram aprimoradas e disseminadas as novas tecnologias contraceptivas, significativamente destinadas às mulheres e freqüentemente danosas ao seu bem estar físico. Elas foram divulgadas pelo mundo inteiro tendo como lema publicitário a resolução da angústia da histérica: é possível separar sexualidade e produção, é possível descartar esse último papel. Assim, hoje já não exige da mulher confinada ao doméstico que apenas se sujeite ao investimento genital masculino e reproduza. Pede-se a ela que reproduza cada vez menos, que seja sexualmente ativa e prazeirosa. Mas também essa nova solicitação traz para frente da cena a angústia e conflito.

Há um sutil deslocamento do permitido (exigido) e também dos lugares possíveis de histeria. Nos tempos modernos, é permitido gozar, mas não é considerado saudável ter muitos filhos. Rompem-se o lugar da recusa e a histeria se desloca para o parto, para a educação dos filhos. Com isso nos deparamos no dia a dia do nosso trabalho. Há uma demanda contínua para discutir sexualidade. É como se os grupos de mulheres se fizessem a pergunta inversa do discurso psicanalítico. A psicanálise pergunta: afinal o que quer a mulher? Enquanto elas debatem com a questão: finalmente, o que querem de nós? Hoje, é possível admitir que foi importantíssimo manter esta interrogação e avançar sobre as suas respostas. O que a reflexão sobre a nossa sexualidade revela é que ela apenas uma das expressões do desejo. A sexualidade continua sendo fluida e sempre cambiante, evoluindo através da vida adulta em resposta a acontecimentos externos e internos: flexível, anárquica, ambígua, com múltiplos estratos de significação, oferecendo aberturas para experiências inesperadas. O desejo é muito vasto e não diz respeito apenas a fazer sexo, mas também cobre o desejo de ter filhos, o desejo de não ter, o desejo de ter amizades, o desejo de aprimorar, o desejo de ser feliz, o desejo de sonhar e o desejo de morrer. Acreditamos que só a partir desse reconhecimento é possível escapar da armadilha montada pelos modernos dispositivos de controle. Não basta a referência do tradicional, do moderno, do liberado ou do reprimido, pois há normatização nos dois lados da moeda. É preciso se interrogar sobre o nosso desejo nas suas diferentes formas e com ele abrir um caminho no labirinto.

Texto redigido em setembro de 1992

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