PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. João da Silva [Feijó?]: A trajetória de um homem de ciências luso-brasileiro. In: PEREIRA, Magnus R. M. e SANTOS, Rosângela M. F. (Eds.) João da Silva Feijó: Um homem de ciência no Antigo Regime português. Curitiba: Editora da UFPR, 2012. p.19-118.

June 5, 2017 | Autor: Magnus Pereira | Categoria: História de Cabo Verde, Iluminismo, Iluminismo Português, Viagens Filosóficas
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Apresentação



João da Silva [Feijó?]: A trajetória de um homem de ciências luso-brasileiro Magnus Roberto de Mello Pereira Prof. do Departamento de História da UFPR

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uem foi João da Silva [Feijó]? Pergunta embaraçosa, quando se considera que ela abre a apresentação de uma volumosa publicação especialmente dedicada a dar a conhecer a produção científica deste personagem. A simples elaboração da presente obra, que demandou anos de pesquisa em arquivos e bibliotecas no Brasil e em Portugal, é o reconhecimento prévio da importância do personagem e de sua produção intelectual para a escrita da história do Brasil e, quem sabe, da história da ciência. O interesse por João da Silva Feijó não é provocado, necessariamente, pelo valor de sua produção científica, que foi relativamente modesto. Não é preciso superestimá-la, no entanto, para atribuir ‘importância histórica’ a Feijó e sua obra. O aspecto que mais chama a atenção para o naturalista é, talvez, de caráter biográfico. Ele foi um dos raros luso-brasileiros que conseguiu viver regularmente de ciência. Feijó foi jovem para Portugal, onde estudou ciência naturais. Posteriormente, foi enviado a Cabo Verde, arquipélago em que esteve por mais de uma década, na condição de naturalista da coroa. De volta a Lisboa, trabalhou na organização de um herbário caboverdeano e em experimentos voltados à produção de salitre. Mais uma vez foi mobilizado pela coroa, desta vez para o Ceará, com a missão de tornar viável a produção de salitre naquela capitania. Fracassado o intento, ali permaneceu estudan-

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do alguns aspectos econômicos e a flora da região. Passou os anos finais de sua vida no Rio de Janeiro, na condição de professor de Zoologia e Botânica da Academia Militar. Durante sua vida, dedicou-se regularmente à escrita de “memórias”, hoje diríamos artigos ou monografias científicas, sobre os mais diversos temas: vulcões, liquens, ouro, criação de carneiros, etc. Conseguiu publicar muitos desses textos em vida, o que lhe valeu algum reconhecimento científico. Dedicou-se, também, a elaborar obras de maior vulto, referentes à economia e à botânica de Cabo Verde e do Ceará. Redigiu, ainda, um manual para o ensino de ciências naturais na Academia militar. Nenhuma dessas obras maiores, no entanto, chegou a ser publicada na época. O que se depreende dessa trajetória de vida é que João da Silva Feijó foi um homem de ciência português do Antigo Regime. No universo luso da época, esta era uma condição pouco freqüente. O simples fato de ter tirado o sustento, para si e para a família, dos parcos ganhos obtidos em atividades de cunho científico, transforma-o em personagem exemplar, ainda que pela excepcionalidade. Feijó, no entanto, esteve longe de ser um homem autônomo de ciências. No restrito espaço científico português em que viveu, para quem não era um diletante das ciências, capaz de viver de suas próprias rendas, restava o serviço à Coroa, com todas as implicações daí advindas. Sua obra, naquilo que tem de limitada e naquilo que tem de interessante, traz as marcas de sua posição de “naturalista da coroa”. Na biografia de João da Silva Feijó há, no entanto, um aspecto que nada tem de excepcional. Ele era um homem de ciências português do Antigo Regime nascido nas colônias da América. Quanto à origem de seus cientistas, Portugal foi um caso muito peculiar. A grande maioria dos naturalistas portugueses do período era composta de brasileiros, ou, se quisermos, portugueses da América. “Além do que, eram também nascidos no Brasil matemáticos, médicos e advogados que igualmente vieram a demonstrar especial interesse pelas modernas ciências da natureza, engajando-se na grande aventura de explorar cientificamente a diversidade do mundo natural nos quatro cantos do Império”.4 Como é sabido, isso não foi casualidade ou o fruto de uma aptidão

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4 CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho da. As viajens são os viajantes: dimensões identitárias dos viajantes naturalistas brasileiros do século XVIII. História: Questões & Debates, n.36, 2002, p.61-98.

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especial dos colonos luso-brasileiros para as ciências. Foi o resultado de uma política de cooptação desta elite colonial para o projeto de reconfiguração, em moldes iluministas, dos espaços de domínio português, tanto do reino quanto das colônias.5 O número de naturais do Brasil devotados às ciências naturais e que foram absorvidos pelo estado português como servidores da coroa ou encarregados de missões científicas específicas permite pensá-los em termos de uma figura tipo.6 Feijó foi exatamente isso, um exemplo notável da figura tipo do cientista-colono luso-brasileiro a serviço do Império. Apesar de sua expressiva trajetória de vida, e de toda a obra que legou, João da Silva Feijó permaneceu um personagem obscuro na historiografia do Brasil e de Portugal. Até muito recentemente, quase tudo que se escrevia sobre ele era resultado do acúmulo de meias-verdades e afirmações infundadas, que passavam de autor para autor. Portanto, se quisermos saber alguma coisa sobre Feijó, é preciso antes desfazer esse cipoal em que sua biografia está enredada. Iniciemos, pois, por um procedimento que, na falta de uma denominação melhor, pode ser chamado de estudo metabiográfico.

1. Uma biografia nada exemplar Adriano Balbi foi responsável pela publicação da primeira referência biográfica sobre Feijó. O geógrafo veneziano dedicou um verbete ao naturalista em seu Ensaio Estatístico sobre Portugal, de 1822. João da Silva Feijó, liutenant-colonel et professeur de minéralogie, et actuellement de zoologie et de botaninique à l´académie militaire de Rio-Janeiro. Ce naturaliste distingué a eté envoyé par le roi d´abord aux iles du Cap-Vert, pour en examiner les produits minéralogiques

5 Ver CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho da. Verdades por mim vistas e observadas Oxalá foram fábulas sonhadas; cientistas brasileiros do Setecentos, uma leitura auto-etnográfica. Curitiba, UFPR, 2004 (Tese de doutorado policopida). 6 PEREIRA, Magnus Roberto de M. e CRUZ, Ana Lúcia R. B. da. A história de uma ausência: os colonos cientistas da América portuguesa na historiografia brasileira. In: FRAGOSO, João et ali. Nas rotas do Império. Vitória-Lisboa: Edufes-IICT, 2006. p.357390.

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et zoologiques, ensuite dans la capitainerie de Searà. Il s´acquitta de ces deux commissions importantes avec honneur pour lui et profit pour la science, car il y recuellit et y analisa différens produits, entre autres plusieurs mines de fer de Searà. M. Feijo a aussi entrepris d`autres longs et pénibles voyages dans l´intérieur de plusieurs autres capitaineries du Brésil, et en a publié quelques mémoires. Dans ses élémens de zoologie et de botanique, qu´il a composés pour ses éleves, mais qui ne son pas encore imprimés, il a suivi le systéme de Cuvier pour la zoologie et celui de Linnée pour la botanique.7

No texto, dois detalhes chamam atenção. Um, por sua precisão. Considerando que Balbi não esteve no Brasil, surpreende ele ter conhecimento de que Feijó organizara manuais para o ensino de zoologia e botânica, que eram inéditos na época, e assim permaneceram até o presente. Isso indica que estava viva a rede de vínculos e de informações que agregava o incipiente ambiente científico dos reinos unidos portugueses nos dois lados do Atlântico. Sabia-se, na época, quem estava produzindo o que, e onde. O segundo detalhe a chamar atenção é um provável engano. O geógrafo afirma que Feijó “empreendeu longas e penosas viagens no interior de diversas outras capitanias do Brasil” Não existe, no entanto, nenhum vestígio documental desta suposta viagem filosófica de Feijó pelo interior de diversas capitanias da América portuguesa. Realizou viagens exploratórias apenas no Ceará. Apesar disso, tal detalhe biográfico, que nasceu de um equívoco, passou a ser reiteradamente repetido nas menções à vida do naturalista. Em 1837, o naturalista bávaro Carl Friedrich Philipp von Martius publicou um pequeno texto biográfico de Feijó, em seu Herbarium florae Brasiliensis.8

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7 BALBI, Adrien. Essai statistique sur le royome de Portugal et d´Algarve. Paris: Rey et Gravier, 1822. v.2. p.LIII. 8 MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Herbarium florae Brasiliensis: plantae Brasilienses exsiccatae, quas denominatas, partim diagnosi aut observationibus instructas botanophilis. München: s.n., 1837. p.17. Tradução livre, feita com a ajuda da historiadora Marionildes Brehpol.

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Na mesma escola de Coimbra foi formado João da Silva Feijó. Por ordem do governo, ele empreendeu uma viagem para as Ilhas de Cabo Verde e depois permaneceu na Capitania do Ceará, por anos. Seu relatório oficial sobre História Natural e Geografia (Memória sobre a capitania do Ceará, escrita de Ordem do Superior pelo Sargento-Mor J. da Silva Feijó), publicada no jornal literário O Patriota, Rio de Janeiro, 1814 (jan-abril) não trouxe grandes contribuições, em especial no que se refere à Botânica. Feijó serviu por longo tempo ainda ao estado, como diretor do Gabinete de História Natural no Rio de Janeiro.

Von Martius esteve por anos no Brasil e é figura muitíssimo conhecida entre os historiadores devido aos seus vínculos com o nascente Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Foi a pedido da instituição que ele elaborou o texto que é considerado um dos marcos fundacionais da historiografia do Brasil independente: Como se deve escrever a História do Brasil.9 Conheceu algumas obras de Feijó, mas seu parecer não foi dos mais favoráveis. Os dados que apresenta sobre a biografia do naturalista brasileiro são basicamente corretos, com exceção de que Feijó teria sido diretor do Gabinete de História Natural do Rio de Janeiro. Nenhuma outra fonte confirma essa informação. Desde então, a trajetória de vida de João da Silva Feijó foi entrando em rápido obscurecimento. Nos estudos bibliográficos e biográficos dos botânicos da Península Ibérica, publicados por Miguel Colmeiro, em 1858, o verbete referente ao naturalista carioca chama atenção pela brevidade. A obra dedica muito mais atenção a figuras cujo contributo à História Natural foi indubitavelmente menor do que o dado por Feijó, além de cometer o equívoco de considerá-lo um português que teria morado no Brasil por muitos anos. Silva Feijó (Juan). Portugués, que en el año 1815 publicó en Rio-Janeiro algunas noticias acerca de la Historia natural de la provincia de Ceará, perteneciente al Brasil, donde residió muchos años, despues de haber estado en las islas Cabo-Verde, comisionado por el Gobierno portugués para estudiarlas. Entre las Memorias económicas de la Academia Real de Ciencias de Lisboa se halla una de Silva Feijó,

9 MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Como se deve escrever a História do Brasil. RIHGB, t.6, 1844. p.389-411.

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titulada Memoria sobre la Urcela de Cabo-Verde, impresa en el año 1815. 10

Em 1858, quando o livro foi publicado, o gentílico “português” já não era mais aplicado aos súditos americanos da coroa portuguesa, uma vez que o Brasil tornara-se uma nação independente. No verbete dedicado a Alexandre Rodrigues Ferreira, por exemplo, o naturalista nascido na Bahia aparece mencionado como “americano-português”. O mesmo verbete fornece uma série de dados biográficos sobre Ferreira, como ano e lugar de nascimento, o fato de ter estudado na Universidade de Coimbra e ter-se destacado como aluno, etc. Sobre Feijó, praticamente nada. O que se percebe é que já estava em curso o processo pelo qual, com o passar do tempo, a biografia de João da Silva Feijó, que nunca fora muito nítida, tendeu a ficar cada vez mais embaçada, até chegar ao ponto de tornar-se opaca. No Brasil monárquico, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi a principal instituição responsável pela construção de uma História Nacional, com iniciais maiúsculas. Seguindo procedimentos historiográficos próprios da época, o IHGB incumbiu-se de criar as grandes efemérides da pátria. Procurou estabelecer, também, o culto à personalidade dos brasileiros que de alguma forma haviam se destacado em qualquer área de atuação, passando a publicar sistematicamente as Biographias dos Brasileiros distinctos por Armas, Letras, Virtudes, &c.11 A criação de um ‘Panteão Científico Nacional’ foi central ao processo. Feijó ficou na periferia dele, sem conseguir integrá-lo plenamente. Ao contrário de muitos de seus colegas, como Alexandre Rodrigues Ferreira ou Francisco José de Lacerda e Almeida, o naturalista não teve a sua biografia publicada pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico. Nenhum de suas monografias científicas ou relatos de viagens mereceu tal distinção. Só

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10 COLMEIRO Y PENIDO, Miguel. La botánica y los botánicos de la Península Hispano-Lusitana: estudios bibliográficos y biográficos. Madrid: Imprenta de M. Rivadeneyra, 1858. p.199-200. 11 Segundo ENDERS, entre 1839 e 1888, a RIHGB publicou 118 dessas biografias. Sobre a criação do Panteão Nacional pelo IHGB, ver ENDERS, Armelle. “O Plutarco Brasileiro”; A produção dos vultos nacionais no segundo reinado. Revista Estudos Históricos, n.25, 2000. p.43.

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indiretamente ele aparece nas páginas da RIHGB, ou a propósito da biografia de terceiros, ou quando suas obras foram citadas por algum estudioso. Apesar de seu papel preponderante, as publicações do IHGB não tiveram o monopólio do processo de criação do ‘Panteão Nacional’. Outras obras de cunho histórico e geográfico também participam desta criação. Feijó aparece em algumas delas, principalmente por compartilhar temas de estudo com seus autores. O botânico Freire Alemão chamou atenção para a importância da atuação científica de Feijó. Ocorre que ambos dedicaram-se ao estudo da Flora do Ceará. Na realidade, foi Freire Alemão o primeiro intelectual do Brasil pós-independência a demonstrar interesse pela biografia de Feijó. Em 1847, ele fez consultas a esse respeito ao acadêmico cearense Antonio Paulino Nogueira, que mais tarde escreveria o primeiro texto substancial sobre o naturalista. 12 A partilha de um objeto comum de estudo também foi responsável pelo conhecimento que Varnhagen detinha sobre a obra do naturalista. O futuro visconde de Porto Seguro foi co-autor, com José Chelmicki, de uma corografia de Cabo Verde, na qual a atuação administrativa e a obra de Feijó foram por diversas vezes mencionadas.13 Um dos primeiros esboços de um panteão nacional dedicado especificamente aos homens de ciências foi elaborado justamente por Varnhagem. Em seu Ensaio histórico sobre as letras no Brasil, de 1847, ao lado de José Bonifácio, dos futuros viscondes de Cairú e de S. Leopoldo, de Conceição Veloso, de Silva Pontes, figura “Silva Feijó, naturalista, empregado em explorações nas ilhas de Cabo Verde”.14 A partir da metade do século XIX passaram ser editadas no Brasil coleções que podem ser qualificadas como dicionários biográficos e/ou biobi-

12 Anais da Biblioteca Nacional, v.81, 1961. p.50. 13 CHELMICKI, José Conrado Carlos de & VARNHAGEN, Francisco Adolfo. Corografía cabo-verdiana: ou, Descripção geographico-historica da província das Ilhas de Cabo-Verde e Guiné. Lisboa: Typ. de L. C Da Cunha, 1841. 14 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Ensaio histórico sobre as letras no Brasil [1847] In: _____. Florilegio da poesia brazileira: ou, Collecção das mais notaveis composições dos poetas brazileiros falecidos, contendo as biografias de multos delles, tudo precedido de um ensaio historico sobre as lettras no Brazil. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras: 1946. p.41.

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bliográficos, que buscavam divulgar a vida e a obra dos personagens ilustres brasileiros. Nessas coleções, a sorte de Feijó não foi muito melhor. Em 1847, saiu do prelo o Plutarco Brasileiro15, de João Manuel Pereira da Silva. Mais tarde, a obra foi republicada e teve o nome trocado para Varões illustres do Brasil durante os tempos coloniais. A nova edição incluía em suas páginas apenas uma biografia sumária do naturalista. Por tudo o que se viu até agora, pode-se dizer que a estruturação da biografia de João da Silva Feijó começou errada, tendendo a uma construção obscura na qual não estão presente ou estão distorcidos a maior parte dos dados sobre sua vida, mesmos os mais básicos. Pereira da Silva enquadraria Feijó entre as figuras nacionais importantes para a ciência. Em todos os conhecimentos humanos primaram os Brazileiros á par dos Portuguezes: nos escriptos, e em todos os feitos notáveis, uns e outros rivalisáram. O padre Bartholomeu Lourenço de Gusmão, José Mariano da Conceição Velloso, Manuel de Arruda Câmara, Alexandre Rodrigues Ferreira, Francisco de Mello Franco, João da Silva Feijó, Frei Leandro do Sacramento, Manuel Ferreira da Câmara Bittancourt e Sá, José Bonifácio de Andrada Silva, e Antonio Nola, illustraram as sciencias naturáes, e contribuíram com seus escriptos importantes, e seus valiosos descobrimentos, para honra e renome seu, e da nação portugueza.16

No entanto, o texto biográfico publicado nos Varões Illustres leva o processo de obscurecimento biográfico ao paroxismo e o Feijó que dele emerge é já um personagem ficcional, que ainda em estado de rascunho deveria finalmente integrar o panteão científico nacional. É claro que as biografias organizadas nesses plutarcos eram todas destinadas a produzir personagens ficcionais exemplares, obtidos pela limagem de certas arestas inoportunas e pelo acréscimo incessante de adjetivos elogiosos: insigne, notável, eminente, distinto, importante, excepcional!!! No entanto, o Feijó esboçado era pouco exemplar.

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15 SILVA, João Manuel Pereira da. Plutarco Brasileiro. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemert, 1847. 16 SILVA, João Manuel Pereira da. Os varões illustres do Brazil durante os tempos coloniaes. 3.ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1868. v.1, p.37.

