PEREIRA, Lucas C. S. A. O que fazer, o que falar, o que vestir e por onde andar: notas de pesquisa sobre a tentativa de regulamentação da prostituição na Belo Horizonte da década de 1920. I Seminário Nacional Poderes e Sociabilidades na História, RECIFE, 2008.

June 5, 2017 | Autor: Lucas Pereira | Categoria: History of Prostitution, Police Accountability, Police and Policing
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I Seminário Nacional

Poderes e Sociabilidades na História. UFPE – Recife, 03 a 07 de novembro de 2008

O QUE FAZER, O QUE FALAR, O QUE VESTIR E POR ONDE ANDAR: NOTAS DE PESQUISA SOBRE A TENTATIVA DE REGULAMENTAÇÃO DA PROSTITUIÇÃO NA BELO HORIZONTE DA DÉCADA DE 1920. Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira* Resumo: O trabalho trata das tensões entre polícia e prostitutas na cidade de Belo Horizonte - MG. Privilegiou-se o estudo da formação e atuação da Delegacia de Fiscalização de Costumes e Jogos no ano de 1927, que implantou o Serviço de Registro das Meretrizes. Após várias tentativas de organizar uma polícia dos costumes, os poderes executivo e legislativo reformaram a organização policial em meados da década de 1920, com o intuito de atualizar técnica e cientificamente seu efetivo. Dialogando, dessa forma, com delegacias do gênero existentes em outros estados brasileiros, e buscando seu espaço na formação do campo da criminalística no Brasil. É possível inferir que tais tentativas de regulamentar a prostituição possuem uma relação com o que veio ocorrendo desde o início daquela década no Brasil, por outro lado percebemos que essas ações enfrentaram resistências por parte das mulheres daquele ofício, que persistiram lutando por seu espaço na cidade.

Palavras-chave: prostituição; costumes; regulamentação. “Mesmo quando se limita a dizer com autoridade aquilo que é, ou então quando apenas se contenta em enunciar o ser, o auctor produz uma mudança no ser: pelo fato de dizer as coisas com autoridade, ou seja, diante de todos e em nome de todos, pública e oficialmente, ele as destaca do arbitrário, sancionando-as, santificandoas, consagrando-as, fazendo-as existir como sendo dignas de existir, ajustadas à natureza das coisas ‘naturais’.” (BOURDIEU, 1996:109)

Apresentação Esta comunicação tem o intuito de apresentar algumas reflexões iniciais desenvolvidas pelo meu projeto de pesquisa, elaborado a partir da minha primeira Iniciação Científica. 1 Tal projeto, que tomou fôlego no decorrer do último semestre, tinha como objetivo inicial analisar e compreender a construção dos discursos policiais e católicos acerca da prostituição na cidade de Belo Horizonte, bem como os mecanismos de representação utilizados nesses e por esses discursos. Durante meses de vivência nos arquivos, a pesquisa acabou trilhando outros caminhos. Centrou-se na configuração de uma rede de saberes e poderes, que tinha como ponto de partida, para sua atuação, a instituição de diferenças e a nomeação de problemas * Aluno do 8º período do curso de graduação em História da UFMG. 1 Minha iniciação científica versava sobre os “Pequenos ofícios: na memória e na história (Belo Horizonte, 1920-1960)” e contava com a direção e orientação de Maria Eliza Linhares Borges (UFMG), a pesquisa foi desenvolvida ao longo do biênio 2005-2007 e contou com o apoio financeiro do CNPq. Durante este período pesquisamos, dentre outros documentos, os códigos de posturas e a legislação da capital mineira, contendo normas e prescrições relativas ao comércio ambulante e às atividades exercidas por prestadores de serviços que detinham um saber específico e desenvolviam seu trabalho em locais relativamente fixos. Entendíamos como “pequenos ofícios” as atividades exercidas pelos alfaiates, costureiras, sapateiros, fotógrafos lambe-lambe, e também pelos ambulantes, carroceiros, donos de vendas de bairros, entre outros.

sociais a serem resolvidos, solucionados e combatidos. Um desses problemas era o da prostituição, que foi vista como algo a ser estudado e avaliado, a ser delimitado e consagrado em espaços específicos para seu exercício. Instituindo, dessa forma, a diferenciação social, cultural, e política no e do espaço público. Procurarei compartilhar as inquietações surgidas durante o período de pesquisa, bem como as hipóteses primeiras e os caminhos possíveis que meus trabalhos poderão seguir. Da mesma forma, espero poder receber e acolher as críticas e conselhos oriundos dos debates que ocorrerão. O que se segue pode ser lido como um relato de campo. Ecos distantes Em pesquisas realizadas nas bibliotecas da historiografia mineira e belo-horizontina, tive contato com uma dissertação de mestrado em Ciência Política intitulada “Ordem pública e desviantes sociais em Belo Horizonte (1897-1930)” e defendida em 1987 por Luciana Teixeira Andrade. Através dela soube da existência de uma instigante delegacia: a Delegacia de Fiscalização de Costumes e Jogos, criada pelo Decreto 8068 que aprovou o Regulamento do Serviço de Investigações em 12 de dezembro de 1927, vinculando-o à recém-criada Secretaria da Segurança e Assistência Pública (MINAS, 1927c).

