PEREIRA, B. T. Celso e a Doutrina Verdadeira: o conflito filosófico entre as concepções pagãs e cristãs no Império Romano do séc. II-III d.C. 112 f. (Monografia).

May 28, 2017 | Autor: Breno Pereira | Categoria: Early Christianity, Martyrdom, Roman Empire, Platonism, Imperio romano, Cristianismo Primitivo
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Universidade Federal de Goiás Faculdade de História Programa de Graduação em História

Breno Teles Pereira

Celso e a Doutrina Verdadeira: o conflito filosófico entre as concepções pagãs e cristãs no Império Romano do séc. II–III d.C.

Goiânia 2016

BRENO TELES PEREIRA

CELSO E A DOUTRINA VERDADEIRA: O CONFLITO FILOSÓFICO ENTRE AS CONCEPÇÕES PAGÃS E CRISTÃS NO IMPÉRIO ROMANO DO SÉC. II–III D.C.

Monografia apresentada ao Programa de Graduação em História da Universidade Federal de Goiás, como requisito para obtenção do título de Bacharel em História. Orientação: Profa. Dra. Ana Teresa Marques Gonçalves.

Goiânia 2016

AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar à UFG, que até o presente momento é uma universidade pública e me permitiu realizar esse trabalho de conclusão de curso que é de suma importância para minha vida acadêmica. Descendo a hierarquia de instituições, agradeço à Faculdade de História por ainda manter uma monografia como trabalho para se tornar um bacharel em história; creio que se para muitos é um sofrimento e uma obrigação, para mim foi um enorme prazer. Agora, sobre os indivíduos, penso que sem a paciência de minha orientadora, Profa. Dra. Ana Teresa Marques Gonçalves, eu não teria achado um objeto que realmente tenho vontade de pesquisar. Passei por várias fontes, como ela bem sabe, mas, essa experimentação só foi possível devido a ela ter me mostrado que eu pude escolher, pois, ninguém é obrigado a levar algo em frente só por se sentir submetido ao compromisso. Certa vez me disse que já não via mais sentido em emprestar seus livros, já que os alunos atualmente conseguem tudo na internet; não sabes, professora, o valor sentimental que há em receber um objeto de conhecimento em mãos, o alívio e determinação que a confiança impulsiona. Creio que você é ainda uma das poucas que entrega seus queridos livros nas mãos de pesquisadores mirins, e isso faz toda a diferença – para quem leva a sério o que se propõe a fazer, claro –; que ainda compreende o que é orientar e, por isso, refletiu para mim um exemplo ao qual serei, até a morte, grato. Reconheço que de enorme peso – pessoal e profissional – é a presença da Nathália Queiroz Mariano Cruz. Creio que se para os cristãos a distinção é a.C. e d.C., para mim seja a.N e d.N. Com ela despertei o gosto pela literatura, pelos origamis, pelas pequenas coisas; finalmente parei de me esforçar para encaixar em algum lugar e me compreendi. É atualmente a pessoa mais querida para mim e, apesar da minha forma instável, tentarei mantê-la assim. Admiro, portanto, que uma pessoa tão justa e correta possa ter me influenciado tanto em dois anos, e, mesmo que inconscientemente, tenha contribuído significativamente para esse trabalho. Como para Sidarta que, depois de tantos anos de tolice, só após conhecer Vasudeva encontrou uma ideia sensata ao finalmente seguir seu coração, decidi por ouvir o clamor do meu ao realizar que ela, que conhece a si mesma, o fazia. Ao meu melhor amigo Guilherme Sorbo Fernandes que, até o início desse ano, só conhecia por meio da internet. Tantos anos se passaram até o acontecimento fatídico que me fez ter certeza que é possível se ter uma amizade verdadeira, mesmo que a distância coloque barreiras. Apesar de ter me afastado e até desaparecido, ele ali permaneceu e não desistiu de mim. Uma amizade que espero levar pela vida toda, com uma pessoa que tenho tanto em comum

e que me é de muita estima. Que Era anormal essa a nossa que nos deparamos com semelhanças com estranhos em um mundo virtual, não? Mais estranho ainda é que nessa rede cibernética, onde cada um pode praticamente construir a personalidade que quiser e nunca ser desmascarado, duas pessoas decidam ser quem realmente são, e resolvam assim prosseguir até a realidade. Àqueles que vão arguir esse trabalho, Profa. Dra. Luciane Munhoz de Omena e Profa. Dra. Dulce Oliveira Amarante dos Santos, duas excelentes professoras e pesquisadoras que contribuíram com a minha formação acadêmica e que tenho a honra de poder convidá-las para ler essa monografia. Agradeço também ao Prof. Dr. Ulisses do Valle por ministrar a disciplina de Monografia e pela recomendação ao primeiro capítulo desse trabalho, que foi de grande ajuda. Aos professores que encontrei durante a graduação e que foram fundamentais para minha formação, os quais não citarei nomes para não gerar uma lista tão longa. Aos livros literários que, sinceramente, formaram basicamente minha capacidade de raciocinar, ligar argumentos e tentar escrever bem. A todos os autores acadêmicos que já estão mortos e aos que ainda vivem, agradeço por me dar o suporte para compor esse trabalho. A Orígenes que, por mais que quisesse refutar a obra de seu oponente e deixa-la esquecida, não contou com o imprevisto de que pudessem retirar de sua própria obra o que Celso redigiu – que ironia! À Mariana Carrijo por ser boa ao nível da ingenuidade; ao Marcelo Miguel por, apesar de demasiado chato, ser disposto a ajudar; a todos os outros orientandos que pude ver a arguição, perceber as nuances entre suas falhas e acertos, para, assim, tentar evitar o máximo possível de erros nessa pesquisa. O acesso às fontes que seriam de quase impossível obtenção física e que foram substanciais para minha pesquisa agradeço ao Internet Archive, uma organização sem fins lucrativos que disponibiliza para todos os pesquisadores do mundo materiais antiquíssimos digitalizados; ao invés de basear um trabalho apenas em historiógrafos que citam passagens dessas fontes, pude ter um contato de primeira mão com os documentos. E isso fez toda a diferença. Finalmente, fato obviamente decisivo para a minha vida e tudo que aqui está escrito, à minha mãe, por ter me criado e me parido.

p.s.: assim como a inscrição em Atenas observada pelo apóstolo Paulo, que dizia “Ao deus desconhecido”, deixo aqui uma inscrição àqueles que não agradeci: “Às pessoas esquecidas!”.

RESUMO Aos fins do séc. XIX, primeiramente a Europa e, em seguida, as Américas, se interessaram novamente pelos padres apostólicos. Esses homens, que têm seu esquecimento iniciado a partir do séc. IV d.C. devido ao Concílio de Nicéia, que foi o primeiro a deliberar ecumenicamente os nortes da cristandade, são retomados na contemporaneidade para mostrar ao Ocidente suas raízes influenciadas pelo cristianismo, provenientes do Império Romano. A religião que conseguiu um maior nível de uniformidade aos fins da Antiguidade e no período do Medievo – sem deixar, entretanto, de ter cismas e desacordos esporádicos –, nem sempre foi assim; os primeiros séculos pré-nicenos são marcados por inúmeras seitas cristãs que futuramente são tachadas como heréticas, dissidentes, deturpadoras da verdade. O cristianismo propagado pelos primeiros apóstolos segue por vários caminhos, cada qual crendo ser a orientação à verdade absoluta; homens iletrados que eram os apóstolos – com exceção de Paulo –, propagando uma nova doutrina, chamam a atenção daqueles que eram alfabetizados e que, consequentemente, são lembrados como os patrísticos que interpretam os evangelhos, lançando as bases da cristologia e do que o cristianismo viria a ser. Nesse contexto inicial, Celso, um provável cidadão romano que se opõe a esses cristãos, tendo também vivido essa efervescência das primeiras ideias cristãs, presentes em sua obra Discurso Verdadeiro Contra os Cristãos, apresenta essas circunstâncias em que um movimento que era divergente de suas origens judaicas, que clamava a ancestralidade de todo o conhecimento greco-romano, que se pronunciava como o detentor da doutrina verdadeira, não fazia nada mais que reivindicar como originais aquelas características que perpassavam várias civilizações. Intentamos perceber nesse trabalho os períodos iniciais desse cristianismo primitivo, abarcando os três primeiros séculos, com enfoque na segunda metade do séc. II d.C. até a primeira do séc. III d.C., quando Celso supostamente compõe seu discurso. A partir do mesmo, observamos que o manuscrito não era um apelo à extirpação desse movimento cristão, mas, uma tentativa de mostrar ao mesmo os prejuízos que ele acarretava à estabilidade do Império Romano, já que os cristãos se negavam a participar dos cultos comuns e das atividades públicas. Nosso destaque, portanto, se faz presente nos meios educacionais desse Império, que pensamos serem um dos sustentáculos da cultura greco-romana. Almejamos, isto posto, compreender o Discurso Verdadeiro Contra os Cristãos como um documento que pretendeu combater as crescentes doutrinas e filosofias cristãs dos dois primeiros séculos, nos quais Celso foi o primeiro autor a redigir um discurso sistematizado contra o que ele julga ser um grupo religioso instável e contraditório. Palavras-chave: Celso, Império Romano, Doutrina Verdadeira, Cristianismo Primitivo.

ABSTRACT At the endings of the 19th century, the apostolic fathers got renewed interest, firstly in Europe and, then, in the Americas. These men that had been forgotten since the 4th century due to the Council of Nicaea, the first to deliberate ecumenically the north of Christendom, are retrieved at contemporaneity to show the West its roots influenced by Christianity, descendant of the Roman Empire. The religion that obtained a higher level of uniformity at the endings of Antiquity and on the Medieval period – without, however, having schisms and sporadic disagreements –, was not always like this; the first ante-nicene centuries feature a countless number of Christian sects that were considered on the hereafter as heretics, dissidents, distorters of truth. The Christianity disseminated by the first apostles follows many ways, each one believing to be the guidance to absolute truth; illiterate men that were the apostles – except Paul –, propagating a new doctrine, drew the attention of those who were literates and that, hence, are the ones remembered as the patristics that interpret the gospels, laying the foundations of Christology and what would become of Christianity. In that initial context, Celsus, probably a citizen of the Roman Empire who opposes these Christians, having lived this effervescence of the first Christian ideas, displayed in his work True Discourse Against the Christians, brings forward those circumstances on which a movement that was divergent from its Jewish origins, that claimed the ancestry of all Greco-Roman knowledge, that pronounced itself as the holder of the true doctrine, was not doing nothing more than reclaiming as original those characteristics that pervaded several civilizations. Our purpose is to perceive in this work these initial periods of this Early Christianity, covering the first three centuries, focusing in the second half of the 2nd century B.C. until the first of the 3rd century B.C., when Celsus supposedly composes his discourse. Based on it, we observed that his manuscript was not a plea for the extirpation of this Christian movement, but an attempt to show them the prejudices that they brought about for the stability of the Roman Empire, since these Christians denied to take part of the common cults and public activities. Our highlight, accordingly, is present on the educational means of this Empire, which we think to be one of the maintainers of the GrecoRoman culture. We crave for, that said, understanding the True Discourse Against the Christians as a document that intended to engage those growing Christian doctrines and philosophies of the first two centuries, in which Celsus was the leading author to bring forth a systemized discourse against what he deemed to be an instable and contradictory religious group. Keywords: Celsus, Roman Empire, True Doctrine, Early Christianity.

“...quando você iça de um lado a cabeça de Locke, vai-se para esse lado; mas então erga a cabeça de Kant do outro lado, e você volta à posição anterior; mas num estado deplorável. Desse modo, certas mentes estão sempre tentando retomar o prumo. Ó, insensatos! Jogai ao mar todas essas cabeças retumbantes e navegareis direto e reto.” HERMAN MELVILLE. Moby Dick.

SUMÁRIO I - INTRODUÇÃO................................................................................................................... 9 CAPÍTULO I – Discurso Verdadeiro Contra os Cristãos (II–III d.C.)................................ 18 1.1. 1.1.1. 1.2. 1.2.1. 1.3. 1.4.

Sobre a interpretação do Discurso Verdadeiro.............................................................. 19 Intentio auctoris, intentio operis e intentio lectoris....................................................... 22 Reconstrução da vida e obra de Celso........................................................................... 27 A Controvérsia Origenista............................................................................................ 31 Divergências acerca da datação: 178 d.C. ou 200 d.C.? ..................................................................................................................................... 36 Divisão da obra na atualidade...................................................................................... 41

CAPÍTULO II – Perseguições e Martírios............................................................................ 45 2.1. O contexto sob perspectiva das perseguições contra os cristãos................................... 46 2.1.1. Os mártires e a crescente polêmica cristã...................................................................... 56 2.2. Sistematização do debate: Celso como o primeiro dos polemistas anticristãos.................................................................................................................... 61 CAPÍTULO III – A apropriação cristã e a ameaça à Doutrina Verdadeira em Celso .................................................................................................................................................. 65 3.1.

A necessidade de um discurso anticristão: dissensões e aproximações acerca de algumas noções fundamentais..................................................................................................... 66 3.1.1. As apropriações cristãs da Doutrina Verdadeira: a fundamentação do debate de Celso na perspectiva filosófica................................................................................................ 87 3.2. O choque doutrinário e as mudanças na educação do Império Romano...................... 89 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... 100 REFERÊNCIAS................................................................................................................... 103 A – Fontes............................................................................................................................... 103 B – Obras de Referência......................................................................................................... 106 C – Obras Gerais.................................................................................................................... 106 ANEXOS.............................................................................................................................. 111 Anexo I................................................................................................................................... 111 Anexo II.................................................................................................................................. 112

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INTRODUÇÃO1 A res publica romana se expande até abarcar uma área e um sistema institucional que, de tão vasto, denominamos como Império. Roma e seus domínios transfiguram-se, dessa forma, em um espaço que absorve, reformula e passa a possuir diversos tipos de manifestações culturais, mesclados aos de suas tradições. Como expressa Henri-Irénée Marrou (1973, p. 448, 449), o papel histórico de Roma não foi criar uma nova civilização; ao contrário, responsabilizou-se por implantar e radicar solidamente no mundo mediterrâneo o que caracterizamos como civilização helenística, pela qual ela mesma fora conquistada. Para o historiador, a criação original não é o único título com que uma civilização se glorifica. Sua grandeza histórica, a importância do seu papel na humanidade mede-se não apenas pelos seus valores intrínsecos, mas inclusive por sua extensão e por sua radicação no tempo e no espaço. Com Jesus Cristo, durante sua vida e após a construção da crença em torno de si e de sua morte, o cristianismo aparece, em um primeiro momento, como a seita judaica que acreditou no messias que a profecia assegurava. Um movimento pequeno, dissidente, encaixa-se como mais uma doutrina em meio às inúmeras que pululavam pela antiguidade. Concentrando-se na Palestina e, logo, disseminando-se devido às empreitadas dos apóstolos e de seus seguidores, o cristianismo ganha espaço no Império Romano; contudo, nada de novo havia em seus mitos de criação ou nos feitos milagrosos de Jesus, seu fundador. Ao tempo em que nascia o cristianismo, como escreve Paul Veyne (2011, p. 20), corriam, havia um bom milênio, no mundo pagão, várias doutrinas e lendas sobre o além ou sobre a imortalidade da alma; os que habitavam aquele Império se impressionavam com as mesmas. O além era, à época, um problema que se vivia constantemente e que, em consequência, provocou conversões; Paraíso ou Inferno, o cristianismo respondeu à questão: "De onde viemos? Para onde vamos?". A morte, fator aterrador que basicamente faz surgir várias das manifestações religiosas do homem, poderia ser colocada como apenas um passo para um post mortem no cristianismo: a eternidade nos espera a todos, ao lado do deus cristão nos céus, ou, com o diabo, no Inferno. Passam-se décadas e aquela seita dissidente que inicialmente chamava a atenção de cidadãos comuns e não-cidadãos, espalha-se também entre filósofos, Imperadores e eruditos.

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Optamos, para melhor compreensão e fluidez da nossa monografia, adicionar notas que 1) exponham certos fatos que não se encaixem no texto em si e, também, 2) notas biográficas sobre autores da antiguidade, as quais os números correspondentes estarão unidos próximos aos nomes próprio dos mesmos. O segundo tipo de nota é meramente explicativo e dispensa teor crítico, relegando ao leitor a preferência de lê-las ou não.

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As fusões acontecem, a partir desse ponto, devido à tentativa de construção de sua filosofia; buscar os elementos necessários para isso nas outras doutrinas não era algo improvável: a cada autor que reflete sobre o cristianismo de forma positiva – ou negativa –, algo ali poderia ser agregado. Combinando princípios platônicos e estoicos, os patrísticos, provenientes de diversas partes do Império, versados em grego e latim e conhecedores das escolas filosóficas, dissertavam e construíam o arcabouço teórico sobre aquele movimento missionário que crescia exponencialmente. Sobre seu deus, é como escreve Jan Assmann (2010, p. 16): perante esse Deus Uno, todas as pessoas são iguais. Longe de erigir barreiras entre as pessoas, esse monoteísmo derruba-as. Continuando sua exposição, o autor ressalta que, religiões a partir desse ponto, com o cristianismo, transformam-se de um sistema que antes era inextricavelmente inscrito nos meios institucional, linguístico e cultural, que são condições de uma sociedade, para um sistema autônomo que emancipa-se de todos esses fatores, transcendendo cada uma das fronteiras políticas e étnicas, e transplantando-se a outras culturas (ASSMANN, 2010, p. 2). Como esses seguidores de Cristo, que em seu início eram tidos como traidores de suas raízes judaicas, conseguem lentamente adquirir seu espaço e, no IV séc. d.C., tornam sua religião como lícita, ganham espaço dentre as manifestações pagãs e, após isso, sobressaem-se ante todas as outras práticas religiosas? Acreditamos que, partícipe dos aspectos que contribuíram para isso, a educação doutrinária é um ponto de suma importância; ponto que deve ser citado é que compreendemos essa educação cristã do primeiro momento como algo que abarcava a fé, no sentido de crer sem grandes questionamentos – claro que, como demonstramos no decorrer do trabalho, os patrísticos possuíam sim, uma fé, porém, não tão livre de reflexões e dúvidas quanto à dos seguidores menos/não letrados –; contidos nessa fé, percebemos a noção da parúsia, o fim da história da humanidade com a segunda vinda de Cristo; o martírio como forma de emular a morte de Cristo, ápice da glória cristã; e a propagação dos evangelhos, que disseminam os ensinamentos de Jesus. Tais particularidades não passaram desapercebidas e, alvo de nossa análise, o Discurso Verdadeiro Contra os Cristãos de Celso abarca esses detalhes de um curioso movimento que procurava por consolidar sua doutrina em um II século que já o notava como superstitio, termo pejorativo que incitava levantes de teor popular que causaram perseguições e textos de repúdio aos mesmos. Optamos, isto posto, por dividir essa monografia em três capítulos expositivos que seguem, primeiramente, uma apresentação da obra; em seguida, a contextualização da mesma, revelando o meio e as manifestações culturais que a mesma foi produzida e, ao fim, a análise do Discurso Verdadeiro de Celso.

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O primeiro capítulo trata de inicialmente entender como a interpretação do Discurso Verdadeiro Contra os Cristãos, uma obra que se perdeu, mas, foi objetada por Orígenes – a pedido de um bispo –, um patrístico do III séc. d.C. que tenta contestá-la utilizando-se do método de transcrever partes da mesma literalmente em seu Contra Celso, construindo em seguida sua crítica, pode ser lida independentemente das inúmeras complicações de um manuscrito que só sobrevive por meio da pena de outro autor; esse tópico recorre, portanto, a uma discussão centrada primordialmente em Umberto Eco (2005) que trata das intenções do autor, do leitor e da obra. Conseguinte, desenvolvemos a opinião de Orígenes sobre quem foi Celso e, em consequência dela, várias outras de autores contemporâneos à nossa época; intentamos obter assim um panorama geral para constatar as confluências e discrepâncias dessas ideias, para que, em seguida, haja a possibilidade de um posicionamento crítico. Em seguida, exploramos a tradição acadêmica que propõe a datação da obra de Celso como 178 d.C., ou próximo disso; demonstramos, por outro lado, outra hipótese, de Jeffrey W. Hargis (1999), que atesta como as assertivas de Orígenes e algumas referências de Celso em seu Discurso Verdadeiro podem ajudar-nos a elencar uma segunda possibilidade: que a obra foi escrita em circa 200 d.C. Além de expormos tal proposta, adicionamos a ela as reflexões de Andrzej Wypustek (1997), que coloca o Governo de Septímio Severo como um momento de grande perseguição à algumas seitas cristãs, embasando-se também nas acusações de proselitismo e feitiçaria. Afinal, comparamos algumas traduções do Discurso Verdadeiro para justificar ao leitor o livre poder de escolha entre as mesmas. No segundo capítulo, analisamos diversas fontes que apontam perseguições aos cristãos; junto às mesmas, proporcionamos um debate com ideias de autores que procuram por perceber tais perseguições em um âmbito diferente da figura maléfica dos romanos que não compreendiam os cristãos. Em seguida, adentramos a especificidade dos martírios, forma de morte procurada e instigada pelos cristãos como maneira de chegar aos céus antes do apocalipse. Findamos o capítulo com como as duas causas anteriores, das perseguições e dos martírios, puderam suscitar discursos de oposição aos cristãos, como o de Celso. Em conclusão da exposição de nossos argumentos, analisamos o Discurso Verdadeiro em nosso terceiro capítulo. Como primeiro intuito, verificamos as principais acusações de Celso contra os cristãos, como a falta de originalidade de noções básicas de sua doutrina em construção; pretendemos, assim, exibir que Celso não se embasava em menções generalizadas de imoralidade, fator utilizado previamente para denegrir o cristianismo. A partir disso, expomos dissensões e aproximações entre as duas concepções. Em uma partição do primeiro

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tópico, exploramos consequentemente os principais pontos de desacordo: o Demiurgo e o logos. Após as exposições sobre algumas noções fundamentais elencadas por Celso contra os cristãos, demostramos o que é a doutrina verdadeira para o autor, em oposição ao clamor dos cristãos de possuírem a verdade. Finalmente, investigamos as questões educacionais baseando-as em uma análise da forma de educação propagada pelo Império Romano, que sofre influências helenísticas, e, em conjunto a isso, adentramos a especificidade do cristianismo e seu crescente papel entre essas doutrinas e filosofias. Após a exposição da divisão dos capítulos, indicamos ao leitor a nossa disponibilidade das duas fontes principais: o Contra Celso e o Discurso Verdadeiro Contra os Cristãos. Das mais antigas às mais recentes, possuímos as seguintes versões do Contra Celso: ORIGEN. Against Celsus. Tradução de James Bellamy. London: B. Mills, 1660 (inclui apenas os dois primeiros volumes); ORIGÉNE. Traité D’Origéne Contre Celse. Tradução de Ellie Bouhéreau. Amsterdam: Henry Desbordes, 1700; ORIGENES. Origenes Werke. Tradução de Paul Koetschau. Leipzig: J. C. Hinrischs’sche, 1899 (essa obra trata de outras de Orígenes e dos primeiros quatro volumes do Contra Celso); ORIGEN. Contra Celsum. Tradução de Henry Chadwick. Cambridge: University Press, 2003 (a tradução de Henry Chadwick para o inglês é a mais utilizada nos dias atuais; foi feita em 1953, primeiramente, e revisada em 1965); ORIGENES. Contra Celso. Tradução de Orlando dos Reis. São Paulo: Paulus, 2004. Focamos nossa leitura, principalmente, nas traduções de Henry Chadwick e Orlando dos Reis: de Chadwick por ser mais atual e dispor de uma melhor organização textual, além do autor embasar sua tradução em outras, buscando atingir uma compreensão mais aproximada possível do original em grego. De Orlando dos Reis por ser proveniente de um tradutor especialista, e, por encontrar-se redigida na nossa língua materna, facilitando assim nossa exposição. Sobre a obra de Celso, temos conhecimento de seis traduções do Discurso Verdadeiro, apesar de acesso a três dessas, que são: CELSE. Logos Alèthès. Tradução de Louis Rougier. Paris: Jean-Jacques Pauvert, 1965 (francês); CELSUS. On the True Doctrine: A Discourse Against the Christians. Tradução de Joseph Hoffmann. Oxford: University Press, 1987 (inglês); CELSO. El Discurso Verdadero Contra los Cristianos. Madrid: Alianza, 2009 (espanhol). As três restantes são: KELSOS. Die Wahre lehre. Tradução de Albert Wifstrand. Lund: C.W.K Greelups, 1942 (sueco); CELSO. Contra os Cristãos. Tradução de José Henrique Botelho Junior. Lisboa: Estampa, 1971 (português); KELSOS. Die Wahre Lehre. Tradução de Horace E. Lona. Freiburg: Herder, 2005 (alemão). Optamos por trabalhar com a versão de Joseph Hoffmann, decisão essa que justificamos em um tópico do primeiro capítulo; a obtenção do exemplar em português tornou-se impossibilitada para a confecção deste trabalho, uma vez que

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a edição está esgotada e sem exemplares seminovos à disposição para compra; o livro, dessa maneira, não esteve ao alcance de ser obtido e estudado no momento de elaboração dessa monografia. Para facilitar a leitura e reduzir pausas necessárias à consulta dos termos, preferimos, para poupar o desenrolar do nosso texto com explicações intrusivas de conceitos e afins, que desviam o foco da argumentação, defini-los com antecedência nessa Introdução; avisamos, entretanto, que dispomos aqui apenas os principais, que mais permeiam o texto e são fundamentais para sua compreensão. Determinamos o conceito de greco-romano como Marrou (1973, p. 375) evidenciou, ou seja, que não há de um lado uma civilização helenística e outra latina, mas, uma Roma que assimilou e providenciou retoques à cultura ali absorvida. Como escreve Horácio (Epístolas, II, 1, 156), poeta e satírico romano, “A Hélade conquistada conquistou por sua vez seu selvagem vencedor e trouxe a civilização ao rude Lácio...”. Não compreendemos um teor de superioridade e inferioridade entre as duas culturas, como Horácio; entretanto, apenas expomos que o âmbito educacional helênico é presente culturalmente e é reapropriado pelos romanos. Como conclui Marrou (1973, p. 376), a original contribuição da sensibilidade, do caráter e das tradições de Roma aparece apenas sob a forma de retoques de detalhe e de tendências que favorecem ou reprimem aspectos da pedagogia grega. Denotamos, dessa maneira, que o âmbito do termo greco-romano utilizado nesse trabalho abarca principalmente as questões educacionais do Império Romano. Partindo aos conceitos que estão relacionados às religiões e religiosidades, iniciamos pelo de monoteísmo. De acordo com Giovanni Filoramo (2005, p. 39–40), o termo vem do grego monos, “único”, e théos, “deus”; é como outros termos com sufixo “-ismo” que possuímos atualmente. É um conceito classificatório e descritivo que designa as tradições religiosas que praticam culto a uma única divindade e defendem a unicidade com exclusão de qualquer outro deus, como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Historicamente, o monoteísmo pressupõe um politeísmo que tenha sido renegado e combatido em nome de uma divindade que consolida-se como superior às outras divindades e, posteriormente, única. Seguidamente, percebemos o conceito de monolatria como aparentemente relacionado ao monoteísmo, porém, presume que, ao invés de solidificar uma divindade apenas como única, é o ato de idolatrar apenas uma divindade em meio a um politeísmo, desse modo, não negando a existência das outras, apenas a devoção. Outro termo que é utilizado vastamente por acadêmicos da atualidade para conceituar a pluralidade de divindades de uma determinada religião é o conceito de politeísmo. Segundo

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Paolo Scarpi (2004, p. 12–15) ele aparece documentado na França do séc. XVI d.C., sendo utilizado no sentido teológico para se opor ao conceito de monoteísmo. Originário do vocábulo grego, mescla polýs, “muitos”, e théos, “deus”. No âmbito histórico-religioso, o termo designa um tipo de religião, classificando e descrevendo um modelo que abarque várias divindades. As divindades do politeísmo aparecem organizadas num sistema unitário, o pantheon, panteão, que é superior ao mundo humano. Parte, geralmente, de um estado de desordem do mundo para uma ordem cósmica, ação dos deuses que progressivamente influenciam o mundo. O politeísmo é, dessa forma, um modo de pensar o mundo de maneira sistemática por intermédio dos deuses. Um conceito utilizado nesse trabalho, que abarca os acima descritos, é o de religio; pela ótica de Adone Agnolin (2013, p. 225), o termo latim religio, em si, expressava inicialmente apenas a ideia e a qualidade de “ser precisos e escrupulosos com relação às práticas de culto”, definindo também os que sabiam realizar a escolha ritual adequada. Após a apropriação cristã de religio, temos um outro termo problemático, pois, pejorativo: paganismo. Pensar o paganismo é, na nossa proposta, apenas aqueles que não eram adeptos do cristianismo, no sentido de não acreditarem em Jesus Cristo. Incluímos, portanto, cidadãos e não-cidadãos do Império Romano que tanto se firmavam no mos maiorum, ou seja, os costumes ancestrais, ou eram adeptos de qualquer outro culto religioso que não o cristão. Em consequência à apropriação do termo religio e da posterior definição da ortodoxia da Igreja, temos o conceito de catolicismo, que aparece pela primeira vez em Inácio de Antioquia, autor cristão do século II d.C., que utiliza-o para definir a ampla igreja instituída por Jesus Cristo. O termo é ressignificado ao longo dos séculos para indicar a fé correta, ou seja, a ortodoxia (FILORAMO, 2005, p. 98). Para explicarmos esses grupos cristãos dos três primeiros séculos que incluem a ortodoxia e a heterodoxia, mesclando-se entre gnósticos, católicos, dentre outros, mas, possuindo um ponto em comum, isto é, a crença em Jesus Cristo, optamos conseguinte pelo termo seita, já que o mesmo remete a ideia de grupos que professam certas noções religiosas divergentes das anteriores, que eram tradicionais ou dominantes. A referência como seitas cristãs, dessa maneira, permeia este trabalho. Findada essa primeira etapa de conceitos religiosos, adentramos os filosóficos. Expomos, primeiramente, o termo platonismo. Baseado no pensamento de Platão (ca. 428 – ca. 348 a.C.), sintetizada principalmente em suas obras República e Timeu – esta última se constitui de um diálogo entre Timeu, Sócrates e Crítias –, o conceito de platonismo pode ser marcado pelos seguintes aspectos: a) a doutrina das ideias, segundo a qual são objetos do conhecimento científico entidades ou valores que tem um status diferente do das coisas naturais, caracterizando-se pela unidade e pela imutabilidade; b) a doutrina da superioridade da sabedoria

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sobre o saber, ou seja, do objetivo político da filosofia, cuja meta final é a realização da justiça nas relações humanas e, dessa maneira, em cada homem; c) a doutrina da dialética como procedimento científico por excelência, como método por meio do qual a investigação conjunta consegue, em primeiro lugar, reconhecer uma única ideia, para depois dividi-la em suas articulações específicas (ABBAGNANO, 2007, p. 765). Caracterizamos, em sequência, um desdobramento do platonismo. Como uma forma diferente de interpretação da filosofia de Platão, denominado médio platonismo, ou, platonismo eclético, surge após a morte de Antíoco de Ascalão (ca. 130 – ca. 68 a.C.), filósofo categorizado como eclético. “Médio”, de forma pejorativa, classifica uma parte de transição entre o platonismo e o neoplatonismo. As características principais são: a) identificação do princípio da transcendência com o Ser; b) o Demiurgo, criador do Cosmos, possui dois intelectos: um paradigmático (que contempla as coisas inteligíveis) e o criador (que produz o Cosmos sensível); c) doutrina dos três princípios do Timeu evidenciadas: o demiurgo, o paradigma, a matéria. De acordo com Harold Tarrant, em relação ao logos, o médio platonismo se define principalmente por intermédio de Plutarco (ca. 46 – 120 d.C.)2 e Fílon de Alexandria (20 a.C. – ca. 50 d.C.)3, que buscam conciliar a filosofia com um sistema religioso maior. O platonismo se concentra, dessa forma, em uma exegese do corpus platônico, sem utilizar-se de comparações; intenta, de outra maneira, interpretar Platão, para dessa forma consolidar uma teoria do logos que, até o momento, possuía muitas outras teorias não-platônicas (TARRANT, 2011, p. 200, 202). Como último dos desenvolvimentos do platonismo, consideramos o neoplatonismo como a escola filosófica fundada em Alexandria por Amônio Sacas (ca. 175 – 240 d.C.)4, a qual possui como representantes de destaque Plotino (ca. 205 – ca. 270 d.C.)5 e Jâmblico de

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Biógrafo e filósofo moral, proveniente da Queronéia. Acreditava nos deuses antigos e na colaboração entre Roma e a Hélade. Foi um escritor prolífico, produzindo cerca de 200 livros, sendo que a maioria dos mesmos são de teor biográfico. Foi platônico e possuiu afinidades com o aristotelismo. Ver: HAZEL, John. Who’s who in the Greek World. London & New York: Routledge, 2002. p. 196–197. 3 Principal representante do judaísmo helenista, influenciou grandiosamente a prática de exegese, teologia e futuros patrísticos como Clemente de Alexandria, Orígenes e Ambrósio. Foi educado de forma profunda em filosofia grega, sendo responsável por um encontro de duas culturas, reconhecível em seus trabalhos; sua obra é sobretudo de teor exegético, em análise de várias partes da Torah. Fílon é rotulado como um dos filósofos ecléticos da Antiguidade Ver: CROUZEL, H. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 576–577. 4 A partir das fontes, Amônio foi em princípio um cristão que renegou sua fé para estudar a filosofia grega. Ensinou em Alexandria por vários anos, tentando conciliar o pensamento de Platão ao de Aristóteles, adequando-se a uma orientação filosófica de estilo eclético. Ver: LILLA, S. Amônio Saccas. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 87–88. 5 Nascido entre 204–205 d.C., com cerca de 28 anos procura por vários mestres de filosofia em Alexandria, encontrando, ao fim, Amônio Sacas. Após a morte de Amônio em 240 d.C., participa de uma expedição do Imperador Gordiano III contra a Pérsia. O Imperador falece e, em consequência disso, Plotino abriga-se em Antioquia e, posteriormente, vai para Roma, lá estabelecendo suas atividades didáticas e inicia dessa forma a

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Cálcis (ca. 245 – ca. 325 d.C.)6. Essa vertente filosófica classifica-se como uma escolástica, ou seja, é centrada na defesa de verdades religiosas que foram reveladas ao homem em tempos passados, podendo serem descobertas no íntimo da consciência. Possui como fundamentos: a) a revelação da verdade, de natureza religiosa, manifesta-se por meio das instituições religiosas existentes e na reflexão do homem sobre si próprio; b) a transcendência divina possui caráter absoluto: Deus está além de tudo, o sumo Bem; c) teoria da emanação, ou seja, que as coisas existentes são provenientes de Deus e perdem seu teor de perfeição à medida que se afastam d’Ele; d) torna-se possível retornar a Deus por intermédio da interiorização do homem, até o êxtase, que é a união com Deus (ABBAGNANO, 2007, p. 710–711). Partícipe desse cenário de escolas filosóficas, definimos também aquela fundada por Zenão de Cítio (ca. 333 – ca. 263 a.C.)7, denominada estoicismo. Os ensinamentos de Zenão resumem-se em: a) divisão da filosofia em três partes: lógica, física e ética; b) concepção da lógica como dialética, ou seja, como ciência de raciocínios hipotéticos cuja premissa expressa um estado de fato, imediatamente percebido; c) conceito de uma Razão divina que rege o mundo e todas as coisas no mundo, segundo uma ordem necessária e perfeita; d) doutrina segundo a qual, assim como o animal é guiado infalivelmente pelo instinto, o homem é guiado infalivelmente pela razão, e a razão lhe fornece normas infalíveis de ação que constituem o direito natural; e) condenação das emoções e exaltação da apatia como ideal do sábio; f) cosmopolitismo, significando que o homem não é cidadão de uma pátria, mas do mundo (ABBAGNANO, 2007, p. 375). Similarmente importante, há a escola epicurista. Suas diretrizes são traçadas por Epicuro de Samos (ca. 341 – ca. 270 a.C.)8, do qual deriva o nome de epicurismo. É marcado pelos

escrita de vários tratados. Falece por volta de 269–270 d.C. É o nome mais conhecido do Neoplatonismo. Ver: LILLA, S. Plotino. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 1172. 6 Proveniente de uma família nobre em Cálcis, estudou junto a Porfírio, um dos grandes filósofos neoplatônicos. Estabeleceu posteriormente uma escola de filosofia na Síria. É recordado por estudiosos por ser um sublime metafísico e, por outro lado, por ter introduzido inúmeras formas de superstição em seus textos. Após sua morte em 325 d.C., Jâmblico relega à posteridade vários textos, sendo que alguns se mantiveram em sua forma completa. Ver: AFONASIN, Eugene; DILLON, John; FINAMORE, John F. (ed). Iamblichus and the Foundations of Late Platonism. Leiden: Brill, 2012. p. 1–3. 7 Foi influenciado pelas vertentes filosóficas cínica e pelos ensinamentos de Sócrates, tendo desenvolvido, apenas em 300 a.C., seu próprio sistema de filosofia. É conhecido apenas por citações de doxógrafos – autores que possuem referências biográficas sobre filósofos antigos –, sendo que nada além de fragmentos sobrevivem de sua obra. Ensinou que apenas a virtude era um bem, apesar de que buscar saúde e prosperidade não eram práticas condenáveis; entretanto, a virtude se faz como propósito maior de vida. Ver: HAZEL, John. Op. Cit., p. 259–260. 8 Em sua infância, Epicuro foi pupilo de um certo filósofo platônico chamado Pânfilo. Após ir a Atenas, por volta de 323 a.C., aprende a teoria de Demócrito sobre o atomismo. Em 300 a.C. compra uma casa em Atenas, financiado por conhecidos e, ali, estabelece sua escola, debatendo a influência dos deuses astrais de Platão, entre outros assuntos. Epicuro intentava mostrar aos interessados em sua filosofia, que é possível viver uma vida de felicidade imperturbável, desde que se entenda a maneira a qual o Universo funciona. Ver: HAZEL, John. Op. Cit., p. 94– 95.