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Não por escolha dos seus biógrafos ou por falta de episódios instrutivos em sua vida, mas pelo desconhecimento destes pormenores considerados edificantes. João da Silva Feijó Nasceu no Rio de Janeiro em 1760. Foi um distincto naturalista e excellente botânico: serviu por muitos annos o logar de secretario do governo de Cabo Verde e official do corpo de engenheiros: viajou por ordem do governo portuguez no interior do Brasil, nas Ilhas, e colônias diversas: pertenceu á Academia real de sciencias de Lisboa, e escreveu muitas memórias de merecimento, que se publicaram na sua collecção, entre as quaes uma historica e corographica sobre a provincia do Ceará, onde morreu.17

Com base na documentação hoje disponível, pode-se considerar que esta pequena biografia elaborada por Pereira da Silva é uma sucessão espantosa de enganos. Feijó esteve, de fato, por mais de uma década em Cabo-Verde, como naturalista enviado pela coroa. Não ocupou por muitos anos o cargo de secretario do governo, mas apenas interinamente por um curto período. Também não era oficial do corpo de engenheiros, não na forma que o texto leva a pensar. Não há nenhum indício que ele tenha recebido formação militar. As patentes militares que recebeu foram subterfúgios que a coroa utilizou para enquadrá-lo funcionalmente e remunerar os seus serviços, na falta de uma carreira oficial de naturalista. Não viajou por ordem do governo português pelo interior do Brasil, mas recebeu uma missão específica no interior do Ceará. De fato, pertenceu à Real Academia de Ciências de Lisboa, como sócio correspondente apenas, e em suas coleções publicou algumas memórias, todas sobre Cabo Verde. Suas obras sobre o Ceará são posteriores e foram publicadas no Brasil. Por último, o naturalista não morreu naquela capitania.18 Outra obra a abordar a vida e a obra de João da Silva Feijó foi o Diccionario Bibliographico, de Inoccêncio Francisco da Silva, que começou a 17 SILVA, Os varões, v.2. p.346. 18 A difusão impressa dessas informações enganosas acaba por perpetuá-las. Acompanhando parte da bibliografia disponível, eu próprio escrevi que Feijó morrera no Ceará. PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Um jovem naturalista num ninho de cobras, a trajetória de João da Silva Feijó em Cabo Verde em finais do século XVIII. História Questões & Debates, n.36, 2002. p.29-60

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ser editado em Portugal em 1858.19 Seria injusto incluir este dicionário na categoria dos plutarcos, pois ela ultrapassa o mero sentido apologético que costuma caracterizar tais obras. A importância desse dicionário é ter sido a primeira tentativa bem sucedida de fazer um arrolamento geral da produção bibliográfica dos autores de língua portuguesa. O dicionário foi além do seu propósito, apontando em muitos casos a autoria de manuscritos inéditos. No caso de Feijó, as indicações são fragmentárias, mas, pela primeira vez, o público pode antever que se tratava de um homem de ciência bastante produtivo, para os padrões portugueses da época em que viveu. Do ponto de vista bibliográfico, o autor tendeu a repetir as informações fornecidas por Pereira da Silva. Inicialmente, Inoccêncio informa que Feijó vivia no Rio de Janeiro em 1825, mas, num volume posterior, corrige a informação dizendo que o naturalista “morreu no Rio de Janeiro, sendo coronel, a 10 de março de 1824”20. Além disso, acrescenta mais um pequeno dado, o qual posteriormente viria a ser editado e incluído na biografia do naturalista, passando a funcionar como aquele detalhe edificante que faltava para incluí-lo no panteão dos varões ilustres da pátria. O dicionário foi responsável por estabelecer a conexão entre a vida de João da Silva Feijó e a de Francisco Vidal de Barbosa Lages, um dos condenados a morte por envolvimento na inconfidência mineira, pena que foi comutada para degredo na ilha de São Tiago, em Cabo Verde. DOMINGOS VIDAL DE BARBOSA LAGE, Doutor em Medicina, formado não sei em qual das Universidades de França. Foi natural do Rio de Janeiro. Regressando para o Brasil depois de concluir na Europa os seus estudos, teve a desgraça de implicar-se na conjuração formada em Minas Geraes com o fim de tornar aquella provincia Independente. Preso com os outros cumplices, e condemnado pela Alçada a pena ultima, foi-lhe esta commutada na de dez annos de degredo para a ilha de S. Tiago de Cabo Verde, onde aportou em Janeiro de 1793. Foi bem acolhido pelo governador, e ainda mais pelo seu patricio João da Silva Feijó, então secretario do governo. Porém sendo atacado das febres intermittentes endemicas naquellas

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19 SILVA, Innocencio Francisco da. Diccionario bibliographico portuguez. Lisboa: Imprensa Nacional, 1858-1923. 22 v. 20 SILVA, Diccionario, op. cit. t.IV, p.35.

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regiões, morreu ao cabo de oito mezes no convento de S. Francisco da Ribeira grande, que lhe fôra assignado para sua residencia.21

Desde então, Feijó passou a ser, se não um inconfidente, o amigo dos pobres conjurados no exílio. No Anno biographico brazileiro, de 1876, o naturalista não chegou a merecer um verbete específico. Aparece apenas como um figurante secundário, atrelado à biografia de Barbosa Lage.22 No entanto, quem conta um conto aumenta um ponto ... e o bom acolhimento dado por Feijó e pelo governador a Barbosa Lage sofreria um primeiro incremento. A nova versão afirmava que em Cabo Verde era “secretário do governo o fluminense e insigne naturalista o dr. João da Silva Feijó que agasalhou” os inconfidentes deportados. Para resumir a ópera, a coisa foi num crescendo, até chegar, no século XX, à pungente imagem de um “coração brasileiro”, chica-chica-bum, a palpitar no peito de Feijó. Levou a mesma fragata [...] a Vidal Barbosa, João Dias da Mota e os dois José de Resende Costa, pai e filho. Chegados a Lisboa, foram remetidos para a ilha de S. Tiago de Cabo Verde, onde desembarcaram em princípio de janeiro de 1793. Ali encontraram por governador Francisco José Teixeira Carneiro, e por secretário o dr. João da Silva Feijó insigne naturalista, nascido no Rio de Janeiro, e em cujo peito palpitava um coração brasileiro. Foram pois tratados com a maior atenção e tiveram todos o melhor agasalho.23

Apesar dessas tentativas, que foram pontuais e insuficientes, fracassou o propósito de incluir Feijó no panteão dos vultos nacionais. Restou ao naturalista figurar na história regional. Em relação à sua terra natal, o acolhimento não foi dos melhores. No Pantheon fluminense, de 1880, ele sequer foi mencionado.24 Assim, sobrou lugar de algum destaque para Feijó na história do

21 SILVA, Diccionario, Op. cit. t.II, 1859, p.202. 22 MACEDO, Joaquim Manoel de. Anno biographico brazileiro, Rio de Janeiro: Typ. e Lith. do Imperial Instituto Artistico, 1876. 23 SILVA, J. Norberto Sousa. História da Conjuração Mineira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948.v.2, p.214-216. 24 SANTOS, Presalindo de Lery. Pantheon fluminense: esboços biographicos. Rio de Janeiro: Typ. G. Leuzinger, 1880.

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Ceará, terra de acolhimento onde vivera por mais de uma décadas, na condição de naturalista da coroa. Foi no ambiente do Instituto do Ceará que a escrita da biografia de João da Silva Feijó ganhou importância e desenvolvimento. O acadêmico cearense Paulino Nogueira, publicou em 1888, na Revista do Instituto de Ceará, a primeira biografia extensa do naturalista. A parte inicial do estudo escrito por Nogueira foi toda elaborada a partir de consulta à bibliografia que acabamos de comentar. Em conseqüência, 25

os enganos acumulados foram incorporados e, em diversos casos, ampliados. O acadêmico insiste no Feijó quase inconfidente que “procurou com atenções e agazalho minorar a dura sorte de seus patrícios degredados”. Além disto, Paulino Nogueira tentaria resolver um problema que angustiou quase todos os biógrafos da intelectualidade brasileira que viveu no período final do Brasil colônia. A dificuldade em conciliar a faceta ‘portuguesa’ com a faceta ‘brasileira’ da história do Brasil cresceu à medida do tempo decorrido após a independência. Por um lado, havia o fato muito concreto e conhecido de que, no último meio século antes da independência, centenas de naturais das mais diversas capitanias brasileiras foram estudar em Coimbra e, depois disso, foram integrados na estrutura governativa de Portugal e de suas colônias. Por outro lado, a historiografia desenvolvida após a independência foi, progressivamente, apoiando-se em princípios nacionalistas que insistiam na idéia da exploração colonial desmedida e de uma suposta perseguição e discriminação aos nascidos no Brasil. A fórmula encontrada para resolver o problema foi a de atribuir a esses personagens um conjunto de méritos tão altos que teriam sido suficientes para ultrapassar a perseguição movida pelos portugueses. Feijó, assim como José Bonifácio, Alexandre Ferreira, e tantos outros, não haviam ‘colaborado’ com a potência exploradora colonial26, mas eles, por seus próprios

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25 NOGUEIRA, Paulino. O naturalista João da Silva Feijó. Revista Trimensal do Instituto do Ceará, tomo II, 1888. p.247-276. 26 A palavra ‘colonial’ está se tornando cada vez mais incômoda na historiografia. Eu diria que a sua atual conotação mais corrente é fruto da operação semântica através da qual os integrantes da elite luso-brasileira conseguiram transitar da condição de colonizadores para a de colonizados.

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méritos, conseguiram ‘impor-se’ aos portugueses nas mais diversas áreas do conhecimento. Em decorrência, afirma Paulino Nogueira que, graças ao seu merecimento intelectual, João da Silva Feijó conseguiu superar a “arraigada, mas infundada, prevenção da Metrópole contra a Colônia”, uma vez que nos “máos tempos que então corriam para os naturaes da Colonia brasileira, chegou a formar-se com brilhantismo, em engenharia, na Universidade de Coimbra. Foi professor de botânica em Lisboa, e deixou umas apostilhas desta materia”. 27 Esse pressuposto nacionalista de que a coroa portuguesa desestimulava a formação de uma intelectualidade luso-brasileira não tem o menor fundamento. Toda a carreira científica de Feijó foi fruto da política do estímulo da coroa aos estudantes brasileiros. Além disto, a sucessão de enganos biográficos deu mais um salto. Feijó não se formou engenheiro em Coimbra simplesmente porque na época em que estudou não havia curso de engenharia naquela Universidade. Por toda a Europa, as Engenharias mal engatinhavam como campo de saber universitário. Para completar, o acadêmico cearense fez tal confusão cronológica que acabou por supor que os manuais elaborados por Feijó, no final de sua vida, quando era professor de Ciências Naturais no Rio de Janeiro, teriam alavancado o naturalista à condição de professor de botânica em Lisboa. Nogueira foi o primeiro autor a tentar estabelecer as origens familiares de Feijó. Valendo-se das informações disponíveis em obra de Joaquim Monteiro Caminhoá, que por sua vez apoiara-se em Freire Alemão, reitera que o naturalista nascera no Rio de Janeiro, em 1760, e acrescenta a informação de que teria sido irmão do padre Feijó, de Itacuruçá.28 Esse pequeno detalhe ganharia, mais tarde, o caráter de informação chave a partir da qual foi tecida toda uma teia de elucubrações a respeito. Ultrapassados os episódios mal documentados da fase inicial da vida do naturalista, Paulino Nogueira desenvolve com muito mais propriedade a trajetória cearense de Feijó, consultando não

27 NOGUEIRA, op.cit., p.249. 28 CAMINHOÁ, Joaquim Monteiro. Elementos de botanica geral e medica. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1877.

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mais a confusa bibliografia precedente, mas a documentação disponível nos arquivos provinciais. Na década de 1930, Feijó vai aparecer como figurante na prestigiada coleção Brasiliana. No entanto, como adverte Cândido Leitão, entre as “figuras menores desse fim de nosso período colonial”. As figuras maiores teriam sido Alexandre Rodrigues Ferreira, Mariano da Conceição Veloso e Manuel Arruda da Câmara. Leitão, de fato, minimiza muito a atuação de Feijó como naturalista. Ao tratar de sua mal conhecida biografia, aos enganos correntes acrescenta mais um: Feijó teria sido um militar de carreira que acessoriamente agregara o título de naturalista à sua patente. João da Silva Feijó nasceu em 1760 e, em fins do século XVIII, vamos encontrá-lo como naturalista encarregado das investigações filosóficas na capitania do Ceará, sobre a qual escreveu uma Memória, só publicada muitos anos depois (1814) no O Patriota. Fauna e flora da região são estudadas nos parágrafos 40 e seguintes, mas sem designações científicas, apesar do título de naturalista que Silva Feijó acrescenta à sua patente de sargento-mor. Encantado pela capitania nordestina, aí fixa residência pelo resto de seus dias, falecendo em 9 de março de 1824.29

Nos anos 1970, os historiadores Geraldo da Silva Nobre e José Honório Rodrigues voltaram ao tema da biografia de Feijó. Silva Nobre foi o autor do mais extenso estudo biográfico publicado sobre Feijó. Voltaremos adiante a essa biografia. Já Honório Rodrigues, em sua História da História do Brasil, retoma superficialmente a trajetória do naturalista quando trata daqueles que, no final do período colonial, escreveram sobre o Ceará. No entanto, além de insistir na figura do Feijó quase inconfidente, o autor embaralhou de tal forma alguns dos seus dados biográficos, que o resultado pode ser qualificado de ‘samba do historiador doido’. Nascido no Rio de Janeiro (1760) e falecido no Ceará (1824) João da Silva Feijó era formado em matemática e oficial do corpo de engenheiros, alcançando o posto de coronel. Serviu como secretário do

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29 LEITÃO, Cândido de Melo. A biologia no Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1937. p.114.

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governo da ilha de Cabo Verde, no último decênio do século XVIII, podendo assim prestar assistência aos deportados da conjuração mineira, como Domingos Vidal Barbosa, e os dois Rezende Costa, pai e filho, que foram condenados para Bissau e Cabo Verde, e Domingos Vidal Barbosa para a ilha de São Tiago. Voltando ao Brasil, como membro da expedição científica de Alexandre Rodrigues Ferreira, serviu no Ceará. Foi correspondente da Academia de Ciências de Lisboa, como naturalista e botânico.30

Como se percebe, trata-se de um amontoado de enganos. O auge da desinformação, no entanto, é a afirmativa de que Feijó voltara ao Brasil na expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira. São nada mais, nada menos, do que 17 anos de diferença entre uma coisa e outra, fora o descompasso geográfico. A expedição de Ferreira dirigiu-se à Amazônia, mas Feijó teria ido parar no Ceará! Os passos seguintes nos estudos sobre a biografia e a atuação científica de João da Silva Feijó no Brasil aconteceram já na primeira década do século XXI. A trajetória do naturalista luso-brasileiro despertou atenção dos professores e alunos integrantes do Programa de Pós-graduação em Ensino e História das Ciências, do Instituto de Geociêcias da Unicamp. Maria Margaret Lopes, Sílvia Figueiroa, Clarete Paranhos da Silva, Ermelina Pataca, entre outros, publicaram, na última década, mais de uma dezena de artigos sobre a atuação de Feijó em coletâneas e periódicos científicos nacionais e internacionais. Clarete Silva é de fato, a nossa principal especialista contemporânea sobre a atuação do naturalista no Ceará. Seus artigos ocupam-se também de alguns aspectos da biografia do naturalista.31

João da Silva ... Do ponto de vista biográfico, o historiador cearense Geraldo da Silva Nobre elaborou o mais completo e mais extenso estudo produzido sobre

30 RODRIGUES, José Honório. História da História do Brasil. 1ª Parte, Historiografia Colonial. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1979. p.241 31 Os artigos da historiadora foram de especial valia para a elaboração da presente introdução. Ver, especialmente, SILVA, Clarete P. As Viagens Filosóficas de João da Silva Feijó (1760-1824) no Ceará. História: Questões & Debates, n. 47, 2007. p. 179-201.

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Feijó.32. Ainda que não tenha resolvido muitas das lacunas da biografia do naturalista e de ter estabelecido um grau de especulação sem precedentes, não se lhe pode negar o mérito de ter feito um imenso investimento em pesquisa, tentando seguir todas as pistas com que se deparou. Seu maior pecado foi acreditar em demasia naqueles autores que o precederam. Apesar dos esforços feitos por Silva Nobre, a origem familiar do naturalista ainda não está esclarecida. Sabe-se pelas próprias palavras de Feijó que ele era natural da região do Rio de Janeiro, ou, pelo menos era ali que residia a sua família, e não muito mais do que isso. A documentação indica que seus pais morreram por volta de 1796.33 Sob o nome João da Silva Feijó não aparece ninguém no grande levantamento dos brasileiros que estudaram em Coimbra feito por Francisco de Morais.34 Silva Nobre imaginou que não houvesse lacuna neste arrolamento mas, na verdade, ele é reconhecidamente incompleto. A maior parte das omissões cometidas por Morais é fruto das lacunas da própria documentação da velha Universidade, cujo acervo nem sempre foi tratado com os devidos cuidados. Assim, o fato de não aparecer no mencionado levantamento não garante que Feijó ali não tenha estudado. Por mais de uma vez, o naturalista afirma em sua correspondência que fora aluno de Domingos Vandelli. Em Portugal, o mestre italiano foi professor apenas do Colégio dos Nobres e na Universidade de Coimbra. Considerando que Feijó não consta das listas dos alunos do Colégio.35, na prática resta a possibilidade de Coimbra.36

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32 NOBRE, Geraldo da Silva. João da Silva Feijó: Um naturalista no Ceará. Fortaleza: Grecel, 1978. 33 AHU, Cabo Verde, Cx. 49, D17. 34 MORAIS, Francisco de. Estudantes brasileiros na Universidade de Coimbra. Anais da biblioteca Nacional, v.62, 1940. p.137-335. 35 Ver CARVALHO, Rômulo. História da fundação do Colégio Real dos Nobres de Lisboa. Coimbra: 1959. 36 Vandelli chega a referir-se em um documento aos “quatro naturalistas meus discípulos”. VANDELLI, Domingos. Memória sobre a utilidade dos museus de história natural. In: _____. Memórias de História Natural. Porto: Porto Editora, 2003. p.52.