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Com a descoberta da

delegacia, vieram ecos distantes oriundos de gritos quase silenciados, de inúmeras mulheres. 3 Andrade se aventurou pelos vestígios da tentativa de construção de uma ordem pública na cidade de Belo Horizonte. Sua dissertação, apesar de compor um trabalho de ciência política, e de ser passível de críticas elaboradas no âmbito de novos estudos sobre a cidade, tem seu lugar na produção historiográfica sobre Belo Horizonte.

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Seu intuito era

articular dois temas presentes nos debates acadêmicos daquele momento: “o tema da ordem social e o tema do desvio e da criminalidade”, tendo como pano de fundo a capital de Minas durante o período de 1897 a 1930, e com o objetivo de detectar as formas com que a polícia procurou implantar a ordem e identificar os “desviantes sociais” (ANDRADE, 1984: I).

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A Secretaria da Segurança e Assistência Pública (SSAP) foi criada pela lei n° 919, de 4 de setembro de 1926, a partir de um desmembramento das funções da Secretaria do Interior, onde funcionava a Chefia de Polícia. E tinha como suas atribuições: realizar os serviços de segurança pública e de polícia, cuidar da higiene, saúde e da assistência pública. Em 1930 a Secretaria foi extinta pela lei n° 1147, de 06 de setembro. E seus serviços retornaram à Chefia de Polícia na Secretaria do Interior. 3 Brinco com as palavras que Chalhoub usou na sua dissertação de mestrado, Trabalho, Lar e Botequim, justificando o uso dos processos crimes enquanto fonte de pesquisa e defendendo a utilidade dessa fonte para compreensão de parte da visão de mundo dos trabalhadores, e do cotidiano da capital federal. 4 O principal trabalho que procura seguir outro caminho – que não a interpretação, há muito, incorporada pela historiografia que propõe uma dualidade estigmatizante e simplista dos espaços da cidade: centro para elite X periferia para populares – é a tese de doutoramento de Tito Aguiar, intitulada “VASTOS SUBÚRBIOS DA NOVA CAPITAL: formação do espaço urbano na primeira periferia de Belo Horizonte”.

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No segundo capítulo desse trabalho há um espaço considerável, que trata da ação policial frente às prostitutas na capital mineira. Infelizmente, as nove páginas que abordaram o tema nesse capítulo não deram conta da complexidade daquelas relações; mas, pensando por outro ângulo, aquelas páginas possibilitaram a elaboração de novos problemas e novas pesquisas. A dissertação de Andrade chamou minha atenção por duas razões, que se seguem. Primeiramente, por tratar de um tema pouco explorado pelos historiadores que trabalham com a história de Belo Horizonte: a questão da criminalidade e a construção da ordem pública. Creio ser possível dizer que, com a cidade instalada, inúmeros problemas bateram às portas do poder republicano sediado na nova capital, e que desde o início a questão do crime e do controle social começou a delinear-se. 5 Porém, não pretendo cair no equivoco de defender a idéia, encontrada nos documentos oficiais, de que havia se constituído, desde o início da construção da cidade, um plano de controle da ordem social de forma homogênea e linear, que foi efetivado na década de vinte do século passado. Como se tudo não se passasse de um simples continuum das prescrições contidas no Código Penal de 1890. O que podemos perceber, na documentação levantada por Andrade e a trabalhada aqui, é uma grande movimentação em torno da questão da segurança pública. Que foi, paulatinamente, tomando uma nova faceta, uma nova forma ao longo da experiência republicana – caracterizada por debates no espaço público e na tribuna, por tensões abertas e veladas, por um embate de forças, enfim. Forma essa, mais estruturada – o que não quer dizer cristalizada – e mais elaborada – o que não quer dizer, necessariamente, melhor. E dessa movimentação parece ter surgido a Secretaria da Segurança, citada logo acima. O segundo ponto é que sua dissertação permitiu perceber outro movimento, o de intervenção policial sobre os costumes dos belo-horizontinos. A criação de uma delegacia de costumes, apesar de praticamente ignorada pela historiografia mineira, e de ter sido pouco explorada pela autora, parece-me o indício de um marco importante na formação de uma cultura criminalística em Minas Gerais. Essa delegacia, aparentemente sem importância, quando submetida ao olhar do historiador pode se tornar uma preciosa fonte de questões e problemas para a compreensão da formação do policiamento dos costumes, da regulamentação do amor venal e da ampliação do controle estatal sobre o mundo do prazer (RAGO, 1990:120). Sugiro, dessa forma, que a criação daquela delegacia fez parte de um 5

Afirmo isso remetendo aos dados levantados por Andrade – retirados dos Relatórios de Polícia ao Secretário do Interior – que dão indícios claros de que desde a entrada do século houve uma grande preocupação com a questão da segurança pública em Belo Horizonte e no estado. Os relatórios da SSAP, também permitiram esse tipo de leitura. Diferentemente do que demonstra o memorialista e “historiador oficial” da cidade Abílio Barreto (1995); ou ainda com Djlama Andrade (1947), romancista, em sua História Alegre de Belo Horizonte.