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seguintes atributos: a) sensacionismo, princípio que preconiza as sensações para se chegar à verdade e ao bem; b) atomismo, que explica a transformação e a formação das coisas por meio da união e separação dos átomos, e o nascimento das sensações provenientes da ação dos estratos de átomos das coisas sobre os átomos da alma; c) semiateísmo, que, de acordo com Epicuro, os deuses existem, porém, não interferem em nada na formação e nem no governo do mundo (ABBAGNANO, 2007, p. 337). Alicerçado a todas as definições de escolas filosóficas apresentadas aqui, temos o conceito de ecletismo. Para a Antiguidade, ecletismo é um conceito vastamente utilizado com intuito de denominar, em um primeiro momento, a apropriação de elementos de várias escolas filosóficas, sem necessariamente participar de uma. Fílon de Alexandria, por exemplo, fica no intermédio entre ser categorizado como médio platonista ou simplesmente eclético, pois, trabalha uma interpretação exegética das Escrituras9 utilizando-se de filosofia grega para decodificar os ensinamentos de Moisés. Para Myrto Hatzimichali (2011, p. 17, 24), em seu livro Potamo de Alexandria e a emergência do Ecletismo na Filosofia Helênica Tardia, há uma diferença muito importante entre os autores que utilizam-se do termo na Antiguidade: Potamo (séc. I a.C.), por exemplo, procurava fundar uma escola eclética; por outro lado, Galeno (ca. 129 – ca. 217 d.C.)10 e Horácio (ca. 65 – ca. 8 a.C.) pensavam ecletismo como liberdade de pensamento e escolha, no âmbito filosófico, sem necessariamente se filiar a uma seita filosófica. O autor ressalta, ainda, que o período de Potamo é caracterizado mais por uma retomada de renomados nomes da filosofia do que uma tentativa de formar novas direções filosóficas. Encerramos essa exposição inteirando o leitor que a consulta a todas as traduções do Discurso Verdadeiro Contra os Cristãos que estão em nossa posse foi feita. Informamos ao leitor, além disso, que todas as traduções livres nesse trabalho são de nossa autoria.

Fílon utiliza-se do termo “Escrituras”; nos referimos aqui, portanto, a livros que comportem o Antigo Testamento, ou a Torah. 10 Médico e filósofo nascido em Pérgamo, viajou por um tempo antes de se estabelecer em Roma. Foi ensinado por mestres platônicos. É um dos médicos mais conhecidos da Antiguidade, posteriormente debatido amplamente na Idade Média. Foi médico dos Imperadores Marco Aurélio e Cômodo. Ver: HAMMAN, A. Galeno. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 595. 9

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CAPÍTULO I

Discurso Verdadeiro Contra os Cristãos (II–III d.C.) “...se a Sorte deixar de existir, a vontade perde o significado e a História passa a ser nada mais do que simples ferrugem na enorme corrente de causa e efeito, que só vislumbramos de vez em quando.” MISHIMA, Yukio. Neve de Primavera. Para dissertarmos sobre a obra de Celso, primeiramente devemos conhecer os volumes que, em seu todo, são denominados Contra Celso11 (ca. 248 d.C.), um dos conjuntos de livros de Orígenes. Exploramos, então, as possibilidades de quem pode ter sido Celso; atestamos, de antemão, que oficialmente o autor não possui referências sobre sua vida em nenhum outro escrito posterior ou contemporâneo à época, com exceção de breves comentários de Orígenes; podemos, contudo, demonstrar os possíveis fatores que ainda causam divergências ao se tratar da filosofia de Celso: se o mesmo era epicurista ou platônico, se era egípcio, etc. Torna-se necessário expor a retomada e tentativa de reconstrução do texto no século XIX e XX. Analisamos a vida e obra de Orígenes para a compreensão do texto; entretanto, em questão de pormenores, adentramos principalmente algumas especificidades sobre o Contra Celso e, também, sobre a controvérsia origenista que ocorre nos dois séculos seguintes, que trazem um foco maior para nossa proposta, podendo, dessa forma, elucidar algumas complicações. Devemos entender tais fatores para que, assim, possamos saber os riscos e as alterações que as obras de Orígenes possam ter sofrido. Tudo que nos restou do Discurso Verdadeiro (Aléthés Logos, em grego) de Celso só sobreviveu devido às citações de Orígenes. Nos oito livros que compõem o Contra Celso, Orígenes transcreve literalmente grande parte do Discurso Verdadeiro; sabemos disso, pois, o autor utiliza em sua linguagem de escrita frases como “Vejamos como Celso, que se vangloria de saber tudo, acusa caluniosamente os judeus, quando diz...” (Livro I, 26); ou “Em seguida, depois de tantas injúrias contra nós, querendo mostrar que ele poderia formular outras, mas as silencia, assim se expressa...” (Livro III, 78); e, finalmente, a que melhor corrobora nossa tese, “...para refutar da melhor forma os argumentos plausíveis, citarei, portanto, os argumento de Celso que seguem depois daqueles a que já

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Primeiramente escrita em grego antigo, seu nome original é Pròs tòn epigegramménon tôu Kelsou alethê lógon; a tradução para o latim recebe o nome de Contra Celsum.

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respondi e lançarei minhas refutações.” (Livro V, 1). Acompanhando tais frases, Orígenes coloca os dizeres de Celso e, após, tenta analisa-los e refutá-los. É mister tratar de uma proposta recente (1999) exposta por Jeffrey W. Hargis, em seu livro Against the Christians: The Rise of Early Anti-Christian Polemic, que coloca a possibilidade da obra de Celso ter sido escrita por volta de 200 d.C. O autor elenca hipóteses, baseando-se em bibliografia e partes do Discurso Verdadeiro para comprovar que há outra data além da comumente aceita de 178 d.C. Dessarte, estabelecer um diálogo entre as referências que expõem a datação mais utilizada e a nova proposta de Hargis é necessário para, consequentemente, encontrar um denominador comum e estabelecer nosso recorte temporal. Finalmente, tratar a divisão da obra atualmente representa também um fato que deve ser levado em consideração, pois, as modificações dos tópicos da obra são evidentes, devido às traduções variadas que possuímos.

1.1.

Sobre a interpretação do Discurso Verdadeiro O leitor, ao deparar-se com as diversas introduções das traduções do Discurso

Verdadeiro, possivelmente não deixará de se perguntar: 1) quem é Orígenes e por qual provável motivo esse escritor tentou refutar o manuscrito de Celso? 2) Como posso interpretar um trabalho que, previamente, é apresentado por meio da redação de outro escritor? 3) É possível confiar, mesmo que o autor diga-o, que as citações são literais e fiéis ao texto original? 4) Não possuindo autoria verificada, data precisa, local, ou sequer uma pequena referência descritiva em outras fontes, o que podemos concluir sobre essa obra e seu autor? É imprescindível que o interessado em compreender o Discurso Verdadeiro deva levar em conta as diversas intepretações possíveis que o mesmo acarreta. Saber que nenhuma delas será estritamente precisa – não significando, entretanto, que não seja uma hipótese plausível – tornará possível a nossa contribuição. Iniciemos, portanto, pela pergunta 1. Orígenes (ca. 185 – ca. 253 d.C.), nascido em Alexandria, foi um dos mais proeminentes patrísticos. Proveniente de família cristã, escreveu inúmeras obras, dentre alguns exemplos a Héxapla, uma bíblia em forma de colunas, e o Sobre os princípios, uma tentativa de ordenar a doutrina cristã, ainda influenciada amplamente pelo médio platonismo. Primeiramente um catequizador, percebe que tal método se fazia insuficiente para responder às dificuldades e objeções que convertidos – principalmente intelectuais – levantavam contra a religião. Funda, consequentemente, um Didaskaleion em Alexandria, uma espécie de centro de ensino que

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esboçava o que serviria de modelo para a Universidade na Idade Média. Oferecendo um ensino completo no Didaskaleion, aprofunda na mesma época seus conhecimentos filosóficos. Tornase, com o passar dos anos, a personalidade mais conhecida da Igreja em seu tempo. É dele que recebemos o legado da ciência bíblica (MORAIS in ORÍGENES, 2004, p. 9–17). Após essa breve apresentação eis, em seguida, os motivos dados por Orígenes para escrita do seu Contra Celso, penejado poucos anos antes de sua morte: Mas tu, piedoso Ambrósio, quiseste, não sei por quê, que aos falsos testemunhos de Celso contra os cristãos em seu tratado e às acusações contra a fé das igrejas em seu livro eu opusesse uma defesa (ORÍGENES, Contra Celso, Prefácio, 1).

Orígenes prossegue, logo após, com exposições que justificam o motivo pelo qual Jesus e o cristianismo não precisam desse tipo de defesa que está prestes a escrever; diz, até, que tal defesa pode enfraquecer a própria que os fatos apresentam (Contra Celso, Prefácio, 3), ou seja, o silêncio que Jesus Cristo exibiu perante Pôncio Pilatos ao ser acusado por vários falsos testemunhos (Mateus 27, 11–14), narrado pelos evangelhos apostólicos. Posteriormente, criticando aqueles que, tendo algum progresso em conhecimentos filosóficos, possam reconhecer “...nesta obra um verdadeiro discurso, como Celso a intitulou...” (ORÍGENES, Contra Celso, Prefácio, 4), encerra suas intenções ao dizer que: [...]este livro de modo algum foi escrito para fiéis crentes, mas para os que não têm qualquer experiência da fé em Cristo, como também para os que, nas palavras do Apóstolo12, são fracos na fé; pois diz ele: “Acolhei o fraco na fé com bondade” (ORÍGENES, Contra Celso, Prefácio, 6).

Suas palavras no prefácio são claras e dispensam uma explicação. Por outro lado, possuímos a opinião de Henry Chadwick, em sua tradução do Contra Celso ao inglês. Sendo uma das maiores autoridades em História da Igreja Primitiva, tendo escrito outras obras13 sobre Orígenes, comenta, na Introdução, a possível intenção do autor: com a presença de diversas vertentes filosóficas e doutrinas no Império Romano, demonstrar que os cristãos possuíam uma inteligência respeitável e que partilhavam de uma doutrina congruente; que não eram violentos nem que concordavam com as acusações estapafúrdias direcionadas à eles; que não eram minoria e antipatrióticos. Continuando a exposição, propõe que as disputas permeavam, principalmente, o âmbito filosófico entre o estoicismo e o platonismo, sendo o estoicismo utilizado por Orígenes para embasar teorias cristãs, em destaque a da doutrina da providência divina, que se refere à ação de Deus sobre todos os eventos nas vidas das pessoas, tanto os 12

Trata-se do Apóstolo Paulo. A citação é de Romanos 14, 1. Que são trabalhos específicos sobre, ou, que incluem Orígenes, ver: CHADWICK, Henry. Early Christian Thought and The Classical Tradition: Studies in Justin, Clement, and Origen. Oxford: University Press, 1966; CHADWICK, Henry. The Early Church. Londres: Penguin, 1967. 13

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passados quanto os futuros (CHADWICK in ORIGEN, 2003, p. IX–XIII). Dessa forma, ficaria notório o que um manuscrito como o de Celso, sustentado principalmente em uma filosofia platônica, significava perante uma religião que procurava por espaço de voz e legitimidade; consequentemente, a defesa de Orígenes poderia se fazer plausível para desconstruir uma doutrina oposta. Em relação à datação do Contra Celso, há a discussão entre vários acadêmicos, como aponta Chadwick (2003, p. XIV–XV), por volta das datas de 246 d.C. a 248 d.C. O consenso entre os estudiosos14 apresentados pelo autor é de que, no ano de 248 d.C., Roma comemorava seu milionésimo aniversário, algo que relembrava aos cidadãos a grandiosidade da capital e sua prosperidade, fruto da boa vontade dos deuses. Inúmeras celebrações tomaram conta do Império, seguidas de sacrifícios aos deuses. De acordo com Orígenes, constata-se que nesse período [...] é provável que acabe a segurança em prol da vida de que gozam os cristãos, quando novamente os que caluniam de todos os meios nossa doutrina pensarem que a revolta, levada ao ponto em que se encontra, tem sua causa no grande número dos crentes e no fato de que eles não são perseguidos pelos governadores como outrora. (ORÍGENES, Contra Celso, III, 15)

Tal atestação pressupõe que os cristãos passavam por um período de calmaria; todavia, estavam prestes a presenciar algum tipo de perseguição. Se considerarmos a datação da escrita como correta, o autor estava preciso e, em menos de uma década, a perseguição oficial do Imperador Décio (201 – 251 d.C.)15 contra os cristãos se iniciaria, acarretando, coincidentemente, com a prisão e tortura de Orígenes, que morre anos depois devido aos seus ferimentos. À vista disso, uma das hipóteses é que o manuscrito serve de alicerce em tempos que se tornariam conturbados, perturbação essa que poderia abalar a fé desse “grande número dos crentes”, além de também auxiliar a propagação da doutrina cristã; um notável estudioso como Orígenes se prostraria como adequado a responder a Celso, que abandonou as acusações generalizantes de nível popular – acusações essas que não eram específicas, valendo-se dos topoi de que cristãos praticavam cultos sangrentos, canibalismo, ateísmo, etc. – para atacar no

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Karl Johannes Neumann e Adolf von Harnack. Ver: NEUMANN, K. J. Der Römische Staat und Die Allgemeine Kirche bis auf Diocletian. Leipzig: Von Veit & Comp., 1890. p. 273; HARNACK, Adolf von. Geschichte der Altchristlichen Litteratur bis Eusebius. Leipzig: J. C. Heinrichs’sche, 1904. Livro II, p. 34. 15 Trajano Décio foi confirmado Imperador aos fins de 249 d.C. Encarou diversos problemas durante seu período de Império, iniciando tentativas de reunificar o Império Romano. Uma das formas de fazê-lo foi reafirmar a religião romana, revigorando as práticas cultuais e rituais e, também, restaurando os templos. Devido a isso, marginalizou e proibiu cultos que pareciam ser perigosos à unidade do Império, incluindo, dessa forma, o cristianismo; focou, portanto, as autoridades da Igreja. Faleceu em 251 d.C., em uma batalha contra os godos. Ver: SOUTHERN, Pat. The Roman Empire from Severus to Constantine. London & New York: Routledge, 2001. p. 74–75.

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cerne da doutrina, certamente provocando grande dano à religião cristã. Percebemos que cristãos que anteriormente escreviam apologias, após consolidarem grande número de adeptos e de cativarem outras camadas da sociedade, começam a construir respostas com teor de “Contra”; nos séculos que se seguem, nota-se que, por exemplo, as duas obras além da de Celso que são escritas contra os cristãos, de Porfírio16 no III séc. d.C. e do Imperador Juliano17 no IV séc. d.C.18, são respondidas por vários patrísticos e eclesiásticos da Igreja, como Eusébio Pânfilo19 e Cirilo de Alexandria20. Uma Igreja que, em seu início, sofreu ataques de diversos teores, se expande e se consolida para, posteriormente, conquistar espaço intelectual e consolidar sua doutrina.

1.1.1. Intentio auctoris, intentio operis e intentio lectoris Faz-se necessário um subtópico para responder as outras perguntas levantadas, pois, as mesmas destoam da primeira. Adentrando a segunda e a terceira questão conjuntamente, devemos tratar de analisar uma obra que, dado sua condição, pressupõe-se maculada por um outro leitor e comentador: Orígenes.

Porfírio (ca. 232 – ca. 305 d.C.) foi um dos maiores representantes do neoplatonismo. Profundo conhecedor do cristianismo e judaísmo, profere o que é julgado o mais forte ataque contra o cristianismo na antiguidade: quinze livros que suscitaram respostas (ver nota 9) de eclesiásticos reconhecidos, é destruída por ordem dos Imperadores Teodósio II (401 – 450 d.C.) e Valentiniano III (419 – 455 d.C.). Ver: BEATRICE, P. F. Porfírio. In: DI BERARDINO, Angelo (org). Op. Cit., p. 1179–1180. 17 Mais conhecido como Juliano o Apóstata (331 – 363 d.C.), foi primeiramente educado lendo sobre o cristianismo e o judaísmo, pelo bispo Eusébio de Nicomédia (? – ca. 342/343 d.C.). Posteriormente, enviado em prisão domiciliar para Atenas pelo Imperador Constâncio II (317 – 361 d.C.), recebe grandes influências de filósofos clássicos, tendendo, assim, a um retorno ao paganismo. Justifica-se, portanto, seu nome de “Apóstata” por ter abandonado o cristianismo tendendo ao paganismo. Tenta restaurar a religião helênica, passando de uma fase de tolerância para uma de perseguição contra os cristãos. Falece adentrando território inimigo, em 363 d.C. Ver: SANFILIPPO, M. L. Angrisani. Juliano o Apóstata. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 791–792. 18 De Porfírio há o Contra os Cristãos, que recebe respostas de Macário Magnes e Eusébio Pânfilo; infelizmente, essa obra, como a de Celso, sobrevive em partes apenas nos escritos dos autores citados. De Juliano, Contra os Galileus, há a resposta de Cirilo, bispo de Alexandria, que também traz a obra de Juliano em fragmentos. 19 Nascido na Palestina, Eusébio Pânfilo (ca. 265 – ca. 339 d.C.) foi defensor das teses de Ario (arianismo), sendo posteriormente excomungado pelo sínodo de Antioquia (325 d.C.) por haver recusado a aderir às fórmulas contra o arianismo. Entretanto, ainda no mesmo ano, é readmitido pelo Concílio de Nicéia, prostrando-se contra Ario, colocando-se ao lado do Imperador Constantino. É autor de uma das obras mais importantes para a História da Igreja, a História Eclesiástica, composta por 10 livros, que abarcam os acontecimentos desde a constituição da Igreja até a vitória de Constantino sobre Licínio, em 324 d.C. Ver: CURTI, C. Eusébio de Cesaréia. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 536–540. 20 Cirilo de Alexandria (ca. 370 – 444 d.C.) foi um proeminente eclesiástico. Dedica parte de sua vida a combater o arianismo, escrevendo obras intituladas Tesouro sobre a santa e consubstancial Trindade e A santa e consubstancial Trindade. Posteriormente, refuta de forma pormenorizada o Contra os galileus de Juliano, demonstrando assim a vitalidade que o paganismo ainda possuía na época. Ver: SIMONETTI, M. Cirilo de Alexandria. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 296–297. 16

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É certo que o caso não é costumeiro. Não possuímos a fonte propriamente dita, nada pode provar que a mesma não se passa de uma farsa inventada por Orígenes para legitimar-se e, ademais, não sabemos da intenção de Orígenes ao afirmar que está citando-a literalmente – se é que realmente o faz. Com tais incertezas em mãos, é necessário recorrer a uma discussão sobre interpretação e intenção. Umberto Eco, em conferências e seminários que deram origem ao livro Interpretação e Superinterpretação (2005), traz à tona discussões pertinentes ao se trabalhar com um texto: como identificar a intenção do autor ao escrever um texto? Após escrito, qual a intenção que o texto por si só reflete? Qual o valor de interpretação que o leitor confere à obra lida? Uma obra literária receberá diversas intepretações, independentemente de sua clareza e informações que permeiem-na. No caso do Discurso Verdadeiro, temos trabalhos21 que exploram como a obra é uma resposta ao incomodo causado pelos cristãos em relação à tradição romana; que exploram mais o contexto das perseguições incluindo Celso em uma categoria de conservadores romanos, que utilizou-se de retórica e que deturpou a própria perspectiva22 – que alegam ser epicurista – para atacar o cristianismo. Várias interpretações são válidas, porém, como atesta Eco (2005, p. 28), colocar a interpretação como ilimitada não significa que ela não possua objeto e que se mantenha por conta própria. Levantar a ideia de que um texto potencialmente não tem fim não significa que todas as interpretações que o mesmo acarrete terão um fim correto. Se fosse ilimitado, nos prenderíamos em um ciclo de interpretações indefinidas que procuram sempre um segredo em um texto, acarretando, por conseguinte, definições por associação que tenderiam ao infinito, encontrando mistérios dentro de mistérios. O que podemos fazer, assim sendo, para facilitar a interpretação dessa obra tão carente de indicações que nos ajudem? Primeiramente, devemos explorar o autor dessa obra, que não se trata de um autor empírico – pelo fato de o mesmo já não viver e não poder expressar opiniões próprias sobre sua obra –; resta-nos, isto posto, recorrer à intentio auctoris que seja viável. Intentio auctoris (intenção do autor) é aquilo que o autor pensou ou intentou ao escrever a sua obra. Como no Contra Celso, que expõe em seu prefácio a provável intentio auctoris, o Discurso Verdadeiro possui-a aos fins de sua introdução. Na passagem, lemos que: Suas expressões favoritas são “Não faça perguntas, apenas acredite!” e: “Sua fé te salvará!” “A sabedoria desse mundo”, dizem eles, “é mal; ser simples é ser bom.” Se apenas eles aceitassem responder minha pergunta – a qual eu não questiono como aquele que está tentando entender suas crenças (tendo tão pouco para se entender!). Mas eles se recusam a responder, e de fato desencorajam fazer perguntas de qualquer tipo. Por essa razão eu me 21 22

Que são expostos e debatidos nos próximos tópicos. Discutimos tal assunto nos tópicos seguinte deste capítulo.

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comprometi a compor um tratado para a sua edificação, de modo que eles possam ver por si mesmos o verdadeiro caráter das doutrinas que eles escolheram adotar e as verdadeiras fontes de suas opiniões (CELSO, Discurso Verdadeiro, I, 55-66).

Isso conclui, consequentemente, que todas as interpretações produzidas por leitores possivelmente resultarão dessa intentio auctoris original de Celso; entretanto, não possuindo autor empírico, podemos analisar a intentio operis (intenção da obra) no contexto em que foi escrita, ou seja, a expansão do cristianismo e suas influências no Império Romano. Analisar a obra por si só, no nosso caso, tanto nos dará uma intentio operis possível, quanto nos ajudará a traçar características do pensamento de Celso ao escrevê-la. A princípio, expondo o intuito de Orígenes para elaborar seu Contra Celso, o leitor, se perguntando sobre as citações literais do trabalho de Celso, fica em posição de dúvida sobre a admissibilidade da afirmativa de Orígenes. De fato, é impossível, até o presente, confirmar tal atestação. Não há – de acordo com levantamento de fontes e bibliografias por estudiosos, ou de nossa parte ao fazer o mesmo – quaisquer outras fontes, sejam contemporâneos a Celso ou posteriores, que citem sequer uma passagem do mesmo. Encontramos uma única exceção, em Sobre Homens Ilustres, obra de Jerônimo (ca. 347 – ca. 420 d.C.)23 que descreve pequenas biografias sobre homens que ele considerou como ilustres – referência essa não citada ou indicada por nenhum outro estudioso ou pesquisador que analisamos –, que diz: Deixem Celso, Porfírio e Juliano aprenderem, fanáticos como são contra Cristo, deixem que seus seguidores, eles que pensam que a Igreja não possuiu filósofos ou oradores ou homens intelectuais, conhecer quantos e quais tipos de homens fundaram, construíram e adornaram-na, e cessem de acusar nossa fé de tal simplicidade rústica, reconhecendo antes a sua própria ignorância (JERÔNIMO, Sobre Homens Ilustres, Introdução).

Infelizmente, dos textos que nos chegaram ou que foram encontrados até a atualidade, esta é a única referência atestável de Celso; sabemos que se trata do mesmo Celso devido ao fato de ele estar incluso junto de Porfírio e Juliano, outros nomes de destaque nas obras escritas contra o cristianismo. A referência sequer está entre os 135 homens ilustres que Jerônimo descreve, estando contida, ao contrário, na pequena introdução que precede o trabalho, revelando a intenção de Jerônimo exposta na citação acima. Dessa forma, sem termos poder de comparação, resta-nos ou abandonar o estudo dessa fonte, pois, a mesma possui informações sobre si muito instáveis, ou prosseguir. Enquanto o Discurso Verdadeiro original não for encontrado – ou alguma referência mais detalhada sobre 23

Nos referimos aqui à figura mais conhecida como São Jerônimo, proveniente de Estridão, tradutor da Bíblia para o latim (Vulgata). Jerônimo possui grande importância para a compreensão da controvérsia origenista; partilhou sua vida com figuras reconhecidas do catolicismo, como Agostinho de Hipona (ca. 354–430 d.C.) e Atanásio de Alexandria (ca. 296–373 d.C.). Ver: REBENICH, Stefan. Jerome. London: Routledge, 2002.

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o mesmo –, permanece a proposta de se confiar nas assertivas de Orígenes; de fato, se pensarmos sobre o assunto, este último não possuiria um grande motivo para criar um documento que pudesse refutar; uma religião que precisava se legitimar necessitaria, visando obter maior prestígio no campo doutrinário, contrapor um documento real, do início ao fim, demonstrando assim a superioridade pretendida por meio de uma resposta sistematizada. O esquema de citações literais da obra de Celso conviria, portanto, a convencer o pagão e o que possui uma fé abalável, por meio da exposição ordenada do mesmo. Acerca da quarta – e última – pergunta, deve-se atestar que os esclarecimentos que serão apresentados no próximo tópico deste capítulo, apesar de objetivarem uma aproximação de quem foi Celso, cedem espaço de importância quanto ao texto em si. Conforme Umberto Eco (2005, p. 77), devemos respeitar o texto, não o autor enquanto pessoa. Contudo, parece rude eliminar o autor como um alguém irrelevante para a interpretação de um texto. É devido a isso que a exposição sobre Celso se torna necessária; exposição essa que, em certa medida, deverá apelar à uma superinterpretação. Segundo Jonathan Culler (2005, p. 131, 135), a superinterpretação é uma interpretação extrema; resultante do seu teor de risco, muitas delas podem ter tão parco impacto quanto uma interpretação moderada, por serem pouco convincentes, redundantes, aborrecidas ou irrelevantes. Porém, sendo extremas, terão maior possibilidade de esclarecer implicações ou ligações que não foram ainda notadas, sobre as quais a reflexão pareceu demasiado arriscada. Por conseguinte, tais suposições, apesar de saírem do campo “seguro” de uma interpretação, podem gerar resultados interessantes. O autor conclui, assim, que a prática de se fazer as perguntas que aparentam não ser necessárias à “comunicação normal” podem trazer à tona outras formas sobre o funcionamento de um texto. Após a futura exposição da persona de Celso no momento da escrita, os prováveis motivos da obra começarão a aparecer, reflexo de nossa própria análise do texto, que criará um possível personagem que reflete de volta na obra escrita, tornando a interpretação mais razoável e plausível – uma atitude, em palavras mais simples, de ler a obra, rastrear as ferramentas que Celso utiliza para compor seu discurso, e, em seguida, reler a obra. Porém, essa diretriz não significa levantar dados biográficos que permitam um entendimento mais favorável do Discurso Verdadeiro; saber quem foi Celso durante sua vida toda, para a análise de seu texto, é irrelevante para nossa proposta; contudo, a intentio auctoris que o texto transparece, que será aquela que marca o momento da escrita, nos interessa. Intenta, portanto, de outra forma, perceber o pensamento do escritor que é evidenciado, principalmente sua filosofia e doutrina que aparecem no período em que o texto foi confeccionado – e, nesse caso, tanto as de Celso

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quanto as do contexto –, cruciais para a compreensão das prováveis fontes e métodos aos quais Celso acessou para compor seu discurso. Mas, outra dúvida emerge: por que de se analisar a doutrina – que é um reflexo da filosofia do autor –, dentre tantas outras opções? Em relação às escolas filosóficas em vigência no Império Romano – ex: platônica, estoica, epicurista, etc. –, cada uma elencava princípios diferentes relacionados ao método de se perceber a vida, os deuses, o Cosmos, e, também, a ética. O porquê, por consequência, como diz Michel Foucault (2014, p. 41), é que a doutrina liga seus indivíduos a certos tipos de enunciado e proíbe-os, por conseguinte, dos outros. A doutrina efetiva uma dupla sujeição: daqueles sujeitos que falam aos discursos e dos discursos a um grupo dos indivíduos que falam. Cria-se, portanto, um meio de se aproximar, por intermédio do discurso, os falantes do mesmo modelo de enunciado; criando um sentimento de pertença, seja de classe, de raça, de interesses, dentre outros fatores, faz com que, consequentemente, a distinção perante outros grupos surja. Isto posto, a intentio operis poderá ser visualizada com perspectivas que permitirão ao leitor comum se tornar um outro tipo de leitor. Intentio essa que, de acordo com o conceito de Umberto Eco (1994, p. 59), nos demonstrará um “Leitor Modelo”, que possui uma intentio lectoris – intenção do leitor – provavelmente mais aproximada do que a de outros leitores, pelo mesmo ser o “alvo perfeito” desse tipo de discurso escrito por Celso e por estar restrito a produzir certas interpretações plausíveis dentro da estrutura do texto. Já que a intenção da obra é basicamente a de produzir um Leitor Modelo que possa conjecturar sobre o texto, tal Leitor Modelo se encarregará de produzir um “Autor Modelo” – autor ideal que o texto reflete –, que não é um autor empírico e que, no fim, coincide com a intentio operis. O Discurso Verdadeiro, produzido no Império Romano, certamente pretendeu atingir um tipo de Leitor Modelo que não é o de um acadêmico do séc. XXI; entretanto, nosso distanciamento torna possível figurar o que a intentio operis, no momento em que foi confeccionada, pode elucidar sobre seu autor e seu público alvo. Além de nos tornarmos um provável Leitor Modelo diferenciado – devido a não estarmos no contexto e termos uma intenção deliberada de fazer uma análise crítica –, podemos suscitar hipóteses sobre os Leitores Modelo da época e seu autor. O autor descreve que concluirmos sobre o que uma fonte fala é uma aposta interpretativa. Todavia, se encaixarmos essa fonte em um contexto específico, podemos tornar essa aposta como mais aproximada do que alguma incerteza total (ECO, 2005, p.74). Dentro de todas as argumentações levantadas, não devemos nos esquecer que, de acordo com o pragmatista Richard Rorty (2005, p. 115), a coerência de um texto não está ali antes de ele ser escrito. Tal coerência não é nada mais do que o fato de alguém ter encontrado o texto

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em questão, ter analisado um conjunto de sinais, o modo de escrita desses sinais e algumas outras coisas as quais esse alguém está interessado em falar. O texto, portanto, só possui coerência e só nos diz o que procuramos quando usado. Assim sendo, entre as três intentio que discutimos e mencionamos, o uso do texto nos leva a afirmar, de acordo com Umberto Eco (2005, p. 93, 96), que refletindo sobre as intenções inacessíveis do autor e as intenções discutíveis dos leitores, possuímos aquela intenção transparente do texto, pois, o texto está ali, dado, o que invalida uma interpretação insustentável. Independente de todas as hipóteses e conjecturas que analisamos, o texto trará – com o devido cuidado, dependendo de uma metodologia específica, com as perguntas admissíveis e obedecendo a seu contexto de escrita – possíveis respostas, dentre várias justificáveis – já que, claro, é bastante improvável se alcançar a universalidade de um sentido –, que espelhem a perspectiva de um Celso que, em um momento de sua vida, por determinado motivo em um certo local e ano, escreveu um discurso contra os cristãos.

1.2.

Reconstrução da vida e obra de Celso Comecemos nossa exposição a partir dos dizeres de Orígenes em Contra Celso, para

traçarmos o possível da biografia de Celso: Por isso devo lamentar que alguém possa acreditar em Cristo com uma fé capaz de ser abalada por Celso, que sequer vive a vida comum entre os homens, mas morreu há muito tempo [...] (ORÍGENES, Contra Celso, Prefácio, 4, grifo nosso).