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As cartas em que menciona o fato não podem ser mentirosas, uma vez que eram oficiais e dirigidas a pessoas muito próximas a Vandelli, as quais saberiam perfeitamente tratar-se de falsidade. Além disto, ele foi recrutado no mesmo processo em outros alunos recém-formados em Coimbra o foram. Ao ser enviado a Cabo Verde, até o próprio ministro Martino de Mello e Castro afirmou com todas as letras que para o arquipélago seguiria “João da Silva Feijó, que fez o seu Curso de História Natural com o Dr. Vandelli”.37 Portanto, praticamente não restam duvidas de que ele estudou na Universidade de Coimbra. Poderia, de fato, ter iniciado a sua formação em alguma academia militar e aproveitado para eliminar disciplinas a cursar em Coimbra. O desenho, todavia, era parte fundamental na formação militar e Feijó, declaradamente, não entendia de desenho. Além disto, quando foi mandado a Cabo Verde não ocupava nenhum posto militar. Por último, há que se observar que em alguns documentos Feijó é designado como bacharel.38 Esse é o grau mais baixo conferido pela Universidade, para os alunos que concluíam todas as disciplinas do quarto ano.39 Aqueles que almejavam ascender na carreira faziam exames para graduarem-se, sucessivamente, como Bacharéis Formados, Licenciados e Doutores. É de se supor, portanto, Feijó tenha cursado Filosofia em Coimbra, mas que tenha apenas concluído o quarto ano, sem fazer os exames subseqüentes e sem receber outro grau que não o de bacharel. Assim, quanto à ausência de um João da Silva Feijó na documentação referente às matrículas e graus concedidos pela Universidade, restam duas hipóteses a especular. Ou perdeu-se a documentação ou ele utilizava outro nome. Ambas as hipóteses são bastante plausíveis: parte da documentação coimbrã perdeu-se e, na época, a troca de nome era um fenômeno corrente. A hipótese do vínculo familiar entre Feijó e o vigário de Itacurussá se apóia na informação supostamente prestada por Freire Alemão, que conheceu o naturalista, e na coincidência dos sobrenomes de ambos. De fato, houve um

37 Jornal de Coimbra, v.14, n.75, 1819. p.90. 38 É o caso, por exemplo, da correspondência de Bernardo Manuel de Vasconcelos, governador do Ceará. 39 Estatutos da Universidade de Coimbra. Lisboa, Regia Officina Typografica, 1772. v.3, p.258 e ss.

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padre Feijó na região, a quem Silva Nobre designa como José Gonçalves da Silva Feijó.40 No entanto, o padre Feijó que aparece com mais freqüência na documentação chamava-se Joaquim José da Silva Feijó, presbítero secular e, desde 1795, vigário de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba, uma freguesia de índios da comarca da vila da Ilha Grande, hoje Angra dos Reis.41 O mesmo vigário deixou uma casa em testamento para a padroeira da freguesia de Santana de Itacurussá.42 É até possível que ambos os padres mencionados sejam a mesma pessoa, o que só vem a comprovar a facilidade com que as pessoas alteravam os seus nomes. Silva Nobre deduz os supostos pais do naturalista João da Silva Feijó de uma outra referência documental, retirada dos Anais do Rio de Janeiro, de Baltazar da Silva Lisboa. Quando o autor lista as integrantes do Convento de Santa Tereza, criado pelo conde de Bobadela, em 1750, aparece o nome da irmã Maria de Jesus, filha do Capitão João Baptista Feijó e de D. Emerenciana Thereza da Silva.43 Foi desta forma que foi configurada a suposta família Silva Feijó, composta de pai, mãe e de, no mínimo, três irmãos. Este seria um núcleo familiar plausível, mas nada garante que tenha existido desta forma. As dificuldades são muitas, a começar pelo fato de que Lisboa e Feijó foram alunos da Universidade de Coimbra na mesma época e, portanto, eram conhecidos. Baltazar da Silva Lisboa foi também um naturalista e acompanhou atentamente o processo de formação das ciências naturais em Portugal, referindo-se ao papel do “Doutor Alexandre Ferreira, e os companheiros das expediçoens Filozoficas”, entre os quais se incluía Feijó.44 Dificilmente dei-

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40 Segundo o autor, o padre teria sido nomeado capelão de Itacuruçá em 16 de setembro de 1785, sem, no entanto, indicar a origem da informação. 41 RIHGB, 1854, Volume 17, p.197, 432-434. 42 BRASIL, Coleção das leis, v. 21, Parte 1. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1858. p.90. 43 LISBOA, Baltazar da Silva. Annaes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Seignot-Plancher, 1835. v.7. p.505. 44 LISBOA, Balthezar da Silva. Discurso historico, politico, e economico dos progressos, e estado actual da Filozofia Natural Portugueza, acompanhado de algumas reflexoens sobre o estado do Brazil. Lisboa: Na Officina de Antonio Gomes, 1787.

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xaria escapar o fato e de dar a notícia do parentesco entre o naturalista e a religiosa em seu texto. As dificuldades em confirmar laços de família sugeridos por Silva Nobre complicam-se pelo fato de que na documentação remanescente da época nos deparamos com mais de um João Baptista Feijó. O primeiro foi aquele que obteve uma data de terra no vale do Pirai, 1768, uma fazendola, nas palavras de Afonso Taunay.45 Seria este o mesmo João Baptista Feijó, mencionado como ourives por ocasião do episódio do seqüestro dos bens dos padres da Companhia de Jesus no Rio de Janeiro, em 1761?46 E os homônimos que aparecem no Rio Grande do Sul, seriam a mesma pessoa? O Boticário João Baptista Feijó, que teve os seus cavalos confiscados por Cevallos, Governador de Buenos Aires, durante a invasão da vila do Rio Grande em 1763, era o mesmo que o do Rio de Janeiro? 47 Também seria a mesma pessoa o João Baptista Feijó, que a historiografia tradicionalista do extremo sul trata como povoador do Rio Grande? Sobre este último sabe-se que comprou em hasta pública uma sesmaria dada a Cristóvão Pereira de Abreu, após a sua morte em 1755. Pelo menos é notório que este era natural do Rio de Janeiro e a documentação indica ser uma pessoa de posses suficientes para manter um ou mais filhos em Coimbra.48 Silva Nobre tendeu a reunir todas essas pessoas em um só personagem: o pai do naturalista Feijó. É pouco provável que assim tenha sido e, mesmo que fossem uma única pessoa, nada comprova que ela teria sido o pai do naturalista. Pessoalmente, sou oscilante em relação a todas essas possibilidades. Com mais freqüência, inclino-me por outra hipótese, que foi descartada por Silva Nobre, a de que João da Silva Feijó aparece nas matriculas de Coimbra com o nome de João da Silva Barbosa. Essa inclinação é provocada não apenas pela semelhança dos nomes, mas também porque o local e a data de nascimento atribuídos a ambos conferem: Rio de Janeiro, 1760. 45 TAUNAY, Afonso de Escragnolle. História do café no Brasil. Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Café, 1939.v.2, p.260. 46 RIHGB, tomo 89, v.143, 1921, p.115-116. 47 Revista del Instituto Histórico y Geográfico del Uruguay, v.22, 1959. p.220. 48 Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio grande do Sul, v. 22, 1942. p.302. Ver também BARBOSA, Fidélis Dalcin. História do Rio Grande do SulĐ. Porto Alegre: EST, 1985. p.35.

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É possível fazer também alguns raciocínios especulativos a respeito. Se João da Silva Barbosa não era Feijó, quem teria sido? A primeira vista, a pergunta parece despropositada. Se considerarmos, contudo, que a elite lusobrasileira que estudou em Coimbra era relativamente pequena e que seus integrantes estavam fadados a posições de destaque na sociedade colonial, é de estranhar a ‘inexistência’ de um João da Silva Barbosa. Praticamente todos os coimbrões da época deixaram rastros na documentação, esse Barbosa não. Ele simplesmente desapareceu sem deixar pistas. Silva Nobre argumenta que Barbosa não era o naturalista porque o pai de Feijó era o capitão João Baptista Feijó e o de Barbosa tinha outro nome. O argumento é frágil, pois a suposta descendência ampara-se num único relato, publicado por terceiros, de que Feijó era irmão do vigário de Itacurussá. Mesmo que isso fosse verdadeiro, a documentação conhecida não permite supor com segurança que ambos fossem filhos do capitão. De concreto, sabe-se apenas que o Capitão Feijó (qual deles?) era pai da freira. O pai de João da Silva Barbosa aparece no arrolamento de Morais como o nome de Antônio da Rocha Rosa. Este nome é, claramente, resultado de um erro de desdobramento de abreviatura cometido durante a transcrição das fontes: a abreviatura Bosa ou Bsa deve ter sido desdobrada em Rosa e não em Barbosa. O pai de João da Silva Barbosa era, de fato, António da Rocha Barbosa, que, na mesma época mantinha em Coimbra um filho homônimo. Este segundo António da Rocha Barbosa ficou conhecido nos meios administrativos e científicos da época por uma memória que escreveu e enviou a D. Rodrigo de Souza Coutinho, o Conde de Linhares, intitulada Memoria das tres fabricas de ferro, do Prado, da Machuca, e da Foz de Algés.49 O mesmo bacharel aparece numa famosa carta de Vandelli, em que são arrolados os graduados em filosofia que residiam no Brasil, em 1783, e que poderiam “observar e recolher produções naturais”. Barbosa foi indicado como correspondente em potencial do museu da Ajuda.50

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49 BARBOSA, Antônio da Rocha. Memoria das tres fabricas de ferro, do Prado, da Machuca, e da Foz de Algés, offerecida a D. Rodrigo de Sousa Coutinho. BNL, códice 610. 50 AHU, Reino, Maço 2722.

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O Antonio da Rocha Barbosa em questão é, provavelmente, Antonio da Rocha Barbosa de Mattos Coutinho.51 Os sobrenomes anexos indicam o parentesco com um grupo familiar bastante significativo. Os sobrenomes Azeredo Coutinho, Coutinho Rangel, Matos Coutinho, Pereira Coutinho, Lemos de Faria, agrupam a mais ‘fina flor’ da aristocracia fluminense, que era aparentada a certa nobreza titulada de Portugal.52 Era prática corrente dessa elite mandar alguns de seus rebentos para a Universidade de Coimbra. Até o bispo reformador da Universidade, D. Francisco de Lemos (de Faria Pereira Coutinho), pessoa muito próxima a Pombal, era integrante do clã. Isto talvez possa explicar um certo à vontade de João da Silva Feijó para com D. Rodrigo de Souza Coutinho ou o tratamento quase paternal, pela severidade, que lhe dedicava o ministro Martinho de Mello e Castro. No entanto, essa proximidade também coloca dificuldades. Se Feijó pertencia a esse grupo familiar, era de se esperar que a documentação fizesse menções a isso, o que não acontece. No caso da mudança de sobrenome, outras dificuldades se colocam, entre elas saber o porquê da troca e o motivo da escolha do apelido substituto. É preciso lembrar que, naquela época, a não ser em certos casos de sobrenomes nobiliárquicos muito bem estabelecidos, os sobrenomes não passavam de pais para filhos pela linha paterna, como hoje é quase obrigatório. Na maior parte dos casos, o ato do batismo consignava apenas o nome da criança. O sobrenome ia sendo construído ao longo da vida, a partir de estoques de sobrenomes usados pelos integrantes dos agregados familiares a que pertencia o indivíduo ou, inclusive, os dos padrinhos. Mudanças de posição social dentro dos agregados – a morte de um irmão primogênito, por exemplo -; mudanças de locais de residência; aproximações físicas, econômicas ou emocionais com um ou outro ramo familiar; homenagem prestada a alguém ou a alguma causa; tentativas de nobilitação, entre muitos outros, eram motivos para trocas de sobrenomes.

51 Viveu no final do século XVIII, um outro Antonio da Rocha Barbosa de Mattos Coutinho, ouvidor da comarca de Paranaguá. Contudo, parece tratar-se de um homônimo. 52 Por outros caminhos, Silva Nobre tentou incluir Feijó neste mesmo ‘clã’.

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No caso em questão, gostaria de chamar atenção para um documento em que Vandelli chama o jovem naturalista de Feijó Cascais.53 Isso pode significar diversas coisas. O estudioso brasileiro poderia ter-se aproximado de um ramo nobilitado, porém distante, de sua família: a casa dos marqueses de Cascais, apenas por suposição. Neste caso concreto, não foi o que aconteceu, pois o último marquês de Cascais, D. Luís José de Castro Noronha Ataíde e Sousa, morrera em 1745 sem deixar sucessor. Poderia indicar apenas que ele morava em Cascais. Todavia, nenhum dessas suposições resolve o problema da adoção do sobrenome Feijó, que pode ser o de um parente ou padrinho ou mesmo uma homenagem. Neste último caso, o homenageado provavelmente seria Benito Jerónimo Feijoo, filósofo espanhol que na época gozava de grande prestígio entre os estudiosos das ciências naturais. Como o naturalista era o mais jovem do grupo reunido em Lisboa em preparação para as viagens filosóficas às colônias, é possível, inclusive, que por pilheria os colegas o chamassem de Feijó de Cascais. Seria o mesmo que, por brincadeira, hoje chamássemos um jovem talentoso do interior de São Paulo de Einstein de Pindamonhangaba. Há, no entanto, uma possibilidade um pouco mais consistente e que não pode ser descartada. Como mostrou o historiador Oliveira Marques, a década de 1780 foi um período importante na disseminação da maçonaria em Portugal. Entre 1777 e 1779, com a subida de D. Maria ao trono, houve um surto de perseguição aos pedreiros livres. Basta lembrarmos a repressão que se abateu sobre a loja maçônica de Coimbra, em 1779. Muitos de seus integrantes, que foram presos e submetidos a um auto-de-fé, eram brasileiros. Entre eles, Francisco de Melo Franco, Antonio Pereira de Souza Caldas e Joaquim José Cavalcanti. Passado o momento traumático, a maçonaria começaria a se consolidar. Oliveira Marques chega a classificar a Real Academia de Ciências, fundada em 1779, como uma organização paramaçônica. Seus principais dirigentes, o duque de Lafões e o abade Correia da Serra, eram notórios integrantes da

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53 VANDELLI, Domingos. Descripção e analyse chymica do cobre virgem ou nativo descuberto no anno de 1782 na Capª da Bahia. IEB, Coleção Lamego, cód.70, A8.

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maçonaria.54 O jovem Feijó tinha grande proximidade com a Academia e, em algum momento desta época, deve ter-se tornado maçom. Ocorre que, quando as pessoas eram iniciadas, elas adotavam um nome simbólico, quase sempre o de uma grande figura do passado. Feijó, por conta do filósofo e naturalista espanhol Feijoo, foi um desses nomes adotados por maçons portugueses.55 Em teoria, os criptonomes eram secretos e deveriam ser compartilhados apenas entre os integrantes das lojas. Nada impede, contudo, que tenha vindo a incorporar-se ao nome de João da Silva Barbosa, se é que de fato ocorreu a troca de sobrenome. Como foi dito, e é preciso reiterar, tudo isso não passa de um amontoado de conjecturas, cujo objetivo não vai além de apontar aos futuros pesquisadores os caminhos inconclusos até agora percorridos. Continuamos sem saber, de fato, as origens familiares de João da Silva Feijó.

O Feijó de Cabo Verde O conhecimento da biografia do acadêmico não se resume ao que foi elaborado pela historiografia brasileira. Não podemos esquecer que, em função de ter atuado como naturalista régio em Cabo Verde, a trajetória de Feijó foi também abordada pela tradição historiográfica portuguesa. Além disso, desde o século XIX, os estudiosos do arquipélago valeram-se das memórias elaboradas pelo naturalista, sem maiores preocupações biográficas e, com freqüência, sem o cuidado de resguardar a autoria desses mesmos estudos. Em 1810, o governador-geral do arquipélago, António Pusich, elaborou um Ensaio físico-político sobre as Ilhas de Cabo Verde.56 Este foi um caso notório de ‘plágio’, se é cabível usar a expressão para a época. Pusich copiou partes inteiras do Ensaio Político que Feijó escreveu sobre as ilhas. O historiador Antônio Carreira deu-se ao trabalho de estabelecer a comparação entre os 54 OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. História da Maçonaria em Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1990. v.1, p.53-33. 55 OLIVEIRA MARQUES, op. cit., p.197. 56 ANRJ, Secretaria de Estado do Ministério do Reino, caixa 644, pacotilha 1, doc. 3. Este ensaio foi publicado pela primeira vez, na década de 1860, nos Anais do Conselho Ultramarino.

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dois ensaios, publicando-os lado a lado.57 Em 1841, veio a público o primeiro tomo da anteriormente mencionada Corografia caboverdiana, o volume que editado sobre a responsabilidade de José Chelmicki58. Mais uma vez, Feijó foi copiado diretamente ou através das cópias anteriores feitas por Pusich. O único autor do período a se apropriar dos textos de João da Feijó com procedimentos acadêmicos mais modernos foi o ‘economista’ José Acúrsio das Neves, em seu tratado sobre as possessões coloniais portuguesas, de 1830.59 Acúrsio valeu-se dos estudos de Feijó como base para toda a parte de sua obra relativa a Cabo Verde. No entanto, referindo-se nominalmente ao naturalista e, no caso das suas considerações sobre o anil e a urzela, indicando os textos de origem, que haviam sido publicados nas Memórias da Academia de Ciências de Lisboa. De um ponto de vista mais propriamente biográfico, o primeiro autor português a tratar da atuação de Feijó em Cabo Verde foi Christiano José de Senna Barcellos.60 É interessante notar que as contribuições de Senna Barcellos à biografia do naturalista estão longe de confirmar o tom laudatório adotado no Brasil. O autor trabalhou diretamente com as fontes depositadas nos arquivos portugueses e o Feijó que foi moldado a partir delas era alguém, no mínimo, desprovido de escrúpulos. Sem buscar fazer a defesa do naturalista, pode-se afirmar que a abordagem de Barcellos é um tanto ingênua, uma vez que o autor parece não perceber que a documentação que consultou era extremamente motivada e foi produzida por pessoas e grupos que rivalizavam, trocando pesadas acusações. De qualquer forma o “distincto naturalista e excellente botânico” converteu-se em incompetente e de “insigne” passaria a autor dos “maiores escândalos”.