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projeto amplo de educação da população. Naquilo que dizia respeito às formas de circulação e atuação no espaço da coletividade e sociabilidade entre as famílias; ao modelo de civilidade e civilização pretendido; aos costumes e condutas dignas de um cidadão, e de uma ‘mulher honesta’; e à sexualidade saudável. Apesar do exposto, e de sua importância para a historiografia, seu trabalho estava interessado em situar-se no âmbito da ciência política. Não obstante sua incursão na história, a autora parece utilizá-la como recurso para verificação de suas hipóteses e das categorias desenvolvidas no seio da ciência política, próprias daquele período. Pretendo, ao contrário, compreender a política e a sociedade através da história. Introduzido o tema, feita a reverência acadêmica e nomeada a distinção, resta apresentar os pressupostos teóricos e desenvolver as primeiras impressões e hipóteses do projeto de pesquisa proposto. Do labirinto das idéias... “Em suma, gostaria de desvincular a análise dos privilégios que se atribuem normalmente à economia de escassez e aos princípios de rarefação, para, ao contrário, buscar as instâncias de produção discursiva (que, evidentemente, também organizam silêncios), de produção de poder (que, algumas vezes têm a função de interditar), das produções de saber (as quais, frequentemente, fazem circular erros ou desconhecimentos sistemáticos); gostaria de fazer a história dessas instâncias e de suas transformações” (FOUCAULT, 2007: 19).

O que proponho é uma leitura crítica do passado, percebendo-o no seu movimento. Junto com Paul Veyne, procuro compreender os “compossíveis não-realizados”; com Walter Benjamin, busco “despertar no passado as centelhas da esperança”; com Carlo Ginzburg, fixo minha atenção às “zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem” decifrar a realidade opaca; mas, na tentativa de aprender com E. P. Thompson, observo que “certos acontecimentos (políticos, econômicos, culturais) relacionam-se, não de qualquer maneira que nos fosse agradável, mas de maneiras particulares e dentro de determinados campos de possibilidades” (VEYNE, 1983: 55; BENJAMIN, 1994: 224; GINZBURG, 1989: 177; THOMPSON, 1981: 61). Ao expor esses pressupostos, demonstro a forma com que meu trabalho procura entender a história e a relação que podemos manter com ela. Busco, dessa forma, a tangente das fronteiras estabelecidas pela nossa disciplina para compreender o mundo social. Mantendo diálogos (com diferentes áreas do conhecimento) que possam ser úteis àquilo que é próprio da história, que é próprio da vida.

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Creio que as hipóteses de Bourdieu, quando ele analisa os significados do ato de falar, são interessantes para a realização, pelo historiador, da crítica interna e da crítica externa ao documento. Resumindo precariamente suas palavras: a fala pressupõe uma relação de forças, e o poder da palavra não se encontraria nela mesma, mas no reconhecimento, pelo interlocutor, da veracidade daquilo que se fala e da autoridade daquele que fala. Ainda segundo ele “ao estruturar a percepção que os agentes sociais têm do mundo social, a nomeação contribui para constituir a estrutura desse mundo, de uma maneira tanto mais profunda quanto mais amplamente reconhecida (isto é, autorizada)” (BOURDIEU, 1996: 81). Os estudos de História Social da Linguagem também podem nos oferecer preciosas ferramentas para nossa relação com o documento. Pois através da linguagem adentramos tanto no conhecido quanto no desconhecido mundo de homens da lei, das mulheres descritas e prescritas em códigos de posturas e dos fiscais administrativos de outrora. Ou seja, ela possibilita encontrar uma gama enorme de indícios de realidade, e compreender mais claramente as relações sociais e políticas de determinado período. Mas, mais do que uma janela para o passado, a linguagem pode se tornar objeto de estudo por si só (PORTER, 1993: 15). Nesse sentido é preciso atentar para aquilo que a forma, o meio e a variedade lingüística empregadas pelo locutor nos informam; e também para os lugares de onde se fala; para o significado do uso de uma determinada expressão em um lugar específico e não em outros; dentre outros de problemas que podemos formular. A crescente historiografia brasileira, por sua vez, vem produzindo trabalhos importantes no que diz respeito àquilo que entendo como uma tentativa de organização estatal em torno de um controle, uma disciplina da segurança pública e do comportamento sexual, como podemos inferir a partir da leitura dos trabalhos de Rago, Carrara, Engel, Marques, entre outros. No Brasil, desde o século XIX, autoridades médicas e administrativas tentaram implantar uma nova política de controle do sexo nas cidades em desenvolvimento; algo semelhante aos regulamentos dos centros europeus, procurando higienizar o espaço público, interpretar e diagnosticar o corpo das prostitutas e efetivamente intervir no cotidiano das práticas sexuais consideradas ilegítimas. Médicos no Rio de Janeiro, em São Paulo, Curitiba e Belém, propuseram e defenderam, desde aquele momento, inúmeras teses sobre a necessidade de regulamentação da prática do amor venal, ou melhor, do comércio dos prazeres. O regulamentarismo, entretanto, nunca foi efetivamente incorporado como um projeto político a ser implementado em âmbito nacional, mas teve seus momentos de execução, a exemplo de Curitiba, Belém e Belo Horizonte (ENGEL, 1989; RAGO, 1990; CARRARA, 1996; MARQUES, 2004). 5