Um fato a ser lembrado é que a obra foi solicitada a Orígenes por Ambrósio24, patrístico contemporâneo do mesmo, que se interessava por sua perspectiva e por seus escritos já de grande proporção25 na época. Provavelmente, o conhecimento de quem foi Celso foi repassado brevemente por Ambrósio, deixando assim Orígenes à mercê de obras de contextos passados para reconstruir parte da vida de Celso. A primeira ideia exposta acima é a morte que ocorreu há tempos; tal frase é uma das hipóteses que levará estudiosos de Orígenes e Celso a

Ambrósio de Alexandria (ca. 212 – ca. 250 d.C.) foi conhecido de Orígenes, primeiramente membro da seita valentiniana, posteriormente reconduzido à ortodoxia por meio de Orígenes. É devido a pedidos dele que Orígenes compôs o Contra Celso. Orígenes dedica a ele a Exortação ao Martírio, pois, Ambrósio foi perseguido sob Império de Maximino o Trácio (235 d.C.). Segundo Jerônimo, Ambrósio morre antes de Orígenes, porém, sua data de nascimento é especulada. Ver: CROUZEL, Henri. Ambrósio. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 83. 25 Eusébio Pânfilo elenca 2 mil livros de Orígenes, baseando-se em Jerônimo. Já o próprio Jerônimo coloca apenas 800 livros. Não podemos nos esquecer, claro, que livros para eles não significa o mesmo que para nós. Atualmente, o termo se pareceria mais com capítulos. Ver: ORÍGENES. Contra Celso. Tradução de Orlando dos Reis. São Paulo: Paulus, 2004. p. 17. 24

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especularem sobre a data de sua obra. Aprofundando sua pesquisa, Orígenes levanta alguns pensamentos; é o que notamos, em sequência, na seguinte explanação: Reconhecemos aqui o epicureu de seus outros escritos; aqui, como sua acusação contra o cristianismo há de parecer mais plausível não professando as teses de Epicuro [...] Sabia bem que, declarando–se epicureu, não teria crédito nenhum em sua acusação contra aqueles que de algum modo admitem uma providência e imaginam um deus acima do universo. Mas ouvi dizer que existiram dois Celsos epicureus, um no Império de Nero, e este, no Império de Adriano e mais tarde. (ORÍGENES, Contra Celso, I, 8, grifo nosso)

A primeira hipótese apresentada aqui por Orígenes demonstra que sua leitura progressiva do Discurso Verdadeiro lhe dá uma noção de quem seria Celso. Tendo definido previamente que o autor seria epicureu, procura referência a “Celsos epicuristas” em épocas anteriores. Encontrando as duas possibilidades, dá continuidade às suas refutações. Como vemos, sua ideia será colocada em dúvida posteriormente no livro: Vamos então discutir um pouco estes pontos, e provar que ele dissimula sua opinião epicuréia, ou talvez se diga que ele a abandonou por melhores doutrinas, ou mesmo, se poderia dizer, que ele é homônimo de Celso epicureu. (ORÍGENES, Contra Celso, IV, 54, grifo nosso)

É interessante perceber que com “melhores doutrinas” o autor possivelmente se refere à platônica; corroboramos essa alegação também com descrição de Orígenes no mesmo tópico, que escreve: “Na passagem de Celso que citei, que é uma paráfrase do Timeu26, encontramos certas expressões...” (ORÍGENES, IV, 54). Deduz-se mediante Orígenes, portanto, que: Celso está morto há muito tempo; é epicurista; possivelmente do Império de Adriano e adiante; provavelmente platônico. Assim, define-se superficialmente por intermédio de Orígenes e de nossa análise do Contra Celso as possibilidades de quem poderia ser Celso. Iniciemos as outras propostas, começando pelo século XIX. Charles Bruhl (1844), em uma tese brevíssima, provavelmente o primeiro trabalho específico sobre Celso, se baseia apenas na polêmica anticristã e tenta reconstruir o conhecimento sobre cristianismo do polemista.27 O livro de Bruhl, como descrito pelo título de um dos capítulos, tratará primariamente de um resumo da polêmica de Celso (1844, p. 4). Após isso, adentra o conhecimento de Celso sobre o cristianismo, demonstrando algumas possíveis referências indiretas do autor sobre o Novo Testamento (1844, p. 17). Posteriormente, analisa o provável motivo de Celso a escrever seu Discurso Verdadeiro e suas características (1844, p. 20, 24) – Bruhl julga que Celso escreveu-o para defender a religião de seus compatriotas – e, 26

Obra de Platão (séc. IV a.C.), a qual delineamos um diálogo apropriado no terceiro capítulo. São 36 páginas no total; a abordagem a Celso ainda era totalmente baseada na leitura direta da obra de Orígenes. Ver: BRUHL, Charles. La Polémique de Celse Contre le Christianisme. Strasbourg: Frédéric-Charles Heitz, 1844. 27

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ao fim, conclui seu trabalho dizendo que, por mais que a polêmica possa ser apreciada, não é possível compará-la à grandeza invencível do cristianismo na resposta de Orígenes (1844, p. 28). O autor, portanto, foca primariamente na obra em si, e não delonga nas possibilidades de quem foi Celso. Cerca de 30 anos depois, Elisée Pelagaud (1878) escreve o trabalho subsequente ao de Bruhl – com referências no texto à ele; Pelagaud (1878, p. XVII–XVIII) não ousa especular sobre as origens do autor, pois, sabe que são escassas de referência – e, devemos levar em consideração a falta de bibliografia sobre o tema em sua época. Aparentemente, como citado no livro, a reconstrução do Discurso Verdadeiro já estava em andamento, sendo feitas as primeiras28 tentativas pelo teólogo Karl Theodor Keim (1873) e, posteriormente, por Paul Koetschau (1899). Tal empreitada influenciou futuras traduções e análises sobre Celso no século XX e XXI. Theodor Keim, em seu livro A Verdadeira Palavra de Celso29, é o fator principal de influência da maioria das diretrizes acadêmicas sobre o Discurso Verdadeiro no séc. XX; o autor defende veementemente que as afirmativas de Orígenes estavam corretas e que Celso deveria ser identificado com o amigo epicurista de Galeno e Luciano de Samósata (ca. 125 – ca. 185 d.C.)30, e que, de acordo com Luciano (Alexandre, o Falso Profeta, 1) “estudou o assunto de magia e mágicos suficientemente, apresentando amplo material que colocaria juízo em quem quer que o lesse”31. Apesar do texto não refletir tal afirmativa de Keim, o qual coloca Celso como um platônico eclético, que não era ao mesmo tempo um “epicurista completo” (CHADWICK in ORIGEN, 2003, p. XXV), Keim (1873, p. 278) afirma que é quase cego o estudioso que não percebe o amigo de Luciano no Celso do Discurso Verdadeiro. Adentrando o século XX, há a retomada da recomposição do texto por Otto Glöckner (1924) e Robert Bader (1940), em grego. Os tradutores possuem preferência por, em paralelo 28

Na realidade, antes de Keim possuíamos um trabalho mais amplo, de 1830, que possui excertos dos três anticristãos que mais tiveram repercussão: Celso, Porfírio e o Imperador Juliano. Não julgamos como a primeira tentativa, pois, não se trata de um trabalho sistemático de reconstrução de toda a obra de Celso, e sim de pequenas partes dela. Ver: CELSUS; POPHYRY; JULIAN. Arguments of Celsus, Porphyry, and the Emperor Julian, Against the Christians; also extracts from Diodorus Siculus, Josephus, and Tacitus, relating to the Jews. Tradução de Nathaniel Lardner. Oxford: Thomas Rodd, 1830. 29 Título em alemão Celsus’ Wahres Wort. 30 Escritor e filósofo grego, nascido em Samósata, cidade da Síria setentrional. Transforma-se em um dos melhores retóricos, conferencistas e romancistas da Antiguidade. Possui cerca de oitenta obras atribuídas ao seu nome, dentre elas O asno e Morte de Peregrino. Viajou pela Ásia Menor, Roma, Antioquia, Atenas e, finalmente, para o Egito, onde faleceu. Ver: SINISCALCO, P. Luciano de Samósata. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 861. 31 Duas fontes indicam esse Celso: Galeno (ca. 129 – ca. 215 d.C.) e Luciano. Galeno menciona ter enviado uma carta a um “Celso o Epicureu” e Luciano inicia seu livro “Alexandre, o Falso Profeta” dizendo que dedica-o a um “Celso”. Encontra-se a referência direta no trabalho de Luciano, em: LUCIAN. In Eight Volumes: Lucian vol. IV. Tradução de A. M. Harmon. Harvard: Loeb, 1925.

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com as tentativas de reconstrução, utilizar das diversas traduções do Contra Celso, justificando que se tornou amplamente aceita a ideia das omissões e abreviações de Orígenes em relação ao Discurso Verdadeiro. Na introdução dessas traduções do Discurso Verdadeiro e do Contra Celso, os autores se dedicam a exibir suas teorias sobre quem foi Celso. Henry Chadwick (in ORIGEN, 2003, p. XXIV–XXVI) refuta as especulações sobre epicurismo de Keim e coloca sua opinião – baseando-se no respeito aparente de Celso por Platão, por meio de partes da fonte – de que ele seria somente um platônico eclético; utiliza, em seguida, das referências de Keim a “duas dúzias de Celsos” nos três primeiros séculos para demonstrar, dessa maneira, que uma aproximação da real identidade de Celso se torna impossível. Posteriormente, conclui que Celso possui afinidades claras com o médio platonismo e que é inconcebível que seja um epicurista, afirmando que não podemos saber, na verdade, nada sobre o oponente de Orígenes se não o que o texto nos remete. Joseph Hoffmann (in CELSUS, 1987, p. 30–31), em um tópico denominado “A Identidade de Celso”, faz comparativos com um dos “Celsos” citados por Orígenes; em específico, o Celso do tempo do Imperador Adriano, que seria o mesmo escritor de vários tratados contra a magia. Em relação ao epicurismo, Hoffmann (in CELSUS, 1987, p. 31) cita outro autor, Robert Wilken, que exprime que “tachar Celso como epicurista é fazer a tarefa de criticá-lo como mais fácil”. Entretanto, apesar da referência, tende a concordar em sua conclusão que a possibilidade de Celso ter sido o conhecido de Luciano não perde forças, podendo ele ter mudado seu viés filosófico para médio platonismo quando próximo de compor seu Discurso Verdadeiro (HOFFMANN in CELSUS, 1987, p. 32–33). Serafín Bodelón (in CELSO, 2009, p. 18, 28–29), na tradução mais recente, descreve que o Celso do Discurso Verdadeiro é o mesmo para o qual Luciano direciona seu trabalho; Bodelón articula que, para exercícios de retórica e combates ideológicos, o autor poderia recorrer a quaisquer ferramentas ao alcance: assim, Celso escolheria o médio-platonismo, pois, o mesmo era o viés filosófico mais utilizado pelos alvos de seu Discurso Verdadeiro, os cristãos. A visão mais breve é de dicionário, escrita por Adalbert Hamman (2002, p. 278), que apresenta que ele seria um filósofo platônico eclético, de provável origem egípcia, que passou um tempo em Roma, se informando assim dos movimentos de ideias de sua época e que escreveu sua obra sob Império de Marco Aurélio32 (de 161 a 180 d.C.). 32

Primeiramente conhecido como Marco Ânio Vero, nascido em 121 d.C., filho de um pai rico que morreu jovem, foi adotado pelo seu avô e educado em sua vida por excelentes tutores até que, aos 16 anos, é novamente adotado por seu tio Aurélio Antonino, que era filho do Imperador Adriano, também por adoção. Aurélio Antonino, que se torna Imperador, passando a ser reconhecido como Antonino Pio, transmite seu nome a Marco Ânio, que em 161

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Expostas as diversas opiniões, percebe-se que as tendências mantêm-se ainda em conflito, entre um Celso platônico eclético e um epicurista: pelo lado platônico eclético, os autores recorrem ao fato de aparentar ser a opção que corresponde melhor à própria personalidade de Celso que o Discurso Verdadeiro reflete e se adequar às indicações e posteriores dúvidas de Orígenes em seu Contra Celso; pelo epicurista, por outro lado, têm-se atestações que fontes próximas oferecem, propiciando maior autenticidade, porém, sem se encaixar realmente no que o texto nos passa. O único consenso seria o provável local de vida do autor: Alexandria. Essa atestação se produz por Celso ter conhecimento amplo das várias escolas filosóficas – algo verificável em seu trabalho.

1.2.1. A Controvérsia Origenista Muitas figuras – que se autodenominavam cristãs e outras que denominamos como pagãs –, após Platão, abriram diversos caminhos de interpretação do platonismo, que atualmente classificamos como médio platonismo e neoplatonismo. As principais divergências entre tais escolas – e os que incluímos nas mesmas –, são as explicações para se aproximarem da concepção já difundida do Demiurgo do Timeu (PLATÃO, Timeu-Crítias, 69C). As exposições acerca do plano inteligível e do seu reflexo imperfeito, o plano material; as diferenciações entre o Demiurgo “que cria” e o que “coloca em ordem”; as concepções sobre o tempo, dentre outros, são alguns exemplos possíveis de elencar que eram debatidos (O’BRIEN, 2015, p. 24, 31). Tratando-se de uma obra que se constitui na forma de diálogo, referenciamos, a seguir, uma passagem de Timeu de Lócrida (séc. V a.C.) que explicita de forma melhor uma das concepções primordiais do platonismo, sobre o plano sensível e o suprassensível: Deveio (mundo e criação), pois é visível e tangível e tem corpo, assumindo todas as propriedades do que é sensível; e o que é sensível, que pode ser compreendido por uma opinião fundamentada na percepção dos sentidos, devém e é deveniente, como já foi dito (PLATÃO, Timeu-Crítias, 28B, 1014; 28C, 1).

A diferenciação entre os planos, característica do platonismo, será alvo de debate por séculos entre as várias escolas filosóficas, dentre todas as outras concepções trazidas à tona por Platão. Outra passagem de Timeu, por exemplo, diz que “...de acordo com um discurso

d.C. após a morte de Antonino Pio, assume o Império e passa a ser reconhecido como Imperador Marco Aurélio. Governou em um período que passava por uma intensa época de pressões bárbaras. Em 168 d.C., segue para o Danúbio para juntar-se às suas legiões, onde escreve sua famosa obra Meditações, que transmite suas crenças estoicas. Faleceu em campo de uma doença infecciosa, em 180 d.C. Ver: MARCUS AURELIUS. Meditations. Tradução de Martin Hammond. London: Penguin Classics, 2006. p. 3.

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verossímil, é necessário dizer que este mundo, que é, na verdade, um ser dotado de alma e de intelecto, foi gerado pela providência do deus” (PLATÃO, Timeu-Crítias, 30B, 8–9;30C, 1-3); tal teoria, de que o Demiurgo “cria a criação” e depois a abandona, torna-se também alvo de debate a posteriori. O Timeu, portanto, é uma das obras-chave para compreensão do pensamento platônico e das futuras interpretações que o mesmo recebe. Os princípios,33 de Orígenes, constitui nossa melhor referência ao pensamento e viés filosófico do autor. A obra é escrita em torno de 229 d.C., com intuito de asseverar que, contrário às críticas, os cristãos não eram ignorantes supersticiosos. O título de Peri archôn remete a tratados que definem as ideias de interpretação de uma tradição filosófica, focadas nos princípios do ser. Ao contrário do que Clemente de Alexandria (ca. 140-150 – ca. 215-231 d.C.)34 tentou, colocando a tradição cultural greco-romana como um preparatório para a base filosófica cristã, Orígenes intentava definir os traços próprios dessa filosofia. Assim sendo, os motivos da polêmica origenista têm seu início. Na obra, encontramos alguns dados que, séculos adiante, foram motivo de debate e julgamentos para a definição da ortodoxia da Igreja Católica. Orígenes, no decorrer do Peri archôn, expõe que os apóstolos possuíam dois tipos de intenção ao escrever as Escrituras: primeiramente, disseminar a religião cristã por meio do sentido literal, o qual permitiria que a doutrina fosse de acesso a todos os crentes; em segundo lugar, o acesso às informações ocultas – as quais podiam ser apreendidas mediante até do tipo de escrita –, apenas captáveis pela forma alegórica de interpretação, seria reservada aos cristãos “dignos de receber a sabedoria”.35 Por meio de alegorias36, Orígenes prossegue suas opiniões acerca de um Deus incorpóreo e inalcançável a qualquer criatura. A aproximação à palavra divina só se daria por intermédio do dom do Espírito Santo. O autor coloca, em seguida, um Cristo preexistente, que possui natureza divina, mas, que não é parte de Deus, já que a substância de Deus não pode ser dividida; consequentemente, Orígenes tende a subordinar o Filho como imagem da bondade de Deus, mas não a bondade em si. Daqui surge a primeira abordagem sistemática cristã: o Filho junto ao Espírito Santo é o único a conhecer Deus (MORESCHINI & NORELLI, 2005, p. 167).

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Peri archôn, no original em grego. Tito Flávio Clemente é reconhecido por suas obras de cunho pedagógico, com estilo baseado em grandes predecessores greco-romanos como Aristóteles, Epicuro, alguns estoicos e Cícero. O gênero de sua obra obedece ao estilo “protréptico”. Seus escritos que nos chegaram são o Pedagogo e o Protréptico. Uma terceira parte, os Estrômatas, se perdeu. Clemente expõe que Platão seria um dos que vislumbraram a verdade sobre Deus. Ver: OSBORN, Eric. Clement of Alexandria. Cambridge: University Press, 2005. p. 1–3. 35 O tópico denominado “Les Intentions d’Origène”, parte da Introdução dos tradutores, resume as intenções do documento. Ver: ORIGÈNE. Traite des Principes: Tome I. Tradução de Henri Crouzel e Manlio Simonetti. Paris: Du Cerf, 1978. p. 46–52. 36 Que também é vastamente utilizada no Contra Celso como método de contra argumentação. 34

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Continuando a exposição, Orígenes (Os Princípios, I, 1, 1) coloca que a criação sempre existiu, e que o homem fazia parte da mesma por meio das ideias de Deus. O homem, usufruindo do livre-arbítrio, decai para sua condição terrena, mas, ainda dispõe da possibilidade de retorno à sua condição anterior. Posteriormente, dissertando contra os gnósticos e marcionitas (Os Princípios, II, 4), coloca em pauta a questão da ressurreição. É contrário à crença dos gnósticos, que negavam a ressurreição dos corpos e, conseguinte, discorda do retorno de um corpo idêntico ao presente (Os Princípios, II, 10, 1). Os dados acima apresentados confluem, no IV e V século, na controvérsia origenista37. A Igreja, então, se coloca em uma época de tensão acerca dos escritos de Orígenes; chegamos ao ponto pretendido nos aproximando aqui de duas personagens que se tornaram marcantes nessa polêmica: Jerônimo de Estridão e Rufino (ca. 345 – ca. 411 d.C.)38. Aos fins do IV século, o arianismo já se encontrava amplamente debatido e rotulado como heresia; conseguinte, Epifânio de Salamina (ca. 310 – ca. 403 d.C.)39, um dos mais famosos presbíteros no combate ao arianismo e ao origenismo, tenta trazer à causa antiorigenista Jerônimo e Rufino; Jerônimo é logo convencido por Epifânio. Por outro lado, Rufino não adere à causa por possuir maior afinidade com Orígenes, devido a ser o responsável por traduzir ao latim a Apologia de Orígenes, de Pânfilo (ca. 240 – ca. 310 d.C.)40, e pela tradução do Peri archôn, também ao latim. A tentativa de defesa dos escritos de Orígenes pode ser atestada mediante o As Falsificações feitas sobre a obra de Orígenes41. Nesse brevíssimo escrito de Rufino (As Falsificações, 7), temos a intercessão em que o autor transcreve uma carta de Orígenes: ele demonstra como foi vitimado devido às falsificações de um “autor de heresias”, o qual captou um discurso seu, alterou-o nas partes que queria e “andou com ele por aí como se fosse escrito por mim”. Rufino (As Falsificações, 8, 11–23), após a exibição da carta, comenta que, para Rowan Williams dedica um tópico de seu livro “Arius: Heresy and Tradition” com intento de demonstrar as conexões entre o arianismo e os escritos de Orígenes. Ver: WILLIAMS, Rowan. Arius: Heresy and Tradition. Michigan: Eerdmans, 2002. p. 131–148. 38 Rufino foi um tradutor, responsável por traduzir obras de Orígenes ao latim, dentre outras. O único escrito seu que nos restou foi o As Falsificações feitas sobre a obra de Orígenes. Ver: RUFINUS. On the Falsification of the Books of Origen. Tradução de Thomas P. Scheck. Washington: The Catholic University of America Press, 2010. p. 8–10. 39 Epifânio foi o grande “compilador de heresias” de autores anteriores; ele se torna, portanto, um dos principais nomes no combate ao arianismo, origenismo, e outras doutrinas catalogadas como hereges. É responsável pelas obras Ancorado (374 d.C.) e Panarion (377 d.C.), que apresentam cerca de 80 heresias e como discerni-las da ortodoxia. Ver: MORESCHINI, Claudio; NORELLI, Enrico. Op. Cit., p. 283–285. 40 Pânfilo foi um proeminente autor da Igreja. Infelizmente, as referências que temos a ele só nos chegaram por intermédio das descrições de Eusébio Pânfilo em seu livro Mártires da Palestina. A datação da Apologia de Orígenes é incerta, sendo a única obra que nos restou de Pânfilo. Ver: PAMPHILUS. Apology for Origen. Tradução de Thomas P. Scheck. Washington: The Catholic University of America Press, 2010. p. 3–5. 41 De adulteratione librorum Origenis, no original em latim. 37

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quaisquer homens anteriores que foram reconhecidos como Católicos, se algo descrito em seus trabalhos for controverso ou herético, que sejam atribuídas tais blasfêmias a escritores hereges que deliberadamente adulteraram tais textos, com propósitos duvidosos. A contradição se instaura quando, afirmando as modificações dos hereges, Rufino inicia as adaptações dos textos origenistas à ortodoxia da época, com intuito de salvá-los da controvérsia (MORESCHINI & NORELLI, 2005, p. 466). Acusar os dizeres de Orígenes de terem sido alterados para legitimar assim a sua restauração ao estado original, porém, não obtém sucesso, devido à tradução literal de Jerônimo do Peri archôn, na mesma época, com intenção de expor os erros do trabalho (MORESCHINI & NORELLI, 2005, p. 166). Não possuímos referência ao tradutor do Contra Celso ao latim. Levantamos a hipótese, contudo, de que a primeira versão possa ter sido traduzida por Rufino, ou algum outro simpatizante das teorias origenistas. Sabemos por meio de Jerônimo que a transferência de papiro para pergaminho da biblioteca de Orígenes é de um condiscípulo de Gregório de Nazianzo (ca. 326 – ca. 390 d.C.)42, o Bispo Euzóio de Cesaréia43(ARNS, 2007, p. 27). Porém, apesar de termos ciência das modificações do texto causados pelos copistas (ARNS, 2007, p. 172), a reorganização das doutrinas expostas pelo escritor, de forma a excluir as contradições, parece ser obra de um simpatizante: Rufino (As Falsificações, 14) afirma, no decorrer de seu livro, que não havia mal algum em colocar de forma correta o que esses autores reconhecidos como Católicos haviam tentado dizer; então, se um autor quer defender um ponto e não conseguiu esclarecê-lo precisamente, não haveria mal em ajuda-lo a colocar sua explicação no caminho correto. Reitera, em seguida, que, além de Orígenes, outros antigos escritores católicos são relegados à heresia, mas, que são plagiados em discursos nas Igrejas. Unido a tais informações, temos as propostas debatidas no nosso tópico 1.2, sobre o possível epicurismo de Celso. Sabe-se que a denominação de epicurista era utilizada com o propósito de julgar o alvo como ateu; vimos as confusões de Orígenes, no decorrer do Contra Celso, acerca da escola filosófica de Celso, ao ponto que as atestações de Orígenes caem em contradição consigo mesmas porquanto as citações literais do Discurso Verdadeiro, por outro lado, demonstram clara afinidade ao platonismo. Levantando tais pontos, ousamos dizer que Rufino – ou outro adepto das teorias origenistas –, pode ter alterado o texto ao traduzi-lo para 42

Gregório foi Arcebispo de Constantinopla e é conhecido como o mais bem–sucedido retórico dentre os patrísticos. É reconhecido por debater a questão da Trindade na época do arianismo. Ver: DALEY, Brian E. Gregory of Nazianzus. Oxford: Routledge, 2006. p. 3–26. 43 Nada sabemos sobre seu nascimento e morte. Foi bispo de Cesaréia, por volta de 370 d.C., exilado posteriormente por sua afinidade ao arianismo. De acordo com Jerônimo, ele se esforçou por reordenar e restaurar a biblioteca de Orígenes. Ver: SIMONETTI, Manlio. Euzóio de Cesaréia. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 546.

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o latim, que se torna a versão utilizada posteriormente. É observável que, se nos escritos originais de Orígenes o debate se acercasse apenas das atestações de Celso contra a sacralidade de Jesus, a falta de originalidade dos mitos, entre outros aspectos, a refutação de Orígenes não teria tanta repercussão; a necessidade de um debate potencializado pelas alegorias, que partisse também contra a doutrina verdadeira se tornaria mais efetivo. Isso se tornou possível com as atestações criadas com intuito de comprovar o ateísmo de Celso em contraste ao teísmo de Orígenes, que possuía fortes laços com o platonismo, como demonstramos por intermédio da análise do Peri archôn. Portanto, além de refutar as atestações de Celso, se mostraria que a doutrina apresentada no Peri archôn era superior, correta e, apesar de Orígenes já ter sido combatido no IV e V séculos d.C., a Philocalia44 e o Contra Celso não precisariam ser catalogados como heréticos pelo Segundo Concílio de Constantinopla em 533 d.C., por exemplo, que condena os ensinamentos de Orígenes e outros.45 A associação de Celso ao epicurismo no trabalho de Orígenes deslegitimaria o pagão e manteria assim salvos os escritos heréticos de Orígenes que citamos, os únicos que restaram do patrístico. As traduções e reconstruções do Contra Celso são compilações de partes da Philocalia46 e de um manuscrito em latim do Contra Celso, do Vaticano, datado do século XIII47. As traduções utilizadas recentemente possuem referências majoritárias a esses manuscritos e considerações necessárias sobre as traduções que expusemos na nota 22. A possível cópia de Jerônimo do Peri archôn pode ter tido a repercussão necessária para sustentar a causa do antiorigenismo na época da controvérsia, porém, esse texto se perdeu. Faz sentido, consequentemente, sustentar que a elaboração do “Celso epicurista”, que é fruto de análises mais recentes, pode ser uma confusão da parte acadêmica que sustenta tal

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A Philocalia de Orígenes é composta provavelmente por Gregório de Nazianzo e Basílio de Cesaréia (ca. 329– 379 d.C.), entre os anos de 350 e 360 d.C. Ao lado do Contra Celsum, é o único escrito que nos restou que possui excertos originais de inúmeras obras de Orígenes, incluindo tomos do próprio Contra Celsum e do Peri archôn. É utilizada para reconstruir as traduções que detemos atualmente; as últimas edições que dispomos são de J. Armitage Robinson (1893) e George Lewis (1911). A de Armitage possui notas introdutórias sobre a compilação. Ver: GREGORY; BASIL. The Philocalia of Origen. Tradução de Joseph Armitage Robinson. Cambridge: University Press, 1893; GREGORY; BASIL. The Philocalia of Origen. Tradução de George Lewis. Edinburgh: T. & T. Clark, 1911. 45 Vale lembrar que foi um Concílio Ecumênico, ou seja, de cunho universal. É um dos sete grandes concílios da antiguidade. Ver: MUNIER, Charles. Concílio. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 319–320. 46 As versões da Philocalia utilizadas para as traduções são do século X e XI. Ver: CHADWICK in ORIGEN, Op. Cit., p. XXX. 47 Tanto em J. Armitage quanto em Chadwick – que disserta sobre as traduções anteriores do Contra Celso – é corroborada a tradução direta desse manuscrito, junto a partes da Philocalia. Ver: CHADWICK in ORIGEN, Op. Cit., XXIX; GREGORY; BASIL. The Philocalia of Origen. Tradução de Joseph Armitage Robinson. Cambridge: University Press, 1893, p. VII.

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teoria, que se apoia unicamente nas referências da personagem de Celso à Luciano de Samósata e Galeno. As falsificações do manuscrito, a tentativa de evitar o banimento sistemático da obra de Orígenes, a justificativa de Rufino (As Falsificações, 14, 5-7) ao dizer “...que teimosia de espírito é essa que se recusa a utilizar a mesma desculpa quando o caso é o mesmo?”, criam justificativas que, unidas ao que demonstramos acima, correspondem à possibilidade das mudanças no Contra Celso que, até os dias atuais, causam fissuras entre os acadêmicos que tentam definir a escola filosófica de Celso. E, como ressalta Paulo Evaristo Arns (2007, p. 173), se Rufino tentou modificar o texto para salvar Orígenes, tem-se que classifica-lo entre os próprios falsários que ele condena. Outra opinião, de explanação mais simples, seria a de que Orígenes, enquanto confeccionava suas respostas no Contra Celso, foi fazendo-as de acordo com seu fôlego de escrita: como atesta Arns (2007, p. 84), a edição de uma obra nem sempre era feita de uma só vez; à medida que se terminavam as partes, as mesmas iam sendo publicadas. Essa divisão em livros (no caso de Orígenes, oito) pode respeitar apenas ao ritmo de sua escrita. A necessidade de se cumprir uma solicitação de Ambrósio em uma obra que certamente teria repercussão, pois, tentava desconstruir um discurso anticristão, sustentaria essa segunda hipótese: na medida em que Orígenes lia a obra e publicava os livros do Contra Celso, foi alterando sua opinião sobre Celso ser epicurista ou não, algo que é atestado por, primeiramente, afirmar com veemência que Celso é epicurista e, posteriormente, colocar em dúvida suas suposições. Com o exposto, definimos aqui as teorias apresentadas acima, de que a controvérsia origenista pode ter sido peça-chave na alteração do Contra Celso que, consequentemente, seria capaz de modificar toda a percepção atual do texto e causando, dessa forma, futuras divergências acerca do “Celso epicurista” e o “Celso platônico eclético”; ou, que a publicação parcial do trabalho afetaria gradativamente a perspectiva de Orígenes. Concluímos, dessa forma, que a plausibilidade maior se encontra com o platônico eclético, devido à afinidade de Celso ao platonismo, mas, sem se restringir somente a tal viés filosófico.

1.3.

Divergências acerca da datação: 178 d.C. ou 200 d.C.? Assim como nas introduções críticas das diversas bibliografias e traduções que

abordamos no tópico anterior, além da tentativa de definir “quem era Celso” há também as especulações sobre a datação do seu Discurso Verdadeiro. Expomos aqui o que a linha mais

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tradicional tem a dizer sobre o referido para, em seguida, colocar em questão a proposta de Jeffrey Hargis (1999). O debate se dá, primariamente, entre três passagens do Discurso Verdadeiro: a) Afirmativa de Orígenes de que Celso “sequer vive a vida comum entre os homens, mas morreu há muito tempo” (Contra Celso, prefácio, IV), sendo que Orígenes escreve em 248 d.C.; b) A referência de Celso (Discurso Verdadeiro, VIII, 69) de que haviam perseguições ativas contra os cristãos na época em que escrevia; c) E, a que causa mais controvérsias, a passagem “os que hoje reinam sobre nós” (CELSO, Discurso Verdadeiro, VIII, 71); A referência de Orígenes à data de escrita é breve, como já exposto em a. Notamos que, apesar de não especificar uma data, Charles Bruhl (1844, p. 22) delineia a possibilidade da obra ter sido escrita sob Império de Marco Aurélio. Elisée Pelagaud (1878, p. XV) afirma que o trabalho de Celso é pouco posterior ao de Justino Mártir (ca. 100 – ca. 165 d.C)48. Keim (1873) ousa estabelecer uma data precisa, a de 178 d.C. – que por sinal é a data expressa no subtítulo de seu livro –, apesar de especular também entre 176 d.C. a 180 d.C. As afirmativas do séc. XIX são aperfeiçoadas por Henry Chadwick (in ORIGEN, 2003, p. XXVI–XXVIII), no séc. XX, que coloca-as em debate. Esse autor expõe que pelos escritos de Celso podemos inferir um apelo aos cristãos, para que os mesmos ofereçam suporte ao Imperador Marco Aurélio e lutem nas guerras contra os Partos, Quados e Marcomanos49 por volta dos anos 70 do II séc. d.C. Em seguida, coloca os argumentos de Eusébio Pânfilo em sua História Eclesiástica, que disserta sobre alguns dos mártires do II século e, após isso, demonstra a probabilidade da escrita da obra entre 177 d.C. e 180 d.C. Joseph Hoffmann (in CELSUS,1987, p. 32–33), dispondo de argumentos próximos ao de Chadwick, altera um pouco a perspectiva ao sustentar que Celso seria o epicurista descrito por Luciano de Samósata e, assim sendo, sua obra foi escrita por volta do último quarto do II séc. d.C., aproximando a data a 177 d.C., devido às perseguições50 aos cristãos em Lyons e Viena. Serafín Bodelón (in CELSO, 2009, p. 18–22), na tradução do Discurso Verdadeiro mais recente, em espanhol, disserta vastamente para aproximar a identidade de Celso ao epicurista, e assegura que “Luciano

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Justino Mártir viveu no período do Imperador Antonino Pio e de Marco Aurélio. As obras as quais nos referimos aqui são suas Apologias, datadas entre 150 a 160 d.C. Para mais informações sobre vida e obra de Justino, ver: MORESCHINI, Claudio; NORELLI, Enrico. Manual de Literatura Cristã Antiga Grega e Latina. Aparecida-SP: Santuário, 2005. p. 109–113. 49 Quados e Marcomanos eram tribos germânicas, habitantes do sul do rio Danúbio. 50 Tratamos desse assunto no próximo capítulo.

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foi amigo de Celso, e ambos compartilharam sua oposição ao cristianismo...”. Bodelón, a partir de tal fato, não assume uma data certa, afirmando apenas que a obra foi penejada no II séc. d.C. A datação do dicionário, descrita por Adalbert Hamman (2002, p. 278), refere-se à obra como escrita em 178 d.C. O fator comum entre a exposição de todos os autores acima é Theodor Keim (1873), no que concerne tanto à sua data de 178 d.C., quanto a de 176 d.C. a 180 d.C, variando um pouco, mas, sujeitas à década de 70 do II séc. d.C. Jeffrey Hargis, em seu livro51 que abarca os três mais conhecidos anticristãos da antiguidade – Celso, Porfírio e Imperador Juliano – dedica-se, além de um estudo do Discurso Verdadeiro de Celso, a levantar argumentos pertinentes acerca da datação da obra. Utilizandose das três principais referências que definimos acima em a, b e c, faz releituras das mesmas com a justificativa de que sua nova proposta faz jus à questão de não apenas ser uma minúcia acadêmica, mas, de demonstrar que ao colocarmos uma escrita em um determinado contexto, isso implica essencialmente em sua interpretação, posição que também defendemos aqui para definirmos nosso recorte temporal. O autor, focando primeiramente no ponto a, inicia seus argumentos com a proposta de que, com Orígenes dizendo que Celso “morreu há muito tempo”, a probabilidade de que ele estivesse morto há 70 anos ou há 50 anos é aberta a interpretações, demonstrando que isso se torna muito subjetivo e pode levar a um grande desacordo. Em seguida, ao abordar o ponto b, evidencia que os acadêmicos concordam no fato de se referir aos martírios de Lyons, Viena e norte da África. O ponto c, que se mostra mais sólido, é o que melhor legitima a datação, pois, se refere a os, ou seja, mais de um governante; assim, se infere que o período é o da corregência do Imperador Marco Aurélio e seu filho Cômodo, entre 177–180 d.C. (HARGIS, 1999, p. 21). Concernente a c, Jeffrey faz uma reanálise de toda a seguinte passagem: Na verdade, eis ainda algumas de tuas afirmações intoleráveis: se os que agora reinam sobre nós, convencidos por ti, são feitos prisioneiros, convencerás também os que reinam depois deles, e a seguir a outros, se estes forem presos. E isso indefinidamente, até que, convencidos já todos os reis por ti e feitos prisioneiros, um chefe avisado, prevendo o que aconteceria, vos suprima a todos inteiramente antes que o tenhais destruído (CELSO, Discurso Verdadeiro, X, 372–380, grifo nosso).

A referência de Celso à pluralidade de governantes, se interpretada literalmente, levanos a pensar que o autor inferia que futuras corregências aconteceriam; anterior a Marco Aurélio e Cômodo, em 177 d.C., tal acontecimento se mostrou raro. Analisando a passagem, Hargis (, 51

HARGIS, Jeffrey W. Against the Christians: The Rise of Early Anti-Christian Polemic. New York: Peter Lang, 1999.