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57 CARREIRA, António. Apresentação e comentários. In: FEIJÓ, João da Silva. Ensaio e memórias económicas sobre as ilhas de Cabo Verde; Século XVIII. Lisboa: Instituto Caboverdeano do Livro, 1986. p.57-82. 58 CHELMICKI & VARNHAGEN, op. cit. 59 NEVES, José Acúrsio das. Considerações politicas: e commerciaes sobre os descobrimentos, e possessões dos portuguezes na Africa, e na Asia. Lisboa: Imprensa Régia, 1830. 60 SENNA BARCELLOS, Christiano José de. Subsídios para a história de Cabo Verde e Guiné. Lisboa : Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1905. parte III, p.93 e ss.

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Sena Barcelos ateve-se em demasia a uma leitura direta das fontes, assumindo-as como expressão absoluta da verdade, sem tentar entender a natureza dos conflitos em que Feijó esteve envolvido e sem atentar para a mecânica das denúncias administrativas, que serviam de importante instrumento nas lutas de poder entre facções locais e os emissários da coroa, as quais eram travadas em qualquer colônia portuguesa do período. Em decorrência, Feijó aparece em seus textos como responsável por “escândalos, latrocínios e iniqüidades”, repetindo o que aparece em um documento da época. Diga-se de passagem que esses enfrentamentos, e o denuncismo que caracteriza a documentação do período, são idênticos em Portugal e em todos os países europeus do Antigo Regime. O próximo autor a tratar da atuação de Feijó em Cabo Verde foi António Carreira, que reeditou alguns dos seus textos em 1986. Este historiador conhecia bem as memórias e os ensaios elaborados pelo naturalista, mas não se debruçou sobre a documentação disponível nos principais arquivos portugueses, bebendo diretamente de Senna Barcellos. Ele teve o mérito de relativizar as acusações assacadas contra Feijó, até porque conhecia com perfeição o intrincado clima sócio-político do arquipélago no século XVIII, a que dedicou mais de um estudo. O João de Silva Feijó apresentado por Carreira é mais trapalhão e infantil do que incompetente e prepotente. É bom notar que a apresentação à obra de Feijó foi uma das últimas contribuições de Carreira à historiografia caboverdiana. É um texto apressado de um velho historiador que se sentia discriminado no ambiente de pesquisa português dos anos 80. Os limites de sua contribuição são evidentes e por ele mesmo enunciados. Ele queria apenas dar vazão e divulgar um material que tinha já em mãos e se concentrou, portanto, naquelas memórias do naturalista que já haviam sido publicadas nos séculos XVIII e XIX.61 Por fim, é preciso mencionar uma desconcertante omissão nos estudos sobre a trajetória de Feijó. O historiador norteamericano Willian Joel Simon é o 61 O propósito de Carreira era justamente este: “a nossa intenção é unicamente a de divulgar estudos já editados no Brasil e em Portugal no século XIX, utilizando-os na forma em que então foram apresentados, embora acompanhados de notas e comentários, uma vez que, de modo geral são (repete-se) pouco conhecidos”. CARREIRA, op. cit. p.XXII.

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autor da principal obra a dar uma notícia conjunta sobre o envio dos naturalistas luso-brasileiros às diferentes partes do Império colonial português.62 O livro de sua autoria, que tem um cunho geral e introdutório, cobre a trajetória de Alexandre Rodrigues Ferreira e de seus colegas José Joaquim da Silva e Manuel Galvão da Silva, enviados respectivamente a Angola e Moçambique. Cada um deles foi contemplado por Simon com um capítulo. No entanto, apesar das freqüentes referências a Feijó, e de ter levantado a documentação pertinente, o estudioso norteamericano não lhe dedicou um capítulo específico, como aos outros. Os principais responsáveis pela continuidade das pesquisas sobre a atuação de Feijó em Cabo Verde fomos eu e a estudiosa portuguesa Maria Estrela Guedes. A autora ocupou-se principalmente em dar a conhecer o Itinerário Filosófico de Feijó no arquipélago, documento que permanecia inédito até a presente edição.63 O historiador Ronald Raminelli também dedicou algumas páginas à trajetória caboverdeana do naturalista.64 Por minha vez, publiquei um artigo que foi pensado como um complemento do livro de Willian Joel Simon, ou seja o capítulo que nele falta relativo à Viagem Filosófica de Feijó a Cabo Verde.

2. Fazendo-se naturalista O João da Silva Feijó mais concreto, cuja trajetória pode ser acompanhada na documentação conhecida, aparece apenas em 1778, por ocasião dos preparativos que a coroa portuguesa estava fazendo para enviar uma grande expedição filosófica à América portuguesa. A partir daquele ano, o naturalista italiano Domingos Vandelli e o ministro Martinho de Mello e Castro passaram a reunir, no Museu da Ajuda, um grupo de estudantes recém egressos da Universidade de Coimbra, onde eles deveriam complementar a sua formação antes de partirem para a grande expedição. Além de contar com Alexandre Rodrigues Ferreira, a quem foi destinado o papel de chefia, a equipe era composta por

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62 SIMON, op. cit. 63 GUEDES, Maria Estrela e ARRUDA, Luís M. Arruda. Feijó naturalista brasileiro em Cabo Verde no século XVIII. In: As Ilhas e o Brasil. Funchal: CEHA, 2000. p.509-524. 64 RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: Monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo Alameda, 2008. p.104-107.

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João da Silva Feijó, e por mais dois brasileiros: Joaquim José da Silva e Manuel Galvão da Silva. O grupo ficou sob supervisão de Julio Mattiazi, o jardineiro chefe da Ajuda, uma vez que Vandelli permanecia a maior parte do tempo em Coimbra, por força de sua atuação na Universidade.65 Sabe-se pela documentação que Feijó e Ferreira já se encontravam em Lisboa, à disposição do ministro Melo e Castro, no início de 1778. Feijó demonstrava claros sinais de pretensão científica e tentava inserir-se no ambiente acadêmico da capital. Em março daquele ano, desenvolveu uma experiência química com “Æthere vitriolico” no Laboratório da Academia de Ciências e redigiu uma pequena memória, submetendo-a para publicação. Suas expectativas juvenis foram sumariamente podadas pelo parecerista, que foi categórico: “Não foi julgada digna de impressão nem de extracto”.66 Durante este período de preparação, os integrantes do grupo foram incumbidos de pequenas expedições em Portugal, de modo a completar sua formação científica. A região circunvizinha a Coimbra era utilizada como uma espécie de campus experimental da Universidade. Tornara-se uma prática comum enviar estudantes e recém-formados em viagens de treinamento a Buarcos e a Coja, como parte da formação em História Natural. Muitos estudantes brasileiros passaram por esse tipo de treinamento.67 Os baianos Baltasar da Silva Lisboa e Joaquim de Amorim e Castro receberam a incumbência de examinar as minas (chumbo, ferro, cobre, prata, ouro, antimônio e enxofre) de Coja.68 Joaquim Veloso de Miranda e José Álvares Maciel foram enviados 65 Mattiazi foi trazido de Pádua para Lisboa por Vandelli e, na prática, acabou assumindo o comando do Real Gabinete de História Natural e do jardim anexo, uma vez que o naturalista-chefe permanecia, na maior parte do tempo em Coimbra. Ver CARVALHO, Rómulo de. A história natural em Portugal no século XVIII. Lisboa : Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1987. p.64-5. 66 FEIJÓ, João da Silva. SimplicisSima descriptio Laboris chemici pro Æthere vitriolico componendo. ACL, cód.Azul 377, f.130-131 67 PEREIRA, Magnus R. M. e CRUZ, Ana Lúcia R. B. Ciência, identidade e quotidiano: Alguns aspectos da presença de estudantes brasileiros na Universidade de Coimbra, na conjuntura final do período colonial. Revista de História da Sociedade e da Cultura, Coimbra, n.9, 2009. p.224. 68 LISBOA, Baltasar da Silva. Viagem mineralogico botanica, etc de Coimbra a Coja. Jornal Enciclopedico. Lisboa, 1789.

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mais para o norte, com o intuito de fazer investigações científicas nas Serras da Estrela e do Gerez. Assim que começaram a trabalhar no gabinete de História Natural da Ajuda, Ferreira e Feijó foram designados para examinar as minas de carvão de Buarcos.69 Esse episódio costuma ser superestimado nas biografias de ambos. Silva Nobre imaginou que eles tivessem permanecido em missão por mais de um ano.70 Na realidade, a viagem foi de apenas 5 dias, como atestou o próprio Vandelli.71 Desta viagem resultou uma memória ilustrada, hoje desaparecida, contendo a “exata descrição da Mina de Carvão”.72 O naturalista italiano também relatou que o grupo de brasileiros desenvolvia na Ajuda algumas experiências com corantes. Rodrigues Ferreira, Galvão da Silva e Feijó também auxiliaram o mestre italiano em experiências realizadas com amostras de cobre metálico mandadas da Bahia, em 1788.73 Galvão, em sua jornada em direção à Índia, passou pela Bahia, com a incumbência de examinar as jazidas de cobre daquela capitania. Outra atividade desenvolvida pelos jovens naturalistas, enquanto trabalharam na Ajuda, foi a elaboração de um manual destinado a ensinar aos “Curiosos que visitam os sertões, e costas do Mar” os métodos de recolher e conservar adequadamente “produtos naturais” destinados aos gabinetes de história natural.74 Este manual permaneceu inédito. No entanto, os naturalistas luso-brasileiros também participaram da elaboração de um outro manual se-

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69 SIMON, Willian Joel. Scientific expeditions in the Portuguese Overseas Territories. 1783-1808. Lisboa : Instituto de Investigação Científica Tropical, 1983. p.9, 17 e 79. 70 NOBRE, op. cit., p.59. 71 VANDELLI, Domingos. Atestado passado em 14 de agosto de 1783. In: LIMA, Américo Pires de. O Doutor Alexandre Rodrigues Ferreira. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1953. p.108-109. 72 AHU, Reino, Maço 26. 4 de janeiro de 1779. 73 IEB, Coleção Lamego, 70, A, 8. Ver SILVA, Clarete P. As Viagens Filosóficas de João da Silva Feijó (1760-1824) no Ceará. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 47, 2007. p.181. 74 MB, Méthodo de Recolher, Preparar, Remeter, e Conservar os Productos Naturais. Segundo o plano que tem concebido, e publicado alguns Naturalistas, para o uso dos Curiosos que visitam os sertões, e costas do Mar. Lisboa: 1781.

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melhante, publicado pela Real Academia das Sciencias, em 1781.75 Apesar de primariamente direcionado aos membros da Academia, o livreto acabou sendo adotado por Martinho de Mello e Castro e distribuido pelas colônias como texto de orientação da rede de funcionários régios e de curiosos que foi mobilizada para a formação do gabinete de história natural da Ajuda.76 Em finais de 1782, houve uma mudança de planos e a grande expedição que seria enviada ao Brasil foi dividida em equipes menores a serem distribuídas por diversas regiões do Império Colonial Português. Foi uma decisão não apenas econômica, mas, também, de cunho científico. Havia, no período, quase que uma corrida pela classificação de novas espécies minerais, vegetais e animais, segundo a taxonomia de Lineu. O desmembramento da equipe pode ter sido uma forma de apressar a recolha de “produtos da natureza” das diversas partes do Império, de maneira a catalogá-los o mais breve possível, o que renderia dividendos acadêmicos e políticos, nesta corrida científica que se estabelecera entre as nações européias. Recolher e dar a conhecer o maior número possível de espécies era também uma questão de orgulho nacional. Ao longo de 1783, as diversas equipes das viagens filosóficas foram sendo enviadas às colônias. Ferreira partiu para a Amazônia, acompanhado apenas por dois desenhistas e um jardineiro. Os dois Silvas, cada um à cabeça de uma pequena equipe, foram enviados para Angola e Moçambique, acumulando as funções de naturalistas e secretários de estado. A Feijó foi incumbida a exploração de Cabo Verde. A trajetória de Alexandre Rodrigues Ferreira é por demais conhecida para insistirmos nela. Por sua vez, Joaquim José da Silva e Manuel Galvão da Silva cumpririam as suas missões da melhor forma possível, dada a dificuldade de conciliar os cargos de naturalistas e burocratas, enviando material daquelas 75 Breves instrucções aos correspondentes da Academia das Sciencias de Lisboa sobre as remessas dos produtos e notícias pertencentes a historia da natureza para formar um Museo Nacional. Lisboa : Tipografia da Academia, 1781. 76 Sobre os manuais portugueses de instrução de viagem ver: PEREIRA, Magnus Roberto de Mello & CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho da. O viajante instruído: os manuais portugueses do Iluminismo sobre métodos de recolher, preparar, remeter, e conservar produtos naturais. In: SANTOS, Antonio C. A.; DORÉ, Andréa C.. (Org.). Temas Setecentistas. Curitiba: UFPR/SCHLA, 2009. p. 241-252.

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colônias para o museu de história natural da Ajuda. Percebe-se, em ambos os casos, um progressivo afastamento das funções de naturalista. Joaquim José da Silva integrou-se perfeitamente em Angola, ascendendo na carreira administrativa da colônia. Ali viria a casar, ter filhos e morrer. Sobre Galvão da Silva, a documentação é mais lacônica. O historiador norte-americano Joel Simon, que estudou sua atuação em Moçambique, supôs que em 1793 Galvão teria abandonado silenciosamente o serviço régio e retornado à sua Bahia natal.77 Todavia, é possível que ele tenha permanecido em Moçambique por mais alguns anos, tornando-se negociante. A documentação aponta que, em finais de 1794, ele era dono de uma embarcação de comércio, muito provavelmente de escravos.78 Deste grupo, apenas Ferreira e Feijó, portanto, continuaram a dedicar-se às ciências naturais. Quando estudou as viagens filosóficas portuguesas, o historiador William Simon procurou concentrar-se na atuação, digamos, científica dos naturalistas, minimizando as quizílias locais em que os mesmos estiveram envolvidos. Contudo, tal opção acaba por nos apresentar a figura do Naturalista como algo dado, quando, a meu ver, é mais interessante observar o fazer-se desta mesma personagem científica. É preciso lembrar que esta foi a primeira leva de funcionários (importante frisar o termo funcionário) que com este título e função aparece na cena político-administrativa portuguesa. Uma vez que o campo de intrigas nos quais eles seriam inseridos estava dado e era plenamente conhecido das autoridades administrativas portuguesas, também estavam preestabelecidos os limites e possibilidades da atuação deles nas colônias. Simon frustra-se com as limitações impostas ao trabalho científico desses delegados da coroa, assim como os próprios não deixam de exprimir as suas frustrações. Todavia, não podemos deixar de lembrar que eles mesmos foram ativos protagonistas desses embates, não apenas contra os demais agentes políticoadministrativos, mas entre os próprios integrantes das equipes científicas. Alexandre Rodrigues enfrentou todo o tipo de contrariedade, como se observa em seus próprios textos e nos trabalhos que sobre ele foram escritos. A

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77 SIMON, op. Cit. p.107. 78 LIESEGANG, Gerhard. (ed.) “Resposta das questoens sobre os cafres”. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1966. p.32.

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equipe enviada a Angola ali chega, ou já sai de Lisboa, completamente cindida. Joaquim José da Silva rompeu com seu parceiro italiano Angelo Donatti e foi mesmo acusado de ter partido em explorações deixando-o para trás a morrer.79 Galvão não hesitou em mandar prender o jardineiro que o acompanhara a Moçambique, por considerá-lo imprestável.80 Além disso, ele protagonizou mais de um episódio dos constantes conflitos administrativos daquela colônia. Mal desembarcou em Cabo Verde, Feijó também se viu envolvido num turbilhão de denúncias. Por serem naturalistas, não fugiam à regra. Ainda que estivéssemos no final do século XVIII, a caracterização que António Manuel Hespanha fez da pulverização de poderes na Idade Moderna era ainda perfeitamente válida em Portugal, nas suas colônias ou em qualquer país do mundo ocidental. “Com o poder da coroa coexistiam o poder da Igreja, o poder dos concelhos e comunas, o poder dos senhores, o poder de instituições como as universidades ou as corporações de artífices, o poder das famílias”.81 Acrescentaria que o próprio poder da coroa aparecia, principalmente nas colônias, como uma hidra de muitas cabeças. O poder dos governadores, muitos em Cabo Verde oriundos da pequena nobreza; o poder dos ouvidores, por excelência os homens letrados; o poder dos capitães das fortalezas e, agora, o poder dos naturalistas, competiam entre si e com as câmaras municipais e com as famílias locais. Cada um zelava, ao limite da insanidade, por sua parcela de poder, e dos benefícios dela advindos. A prática de intrigas e delações, estimulada pela coroa, é algo que se consegue acompanhar na documentação de qualquer colônia, desde o século XV. Chamei a isto “administração por intriga”, em outro momento.82 No século XVIII, a intriga chegaria a ser enunciada como um princípio administrativo. Numa consulta de 1728, relativa ao Brasil, o 79 AHU, Angola, Cx. 67, D47. 80 AHU, Moçambique, Cx. 52, D61. 81 HESPANHA, António Manuel. O debate acerca do estado moderno. In TANGARRINHA, José. (coord.) A historiografia portuguesa hoje. São Paulo: Hucitec, 1999. p.142. 82 PEREIRA, Magnus R. de Mello. A forma e o podre; duas agendas da cidade de origem portuguesa nas idades medieval e moderna. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 1998. v.1 p.51 e ss. (Tese de doutoramento defendida nos Cursos de Pós-graduação em História)

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Conselho Ultramarino exprimiu com todas as letras “que não era mui conveniente ao serviço de Vossa Majestade que entre os governadores e ministros maiores que com eles servem houvessem grandes amizades por ser mui útil que uns se receiem dos outros”.83

3. Um naturalista num ninho de cobras84 Ao chegar a Cabo Verde, a posição de Feijó era privilegiada, equiparando-se à de Alexandre Rodrigues Ferreira no Brasil, uma vez que não acumulava, como Silva e como Galvão, as tarefas científicas com as de burocrata. Ferreira e Feijó não foram enviados como secretários de estado, mas apenas como responsáveis por atividades científicas. O naturalista fluminense recebeu uma patente militar como forma de remunerar os seus serviços. Contudo, é perceptível que a sua missão era encarada como algo menor em relação às demais. Todos os outros encabeçavam equipes compostas por jardineiros e desenhistas, enquanto Feijó foi enviado sozinho. Além do mais, foi-lhe reservada uma pequena armadilha. Ele foi colocado ostensivamente na condição de tutelado do bispo do arquipélago, D. Francisco de São Simão, que acumulava o governo de Cabo Verde. Pode-se especular um pouco sobre os motivos que levaram Martinho de Mello e Castro a estabelecer tal tutela. É provável que houvesse alguma coisa no comportamento passado do naturalista que o tivesse levado a isso, todavia é mais provável que tenha pesado um fato mais simples e prosaico: a idade de Feijó.