No que toca à produção historiográfica sobre esta última cidade, limito-me a evocar o recente – e inovador – trabalho do historiador Tito Aguiar. Remontando à historiografia esse autor sugere que a expansão econômica e populacional da cidade teve como ponto de apoio: o funcionamento de três novas ligações ferroviárias com centros importantes; a criação de vários bancos privados devido ao crescimento da produção cafeeira; e o desenvolvimento da exploração mineradora no entorno da capital (AGUIAR, 2006: 309 - 312). Para ele “a transformação urbana de Belo Horizonte nos anos 1920 deve ser entendida como um dos passos iniciais de um processo acelerado de crescimento da cidade, tanto físico e populacional quanto econômico” (Idem: 312). Em outras palavras, o significativo crescimento populacional e da circulação de pessoas e de capitais (culturais e financeiros) tiveram um importante papel na configuração de outras formas de sociabilidades possíveis, que poderiam ser exploradas a partir daquele momento naquela jovem capital. 6 ...à opacidade das fontes. Rememorando o momento da criação da Secretaria da Segurança e Assistência Pública, o secretário José Francisco Bias Fortes em seu Relatório referente ao ano de 1928, apresentado ao presidente do estado Antonio Carlos de Andrade, afirmou que “[o presidente] se impôs de criar esta Secretaria unindo, para boa solução os dois problemas: de preservação social e de preservação física” (MINAS, 1929a: 49). Neste mesmo relatório, encontramos outros indícios de que a criação da Secretaria envolvia um plano de reestruturação da organização do poder público (Idem: 3-6). O que significa dizer que naquele momento a administração pública tinha ânsia de modernização. Os serviços de identificação e estatística receberam novos equipamentos e também uma nova, e grande, biblioteca de estudos de criminalística, com inúmeros títulos nacionais e estrangeiros sobre temas diversos da área. No meio dessa biblioteca, vale a pena registrar, encontravam-se, entre outros, os títulos de Boiron – La prostitution dans l’Histoire, devant le droit, devant l’opinion; Commenge – La prostitution clandestine à Paris; Dufour – Geschichte der Prostitution; Schuppe – Die Staatlicke Uebermachung der Prostitution; e os brasileiros Chrysolito de Gusmão – Dos 6

Cruzando os dados dos anuários estatísticos de 1920, de 1922-1925 e o de 1900/1950, obtemos um valor de crescimento populacional na capital, entre os anos de 1920 e 1925, estimado em 52 %. Saindo da casa dos cinqüenta mil para chegar a quase oitenta e cinco mil pessoas. Se compararmos os anos 1920 e 1930, percebemos um crescimento estimado em quase 100% – alcançando a casa de 116.981 habitantes no ano de 1930. Os dados estatísticos não foram devidamente trabalhados devido à enorme margem de erros que tais levantamentos podem suscitar. Vale ressaltar que os dados do senso publicado em 1929 acusam 52619 habitantes para 1920, enquanto que o recenseamento de 1928 acusou 55563 habitantes para esse ano, o mesmo dado do senso de 1924. Por isso a dificuldade de precisar os cálculos dessa estimativa. Limitei-me a inferir dos dados a idéia de uma crescente circulação de pessoas na capital a partir da década de 1920. Para os dados iniciais, ver: (MINAS GERAIS, 1924: 7 e 275; BRASIL, 1928: 62-67; MINAS GERAIS, 1929c: 63; MINAS GERAIS, 1957: 75) Para os dados de comparação da década de 1920 e 1930 ver: (MINAS GERAIS, 1957: 75).

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crimes sexuais; Aureliano Leal – Policia e Poder de Polícia; e Elysio de Carvalho – A polícia carioca e a criminalidade contemporânea (Idem: 54-80). Os títulos estrangeiros evidenciam uma busca por material sobre a prostituição que fosse amplamente aceito e mundialmente difundido. O livro de Gusmão pode ser entendido como uma tentativa de dialogar com a produção estrangeira sobre criminalidade e sexualidade, e o de Leal como um diálogo com o campo do direito, e sobre a questão do direito de polícia. Já o título de Elysio de Carvalho serve de indício para aventar a hipótese de que: o momento da fundação de uma política de segurança pública moderna foi um período marcado pelo diálogo interestadual sobre a questão do controle social. Para tirar a hipótese do âmbito do devaneio, e melhor sustentá-la, reporto-me ao relatório da Secretaria referente ao ano de 1927 em que o delegado da Delegacia de Costumes e Jogos, Edgard Franzen de Lima, relatou um pouco sobre as relações travadas pela secretaria. Segundo ele, “...tendo como intuito fazer um estudo e observações pessoais na modelar organização policial paulista, especialmente na parte atinente à delegacia de fiscalização de costumes e jogos, dirigi-me à Capital do Estado de São Paulo, onde permaneci o tempo estritamente necessário para me inteirar da organização prática dessa delegacia especializada” (MINAS, 1928: 227).

Estamos falando de hipóteses não definitivas, mas não deixamos de estar diante de um instigante caminho a se trilhar. Já que a proposição acima nos indica que Edgard está falando de um lugar onde importa a criação de redes e a interlocução com o que se produz em outros lugares semelhantes. O diálogo com autoridades experientes, de outras secretarias de segurança, parece ter sido importante para inserir o Estado de Minas no campo específico da “ciência criminal”, que, muitas vezes, tratou a prostituição como uma patologia social. Edgard, naquele mesmo relatório, expôs seu ponto de vista sobre a portaria que baixou com o intuito de regulamentar “a conduta das meretrizes”: “Constituindo, embora, as novas exigências profundas modificações do modus vivendi dessas infelizes, não encontraram meios de contra as mesmas se insurgiram [sic], tal a legalidade evidente em que se fundavam os seus protetores, que nunca faltam e os seus exploradores que sempre existem” (MINAS, 1928: 228).