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1999, p. 22) demonstra que o advérbio vuv, significando “agora”, é utilizado pelos estudiosos para excluir as generalizações de futuros governantes; entretanto, deve ser observado que os argumentos de Celso envolvem situações hipotéticas de futuros governantes, contrastando com os que governam “agora”. A palavra vuv, então, não necessita de ser levada em conta para referir-se ao tempo de escrita do Discurso Verdadeiro, já que está sendo usada em uma argumentação hipotética. Assim, a alusão à pluralidade de governantes não necessariamente se refere a uma corregência na época da escrita. Em relação a b, as perseguições aos cristãos durante o Governo (193–211 d.C.) de Septímio Severo (145–211 d.C.)52 são tão plausíveis quanto as de 177–180 d.C. No período de 193–211 d.C., temos duas importantes obras de protesto de Tertuliano53: a Apologia e Martírios de Perpetua e Felícia. Se abre então mais de uma possibilidade à “era” de perseguições a qual Celso se refere (HARGIS, 1999, p. 22). As justificativas acima sustentam parcialmente a hipótese de Hargis; entretanto, o autor nos apresenta outras pistas: Celso era informado sobre o Cristianismo. Não no sentido comum dos topoi, compartilhado nos anos 70 do II séc. d.C. para sustentar as repreensões aos cristãos e os mártires, mas, com a visão de um crítico de uma geração posterior que se informara melhor sobre o assunto. Celso, portanto, parte do ponto da crítica à filosofia cristã. Em paralelo à exposição acima, Hargis (1999, p. 23) coloca a seguinte pergunta: por que os apologistas cristãos não responderam imediatamente ao Discurso Verdadeiro, relegando a resposta a Orígenes, em 248 d.C., 70 anos depois? Possuíamos, na virada do II para o III séc. d.C., dois apologistas de destaque, como Tertuliano e Clemente de Alexandria. Além disso, outra problemática é o possível decreto54 de Septímio Severo, em 201–202 d.C. que proíbe a conversão ao Cristianismo ou ao Judaísmo. 52

Septímio Severo foi Imperador romano, primeiro da dinastia dos Severos. Participou da guerra civil (193 d.C.) que envolveu cinco imperadores (Pertinax, Dídio Juliano, Pescênio Níger, Clódio Albino e Septímio Severo), saindo-se vitorioso e corregendo junto a Albino, que morre em 197 d.C. Ver: BIRLEY, Anthony R. Septimius Severus: The African Emperor. London & New York: Routledge, 2002. 53 Tertuliano (ca. 160–220 d.C.) foi um cristão da seita gnóstica Montanista. Escreveu inúmeras obras, dentre elas a Apologia (ca. 197 d.C.), com intuito de demonstrar indignação acerca das perseguições aos cristãos. É de Tertuliano que possuímos o primeiro uso escrito do termo religio como referente à vera religio, ou seja, a “verdadeira religião”, o cristianismo. Ver: DUNN, Geoffrey D. Tertullian. London & New York: Routledge, 2005. p. 1–8. 54 Entre dois artigos correlacionados, há a divisão – entre as autoridades no assunto – de que: 1) T. D. Barnes expressa que as fontes analisadas para responder tais perguntas (Eusébio Pânfilo e Sulpício Severo) falsificaram acontecimentos – ou foram alteradas posteriormente – para legitimar ações anticristãs de Imperadores passados (Septímio Severo, no caso desse debate), demonstrando assim as repressões dos ditos pagãos contra os cristãos; 2) W. H. C. Frend, por outro lado, ressalta que o período sob Governo de Septímio Severo experimenta várias perseguições aos cristãos, as quais só cessam quando o Imperador parte em expedição para reconquistar o que seria, no tempo presente, as Terras Baixas na Escócia. Vale lembrar que as obras de Eusébio e Sulpício (História Eclesiástica e História Sacra, respectivamente) são feitas contemporâneo a ou posterior ao Édito de Milão, em 313 d.C, que torna a religião cristã como legal ante o Império Romano. Para maior aprofundamento da discussão,

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Ambas as propostas são consistentes e possuem suas falhas. O autor demonstra que sugerir uma data precisa é uma ação esguia; a autenticidade das informações se fragiliza, pois, Tertuliano em sua Apologia, em 197 d.C., procurava ainda por defender os cristãos das acusações de imoralidade. Em vista disso, as repreensões de Celso contra os cristãos podem ser datadas tanto nos anos 70 do II séc. d.C. quanto o proposto por Jeffrey, 200 d.C., “mais 10 ou menos 10 anos” (HARGIS, 1999, p. 23–24). Além das argumentações de Hargis, acrescentamos o debate acerca das acusações contra magia, na virada do II para o III séc. d.C. Andrzej Wypustek (1997, p. 280), em seu artigo nomeado “Magia, Montanismo, Perpétua, e a Perseguição dos Severos”55, levanta o debate acerca do qual montanistas seriam tachados como praticantes de magia. O ato de profetizar aflições vindouras se torna uma afronta aos olhos de governantes do período dos Severos, pois, interferiam no âmbito político. Montanistas compilaram vários escritos com esse teor profético, rotulados como escrita mágica, algo combatido no período de Septímio Severo. De acordo com pagãos, como apresenta o autor, o nome de Cristo era utilizado em fórmulas mágicas, com intuito de praticar exorcismos, curas, adivinhações e criar proteções mágicas. Em conjunto a isso, os mártires montanistas eram vistos como pessoas que retinham força sobre-humana; todos esses fatores implicam em uma visão de que os cristãos montanistas eram praticantes de feitiçaria (WYPUSTEK, 1997, p. 282–283). Com uma releitura do provável decreto de Septímio Severo contra as práticas de proselitismo cristãs e judaicas, Wypustek (1997, p. 285) propõe que, ao invés da proibição da conversão de pagãos às religiões citadas, a chave para a compreensão desse decreto é percebêlo como um ato de supressão da prática de magia e profecia, que se tornam, consequentemente, formas de superstição que acrescentam seguidores; ademais, diferenciar acusações entre judeus e cristãos até meados do III séc. d.C. não se torna uma afirmativa plausível, sendo a maioria destas perseguições ocasionadas principalmente por práticas de magia. Em adição à essa reflexão, compreendemos que parte da obra de Celso dedica-se a combater Jesus Cristo, acusando-o como mago e charlatão: Os Cristãos dizem poder adquirir alguma forma de poder ao pronunciar nomes de demônios, ou ao dizer certos encantamentos, sempre incorporando o nome de Jesus e uma curta história sobre ele na fórmula. Até essa prática é dada como velha: o próprio Jesus era visto fazendo milagres utilizando-se de magia ver o segundo capítulo desta monografia, tópico 2.1. Ver: BARNES, T. D. Legislation Against the Christians. The Journal of Roman Studies, Oxford, vol. 58, parts 1 and 2, p. 32–50, 1968; FREND, W. H. C. Open Questions Concerning the Christians and the Roman Empire in the Age of the Severi. Journal of Theological Studies, Oxford, vol. XXV, part 2, p. 333–351 October 1974. 55 WYPUSTEK, Andrzej. Magic, Montanism, Perpetua, and the Severan Persecution. Vigiliae Christianae, Leiden, v. 51, n. 3, p. 276–297, 1997.

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e encantamentos. Ele sabia que outros segui-lo-iam nessas práticas, contudo ele pareceu expulsar de sua sociedade aqueles que o fizeram. Talvez essa seja a origem da hipocrisia pela qual os Cristãos são tão bem conhecidos: estava ele certo de afastá-los por copiá-lo? Sendo ele mesmo culpado de feitiçaria ele não possuía razão para acusar outros, nem eles poderiam ser vistos como homens ruins por seguir seu líder (CELSO, Discurso Verdadeiro, I, 53–54).

Por meio dessa citação, um exemplo dentre muitos outros presentes na obra, observa-se a tentativa de Celso de deslegitimar os cristãos, nomeando suas práticas como hipócritas, vindouras de um feiticeiro. Se tomarmos a hipótese de Andrzej Wypustek como crível, podemos reforçar a proposta de Jeffrey Hargis, recomendando que o Discurso Verdadeiro foi escrito nessa época com o intuito de validar as acusações contra essas seitas cristãs e judaicas. O manuscrito possui uma forma panfletária, algo que se encaixa em um teor propagandístico. Como expõe Ana Teresa Marques Gonçalves (2001, p. 34–35), as divulgações das ações dos príncipes compõem uma das partes daquilo a que chamamos propaganda; as mesmas fazem parte de um expediente que gera um consenso mínimo, que garante ao Imperador condições de governabilidade. Esse tipo de obra se encaixaria, dessa forma, em uma promoção que tanto alicerça a ação de Septímio Severo ao visitar o Egito 56, quanto sustenta a responsabilidade de que a prática de feitiçaria e magia estava sendo praticada por judeus e cristãos. Demarcamos, nesse caso, que o recorte temporal definido por Hargis torna-se mais consistente por fundamentar uma resposta mais apropriada aos escritos de grandes apologistas como Justino Mártir, Clemente de Alexandria e Tertuliano, que vinham intensificando o debate em defesa do Cristianismo, além do combate acerca da magia e feitiçaria no período severiano; a contestação de Celso partiria da desconstrução da filosofia cristã e de suas práticas ocultas, pois, o uso dos topoi não se mostravam mais suficientes. Intenta, dessa forma, deslegitimá-la por meio não de acusações generalizadas, mas, de uma exposição sistemática.

1.4.

Divisão da obra na atualidade A divisão da obra, na atualidade, possui disparidades entre os modelos de reconstrução

do Discurso Verdadeiro e suas traduções. Louis Rougier (1965) e Serafín Bodelón baseiam sua

56

Atestado por Dion Cássio em sua História Romana, Septímio Severo visita o Egito, adentra os santuários e remove dos mesmos praticamente todos os livros de conhecimento oculto. Ver: História Romana, Livro LXXVI, 13, 2.

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tradução na seguinte forma57 que divide o trabalho em prolegòmenon/praefatio58 junto a quatro “livros”, importada de Robert Bader e Benjamin Aubé59. Os tópicos expõem os títulos criados para os livros do Discurso Verdadeiro em francês e espanhol, respectivamente: I. Préface e Prefacio; II. Première Partie: Objections contre les Chrétiens au point de vue du Judaïsme, et traits généraux de la secte et de la propagande Chrétiennes e Libro Primero: Crítica del Cristianismo desde el punto de vista del Judaísmo; III. Deuxième Partie: Objections contre l’apparition de Dieu ou d’un personnage divin dans le Monde, et polémique contre les légendes puériles et les prétentions orgueilleuses des Juifs e Libro Segundo: Crítica de la apologética de los Judíos y de los Cristianos; IV. Troisième Partie: Objections contre la secte Chrétienne, ses divisions, ses enseignements secrets, ses pratiques, sa doctrine morale, théologique, cosmogonique et eschatologique e Libro Tercero: Crítica de los Libros Santos; V. Quatrième Partie: Conclusion: Essai de conciliation et appel á l’esprit de confraternité religieuse et patriotique de tous les Chrétiens de bonne volonté e Libro Cuarto: Conflicto del Cristianismo con el Imperio: tentativa de conciliación. A diferença da organização textual se produz – entre Bodelón e Rougier – nos sub– tópicos utilizados por Bodelón, que, em Libro Primero, por exemplo, possui um subtópico denominado 1. Celso pone em escena a um judio que habla com Jesús diretamente y contesta a su origen divino e, além disso, enumera seus parágrafos. Por toda a tradução tal fato se torna recorrente. Uma divisão claramente criada por Bodelón, algo que não encontramos tanto no Contra Celso, nas reconstruções ou em outras traduções. Essa autonomia se produz, como descreve Joseph Hoffmann (in CELSUS, 1987, p. 44–45), pelo fato de que não houve nenhuma tentativa de se recompor o Discurso Verdadeiro em sua ordem original; este fato, de certa

57

Apesar dos títulos de cada livro serem diferentes, se assemelham no conteúdo e na intenção. O interesse da exposição é em demonstra-los de forma literal, como foram escritos. Disponibilizamos aqui nossa tradução do francês e espanhol, na devida ordem: I – Prefácio e Prefácio; II – Primeira Parte: Objeções contra os Cristãos do ponto de vista do Judaísmo, e características gerais da seita e da propaganda Cristã e Livro Primeiro: Crítica do Cristianismo do ponto de vista do Judaísmo; III – Segunda Parte: Objeções contra a aparição de Deus ou de um personagem divino no Mundo, e controvérsia contra as lendas infantis e as pretensões orgulhosas dos Judeus e Livro Segundo: Crítica da apologética dos Judeus e dos Cristãos; IV – Terceira Parte: Objeções contra a seita Cristã, suas divisões, seus ensinamentos secretos, suas pratiques, sua doutrina moral, teologia, cosmogonia e escatologia e Livro Terceiro: Crítica dos Livros Sagrados; V – Quarta parte: Conclusão: Tentativa de reconciliação e apelo ao espírito fraternal religioso e patriótico de todos os Cristãos de boa vontade e Livro Quarto: Conflito do Cristianismo com o Império: tentativa de reconciliação. 58 Termos grego e latim, respectivamente, para designar introdução e/ou prefácio. 59 O livro trata de uma abordagem mais ampla, mas não somente de Celso. Ver: AUBÉ, Benjamin. Histoire des Persécutions de L’Église: La Polémique Païenne a la Fin du II Siécle. Paris: Didier et Cie., 1878.

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maneira, nos impede de explicar a divisão da fonte da forma que Celso pensou, pois, Orígenes não nos dá pistas das divisões de tópicos e capítulos do Discurso Verdadeiro. Ademais, é vastamente aceito pelos acadêmicos estudiosos60 do assunto que Orígenes omite e abrevia61 passagens de Celso. Apesar de tais condições, Hoffmann especula que o que possuímos do manuscrito seria em torno de 70%. Em contraste aos dois autores acima debatidos, Hoffmann, alicerçado em sua própria justificativa, divide o Discurso Verdadeiro em dez tópicos:62 I. Introduction; II. The Unoriginality of the Christian Faith; III. Address to the Jews; IV. Christian Doctrine compared to that of the Greeks; V. Critique of Christian Teaching; VI. On Jews and Christians; VII. Critique of Christian Doctrine; VIII. The Christian Doctrine of God IX. The Christian Doctrine of Resurrection; X. Christian Iconoclasm. Apesar das variadas divisões, o Discurso Verdadeiro se mantém na mesma ordem, consensualmente, porém, respeitando as partições de capítulos de cada tradutor, podendo assim possuir maior quantidade de texto em um tópico em contraste aos outros. O uso de cada tradução para um trabalho acadêmico, como é o nosso caso, fica portanto de livre escolha do escritor. Tratadas as problemáticas e divergências sobre a obra, convém, dessa maneira, adentrar sua possível localização geográfica e temporal. Aprofundar um contexto que, de acordo com a ótica cristã, é marcado por perseguições violentas e injustas, confluirá em possibilidades de

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Hoffmann cita J. K. Neumann e J. Quaen. Não encontramos outras referências a Quaen. Ver: CELSUS. On the True Doctrine: A Discourse Against the Christians. Tradução de Joseph Hoffmann. Oxford: University Press, 1987, p. 45. 61 Em II, 32, no Contra Celso, lemos: “Já disse que Jesus não pode ser nem arrogante nem charlatão. Por isso não creio ser necessário voltar a este ponto para evitar responder às repetições desnecessárias de Celso com minhas próprias repetições.” (Grifo nosso). Outrossim, vemos tais afirmações em II, 79; III, 64; VI, 17; VI, 22; VI, 26; VI, 50; VI, 74; VII, 27 e VII, 32. Ver: ORÍGENES. Contra Celso. 62 Em português: I – Introdução; II – A Falta de Originalidade da Fé Cristã; III – Endereçado aos Judeus; IV – Doutrina Cristã Comparada Àquela dos Gregos; V – Crítica do Ensinamento Cristão; VI – Sobre os Judeus e Cristãos; VII – Crítica da Doutrina Cristã; VIII – A Doutrina Cristã de Deus; IX – A Doutrina Cristã da Ressurreição; X – Iconoclastia Cristã.

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respostas à seguinte pergunta: o que o contexto reflete sobre a relação desse cristianismo primitivo com o Império Romano?

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CAPÍTULO II

Perseguições e Martírios “Aqui você tem toda uma cultura cega e boba de que um herói popular do passado tinha tudo já planejado e está cuidando de cada pecinha de suas vidas impublicáveis.” ASIMOV, Isaac. Fundação e Império. Apesar das discussões63 acerca das perseguições aos cristãos terem sido legitimadas pelos Imperadores – ou não –, em meados do séc. II d.C. até meados do III séc. d.C. o número de ataques contra as seitas cristãs ganha notoriedade que não pode ser ignorada, sendo majoritariamente de iniciativa de turbas enfurecidas perante as expressões religiosas desses grupos que se denominavam cristãos. Nesse período temos mártires marcantes na História da Igreja, como Policarpo64 e os mártires scillitanos, dentre outros. Vale constatar que, como aponta Pheme Perkins (2010, p.230), ao tratarmos desses martírios, devemos levar em conta que os mesmos podiam ser encontrados entre os adeptos tanto dos católicos quanto dos grupos cismáticos; estar disposto a morrer pela fé não era em si uma marca distintiva da igreja verdadeira. Em sua argumentação, Robin Lane Fox (2006, p. 778) nos apresenta que, até o ano de 257 d.C., os locais de encontro dos cristãos não eram atacados. Anterior a essa data, as perseguições eram feitas contra indivíduos que se declaravam cristãos; porém, a parte legal desses acontecimentos ainda encontra-se aberta a discussões. Antes de 257 d.C., temos três referências que são as que possuem maior respaldo e que recebem maior consideração de historiadores: os novos éditos na Ásia, nos anos de 70 do II séc. d.C.; um decreto senatorial nos anos 80, do mesmo século; e, no III séc. d.C., uma ordem duvidosa do Imperador Maximino Trácio, feita em 230 d.C., para perseguir os líderes da Igreja. À vista disso, delimitamos aqui uma análise que abarque principalmente os dois primeiros casos acima, pois, o terceiro escapa ao nosso recorte espaço-temporal; incluímos, entretanto, também o debate acerca das perseguições no período de Septímio Severo. Faz-se necessário, ademais, demonstrar passagens de alguns patrísticos sobre o séc. I e a primeira metade do séc. II d.C. 63

Ver nota 54. Bispo de Esmirna, morreu martirizado em 167 d.C. De acordo com Eusébio, neste ano houve uma perseguição em Esmirna que resultou em sua morte, na fogueira, em 23 de fevereiro. Ver: NAUTIN, P. Policarpo. DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 1176. 64

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Ao tratarmos de cristãos, entendemos o conglomerado de igrejas, seitas e grupos, assim como ideias e concepções, que formam um conjunto que se refere ao homem que costuma ser referenciado como fundador dessa religião: Jesus de Nazaré (FILORAMO, 2005, p. 61). Incluímos, então, os gnósticos, pois, a ortodoxia ainda encontrava-se distante de sua formação e torna-se difícil classificar se os Pais da Igreja do II séc. d.C., por exemplo, eram católicos ou possuíam afinidades com o gnosticismo, já que os mesmos expressavam ideias inclinadas à futura ortodoxia, ou à heresia.

2.1. O contexto sob perspectiva das perseguições contra os cristãos O culto de Cristo é uma sociedade secreta a qual seus membros amontoam-se em cantos por medo de serem trazidos a julgamento e punição. Sua persistência é a persistência de um grupo ameaçado por um perigo comum, e perigo é o incentivo mais poderoso ao sentimento fraternal do que qualquer juramento (CELSO, Discurso Verdadeiro, I, 1–6).

De acordo com Celso, a ilicitude do cristianismo se faz evidente devido ao sigilo desse grupo. As consequências disso se agravam no séc. II d.C., quando parte dos cidadãos romanos tomam as rédeas em atitudes contra os cristãos. Como aponta Jeffrey Hargis (1999, p. 12), os cristãos eram vistos como uma ameaça séria ao bem público. Provavelmente em consequência dos discursos de Marco Cornélio Frontão (ca. 100 – ca. 160 d.C.)65, os anos 50 até fins do 70 do séc. II d.C. presenciaram um alto número de ações locais contra cristãos, as quais podem ser categorizadas como perseguições bem difundidas. Durante esse período Policarpo morre em Esmirna; Sagario em Laodiceia; Carpo e Papila em Pérgamo. Em 180 d.C., cristãos foram executados em Madaura e Scilla, na África do Norte. Em boa parte do Império, os mesmos estavam sendo linchados e acossados. Deve-se levar em conta, porém, que até meados do III séc. d.C. não se encontram ordens imperiais – que sejam comprovadas – para combater a crença cristã em si; os motivos que levam a essas mortes eram legitimados de outra forma, acabando por serem guiados primeiramente pelo nível popular para, posteriormente, caírem em poder do Governo local.

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Nascido em Cirta (Constantina, atualmente), por volta de 100 d.C., Marco Cornélio Frontão foi Cônsul sob Império de Antonino Pio, tendo posteriormente a possibilidade de governar a província da Ásia, mas, negando o cargo devido a uma condição debilitada de saúde. Segue sua vida com foco em advocacia e literatura. Torna-se reconhecido por valorizar a eloquência. Faleceu aos fins da década de 60, no II séc. d.C. Ver: MARCUS CORNELIUS FRONTO. Correspondences. Tradução de C. R. Haines. London & New York: William Heinemann; G. P. Putnam’s sons, 1919. p. XXIII–XLII.

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Dessa forma, aparentemente as províncias possuíam autoridade suficiente para tratar de tais descontentamentos de seus cidadãos. O debate que permeia tais perseguições se alicerça principalmente em duas justificativas: a perspectiva legal das perseguições e o combate à prática de feitiçaria, que inclui a profetização e a prática de magia. A primeira manifestação de uma possível legislação contra os cristãos aparece em Tertuliano, nomeada institutum Neronianum (TERTULIANO, Ad nationes, I, VII, 9), que, de acordo com o autor, aconteceu no período do Governo do Imperador Nero, por volta do desastre do grande incêndio que acometeu Roma, em 64 d.C. (SUETÔNIO, Vida dos Doze Césares, Nero, 38). Infelizmente, o institutum não pode ter sua veracidade atestada, já que apresenta-se somente em Tertuliano e não possui aparições em outras fontes. Nessa época, torna-se mais possível captar tais perseguições como conflitos de hostilidade judaica, as quais tendiam a levar a perturbações públicas (STE. CROIX, 2006, p. 107). Posteriormente, Plínio o Jovem, Cônsul e Governador da Bitínia, em suas cartas enviadas ao Imperador Trajano por volta de 111 d.C., demonstra uma das perspectivas em voga no início do II séc. d.C.: Eu nunca atendi a audiências que concernem aos Cristãos, por isso desconheço o que é costumeiro de ser punido ou investigado, e em qual extensão. Possuo mais do que um pouco de dúvida se deve haver uma distinção entre idades, e em qual extensão os jovens devem ser tratados não diferentemente dos mais velhos; se o perdão deve ser concedido pelo arrependimento; se a pessoa que foi Cristã em algum sentido não deva se beneficiar tendo renunciado; se é o nome de Cristão, por si só desprendido dos crimes, ou os crimes que unem-se ao nome que deveriam ser punidos (PLÍNIO O JOVEM, Cartas, X, 96, 1–2).

É perceptível que, passados mais de um século desde o nascimento de Jesus Cristo, os cristãos ainda não eram plenamente reconhecidos, principalmente pelo fato de serem constantemente confundidos com alguma seita judaica dissidente. Fica clara a dúvida de Plínio em tomar as ações cabíveis, apesar de que, como descreve em sua carta, solicitava àqueles que se declaravam cristãos para admitir se o eram; se admitissem, perguntava uma segunda vez; fazendo-o novamente, ordenava que fossem executados; mas, tratando-se de um cidadão romano, enviava-o de volta a Roma (PLÍNIO O JOVEM, Cartas, X, 96, 3–4). Possivelmente no mesmo ano, Trajano responde-o: Cristãos não devem ser perseguidos. Se trazidos perante a ti e considerados culpados, eles devem ser punidos, mas de forma que a pessoa que negue ser um Cristão demonstrando-o através de sua ação, isto é, adorando nossos deuses, possa obter perdão por arrependimento, mesmo que seus antecedentes sejam suspeitos. Documentos publicados anonimamente não devem ter parte em nenhuma acusação, pois eles dão o pior exemplo, e são estranhos à nossa época (PLÍNIO O JOVEM, Cartas, X, 97, 2).

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Nota-se, portanto, que a ordem de Trajano desqualifica uma perseguição legal, seja por parte do poderio das províncias, seja por iniciativa do Império. Isso não indica, entretanto, que os Governadores deixassem de agir quando a causa fosse trazida perante os mesmos. A questão, portanto, como nos indica Plínio (Cartas, X, 96, 7–8) ao dizer “...com suas instruções eu havia proscrito a existência de irmandades secretas”, é demonstrar que, como apontado por Celso após tanto tempo, o segredo e a falta de visibilidade desses cultos são uma prática inaceitável dentro dos ritos romanos. A partir de Eusébio Pânfilo, no IV livro da sua História Eclesiástica, podemos retirar a primeira referência duvidosa de éditos circulando nos anos 70 do séc. II d.C.; ele cita um possível manuscrito de Melitão de Sardis66, intitulado Sobre a Pessach67, que diz: Por aquilo que nunca aconteceu antes, a raça dos religiosos é agora perseguida e expulsa por toda a Ásia por decretos estranhos. Pois informantes desavergonhados e amantes da propriedade de outras pessoas tiram vantagem dos decretos e abertamente saqueiam-nos, espoliando aqueles que não fizeram mal algum de noite e de dia. [...] Se isso é feito sob seu comando68, deixe que passe como bem feito, pois um rei justo jamais faria planos injustos, e nós suportamos de bom grado uma morte tão honrosa. Porém trazemos a você apenas um pedido, que você mesmo examine os autores de tais contendas, e julgue justamente se eles são dignos de morte e punição ou de salvação e imunidade. Mas, se esse conselho e novo decreto, que sequer é adequado a inimigos bárbaros, não for seu, nós imploramos mais ainda que não nos negligencie em meio a pilhagens desregradas pela multidão (EUSÉBIO PÂNFILO, História Eclesiástica, IV, 26, grifo nosso).

A referência demonstra que há possibilidade de um decreto, por mais que suspeito. Provavelmente, a indicação de Melitão de que os religiosos estão sendo agora perseguidos, refere-se a alguma provável iniciativa difusa, que escalonava começando no nível popular seguido de uma tomada de rédeas pelo Governador de província. Possivelmente, Melitão se refere ao acontecimento em 177 d.C., na cidade de Lyons em que, como descreve Timothy Venning (2011, p. 551), um aglomerado hostil de civis persuade a autoridade local a perseguir e prender aqueles que se denominavam cristãos, acusando-os de canibalismo e incesto. Estes são levados perante o Governador que, primeiramente, contata o Imperador Marco Aurélio para tomar as devidas providencias. Eles são sentenciados à morte, com a distinção entre os cidadãos romanos, que são decapitados, e os outros, que são jogados às bestas no anfiteatro.

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Escritor do séc. II d.C. foi um teólogo renomado, porém, grande parte de suas obras foi perdida. Eusébio descreve algumas dessas obras: Sobre a Pessach, Sobre a Vida Cristã e os Profetas, Sobre a Igreja, etc. É referenciado por São Polícrates de Éfeso (ca. 125 – ca. 196 d.C.) em uma carta ao papa Vítor. Ver: HAMMAN, Adalbert. Melitão de Sardes. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 923. 67 Páscoa Judaica. 68 Refere-se ao Imperador Marco Aurélio.

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Sob Governo do Imperador Cômodo (de 180 a 192 d.C.), a História Eclesiástica porta a nossa segunda referência que merece destaque: o possível decreto senatorial nos anos 80 do séc. II d.C. Tratando de um caso específico que acometeu Apolônio o Apologista69, Eusébio nos descreve a situação: [...] no reinado de Cômodo, nossa sorte havia se tornado mais branda, pois a paz pela graça de Deus veio sobre as Igrejas ao longo de todo o mundo. Quando, igualmente, a palavra da salvação estava guiando cada alma de cada raça da humanidade em direção à adoração devota do Deus do universo, de modo que agora muitos daqueles notáveis por sua riqueza e família, com todos seus familiares e seus relativos, tornavam-se em direção à própria salvação. Agora isso, claro, era insuportável para o demônio que odeia Deus e que é invejoso por natureza, e assim ele novamente despojou–se para a batalha, inventando vários esquemas contra nós. Na cidade de Roma ele trouxe Apolônio, um homem celebrado naquele tempo entre os fiéis por sua educação e filosofia, ao tribunal, instigando um de seus servos, adequado a esse propósito, para acusar o homem. [...] Mas o mártir, muito amado por Deus, quando o juiz seriamente suplicou e implorou a ele que fizesse uma defesa de si mesmo perante o Senado, apresentou perante todos uma defesa da fé muito eloquente pela qual ele estava sendo martirizado, e ele foi sentenciado a morte por decapitação, como se por decreto do Senado... (EUSÉBIO PÂNFILO, História Eclesiástica, V, 21, grifo nosso).

Torna-se pernicioso, portanto, generalizar o relato como algo que englobe todos os cristãos. Mais ainda, por se tratar de um acontecimento em Roma, a capital. Um viés plausível, que se torna passível de ser abordado, é o defendido por Geoffrey Ernest de Sainte Croix (2006); em análise em seu capítulo intitulado “Porque eram os cristãos primitivos perseguidos?”70, o autor levanta três etapas, tratando-se do âmbito jurídico, que são as mais recorrentes e de maior nexo: a) Qual era a natureza das acusações oficiais? b) Perante quem, e de acordo com qual forma de processo legal (se é que havia algum) os cristãos eram julgados? c) Qual era o fundamento legal para as acusações? Em a, o autor expõe que, de 112 d.C. (talvez anteriormente, a partir de 64 d.C.), a acusação era simplesmente o fato de “ser cristão” (STE. CROIX, 2006, p. 110). Eles eram punidos pelo nome cristão, o nomen Christianum. Como observamos em Plínio o Jovem,

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É apontado como senador romano, na História Eclesiástica e no Martirológio Romano. Foi denunciado como cristão por um de seus escravos, sendo posteriormente decapitado. Sua morte possui controvérsias de data, sendo calculada por volta de 18 de abril, sem especificação de ano. Ver: EUSEBIUS PAMPHILI. Ecclesiastical History: Books 1–5. Washington: Catholic University of America, 1953. V, 21; THE ROMAN MARTIROLOGY. Publicado sob ordem do Papa Gregório XIII. Revisado pelo Papa Urbano VIII e Papa Clemente X. Tradução do latim para o inglês do Arcebispo de Baltimore. Baltimore: John Murphy Company, 1916. p. 109. 70 STE. CROIX, G. E. M. de. Christian Persecution, Martyrdom, & Orthodoxy. Oxford: University Press, 2006. p. 105–152.

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denúncias desse tipo são normais e, para redimir-se das mesmas, basta renunciar a Cristo. Outra acusação bem presente seria a falta de culto ao Imperador por parte dos cristãos; de Sainte Croix (2006, p. 112) afirma que sim, tais atribuições eram presentes; porém, por outro lado, o pedido de sacrifício aos deuses era mais legitimador – e sequer era requisitado que necessariamente deveriam ser feitos especificamente aos deuses romanos. Corrobora tais afirmações Tertuliano em cerca de 197 d.C., quando expressa: Vocês dizem que somos ateus, e que não seremos a custo de um sacrifício para a vida dos Imperadores; e se a primeira afirmação é verdadeira, a consequência é justa, pois se nós não oferecermos aos deuses para nós mesmos, é improvável que façamo-lo por outros. É por conta disso, portanto, que somos condenados como culpados de sacrilégio e traição; isso eu tomo como o artigo principal, e pode ser visto como a soma das acusações contra nós... (TERTULIANO, Apologia, X, 1–7, grifo nosso).

Percebe-se que as punições seguem uma ordem lógica: primeiramente, o acusado era levado perante julgamento pelo nomen Christianum; em seguida, o ato que comprovaria se o mesmo era um cristão seria a sua recusa a prestar sacrifícios para os deuses, ou, um culto ao Imperador. Vê-se, portanto, que acusar um cristão pelo seu nome – se o mesmo apresentasse uma fé inabalável – acarretaria posteriormente uma condenação assegurada. Como expõe Robin Lane Fox (2006, p. 782), o mero fato de se querer a propriedade – ou um trabalho – que fosse de um cristão era suficiente para que tipos de acusações aleatórias surgissem. Adentrando os pontos b e c, a forma de processo legal se evidencia em um modelo vago, intitulado cognitio extra ordinem; vago, pois, recaía em um processo que abarcava diversos tipos de atos considerados criminosos – crimes do “homem comum”, diferentes daqueles dos homens que possuíam mais propriedades –, como furtos, entre outros. Sob sua iurisdictio – jurisdição –, o Governador de província possuía o poder de cognitio – examinar, inquirir, investigar –, algo que se relacionava ao seu exercício do imperium – autoridade, comando, Governo. Dessa maneira, fazia-se desnecessário que o processo judicial percorresse primeiramente a província para ser finalmente determinado na capital, Roma; o Governador possuía autoridade suficiente para resolvê-lo sob seu território, devido ao seu poder de coercitio – direito de punir (STE. CROIX, 2006, p. 114–115). A defesa de Geoffrey de Sainte Croix (2005, p. 115), após exposição da forma processual, é a de que perceber os procedimentos contra os cristãos como “medidas policiais” é errôneo, pois os julgamentos em questão não eram processos que se resumiam em pura coercitio, sendo na realidade processos legais apropriados, que envolviam o exercício da iurisdictio em seu sentido completo. A forma se dava não por um método inquisitivo, mas acusativo; o acusador praticamente conduzia o processo ante o tribunal, uma vez que deveria

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submeter uma denúncia formal para que o governador tomasse frente perante a alegação, com o delator correndo o risco também de ser punido por calúnia, caso estivesse incorreto. Além do mais, como percebemos em exposições anteriores neste tópico, os governadores não procuravam por acusar cristãos aleatoriamente ou sequer enviavam autoridades à caça dos mesmos; pelo contrário, quando trazidos perante julgamento, tentavam persuadi-los de negar o nomen Christianum. Como aponta Lane Fox (2006, p. 775), os governadores, dentro de seus próprios limites, tentavam se comprometer a dar uma chance aos cristãos. Se um cristão se recusava a comer carne sacrificial, não poderia, ao menos, acender um incenso em honra aos deuses? Ou, por outro lado, sacrificar para o Imperador, que era tratado como uma divindade irascível? Exemplificamos o atestado na Segunda Apologia por Justino Mártir, direcionada ao Imperador Antonino Pio, que data de 150 a 160 d.C., quando narra a história de uma mulher convertida ao cristianismo, que tenta em seguida convencer seu marido da fé em Cristo e, percebendo que o mesmo não aceitaria o proposto, pede o divórcio; seu marido a acusa de ser cristã e ela solicita ao Imperador que primeiramente concedesse tempo para organizar o assunto pendente do divórcio para depois arquitetar sua defesa, sendo assim atendida por ele em seu pedido; após a separação, não podendo ser mais atingida, o ex-marido direciona suas acusações ao professor que ensinou-a na doutrina Cristã, Ptolomeu: E seu antigo marido, uma vez que não estava mais apto a processá-la, dirigiu seus assaltos contra um homem, Ptolomeu, o qual Úrbico71 puniu, e que havia sido professor dela nas doutrinas Cristãs. E ele o fez da seguinte maneira. Persuadiu um centurião [...] a levar Ptolomeu e interroga-lo nesse único ponto: se ele era um Cristão? E Ptolomeu, sendo um amante da verdade, e não de uma traiçoeira ou falsa disposição, quando confessou-se Cristão, foi sujeito pelo centurião, e por um bom tempo punido na prisão. E, por último, quando o homem foi até Úrbico, foi perguntado uma questão apenas: se ele era um Cristão? E novamente, sendo consciente de seu dever, e da nobreza do mesmo através do ensinamento de Cristo, confessou seu discipulado na virtude divina (JUSTINO MÁRTIR, Segunda Apologia, II, 22–32, grifo nosso).

Ptolomeu é, consequentemente, condenado à morte. De Sainte Croix (2006, p. 123) responde, enfim, à própria pergunta “Qual era o fundamento legal das acusações contra os Cristãos?”, dizendo que sob o processo de cognitio nenhum fundamento era necessário além de um promotor, uma acusação de cristianismo e um Governador disposto a punir aquela acusação. Percebemos, portanto, que o nomen Christianum por si só abarcava diversos fatores: não prestar culto aos deuses tradicionais, não oferecer sacrifícios aos Imperadores, não respeitar o mos

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Governador da Britânia romana entre 139 a 142 d.C.

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maiorum. Negar o nome de Cristo significava negar tais elementos e, assim sendo, livrar-se da acusação. Após o exposto adentramos, nesta ocasião, o debate apontado brevemente na nota 54 deste trabalho, contrapondo dois autores: Timothy David Barnes e William Hugh Clifford Frend. Barnes (1968), em um artigo intitulado “Legislação contra os Cristãos”72, relata certos desafetos de Imperadores dos séculos passados ao cristianismo, anteriores à época de produção da História Eclesiástica, de Eusébio Pânfilo, e da História Sacra, de Sulpício Severo (ca. 363 – ca. 425 d.C.)73. Sua hipótese é de que as atestações produzidas por esses dois autores são extremamente duvidosas e carecem de confirmações em outras fontes; assim sendo, julga-as como falsas ou intencionalmente modificadas para legitimar as perseguições dos pagãos contra os cristãos nos séculos passados. Algumas dessas atestações já foram expostas em nosso trabalho, por intermédio de Eusébio Pânfilo; apontamos, contudo, para teor de complemento, uma de Sulpício Severo: Então, após um intervalo, Domiciano, o filho de Vespasiano, perseguiu os Cristãos. Nessa data, ele baniu João o Apóstolo e Evangelista à ilha de Patmos. [...] E sem grande intervalo lá em seguida ocorreu a terceira perseguição sob Trajano. Mas ele, quando após tortura e trasfego encontrou nada nos Cristãos digno de morte ou punição, proibiu qualquer crueldade a ser imposta contra eles (SULPÍCIO SEVERO, História Sacra II, XXXI, 1–7).