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83 BOXER, C. R. Portuguese society in the tropics; the municipal councils of Goa, Macao, Bahia and Luanda, 1500-1800. Madison and Milwaukee: The University of Wisconsin Press, 1965. p.145. 84 Em sua maior parte, a presente seção reproduz o artigo PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Um jovem naturalista num ninho de cobras, a trajetória de João da Silva Feijó em Cabo Verde em finais do século XVIII. Op. Cit. Foram, no entanto, corrigidas diversas informações errôneas que apareciam naquele artigo, principalmente sobre a parte final da vida de Feijó.

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V. Exª tomará à sua conta esse moço; que não tendo mau gênio nem sendo inerte na profissão, a mais leve sombra lhe parece um gigante e o prende para não fazer o que deve, e não deixará de ser muito desagradável que não havendo aqui coisa alguma que diga respeito às produções naturais das Ilhas de Cabo Verde, e tendo-se um Naturalista para as haver, se reduza todo o fruto dessa providência a Palavras e Relações inúteis do dito Naturalista, a nada, ou pouco mais de nada, daquilo para que foi mandado.85

A documentação, com freqüência, refere-se a ele como “jovem” ou “moço”. Os erros que lhe foram imputados eram atribuídos à sua condição de moço, coisa que não acontecia com os seus colegas enviados a outras partes do Império. Como diversos outros dados de sua vida, as referências a respeito da idade de Feijó são difíceis de precisar. Se, de fato, ele nasceu em 1760, teria entre 23 e 24 anos quando iniciou a sua expedição. Considerando que Galvão da Silva e Rodrigues Ferreira tinham 28, não parece ser grande a diferença. Todavia, estes 4 ou 5 anos, na época, parecem ter sido decisivos no estatuto de cada um. Se observarmos, ainda, que ele foi recrutado para o Real Gabinete com algo em torno de 18 anos de idade, é possível entender melhor o porquê do seu persistente enquadramento na categoria de jovem.86 Caso a data de nascimento que lhe é atribuída esteja correta, e seja o João da Silva Barbosa da documentação universitária, ele começou a cursar matemática em Coimbra com 16 anos e, em finais de 1778, quando aparece matriculado em Filosofia, tinha 18.87 Tudo isto torna mais evidente o porquê de ter-se tornado Feijó o jovem e da relação severa e paternal que o ligava a Martinho de Mello e Castro. Assim como todos os outros, ele teria que enfrentar a batalha para ver reconhecida localmente a sua condição de homem de ciência. No entanto, ao mesmo tempo, ele buscaria escapar da tutela que lhe era imposta devido à sua juventude.

85 AHU, Cabo Verde, Cód. 402. f.107. 86 Note-se que ele oficialmente era um adulto, uma vez que nos levantamentos demográficos do período a categoria “rapaz” incluía aqueles que tinham entre sete anos completos a catorze. Acima disto, eram considerados homens adultos. 87 Ver MORAIS, Francisco de. Estudantes brasileiros na Universidade de Coimbra. ABN, v.62, 1940. p.158.

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Esta dupla batalha teve início assim que Feijó desembarcou em Cabo Verde, momento em que começaram os pequenos incidentes com o bispo Francisco de São Simão, a quem estava submetido. No afã de se fazer valer, o naturalista cometeu um erro crasso na estratégia que adotou para enfrentar o religioso: escolheu o texto filosófico como arma. Nós historiadores, ávidos pelas fontes escritas, tendemos a dar à produção letrada desses naturalistas uma importância que necessariamente não lhe era atribuída pelas personagens que dominavam a cena administrativa do período. Martinho de Mello e Castro era explícito quanto a isto. As “palavras inúteis” de um naturalista eram “nada, ou pouco mais de nada”. O que lhe interessava era o envio regular e bem acondicionado de minerais, vegetais e animais. Note-se que o ministro era detentor do forte espírito colecionista que caracterizava o período. Desde a criação do Real Gabinete, ele estimulava o envio de exemplares para este museu de história natural. Observa-se, também, que parte expressiva das remessas era encarada como ‘presentes’ pessoais ao ministro e que não era enviada de forma desinteressada ou por interesse meramente científico. Um carregamento de pássaros exóticos, uma caixa com conchas raras, ou para entrarmos no pequeno circo de mirabilias da época, um casal de crianças negras albinas ou anãs, era freqüente servirem de intróito a um pedido de promoção de um subalterno, ou a uma solicitação de retorno para casa, feita por um obsequioso alto funcionário cansado do clima inóspito das colônias.88 Isto sofreria certa mudança nos anos subseqüentes. Com a publicação das Memórias Econômicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, e mais ainda durante o consulado Souza Coutinho, o texto filosófico ganharia um outro estatuto. Embora desse continuidade à política de recolha e mesmo a ampliasse, o conde de Linhares era antes um ávido colecionador de memórias do que de “curiosidades naturais”. Neste período subseqüente, Feijó teria a sua produção literária reconhecida e publicada. Todavia, quando elaborou os seus primeiros relatos não fez mais que irritar o seu patrono. O texto ‘científico’ do naturalista entrou pelos canais administrativos por onde fluíam as denúncias de desmando dos agentes da coroa e foi acolhido exatamente da forma como o 52



88 Em uma das listas de remessas de Feijó consta “Hua Anãm mulata”. AHU, Cabo Verde, Caixa 41, D57.

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eram todos os outros. O jovem fazia intrigas contra o seu tutor, o bispo-governador, o qual, aparentemente, contava com a simpatia de Mello e Castro.

O Itinerário filosófico Tendo partido de Lisboa no dia 3 de Fevereiro depois de 16 dias de viagem com repetidos temporais do sul, fomos avistar a Ilha da Madeira pela tarde com um fortíssimo furacão de vento Norte, que por espaço de 4 horas fez andar a ronceira Embarcação em que vinha 34 milhas em árvore seca com não pequeno perigo de nossas vidas: deste ponto com o mesmo vento porém mais moderado, em 11 dias avistou-se a Ilha do Sal, uma das desertas de Cabo Verde, com a desconfiança no Mestre de já as haver varado pelo tempo que se gastou em correr para elas, e no seguinte dia 28, do mesmo mês pela manhã avistamos a de São Nicolau onde pelas 12 surgimos no porto chamado da Preguiça.

Assim começa o principal documento a informar os movimentos iniciais de Feijó no arquipélago, o qual foi também foi causa de seus primeiros dissabores. O Itinerário filosófico que contém a Relação das Ilhas de Cabo Verde disposto pelo método epistolar era, como sugere o título, um relato de viagem composto de um conjunto de cartas. O destinatário delas era o ministro Martinho de Mello e Castro. Apesar de ser um dos mais importante texto de Feijó sobre aquelas ilhas, permaneceu inédito e desconhecido da maior parte dos estudiosos de Cabo Verde. A primeira carta foi escrita da Ilha Brava e está datada de 17 de junho de 1783. Nela, Feijó relata a viagem de Portugal a Cabo Verde e os seus conflitos com o Bispo, que, segundo ele, não o deixava exercer o seu papel de naturalista. A demora que aqui tive que foram 2 meses dar-me-ia muito lugar a comunicar agora a V. Exª algumas observações Filosóficas desta Ilha, e remeter ao Real Gabinete as mostras de suas produções, se não se antepusesse a este meu desejo a sinistra intenção daquele Prelado a cujas ordens vim cometido, o que deixo para quando se me oferecer ocasião, pois tentando eu dar logo por ali princípio, me não quis permitir, dizendo-me que iria dar principio pela Ilha Brava ao que o respeito, e subordinação me fez obedecer em prejuízo meu pois assim quis a minha fortuna para que mais tempo andasse por uns países tão disgravados como estes.

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A expedição ficou adiada até maio quando partiram para a cidade da Ribeira Velha, antiga capital do arquipélago, que neste momento se encontrava em ruínas, fazendo escala na Ilha de Maio, onde o bispo foi verificar os destroços de um navio dinamarquês que ali naufragara. Mais um pequeno conflito. A curiosidade de ver conchas, me fez correr em os 8 dias, que ali nos demoramos, grande parte daquelas praias, e havendo recolhido grande porção delas, porque o Bispo me não consentiu conduzi-las, alegando não haver comodidade, lá ficaram não com pouco pesar meu, amontoadas em um canto de barraca, e entre elas alguns esqueletos, e crânios de grandes animais marinhos.

Feijó chega à ilha Brava em 20 de maio e o bispo parte 6 dias depois, liberando-o para dar início às explorações. Esta viagem está relatada na segunda carta que compõe o Itinerário Filosófico, datada de 17 de julho. No dia 1 de Junho parti do sitio de Santa Bárbara com 12 homens e um oficial para os dirigir, e prático para me ensinar os passos, e logo tomei caminho da Povoação, donde, depois de ouvir Missa, tomando para a parte do Noroeste para o sítio chamado da Pedrinha, principiei a correr a Ilha em redondo, até vir terminar outra vez ao mesmo ponto, passando depois a visitar o interior, cujo trabalho conclui em 18 dias, que vai a fazer objeto da presente carta.

Na 3ª carta, data de 17 de outubro de 1873, o autor antecipa que irá concentra-se numa descrição da Brava, dando relevo ao “seu clima pela situação em que demora; qual a sua fertilidade; quais as doenças endêmicas que se experimentam ali; os medicamentos de que se servem os seus habitantes; e como finalmente foi o seu descobrimento”. Todavia, ele não se detém na proposta inicial e traça um quadro dos costumes da ilha. Os seus preconceitos de acadêmico o levam a tingir de comicidade os relatos das práticas sociais dos habitantes da ilha. No entanto, ele demonstra ter uma rara curiosidade pelo costumes locais, o que não era comum entre os seus colegas naturalistas. “Não há coisa que mais me provoque o riso, que o ver um casamento neste país”, diz Feijó, antes de fazer uma detalhada descrição da cerimônia e dos festejos. 54



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A noiva vestida a maneira das nossas máscaras vai para a Igreja tão serza, tão direita, e tão imóvel da cinta para cima, que até para alimpar o suor do rosto leva uma mulher ao pé de si com um lenço para este fim, o que d’ordinário é a madrinha; ainda que nunca se calçasse como é costume naquela Ilha, naquele dia há de sofrer a mortificação do sapato um dos maiores martírios para elas: segue-se logo atrás da Noiva uma multidão de mulheres como criadas, e depois os convidados com o Noivo, que também há de suportar o mesmo incômodo do calçado para ir de casaca, bengala, e chapéu de galão, ainda que este seja o tambor do Presídio pois é neste aparato que eles põem toda a sua vanglória, e brio. (...) Chegam finalmente os Noivos a suas casas, e antes d’entrarem põem-se à porta ambos com os Padrinhos de um e outro lado para cumprimentarem a seu modo todo aquele acompanhamento, e então concluída toda esta cerimônia entram para dentro com todo o séquito seguindo-se logo as comidas, e bebidas. Acabado o jantar recolhem-se todos os convidados, tornando-se depois a juntar na casa da Noiva para fazerem o que eles chamam fogueira que é saírem dali a ir procurar o Noivo que dizem estar fugido e vão enfim todos com grande festa a buscá-lo, e o trazem à Noiva para se reconciliar com ela, a qual sentada defronte da porta com muitos enfeites, o espera com abraços, e beijos que mútua, e publicamente ali se dão sem respeito: que desonestidade, Senhor que pouco respeito à religião Católica que professamos! Feita esta entrega entram todos para casa da Noiva: imediatamente seguem-se as comidas, e bebidas, e os desonestos bailes acompanhados de repetidíssimas palmadas, toques de tambor, e das mal concertadas cantilenas de mulheres, a cujo desorganizado, desconcertado, e desesperado som acompanha o Mestre da Capela, ou outro qualquer músico, com uma velha, destemperada, e mal encordoada harpa, ou viola, a cuja função não deixam jamais d’assistir os principais da Ilha ainda mesmo aqueles em cujas mãos esta depositado e entregue o público governo. Estes espíritos todos movidos pela violência daquelas lascivas ações, e agitados pela força dos incansáveis, inquietos, e repetidos frascos de vinho, e aguardente bem deixam ver a V. Exª as boas conseqüências que podem produzir contra todas as leis.

Na seqüência, Feijó enceta a minuciosa descrição de um funeral, acompanhada, obviamente, de comentários jocosos e críticas à superstição dos moradores da Ilha Brava, que acreditavam no retorno das almas dos mortos. Em seus textos posteriores, o naturalista omite estas descrições, limitando-se a atribuir a uma falta de educação “científica” e religiosa o fato de terem “al-

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guma coisa parecidos nos seus costumes, modo de viver, de vestir, de fazer suas núpcias, funerais e criar seus filhos, etc., aos povos Guiné”.89 A carta seguinte a Melo e Castro era já datada da Ilha do Fogo, em 1º de novembro de 1783. Conta Feijó ter passado àquela ilha em 20 de junho de 1783 “em uma lancha de pau de biqueira da terra, de boca aberta de 15 palmos de comprimento, em que a obrigação d’obediência me fez arriscar a vida”. Após descansar 8 dias, ele deu seqüência à expedição pelo arquipélago, o que resultou numa minuciosa descrição dos aspectos físicos da Ilha do Fogo. Ao vulcão que deu nome à ilha, ele reserva toda a 5ª carta, datada de 8 de novembro e a seguinte, de 5 de dezembro, é dedicada a comentários sobre alguns aspectos sociais. Feijó estratificou a população do Fogo segundo um rígido critério racial. Em oposição ao que verificara nas Ilhas de São Tiago e Brava, nas quais os habitantes eram na maioria de origem africana, diz que “a maior parte dos habitantes da Ilha [do Fogo] são mestiços, por haver muitos brancos, e descendentes de brancos”. Como decorrência, afirma que “os naturais são mais sinceros, e obedientes amantes dos brancos em extremo, e trabalhadores, e amigos de procurar meios de viver”. As mulheres, apesar de se vestirem apenas com um pano à cintura, como nas outras ilhas, foram caracterizadas como “mais afáveis e não tão licenciosas, nem tão bailadeiras”. Logo a seguir, ao relatar a atuação da câmara municipal, Feijó deixa entrever a origem das denúncia de prepotência que lhe foram assacadas. Há mais um juiz dos órfãos, este pela maior parte das vezes consome os bens dos pobres órfãos, donde nascem andarem muitas famílias destruídas, e miseráveis pela avareza destes administrantes, porque as partilhas são feitas mais pela paixão do que pelo equilíbrio da justiça (...) Estas, e outras desordens em prejuízo de muitos, me fazia muitas vezes lembrar-lhes o delito que cometiam, em vez de agradecimento granjeava o ódio deles para comigo; tal é a conduta destes sujeitos.

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89 FEIJÓ, João da Silva. Ensaio econômico sobre as Ilhas de Cabo Verde. MEARSL, v.5, 1815.

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Outra fonte de atrito foi tentar imiscuir-se no governo militar da Ilha do Fogo. Relata Feijó que todos os homens da Ilha, “sem exceção de filhos de viúvas, de velhos, de doentes, ainda de tenra idade”, estavam permanentemente alistados na milícia, “ou para melhor dizer por escravos dos Capitães Mores”. Pelas suas contas, os capitães dispunham por semana de 120 braços gratuitos que eram utilizados como mão-de-obra “nas suas lavouras, ou em fiar-lhes uma libra de algodão, ou fazendo-lhes os carretos que se lhes manda” sem outro pagamento que não seja dizer-lhes os capitães “que é para o serviço de Sua Majestade”. Feijó acusa-os, ainda, de cobrarem indevidamente uma série de tributos em dinheiro, além de obrigarem os moradores pobres a lhes entregarem uma teia de algodão por semana, em troca de dispensa do serviço militar. A tempo que estas, e outras inumeráveis desordens se praticavam naquela Ilha, eu cheguei, e movido por um não sei que d’espírito excitado de ver, que com o nome de uma Soberana, tão justa, tão sabia, e tão piedosa se oprimia a tantos infelizes e já desesperados vassalos seus que por espaço de 21 anos gemiam, tentei interceder por eles; e que tirei Senhor disso? Foi adquirir sobre mim o ódio do mesmo Comandante, e se seus sequazes {que poucos são} e queira Deus que as suas malevolências não venham a fulminar contra a minha honra e, algum dia males que me façam perder a graça da minha Soberana e de Vª Exª.

O ninho de cobras A expectativa de Feijó era plenamente justificada. De fato, as queixas sobre seu comportamento iriam ter a Martinho de Mello e Castro que escreveu ao naturalista uma severíssima carta de advertência e outra ao governador mandando que o pusesse nos trilhos.90 Ele era acusado pelos habitante (digase a elite local) de não ter pago pelo transporte entre a Ilha do Fogo e a de Santiago, para onde retornou a seguir. Acusaram-no, também, de comportamento altivo para com os “pobres habitantes” e de se fazer passar por alguém de grande poder e autoridade. Além disso, diziam ter ele exigido mais algodão

90 AHU, Cabo Verde, Cód. 402. f.108v-109v e 114-117.

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do que o necessário para empacotar as remessas de suas recolhas, obrigando os habitantes a fornecê-lo.91 Note-se aqui a exata natureza desses conflitos. A tecelagem de panos de algodão, para venda no continente africano, era uma das principais atividades econômicas de Cabo Verde. O capitão apropriava-se pessoalmente de uma prestação em algodão exigida dos moradores em nome da coroa. Feijó, em nome do serviço da coroa, apossa-se de parte deste algodão para uso ‘científico’ o que foi encarado como um ônus privado imposto ao capitão. Quanto a ter obrigado um navio a transportá-lo sem pagamento, a versão de Feijó sobre o episódio era completamente diferente. Com a morte do bispo-governador, ele ficou retido no Fogo e sem instruções sobre o que deveria fazer. Fez gestões junto aos representantes da Cia. do Maranhão e Grão-Pará para que fosse transportado, junto com o resultado de sua coleta, de volta a Santiago. O pedido foi negado pois disseram não haver instruções à respeito. Em 15 de agosto chega um bargantim com os novos administradores da Companhia, que mesmo não tendo ordens da Direção em Lisboa, resolveram fazer o transporte, considerando que era um serviço à coroa. 92 Nota-se que, apesar de ter granjeado a antipatia do Juiz de Órfão, integrante da elite camarária local, houve uma espécie de aliança entre Feijó e a Câmara. Em carta enviada a Mello e Castro, os camaristas davam conta da chegada do naturalista, a 22 de junho de1783, e aproveitam para queixar-se do comandante.93 Assim, Feijó tivera a oportunidade de descobrir em suas observações científicas um verdadeiro ‘ninho de cobras’, muito bem criadas, diga-se de passagem, no qual ele estava devidamente enredado. No século XVIII, a decadência econômica dessas ilhas, só fez agravar um clima de disputas que era secular. Os cargos públicos, encarados como oportunidade de obter benefícios como os descritos pelo naturalista, tornaram-se uma importante fonte de ren-

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91 Carta de Mello e Castro a Feijó, de 9 de dezembro de 1784. AHU, Cabo Verde, Cód. 402. f.108v. 92 AHU, Cabo Verde, Cx. 42, D8. 93 AHU, Cabo Verde, Cx. 42, D1.