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São as próprias palavras do delegado que nos dão dicas de como ler seu relatório. É sobre os discursos político e jurídico que devemos depositar nosso olhar, e, sobretudo, no discurso criminalista. Antes, porém, seria preciso atentar às seguintes perguntas: quais os autores da portaria e das medidas de regulamentação? Onde, quando, com quem, para que, e 7

Infelizmente a portaria foi transcrita no Relatório da secretaria (1929b, p. 89) sem data de publicação. Até o momento todo documento que se referiu à portaria, não trouxe nada sobre sua publicação ou data. Esta portaria foi, entretanto, a concretização de uma política de normatização, prescrição e regulamentação da prostituição.

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para quem a escreveram? São questões aparentemente simples, mas complexas por demais para ocupar o tempo de uma pesquisa. É claro que tais perguntas não têm respostas prontas, ainda. Mas é possível perceber, por exemplo, que o legislativo mineiro estava se articulando com o executivo, no intuito, claro que não somente, de realizar um controle maior sobre os prazeres, sobre a sexualidade fora do seio da família. Nessas articulações, e discussões subseqüentes, se envolveram também médicos, juristas e as autoridades policiais. Portanto temos uma pista de quem produziu os textos que procuraram controlar as condutas das meretrizes. Sobre o escopo temporal e espacial já se discutiu mais acima. Era um tempo de mudanças, de tentativas de modernização, e de inserção da cidade no trilho do progresso; num espaço de consolidação de uma rede de saberes. O intuito das prescrições, por sua vez, parece ser maior do que simplesmente o de confinar as “indecorosas” mulheres, incapazes de assimilar a moral da família burguesa, e que “confundiam” liberdade com licenciosidade, segundo as palavras de Edgard. Parece-me que não foi a prática realizada nos “lupanares”, onde homens de família iam aliviar suas tensões, o alvo do combate. Mas justamente as práticas no meio das ruas, abusando da “tolerância”, e ofendendo a família, a mulher honesta, a “tranqüilidade pública”, enfim (MINAS 1929a: 102-103; MINAS 1929b: 88). Ou, de outra forma, o que estava em jogo nas propostas assinadas por Edgard, não era o fim da prostituição em si, mas a educação dos corpos supostamente desgarrados do corpo social, a instituição de um projeto educacional, no seu sentido mais amplo. O intuito, segundo a portaria, de “ressalvar às meretrizes, o direito de ir e vir, desde que, no uso deste direito, não pratiquem algum dos atos mencionados nas letras supra” não se encerraria, porém, na tentativa de disciplinar os corpos no espaço urbano – prescrevendo as condutas nesse espaço, definindo as fronteiras legítimas e reconhecidas do território da moral e do imoral, reprimindo e atuando violentamente sobre aqueles corpos (MINAS 1929b: 89). A portaria visava, também, instituir uma visão política e cultural do mundo; ela é um exemplo de uma tomada de posição nas lutas pelas classificações sociais. Podemos traduzir instituir como “o mesmo que impor um direito de ser que é também um dever ser (ou um dever de ser). É fazer ver a alguém o que ele é e, ao mesmo tempo, lhe fazer ver que tem de se comportar em função de tal identidade” (BOURDIEU, 1996: 100, grifos do autor). E, eu completaria, fazer ver às prostitutas, não só o que elas eram, mas também o que elas não eram, e como deveriam se comportar: em função da identidade dos homens livres da república, sedentos por espaços para desfrutar os ‘prazeres da vida’ (RAGO, 1990: 19 -21). 8

Por sua vez, as lutas pelas classificações sociais constituem “lutas pelo monopólio do poder de fazer ver e de fazer crer, de fazer conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por essa via, de fazer e desfazer os grupos” (BOURDIEU, 1996:108). No nosso caso, houve uma tentativa de reordenar o jogo do cotidiano, o jogo dos amores e prazeres, o jogo da vida. Uma pretensão de assumir o controle das ruas, dos corpos, das emoções – ou seria do instinto animal? –; dividindo o mundo dos prazeres em duas práticas: a aceitável, desde que imperceptível, sutil, discreta, invisível; e a inadmissível, porque escandalosa, tumultuosa, abusada, obscena e licenciosa. Além disso, a fala daquele delegado não estava rodando sem parar em meio a uma tempestade de ventos. Mas ecoava nos ouvidos dos seus pares, interessados em fazer acontecer as propostas de reformas do então presidente Antonio Carlos de Andrada; ressonava em diversos meios da sociedade, como jornais diversos, e revistas especializadas na área do direito. E de certa forma, Edgard tinha consigo todo o respaldo e reconhecimento do chefe de serviço de investigações e do Secretário de Estado. Além de ter conseguido reunir em seu discurso elementos chave para consolidação de um reconhecimento social entre seus pares. Por isso tudo o “Registro do Meretrício” iniciado pela delegacia em 1928, que contou com a abertura de prontuários e descrição sumária de cada ‘mulher pública’, parece ter sido uma prática aceitável. Destarte, tudo poderia fazer sentido, mas ainda não é suficiente. Pois ainda não nos faz compreender a atuação policial nas ruas da capital perante as mulheres, e sequer coloca em primeiro plano as tensões e redes de sociabilidades que se desenvolveram naquele espaço. Mas ainda podemos acompanhar os indícios. O jornal “Diário de Minas”, órgão oficial do Partido Republicano Mineiro, dedicou uma seção aos feitos da polícia nas ruas da capital ao longo de suas edições. A seção não aparenta possuir alguma periodicidade regular, mudou de nome ao longo da década de 1920, mas nem por isso parece ter mudado radicalmente seu foco: o intuito de anunciar prisões, e outras ações realizadas pela polícia parece ter sido o fio condutor dessa suposta série. Entretanto o sentido pode ter se transformado. Senão vejamos. Até 1927 aparecem alguns casos de conflitos envolvendo mulheres em bairros afastados, ou durante as noites da cidade. E o tom, das notícias era de indignação com a desordem provocada por aquelas mulheres; mas essa indignação poderia ser vista em outros casos, que não envolvessem meretrizes; não evidenciando uma perseguição propriamente dita às meretrizes. A única estratégia desenvolvida, pelo que pude perceber, para diferenciar as notícias foi: a imputação de características pejorativas e estigmatizantes, mas antes de tudo específicas, utilizadas somente para falar sobre meretrizes, ou no limite, colocar em xeque a 9