De acordo com o autor, as constatações de Sulpício claramente não possuem conhecimento de nenhuma lei ou édito específicos contra os cristãos. A qualidade de suas inferências e de sua visão histórica podem ser presenciadas meramente por deduzir que o cristianismo era ilegal. Como expomos em Plínio o Jovem, nada demonstra que “tortura e trasfego” ocorreu, apenas a confirmação por parte do Imperador Trajano de que os mesmos não deveriam ser perseguidos e poderiam ser liberados caso negassem o nome de Cristo. Em seguida, tratando-se da passagem que citamos de Melitão, demonstrada por Eusébio, afirma que Melitão constata que Domiciano perseguiu os cristãos, porém, não apresenta mais detalhes sobre os decretos (BARNES, 1968, p. 35). Estreitando o debate para nosso recorte – ou seja, o período de Governo de Septímio Severo –, a conclusão do autor sobre tais éditos se mostra presente: há uma dificuldade em 72

BARNES, T. D. Legislation Against the Christians. The Journal of Roman Studies, Oxford, vol. 58, parts 1 and 2, p. 32–50, 1968. 73 Sulpício Severo foi advogado em Bordéus (cidade situada atualmente no sul da França), posteriormente convertendo-se ao ascetismo martiniano – que deriva da prática de São Martinho de Tours. Foi responsável por redigir biografias sobre São Martinho, além de ser o autor da Crônica, ou História Sacra, que conta a história sagrada desde a criação do mundo até seu tempo. Ver: FONTAINE, J. Sulpício Severo. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 1317–1318.

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aceitar o provável decreto de Septímio como histórico. Se cristãos e judeus estão em posições semelhantes e converter-se a essas religiões é ilegal, então simplesmente ser cristão de nascimento não é ilegal e o cristianismo por si só não é crime. Porém, não se encontram atestações em nenhum escritor cristão de que essa posição legal dos mesmos existe (BARNES, 1968, p. 41). Como vimos nas diversas fontes demonstradas, as condenações continuaram exclusivamente por eles serem cristãos. Prosseguindo sua exposição, Barnes (1968, p. 48) demonstra que após a restrição imposta por Trajano, o cristianismo ainda era um crime categorizado de forma especial: enquanto todos os outros criminosos, quando condenados, eram punidos pelo que eles fizeram no passado, os cristãos eram penalizados pelo que eram no presente, e, apesar disso, até o último momento poderiam ser perdoados, desde que apostatassem. Sob outra perspectiva, William Frend (1974), em artigo nomeado como “Questões Pendentes Relacionadas aos Cristãos e ao Império Romano na Era dos Severos”74, traz à tona algumas explanações sobre as perseguições sob Governo de Septímio Severo e como foram percebidas por alguns escritores cristãos de épocas subsequentes e contemporâneas ao Governo. O autor reporta que, para um pagão – o autor cita o médico Galeno – recordando eventos da era dos Severos não havia nada incongruente em associar judeus e cristãos como membros de uma fé semelhante, evocando, dessa forma, atitudes similares da parte dos Imperadores – e Governadores – acerca do que era passível de punição a essas seitas, independentemente de um ser religio licita – judaísmo era lícito – e a outra não (FREND, 1974, p. 335). Tertuliano, em seu escrito denominado Contra Escapula, manuscrito este que é direcionado a um Procônsul, diz: Pois não é a sua comissão simplesmente condenar aqueles que confessam sua culpa, e entregar à tortura aqueles que negam? Você vê, portanto, como vocês trespassam a si mesmos contra suas instruções de espremer do confessor uma negação. É, na verdade, reconhecendo a nossa inocência que vocês recusam a condenar-nos de uma vez assim que confessamos (TERTULIANO, Contra Escápula, IV, 3–6).

Em análise dessa passagem, Frend (1974, p. 336) demonstra que tais favores em relação aos cristãos parecem desenvolver-se sob Severo aos fins de seu Governo, quando o mesmo estava longe de Roma, ocupado com suas tentativas de reconquistar as terras baixas da Escócia. Antes disso, cristãos eram sujeitos a sérios ataques por multidões e Governadores de província. Seguindo sua explanação, o autor indica que os ataques no período Severiano eram direcionados principalmente contra as autoridades pertencentes ao que ele denomina como 74

FREND, W. H. C. Open Questions Concerning the Christians and the Roman Empire in the Age of the Severi. Journal of Theological Studies, Oxford, vol. XXV, part 2, p. 333–351 October 1974.

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“movimento Cristão”; vários catecúmenos são martirizados nesse momento. A situação se diferencia, portanto, por colocar seus alvos primários como os líderes cristãos. Contudo, as perseguições no período de Septímio Severo, se não se confirmam como antes pelos historiadores de gerações passadas como uma certeza – Theodor Mommsen, J. K. Neumann e Henri Gregoire são alguns dos nomes citados pelo autor –, podem ainda ser lembradas como uma questão pendente, e de fato, se compreendidas como uma resposta à pressão de várias partes do Império, uma probabilidade (FREND, 1974, p. 338, 349). Frend (1965, p. 258) observa, além do mais, que torna-se interessante observar como muitas dessas denúncias de cristãos entre 150 a 200 d.C. foram feitas por um membro da própria família do convertido, por sentirem a coesão da vida familiar ameaçada. Sem sujeitar-nos completamente à essa discussão sobre haver uma legislação contra os cristãos ou não, qual ponto comum é encontrado nessa exposição? Percebemos que, independente de tal, cristãos foram denunciados por diversos motivos. L. F. Janssen (1979) em seu texto denominado “‘Superstitio’ e a Perseguição aos Cristãos”75 nos traz a conexão desejada: a superstitio – superstição. Em sua exposição, o autor percebe que muito esforço foi aplicado no que concerne à parte legal da discussão, tendo como ponto de partida o institutum Neronianum. Envereda-se, contudo, em outra direção: o lado religioso, especificamente a manifestação das cerimônias religiosas. A exatidão das cerimônias era observada atenciosamente e, qualquer forma de superstitio que se manifestasse em público e atraísse um número considerável de seguidores era considerada como uma séria ofensa aos deuses romanos e, consequentemente, um ataque direto ao Império (JANSSEN, 1979, p. 131, 136). Superstitio era, nas palavras do mesmo, como uma “doença infecciosa”, que espalhavase mais e mais; por meio de sua própria forma contagiosa, tornou-se um verdadeiro risco à humanidade. Esse tipo de teor trouxe, como exemplo, a descrição de Plínio o Jovem (Cartas, X, 96, 9), em que o cristianismo é visto como um perigoso contagio – infecção, influente –, que espalhou-se por todas as vilas e distritos rurais de sua província, trazendo consigo a deserção infeliz dos templos e dos ritos sagrados (JANSSEN, 1979, p. 138). Continuando sua argumentação, Janssen (1979, p. 150, 153) demonstra que a religio possuía papel principal na parte oficial da magistratura romana, enquanto que a superstitio deveria ser combatida como um inimigo do Império. Superstitio significava, em relação à cives – cidadania –, sujeitar o ato de bem comum em prol do indivíduo. Assim sendo, os cristãos em JANSSEN, L. F. ‘Superstitio’ and the Persecution of the Christians. Vigiliae Christianae, Leiden, v. 33, n. 2, p. 131–159, jun. 1979. 75

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sua ligação com o Império não possuíam vinculação real; a vida e alma de um cristão não pertenciam ao Imperador, mas a Cristo. Eles eram, verdadeiramente, cristãos, não romanos. Ao negar os cultos e sacrifícios aos deuses romanos, repudiando sua existência, os cristãos recusavam o cerne da cidadania romana; ao professar Cristo como seu guia, eles renunciam a participação no Império e, conseguinte, tornam-se inimigos da res publica – república. A crença cristã era, certamente, uma superstitio autêntica: prometia felicidade eterna e a participação em um Reino dos Céus aos seus seguidores, se eles decidissem seguir Jesus; os governadores terrenos pereceriam perante o fogo e espada, e apenas aqueles que colocassem sua fé em Cristo sobreviveriam, tornando-se superstes – sobreviventes. No fim dos tempos, Jesus retornaria à Terra para fundar seu eterno reino de paz. Suetônio, em seu manuscrito Vida dos Doze Césares, em um tópico que descreve o Governo de Nero, possui uma passagem que ratifica o que Janssen intenta demonstrar: Sob seu Governo, várias práticas foram reprovadas e sujeitas a restrições e muitas novas leis foram sancionadas. [...] Punições foram impostas contra os Cristãos – seguidores de uma nova e perigosa superstição (SUETÔNIO, Vida dos Doze Césares, Nero, 16, 2, grifo nosso).

Em latim, “perigosa superstição” consta como malefica superstitio. O que ligava a superstitio aos cristãos eram as acusações de prática de magia – como já demonstramos na discussão da obra de Wypustek no tópico 1.3 –; tais atos foram desde um longo passado reprovados e punidos como ofensas ao Império, principalmente quando a prática de profetizar a morte era direcionada à família imperial e ao Imperador (JANSSEN, 1979, p. 157).76 Concordamos, portanto, com o ponto comum da superstitio que permeia os trabalhos apresentados. Como conclui-se pelo argumento de Sainte Croix (2006, p. 133), não eram as crenças positivas e as práticas dos cristãos que trouxeram alvoroço e hostilidade romana, mas, sobretudo, os elementos negativos em sua religião: sua total recusa de cultuar os deuses além do deles. Crê-se, logo, que os principais motivos do Governo, na totalidade temporal que abarca as perseguições, era principalmente religioso, de acordo com o conceito ancestral de religio; religião, para os romanos, estava especialmente relacionada à ius divinum – lei divina –, que orientava as leis estatais em relação a assuntos sagrados, os quais preservavam a pax deorum –

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Dion Cássio (História Romana, LII, 36, 2) relata, por exemplo, o que Mecenas diz ao Imperador Otávio Augusto: “Profetizar, para se ter certeza, é uma arte necessária, e você deveria de qualquer forma indicar alguns homens para serem adivinhos e áugures, para os quais aqueles que querem consulta-los em qualquer assunto recorrerão; mas de forma alguma devem haver praticantes da magia. Pois tais homens, dizendo a verdade às vezes, mas geralmente mentiras, frequentemente encorajam muitos a tentarem revoluções.”

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paz dos deuses – que garantiriam as cerimônias apropriadas. Seus grandes valores vêm, portanto, da força da tradição (STE. CROIX, 2006, p. 138, 141).

2.1.1. Os mártires e a crescente polêmica cristã Tertuliano, em sua Apologia (XLII, 2–4), demonstra que os cristãos não se diferenciavam por serem um grupo separatista, ou revolucionário; sequer vestiam roupas e utilizavam mobílias diferentes. Viviam como os outros, participando das mesmas necessidades. Discorrendo-se do nível arqueológico, por exemplo, Barbara Borg (2013), em seu livro “Crise e Ambição: Tumbas e costumes funerários na Roma do Terceiro Século d.C.”77, dissertando sobre tumbas subterrâneas no Império Romano dos primeiros séculos em tópico denominado “Tumbas subterrâneas”78 – focando principalmente no III d.C. –, explicita que diferenciar as crenças por intermédio do que era representado nas tumbas torna-se improvável. Após vasta análise e vários exemplos, conclui que, em um mesmo espaço judeus, cristãos e pagãos eram enterrados, sem distinções aparentes dentre os sarcófagos. Ao contrário do que se pensa sobre esse constante conflito entre cristãos e outros, tanto em vida quanto no post mortem, a necessidade prática geralmente delimitava a resposta final. Como exposto no tópico passado, a tentativa de persuadir o réu a negar sua fé e, assim, não ser sentenciado, era algo recorrente. Entretanto, ao falarmos de martírios e suas repercussões, tal proposta parece destoar-se por um motivo simples: o ato voluntário. Em Cartago, a 17 de julho de 180 d.C., cristãos provenientes de Scilla, uma cidade do norte da África, são trazidos a julgamento perante o Procônsul Saturnino, durante o consulado de Presêncio e Claudiano. O relato é retirado da Paixão dos Mártires Scillitanos: [...] foram postos no pretório Esperato, Narzálo, Citino, Donata, Segunda e Véstia. Saturnino, o Proconsul, disse: Vocês podem conseguir a indulgência de nosso senhor o Imperador, se retornarem a uma mente sã. Esperato diz: Nós nunca fizemos mal, nós não cedemos ao errado, nós nunca dissemos mal, mas quando maltratados nós agradecemos; porque nós damos atenção ao nosso Imperador. Saturnino, o Proconsul, disse: Nós também somos religiosos, e nossa religião é simples, e nós juramos pelo gênio do Imperador, e rezamos por seu bem-estar, como vocês também deveriam fazer [...] Citino diz: Não tememos a nenhum outro, salvo apenas nosso Senhor Deus, que está nos céus. Saturnino o Proconsul disse: Vocês persistem em serem Cristãos? Esperato disse: Eu sou um Cristão. E, com ele, todos concordaram. Saturnino o Proconsul leu em voz alta o decreto da tabuinha: [...] tendo confessado que eles vivem de acordo com a seita Cristã, mesmo após terem sido oferecidos 77

BORG, Barbara. Crisis & Ambition: Tombs and burial customs in Third-Century CE Rome. New York: Oxford University Press, 2013. 78 BORG, Barbara. Underground tombs. In: Op. Cit., p. 59–122.

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oportunidade de retornar ao costume dos Romanos tendo obstinadamente persistido, é determinado que sejam sujeitos à espada. E assim todos eles foram coroados com o martírio; e eles reinam com o Pai, Filho e Espírito Santo, para sempre79 [...] (PAIXÃO DOS MÁRTIRES SCILLITANOS, 2–10; 21; 25–26; 33–36; 43–44, grifo nosso).

A propagação e as conversões ao cristianismo são feitas em uma era de perseguição. Os letrados, autoridades na Igreja, diziam que no céu as recompensas para se morrer virgem eram sessenta vezes maiores que a morte de um cristão comum; entretanto, com maior grandiosidade, o mártir possuía recompensa cem vezes maior, suprema a todas. A morte dos cristãos era idealizada em seu ápice pelo mártir, uma forma de “segundo batismo” que obliterava todos os pecados prévios e assegurava um lugar imediato no céu (FOX, 2006, p. 771). Como constata Geoffrey de Sainte Croix (2006, p. 129), eventos que podem ter criado um espaço de antagonismo entre pagãos e cristãos são mais aparentes do que tendemos a supor: são eles os tais “martírios voluntários”. Mártires não necessitavam esperar pelos atrasos da parúsia – segunda vinda de Jesus Cristo –, os intervalos que marcavam o aprendizado da doutrina e suas pequenas correções; eles eram rapidamente direcionados a Cristo e se tornavam “companheiros do Senhor” (FOX, 2006, p. 802). Possuímos, portanto, martírios que se alastravam e, certamente, fomentavam a perseguição aos cristãos. Ao invés de seguir com generalizações, verifica-se que, se por um lado tal prática parecia ser encorajada, por outro era reprovada. Presente também nas seitas ortodoxas, esta prática era desestimulada por parte dos chefes da Igreja, negando aos seguidores inclusive o direito de serem lembrados como tais. Mesmo assim, os relatos transparecem um vasto número de voluntários e, apesar das reprovações feitas pelos bispos, recebiam grande honra como mártires e eram vistos pela massa de fiéis com amplo respeito (SAINTE CROIX, 2006, p. 130). Ser referido ao sacrifício de Jesus Cristo, acima de tudo, torna-se o principal motivo. Vemos, por exemplo, o martírio de Policarpo, em cerca de 155 d.C., um dos mais reconhecidos e famosos da História da Igreja, que demonstra similaridade à Paixão de Cristo; Policarpo, após ser denunciado por seu servo e, posteriormente, capturado, recusa negar seu cristianismo e é trazido à cidade, ao anfiteatro. Recebe ameaças do Procônsul de ser jogado às bestas e de ser queimado. Resistindo a ambas, acaba por ser condenado ao fogo: [...] E enquanto a chama ardia em grande fúria, nós, que pudemos presenciar isto, contemplamos um grande milagre, e preservamo-lo para podermos reporta-lo a outros o que aconteceu. Pois o fogo, modelando-se em forma de 79

Observa-se que a oração final desse excerto foi adicionada em tempos futuros ao do momento em que os mártires acontecem; referir-se ao “Pai, Filho e Espírito Santo” torna-se comum apenas após o combate ao arianismo sobre a consubstancialidade divina, ratificado no Concílio de Nicéia em 325 d.C.

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arco, como a vela de uma nau quando preenchida pelo vento, envolveu como um círculo o corpo do mártir. E ele apareceu não como carne que é queimada, mas como pão que é assado, ou como ouro e prata brilhando em uma fornalha. [...] No decorrer, quando aqueles homens perversos perceberam que seu corpo não poderia ser consumido pelo fogo, comandaram a um executor que se aproximasse e perfurasse-o com uma adaga. E ao fazê-lo, do ferimento saiu uma pomba, e uma grande quantidade de sangue, extinguindo o fogo; e todas as pessoas presentes imaginaram que deveria haver uma diferença entre os descrentes e os eleitos [...] (MARTÍRIO DE POLICARPO, XV, 2–7; XVI, 1– 5, grifo nosso).

Em análise detalhada sobre o martírio de Policarpo, Leonard L. Thompson (2002), em seu artigo intitulado “O Martírio de Policarpo: Morte nos Jogos Romanos”80, traz luz às relações entre o martírio deste cristão e sua exposição pública. Com a seguinte pergunta, encerra sua introdução: em resumo, apesar dos encontros de cristãos e romanos na arena se apresentarem como um enfrentamento, tal arranjo não contribuiu para a formação da autocompreensão do Cristão? (THOMPSON, 2002, p. 28). Espalhando por diversas áreas o modelo arquitetônico romano, assegurar a forma de entretenimento que se via em Roma, como no Anfiteatro Flaviano, torna-se uma prática que leva a todos os cidadãos e pessoas sujeitas ao Império os famosos jogos sangrentos – lutas gladiatórias, batalhas contra bestas, exibição de execuções, dentre outros. Os jogos, de acordo com Thompson (2002, p. 31), eram poderosos rituais sociais para promulgar e manter valores e instituições fundamentais ao Império Romano. O crime dos cristãos, de acordo com os relatos que apresentamos, se encaixa com o grito de fúria da multidão no Martírio de Policarpo: eles eram tidos como ateístas, pois, recusavamse a oferecer sacrifícios aos deuses (THOMPSON, 2002, p. 35). Ou, como exclama a própria multidão contra Policarpo: “Esse é o professor da Ásia, o pai dos Cristãos, o destruidor dos nossos Deuses, que ensina muitos a não oferecer culto nem sacrifício.” (MARTÍRIO DE POLICARPO, XII, 2). Pela perspectiva da Igreja, era importante que os martírios fossem vistos não como respostas a atos criminosos, mas apenas como rituais de passagem. Diversos mártires e suas mortes, com o passar dos anos, compõem os martirológios que são utilizados para doutrinar e exemplificar a forma de comportamento de um mártir. Como expõe Thompson (2002, p. 41), tais documentos serviam para demonstrar como se responder às perguntas, quais gestos fazer, quais expressões faciais devem ser utilizadas, e como, principalmente, asseverar o sofrimento como normativo, e não anormal. Por consequência, percebemos que isso geraria certamente

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THOMPSON, Leonard L. The Martyrdom of Polycarp: Death in the Roman Games. The Journal of Religion, v. 82, n. 1, p. 27–52, jan. 2002.

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empatia de parte dos que presenciavam o ato; constatar a nobreza e valentia de um mártir poderia, assim, inverter a intenção de criar um exemplo ao exibir a morte de um criminoso. Torna-se ambíguo o sentido de um lado vitorioso: tanto o Império demonstraria o que acontece com aqueles que desafiam o mos maiorum, quanto os que observam-no se sentiriam instigados a partilhar dos eleitos da Igreja. Como exemplo de tais consequências, possuímos a análise da catacumba dedicada ao mártir Novaciano (ca. 200 – ca. 258 d.C.), na qual cria-se primeiramente o sarcófago central do mártir, e segue-se posteriormente a construção de 1000 loculi – compartimentos de formato simples para enterro, cavados nas paredes das catacumbas – para comportar outros cristãos que gostariam de ali serem enterrados. Com diversos outros exemplos – Cripta dos Papas, Hipogeu de Calepódio, dentre outros –, Barbara Borg (2013, p. 76–77) mostra que os mártires possuíam um poder de agregação e atração enormes, tornando-se exemplos a serem seguidos em vida e criando também um espaço que atraía inúmeros cristãos para perto de si em sua morte, pela santidade do solo em que eram enterrados. Notamos, isto posto, que esses homens passam a simbolizar uma sacralidade que perpetuavam com o modelo máximo da disposição imediata de morrer pelo nome de Deus; transformam-se, consequentemente, numa das primeiras formas81 do cristianismo de atrair fiéis. Imaginemos, portanto, o que um Governador que tomasse o caso de um cristão com intenções de morrer deveria enfrentar: a sua irracionalidade82 – ao estar determinado a morrer –, a incompetência burocrática daqueles que iniciaram a denúncia, a falta de testemunhas e informações, e, como exposto acima, o risco de que o espetáculo se tornasse atrativo de forma negativa à plateia. No caso específico de Policarpo, um homem de 86 anos83, que negou – apesar de ter tido chances – a redenção proposta pelo Governador, deixa a autoridade sem outra alternativa além de condená-lo à arena. Policarpo torna-se, então, a imagem da disputa de poder daquela sociedade. A lei e a ordem não seriam restauradas enquanto ele não respondesse por seu crime, reproduzindo, ao mesmo tempo, terror e penitência ante a plateia. Por essa razão, o mesmo não poderia ser morto imediatamente; deveria, antes, ser submetido a ritos expiatórios por meio dos quais faria reparações e compensações por suas transgressões. Tais ritos, dessa

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Apesar disso, o martírio era uma prática comum já dentre os hebreus, antes da vinda de Jesus Cristo. Termo de Thompson. Op. Cit., p. 40. 83 Policarpo, de acordo com o relato, viveu 86 anos como cristão em Esmirna. Por quais motivos o mesmo não foi martirizado antes? Porque, subitamente, um levante furioso perseguiu-o e fez com que o descrito acontecesse? Thompson expõe que, apesar de diversas análises, o único documento sobre seu martírio é este e, dessa forma, sabermos qual o real motivo torna-se impossibilitado. Ver: THOMPSON, Op. Cit., p. 34. 82

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forma, só terminariam quando apresentados ao público as marcas de tortura e morte que consolidassem o julgamento justo do Império Romano (THOMPSON, 2002, p. 40). Temos, em vista disso, duas realidades ao expor a morte de um mártir: a primeira sendo a luta do mesmo contra as bestas, ou a execução pública, ou ser consumido pelo fogo; a segunda, de teor mais suprassensível, a disputa religiosa que era revelada nos próprios ferimentos daquele mártir, que a identidade inscrita nos mesmos aparentava. Leões, coerção e resistência promulgavam simultaneamente os mitos romanos e cristãos e seus ritos de identidade social e realidade cósmica (THOMPSON, 2002, p. 49). Possuímos, dessarte, um fato interessante: o Governador de província, ao ordenar a execução pública de Policarpo, em Esmirna, faz transparente o que é o cristianismo e, ao mesmo tempo, expõe-no negativamente como uma superstição anti-romana, perante o povo da cidade. Os cristãos, por outro lado, precisariam ver um de seus líderes morrendo em forma de espetáculo, o que resultaria nos mesmos enfatizando a perseguição no Império – descrita em Tertuliano, Justino Mártir, Clemente de Alexandria, Eusébio Pânfilo, dentre muitos outros – como maior do que ela realmente era. Em seguida, apesar de ser um resultado aparentemente imprevisível, tais execuções públicas tornam-se uma oportunidade de cristãos testemunharem sua própria fé (THOMPSON, 2002, p. 49). O cristianismo, de acordo com o Imperador Marco Aurélio (Meditações, XI, 3), torna-se conhecido por ser uma superstição irracional que busca a morte por “pura revolta”. Dessa maneira, a própria reencenação da história de Jesus Cristo possuía a parte do martírio destacada, consequentemente relegando a segundo plano o seu papel social como um mestre sábio e pregador da paz (THOMPSON, 2002, p. 50). Em suma, Policarpo foi executado em um tempo e lugar que celebrava valores romanos e a glória do Império Romano (THOMPSON, 2002, p. 34). Como constata Judith Perkins (1995, p. 12), a representação dos cristãos nas narrativas primitivas indica-os como uma comunidade de sofredores e perseguidos, que não apenas funcionou para consolidar uma ideia real do que acontecia, mas, permitiu também uma definição própria que culminaria no crescimento do cristianismo até sua institucionalização. A partir dos exemplos expostos, percebemos que o principal fator que interligava tais atos e interpretações do mesmo era a doutrina. Dependente de um pensamento filosófico, o que denominamos como doutrina cristã, nesse momento, ainda procurava por suas bases e relações com as formas de visibilidade e transmissibilidade que facilitariam sua propagação como religião. Diante disso, a independência de diversas seitas se fazia por intermédio da escrita de evangelhos que futuramente se tornam canônicos, e outros como apócrifos – consequentemente, heréticos. Esses escritos transmitem o essencial para se saber o que se deve fazer para ser/tornar-

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se um cristão pleno; além disso, possuímos os apelos por meio de apologias que intentam defender a fé em Cristo. Como exposto, morrer pelo nome de Cristo era, em primeiro lugar, uma questão de orgulho religioso e voluntariedade. Esses novos cultos, como propõe Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto (1997, p. 364), penetraram o mundo romano e marcaram a cena religiosa do séc. II e III d.C. por garantirem uma identidade coletiva a seus fiéis, que poderia ser reencenada em qualquer espaço, que dava respostas às inquietações sobre a ordem cósmica e natural e, principalmente, sanava as dúvidas sobre o além, pois, seus deuses, ao contrário dos deuses romanos tradicionais, possuíam poderes sobre todo o universo. Notamos, portanto, que isso certamente atrairia olhares de todas as partes, tanto de simpatizantes quanto de curiosos; curiosos, estes, que poderiam ser leigos, ou, no caso de Celso, filósofos que se interessaram pela forma como o cristianismo se manifestava e, principalmente, por como ele se instaurava como doutrina na mente de seus fiéis.

2.2.

Sistematização do debate: Celso como o primeiro dos polemistas

anticristãos Mediante nossa análise, explicitamos que a maior parte das acusações contra os cristãos, em um primeiro momento, veio de nível popular, baseando-se principalmente em rumores e comportamentos estranhos dessas seitas. Imoralidade, como denota Jeffrey Hargis (1999, p. 15), é o ponto que demarca as objeções sociais ao cristianismo; a opinião pública sobre os cristãos, certamente, era pouco informada. Uma reflexão filosófica, em vista disso, só surge com Celso na virada do séc. II para o III d.C., após uma breve pausa nas perseguições contra as seitas. A resposta de Celso é fruto de um sintoma ligado ao progresso dos seus oponentes; quando o cristianismo era apenas um grupo que tentava romper-se do judaísmo, não havia necessidade de uma oposição filosófica. Entretanto, no tempo em que Celso redige seu manifesto, é por consequência da crescente sofisticação intelectual e das manifestações missionárias desse culto. Além disso, mais preocupante ainda, era a tentativa de clamar direitos pela ancestralidade da cultura e filosofia pagã, ao dizerem que tais características eram provenientes de Moisés e seus ensinamentos. Esses processos, dessa forma, salientam de início uma apropriação cultural para, posteriormente, a partir de Constantino, a reivindicação do próprio Império Romano (HARGIS, 1999, p. 15–16).

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Primeiramente, o cristianismo difundiu-se em meio judeu e, sucessivamente, passa a abarcar também o meio pagão. Como demonstra Simon C. Mimouni (2009, p. 20), a maioria desses não judeus era simpatizante do judaísmo, e eram relativamente numerosos no Império Romano. O movimento cristão, dessa forma, perpassa por algumas dificuldades com a entrada desses pagãos, devido às suas diferentes tendências. Os conflitos iniciam-se, internamente, entre cristãos que entendem que apenas a crença no Messias é suficiente para a salvação; outros, estimam que a crença e a observância da Lei e no Messias eram necessárias (MIMOUNI, 2009, p. 21). Essas comunidades, em um primeiro momento, fazem parte do judaísmo, independente da presença de cristãos de origem grega; Mimouni (2009, p. 21) articula que falar de cristianismo, como religião constituída e aceita, posterior à segunda metade do séc. II d.C., é difícil. O cristianismo, por conseguinte, está ou no judaísmo, ou fora do judaísmo, mas, mantendo-se ligado a ele, de qualquer maneira. Por meio disso, temos uma progressiva marginalização das comunidades cristãs de origem judaica, em benefício das de origem pagã; estas últimas, portanto, é que constituirão sucessivamente a Grande Igreja (MIMOUNI, 2009, p. 22). O que implica, dessa maneira, a aderência, por exemplo, de gregos à nova seita? Junto a eles, uma carga de mitos e filosofia ancestrais os acompanhava; com aquele movimento messiânico, o qual precisava de mais do que boa vontade e evangelização para se propagar, o gnosticismo, de forma geral, traz propostas que disseminam ideias paralelas àquelas do que futuramente seria a Igreja Católica. O cristianismo, então, experimentava múltiplas correntes de pensamento que, devido à descoberta da Biblioteca de Nag Hammadi 84 em meados do séc. XIX, tornou-se mais evidente para estudiosos contemporâneos, por meio dos diversos textos que foram encontrados. As várias formas que Jesus é retratado pelos evangelhos apócrifos de alguns apóstolos e de Maria Madalena, aparecem para clarificar um lado obscurecido pela construção da ortodoxia da Igreja. Podemos observar nos textos que datam do séc. II d.C. em diante, que o uso de diversas correntes filosóficas recorria entre as várias seitas que futuramente seriam postuladas como heréticas.85 A Igreja Católica, portanto, passou por um processo de

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Coleção de textos de cunho gnóstico descobertos na região do Alto Egito, perto da cidade de Nag Hammadi, em 1945. Escritos em copta e grego, vários evangelhos não-canônicos compõem essa Biblioteca, como o Evangelho de Tomé, por exemplo. Podem ser encontrados nesses textos a influência primária do gnosticismo e do platonismo; junto a esses textos foi constatado, também, uma seção da República de Platão, em grego. 85 Na Introdução à Biblioteca de Nag Hammadi, James M. Robinson discute alguns fatores, como: há um debate entre os historiadores que estudam o gnosticismo, buscando entender se esse movimento caracteriza-se como algo interno ao cristianismo, ou, se possui uma ancestralidade anterior; elenca, também, a possibilidade de que os manuscritos de Nag Hammadi terem sido ali escondidos, em jarros, devido à chegada na região de forças romanas que haviam aderido à ortodoxia da Igreja Católica, após sua institucionalização. Ver: ROBINSON, James M. (org.) A Biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo: Madras, 2014. p. 16–38.

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formação que teve a opção de escolher a doutrina mais adequada ao seu método arrebatador; percebemos isso com a formação da Bíblia canônica e da exclusão de diversos outros textos. A entrada de novas correntes filosóficas serve, de certa forma, para atrair intelectuais e eruditos interessados; como notamos em Orígenes, por exemplo, a explicação sem questionamentos, puramente por meio da fé, não se encaixava àqueles que possuíam uma necessidade de explicação racional. É devido a isso, consequentemente, que um autor como Orígenes coloca em dúvida questões como a ressurreição da carne tal como se encontra após a morte. Debates desse tipo assinalaram o pensamento dos patrísticos e, consequentemente, caíram em intensas querelas no momento em que a Igreja torna-se religio licita, em Constantino, quando precisou definir suas diretrizes. Devemos notar, entretanto, que por mais que tais concepções possam ter sido relegadas à heresia e ao esquecimento, foram fundamentais para o processo de elaboração que influenciariam grandes nomes do IV e V séc. d.C., como Jerônimo de Estridão e Agostinho de Hipona, sendo o primeiro responsável pela vulgata – tradução para o latim da Bíblia – e o segundo pela Cidade de Deus, que particularizam o pensamento posterior, finalmente fundamentando um traço maior de originalidade para a filosofia cristã. Temos como exemplo, além de Orígenes, Clemente de Alexandria. Henny Fiskå Hägg (2010, p. 179), argumenta que Clemente escreve com um extenso conhecimento literário, tanto pagão quanto cristão. Ele é o patrístico que mais frequentemente cita autores não-cristãos; poetas gregos, dramaturgos, filósofos e historiadores são utilizados por ele. Ilustra seus pensamentos recorrendo a Homero, Platão, Heráclito, dentre outros; não há filósofo grego tão bem visto para ele quanto Platão, e isso percebe-se por meio das várias citações diretas de seu trabalho. É a partir da visão de Clemente que filosofia grega e lei judaica prostram-se como duas convenções paralelas, que preparam os gregos e os judeus, respectivamente, para a recepção da mais perfeita mensagem cristã, a filosofia verdadeira. Clemente, em seu Stromata – Miscelâneas –, escreve capítulos que se tornarão extremamente polêmicos com o passar dos anos, servindo também de base para a resposta do cristianismo frente a seus opositores; um breve excerto apresenta que: E tendo provado que a declaração do pensamento Helênico é iluminada completamente pela verdade, outorgado a nós pelas Escrituras, tomando-o de acordo com o sentido, provamos, para não dizer algo desagradável, que o roubo da verdade passou a eles. (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromata, VI, 2, 5–8, grifo nosso)

Com uma exposição detalhada, Clemente tenta provar que os gregos plagiaram-se a si mesmos e, também, tomaram seus pensamentos que eram tidos como originais das Sagradas

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Escrituras dos hebreus. É notório que tais afirmações seriam fortemente rechaçadas pelas diversas escolas filosóficas que clamavam, cada uma, suas próprias ideias. É à vista de todo o exposto que uma cogitação surge: Jesus Cristo veio como profeta e, ao ressuscitar, promete um retorno breve para separar os eleitos dos não-eleitos. Seus apóstolos, consequentemente, deveriam espalhar a palavra de Deus e conseguir fiéis a qualquer custo. A intensa expectativa daqueles que decidem aderir à sua doutrina se intensifica; porém, nada acontece. Os diversos grupos, portanto, interpretam o retorno de Jesus cada uma à sua maneira, algumas propagando ainda o apocalipse iminente e, outras, denotando que, enquanto aguardavam, deveriam refinar seus meios de pensar suas raízes judaicas, a vida de Jesus, o meio em que viviam e o que poderiam tirar de proveito do mesmo. Com o platonismo, o estoicismo, o epicurismo, dentre outras correntes, afinidades e aversões se mostram para formar as doutrinas cristãs; assim, cada viés filosófico fornece um traço que será adequado. Esse crescimento intelectual, portanto, marca uma forma de resposta que, de acordo com Jeffrey Hargis (1999, p. 20), aparece com Celso, que era um “polemista informado”, e que não se alicerçava em argumentos escandalosos e histórias sem fundamentos. Findada essa exposição sobre o contexto, temos, conseguinte, o discurso de Celso que, em contraste aos patrísticos, procura elencar fatos para provar que os cristãos estão errados, além de razões para retorná-los ao caminho que acredita ser correto. Seu tratado constrói-se, isto posto, como uma tentativa de reverter esse cenário que aparentava ser caótico, devido à falta de comprometimento desses cristãos com os costumes e observâncias religiosas do Império Romano.