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da da elite local, que passou a disputá-los com sofreguidão. Estava estabelecido o imbroglio entre os emissários régios e os poderosos locais.94 Textos de intriga administrativa, como o escolhido por Feijó em algumas partes do Itinerário Filosófico, eram uma constante na administração colonial portuguesa e na de Cabo Verde em especial. Há décadas, havia tal clima de beligerância no arquipélago que os oficiais régios recebiam uma verba especial para contratar seguranças. Com esse dinheiro, eles formavam quadrilhas de capangas recrutados localmente. A elite local queixava-se que, à cabeça dessas gangues, cometiam toda sorte de prepotências, violências, abuso sexual de mulheres e corrupção. Nas primeiras décadas do século XVIII, as desavenças entre governadores e ouvidores de Cabo Verde, que se acusavam mutuamente de invadir as respectivas competências, mesclam-se à altíssima mortalidade desses oficiais, por doenças, ‘causas desconhecidas’ e outras bem conhecidas. Morre o governador Antônio Vieira. A viúva acusava, entre outros, o ouvidor Sebastião Bravo Botelho. O governador seguinte foi incumbido de fazer a sindicância dos eventos. No entanto, este escapou da tarefa, dizendo que era público e notório que Antônio Vieira morrera de um “aposthema” causado por uma pedrada que recebera. Coisa pouca! Em 1732, novas atribulações começam quando o governador mandou prender o ouvidor. Este parece ter resistido e acabou morto, junto com outras duas pessoas que o apoiavam. Eram tantos os conflitos, que a coroa enviou um desembargador-sindicante para esclarecer os episódios: o baiano Custódio Correia de Matos, que aparentemente morreu envenenado.95

94 Ver a descrição dos muitos conflitos que ocorreram no arquipélago na já mencionada crônica de Sena Barcelos e em CHELMICKI, J. C. C. & VARNHAGEN, F. A. Corografia Cabo-verdeana. Lisboa: Typ. de L. C. da Cunha, 1841. 2.v. Para uma apreciação mais contemporânea, ver CARREIRA, Antônio. Conflitos sociais em Cabo Verde no século XVIII. Revista de História Económica e Social, n.16, ju.-dez.1985. e PEREIRA, Daniel A. As insolências do capitão Domingos Rodrigues Viegas e do seu irmão Belchior Monteiro de Queiróz contra as autoridades da ilha de Santiago. Revista de História Económica e Social, n.16, ju.-dez.1985. 95 Ver GUERRA, Luís Bivar. A sindicância do desembargador Custódio Correia de Matos às Ilhas de Cabo Verde em 1753. Stvdia, n.2, jul.1958.

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A apoteose dos conflitos cabo-verdianos ocorreu na segunda metade do século XVIII, quando, em 1762, foi assassinado mais um ouvidor-geral. Sendo ouvidor na cidade de São Tiago das Ilhas de Cabo Verde o Bacharel João Vieira de Andrade, e estando em atual exercício no mesmo lugar, de que fora encarregado pelo Sr. D. José para administrar justiça naquela colônia, sucedeu que no dia 13 de dezembro de 1762, das 9 para as 10 da noite, lhe cercaram repentinamente as casas com um grande número de homens armados, pretendendo os ditos homens arrombar-lhe a porta, e dando nelas algumas pancadas; perguntou o dito Ministro quem batia, ao que lhe foi respondido de fora que era o Diabo; ao mesmo tempo, arrombando-lhe a golpes de machado uma janela, entraram violentamente pela mesma alguns dos referidos homens e outros pela parte do quintal e mataram o Ouvidor, fazendo-lhe com zagaias e outras armas muitas feridas, sendo a primeira com um machado na cabeça, que logo o prostrou por terra.96

O fato foi comunicado à coroa pelo juiz ordinário José Romão da Silva, que denunciava como mandante o Capitão-Mor João Freire de Andrade, chefe de uma das facções que disputavam o poder nas ilhas. No entanto, um magistrado vindo de Lisboa, em 1764, incriminou o chefe do partido rival, Antônio Barros de Oliveira, outro dos potentados de Cabo Verde. Julgado em Lisboa, ele foi condenado a ser “arrastado à cauda de um cavalo pelas ruas públicas da cidade até a praça do Rossio e nela morresse de morte natural para sempre”.97 Ordenava, ainda, a sentença que a cabeça do réu fosse cortada e enviada a Cabo Verde, para ser exposta na vila da Praia até ser consumida pelo tempo. Outros dez réus tiveram idêntica sorte, sendo que um deles foi poupado da decapitação após a morte. Mais uns tantos foram condenados à chibata e ao degredo perpétuo, entre eles José Romão da Silva, o juiz que acusara o chefe do bando rival. Mais um lance do teatro de horror pombalino. Os autores que estudaram o período lembram sempre que os atores das tragédias levadas à cena no governo do marquês foram escolhidos a dedo. Com a chacina dos Távora, ele atingiu a alta nobiliarquia. A execução dos cabeças da sublevação

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96 CARREIRA, Conflitos sociais. p.82. 97 CARREIRA, Conflitos sociais. p.85.

do Porto foi um sinal à plebe urbana. Todavia, esquecem que a eles se juntaram os integrantes de uma das mais rebeldes elites municipais das colônias. Ao tempo da chegada de Feijó ao arquipélago, a lição pombalina já parecia um tanto esquecida e os conflitos envolvendo a elite local e os emissários da coroa tinham voltado à sua turbulenta rotina, movimentada exatamente pelas mesmas personagens do passado. Após a morte do bispo, o governo foi assumido por Antônio Faria e Maia, que passaria a se digladiar indiscriminadamente com a elite local, com o clero, com os militares e, principalmente com o ouvidor das Ilhas. Este, por sua vez, fez uma aliança com o clã de João Freire de Andrade, que havia escapado da razia pombalina e continuava a ser o maior potentado das ilhas. Ambos seriam os principais responsáveis pela campanha de descrédito conduzida em Lisboa contra Feijó. É interessante perceber que o naturalista era provavelmente encarado como um homem do governador. Feijó, inicialmente parece ter entrado em conflito com Freire e Maia. “Não sei que mal tenho feito a este senhor que aqui governa, que não faz mais que me ultrajar”, queixava-se a Mello e Castro.98 No entanto, aos poucos foi-se estabelecendo uma aliança entre os dois, pois o governador passou a defender ativamente Feijó das acusações vindas do Reino. Outras das queixas levadas a Lisboa era a de Feijó exigir uma escolta militar pessoal. Pode-se observar duas dimensões nesta exigência. Uma primeira era o medo de ser eliminado pela facção local desgostosa com suas atitudes. Como já dissemos, o clima de beligerância em Cabo Verde era tal que este receio amparava-se numa expectativa muito real e plausível. Se governadores e ouvidores haviam sido eliminados, livrar-se de um naturalista não haveria de ser um grande problema. E, afinal, o que era um naturalista? Entra-se, então, na segunda dimensão, a qual dá sentido às exigências de Feijó. Como mencionamos, ser acompanhado de um bando fardado e armado era corrente entre a elite local e altos funcionários portugueses daquelas Ilhas, o que conferia a esses bandos um papel simbólico. Quanto maior a escolta, maior o estatuto do indivíduo escoltado. Quando o baiano Custódio Correia de Matos foi nomeado desembargadorsindicante do arquipélago, manteve-se quase um ano em Lisboa negociando o

98 AHU, Cabo Verde, Cx. 42, D13. 4 de abril de 1784.

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Hábito de Cristo e recursos para a contratação de um desses séquitos. Ele queria cercar-se de recursos simbólicos que lhe conferissem poder na cena em que deveria atuar. Suas exigências foram atendidas mas não parecem ter sido suficientes para evitar que, aparentemente, fosse envenenado. Note-se que os poderes especiais que foram atribuídos a este desembargador-sindicante o colocavam numa situação hierárquica superior a qualquer pessoa em Cabo Verde. Ao exigir escolta, Feijó tanto tentava proteger-se quanto conferir dignidade ao seu cargo de naturalista régio, mal definido na estrutura hierárquica administrativa. Note-se que ele não foi o único a enfrentar este tipo de problema. Manuel Galvão e Silva, o seu colega naturalista enviado a Moçambique, acabaria preso num desses conflitos de precedência hierárquica. Ele se recusou a fazer vênias ao ouvidor, o que incluía tirar o chapéu na presença de um superior. Por esta atitude, envolveram-se ambos num bate bocas, no qual Galvão, que era simultaneamente secretário de estado, afirmava estar hierarquicamente situado dois graus acima do ouvidor. Este abriu um processo e mandou prender o naturalista-secretário no forte de Moçambique, por desrespeito e desacato à autoridade. Ele só foi libertado com brevidade devido à intervenção do Governador.99 Retornando do Fogo, Feijó permaneceu por algum tempo em Santiago, a ilha capital, recuperando-se da “doença da terra” ou “carneirada”, nome que se dava à malária. A etapa seguinte de sua expedição foram as ilhas de barlavento: Santo Antão e São Nicolau, de onde Feijó fez, em maio de 1784, uma grande remessa de produtos naturais para Lisboa. Referem-se à sua atuação nestas ilhas as queixas enviadas a Mello e Castro que mais atingiram Feijó. O problema parece estar ligado não apenas a seu comportamento em Cabo Verde mas por outro fato de sua vida privada em Portugal. Após sair de Lisboa, descobriu-se que ele havia casado e, ao vir para ao arquipélago, deixara ao desamparo mulher e filho. O ministro comportouse como um pai ofendido que descobriu as travessuras do filho. Confiscaria o salário de Feijó, reservando uma parcela a ser paga em Cabo Verde, outra a ser entregue à mulher em Portugal e a última foi bloqueada numa espécie de 62



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99 AHU, Moçambique, Cx.49.

poupança compulsória para o futuro.100 Com este episódio, Feijó passaria a ser um naturalista economicamente tutelado. Ele protestou a Mello e Castro contra a atitude que, erradamente, supôs ser de iniciativa do Governador.101 Apesar de seus protestos, mais uma vez ele foi enquadrado como um jovem inconseqüente de quem se deveria tomar conta. Muito provavelmente em decorrência desses episódios, os resultados do seu trabalho foram friamente recebidos, ao contrário do acolhimento dado às remessas feitas pelos seus colegas que estavam nas outras colônias. O seu Itinerário, como já mencionamos, foi recebido como palavras vazias de um naturalista. A Feijó, Martinho de Mello e Castro escreveu dizendo que “quanto às duas remessas que V. Mce tem feito para o Real Museu, a primeira foi muito boa, porém a segunda não prestou para nada”.102 Ao mesmo tempo, o ministro queixou-se ao governador dizendo que enquanto o Bispo estava vivo as remessas de Feijó eram de ótima qualidade, porém tudo mudara após o falecimento do prelado e que o material que viera de S. Nicolau “se achou não conter nada do que se esperava, consistindo a maior parte em pedras as mais ordinárias e em outras produções da natureza que não têm singularidade alguma por que mereçam ser guardadas”.103 Há aqui uma demonstração de evidente má vontade de Martinho de Mello e Castro para com Feijó. A primeira remessa feita pelo naturalista ocorreu em dezembro de 1783104, enquanto o bispo S. Simão morreu em 10 de agosto do mesmo ano. Portanto, ele não exerceu nenhum papel de supervisão sobre o material enviado a Portugal. Tudo indica que eles não mais mantiveram contato, uma vez que Feijó permaneceu na Ilha do Fogo até o final daquele ano. Além do mais, não há nada que demonstre algum interesse do religioso por este tipo de matéria. Em muitas das colônias portuguesas, nota-se uma espécie de concorrência entre governadores, ouvidores e os naturalistas enviados pela coroa. Em 100 Feijó recebia 400.000$ por ano. Pelo que ficou estabelecido, receberia 10.000$ por mês, sua mulher, o mesmo, e o restante seria guardado. 101 AHU, Cabo Verde, Cx.42, D8. 29 de fevereiro de 1784. 102 Carta de Mello e Castro a Feijó, de 9 de dezembro de 1784. AHU, Cabo Verde, Cód.402. f.108v. 103 AHU, Cabo Verde, Cód.402. f.136. 104 AHU, Cabo Verde, Cx.41, D57. 21 de dezembro de 1783.

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Moçambique, por exemplo, o governador Francisco de Mello e Castro já vinha enviando a seu tio Martinho seguidos exemplares de curiosidades naturais, mesmo antes da chegada de Galvão. Em Angola repete-se o quadro. A par das remessas de Joaquim José da Silva, os governadores também enviavam espécimens, como já vinha ocorrendo desde a década de 1750, durante o governo de D. Francisco Inocêncio de Souza Coutinho. Em Cabo Verde, com D. S. Simão, que aliás governou por muito pouco tempo, nada disso é observável. Não é, portanto, de descrer em Feijó quando este afirmava que o bispo “tinha muito pouco gosto nestas coisas, de que fazia pouco caso”, e que, na verdade, era um obstáculo à sua atuação.105 Todavia, para não pensarmos que se tratava de uma perseguição pessoal de Mello e Castro, é preciso saber que este passou o problema a Júlio Mattiazi, o qual também se demonstrou insatisfeito com a atuação do naturalista. Feijó dizia-se “envergonhado de ser descomposto [...] pelo Júlio sem razão”. Ele tinha pleno conhecimento que seus colegas nas outras colônias contavam com equipes de apoio e atribuía o problema das remessas a ter sido mandado sozinho ao arquipélago. “Se eu tivesse um homem para a preparação dos pássaros e peixes, e outro que copiasse as plantas, seguro a V. Exª faria belíssimas remessas, porém sou eu só, e de risco e pintura, e de preparação não sei”.106

Em tempos de Faria e Maia Foi a partir do retorno das ilhas de barlavento que Feijó encontrou um aliado em Faria e Maia. Na sua luta por se afirmar no arquipélago, o governador conseguiu, por algum tempo, anular todos os seus concorrentes. Acabou prendendo o ouvidor e mandando-o de volta a Lisboa. Conseguiu, também, enquadrar os comandos militares locais e parte do clero. Ao fazer esta razia, livrou Feijó de seus contendores. Além disso, assumiu pessoalmente a defesa do

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105 AHU, Cabo Verde, CX.42, D8. 29 de fevereiro de 1784. 106 Parte do sucesso alcançado pela expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira deve-se à enorme quantidade de pranchas elaboradas pelos desenhistas que o acompanhavam. Os outros não tiveram esta sorte. Feijó não contava com nenhum e os das equipes de José Joaquim Silva e de Galvão e Silva não resistiram ao clima, morrendo assim que desembarcaram.

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naturalista frente a Mello e Castro. Escreveria ao ministro dizendo que Feijó, “por falta de malícia, ou dos conhecimentos do homem, tinha praticado algumas rapaziadas, mal pensadas sim”, mas que não era malévolo ou temerário. Tendo chegado o Naturalista à estas Ilhas, e devendo sempre empregar-se debaixo da direção do Reverendíssimo Bispo D. Frei São Simão, principiou a sua desgraça pela morte deste Prelado; não só porque não pôde justificar muitas ordens que recebeu localmente, mas porque lhe faltou muito cedo uma pessoa de maior idade e mais conhecimento do mundo, que fosse pouco a pouco dando-lhe a conhecer quais deviam ser ou seus verdadeiros cuidados e quais poderiam ser os seus princípios. É certo que nas Ilhas de Santo Antão e São Nicolau houveram queixas do referido Naturalista porque ele entreprendeu um numeramento dos gados todos; e achando que muitos diminuíam o número que lhes pertencia, fazia passar para a Fazenda Real o acréscimo destes gados, dizendo que não tinham dono e que conseqüentemente pertenciam à Real Fazenda, o que participou ao Administrador José Lopes Quaresma. O naturalista diz que recebera ordens a este respeito do Prelado defunto.107

Faria e Maia insistia em que Feijó não era culpado da maior parte das coisas de que fora acusado e que realmente tinha andado muito doente. “Mesmo na minha casa o vi sofrer sezões muito fortes, que o impediam até de voltar à sua por muitas horas”. Nesse estado, ele teria embarcado para as ilhas de barlavento. Note-se o tratamento quase paternal(ista) dispensado ao naturalista. Por ordem de Mello e Castro, Feijó passaria, desde então, a ser tutelado pelo coronel José Maria Cardoso. Este oficial havia feito anteriormente, por conta própria, uma remessa de curiosidades naturais para o Gabinete da Ajuda, a qual foi considerada de ótima qualidade. Não há indícios de que tenham ocorrido maiores conflito entre os dois. É mesmo provável que Feijó tenha encontrado nele o auxiliar de que sentia falta. Desde o retorno a São Tiago, torna-se mais difícil acompanhar os passos de Feijó, uma vez que, aparentemente, ele abandonou a escrita de seu Itinerário Filosófico. Se ele o continuou, a seqüência está hoje desaparecida. O ano de1786 ele gastaria refazendo os passos de suas primeiras viagens, tentan-

107 AHU, Cabo Verde, Cx.43, D35. 6 de julho de 1786.

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do, assim, se redimir perante os seus superiores em Lisboa. Uma das queixas que recebera era de não ter dado suficiente atenção ao salitre da Brava e ao enxofre do Fogo, de que mandara amostras insignificantes sem a indicação de existirem, ou não, jazidas economicamente aproveitáveis. No início do ano, por instrução de Julio Mattiazi, retorna à Brava. Ali, ele e Cardoso concluem que não é viável a exploração de salitre. Passa a seguir ao Fogo, para ver de perto a erupção do vulcão que era responsável pelo nome da ilha e estudar a possibilidade de explorar enxofre. A observação do fenômeno está relatada em sua Memória sobre a Irrupção do Fogo.108 Originalmente, ele pensou este relato como uma continuidade do Itinerário Filosófico, percorrendo para isso 2/3 da circunferência da ilha, segundo informação de Faria e Maia. Todavia, este texto ganharia autonomia e é uma de suas obras mais conhecidas, tendo sido publicada, com algumas variações em relação ao original, no Rio de Janeiro.109 Com o passar dos anos, a documentação demostra que tanto o governador quanto Feijó sentiam a sensação de já terem esgotado a recolha dos “produtos naturais” do arquipélago. Cabo Verde é o mais árido dos arquipélagos atlânticos e não conta com a diversidade biológica da África e da América do Sul. Ali, como nas outras ilhas do Atlântico, existiam muitas espécies endêmicas, todavia isto ainda não chamava atenção.110 Já em 1786, Feijó e o governador lamentavam-se de não poderem enviar animais quadrúpedes e aves. Os únicos mamíferos exóticos que encontraram eram macacos, sobres os quais receberam ordem de não remeter a Lisboa. Sobre pássaros, dizia que só havia uma espécie nativa que não fossem “pardais, corvos, galinha do mato e pombos”. Mesmo este pássaro nativo eles não conseguiam enviar à Ajuda, por se tratar de um insetívoro, difícil de alimentar durante a viagem. O naturalista chegou a ir à Ilha da Boa Vista para capturar flamingos e criá-los. Todavia os filhotes acabariam morrendo e os

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108 AHU, Cabo Verde, Cx.43, D53A. 11 de agosto de 1786. O texto é acompanhado de 2 desenhos sobre a irrupção do vulcão. 109 FEIJÓ, João da Silva. Memória sobre a última erupção volcanica da Ilha do Fogo de Cabo Verde. O Patriota, tomo 3, n.5, p.23-32 110 Só muito depois, com os trabalhos de Darwin, as ilhas oceânicas conheceriam sucesso entre os naturalistas.