honra de mulheres que se atrevessem a ter uma conduta diferente da que se esperava. Expressões como decaídas, horizontais, provocantes, debochadas, infelizes, mulheres da vida, de vida airada configuravam parte desse vocabulário. Em 1928, com a portaria que regulamentou a prostituição, outra forma de acusação ganhou ênfase na coluna: o desacato às ordens da autoridade policial, à lei, ou ao próprio regulamento. É claro que estamos tratando de outro tipo de fonte, que não pode ser lida como fazemos com a literatura oficial. O jornal, e mais especificamente, os redatores e suas estratégias literárias e políticas devem ser considerados. E os relatos dos feitos policiais, devem ser entendidos como uma forma na qual o jornal, e em última análise o redator da coluna, se posiciona diante dos acontecimentos. Essa análise ainda precisa ser refinada. Mas nada me impede de acreditar que as pessoas relatadas nos jornais eram reais, e que de alguma forma, foram envolvidas ou envolveram-se em “casos de polícia”. Um caso especial pode ser útil para análise das relações de força envolvidas na regulamentação da prostituição em Belo Horizonte. O “Diário de Minas”, em 08 de janeiro de 1928, publicou a seguinte notícia: “Prisão por desobediência – Carmen de Tal proprietária de pensão, e Maria Pires desobedecendo à ordem que lhes foi dada para não se debruçarem por m[u]ito tempo no alpendre e não ligando importância à admoestação do guarda nº 251 foram po[r] este presas e [co]nduzidas à delegacia” (DIÁRIO DE MINAS, 1928: 3).

O que podemos inferir da notícia, buscando a teoria como apoio da compreensão histórica, é que o enunciado do ‘guarda’ não foi reconhecido enquanto um discurso de autoridade pelas suas interlocutoras. O guarda não possuía, para usar expressão de Bourdieu, um capital simbólico suficientemente forte para causar efeito nas práticas cotidianas do espaço urbano, pelo menos não para as duas mulheres da notícia acima. É possível, que a ordem do guarda tenha relação com aquela portaria transcrita no relatório referente ao ano de 1928, que, infelizmente, ainda não pode ser datada. De qualquer forma, vindo exclusivamente do guarda, ou em nome da portaria, e, portanto da Delegacia de Costumes, a ordem não teve o impacto desejado, por falta de condições sociais, ou melhor, por falta de reconhecimento da autoridade do guarda (BOURDIEU, 1996: 91-96). Em decorrência dessa exposição, podemos questionar o caráter passivo, evocado por Edgard, quando ele relatou não ter visto meios de insurgência contra a regulamentação. 8 Esse não reconhecimento, essa possibilidade de um impasse na comunicação, sugere a existência de uma cultura particular. Por sua vez, não reconhecida pelas autoridades, políticas 8

Tal fala encontra-se na página 7 deste trabalho: (MINAS, 1928: 228).