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CAPÍTULO III

A apropriação cristã e a ameaça à Doutrina Verdadeira em Celso “Há muita diferença entre levarmos simplesmente o mundo em nós mesmos e conhece-lo. [...] Não creio que se possam considerar homens todos esses bípedes que caminham pelas ruas, simplesmente porque andam eretos ou levem nove meses para vir à luz. [...] muitos deles não passam de peixes ou de ovelhas, vermes ou sanguessugas, formigas ou vespas. Todos eles revelam possibilidades de chegar a ser homens, mas só quando vislumbram e aprendem a leva-las em parte à sua consciência é que se pode dizer que possuem uma...” HESSE, Herman. Demian. Com inúmeras apologias e clamores sobre qual(is) deus(es) havia(m) criado o Cosmos, quem possuía a verdade, qual a filosofia mais antiga, o cristianismo se destaca para, de seita dissidente, receber maior atenção do que breves passagens em diversos manuscritos. A partir de Celso, um exemplo mais claro de apropriação se faz evidente; o autor demonstra, por meio de seu discurso, que não há nada de novo sobre o messias daquela religião, ou as ideias perpetradas pela mesma; sequer sua mitologia possui originalidade. Porque, então, pessoas aderiam veementemente àquela seita e, inclusive, morriam por suas ideias? Um dos pontos centrais que escalonam o debate de Celso é a criação e seu criador, dentre noções fundamentais que são consequências desses dois itens; sendo assim, recorremos, de forma comparativa, à uma das fontes de paráfrase utilizadas pelo autor para fundamentar seu debate: o Timeu de Platão. Celso, como demonstramos, foi um platônico eclético; expomos, assim, a predominância do platonismo em sua ideia, sem deixar, entretanto, de utilizar-se de outras filosofias para reforçar seu intento, sendo basicamente o estoicismo, a qual também é trazida à tona. Em conjunto à essa comparação, contrapomos visões díspares contemporâneas à de Celso, de outros patrísticos. Faz-se necessário, ademais, afunilarmos o debate desse tópico para o que concerne o Demiurgo, pois, o mesmo é, para os platônicos, a divindade criadora e central à ordem do Cosmos; dessa maneira, perceber como o Deus cristão possui semelhanças e distinções em relação a ele é crucial, já que o ponto máximo das discussões permeia

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aquele/aquilo que emana de si para os humanos o que os faz distintos de outras criaturas: o logos86. Além de prestar-se a encontrar uma diretriz individual, com o intuito de manter-se em um sentido crido como correto e reto, alguns filósofos acabavam, também, por serem pontos de emanação de doutrinas que poderiam tanto transmitir ideias que perpassavam-se para os cidadãos – e não-cidadãos –, com consequência de manter o bem e a ordem de sua relativa sociedade, ou, de depreender-se de todo plano material e de quaisquer instituições e vieses criados pelo homem. A pluralidade de diretrizes foi presente desde a antiguidade grega, tanto quanto a partir do período em que tais escolas adentram a res publica romana. Entretanto, cada qual pregava a sua palavra verdadeira, o que acreditava-se ser o cerne da existência e o propósito do humano racional. Vemos, portanto, por intermédio de Celso, as ditas apoderações de partes que formariam algo que viria a ser tanto religião quanto filosofia: o cristianismo. Conseguinte, notamos que, além das afirmações de conservadorismo levantado por outros estudiosos, um outro fator se faz mais evidente. No campo prático, isso implicaria o risco para o ensino; a educação romana, que seria uma imitação dos ancestrais (MARROU, 1973, p. 368), passaria por profundas mudanças que remodelariam a forma de aprendizado e, como resultado, da própria percepção da cultura e das bases sociais que regiam o Império Romano.

3.1.

A necessidade de um discurso anticristão: dissensões e aproximações

acerca de algumas noções fundamentais

De fato, é absurdo que o trabalho de um artesão (geralmente o pior tipo de pessoa!) deva ser considerado um deus. O sábio Heráclito87 diz que “aqueles que idolatram imagens como deuses são tão tolos quanto os homens que conversam com as paredes.” (CELSO, Discurso Verdadeiro, I, 17-21).

Um dos traços mais marcantes do cristianismo primitivo era sua repulsa à idolatria de imagens. Tal prática, como observamos na passagem de Celso, era também abominada por parte dos filósofos, pois era irracional. Porém, diferentemente dos cristãos, os filósofos, 86

Compreendemos aqui logos no sentido filosófico, tanto como razão de um indivíduo, quanto como a ligação que mantém o Cosmos ordenado e perfeito. 87 Heráclito (ca. 540 – ca. 480 a.C.) foi um filósofo grego que reagiu contra a visão estabelecida de que a realidade do mundo é uma entidade única e permanente, com mudanças apenas superficiais. Pelo contrário, acreditava que o mundo está em um processo constante de modificação, um estado eterno de fluxo e conflito de opostos, ideia expressa por meio da conhecida frase “ninguém nunca pisa no mesmo rio duas vezes” e “tudo se move e nada permanece”. Foi contrário a alguns elementos da “religião popular” grega, como o culto a Dionísio, já que o mesmo emanava excesso e devassidão. Ver: HAZEL, John. Who’s who in the Greek World. London & New York: Routledge, 2002. p. 114.

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independentemente do que acreditassem – e escrevessem –, sabiam que realizar um culto, quando solicitado, não seria problema algum; e isso era o que importava (STE. CROIX, 2006, p. 137). Os embates propostos por Celso, como percebemos, intercalam dois pontos que se opõem: o que é racional e possui uma diretriz conforme um Cosmos ordenado, e o que não é, como um Caos desordenado. O Demiurgo, de acordo com o discurso de Timeu, garante ao humano a faculdade de expor corretamente uma ideia – até, de fato, de dissertar sobre os deuses e a criação –, que é o saber (PLATÃO, Timeu-Crítias, 106B, 11–14). De acordo com Rodolfo Lopes (in PLATÃO, 2011, p. 42), o ponto crucial para o Homem é a necessidade do mesmo aproximar-se o máximo possível da divindade, que é o arquétipo que o filósofo platônico tanto discorre sobre e deve aspirar. O Demiurgo, que cria o mundo como um ser dotado de razão, dá também origem aos deuses, responsáveis por nos prover, de acordo com Timeu, a alma que nos domina, incutindo a cada um de nós um daimon88, que habita no alto de nosso corpo e é encarregado de nos elevar até o nosso congênere no céu (PLATÃO, Timeu-Crítias, 90A, 4–9). Um dos aspectos que marcam o platonismo, portanto, é a razão; há o que é contra a razão e o que é a favor da mesma. Celso (Discurso Verdadeiro, VIII, 49–53), em seu texto, diz que “Como os estoicos, com os quais temos muito em comum, nós dizemos que “Deus” é um espírito, e como os Gregos mantemos que esse espírito [...] permeia todas as coisas e contém todas as coisas dentro de si mesmo”. O estoicismo ressalta a virtus – virtude – como o ápice do uso da razão, para saber utilizar-se dos julgamentos sobre as coisas, sempre almejando um juízo correto; o sábio, para os estoicos, é aquele que utiliza-se da reta razão, é virtuoso e não possui apego às paixões, que são contrárias à razão. Tanto o platonismo quanto o estoicismo percebem a filosofia como uma forma de ascensão e desprendimento das coisas mundanas, um ato de religar-se ao Demiurgo. Como primeira noção básica a ser analisada a partir do pressuposto do que é racional e irracional, vejamos o que Celso diz, a seguir, por exemplo, sobre a ressurreição dos corpos: Ele pode, como disse Heráclito, ser capaz de prover vida eterna para uma alma; mas o mesmo filósofo nota que “corpos deveriam ser dispostos como esterco, pois esterco eles são.” Quanto ao corpo – tão cheio de corrupção e outras formas de sujeiras – Deus não pôde (e não iria) fazê-lo eterno, já que isso é contrário à razão. Pois ele mesmo é o Logos – a razão por trás de tudo que existe, e ele não é hábil a fazer qualquer coisa que viole ou contradiga seu próprio caráter (CELSO, Discurso Verdadeiro, VI, 47–55, grifo nosso).

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No sentido grego do termo, são divindades que espelham sentimentos, relacionados àquele ou aquilo que está interligado. O daimon, ligado ao homem, influencia-o a viver como “bom” ou “mau”.

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Como nota Michael Bland Simmons (2002, p. 857–858), Celso acreditava sim em vida após a morte, porém, de maneira a demonstrar a imortalidade da alma – a qual poderia ser purificada mediante a filosofia, que libertava-a das corrupções corpóreas –, que após seu aprimoramento, poderia ver-se livre do corpo para escapar dos ciclos de ressurreição a fim de, assim, tornar-se novamente una com o Demiurgo, após a morte. O platonismo, portanto, ensina uma salvação final a partir e por intermédio desse corpo, mas nunca, como os cristãos acreditavam, do corpo. A ressurreição do corpo é, portanto, filosoficamente impossível. Percebemos, portanto, que o Deus cristão que ressuscita Jesus é, de acordo com Celso, contraditório e viola sua própria natureza. Celso (Discurso Verdadeiro, VII, 328–332) expõe que os cristãos de seu tempo acreditavam piamente que Jesus era a própria encarnação do logos de seu Deus, e que tal visão era tão ridícula quanto suas recordações de como o homem veio a existir. Que deus escolheria uma mudança como essa, de adentrar a carne mortal? Não é parte da essência da mortalidade a mudança, e da imortalidade a permanência sem alteração? Assim, é improvável que Deus desceu para a Terra, pois, se o fizesse, violaria uma alteração em sua própria natureza (CELSO, Discurso Verdadeiro, V, 60–66). Ele escreve ainda que: ...é impossível que Jesus levantou-se corpóreo dos mortos, pois seria impossível a Deus ter recebido de volta seu espírito uma vez que fosse corrompido ao entrar em contato com carne humana. [...] Pois é plenamente inviável que um corpo contendo a essência da própria divindade se pareceria com o de todo mundo. Mas eles de fato dizem isso? Não. Eles afirmam que o corpo de Jesus era como o do homem mais próximo, ou era pequeno, feio, e repugnante (CELSO, Discurso Verdadeiro, VIII, 61–65; 85–89).

Em uma explanação específica denominada “A Ressurreição do Corpo”89, Robert M. Grant (1948, p. 120) demonstra que a escolha ora pende para a visão da ressurreição da carne, ora para o viés helenístico do retorno em uma forma espiritual. Continuando sua exposição, Grant (1948, p. 122) afirma que qualquer fé que baseie-se em escatologia requer a crença em um triunfo futuro, e para um mestre – Jesus – do séc. I d.C. que habitou a Palestina, tal triunfo logicamente estaria associado a confiar em uma ressurreição, já que herdava essa tendência dos judeus, que acreditavam em um retorno de homens com um corpo semelhante ao angelical. Nesse assunto, a título de exemplo, o apóstolo Paulo enuncia que: ...A carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorruptibilidade. Eis que vos dou a conhecer um mistério: nem todos morremos, mas todos seremos transformados, num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final; sim, a trombeta tocará, e os mortos ressurgirão incorruptíveis, e nós seremos transformados. Com efeito, é necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este

89

GRANT, Robert M. The Resurrection of the Body. The Journal of Religion, Chicago, v. 28, n.2, p. 120–130, april 1948.

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ser mortal revista a imortalidade (BÍBLIA DE JERUSALÉM, Primeira Epístola aos Coríntios, 15, 50–53).

Deus, dessa maneira, trará a ressurreição de um corpo diferente daquele que morreu (GRANT, 1948, p. 123). Como Paulo mostra, será um corpo espiritual, ao contrário daquele corpo natural. Essa ressurreição, portanto, deve ser do corpo, mas, não necessariamente daqueles que foram deixados para trás. A partir do pensamento de Paulo e, também, de Jesus, não saímos das fronteiras do judaísmo. O exemplo mais importante para o apóstolo foi o próprio caso de Jesus e, particularmente esse evento marca a intervenção divina que muda a decisão de um juiz humano – Pôncio Pilatos –, fazendo assim evidente a característica da fé cristã que diferiria dos seus antepassados judaicos (GRANT, 1948, p. 124). Paulo descreve uma antítese entre espírito e corpo de tal forma que exclui-se a possibilidade de ressurreição da carne; “corpo” e “carne” são opostos e, para ele, corpo não significa algo material, mas, o princípio orgânico que faz um humano ser individual, que persiste todas as mudanças em substância a partir da qual ele realiza-se a si mesmo, como material ou não-material (GRANT, 1948, p. 124). Grant (1948, p. 123) analisa ainda os evangelhos de João, Marcos, Mateus, Lucas, dentre outros, percebendo que as concepções levadas à frente a partir da segunda metade do I séc. d.C. até o II séc. d.C. são interpretações errôneas dos patrísticos. Aos fins do II séc. d.C. a regra de fé da Igreja era excluir tais visões de ressurreição espiritual da catequese, já que os fiéis mais simples eram acostumados a pensar em termos mais materiais, fazendo triunfante à vista disso a ressurreição da carne, em oposição àquela visão influenciada pela filosofia clássica (GRANT, 1948, p. 128). Já na virada do I séc. d.C. para o II séc. d.C. observamos que Inácio de Antioquia (ca. 35 – ? d.C.)90 sinalizava essa concepção: Pois eu sei que após Sua ressurreição igualmente Ele ainda possuía carne, e eu acredito que Ele ainda possui. Quando, por exemplo, Ele veio àqueles que estavam com Pedro, Ele disse a eles, “Lancem mão, encostem em mim, e vejam que Eu não sou um espírito incorpóreo.” E imediatamente eles tocaramNo, e acreditaram, sendo convencidos mutuamente por Sua carne e espírito (INÁCIO DE ANTIOQUIA, Epístola aos Esmirniotas, III, 1–4).

Como escreve Grant (1948, p. 127), a fonte a qual Inácio retira essa passagem de Jesus é desconhecida, e sua interpretação dos significados da ressurreição declinam daquele dos apóstolos. A visão espiritualista dos manuscritos faz-se mais presente e floresce em locais como Alexandria, por exemplo, e em Antioquia e Cesaréia, o contrário (GRANT, 1948, p. 128, 129).

90

Por volta de 110–130 o bispo Inácio de Antioquia foi preso e conduzido a Roma, onde aguardava sofrer o martírio. Ali recebe a visita dos bispos de Éfeso, de Trales e de Magnésia, aos quais entregou cartas para suas respectivas Igrejas, que continham diretrizes e ideias do mesmo para a fé cristã. Inácio pregava que a união da fé deveria ter seu primeiro ponto a partir do bispado e do clero. É dele que herdamos a hierarquia de bispos, padres e diáconos. Ver: NAUTIN, P. Inácio de Antioquia. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 710–711.

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Na visão de Orígenes, por exemplo, o corpo presente não é nada mais que uma “capa de pele”. Essa ideia é majoritariamente baseada na concepção platônica que vê o corpo como uma “tumba” para alma (GRANT, 1948, p. 129). Além de Inácio, um provável contemporâneo de Celso, Ireneu de Lyons (ca. 130 – ca. 202 d.C.)91, escreve a quase um século de distância de Inácio a seguinte passagem: Mas vãos de todas as formas são aqueles que desprezam toda a distribuição de Deus, e desaprovam a ressurreição da carne, e tratam com desprezo a sua regeneração, sustentando que não é capaz de incorruptibilidade. Mas se isso realmente não obtém salvação, então nem o Senhor nos redimiu com Seu sangue, nem o cálice da Eucaristia é a comunhão de Seu sangue, nem o pão que repartimos a comunhão de Seu corpo (IRENEU DE LYONS, Contra as Heresias, V, 2, 2, 1–4).

Ressalta Grant (1948, p. 128) sobre tal excerto que, para Ireneu, nós somos membros do corpo ressurreto de Jesus; e já que somos carne e sangue, o corpo que nos compõe também o é; tal ideia frutifica-se ao interpretar-se literalmente a concepção paulina da igreja como o corpo de Cristo. Assente no exposto, observamos que Celso certamente teve o acesso às estórias de Jesus por meio de escritos de patrísticos, ou por um “conhecimento comum”. Gary T. Burke (1986, p. 243, 245) corrobora a ideia em seu artigo “Celso e o Antigo Testamento”92, ao declarar que todas as referências transliteradas de Celso são provenientes do Antigo Testamento, entretanto, não totalizando suas menções somente a esse livro. Realça ainda que Celso expõe O Dilúvio, A Torre de Babel, a Destruição de Sodoma e Gomorra, mostrando assim que o autor leu o Gênesis e elencou esses fatos em sua devida ordem (BURKE, 1986, p. 241–242). Inferimos, isto posto, que Celso possuía um exemplar do Antigo Testamento, mas, que retirou suas outras referências literárias por intermédio de pesquisa própria fora do Novo Testamento. Isso justifica, desse modo, o fato de o mesmo ter confundido a noção da ressurreição por dispor de um provável contato com textos como os de Inácio e Ireneu. Outro ponto a ser estudado é a importância do Demiurgo e do logos para Celso. Consoante com Carl Sean O’Brien (2015, p. 16), determinamos os pontos principais dos quais as teorias sobre o Demiurgo, de acordo com o Timeu, derivam: I) a relação do Demiurgo com o Primeiro Princípio – a emanação; II) a causalidade real do Demiurgo e sua interação com a matéria;

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Ireneu de Lyons foi um bispo grego e escritor cristão. Chegou a conhecer Policarpo de Esmirna e, também, sobreviveu aos martírios de Lyons, em 177 d.C., sendo responsável por levar a Carta dos Mártires de Lyons ao bispo de Roma, Eleutério. É conhecido por, já nessa época, combater o que chamava de hereges, os gnósticos. Ver: ORBE, A. Ireneu. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 716–720. 92 BURKE, Gary T. Celsus and the Old Testament. Vetus Testamentum, Netherlands, 36 (2): 241–245, april, 1986.

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III) a condição ontológica das Formas; IV) a questão da origem do mal; V) outros fatores que limitam a influência do Demiurgo. Tal temática perpassa boa parte da obra de Celso e dos textos gnósticos; suas noções sobre o Demiurgo são utilizadas para contradizer tanto a noção de deus dos católicos, quanto a de Demiurgo dos gnósticos. Sobre esse assunto, Celso peneja que: Ele não é a mente, inteligência, ou conhecimento; mas ele faz a mente pensar, e é consequentemente a causa da existência da inteligência, da possibilidade do conhecimento; ele faz existir as coisas inteligíveis – da verdade ela mesma, do ser ele mesmo – uma vez que ele transcende todas as coisas e é inteligível apenas a um certo poder que não pode ele próprio ser descrito (CELSO, Discurso Verdadeiro, IX, 210–216).

Observa-se que, para Celso, o Demiurgo é aquele dissemelhante do humano, que a ele dá a faculdade de pensar e raciocinar o mundo ao seu redor, que nele incute o logos. Entretanto, diferentemente de um deus cristão que possui forma humana, que ordena com a voz e que molda as coisas com as mãos, o Demiurgo não possui forma, nem cor; sequer possui a capacidade de se mover (CELSO, Discurso Verdadeiro, VIII, 4–6; 11–12). Em oposição às conhecidas interferências das divindades do Olimpo no curso dos acontecimentos da humanidade, o Demiurgo se resguarda em uma posição superior; após criar a sua obra, o mundo, que é um “ser dotado de alma e intelecto” (PLATÃO, Timeu–Crítias, 30C, 1–2), retira-se e não mais interfere. Ele é, portanto, um agente divino que se afasta, mas, deixa outras divindades responsáveis por conduzir as coisas mortais, ou seja, tudo que sofre as intempéries do tempo no mundo (LOPES in PLATÃO, 2011, p. 38). Conforme Celso (Discurso Verdadeiro, VII, 307–309), o Demiurgo particiona o mundo e, a cada parte, designa um dos arcontes: “Sobre cada esfera há um ser encarregado com a tarefa de governança e digno de possuir poder, pelo menos o poder atribuído a ele para executar sua tarefa.” (CELSO, Discurso Verdadeiro, X, 10–13). Esse Demiurgo assemelha-se, em termos humanos, a um arquiteto; todavia, não trabalha com materiais como o ferro para um ferreiro, ou o tecido para um alfaiate. Molda, antes disso, o estado pré-demiúrgico, ou seja, o Caos. Obedece a princípios matemáticos, seguindo a geometria como diretriz para seus desígnios. Ele, logo, impõe ao material pré-cósmico o que a ele faltava: a ordem. Timeu (PLATÃO, Timeu-Crítias, 28C, 4) chama-o de “criador e pai do mundo”, mas, como Rodolfo Lopes (in PLATÃO, 2011, p. 42) disserta, devemos entender que o Demiurgo é pai como educador, e não como princípio de geração. Ele torna-se, dessa maneira, um exemplo a ser seguido, um arquétipo a ser aspirado.

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A partir dessa exposição e do exibido por Jeffrey W. Hargis, (1999, p. 57) além da análise do Discurso Verdadeiro, percebemos que Celso se encaixava em uma forma de monoteísmo; viés este que, diferentemente da crença em apenas um deus, era o que podemos denominar como “monoteísmo inclusivo”, que reconhece o papel central do Demiurgo, mas, vê também a indispensabilidade dos arcontes. A contraposição de Celso, isto posto, permeia as assertivas de cristãos sobre uma natureza muito humana de seu deus; como ele exprime: Mal, necessidade, e tristeza são irrelevantes onde Deus se concerne: ele não é afetado pela injúria, aflição, e necessidade. Assim não pode ser irracional cultuar vários deuses; e o homem que o faz naturalmente adorará alguns deuses que derivam daquele Deus maior, e será amado por isso. Um homem que honra o que pertence a Deus não ofende Deus, já que tudo pertence a ele (CELSO, Discurso Verdadeiro, X, 35–41).

Escapar do poder de governar dos vários arcontes é impossível, segundo o autor. Sobre a natureza do monoteísmo cristão ortodoxo, como Jan Assmann (2010, p. 38) apresenta, essa forma de pensar tem, primariamente, um sentido político: um não pode servir dois mestres. Os cristãos, ao renegarem a participação em festas públicas, pensavam estar a adorar e reconhecer a apenas seu deus; entretanto, de acordo com a lógica de Celso (Discurso Verdadeiro, X, 105– 108), o fato de que “...apesar deles evitarem sacrifícios eles não obstante respiram, comem, bebem água e vinho, e deste modo não evitam os deuses encarregados de administrar cada uma dessas atividades”. Dessa maneira, evitar os outros deuses é impraticável, a não ser que a pessoa em questão decida por não viver de forma alguma; ou, como sugere Celso (Discurso Verdadeiro, X, 109–113; 117–124), ela pode viver agradecendo aos deuses que controlam os assuntos terrestres, para assim garantir o favorecimento dos mesmos. Para ele, a ideia é semelhante no que tange aos Governadores terrenos: respeitar os exercícios de cargo dos mesmos é garantir sua benevolência. A problemática de concentrar tudo que concerne os assuntos terrenos em apenas um deus é que o mesmo não pode ser conjurado e só se revela no período e da maneira que convier. Além do que, tal deus não precisa de um representante terreno, seja um arconte ou um Imperador, para representa-lo como administrador ou legislador. Esse é o significado do banimento cristão do reconhecimento e idolatria de outras divindades e do Imperador (ASSMANN, 2010, p. 69). Como escreve Ireneu de Lyons: É adequado, dessa forma, que eu deva começar com a primeira e mais importante direção, isso é, Deus o Criador, que fez o céu e a terra, e todas as coisas que aí estão [...], e para demonstrar que não há nada acima D’ele ou após Ele; nem que, influenciado por ninguém, mas de Sua própria vontade, Ele criou todas as coisas, já que Ele é o único Deus, o único Senhor, o único Criador, o único Pai, sozinho contendo todas as coisas, Ele mesmo

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comandando todas as coisas à existência (IRENEU DE LYONS, Contra as Heresias, II, 1, 1, 1, grifo nosso). Pela exposição de Ireneu, faz-se razoável para ele que não há necessidade de outros

princípios, plenitudes, poderes, já que esse deus em sua imensidão contém tudo, e não é contido por nada (Contra as Heresias, II, 1, 2, 1). A justificativa de Celso, logo, pode ser utilizada em dois sentidos: se por um lado há necessidade de adorar e cultuar os arcontes, uma vez que eles fazem parte do deus maior, Ireneu por meio do mesmo argumento mostra que é desnecessário cultuá-los, já que o deus maior a tudo e a todos envolve. Segundo Rudolf Otto (2005, p. 59, 82), esse elemento divino é a realidade mais poderosa, elevada, querida, mais bela, o ápice do que o humano pode conceber; pode ser também o superlativo de tudo que é concebível. Deus é, em si mesmo, uma essência à parte. Ainda de acordo com o autor, o Deus do Novo Testamento é mais venerável do que o do Antigo; a distância que o separa da criatura é praticamente absoluta; o sentimento de não-valor que esse humano que partilha do profano experimenta é, perante ele, reforçada. Observamos que esse ser divino cristão está em um patamar de grandiosidade incalculável ante a inferioridade da humildade que o cristão deve buscar; o mais surpreendente se faz, como diz Otto (2005, p. 115), quando esse ser misterioso, terrível, inacessível, o maior representante do numinoso93 como tremendum, que habita os céus, possua uma vontade de ter contato direto com seus fiéis, e é a partir dessas discrepâncias que resulta a harmonia do sentimento cristão. Essa humildade para o humano cristão é proveniente de Jesus, por meio de todo o sofrimento que o mesmo endurou para cumprir sua profecia. Refletindo sobre esse acontecimento, Celso opõe que: É mera impiedade, portanto, sugerir que as ações que foram feitas contra Jesus foram feitas a Deus. Certas coisas são simplesmente como uma questão de lógica a Deus, nomeadamente aquelas coisas que violam a consistência de sua natureza: Deus não pode fazer menos do que convém a Deus fazer, o que é a natureza de Deus fazer. Mesmo que os profetas tenham previsto tais coisas sobre o Filho de Deus, seria necessário dizer, de acordo com o axioma citado por mim, que os profetas estavam errados, em vez de acreditar que Deus sofreu e morreu (CELSO, Discurso Verdadeiro, IX, 86–95).

A contradição, continuando sua explicação, se dá não no presente humilde daqueles cristãos primitivos. Ela acontece devido ao fato dos mesmos procurarem raízes no deus dos judeus, que prometeu aos mesmos um território com fartura, dominação soberana na Terra e prosperidade em todos os sentidos; assim, o paradoxo com o cristão que pregava a humildade, 93

De forma qualitativa, o conceito de numinoso, consoante com Rudolf Otto (2005, p. 49), é o misterioso; por um lado, é um sentimento repulsivo, aterrorizante, a manifestação divina que incute o ser mortal em seu lugar finito no cosmos. Por outro, é algo que exerce uma atração particular, que cativa, fascina e forma-se com esse elemento repulsivo do tremendum – a manifestação tremenda, grandiosa, que provoca terror – e coloca em entendimento esses contrastes.

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que acreditava que “É mais fácil um camelo passar pelo fundo da agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, Evangelho segundo São Marcos, 10, 25), era basear-se em um deus do Antigo Testamento que, contrariando-se a si mesmo e aos mandamentos que passou a Moisés, “enviou seu mensageiro para dar notícia de que ele havia suspendido o que ele previamente endossou.” (CELSO, Discurso Verdadeiro, IX, 109–113; 118–122). Ainda em sua crítica sobre os deuses cristãos, Celso também analisa o deus dos gnósticos: Alguns Cristãos [isto é, os Gnósticos] mantém que é o deus dos Judeus o anjo amaldiçoado, e que é esse deus que envia trovões, que criou o mundo e foi idolatrado por Moisés, que descreve suas ações em sua própria história da criação do mundo. Bom, tal deus bem merece ser amaldiçoado se ele é o deus que amaldiçoou a serpente por dar ao homem o conhecimento do bem e do mal! (CELSO, Discurso Verdadeiro, VII, 165–172).

Se faz evidente como o Demiurgo platônico e o deus gnóstico possuem semelhanças; entretanto, para Celso – como demonstramos anteriormente – ele não possui as capacidades do platônico. Na explanação de Sean Martin (2006, p. 33) sobre esse deus gnóstico, ele ressalta que, dentre os mesmos, havia a existência do deus incompetente e arrogante, decaído – sendo esse o Demiurgo –, e o verdadeiro Deus, que existe acima de tudo e perpassa o alcance da própria descrição de si mesmo. O Demiurgo gnóstico é bastante associado com o Deus do Antigo Testamento, mas não é usualmente visto como mal. Sua maior falha é sua arrogância; ele acredita que não há outros deuses além dele. Antes do espaço e do tempo existirem, o verdadeiro Deus habitava um lugar conhecido como Pleroma, que significa plenitude, unido a um princípio divino feminino, denominado Ennoia, ou referido também como Pensamento. O verdadeiro Deus não cria, mas, emana, ou seja, as coisas vêm a ser a partir dele. Em outras palavras, diferentemente do Deus do Antigo Testamento que diz “Que haja luz”, a luz simplesmente emana desse Deus verdadeiro; não é, dessa forma, uma ação deliberada de criar. Uma série dessas emanações do verdadeiro Deus resultou nas outras figuras divinas. Ainda em sua exposição, Martin (2006, p. 34) descreve que cada emanação possui, de certa forma, uma inferioridade em relação à precedente. Sophia, a Sabedoria de Deus, é a última dessas emanações divinas, e foi a partir de seu desejo de conhecer o verdadeiro Deus que uma emanação saiu da mesma, sem a participação de seu consorte masculino – todas essas divindades possuíam seus parceiros –, resultando num caos negro que deveria tornar-se matéria, mas nesse ponto era apenas uma espécie de escuridão sem limites. Sophia, estando perturbada pela escuridão, decidiu criar um ser para comandar tal lugar, e deu origem ao que os gnósticos nomeiam como “deus infantil”, ou Demiurgo. Tal divindade, ignorante de sua própria mãe, não

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ouve-a quando a mesma tenta explicar a ele que há poderes maiores que ele e, assim sendo, inicia a criação do céu e da Terra a partir da matéria que ali estava, a qual é chefiada por ele. Após isso, esse Demiurgo gnóstico designa outros arcontes para os sete céus que ele cria. Acima de todos esses céus está o de Sophia e, o mais distante de todos, é o do verdadeiro Deus. Percebemos a teoria dos céus em Celso (Discurso Verdadeiro, VII, 127–131), que escreve que “...os Cristãos oram que após sua labuta e luta aqui embaixo eles adentrarão o reino dos céus, e concordam com os sistemas antigos em que existem sete céus e que o caminho para a alma é através dos planetas.” É perceptível que um filósofo platônico, ao ver a apropriação dos gnósticos da doutrina do Demiurgo compreendida por ele, com alguns retoques que colocam-no como defeituoso, condena-os. A repreensão parte do ponto que os mesmos interpretaram incorretamente os ensinamentos de Platão. Dentre as várias seitas gnósticas temos diversas interpretações; sobre a seita valentiniana, que origina-se com Valentino (ca. 100 – ca. 165 d.C.) 94, por exemplo, acreditavam em um deus pré-existente, que reside no Pleroma, imperturbável e invisível. Sua emanação dos arcontes é composta de quinze pares de masculinos-femininos, dentre eles o Logos, “a Palavra”, e sua consorte, Zoë, “vida”. Os arcontes, sedentos por conhecer o seu criador são guiados por Sophia e tal busca faz surgir a “ignorância”, que só assim faz a emanação do Demiurgo possível e, consequentemente, o mundo material vem a existir. Há muitas semelhanças ao mito geral que expomos acima com Sean Martin; é importante tornarmo-nos ao ponto em que o valentinianismo reflete a ideia de Platão de Mundo das Ideias, que considera que tudo que há no mundo é apenas uma reflexão medíocre do Mundo Ideal acima dele; o sistema de Valentino coloca o mundo material como obscurecido, uma versão ruim do Pleroma. A dualidade entre esse Mundo Ideal e o Mundo Falho, é referida como hebdomas, que significa “sete”, como uma referência aos sete céus do mundo material. Em algum ponto dessa criação, Sophia é partida em dois, e sua parte superior fica presa no Pleroma, enquanto a outra parte fica no mundo material. Essa parte inferior de Sophia que é corrompida, responsável por produzir o Demiurgo, deve esperar pelo “Cristo” e o “Espírito Santo” que são enviados pelo verdadeiro Deus para resgatá-la (MARTIN, 2006, p. 49–50). A humanidade, para os valentinianos, foi feita pelo Demiurgo. Nela se distinguem três tipos de pessoas: os somáticos, que são pessoas resolutas na matéria e só se importam com 94

Em dado momento de sua vida, após ter sido candidato a bispo e perder o posto para outro, renunciou à ortodoxia e fundou uma escola, donde difundiu sua doutrina. Pouco sabemos sobre ele, restando apenas relatos de Clemente de Alexandria e Tertuliano. Há escritos da biblioteca de Nag Hammadi que possuem semelhanças com o que Valentino pregava, porém, não pode-se dar como certo que foram escritos por ele. Ver: GIANOTTO, C. Valentino Gnóstico. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 1399–1400.

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problemas da carne; os psíquicos, não tão inclinados aos prazeres da carne, mas, que tendem ao ato de pensar, sentir e participar de religiões exotéricas; e, por fim, os pneumáticos, pessoas espiritualmente conscientes, que estão acima dos dogmas impostos e das divisões, sendo assim hábeis a receber a gnosis, o conhecimento absoluto. A última classe, isto posto, é a que possui capacidade de ouvir e entender as palavras de Jesus Cristo, libertando-se após isso (MARTIN, 2006, p. 50–51). De forma generalizante sobre os gnósticos Celso relata que: Alguns dos cristãos, como os seguidores de outros mistérios, carregam suas teorias ao ponto do absurdo, amontoando os dizeres de oráculos em cima de outros dizeres, tudo intencionando à confusão. E assim ouvimos sobre círculos em cima de círculos e emanações fluindo de emanações, igrejas terrenas e igrejas da circuncisão; nós testemunhamos os Judeus fluindo de um poder representado como uma virgem – Prunicus (Sophia) – e outra alma vivente que foi morta para que o céu pudesse ter vida. [...] Eles também retratam diagramas em uma passagem estreita através das esferas, e portões que abrem de acordo com a sua vontade (CELSO, Discurso Verdadeiro, VII, 190–198; 201–203).

Para Celso (Discurso Verdadeiro, VII, 173–185), todos esses gnósticos são contraditórios, assim como os católicos o são. Os cristãos, independentemente de distinção de seitas, são hipócritas a partir do momento em que eles idolatram esse deus, quando ele na verdade prometeu apenas aos judeus tudo. O que os cristãos chamam de sabedoria é tolice, seu método de interpretar por meio de alegorias é dúbio e os gnósticos, que despejam abusos em cima do deus criador, quando são confrontados pelos judeus dizem que cultuam o mesmo deus que eles. Prosseguindo, Celso (Discurso Verdadeiro, V, 117–121) critica a base da mitologia cristã, ou seja, a parte advinda dos hebreus sobre como o mundo veio a ser. Inicia perguntando quem são os judeus, os quais julga como escravos que fugiram do Egito e que nunca possuíram relevância, pois, nada de suas aventuras foi narrada pelos gregos. Portanto, também sem nunca terem ouvido as poesias de Hesíodo e outros homens inspirados, inventaram um mito fantástico sobre um homem formado por Deus, e de uma mulher que foi constituída a partir do lado direito deste homem, e que Deus enviou-lhes ordens, e uma serpente veio e provou-se superior aos anseios de Deus. Conclui que essas lendas os judeus contam às mulheres velhas, como se para “...revelar o fato de que seu Deus é débil desde o começo [...], inapto a controlar até as primeiras criaturas feitas por ele” (Discurso Verdadeiro, V, 134–143). O ponto central da crítica ao deus cristão, a partir de Celso, retém-se principalmente, como observamos, na impotência do mesmo que era tido como detentor de ilimitados poderes; relega-se, deste modo, a demostrar que, ao contrário, era um deus que ao mesmo tempo que era vingativo e penitente, marcava suas ações pela petulância e ambição por poder (Discurso Verdadeiro, V, 20–22; 84–85).

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Semelhante ponto elencado por Celso é a dualidade entre bem e mal, advinda do Demiurgo; os cristãos católicos relegavam o mal a Lúcifer – como força oposta a Deus, porém, não em termos de igualdade –, ou, no caso dos gnósticos, a um deus inferior que criou algo imperfeito. Como relata Sean Martin (2006, p. 32, 38), a crença gnóstica era a de que o mundo era imperfeito, mas que tais imperfeições não deveriam desviar-nos da presença do bem, tanto dentro de nós quanto no mundo em si. O fato de existir bondade no mundo garantia a possibilidade de salvação. O mal, ao invés de ser o trabalho de Lúcifer, era tido como algo que geralmente originava-se da ignorância. Marcião (ca. 85 – ca. 160 d.C.)95, líder da seita marcionita, por exemplo, ensinava que existiam dois deuses, sendo o “criador incompetente” aquele Deus da Lei – hebreu –, e o verdadeiro Deus o que envia Jesus para purificar o mundo, o Bom Deus (MARTIN, 2006, p. 46). A outra seita por nós exemplificada – valentiniana –, expunha que atingir a gnosis não apenas liberta o indivíduo, como contribui para a restauração do mundo material e do seu estado de bondade inicial; tal salvação, portanto, unia o bem do indivíduo à redenção do todo (MARTIN, 2006, p. 51). Celso, sobre tal, discorre que: [...] alguém que não possui aprendizado em filosofia estará desavisado sobre a origem do mal; mas é bom o bastante que as massas aprendam que os males não são causados por Deus; ao invés, que são parte da natureza da matéria e da humanidade; que o período da vida mortal é o mesmo do começo ao fim, e que porque as coisas acontecem em ciclos, o que está acontecendo agora – isto é, o mal – aconteceu antes e acontecerá novamente (CELSO, Discurso Verdadeiro, V, 203–210, grifo nosso).