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grandes, segundo o naturalista, eram espertos demais para serem apanhados. 111 Desta ilha, ele enviou a Mello e Castro dois barris contendo peixes, pássaros e lagartos.112 Em 1789, Faria e Maia propôs uma expedição ao que é hoje a GuinéBissau, território no continente africano que era administrativamente anexo a Cabo Verde. Aparentemente tal viagem nunca foi autorizada. Todas as remessas que tenho dirigido a V. Exª durante quatro anos, talvez não terão gasto trezentos mil réis além dos ordenados do Naturalista, porém vendo eu que os produtos que se podem recolher talvez sejam sempre os mesmos, sem maior novidade e raridade, me tenho lembrado adverti-lo a V. Exª, e que talvez em Guiné se possa fazer uma colheita mais rica, e sem perder de vista a história destas Ilhas, que todos os dias me lembro com particular recomendação a João da Silva Feijó.113

Por ordens vindas de Lisboa, Feijó concentrou-se no estudo da fauna marinha, passando a fazer recolhas nas ilhas de barlavento. No início de 1789, ele desenvolveu experiências em Santiago sobre a conservação de peixes, das quais resultou um pequeno ensaio, ainda inédito, intitulado Relação da Factura do Peixe Seco.114 A seguir, foi enviado por Faria e Maia à Ilha de Santo Antão, onde a coroa mantinha instalações para a exploração experimental de anil. Neste período o naturalista escreveu uma Memória sobre a fábrica de anil da Ilha de Santo Antão, a qual foi publicada no volume inaugural das Memórias Econômicas da Academia, em 1789.115 Mesmo estando em Cabo Verde, Feijó não descurou de tentar dar visibilidade a seu trabalho e a publicação de seu texto pela Academia das Ciências não deixava de representar um reconhecimento 111 AHU, Cabo Verde, Cx.43, D41. 8 de julho de 1786. 112 AHU, Cabo Verde, Cx.44, D72. 27 de maio de 1788 113 AHU, Cabo Verde, Cx.45, D15. 10 de março de 1789. Ainda assim, Feijó teve a oportunidade de remeter a Lisboa produtos trazidos da costa africana. Em 1793, tentou embarcar uma gazela vinda do Senegal, mas desistiu “por falta de comodidade à bordo”. AHU, Cabo Verde, caixa 48, doc. 11. 114 FEIJÓ, João da Silva. Relação da Factura do Peixe Seco. AHU, Cabo Verde, Cx.45, D8. 115 FEIJÓ, João da Silva. Memória sobre a fábrica de anil da Ilha de Santo Antão. MEARSL, t.1, 1789. p.407-421.

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à sua atuação. É interessante perceber que, da primeira leva de naturalistas enviados às colônias, o único a ser admitido como membro pleno da Academia foi Alexandre Rodrigues Ferreira, que lamentou o fato de os seus colegas terem sido preteridos.116 No entanto, Feijó foi o único deles a ter memórias editadas na principal publicação da Academia.

A maturidade do naturalista A partir do início da década de 1790, Feijó começaria a acumular interinamente algumas funções burocráticas, passando a figurar na documentação como Secretário do Governo da Capitania de Cabo Verde e Escrivão da Matrícula da Gente de Guerra. O fato de ocupar esses postos deve ter produzido o efeito de irritar ainda mais os seus inimigos da elite caboverdeana, que o viam como um concorrente na obtenção das benesses régias. Nesse tipo de guerra, a intriga era a principal arma. Feijó foi denunciado às autoridades da metrópole por participar de uma loja maçônica, junto com Marcelino Antonio Bastos, governador do arquipélago.117 Feijó e os outros maçons do arquipélago reconheciam-se entre si e se faziam conhecer ao capitães de navios e mercadores que chegavam aos portos “fazendo-lhes os ditos Sinais que o Denunciante, con muita viveza os via fazer”.118 Há algum tempo ele vinha fazendo gestões para retornar a Portugal. Um de seus intermediários na tentativa fora o governador Francisco José Teixeira Carneiro, que escreveu a Martinho de Mello e Castro: “Este pobre naturalista, que já se acha aqui a dez para onze anos se tem comportado em todo o tempo do meu governo, digno de que V. Exª o atenda, e o felicite”.119 Ao mesmo tempo, foi enviado ao Conselho Ultramarino um atestado do governador, confirmando que Feijó tinha urgentíssimos motivos para ir ao Rio de Janeiro, tratar dos bens herdados pela morte do pai e da mãe. Ele também contou com

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SIMON, op. cit. p.15. OLIVEIRA MARQUES, op. cit., p.145. ANTT, Inquisição de Lisboa, n.17291. AHU, Cabo Verde, Cx.48, D11. 3 de setembro de 1793.

a cumplicidade de sua mulher, Maria Joaquina Umbelina Amorim Feijó, que intercedeu, com sucesso, diretamente à coroa. A ordem para que Feijó retornasse a Portugal foi assinada em 9 de junho de 1795 e partiu diretamente do Palácio de Queluz.120 Todavia, ela chegou a Cabo Verde apenas em dezembro de 1795, em ótimo momento para Feijó, pois João Freire de Andrade, um de seus principais desafetos, assumira interinamente o governo do arquipélago. Os velhos rancores não tinham sido esquecidos e o próprio Freire de Andrade anunciava que estava no comando e que iria retaliar. Ora Excelentíssimo Senhor permita-nos V. Exª de por na Sua presença o que há a respeito do dito Naturalista. A ordem ou licença para se retirar o livrou de alguma que poderia experimentar; porque justamente ao tempo que a recebemos nos vimos consternados com requerimentos contra ele, em que uns se queixavam de opressões, que lhes fazia no emprego de Juiz de Órfãos em que ilegitimamente se tinha introduzido, ofício este incompatível ao seu destino a esta Ilha, e outras aleivosias e intrigas, que vergonhosamente fomentava já contra este, já contra aquele.121

Para marcar bem a sua posição, Freire de Andrade não se esqueceu de anexar uma cópia da carta, de 1784, em que Martinho de Mello e Castro apontava, ao então governador Freire e Maia, todos os pontos de fragilidade do naturalista e as acusações que sofria. A este tempo, Feijó era Sargento-mor da Praça de Ribeira Grande, a cidade fantasma que oficialmente ainda era a capital do arquipélago, e Juiz de Órfãos, o que fazia prever que a disputa que se avizinhava iria mesmo ser portentosa. Ambos os cargos eram muito apreciados pela elite local, principalmente o segundo, que eram uma das maiores fontes de enriquecimento ilícito. A ascensão do naturalista na estrutura política das ilhas pode ser creditada à política que adotara de aliança com os governadores. No entanto, os cargos que obtivera não iriam continuar com ele de mão-beijada. Feijó, a essa altura, não era mais o menino desamparado e pensava seriamente no 120 AHU, Cabo Verde, Cód.402. f.136. 121 AHU, Cabo Verde, Cx.48, D42.

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futuro, procurando acumular o seu pé-de-meia. Apesar da conjuntura desfavorável, não embarcou às pressas para Portugal quando recebeu permissão para tanto. Permaneceu por mais algum tempo no arquipélago para não ter “grave prejuízo, pelo pequeno prazo que têm para se preparar, em razão de ter muitos bens de que dispor e apurar”.122 Desde então, a documentação não mais fornece referências que atestem a presença de Feijó em Cabo Verde ou que permitam saber com exatidão quando partiu. Por despacho do Conselho Ultramarino, de 11 de junho de 1796, foi-lhe concedida licença não remunerada de um ano para ir tratar de seus negócios no Rio de Janeiro. Mas tudo indica que, naquele momento, ele não voltou ao Brasil. Neste mesmo ano morreu Martinho de Mello e Castro. Se era o velho ministro que mantinha Feijó em exílio branco nas ilhas, como chegou a afirmar Faria e Maia, o caminho estava livre para o naturalista voltar a Portugal e passar a integrar as novas hostes científicas espalhadas pelo império, agora sob o comando de D. Rodrigo de Souza Coutinho.

4. Un certain Feijào Feijó recebeu uma nova missão assim que voltou a Lisboa, no primeiro semestre de 1797. Naquele momento, uma das principais preocupações científicas de D. Rodrigo de Souza Coutinho, o novo ministro do Ultramar, era resolver a dependência portuguesa da importação de potassa e de salitre. A potassa era a “matéria-prima essencial para, além do vidro e do sabão, o branqueamento de tecidos, de papel, do açúcar, e no preparo de medicamentos e tinturas”.123 Já o salitre era o principal insumo para a produção da pólvora. Em decorrência, na complicada conjuntura bélica do período, a auto-sufiência na produção de pólvora de boa qualidade era considerada essencial pelo ministro.

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122 AHU, Cabo Verde, Cx.48, D82. 123 LUNA, Fernando J. Alographia dos álkalis... de Frei Conceição Veloso: um manual de química industrial para produção da potassa no Brasil colonial. QUÍMICA. NOVA. v.31, 2008. p. 2214.

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Foi justamente neste ano que se consolidou a parceria entre Souza Coutinho e o naturalista luso-brasileiro Mariano Conceição Veloso, frei franciscano que fizera um amplo levantamento da flora do Rio de Janeiro, por ordem do vice-rei D. Luís de Vasconcelos. Veloso fora para Lisboa, acompanhando o vice-rei, com o propósito de publicar a sua Flora Fluminensis. No entanto, desde 1792, o processo de editoração da obra se arrastava. Após assumir a Secretaria do Ultramar, Souza Coutinho deu ordens expressas para que fossem concedidos diversos apoios e facilidades ao naturalista.124 Também é possível observar, neste período, que Veloso e o Ministro se envolveram numa parceria que, dois anos depois, iria desembocar na criação da Tipografia do Arco do Cego. Segundo os historiadores Nunes e Brigola, a partir de 1796 “encontramos o frade envolvido no esforço de criar uma rede de tipografias disponíveis para, a exemplo das ‘nações cultas e civilizadas’, dar conhecimento da ‘Nova Agricultura’ baseada nos princípios agronômicos decorrentes da Filosofia Natural setecentista”.125 Entre as primeiras obras traduzidas e organizadas por Veloso estão as que se dedicam a métodos de fazer salitre126 e potassa127, de autoria do famoso químico francês Chaptal e de Richard Watson, professor de química em Cambridge.128 Na mesma época, D. Rodrigo deu início a uma tentativa de produção artificial de salitre em Minas Gerais, em parceria com Bernardo José de Lorena, governador daquela capitania. As experiências foram encarregadas ao naturalista

124 BORGMEIER, O. F. M. Flora Fuminensis de Frei José Mariano da Conceição Vellozo. Documentos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. 1961. p.21. 125 NUNES, Maria de Fátima e BRIGOLA, João Carlos. José Mariano da Conceição Veloso (1742-1811), um frade no Universo da Natureza. In: A CASA LITERÁRIA DO ARCO DO CEGO (1799-1801). Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, Biblioteca Nacional, 1999. p.63. 126 CHAPTAL, Jean Antoine. Extracto acerca do methodo de se fazer nitrato de potassa ou salitre copiado dos elementos de chymica compostos em francez por J. A. Chaptal; traduzido e impresso por ordem de sua magestade. Lisboa: Offic. de João Procopio Correa da Silva, 1798. 127 VELOSO, José Mariano da Conceição. Alographia dos Alkalis Fixos Vegetal ou Potassa Mineral ou Soda e dos seus Nitratos, segundo as melhores Memorias Estrangeiras que se tem escripto a este assumpto. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1798. 128 Sobre as leituras de Veloso a respeito da produção de salitre ver LUNA, op. cit.

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Joaquim Veloso de Miranda, que elaborou alguns experimentos de decomposição de matéria orgânica para obtenção de salitre na Fazenda Mau Cabelo.129 Não é de se estranhar, portanto, que ao retornar a Lisboa, Feijó tenha recebido de Souza Coutinho a incumbência de fazer experimentos semelhantes com vistas à produção artificial de salitre, continuando a receber a pensão de 400$000 réis que recebia nas ilhas.130 Pelas instruções mandadas a Pina Manique, o mal afamado Intendente de Polícia, sabe-se que Feijó deveria trabalhar em parceria com frei Veloso. D. Rodrigo, que patrocinara a tradução de Chaptal, deu ordens para que os dois explorassem as “Nitreiras artificiaes seja das Lamas das ruas de Lisboa seja das Caliças, e Minas, que ainda existem em alguns Bairros da cidade”.131 Feijó elaborou um pequeno relatório sobre as experiências referentes à produção de salitre que desenvolveu na Ribeira de Alcântara, um bairro portuário de Lisboa, onde ficava a Real Fábrica da Pólvora. Pelo que se depreende do relato, ele organizou um conjunto de amostras envolvendo exatamente os rejeitos mencionados pelo ministro e acompanhou a sua decomposição. Por exemplo, a amostra nº 1 era composta de “Estrumes de Gado, e Bestas, e Caliça” a nº6, de “Lamas das ruas, Estrumes, cascas dos cortumes, cal, caliça”.132 Em relação a esta memória há um detalhe que pode ter algum significado para o estudo da biografia do naturalista. Ela foi enviada a D. Rodrigo e está encadernada junto com outra sobre minas de Ferro, de autoria de António da Rocha Barbosa. Se for verdadeira a hipótese de que Feijó e João da Silva Barbosa eram irmãos, isso talvez explique a agregação deste material. Foi também nesse período de vivência lisboeta que Feijó procurou estreitar ainda mais os seus laços com a república das letras. A Academia Real das Sciencias já se havia mostrado receptiva, publicando uma memória de sua autoria sobre a produção de anil em Cabo Verde. Ele reelaborou a história

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129 AHU, Minas Gerais, Cx.154, D 36. Vila Rica, 10 de dezembro de 1797. AHU, Minas Gerais, Cx.143, D 58. Mau Cabelo, 25 de novembro de 1797. 130 ANRJ, Negócios de Portugal, fundo 59, caixa 678, pacote 2. 131 Idem 132 FEIJÓ, João da Silva. Estado prezente das Experiencias do Salitre na Ribeira d’Alcantra em 1.o de Março de 1798. BNL, Códi. 610. f.10.

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natural que escrevera sobre o arquipélago e a enviou à instituição, com o título Ensaio econômico sobre as Ilhas de Cabo Verde. É muito provável que a Memória sobre a urzela de Cabo Verde também tenha sido submetida à Academia na mesma época. No entanto, a instituição suspendera a publicação das Memórias Económicas em 1791, retomando-a somente em 1812. No volume 5, de 1815, esses dois textos do naturalista foram finalmente publicados. 133 Outra memória filosófica de Feijó não teve a mesma sorte. O seu Discurso político sobre as minas de ouro do Brazil134, escrito em 1797, permaneceu inédito até 2004135. Mais de uma década depois de escrito, o estudo foi submetido ao parecer do Visconde da Lapa, que lhe fez diversas críticas, considerando inclusive que seu autor estava “possuído inteiramente do espírito do Sistema mercantil” ou seja que era defensor de idéias mercantilistas, já démodées naquela época. Ainda assim, sugeriu que fosse “extraído”, ou seja, publicado, desde que o texto fosse aliviado de alguns trechos considerados ruins ou incorretos. Esta memória expressa os pontos de vista de Feijó em relação a uma extremada polêmica do período: se a produção de ouro era, ou teria sido, maléfica ou benéfica a Portugal e suas colônias. Desde que Montesquieu escreveu as suas Considérations sur les richesses de l’Espgne (1727) e mais ainda após publicar De l’Esprit des Lois (1748) a mineração de metais preciosos passou a ser satanizada por diversos tratadistas.136 Entre o final do século XVIII e início do século XIX, dirigentes e filósofos do mundo português tenderam a relativizar as proposições do pensador francês sobre os efeitos nocivos do excesso de produção de ouro e prata sobre a economia e os costumes das nações produtoras. Dom Rodrigo de Souza Coutinho dialogaria diretamente com Montesquieu sobre a questão, defendendo que os problemas advindos da produção mineira deveriam ser pensados em termos

133 FEIJÓ, João da Silva. Memória sobre a urzela de Cabo Verde. MEARSL, v.5, 1815. p.145-154. _____. Ensaio econômico sobre as Ilhas de Cabo Verde. MEARSL, v.5, 1815. p.172-193. 134 Museu Paulista. Manuscritos. Coleção José Bonifácio, D – 79. 135 O manuscrito foi transcrito e publicado em SILVA, Clarete P. & LOPES, Maria Margaret. O ouro sob as Luzes: a “arte” de minerar no discurso do naturalista João da Silva Feijó (1760-1824). História, Ciências, Saúde, Manguinhos, 2004, v. 1l, n. 3, p. 549-568. 136 MONTESQUIEU. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1941. t.2. p.10 e ss.