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e policiais, como uma cultura válida. No limite o que se percebia e reconhecia era uma cultura do vício, do crime (CHALHOUB, 2001; FAUSTO, 2001; RAGO, 1990). Inquieta-me essa possibilidade. Pois me faz lembrar a idéia fundamentada por Chalhoub de que “havia uma pluralidade de sujeitos políticos na sociedade, lutando a seu modo para atingir objetivos que lhes eram caros e assim governar a própria vida” no seio das primeiras décadas republicanas na capital do Brasil (CHALHOUB, 2001: VII). Leva-me a pensar, ainda, no trabalho de Cristiana Schettini que também analisou processos-crimes dessas décadas iniciais da república, e que remontou as redes de solidariedade tecidas pelas meretrizes no Rio de Janeiro, bem como suas estratégias políticas de atuação diante dos domínios da justiça (SCHETTINI, 2006). Enfim, dá asas a imaginação histórica desse aprendiz que vos fala. Deixo, porém, essas questões em aberto, sobre as quais pretendo debruçar-me num futuro próximo, no desenvolvimento da pesquisa. Voltando ao jornal, pude notar que a coluna e textos de outras seções elaboraram seus argumentos com um vocabulário parecido com o empregado pelos relatórios do delegado Edgard e do secretário Bias Fortes, e mais especificamente pelos textos jurídicos da época. Em 30 de agosto de 1927, o jornal publicou uma notícia sobre os estudos e pareceres da Corte de Apelação do Distrito Federal a respeito do lenocínio e da prostituição. A notícia é rasteira, resumida, o que prejudica o entendimento do texto produzido na corte, mas evoca conceitos caros aos estudos sobre o tema como: “patologia social”, “interesse da coletividade”, “casa de tolerância”, entre outros. (DIÁRIO DE MINAS, 1927: 3). Naquele mesmo ano de 1927 a Revista Forense, importante veículo de discussão do campo do direito em Minas, publicou no volume XLIX dois textos referentes ao lenocínio da Corte de Apelação do Rio, na seção de jurisprudência criminal. Não afirmo que haja uma relação direta entre a publicação desse texto pelo veículo da Faculdade de Direito e a notícia publicada pelo jornal. Mas isso parece indicar que o tema estava em discussão, que havia necessidade de debater e estudar o assunto, e no caso da revista, de escutar as autoridades competentes. Num dos textos, os relatores reclamam da confusão que a “semi-nudez” da moda causou nas cidades, por infiltrar-se nas famílias e misturar as classes sociais. Diante da assumida dificuldade de solução dos ‘problemas’ suscitados pela prostituição, e da possibilidade de se diluir no curso da história as distinções sociais entre a mulher honrada, honesta e a mulher desonrada, desonesta, os autores apontaram, perplexos, que “as transigências vão se manifestando e, em breve, a sociedade é uma massa confusa, onde não há distinções” (REVISTA FORENSE, 1927: 447).

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Outro indício. Desta vez um indício de impasse vivenciado pelos homens da elite. O que me força a refletir sobre a configuração da prostituição na cidade, e nas formas que ela aparece no cotidiano. Tendo como base a leitura da “Planta Geral da Cidade de Bello Horizonte – Organizada pela 1ª Seção da Subdiretoria de Obras em 1928 - 1929” gostaria de delinear algumas reflexões. É possível lançar nosso olhar para um determinado testemunho cultural, inserido nesta planta (VARGAS e GARCIA, 2007: 9-10). Ela possui uma característica predominantemente cadastral, o que nos possibilita observar os diversos usos e projetos de usos do espaço urbano. Podemos perceber uma densa ocupação da área central da cidade, mais especificamente nos arredores da estação, designada 1ª seção urbana (PBH. APCBH – R. S. Acervo Cartográfico Avulso, ordem 146). Nessa área, como pude perceber, a partir do livro de guias do Lançamento do Imposto de Indústria e Profissões da 1ª seção urbana do ano de 1926, atuavam diversos tipos de estabelecimentos como açougues, agência de loteria, alfaiatarias, barbearias, bombeiros, costureiras, consertos de chapéus, couros, depósitos diversos, dentistas, fábricas diversas, farmácias, lojas de armarinho, vendedores de frutas, de flores e gêneros, joalherias, sapataria, entre outros. Das 350 guias de recolhimento do imposto, figuravam 7 botequins, 1 “cabaret e bebidas”, 6 cafés, sendo um com indicação de outros usos, não especificados; 6 hotéis, sendo dois de 2ª classe, um de 3ª e outros três não especificados; 49 pensões, sendo uma com a designação 2ª e outra de 3ª, e as demais sem maiores detalhes (PBH. APCBH – IIP C.C.03.02.01, item 0202). Cruzando os nomes dos proprietários dessas pensões e hotéis com os dados obtidos nos livros de culpados, livros de réus, de tombo e entrada sob a guarda do Arquivo Público Mineiro e do Arquivo do Fórum Lafayete e nos anuários estatísticos desenvolvidos pela Secretaria da Segurança, percebemos que muitos desses proprietários estavam envolvidos, ou melhor, foram acusados de estar envolvidos com a prostituição, ou nos chamados ultraje público ao pudor, ou nos crimes contra a honra das famílias. A 1ª seção era realmente uma área, naquele momento, em que a polícia de costumes atuou, e procurou fiscalizar, e cercear a prática da prostituição, o mundo dos prazeres (MINAS, 1928: 229; MINAS, 1927: 28). Edgard chegou a propor uma mudança da localização da prostituição. Seu intuito era retirar a prostituição daquela seção – ou zona – e transferi-la a uma área que, segundo ele, fosse mais afastada da cidade. A indicação foi a Rua Diamantina, região da Lagoinha – que, a partir da década de 1930 e durante muito tempo, ficou marcada pela prática do amor venal (MINAS, 1928: 229). Não é possível afirmar, ainda, se o sonho de Edgard tornou-se realidade durante sua direção daquela delegacia, pois nada ainda foi encontrado sobre o assunto. Mas, 12

naquele tempo, muitos argumentavam contra a regulamentação e as casas de tolerância: por serem a favor do fim da prostituição, num tom afinado com o cristianismo e com os movimentos de esquerda; e também por serem contra a atuação repressiva da polícia, evocando a história da regulamentação como forma de aprender com os erros do passado (MORAES, 1921: 139-194). O que sugere a possibilidade de, no mínimo, ter ocorrido um debate sobre a questão da mudança de localidade da prática da prostituição. O fato é que foram criadas fichas de prontuário para o registro do meretrício. Desse movimento surgiram impetrações de Habeas Corpus a favor das meretrizes, e execuções de processos judiciais, que, segundo Edgard, prestigiaram a ação policial (MINAS, 1929c: 131). Não foi possível, porém, entrar em contato com processos-crimes e hábeas corpus que envolveram a prostituição em Belo Horizonte. Neste ponto, a pesquisa ainda está na fase de rastreamento da documentação e na espera de autorização jurídica para acessar o acervo do arquivo competente.