A defesa de Celso (Discurso Verdadeiro, V, 211–220) continua para provar que, nesses ciclos, o curso naturalmente levará a um processo de mudança que se inclinará para o bem do todo. Portanto, é irracional que Deus precise retornar para a Terra com intuito de recriá-la, já que a quantidade de mal e bem que há são as mesmas desde a criação. Deus, dessa forma, não precisa de “infligir correção ao mundo como se ele fosse um trabalhador inexperiente incapaz de construir algo corretamente pela primeira vez” (CELSO, Discurso Verdadeiro, V, 216–219), ou purificar o mundo mediante dilúvios e conflagrações. Percebemos, dessa maneira, que há tanto uma similaridade e oposição com o deus gnóstico, quanto puramente divergência em relação ao deus ortodoxo: atingir a gnosis assemelhar-se-ia à reta razão atingida por um filósofo platônico ou à virtus de um estoico que depreenderam-se da materialidade da carne, voltando a fazer parte do Demiurgo; contudo, a criação do Demiurgo é perfeita, em oposição ao deus

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Teólogo herético do séc. II d.C., originário de Sinope. Fez parte da comunidade cristã de Roma e, em 144 d.C., foi excluído da comunidade, à qual ajudava com doações. A comunidade restitui-o de suas doações e, com elas, funda em seguida a própria Igreja, que rapidamente se expandiu até por volta de 190 d.C., constituindo assim um verdadeiro perigo à Igreja Católica. Ver: ALAND, B. Marcião – Marcionismo. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 881-882.

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criador inexperiente dos gnósticos. Do lado católico, o crescimento do mal é ressaltado como algo que está a sobrepor a presença do bem, sendo que a responsabilidade desse aumento provém de um ser que espelha a parte maligna da dualidade – porém, não de forma equivalente –, Satanás; percebemos o embate com o Demiurgo na abertura da Primeira Epístola de João: [...] Deus é Luz e nele não há treva alguma [...] se caminhamos na luz como ele está na luz, estamos em comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado (BIBLIA DE JERUSALÉM, Primeira Epístola de São João, 1, 5–7, grifo nosso).

Ainda no que concerne ao mal, conforme Celso, tais ideias são teorias limitadas pela perspectiva de uma pessoa: Mesmo que algo pareça mal para você está longe de ser claro se realmente o é; uma pessoa com sua perspectiva limitada sobre toda a condição da criação está despreparada para saber se o que é bom para você é bom para outro nesse universo, e vice versa. Quando um homem estava irado com os Judeus e matou todos eles [...] eles foram completamente aniquilados; mas (dizem eles) quando o Deus supremo estava furioso e colérico ele enviou seu filho com ameaças – e sofreu todas as formas de afrontas (CELSO, Discurso Verdadeiro, V, 222–231).

O deus cristão católico não possui participação no mal e percebe o mesmo como algo que necessita de um intermediário – Cristo – para purificá-lo. Toda essa multiplicidade de fatores, de acordo com Matthew Craig Steenberg (2010, p. 242), elenca algumas perguntas: pode haver pluralidade na unidade? Deus criou? Deus mudou? Ou, ainda, a profissão de fé dos cristãos demandou uma mudança inaceitável nos conceitos de verdade e divindade? Essas questões, de acordo com o autor, começam a serem enfatizadas a partir do séc. II d.C., em direção a uma teologia que era reclamada pela criação de vários grupos – gnósticos – que pareciam perverter a ideia, de uma maneira ou de outra. A insistência cristã na natureza criativa de Deus significava enfrentar o que essa posição impunha: articular uma razão que concatenasse a existência do mal – e consequentemente, do sofrimento. O lado gnóstico aparentava-se mais simples, pois, o mal era relegado ao criador-defeituoso. No meio de tal efervescência de ideias, uma associação surge no séc. II–III d.C., que clarificava a concepção católica entre criador/criação cristã: o trabalho criativo de Deus, exemplificado em sua cura e restauração da criatura humana por meio do Filho – Jesus –, revela a verdadeira natureza da primeira criação do Cosmos e une o deus criador com o deus restaurador, representado por Cristo. É essa experiência cristã que marca uma possibilidade para o Pai por meio do Filho, aperfeiçoado no Espírito, permitindo assim uma discussão própria para a criação, além da natureza trinitária de Deus (STEENBERG, 2010, p. 247). Iniciando outra das noções fundamentais, isto é, sobre a trindade e a cruz, percebemos que Ireneu de Lyons possui como evidência em seus escritos tais características dispostas sobre

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Deus, expostas anteriormente por Steenberg. Quando a criação é deturpada por meio do pecado, Deus trabalha uma recriação, procurando restaurar o que decaiu para uma nova vida e perfeição. A reencarnação, portanto, e a restauração feitas pelo Cristo encarnado, são as chaves para compreender Deus como Criador (STEENBERG, 2010, p. 247–248). Verificamos o atestado em partes de seu manuscrito, denominado Contra as Heresias (ca. 180 d.C.): A regra da verdade que nós possuímos, é, que existe um Deus Onipotente, que fez todas as coisas por Sua Palavra, e moldou e formou, daquilo que não possuía existência, todas as coisas que existem [...] O Espírito, portanto, descendendo sob a dispensação predestinada, e o Filho de Deus, o Unigênito, que é também a Palavra do Pai, vindo na plenitude do tempo, tendo-se encarnado em homem pelo bem do homem, e cumprindo todas as condições da natureza humana, nosso Senhor Jesus Cristo sendo um e o mesmo, como Ele Mesmo o Senhor atesta, como os apóstolos reconhecem, e como os profetas anunciam [...] (IRENEU DE LYONS, Contra as Heresias, I, 22, 1; III, 17, 4).

Jeffrey D. Bingham (2010, p. 148) faz uma leitura interessante sobre o exposto: esse Deus manifesta-se pela trindade. O Pai possui duas mãos, o Filho e o Espírito, e toda atividade de cunho divino é advinda do próprio Pai por meio do Filho e do Espírito. Com essa conjectura, Ireneu inicia um posicionamento da fé da Igreja Católica contra os seus oponentes, os gnósticos. O Pai dos gnósticos, como Ireneu o vê, precisa de forças espirituais adicionais, anjos e outros deuses, para auxiliá-lo na realização da sua vontade, já que ele é fraco, necessitado, e fragmentado em seu próprio ser. Dessa forma, em contraposição, o Deus que Ireneu relata não precisa de nada pois ele é autossuficiente, sendo Deus, Pai, e Senhor de tudo, e indivisível em unidade com o Filho e o Espírito. Atestamos em Ireneu algo que seria utilizado para combater a controvérsia arianista no IV séc. d.C. Entretanto, Ireneu é um dentre muitos que escreviam nesse séc. II d.C.; percebemos dentre eles diversas perspectivas, sendo difícil impor uma visão única do que é esse deus cristão, como ele se compõe, se é partícipe do mal e, também, como toda a sua criação veio a ser. Conforme Mark J. Edwards (2010, p. 45), os platônicos compartilhavam desse conceito de logos de tal forma a reconhecer nele o deus Hermes, embaixador de Zeus, e o próprio Platão visualizou a alma na imagem de uma cruz, em seu Timeu; temos, assim, a noção trinitária também em Platão. Em debate à exposição acima sobre a ideia de Ireneu acerca da trindade, contrapomos uma passagem de Celso, em que o mesmo fala sobre as noções de Platão: E sobre sua crença em uma trindade de deuses; não é essa doutrina central deles uma grosseira interpretação errada de certas coisas que Platão diz em suas cartas? “Todas as coisas”, escreve o filósofo, “estão centradas no Rei de Tudo; e o Tudo é por causa dele, e ele é a causa de tudo que é bom. As coisas secundárias estão centradas no Segundo, e as terciárias estão centradas no Terceiro.” [...] É devido a esses Cristãos terem completamente incompreendido as palavras de Platão que eles ostentam Deus como acima

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dos céus e colocam-no mais alto que os céus em que os Judeus acreditam. Mas nenhum poeta terreno, e com verdade nenhum Cristão, descreveu ou entoou as regiões do céu como convém a eles: ser último, Platão chama-o “sem cor, sem forma, intocável, e visível apenas à mente que guia a alma em sua jornada pelo verdadeiro conhecimento que habita essa esfera.” (CELSO, Discurso Verdadeiro, VII, 108–114; 118–126).

Além de Ireneu, temos também Justino Mártir que ressalta a mesma ideia, no mesmo século. Como escreve Justino (Primeira Apologia, LX), Platão interpretou mal o que Moisés escreveu sobre a ida dos israelitas ao Egito que, quando os mesmos estavam na selva, encontraram bestas e cobras venenosas, e que, na iminência do perigo, Moisés pegou um pedaço de bronze e moldou-o no formato de uma cruz, colocando a figura dentro de um santo tabernáculo – um santuário portátil carregado pelos hebreus, que portava a arca da aliança e outros objetos sagrados –, dizendo para aqueles próximos de si: “Se olharem para essa figura, e acreditarem, vocês serão salvos.” e, assim, as serpentes morreram e aquele povo escapou da morte. Platão então entenderia tal passagem não como a cruz em si, mas como um formato entrecruzado, de onde vem que o poder próximo do Demiurgo foi colocado em formato de cruz pelo universo; e é assim, similarmente, que a alma se põe no corpo. Nossa discussão sobre as afirmações de Clemente de Alexandria que os gregos plagiaram-se a si mesmos é objeto, antecipadamente, de Justino Mártir, que não pensava em termos de um judaísmo e um helenismo divididos, mas que possuíam um lugar comum a partir da revelação original de Moisés. O judaísmo e o helenismo desenrolam-se em direções distintas, tendo o judaísmo declinado em um legalismo e na superstição, e o helenismo em um espaço de competição entre diversos cultos e filosofias; mas o cristianismo adentra esse contexto para restaurar a revelação original, renovada e aperfeiçoada por meio de Cristo, oferecendo assim aos judeus e gregos um ensinamento puro e único (PRICE, 1988, p. 18). Há, portanto, Justino e Ireneu que valorizam a noção de trindade e da simbolização da mesma em uma cruz. Sobre o simbolismo da cruz, Celso relata que: Eu suspeito que se ele (Jesus) tivesse sido jogado de um penhasco ou empurrado em uma cova ou estrangulado – ou fosse ao contrário de um carpinteiro um sapateiro, pedreiro, ou ferreiro, nós encontraríamos eles contando fábulas de um penhasco da vida nos céus, ou uma cova da ressurreição, ou uma corda da imortalidade, ou uma pedra sagrada, ou a fundição do amor, ou a pele de couro sagrada (CELSO, Discurso Verdadeiro, VII, 207–213).

Considerando a assertiva de Celso, verificamos que sobre o mito de Jesus, sua profissão de carpinteiro e sua morte em uma cruz podem ser substituídas por quaisquer outras histórias similares, desde que mudemos pequenas partes da fábula. Dificultada é a posição da Igreja, nesse período dos primeiros três séculos, que vê-se em uma posição em que precisa lutar em

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uma batalha de duas frentes: contra aqueles que diziam serem parte de sua religião, mas, eram julgados como deturpadores da sua verdade e contra os ditos pagãos, que julgavam-na como uma crença mal posicionada com seus princípios, exalando irracionalidade e sem bases para sustentar a ideia de um deus único. Verificamos que Celso (Discurso Verdadeiro, VI, 186– 202), ciente dessa instabilidade da crença cristã, trata de se aproveitar de tal situação para fundamentar uma teoria sobre a verdade: como podem eles pregarem a verdade única, se não conseguem entrar em acordo entre si? Elenca, portanto, que enquanto uns dizem que seu deus é o mesmo dos judeus, outros dizem que é um outro deus superior ao criador e oposto à ele. Citando algumas seitas – simonianos, provenientes de Simão; Helenianos de Helena; seita de Marcelina; seita dos harpocratianos, que traçam suas raízes desde o tempo de Salomão; e os marcionitas, que seguem Marcião –, demonstra que “todos eles andam em uma névoa” (VI, 203), ou seja, distantes da verdadeira razão. Em relação ao debate sobre o tempo – outra noção fundamental –, no sentido cronosófico96, como demonstramos anteriormente em Celso (Discurso Verdadeiro, V, 203– 210), sua concepção de tempo é cíclica; essa compreensão pode ser alicerçada em outra passagem de sua obra: Eles postulam, por exemplo, que seu messias retornará como um conquistador nas nuvens, e que ele ateará fogo sobre a Terra em sua batalha com os príncipes do ar, e que o mundo inteiro, com a exceção dos cristãos crentes, será consumido pelo fogo. Uma ideia interessante – e dificilmente original. A ideia veio dos gregos e de outros – a saber, que após ciclos de anos e devido às conjunções fortuitas de certas estrelas existem conflagrações e enchentes, e que após a última enchente, no tempo de Deucalião, o ciclo demanda uma conflagração em conformidade à sucessão alternante do universo. Isso é responsável pela opinião tola de alguns cristãos de que Deus descerá e ateará fogo sobre a Terra (CELSO, Discurso Verdadeiro, V, 39–52).

Confirma-se a ancestralidade da ideia, levantada por Celso, por meio de Platão, em Timeu: ...muitas foram as destruições que a humanidade sofreu e muitas mais haverá; as maiores pelo fogo e pela água, mas também outras menores por outras causas incontáveis. [...] a verdade é que os corpos que no céu giram à volta da Terra sofrem uma variação e, de muito em muito tempo, sobrevém a destruição na Terra por causa do excesso de fogo. Nessa altura, aqueles que vivem nas montanhas e em locais elevados e secos morrem em maior número [...] sempre que os deuses provocam um dilúvio para purificar a Terra com água, são os boieiros e os pastores que ficam a salvo nas montanhas, enquanto que os que entre vós vivem nas cidades são arrastados para o mar pelos rios. (PLATÃO, Timeu–Crítias, 22C, 1–4; 22D, 1–6, 9–13).

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Pensamos aqui cronosofia de acordo com Pomian, significando o ato de fazer do tempo objeto de discurso. Ver: POMIAN, Krzysztof. Tempo/Temporalidade. In: ENCICLOPÉDIA EINAUDI: vol. 29. Tradução de Maria Bragança. Lisboa: Casa da Moeda, 1993. p. 107.

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O dilúvio de Deucalião é exposto na segunda parte do diálogo dessa obra de Platão, na fala de Crítias (PLATÃO, Timeu-Crítias, 112A, 2–3, como o quarto dilúvio, uma calamidade enviada por Zeus quando o mesmo decidiu destruir a raça humana, restando apenas Deucalião e Pirra, sua esposa, por meio de uma arca que haviam construído de antemão, depois que Zeus avisa-os do que iria fazer. Notamos, da mesma maneira, que um ponto comum na noção do dilúvio se ressalta: por mais que, para Celso, a interpretação dos cristãos é errônea por pensarem que o próprio deus descerá e causará caos no mundo, ambos concordam – e, inclusive, Platão – que os dilúvios possuem sua função de purificação pela água que, conforme Mircea Eliade (1996, p. 152), servem para desintegrar e eliminar as formas, “lavar os pecados”, transformando-se em uma atribuição periódica de regeneração. Tanto nessas grandes inundações quanto no simples ato de batismo de uma pessoa, isso pode ser percebido como uma tentativa de sacralização. Ainda nessa exposição sobre o tempo, nota-se que a percepção do mundo como algo eterno também se faz evidente. A noção das conflagrações é utilizada, também, pelos estoicos (SIMMONS, 2002, p. 846). Em oposição a esses ciclos, Adone Agnolin (2008, p. 32) exprime que, para o cristianismo, toda a história anterior ao seu advento é interpretada como uma preparação providencial da encarnação do Cristo, para trazer a salvação; conseguinte, toda a história da humanidade se relega à fé universal em Jesus Cristo. Dessa forma, o cristianismo se encaixa em uma noção linear de tempo e, também, se faz como uma religião que só é possível de realizar-se na história. O cristianismo inova, dessa maneira, a experiência e o conceito de tempo litúrgico ao afirmar a historicidade da pessoa do Cristo (ELIADE, 2010, p. 66). Além disso, o cristianismo, teoricamente, propõe-se a findar a história mediante o apocalipse. Em oposição a isso, temos o mundus romano que, consoante com Eliade (2010, p. 39, 46), era a imagem do Cosmos no próprio hábitat humano. O simbolismo do Centro do Mundo97, é, na maior parte dos casos, uma forma de entender esse comportamento religioso em relação ao “espaço em que se vive”. A necessidade de se viver nesse Centro, até na própria residência – no nosso caso, do cidadão romano –, demonstra que o homem religioso busca por essa existência em um mundo total e organizado, dentro de um Cosmos (ELIADE, 2010, p. 43). A cidade de Roma situava-se no meio do orbis terrarum, e sua instalação naquele território simbolizava a fundação de um mundo em sintonia com o Cosmos. Agnolin (2013, p. 99) ressalta, além disso, que a ideia de Cosmos e res publica coincidiam com perfeição: não há 97

De acordo com Eliade (1996, p. 72), em sua obra Imagens e Símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágicoreligioso, um “Centro” representa um ponto ideal, que não pertence a um espaço geométrico, profano, mas, a um espaço sagrado, no qual pode-se realizar a comunicação com o Céu ou o Inferno; em outras palavras, o Centro é aquele lugar paradoxal que representa a ruptura dos níveis, o ponto em que o mundo sensível pode ser ultrapassado.

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diferença entre ambos. A verdadeira dissemelhança era entre o romano e seu oposto, o não romano, e tal disparidade produzia-se internamente e externamente às muralhas. A verdadeira diferença se produz esse cósmico e o caótico. Notamos, portanto, o que significava uma religião que pregava o fim da ordem e da existência da res publica, ilustrada em uma oposição entre o mos maiorum que valorizava os tempos ancestrais e a tradição, e o cristianismo, com a projeção no futuro e no Caos iminente. Os ciclos que se propagam na linearidade – noção romana – se opõem, dessa maneira, às concepções de começo, meio e fim cristãs. É necessário perceber, por isso, que o fator mais utilizado pelos cristãos para discursar sobre o tempo era a profecia: como aponta Reinhart Koselleck (2006, p. 316), a profecia é algo que pode sempre ser renovada. O erro manifestado pela mesma, por meio da não realização, passa a ser uma prova de que a profecia – no caso, apocalíptica – haverá de ocorrer da próxima vez em que um fim iminente for proposto. Essa estrutura repetitiva da expectativa apocalíptica garante que quaisquer experiências contrárias ao previsto possam ser imunizadas, pois, atestam de maneira retrospectiva àquilo que primeiramente afirmavam. Tratam, isto posto, de expectativas que não podem ser desfeitas por nenhuma experiência que oponham-nas, porquanto se estendem para além do mundo terreno e fogem do poder de intervenção humana. Ressaltamos que essa é, dessarte, uma das principais características que fez o cristianismo manter – e aumentar com o decorrer dos séculos – seu número de fiéis; a observância da fé em um deus único que era milagroso, a promessa do maior dos prêmios ao fim dos tempos – estar ao lado de Deus em um paraíso de felicidade eterna – e a certeza de justiça que faria jus a todo o sofrimento que os cristãos passaram garantiria que, independentemente da densidade e da intensidade das perseguições, das adjetivações de superstitio, dos martírios e das humilhações públicas, o cristão que não pecasse ou, ao menos, se arrependesse, poderia relegar a segundo plano todos os reveses terrenos que o acometessem. O deus vingativo que Celso aponta é, consequentemente, o mesmo deus dos judeus para aqueles cristãos católicos; a diferença se produz, entretanto, na escala de sua vingança que, se antes era um acúmulo de um povo só, passará a ser uma vingança universal contra todas as manifestações da injustiça dos pagãos ante aqueles que se chamavam cristãos, que decidiram seguir seu filho, Jesus Cristo. Como retrata Max Weber (2009, p. 337), em nenhuma religiosidade existe um deus universal com a sede de vingança de Jeová; o valor histórico da descrição de todos os fatos antecedentes à atualidade cristã, que baseiam-se em uma religiosidade da retribuição divina, ainda mantém as práticas, tanto dos judeus quanto daquelas novas seitas cristãs, de uma esperança da retribuição. Outro tópico relacionado às noções fundamentais que, aparentemente, é o que mais leva a leituras sobre o conservadorismo de Celso – que estão contidas em trabalhos citados por nós

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no primeiro capítulo desta monografia –, são seus dizeres sobre as diferenças de se pensar o ritual. Em uma passagem do autor, lemos: ...deste modo não há nada de errado se cada pátria observa suas próprias formas de culto, e na verdade nós entendemos que a diferença entre as nações é bastante considerável, embora (naturalmente) cada uma pense sua maneira de fazer as coisas de longe a melhor. A saber: os Egípcios que vivem em Meroé cultuam apenas Zeus e Dionísio. Os Árabes cultuam apenas Urânia e Dionísio. Os Egípcios todos cultuam Osíris e Isis; o povo de Saís, Atenas [...] e assim como o resto de nós de acordo com nossas respectivas leis (CELSO, Discurso Verdadeiro, VI, 91–100).

Como escreve Paul Hartog (2010, p. 57), o Discurso Verdadeiro revela que Celso era um conservador tradicional que acreditava que “religião” era inextricavelmente ligada aos costumes de um povo, e que por trás de todos esses costumes pairava uma doutrina anciã que existia desde o começo, a doutrina verdadeira. Celso (Discurso Verdadeiro, II, 58–62) aponta em outra parte de sua obra que excluir os outros nomes do deus maior demonstra a ignorância cristã. Não importa, logo, se usa-se nomes gregos, ou indianos, ou os utilizados anteriormente pelos egípcios. Com a sua concepção de uma única doutrina verdadeira, Celso demonstra que aquele que dá origem a ela, o Demiurgo, é único e manifestou-se para todos os povos que o chamam de diversos nomes; os cristãos, assim sendo, são tolos em relegarem os outros nomes a demônios ou a segundo plano. Fazendo isso, eles mesmos cometem um erro contra seu deus, por não compreenderem-no nas diversas culturas que se manifestam no plano terreno. É como salienta Jan Assmann (2010, p. 34): o real significado dessa ideia cristã primitiva não era a de haver apenas um deus e nenhum outro; ao contrário, que ao lado desse deus verdadeiro, há apenas falsos deuses, os quais tornam-se estritamente proibidos de serem adorados. São duas coisas diferentes entender, assim, que afirmar a existência de um só deus grandioso pode ser compatível com aceitar outros deuses, e até adorá-los, desde que a relação entre deus e deuses seja compreendida como uma de subordinação, e não exclusão; exclusão, deste modo, transforma-se no ponto decisivo. Para um filósofo como Celso, compreender o Demiurgo como deus súpero não eliminava o papel dos seus subordinados. Retornando às suas assertivas, percebemos que ele compreende que nada previne os cristãos de participarem de festivais públicos, para demonstrarem sua devoção às relações sociais e sinalizarem sua fidelidade ao Império. Se, como os mesmos dizem, os ídolos não são nada, então não há motivo que os impeça de atenderem aos festivais públicos. Por outro lado, se esses ídolos realmente existem, mesmo que como demônios, eles devem pertencer ao deus cristão, pois, ele criou tudo que existe; sendo assim, apesar de ocuparem essa posição demonizada e inferior, o dever de um cristão é

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“...acreditar neles, sacrificar a eles, e rezar a eles pelo bem comum do povo.” (Discurso Verdadeiro, X, 82–93). Essa discussão sobre ritos influencia outra, interligada a essa: sobre os costumes. Celso, nesse assunto, evidencia que: ...não há nada de errado com um povo antiquíssimo como os Judeus manterem suas leis; a culpa está mais com aqueles que abandonaram suas próprias tradições a fim de professar aquela dos Judeus – aqueles que agem como se tivessem obtido uma revelação profunda que autoriza-os a virar as costas para seus amigos e conterrâneos sob pretexto de que encontraram um nível maior de piedade e ouviram que sua doutrina dos céus não é original por meio deles, mas (apenas como exemplo), foi mantida há muito pelos Persas (CELSO, Discurso Verdadeiro, VI, 128–136).

A quebra de tradições, por conseguinte, não é algo relegado somente aos cristãos: afeta todos aqueles que rompem seus laços. Fundamental para a manutenção do costume é a repetição do rito, que procura sempre ser igual a si mesmo, transformando-se numa perspectiva de realidade que seja imutável; associa-se, desse modo, ao mito, que é contado de pessoa para pessoa – ou no caso das religiões do livro como o judaísmo, cristianismo e islamismo, se mantém escritos para que qualquer um que compreenda a língua possa ler, mas não necessariamente, entender –, sendo responsável por fixar e consolidar uma realidade pretendida, geralmente de um tempo passado (AGNOLIN, 2013, p. 147). O rito e o mito encenam o sagrado que, de acordo com Eliade (2010, p. 31–32), é o real por excelência, sendo simultaneamente poder, fonte de vida, eficiência e fecundidade. O homem religioso possui, portanto, desejo de viver “no sagrado”, equivalendo a um desejo de estar em uma realidade objetiva, de não se deixar ser paralisado pela relatividade sem fim de experiências puramente subjetivas, profanas; busca, logo, viver em um mundo real e eficiente, não em uma ilusão. Para os romanos, e aparentemente para a maioria dos filósofos que destoavam-se da forma de se pensar e racionalizar o Cosmos, a miscigenação de latinos, sabinos, etruscos, dentre outros, não permitiu um tipo de homogeneidade religiosa; apesar da língua comum tornar-se o latim – nos referimos aqui ao período antes da res publica tomar proporções imperiais, quando então as línguas grega e latina passam a competir entre si –, a religião era romana e ser um cidadão romano estabelece a condição para praticá-la. Essa religiosidade, consequentemente, era a marca da identidade (SCARPI, 2004, p. 139–140). Assim, dentre todos esses elementos, a ancestralidade de uma tradição e suas práticas ritualísticas amplia o respeito aos seus costumes e, no Império Romano, mantém-na tolerável e admissível. Mais do que isso, como indica Jan Assmann (2010, p. 105), essas culturas rituais, ou cultos religiosos, tipicamente operam na assunção que o universo sofreria, ou até se findaria,

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se os ritos cessassem de serem observados na maneira prescrita. Rituais sempre serviram para manter essa ordem do Cosmos, constantemente ameaçada de colapso. A prática de pax deorum evidencia-se nesse caso, pois ratificava as contratualidades do Império ante os povos vizinhos e subordinados, em questões relacionadas ao comércio, cultura, política, dentre outros. A religião funcionava como um intermédio de comunicação, não de eliminação e exclusão. O princípio da “tradutibilidade”98 de nomes divinos ajudava a superar o etnocentrismo primitivo dessas religiões, para estabelecer relações entre culturas, e manter as mesmas transparentes entre si (ASSMANN, 2010, p. 19). Verificamos que a dissidência do cristianismo transfigurase em perigosa por duas razões: romper com sua tradição milenar, o judaísmo, e criticar um sistema que, aparentemente, era um dos pilares que sustentavam o Império Romano. Assmann (2010, p. 29–30) além disso salienta que essa concepção de idolatria desmantela-se com esse exclusivismo monoteísta, que não mais contenta-se em idolatrar a Deus apenas, mas, começa a progressivamente negar que os deuses de antes sequer existem. A partir de Tertuliano, aos fins do séc. II d.C., o termo religião enquanto ligado ao cristianismo aparece, sendo utilizado em sua Apologia com objetivo de individuar, definir e afirmar a identidade da vera religio, ou seja, o cristianismo, transformando assim o sentido desse termo que possuía outro significado na tradição latina (AGNOLIN, 2013, p. 225). Observamo-lo, por exemplo, na seguinte passagem de sua obra: E desde que essas coisas assim são, como demonstramos, é evidente que nenhuma outra esperança de vida prostra-se perante o homem, exceto que, colocando de lado vaidades e lamentáveis erros, ele deve conhecer a Deus, e servir a Deus; a não ser que ele renuncie a sua vida temporária, e treine-se pelos princípios da retidão para o cultivo da verdadeira religião (TERTULIANO, Apologia, IV, XXVIII, 1–2, grifo nosso).

O conceito de religião é, à vista disso, uma invenção cultural cristã, metamorfoseandose em uma ferramenta utilizada pelos missionários e evangelizadores para propagar suas categorias religiosas (AGNOLIN, 2013, p. 159). Como descreve George van Kooten (2010, p. 9), isso é o que cada vez mais causou um problema para o cristianismo, pois ele ativamente engajou-se em criticar costumes religiosos centrais, tanto judeus quanto pagãos. Quanto mais o cristianismo distinguiu-se do judaísmo, mais ficou vulnerável como uma nova associação que não respeitava as tradições religiosas existentes. O valor competitivo desse cristianismo primitivo ante as outras religiões foram seu monoteísmo radical, seus ritos sem sacrifícios, seu universalismo e concomitantemente um criticismo de religiões localizadas, que se produz pelo

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Traduzimos assim o termo em inglês de Jan Assmann (2010, p. 19), “translatability”.

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desenvolvimento da religião étnica que propicia seu nascimento, o judaísmo (KOOTEN, 2010, p. 24). Como ressalta Celso: Viremos nossa atenção ao invés aos renegados do Judaísmo, os Cristãos, aqueles conduzidos pela feitiçaria de Moisés e seduzidos por seu deus, Jesus. [...] Tal é a extensão de seu mal e de sua ignorância. Cristãos, é desnecessário dizer, detestam uns aos outros completamente; eles difamam-se entre si constantemente com as formas mais vis de abuso, e não conseguem chegar a qualquer tipo de acordo em seus ensinamentos. Cada seita rotula seus adeptos, enche suas cabeças de bobagens enganosas, e faz perfeitos porquinhos daqueles que ganha para sua causa (CELSO, Discurso Verdadeiro, VI, 159–161; 203–209, grifo nosso).

Para Celso, em vista dessa passagem e de todo o exposto anteriormente, o cristianismo carecia de constância e consenso entre os seguidores de Cristo. Não pode haver, portanto, a segurança da ordem que a tradição mantinha, já que cada seita decidia-se por seguir um caminho diferente e pregar uma verdade discrepante. Consequentemente, não há, para o autor, algo que os cristãos pudessem chamar de uma vera religio.

3.1.1. As apropriações cristãs da Doutrina Verdadeira: a fundamentação do debate de Celso na perspectiva filosófica Apesar do tópico anterior tratar de aproximações e dissensões, consequentemente demonstrando algumas apropriações, a noção máxima de apropriação a partir de Celso vem da doutrina verdadeira. Como lemos em um excerto de seu manuscrito: Qualquer um sabe que há tal coisa como uma doutrina verdadeira. Isso deveria ser óbvio a qualquer um que comprometa-se a escrever sobre tais coisas. Tudo que é, tudo que existe, possui três coisas que tornam o conhecimento de si possível. O conhecimento do algo em si é geralmente considerado como um quarto atributo. O quinto atributo é o que é conhecível e verdadeiro. Colocando na linguagem de Platão: o primeiro é o nome; o segundo, a palavra; o terceiro, a imagem; o quarto, conhecimento (CELSO, Discurso Verdadeiro, VII, 25–33, grifo nosso).

A diferença entre Platão e os escritores cristãos, de acordo com Celso, é que ele não proclamou tais conhecimentos como originários de si, nem que ele desceu dos céus para trazer essa nova doutrina. Se uma teoria ou mito é similar àquelas pertencentes a outras religiões e filosofias, como pode a mesma erigir-se como a única válida? Contrário ao que afirmavam os cristãos sobre seu exclusivismo, o cristianismo não era mais do que outra religião (HARGIS, 1999, p. 42). Celso (Discurso Verdadeiro, VIII, 35–46), novamente citando Platão, relata que o mesmo ensina que o Bem, que contrapõe-se ao Mal, não nos é alcançável em um primeiro momento, pois encontra-se obscurecido; quando o mesmo sai da escuridão e passa a habitar a

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luz, nossa percepção desse Bem ainda é dificultada pela própria fraca capacidade de contemplálo. Porém, para os cristãos, esse Bem, que é parte de Deus, torna-se atingível a partir do momento em que Deus lança o seu espírito em um corpo humano (Jesus), para que todos os humanos, independente de terem algum nível de conhecimento filosófico ou não, possam ouvir e aprender o que ele tem a ensinar. Essa ideia, como observamos, contraria toda a exposição de Celso de que apenas aqueles que esforçam-se a alcançar um alto nível de sabedoria são dados ao privilégio de superar a condição material. Tal verdade, que cada cultura e sociedade compreendem de uma forma, mas, que é a mesma, como Celso coloca previamente, é corrompida pelos cristãos: Alguns poucos proclamam saber mais do que os Judeus. Que assim seja: assumamos que mesmo que eles não possuam autoridade alguma por sua doutrina seu ensinamento suporte ser averiguado – e deixe-nos examiná-lo. Falemos sobre sua sistemática corrupção da verdade, sua equivocada compreensão de princípios filosóficos relativamente simples – os quais é claro eles estragam completamente (CELSO, Discurso Verdadeiro, VI, 214–220, grifo nosso).

É importante demarcar que, por mais que Celso utilize majoritariamente de citações de Platão para fundamentar seu discurso, ele reconhece que a ideia não é apenas platônica; em exemplo, dissertando sobre a prática de cura por intermédio da invocação de demônios no Egito, Celso (Discurso Verdadeiro, X, 280–303) descreve alguns nomes desses demônios, que totalizam trinta e seis. Os egípcios, relata, reconhecem que cada parte do corpo corresponde a um demônio; se necessário utilizar-se de práticas de cura para uma parte específica, o demônio dessa parte precisa ser invocado. Diferentemente, os cristãos, por exemplo, utilizam apenas o nome de Jesus para todas as práticas; o autor proclama que não está fazendo um juízo pejorativo da invocação demoníaca em seu todo, mas, que meramente está expondo que similarmente aos egípcios que invocam trinta e seis nomes diferentes, os cristãos escolhem por memorizar apenas um. Sua exposição sobre esse assunto termina, dessa maneira, com um aviso de que “É preciso ter cuidado ao acreditar em tais coisas para que não se torne absorto na cura, e caia nas superstições associadas às práticas mágicas, e assim desviando-se das coisas maiores, os objetos apropriados da reflexão” (CELSO, Discurso Verdadeiro, X, 299–303). Independentemente que sejam adorações a demônios que necessitam de oferendas de sangue, é correto reconhece-los formalmente quando a razão assim determina. Deve-se compreender, de acordo com Celso (Discurso Verdadeiro, X, 309–322), que demônios podem sim serem satisfeitos com símbolos de agradecimento, mas, que o que deve realmente ocupar a mente das pessoas, dia e noite, é o Bem: em público ou privadamente, em cada palavra e ato e no silêncio da reflexão, o ser humano deve dirigir-se para a contemplação do Bem. Enquanto o

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Demiurgo for o sujeito que está em evidencia no ato de pensar, as pequenas devoções que são feitas em relação aos poderes desse mundo – ou seja, os demônios, os Príncipes e os Governantes – não tornam-se atos horríveis. Contrário à toda essa doutrina verdadeira que Celso narrava, que unia civilizações por meio de uma manutenção de costumes milenares, da observância pública dos ritos, o cristianismo oferece uma outra doutrina verdadeira: em conformidade com Max Weber (2009, p. 394), verifica-se que esse cristianismo primitivo, em geral, não parte de interesses políticosociais, nem, muito menos, de instintos de uma parte pobre da sociedade. Ao contrário, vem de uma eliminação total desses interesses, que faz surgir a força da “religião de amor” cristã, que, em um primeiro momento, é apolítica; isso faz crescer todas as doutrinas que, independente de virem do lado católico ou gnóstico, prezavam pela salvação do humano, seja por intermédio de congregações representadas por um bispo – católica – ou pela salvação individual pela gnosis – gnóstica. Weber (2009, p. 417) além disso demonstra que, pelo lado católico, há um traço anti-intelectualista99, que começa a condenar a sabedoria helênica, bem como a rabínica – que é judia –, e esse torna-se o único atributo altamente específico da doutrina, que, nos aspectos remanescentes, não era nenhuma novidade para “todo mundo e todos os fracos”.

3.2.

O choque doutrinário e as mudanças na educação do Império Romano Marrou (1973, p. 103), ao dissertar sobre os mestres da tradição clássica, discorre que

após a geração dos grandes sofistas e de Sócrates, um período fecundo mas tumultuoso, sucede outra época, aquela que marcaria e conduziria a educação antiga à sua maturidade e a uma forma definitiva que perdurou por vários séculos, transmigrando entre diversas regiões e culturas. Com Isócrates (ca. 436 – ca. 338 a.C.)100 e Platão, surge a ação de delinear, de maneira definitiva e nítida, no pensamento próprio desses filósofos e na consciência antiga, os quadros gerais da cultura grega; indiretamente surge, dessa forma, os próprios âmbitos que precisariam 99

Claro que, nesses primeiros dois séculos nos quais a Igreja Católica ainda não possuía autoridade alguma para falar de um cristianismo verdadeiro, as ideias helenizadas, pensadas por cristãos intelectuais, ainda circulavam abertamente, podendo os mesmos teorizarem sobre o Antigo Testamento e os vários evangelhos com a ajuda de cânones gregos e romanos. 100 Escritor ateniense de discursos e panfletos. Aprendeu sobre tutela de vários nomes importantes, dentre eles o sofista Górgias. Vivendo às custas de seu pai que era rico, mas, que vai à falência devido à guerra do Peloponeso, passa a utilizar de sua retórica para iniciar uma carreira de comentador e escritor. Insatisfeito com essa fase de sua vida, funda por volta de 390 a.C. uma escola de retórica em Atenas. Publica uma obra importante nessa época, denominada Contra os Sofistas, destinada a combater os exercícios de aprendizado dos mesmos que só almejavam o âmbito político. Contribuiu significantemente para a educação grega, ultrapassando as barreiras da retórica ao alcançar um espaço prático para seus ensinamentos. Ver: HAZEL, John. Who’s who in the Greek World. London & New York: Routledge, 2002. p. 135–137.

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a educação helenística. Deve-se registrar também que, por mais que esses parâmetros estivessem definidos, a educação clássica adotou duas formas antagônicas: uma de tipo filosófico, e a outra de tipo oratório, das quais Platão e Isócrates foram os inauguradores, respectivamente. Nossa análise tendendo à parte platônica, que circunscreve boa parte do apelo de Celso, faz com que o ideal de sabedoria prevaleça, mais do que o de eficiência prática. O aspecto moral da educação, além da formação pessoal e da vida interior, eram características marcantes da herança socrática que é divulgada por Platão; deixando pouco a pouco essa órbita do ideal político, estes educadores fazem da cultura pessoal, dessa expansão do “Eu”, o fim de todo o esforço humano: a partir deles penetramos a ética da Paidéia, que buscava proporcionar um cidadão completo em todos os campos do corpo e da alma, traço esse marcante da civilização helenística (MARROU, 1973, p. 105). Conforme Marrou (1973, p. 119), tais ensinamentos de Platão, observa-se, criticavam tenazmente a expressão poética das divindades e dos heróis, pois, os mesmos passavam ideias errôneas e deturpadas dos mitos. Contrariando a Verdade, que cinge o pensamento de Platão, essas poesias desviavam o espírito de seu fim, ou seja, a conquista da ciência racional. Opondo filosofia à poesia, Platão coloca em pauta um embate: deve a educação permanecer artística e poética ou deve tornar-se científica? Tal problema não seria resolvido, dividindo-se a partir desse momento reivindicações contrastantes das “letras” às “ciências”. Platão, dessa maneira, vê o ensino como o meio para formar um homem ideal, mesmo que o grupo dos mesmos fosse pequeno, um destaque em meio a uma sociedade corrompida. A aspiração do sábio é passar a vida a ocupar-se de si mesmo. O pensamento platônico, de início, desejava restaurar a ética da cidade antiga, mas, acaba por transcender a esse ideal e embasar aquilo que seria, posteriormente, a cultura pessoal do filósofo clássico (MARROU, 1973, p. 129). Essa cultura helênica, com o tempo, influenciou os – e foi influenciada por – macedônicos, quando os mesmos conquistaram os gregos, e, posteriormente, os romanos, que fizeram o mesmo. Sendo de nosso interesse o Império Romano, após a mescla dessas culturas, percebe-se que em um primeiro momento a oposição entre gregos e romanos baseia-se, antes de tudo, no contraste entre dois estágios de desenvolvimento: o que se chama naturalmente de virtus romana não é senão aquela moral dos antepassados, à qual permaneciam fiéis os romanos da República, discrepando-se do desenvolvimento já avançado das ciências e artes gregas, pela ética personalista da Paidéia (MARROU, 1973, p. 357); se dá a comparação então entre: do lado grego Homero, como base para educação e, do romano, a imitação dos ancestres (MARROU, 1973, p. 368). Essas discrepâncias vão se esvaindo com o passar dos séculos até

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que, como denota Marrou (1973, p. 377), há uma insistência por parte de historiadores, e com certa razão, de que houveram profundas transformações nesta “invasão” do helenismo em Roma, influenciando os domínios da cultura do espírito e, consequentemente, da educação. Devemos ressaltar, entretanto, que o Império Romano não obteve unificação linguística correspondente a esse duplo movimento de consolidação política e cultural até cerca do IV séc. d.C., consistindo assim um espaço bifurcado de influências (MARROU, 1973, p. 396). Desde o período de Fílon de Alexandria até a virada do séc. II para o III d.C., os filósofos no Império passavam por experiências de tentar diversas doutrinas simultaneamente, desde que alguma delas predominasse no pensamento do mesmo; o ecletismo possibilita, por exemplo, a Celso ser platônico e ao mesmo tempo tirar proveito de poesias de Homero e Hesíodo para exemplificar suas exposições, como percebemos em boa parte de sua obra101, algo que séculos antes seria inaceitável de acordo com os preceitos de Platão; entretanto, independentemente desse cenário que parece passar uma imagem de desprendimento que uma certa tendência oferecia, a noção da doutrina verdadeira que permeava as civilizações e as ideias unia circunstâncias que aparentavam serem diferentes. Como ressalta Celso: Muitas das nações do mundo mantêm doutrinas similares àquela dos Cristãos. Isso leva alguns pensadores a concluir que há uma fonte original para as várias opiniões que parecem ser a “verdadeira” doutrina [religiosa]. [...] por trás dessas ideias, [...] há uma doutrina anciã que existe desde o começo – uma doutrina, assim é dito, mantida pelos homens mais sábios de todas as nações e cidades (CELSO, Discurso Verdadeiro, II, 1–5; 12–15).

Podemos considerar a partir de Celso que independentemente de qual civilização possua certas doutrinas e seus costumes, todas dispõem de semelhanças que invariavelmente confluirão para um ponto comum, a doutrina verdadeira; ela é a responsável por manter as equivalências entre os mitos, deuses que são análogos sob nomes diferentes, ritos, ideias e doutrinas que possuem similaridades inegáveis. Oposto a isso, segundo Marrou (1973, p. 482), eram os primeiros cristãos, desejosos de romperem com esse mundo pagão que para eles aparentava possuir inúmeros erros, consequentemente criando para si uma forma de escola de inspiração religiosa, distinta e rival desse modelo clássico que iniciara na Hélade; porém, mais notável ainda, foi o fato dos mesmos reclamarem a posse daquele conhecimento nesse primeiro momento, ao invés de condená-lo. Constatamos, isto posto, que além dos cristãos primitivos desaprovarem aquela cultura pagã, afirmavam que as ideias desses pagãos eram provenientes de um antepassado judaico-cristão; e tal foi o efeito disso que, como evidencia Celso (Discurso

Celso (Discurso Verdadeiro, IX, 130–132), por exemplo, cita Homero: “Como Homero diz, “Os deuses o levarão aos campos Elísios nos confins da Terra, e lá a vida será fácil.” 101

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Verdadeiro, I, 35–36), “Mais e mais os mitos colocados por esses Cristãos são mais conhecidos do que as doutrinas dos filósofos.” Sobre a relevância e difusão desses cristãos que aparentemente angariavam cada vez mais adeptos, Keith Hopkins (1998, p. 185) em artigo intitulado “Número Cristão e Suas Implicações”102 defende uma tese central que, para ele, proporcionalmente haviam poucos cristãos no Império Romano, ao menos até o fim do séc. II d.C. Como dispõe o autor, uma ideia, por mais que radical, é a de que o cristianismo em cerca de um século após a morte de Jesus foi propriedade intelectual de alguns poucos seguidores letrados dispersados pela bacia do Mediterrâneo. Outra hipótese é a de dois momentos marcantes para o crescimento dessa religião: primeiramente, durante o séc. III d.C., devido às perseguições que abarcaram boa parte do Império, e no séc. IV d.C., após a conversão do Imperador Constantino e da aliança da Igreja com o Império, e dessa forma prosseguindo sucessivamente com outros Imperadores. O pequeno tamanho dessa Igreja primitiva e a escala de proporção que a mesma adota para seu crescimento, subsequentemente, resultou em implicações importantíssimas para a organização dessa religião. Como exemplos já adentrados nesse trabalho, Hopkins (1998, p. 189–190) supõe que, ao invés da interpretação que leva a pensar que Plínio em suas cartas no início do séc. II d.C. falava de vários cristãos sendo julgados em número de centenas, é mais provável que se tratassem de dezenas. E mesmo que fossem centenas, se tratava de uma situação atípica. Templos pagãos ainda floresciam e mantinham sua popularidade nos dois séculos seguintes; Hopkins crê portanto que Plínio descreve os números de forma incerta, ou, que o caso é anormal. Contrário aos levantamentos feitos por escritores anteriores que seguem um método indutivo pelas fontes, como Adolf von Harnack (1906)103, o método de Hopkins é especulativo e segue uma noção de probabilidade. Por exemplo, o autor diz que por volta de 100 d.C., estimase que o número de cristãos espalhados pelo Império era de sete mil. Em torno de 200 d.C., respectivamente, esse número altera-se para duzentos mil fiéis, aproximadamente; se pensarmos em termos proporcionais, mesmo com esse crescimento, isso representa uma fração diminuta da população total do Império Romano, que chegava a cerca de sessenta milhões de habitantes. Claro que, ante essa aparente insignificância, um objetor poderia formular que tais números por si só não retratam necessariamente a importância da religião; entretanto, o número 102

HOPKINS, Keith. Christian Number and Its Implications. Journal of Early Christian Studies, Baltimore, v. 6, n. 2, p. 185–226, 1998. 103 Em: HARNACK, Adolf von. Mission und Ausbreitung des Christentums in den ersten drei Jahrhunderten. Leipzig: J. C. Hinrichs’sche, 1906.

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de membros em um movimento religioso é sim a mensura de sua notabilidade, já que isso articula-se de forma intrínseca à noção de aderência por meio da pregação (HOPKINS, 1998, p. 195). O crescimento exponencial que se dá no cristianismo, logo, reflete uma alta de sete mil para duzentos mil entre o séc. I e II d.C. e, de forma espantosa, a cerca de seis milhões de cristãos aos fins do séc. III d.C. (HOPKINS, 1998, p. 198). Considerando essas aproximações delineadas por Hopkins, que extravasam as indicações de cristãos apenas em cidades citadas nas fontes, não há razão para crer que por causa das escassas referências que as fontes nos passam, deva ser assim escasso o grau de difusão do movimento cristão. Também, esses grupos cristãos encontravam-se, geralmente, em casas particulares; pode-se conjecturar, assim sendo, que em cidades maiores essas comunidades se disseminavam em diversas casas, onde praticavam a fé com regularidade, mas, que não necessariamente se sentiam unidos com as outras congregações da região (HOPKINS, 1998, p. 200). Esses lugares que acolhiam cristãos para as cerimônias, geralmente, deveriam contar com pouquíssimas pessoas que sabiam ler e, sem risco de exagerar, Hopkins (1998, p. 212) presume que para uma proporção de vinte homens que estavam presentes nessas comunidades – que abarcavam também mulheres e crianças –, dois deles conseguiam, na melhor das hipóteses, ler; mais raro ainda eram os casos em que haviam homens realmente letrados que poderiam ser categorizados como pessoas altamente alfabetizadas. O desenvolvimento do cargo de leitor nessa Igreja primitiva fortalece essa hipótese, devido à necessidade de alguém que pudesse ler em voz alta para aquela comunidade iletrada (HOPKINS, 1998, p. 211). Constatamos, a partir disso, que essa autoridade particularizada desse cargo de leitor, que poderia ser incorporada por um diácono, um padre, um bispo, ou até um alguém que simplesmente se propusesse a ser o leitor, proporcionou o desenvolvimento do método alegórico, tão utilizado para interpretar e tão difundido, que acaba sendo também observado por Celso: Seus livros são cheios de estórias sobre as traições de mães, Deus aparecendo na Terra em vários disfarces, irmão assassinando irmão, homens alegadamente justos tendo relações sexuais com diversas mulheres que não suas esposas [...] Não é de se admirar que os sensatos entre os cristãos, envergonhados como deveriam estar por tais estórias, procuram refugiaremse nas alegorias! – já que elas são, nada obstante, fábulas muito estúpidas (CELSO, Discurso Verdadeiro, V, 161–165; 167–180).

Sem necessariamente entrar na questão de um escapismo da realidade por intermédio da alegoria afirmado por Celso, a maior adversidade que o método alegórico abarca é, certamente, a vastidão das interpretações. Agostinho de Hipona (Livro I, 3), em sua obra De

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Haeresibus ad Quodvultdeum, cria uma lista com oitenta e oito seitas cristãs diferentes presentes nos primeiros séculos, ou seja, um vastíssimo número de grupos, cada um imaginando-se como aquele que pregava o necessário para ser um “verdadeiro cristão”. Como evidencia Hopkins (1998, p. 217), o cristianismo primitivo era dogmático e hierárquico: dogmático, no sentido que os líderes de cada grupo reivindicavam que suas interpretações da fé cristã era a única e verdadeira; hierárquico na noção em que tais líderes alegavam legitimidade para a autoridade de sua interpretação a partir de sua função de padre ou bispo; bispos esses que, praticamente, possuíam alto nível de controle sobre os assuntos que concerniam suas comunidades. Observamos a atestação em Inácio de Antioquia, que ao enviar uma epístola a Policarpo de Esmirna no início do séc. II d.C., escreve que: Se ele começar a se gabar, ele é desfeito; e se ele considera-se maior que o bispo, ele arruína-se. [...] Dê atenção ao bispo, para que Deus também dê atenção a você. Minha alma seja daqueles que são obedientes ao bispo, aos presbíteros, e aos diáconos, e que minha porção esteja com eles em Deus! (INÁCIO DE ANTIOQUIA, Epístola a Policarpo, V, 4–5; VI, 1–2).

Possuir alfabetização, no mundo antigo, significava ter perante si o poder da interpretação textual. De acordo com os levantamentos de estimativa que Hopkins produz (1998, p. 208–209), podemos calcular uma aproximação do número de letrados. Hopkins considera, por exemplo, que o Império possuía 1% de homens adultos nos cargos de Senadores, Governantes, Magistrados, dentre outros; ou seja, funções públicas e/ou atreladas a quaisquer atividades que necessitavam de amplo uso da leitura e da escrita. Além desses, haviam também aqueles que compunham uma espécie de “sub-elite”104, uma camada um pouco confusa de se estimar a proporção; mas, o autor arrisca dizer que constituíam mais 2% dessa população total, sendo que metade deles dispunha de uma fluência literária sofisticada. Unindo essas duas metades especulativas, Hopkins conclui que, dentre as sessenta milhões de pessoas em território imperial, aproximadamente quatrocentos mil – com predominância majoritária de homens – portavam certa sofisticação literária. Além de tais condições, o que aglomerava mais ainda iliteratos era uma característica inicial desse cristianismo, ou seja, serem contra excessos de riqueza, poder, luxúria e, ao invés disso, por exemplo, optarem pela humildade por meio de ofícios artesanais. A presença de uma pessoa que pudesse ler os evangelhos era, de fato, uma exigência que o cristianismo, por ser uma das religiões do livro, acaba por criar; dificilmente esse leitor seria advindo de uma camada pobre dessa sociedade, tornando-se a exceção e o detentor da interpretação. Sobre o exposto Celso denota que: 104

Termo de Keith Hopkins (1998, p. 209).

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Até os Cristãos mais inteligentes pregam esses absurdos. Suas injunções são assim: “Não deixem ninguém educado, ninguém sábio, ninguém sensível chegar perto. Pois essas habilidades são tidas por nós como males. Mas para qualquer um ignorante, qualquer pessoa estúpida, qualquer um não educado, qualquer pessoa infantil, deixe que ele venha audaciosamente.” [...] Além disso, vemos que esses Cristãos mostram suas malandragens no mercado e vão ali implorando. Eles não ousariam entrar em uma conversação com homens inteligentes, ou expressar suas crenças sofisticadas na presença dos sábios. Em contrapartida, onde houver uma multidão de adolescentes, ou um bando de escravos, ou uma companhia de tolos, lá estarão também os professores Cristãos – exibindo sua amável nova filosofia (CELSO, Discurso Verdadeiro, IV, 126–131; 136–143, grifo nosso).

Esse tipo de deboche da parte de Celso complementa-se, por exemplo, com essa circunscrição de abarcar pobres, artesãos, mulheres, crianças, e outros, todos em um mesmo espaço. Tais inícios de religiões que são marcadas por um profeta que aparenta ser livre de preconceitos, como Jesus, Buda e Pitágoras, acarreta o que Weber (2009, p. 333), tendo como exemplo, demonstra como uma grande suscetibilidade de mulheres para todo tipo de profecia religiosa não exclusivamente orientada por ideias militares ou políticas. Entretanto, dificilmente isto se conserva além daquela primeira etapa dessas religiões, enquanto esses carismas baseados na inspiração sagrada ainda são apreciados como elevações religiosas específicas. Conseguinte a esse primeiro movimento, a cotidianização e regulamentação dessas relações congregacionais destoam-se desses fenômenos inspiracionais, considerados contrários à ordem e mórbidos nas mulheres. O cristianismo desse primeiro momento acolhia a todos; porém, posteriormente, constrói-se novamente uma centralização do poder de voz nas mãos de homens, retirando aquele breve espaço de fala de mulheres como Marcelina, líder da seita que leva seu nome, que citamos anteriormente por intermédio de Celso. Como peneja no Discurso Verdadeiro (IV, 131–135), o fato dos cristãos admitirem que essas pessoas são dignas de seu Deus mostra que eles são apenas capazes de convencer os desonrosos, escravos, mulheres e crianças; isto é, todos aqueles que não possuíam chances de salvação pelas outras doutrinas. Devemos ressaltar que essa polarização que se produz entre as escolas pagãs e os ensinamentos cristãos acirravam-se em um traço que observamos em Celso, percebendo que sua análise criticava essa religião que mais se preocupava com a mediação entre homem e Deus focando-se no post mortem, do que uma intervenção de propósito cultural e obtenção da reta razão em vida, com a relação entre homem e Demiurgo. Para Marrou (1973, p. 486), o cristianismo no mediterrâneo estava em concordância com a escola pagã; ele argumenta que, de início, esse cristianismo não almeja uma adaptação da vida terrestre. Se toda doutrina profunda sobre o homem e sua vida pretende, naturalmente, explicitar progressivamente as consequências práticas implícitas em seus princípios e causar assim uma consequência direta

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na civilização em questão, esse processo só aparece após séculos de desenvolvimento de suas bases fundamentais. As primeiras gerações cristãs, por exemplo, edificaram os alicerces cruciais para a civilização cristã do porvir: concentraram-se em dividir a parte dogmática, a moral, a disciplina por meio dos cânones e a liturgia. Ainda assim, mesmo que uma religião seja um tipo de movimento que busque ambições totalitárias, não pode escapar das influências profundas, conscientes ou não, do meio civilizacional no qual se desenvolve; com o termo de “osmose cultural”, Marrou (1973, p. 486) realça que o meio de uma civilização é como um “fluido nutriente que banha os homens e as instituições, mesmo sem seu conhecimento, mesmo à sua revelia”. Se considerarmos Celso como tendo sido realmente um habitante de Alexandria, ou qualquer outra cidade com capacidade de concentração de várias doutrinas, filosofias e escolas, podemos conjecturar que o mesmo presenciou todos esses conflitos, e foi partícipe deles. Como articula Hopkins (1998, p. 202), nas grandes cidades de Roma, Alexandria, Antioquia e Cartago, que destacavam-se por terem populações acima de cem mil habitantes, as comunidades cristãs eram substanciais; a presença de casas privadas e até espaços que assemelhavam-se a Igrejas provavelmente possuíam milhares de membros, o bastante para criar a necessidade de uma hierarquia de profissionais e clérigos, com um programa visível de suporte aos pobres. Celso (Discurso Verdadeiro, IX, 19–24), por exemplo, que confessa conhecer as regiões da Fenícia e Palestina muito bem, diz possuir um conhecimento em primeira mão das pessoas que lá habitam e dos tipos de profecia que ali circulam. Conclama, ainda, que a prática de profetizar era feita por vários que ali perambulavam; tais pessoas mostravam-se inspiradas, exprimindo que “Eu sou Deus”, “Sou o Filho de Deus”, ou “Sou o Espírito Santo”, e completavam suas afirmações dizendo que o mundo estava perto de seu fim (CELSO, Discurso Verdadeiro, IX, 25–49). Ressalta, adiante, que tais dizeres só atingem os tolos e os feiticeiros, pois, o homem sábio não se dá ao trabalho de sequer descobrir o que aquilo significa. Perfaz seu argumento afirmando que: De fato, conversei com numerosos desses profetas após ouvi-los, e questioneios cautelosamente. A partir de um interrogatório meticuloso (após ganhar sua confiança) eles admitiram para mim que não passavam de fraudes, e que eles planejaram suas palavras para se adequar à audiência e deliberadamente fizeram-nas obscuras (CELSO, Discurso Verdadeiro, IX, 50–55).

Se ele possui veracidade ao afirmar tais palavras ou não, independentemente, faz-se manifesta sua tentativa de deslegitimar todas as práticas de profecia das regiões que viajou; desvalorizando-os, coloca em evidência, ao mesmo tempo, dizeres de Jesus Cristo, denegrindo

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assim o homem que para os cristãos era modelo de sabedoria e, inclusive, exemplo de como morrer valorosamente. As alegações são confusas, já que se faz perceptível uma recusa inicial das doutrinas que ali permaneciam, para, depois, tirar proveito delas. Tão profunda foi essa imersão que, a partir do séc. II d.C., como Marrou (1973, p. 497) apresenta, homens como Justino Mártir e Taciano (ca. 120 – ca. 180 d.C.)105, que mostravam-se ornados com o título de filósofos, chegando a vestir também os mesmos trajes. Observemos, primeiramente, por exemplo, uma passagem que atesta o que Marrou descreve, em Justino Mártir: Enquanto eu ia em uma manhã nas passagens do Xystus106, um certo homem, com outros acompanhando-o, tendo me abordado, disse, “Olá, ó filósofo!” [...] E eu no que lhe diz respeito me dirigi a ele, dizendo, “O que há de importante?” E ele respondeu, “Fui instruído”, diz ele “Por Corinto e Socrático em Argos, que eu não deveria desprezar ou tratar com indiferença aqueles que arranjam-se nessa vestimenta mas mostrar a eles toda a bondade... (JUSTINO MÁRTIR, Diálogo com Trifão, I, 1, 1–7, grifo nosso).

Similarmente temos Taciano (Aos Gregos, XXXII, 4–5; 20–21), que peneja que “Não apenas os ricos dentre nós buscam nossa filosofia, mas os pobres desfrutam de instrução gratuita [...] Para aqueles que queiram aprender nossa filosofia, não os testamos pelas aparências...”. Marrou (1973, p. 498) expõe ainda que esses cristãos eram tão filósofos que receberam hostilidade, de certa maneira profissional, de filósofos rivais pagãos. Tal tipo de aparência produzida por esses homens, que implicava um certo tipo de ensino, perdurou até o séc. III d.C.: chegaram a ter estátuas107 produzidas para representa-los, como a de Hipólito de Roma (ca. 170 – ca. 236 d.C.)108, que mostra-o como um filósofo ensinando, sentado em um trono. Essa instabilidade dos cristianismos primitivos, que cremos ser parecida em quaisquer outros movimentos religiosos que surgem em grandes civilizações, foi marcante para as atitudes cambiantes e paradoxais de muitos dos patrísticos e de fiéis: ora criticando veementemente as doutrinas anteriores, ora aderindo à elas e se comportando como os mesmos filósofos que escarniavam, tais características foram constatadas por Celso e, consequentemente, utilizadas

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Escritor cristão catalogado entre os Apologistas. Primeiramente pagão, após viajar por vários lugares, encontrou–se com os escritos cristãos e se converteu. Conviveu com Justino Mártir, de quem se considerou e foi considerado discípulo. Após a morte de Justino, passa a fazer parte de uma seita, denominada encratista, cujos membros possuíam tradição ascética, que proibia casamentos e aconselhavam a abstinência de carne. Ver: BOLGIANI, F. Taciano. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 1321–1322. 106 Termo arquitetônico grego que denota um pórtico coberto de um ginásio. 107 Ver anexo I, p. 110. 108 Escritor que viveu a segunda metade do séc. II d.C. e a primeira do séc. III d.C. Foi bispo, de acordo com Eusébio Pânfilo e Jerônimo de Estridão; escreveu várias obras, dentre elas Sobre a ressurreição, Syntagma contra todas as heresias, Elenchos, dentre outras. Suas obras são essencialmente comentários a textos sacros e quase sempre sobre o Antigo Testamento, interpretado por uma exegese tipológica, que o aplica a Cristo e à Igreja. Ver: NAUTIN, P. Hipólito. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 679–681.

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para compor seu discurso; o autor notadamente aproveitou-se disso para exibir seus argumentos e lançar a primeira tentativa sistematizada que possuímos de combater esse movimento religioso. Estando presente provavelmente em Alexandria que, junto aos outros grandes centros de escolas filosóficas, eram lugares que “irradiavam” movimentos que futuramente são tachados como heréticos – como percebemos, a presença e influência dessas outras doutrinas não poderia ser totalmente ignorada por esses patrísticos que, na maioria das vezes, cresciam em escolas que ensinavam Platão, os estóicos, dentre outros –, Celso percebe a aparente hipocrisia desse movimento que acabara de se instaurar e, logo, proferia-se como possuidor da verdade única. O título de sua obra, Aléthés Logos, a “doutrina verdadeira”, faz jus à sua exposição a qual, como demonstramos, tenta arquitetar um argumento que assevere que a mesma doutrina a tudo permeia, e não é de autoria de um único homem, uma única civilização ou uma única religião. Se esses cristãos acarretassem tal assertiva, poderiam continuar vivendo pacificamente no Império Romano que, naquela época, englobava muitas dessas doutrinas. Como Celso explana: ...aqueles que se mantêm próximos de seu pequeno deus estão dificilmente seguros! Vocês são banidos da terra e do mar, amarrados e punidos por sua devoção ao seu demônio Cristão e levados para serem crucificados. Onde está então a vingança de seu Deus nos seus perseguidores? Proteção, de fato! (CELSO, Discurso Verdadeiro, X, 141–146).

Não há, para ele, uma razão distinta dos cristãos para julgarem sua crença como verdadeira e o que os outros acreditam como mitos (CELSO, Discurso Verdadeiro, X, 205– 207). Conforme Celso (Discurso Verdadeiro, X, 325–329), amar o Imperador e servir a Deus são deveres complementares: se adora-se a Deus, a pessoa não será influenciada por aqueles que comandam-na a blasfemar e dizer coisas sediciosas sobre as autoridades do Império. A estabilidade de qualquer civilização, de acordo com ele, é o dever do homem bom que zela por ela: Isso é o que um homem bom faz: ele aceita um cargo público pela preservação da lei e da religião, se for necessário a ele fazê-lo; ele não corre do dever público. Ele não corrompe as leis nomeadas, na premissa de que se todos assim fizessem, seria impossível para a lei funcionar (CELSO, Discurso Verdadeiro, X, 391–396).

Assim, como era o propósito da maioria das doutrinas filosóficas, cada qual em sua maneira, levar uma boa vida era o ápice de qualquer ideal pregado por elas. Conforme escreve Cícero (VIII, 33–35) na res publica romana do séc. I a.C., em sua obra Do sumo bem e do sumo mal, “...deve entender que só é bom o que é honesto, e que viver feliz e honestamente é o mesmo que viver com virtude.”; similarmente, Sêneca (Cartas a Lucílio, 71, 2), que foi um filósofo estoico no séc. I d.C., retrata que “Sempre que queiras saber qual a atitude a evitar ou a assumir,

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regula-te pelo bem supremo, pelo objetivo de toda a tua vida.” Finalizando seu tratado, Celso (Discurso Verdadeiro, X, 397–400) expressa que já basta de falar das doutrinas dos cristãos e que “Resta a mim agora compor outro tratado, para o benefício daqueles dispostos e capazes de acreditar no que eu aqui disse, e para ensiná-los como levar uma boa vida.”

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Introduzimos, nessa monografia, o aspecto que é o centro de convergência dos pontos explorados por Celso para debater o cristianismo em sua obra. Verificamos a intenção de Orígenes ao responde-la e, posteriormente, estreitamos o debate à nossa fonte, demonstrando como, livre da real intenção de Celso, de quem praticamente nada sabemos, o texto por si só se valida e impede interpretações absurdas. Sobre o viés filosófico de Celso expomos o porquê da escolha que fizemos e, à vista disso, concordamos com o lado que conjectura o autor como um filósofo platônico eclético. Além de nos alicerçarmos nas opiniões prévias, acrescentamos a ela uma possibilidade posterior de corrupção do Contra Celso por Rufino, que simpatizava com as ideias de Orígenes de forma a tentar defender seus escritos da controvérsia origenista, evento que causou a perseguição aos ensinamentos do mesmo; mostramos, assim, como Rufino pode ter editado partes do Contra Celso que chegam à posteridade, com a finalidade de salvar alguns dos textos de Orígenes da heresia, exibindo um provável epicurismo de Celso, corrente filosófica que acabava sendo utilizada para denominar e consequentemente pejorar um indivíduo, para, assim, atestar que o platonismo de Orígenes era superior ao epicurismo de Celso. Acerca das perseguições, atestamos que os cristãos eram perseguidos por não aderirem às exigências que mantinham o Império Romano estável: a participação nos ritos públicos e a devoção ao Imperador e seus subordinados. Os mesmos são, por isso, acusados do nomen Christianum, atribuição ligada intrinsecamente à superstitio, que trazia o caos para a manutenção das instituições sociais. Compreendemos além disso que o mártir, mais que apenas morrer em nome de seu deus, causava – conscientemente ou não – a aderência de mais adeptos à fé cristã e à própria prática de martírio, que fortaleceu a propagação do cristianismo. A crítica de Celso se constrói, sobretudo, no quesito educacional: a forma como os cristãos primitivos pregavam era, para Celso, uma deturpação de vários ensinamentos filosóficos antigos; mais do que isso, aqueles princípios que antes eram voltados para os que buscavam enobrecer o espírito, alcançar a virtus e depreender-se da materialidade – atitudes essas que basicamente eram obtidas por um treinamento da razão para aprender a dar assentimentos e juízos corretos às impressões do mundo – são ressignificados por bispos, patrísticos, dentre outros, para simplificar e reorganizar em uma nova teoria todas essas ideias anteriores, tornando-as acessíveis até para aqueles que não possuíam tempo suficiente para o ócio como o de um filósofo. Essa prática de apreensão da ideia por parte do letrado – um bispo,

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por exemplo – e a reversão daquilo em uma forma de sermão para os fiéis da comunidade em questão, facilitou o primeiro momento de propagação desse cristianismo, uma vez que trouxe oportunidades tanto para intelectuais que procuravam por novidades doutrinárias, quanto para aqueles que raramente – ou nunca – possuíam acesso a tais tipos de ensinamentos que voltavamse a algum propósito além do da sobrevivência. Do séc. III d.C. em diante, o crescimento exponencial dos cristãos e a obtenção de poder e espaço dos clérigos não puderam ser contidos nem pelas grandes perseguições no Império Romano. Como nota Marrou (1973, p. 500–501), com a obtenção desse espaço a exegese e a teologia tornam-se progressivamente as disciplinas características de uma nova cultura cristã; não apenas os membros do clero, mas, também os fiéis mais simples anexam à sua atividade profana um tipo de ação religiosa, que começa a preponderar. O cristianismo dos dois primeiros séculos que procurava emular e apropriar-se dos traços pagãos de filosofia, a partir do momento que se vê difuso entre um vasto número de adeptos, descarta a ideia de fundar um didaskaleion como aquele de Orígenes em Alexandria e passa a relegar seus modos de educação à catequese e à predicação. Homens como Jerônimo de Estridão, por exemplo, que viveram do séc. IV ao V, tiveram aulas com grandes nomes cristãos da época de maneira particular, sem caráter professoral; a realidade, no entanto, para a massa de fiéis, não era a mesma. Podemos relegar como sendo a última tentativa de manter a educação tradicional grecoromana a lei escolar do Imperador Juliano, datada de 362 d.C., de acordo com Marrou (1973, p. 493). Tal lei interditava o ensino aos cristãos, dado que explicitava a necessidade de se submeter a profissão pedagógica à autorização prévia das províncias e da sanção imperial, para assegurar assim a competência e moralidade dos docentes. Marrou (1973, p. 493) relata que os cristãos que explicam Homero e Hesíodo sem acreditar nos deuses que ali estão postos em cena, são acusados de falta de honestidade, pois, lecionam algo que não acreditam. A opção para eles, então, é apostatar ou deixar o ensino. Juliano almejava, assim, valorizar novamente a união que marcava o paganismo com o classicismo, que resume-se no termo helenismo. Entretanto, essa investida do Imperador é revogada em 364 d.C. e os mestres cristãos reassumem seus postos, retornando à Igreja o crescente monopólio sobre a educação. Consoante Weber (2009, p. 303, 315), a ética helênica e romana careceu de dois aspectos: um sacerdócio independente organizado e o fenômeno histórico que cria, ainda que nem sempre mas com certa normalidade, a centralização da ética sob aspecto da salvação religiosa, ou seja, a profecia. Percebemos, assim, que o sacerdócio cristão baseou-se num profeta, que é um sistematizador no sentido da homogeneização da relação do homem com o mundo e, consequentemente, cria o papel para o sacerdote que é aquele que ordena esse

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conteúdo da profecia no sentido de estrutura-la racionalmente, adaptando-a aos costumes mentais e da vida de sua própria camada letrada e dos leigos que estão sob sua tutela. Essa Igreja Católica que posteriormente se destaca ante as heréticas, demonstra que o valor religioso último não é, portanto, um concreto dever ético, nem a qualificação ética da virtude – que se alcança mediante a observância religiosa –, mas a obediência à instituição, que é tida como benemérita e central para a salvação (WEBER, 2009, p. 377). Se por um lado, no séc. II para o III d.C. Celso vislumbrou o início dessa crescente dimensão dos ensinamentos cristãos e refletiu sobre o dever do sujeito com o Império Romano, sem esquecer que a sua salvação está apenas dentro de si por intermédio da filosofia, por outro lado a Igreja tornou-se séculos depois o único meio para a redenção. As doutrinas que antes ofereciam o conhecimento que leva ao resgate da alma, basicamente acessíveis àqueles que possuíam alfabetização e ócio suficientes, foram trocadas pela relação entre uma certa permanência da cultura do filósofo pessoal, representada pelo cristão letrado que prática o ascetismo e é responsável por formular as diretrizes do pensamento cristão – como Agostinho de Hipona, por exemplo –, contrastando-se com o fiel simples que, da mesma forma que o intelectual cristão, pode também vir a ser salvo ao fim de uma vida miserável, por meio da crença, da obediência ao clero, da fé na doutrina. Eis, portanto, a revolução educacional cristã.

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ANEXOS Anexo I: Estátua de Hipólito de Roma

Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/9b/HippolytusStatue.JPG Acesso em: 01/07/16 às 19:06.

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Anexo II:

Mapa dos primeiros cristãos

Fonte: http://www.ladocumentationfrancaise.fr/cartes/religions/c001028-les-premiers-chretiens-duier-ive-siecle. Acesso em: 02/07/16 às 17:45.

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