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Mas tudo leva a crer que esses processos podem conter o retorno de

inúmeras dúvidas, a visão de mundo das meretrizes envolvidas, e podem ser a fonte de outras incontáveis questões, que ainda não pude formular. Provocando para concluir Com intuito de provocar, mas, principalmente, tentar compreender o curso da história, gostaria de tecer algumas palavras sobre a questão da prostituição moderna. Para tanto gostaria de compartilhar a justificativa de um projeto de lei elaborado na capital mineira: “A proposta contida nesse Projeto tem a intenção de criar condições favoráveis ao incremento do processo de revitalização urbana, ora em curso em toda a região do hiper centro da cidade, ao proibir a localização e o funcionamento de usos tradicionalmente utilizado para a prática de prostituição na região em foco. Em função do exposto pedimos o apoio de nossos pares a esta iniciativa”(CÂMARA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE, 2007).

Esta é a justificativa de um atual vereador de Belo Horizonte para a aprovação de uma lei, que visa à proibição do funcionamento de hotéis naquelas mesmas ruas, da 1ª seção urbana, que foram alvo da polícia de costumes criada em 1927. Até o momento – 09 de setembro – a proposta recebeu inúmeros vetos, por ferir o princípio da lei 7166, de 1996, responsável pelo parcelamento, ocupação e uso do solo do município da capital. E não porque o projeto silencia as vozes das profissionais do sexo que ali atuam, mesmo neste tempo de um efervescente uso e abuso do conceito de democracia. Contudo, é interessante perceber aí – nos 9

Ao diretor do Arquivo do Fórum Lafayete (AFL), Bernardo Assis Cambraia Diniz, devo toda minha gratidão por possibilitar o acesso aos livros de tombo, onde pude computar dados importantes para a pesquisa e pela atenção, interesse e empenho voltados à minha empreitada. O acesso aos processos não pôde ser efetuado, por necessitar de autorização judicial, ainda em andamento.

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vetos – as estratégias políticas utilizadas para defender aquilo que supostamente não poderia ser (legalmente) defendido, por não ser regulamentado pelo estado. Realizando, dessa forma, uma leitura do fazer legislativo e das formas utilizadas para debater a questão da sexualidade contemporânea. Vimos que as práticas da prostituição conviveram com o comércio em geral que se desenvolveu naquela região. Conviver, contudo, não quer dizer necessariamente, harmonia, mas antes de tudo, relação. É possível, assim, tentar compreender as redes de relações que as meretrizes desenvolveram ao longo da sua convivência com outros setores, bem como desvendar os espaços de tensões políticas e sociais da prática da prostituição, para elaboração deste trabalho de pesquisa histórica. Mas será possível, para a sociedade atual, aceitar a existência desse tipo de rede de solidariedade e sociabilidade neste ‘agora’? Estaríamos preparados para enfrentar esses tipos de questões, ou limitados a permanecer sob a égide dos argumentos elaborados e desenvolvidos no “auge do capitalismo”?

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Somos senhores do

nosso próprio destino, ou estamos condenados a responder às regras do complexo jogo da longa duração? Referências Bibliográficas AGUIAR, Tido Flavio R. de. Vastos Subúrbios da Nova Capital: formação do espaço urbano na primeira periferia de Belo Horizonte. Tese de doutoramento em História. UFMG, 2006. ANDRADE, Djalma. História Alegre de Belo Horizonte. Comemoração do Cinqüentenário. BH, Imprensa Oficial, 1947. ANDRADE, LUCIANA TEIXEIRA DE. Ordem pública e desviantes sociais em Belo Horizonte (1897-1930), Dissertação de mestrado defendida no Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG, 1987. BARRETO, Abílio. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva – história antiga e história média. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995. BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito da História”. IN: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e historia da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994 BRASIL. Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Diretoria Geral de Estatística. Recenseamento do Brasil realizado em 1º de setembro de 1920. vol. IV (2ª parte) tomo I. Rio de Janeiro, 1928. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Edusp, 1996. CAMARA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE. Projeto de lei 1450/07 - Cria a Área de Diretrizes Especiais – ADE – das ruas Guaicurus e São Paulo, Belo Horizonte, 04 de julho de 2007. Disponível no sítio http://www.cmbh.mg.gov.br [acesso em 08 de setembro de 2008]. CARRARA, Sergio Luis. Tributo a Vênus: a luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do século aos anos 40. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1996.

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Aqui me refiro ao século XIX, tomando de empréstimo a expressão de Walter Benjamin, do titulo de seu trabalho sobre Baudelaire.

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