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gerais de balança de pagamento.137 Diversos autores luso-brasileiro, como Antônio Pires da Silva Pontes, elaboram memórias em defesa da mineração do ouro. 138 Outros, como José Elói Ottoni e, principalmente, o bispo José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho culparam a mineração do metal precioso pelo atraso econômico português, adotando os pontos de vista de Montesquieu.139 Feijó simplesmente exime-se de tal discussão. Parte diretamente da idéia de que o ouro e a prata eram economicamente importantes por funcionarem como equivalentes universais e, para não correr qualquer risco político, acata o princípio do monopólio estatal das produções minerais, afirmando que “o direito senhorial dessas produções só pertence ao Soberano como Chefe de Estado”. A partir deste ponto, trata de um aspecto da mineração no Brasil em que há pleno consenso entre os seus defensores e detratores: o atraso tecnológico. 140 No período em que Feijó se encontrava em Lisboa, como vimos, abria-se outro canal de divulgação científica: a Casa Literária do Arco do Cego. No entanto, apesar da proximidade com o Souza Coutinho e com frei Mariano, Feijó parece não ter participado do principal projeto político-científico que envolveu os dois personagens. A criação da editora pode ser vista, exemplarmente, como a concretização de um projeto político de D. Rodrigo, voltado, a um só tempo, para realçar a importância do Brasil e para a ação propagandística de difundir as luzes da ciência, sobretudo no domínio da agricultura, através de publicações ilustradas, bem ao gosto das elites

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137 COUTINHO, Rodrigo de Sousa. Discurso sobre a verdadeira influência das minas dos metais preciosos na indústria das nações que as possuem, e especialmente da portuguesa. In: _____. Textos políticos, econômicos e financeiros. 1783-1811. Lisboa: Banco de Portugal, 1993. t. 1, p. 170. 138 PONTES, Antonio Pires da Silva. Memória sobre a utilidade pública em se tirar ouro das minas, e os motivos dos poucos interesses dos particulares que o mineram atualmente no Brasil. Revista do Arquivo Público Mineiro, v.1, 1896. p. 417-26. 139 OTTONI, José Elói. Memória sobre o estado actual da Capitania de Minas Gerais. ABNRJ, n.30, 1908. p.303-318. COUTINHO, José Joaquim da Cunha de Azeredo. Discurso sobre o estado actual das minas do Brazil. Lisboa: Imprensa Régia, 1804. 140 Sobre essa polêmica, ver SILVA, Clarete P. e FIGUEIRÔA, Sílvia F. M. Garimpando idéias; A “Arte de Minerar” no Brasil em quatro memórias na transição para o século XIX. Revista da SBHC, 2004, v. 2, n. 1. p. 32-53.

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eruditas e acadêmicas da época.141 O empreendimento editorial, de cunho enciclopédico e iluminista, agregou diversos brasileiros oriundos da Universidade de Coimbra, que atuaram como redatores e tradutores. Além de ter no comando Conceição Veloso, o núcleo duro era composto por António Carlos Ribeiro de Andrada e Martim Francisco Ribeiro de Andrada (ambos irmãos de José Bonifácio de Andrada), José da Silva Lisboa (o futuro Visconde de Cairú), José Feliciano Fernandes Pinheiro (mais tarde Visconde de São Leopoldo), Hipólito José da Costa, (futuro editor do Correio Braziliense em Londres). Diversos outros luso-brasileiros tiveram participação mais pontual. Feijó ficou de fora, assim como Alexandre Rodrigues Ferreira que, após retornar da Amazônia, tornou-se sub-diretor do Museu da Ajuda. O empreendimento parece ter marcado um corte geracional. Aqueles brasileiros que estudaram em Coimbra na década de 1770, que integraram as primeiras turmas após a reforma da Universidade, começavam a ceder lugar aos que integram aquela que ficou conhecida na historiografia como a geração de 90.142 Durante a sua permanência em Lisboa, Feijó, além de fazer experiências sobre a produção de salitre, trabalhou na Ajuda, junto com Alexandre Rodrigues Ferreira. Dedicou-se a organizar um herbário com as espécies botânicas que enviara do arquipélago africano. O naturalista alemão Heinrich-Friedrich Link, que esteve em Portugal entre 1797 e 1799, conheceu pessoalmente os seus colegas naturalistas brasileiros e examinou o herbário organizado por Feijó, deixando um cáustico relato sobre ambos. A respeito de Ferreira, o alemão foi ostensivamente lacônico, não indo além de dizer que sofria de gota. Ocupou-se mais de Feijó, mas apenas para desmerecer o seu trabalho e a sua pessoa. Depuis, le gouvernement a envoyé, pour les progrès de l’histoire naturelle, un certain Feijào, dont il y a quelques traités dans les Memorias Economicas de l’Académie, aux îles du Cap Vert. Il y est resté quatorze ans. A présent il est au Brésil pour le même object. J’ai fait as connaissance à Lisbonne; il avait um herbier qui n’était pas em trop bom état, une collection de papillons enveloppés dans du papier; (plusiers centeines d’echantillons de chaque sorte,) 141 Ver PEREIRA, Magnus Roberto de Mello e CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho. A Tipografia do Arco do Cego. http://www.cedope.ufpr.br/tipografia_arco.htm 142 Ver MAXWWELL, Kenneth R. The generation of the 1790s and the idea of a Luso-Brazilian Empire. In: DAURIL, Alden. Colonial roots of modern Brazil. Berkley: University of California Press, 1973. p.107-44.

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et des graines de quelques espèces de plantes, espécifiées seulement sous les dénominations reçues dans ces îles; je les ait fait venir dans le jardin botanique de Rostock; elles appartiennent la plupart au genre des Mimoses. Il me lut um jour la description d’um nouveau genre, où avec la plus légère connaissance de botanique, on voyait sur le champ que ce genre n’était point différent de celui de la Campanule. Peu avancé dans la science, il était em autre réduit à lutter sans cesse contre les besoins les plus pressans de la vie; de maniére que le public ne peut guères attendre de ser recherches des résultats interéssans.143 As seguidas críticas ao trabalho científico de João da Silva Feijó, vindas das mais variadas origens, são um sinal de que devemos ler com cautela os textos apologéticos. No entanto, também é preciso cautela ao ler relatos como os de Link. Mais uma vez sem ter a pretensão de fazer a defesa do naturalista luso-brasileiro, é preciso ter em conta algumas características do ambiente acadêmico e científico da época, que pode ser definido como o de uma grande ‘fogueira das vaidades’. Esta não era uma peculiaridade portuguesa, mas o padrão geral da Europa.144 Link buscava afirmar a sua superioridade como intelectual fazendo pouco daqueles colegas que pertenciam a ambientes científicos considerados provincianos ou periféricos. Eram poupados aqueles que reconheciam nele um botânico respeitável e/ou que pertenciam às mesmas redes científicas e clientelares às quais ele estava vinculado. No momento em que esteve em Portugal, processavam-se algumas mudanças importantes no campo intelectual. Com a morte de D. José e a queda de Pombal, a Universidade de Coimbra viveu um período delicado. O clima de desconfiança e perseguições que então passou a reinar na Universidade era apenas uma das facetas desses maus tempos. Um dos resultados dessa conjuntura foi o estabelecimento da Real Academia das Ciências em Lisboa, e não em Coimbra como fora pensado anteriormente. Vandelli confessava-se “fatigado e nauseado” com o ambiente de intrigas e de defesa de interesses pessoais em que se transformara a Universidade. De sua parte, mostrava-se mais interessado em promover a associação da intelectualidade portuguesa em torno da “nova Academia, na qual nem Assentos, nem

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143 LINK, Heinrich Friedrich. Voyage en Portugal depuis 1797 jusqu’en 1799. Paris: Levrault, Schoell et Cie, 1805-1808. v.2, p.209-210. 144 Um excelente retrato da rede de intrigas intelectuais iluministas aparece em BADINTER, Elisabeth. As paixões intelectuais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 3v.

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Antiguidades, nem Conesias, Bispados, Becas, nem Colégios, nem intrigas de faculdades devem fazer perder inutilmente o tempo dos Acadêmicos”.145 Apesar dessas afirmações, Vandelli participava ativamente dos conflitos universitários e intelectuais da época. Começara a ascender no campo das ciências naturais portuguesas a estrela de Felix de Avelar. Este botânico não era cria direta do ambiente acadêmico português. Na mesma época em que os naturalistas luso-brasileiros foram recrutados para trabalhar na Ajuda, na fase preparatória das expedições filosóficas que seriam enviadas às colônias, Brotero fugiu para a França, temeroso de vir a ter problemas com o Santo Ofício, devido a seus vínculos com a maçonaria. Ali estudou medicina e ciências naturais, além de adicionar Brotero (amante dos mortais) ao seu nome. Mais um caso de mudança em que o apelido iniciático maçônico acabou por se transformar no sobrenome corrente e público. Trazendo na bagagem o cacife da pertença ao ambiente das ciências da França, aportou em Portugal em 1790, cheio de pretensões. Era um notório desafeto de Vandelli e aspirava à direção do Museu e Jardim Botânico da Ajuda. “Je suis l’ami de Don Feliz de Avellar Brotero, professeur de botanique”, afirmou categoricamente o naturalista alemão em seu livro. Dizia, também, que entre outras qualidades, “Brotero connaît les ouvrages des botanits Allemands”, ou seja, conhecia o trabalho do próprio Link e de seu grupo, que após amplos elogios ao colega português chegaria ao ponto principal. Pour cultiver la science, il a fait un séjour de huit ans à Paris; il n’a pas été élevé à Coimbre, et c’est pour cette raison que ses collègues lui causent mille désagrémens; il est miné pal le changrin et la mélancolie. Vandelli l’éloigna de Lisbonne, parce qu’il avait avait trop de connaissances, et trouva moyen de procurer à D. Alexandre, homme sans érudition, une place qui était due au mérite de Brotero. 146

145 Carta de Vandelli datada de 10 de janeiro de 1780. In: CRUZ, Lígia. Domingos Vandelli, alguns aspectos da sua actividade em Coimbra. Separata do Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra. Coimbra, 1976. p.16. Cf. AYRES, Cristóvão. Para a história da Academia de Sciências de Lisboa. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1927. p.125. 146 LINK, op. cit., v.1, p.392.

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Link era, como se observa, um porta-voz de Brotero nos conflitos que o opunham a Vandelli, referentes ao cargo ocupado por Alexandre Rodrigues Ferreira na Ajuda. Feijó recebeu bordoadas principalmente por fazer parte da rede de alianças visada por Brotero. Contudo, não desqualifiquemos na totalidade a fala do naturalista alemão, pois ela toca em alguns aspectos essenciais relativos à pequenez do campo intelectual português da época. É preciso lembrar que, neste mesmo campo, Feijó atingira um estatuto privilegiado e almejado por muitos, inclusive por Brotero. A possibilidade de sobrevivência na condição de cientista ou intelectual, para aqueles que não tinha posses, era receber uma comissão estatal. Feijó conseguiu atingir esse objetivo ao ser contratado para atuar na Ajuda e em Cabo Verde. Viu reiterada a sua posição ao manter a comissão estatal quando retornou a Lisboa. No entanto, a sua condição de skholè 147 era frágil, como o era para a grande maioria dos intelectuais portugueses. O mercado editorial acanhado e a incapacidade, ou impossibilidade, de a sociedade civil gerar organizações científicas autônomas deixavam quase toda a intelectualidade sujeita ao mecenato oficial. Em primeiro lugar, isso significava submeter-se às diretrizes e à censura estatal. Na grande maioria dos casos, significava, também, submeter-se a baixos rendimentos que levavam a constante busca por ascender na máquina pública ou por formas paralelas de obter renda. Assim, tinha toda razão Link, quando afirmava que Feijó estava reduzido a lutar sem cessar contra as necessidades da vida e que não se deveriam esperar grandes resultados de pessoas nessa situação. Além disso, nas principais potências européias, as ciências avançavam celeremente no caminho da especialização. Enquanto isso, a figura no naturalista-administrador, ambicionada pela coroa portuguesa para atender as suas necessidades mais imediatas148, mantinha-se ainda no quadro da múltipla erudição, no qual os diversos saberes científicos careciam de autonomia.

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147 BOURDIEU, P. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 9. 148 PEREIRA, Magnus Roberto de Mello e CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho da. Ciência e Memória: aspectos da reforma da Universidade de Coimbra de 1772. Revista de História Regional. 2009, v.14. p. 18 e ss. http://www.revistas.uepg.br/index.php?journal=rhr &page=article&op=view&path%5B%5D=954&path%5B%5D=738

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Foi nessa condição, de homem de múltiplos instrumentos, que Feijó voltou a ser recrutado para trabalhar nas colônias. Em fevereiro de 1799, foi nomeado Sargento-mor das milícias da Capitania do Ceará, para onde deveria partir “incumbido de vários objectos de história Natural”.149 Continuaria a perceber o mesmo ordenado de 400 mil réis que recebia em Lisboa. Além disso, pelos serviços prestados em Cabo Verde, foi finalmente contemplado com o Hábito de Cristo, que era o sonho dourado de todos aqueles que aspiravam a ascender socialmente.150

5. Um naturalista no Ceará O passaporte concedido ao naturalista autorizava que ele viajasse acompanhado da mulher, de um filho, de uma filha e de uma criada.151 No entanto, o seu filho José Maria Feijó permaneceu em Portugal, interno em um colégio privado. Feijó desembarcou em Pernambuco e dali reembarcou para o Ceará. Algum contratempo, todavia, fez com que desembarcasse na Paraíba, de onde seguiu para Fortaleza. Chegou ao seu destino em 24 de outubro de 1799, após 32 dias de viagem por terra. O Ceará, até então, era uma capitania anexa à de Pernambuco. A coroa acabara de elevá-la à condição de capitania autônoma. Junto com Feijó, seguiu para o Ceará Bernardo Manoel de Vasconcelos, o primeiro governador após a mudança de estatuto da capitania. Ambos estabeleceriam uma parceria referente ao estudo das possibilidades econômicas da região. As experiências sobre a produção de nitro realizadas em Alcântara por ordem do ministro Souza Coutinho devem ser encaradas como etapa preparatória ao retorno do naturalista ao Brasil, dado que uma de suas principais missões acabou sendo localizar e tornar viável a exploração econômica de jazidas de 149 AHU Ceará, Cx.13, D727. 150 Gazeta de Lisboa, n.18, 4 de maio de 1779. Ver, também, ALMEIDA, Manuel Lopes de. Notícias históricas de Portugal e Brasil. (1751-1800) Coimbra: Universidade de Coimbra, 1964. p.397. 151 CALMON, Pedro. História do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963. v. 4, p. 1272.

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salitre no Ceará. Como a coroa acenava com recompensas a quem encontrasse o composto químico, há algumas décadas chegavam a Lisboa notícias sobre a existência de jazidas no sertão nordestino. Após instalar-se na capitania, Feijó recebeu do governador a incumbência de checar as notícias sobre a existência de depósitos de salitre natural, tarefa na qual gastou quase todo o ano de 1800. Na região do Canindé, não pode chegar a nenhuma conclusão devido às chuvas que caiam. Na ribeira do Choró, encontrou apenas sal marinho. Seguiu então para a Serra dos Cocos, pois ele previamente havia examinado amostras vindas da região com resultados positivos. Entre os diversos locais examinados, o único que pareceu promissor ao naturalista foi o de uma jazida situada em Tatajuba. Um ano depois de chegar ao Ceará, Feijó dava demonstrações de estar amargurado com sua situação. Mais uma vez, era o naturalista solitário, desprovido de equipe e de equipamentos. Não lhe haviam dado sequer obras básicas de botânica, como era corrente nas expedições filosóficas. A correspondência enviada por Feijó a D. Rodrigo de Souza Coutinho é um retrato de suas carências e, simultaneamente, um programa de seus propósitos.

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V. Ex.cia sabe muito bem que progressos Sientificos se podem esperar dos trabalhos de hum Naturalista, como eu, que viaja, destituido de todos os meios auxilliares, para o fim de suas dilligencias: Sem Livros convenientes, para se não darem por novidades, coizas ja conhecidas; sem hum Dezenhador, capas, que a vista dos objectos vivos, os retratam como fazem naturalmente, Sem instrumentos para as observaçoens fizicas, chimicas, e Topograficas &., não sei que se possa dar passo vantajozo na progressão do meu officio: V. Ex.cia que esta verdade conhece, digne-se sendo servido, attender a esta minha necessidade; fazendo que eu seja auxiliado com hum exemplar da edição ultima do Systema geral de Linneo por Gonelim, com a Flora Guianense, com a Ensyclopedia methodica botanica de Lamark e Fabricio, com hua em prensa, e papel, para a deseccação das Plantas, com hum Oitante regular, e bem desempexado para notar em minha Carta Topografica, ao menos as latitudes em que encontro algua Mina &. em que demorão os Portos &. &., hum Grafometro, e compassos Mathematicos para medir as alturas respectivas das Montanhas &. hum Barometro para notar estas mesmas alturas, e os differentes estados da athmosfera, Estaçoens &.; hum Peza Licores para o governo dos Licores do Salitre &., hua Balança hydorstatica para o exame dos pezos especificos das Madeiras &., hum Laboratorio portatil para os

ensaios chimicos de Mineraes, de agoas &., hum Dezenhador emfim munido com seus aprestes; providencias, que não sendo fora de costume darem-se a todos os meus collegas, só eu dellas fiquei privido, para nunca passar de mero recoltor de producçoens Naturaes.152

À época, o livro do naturalista Heinrich-Friedrich Link sobre Portugal ainda não havia sido publicado, mas até parece que Feijó sabia das críticas que viria a receber e tentava rebatê-las preventivamente. Não queria correr o risco de dar por novidades coisas já conhecidas. Lembremos do episódio no qual Feijó apresentara a descrição de um suposto novo gênero botânico a Link, para quem qualquer um que tivesse os mais elementares conhecimentos de botânica saberia tratar-se da Campânula. Entre os livros que pedia estavam obras dos naturalistas germânicos Friedrich Gmelin e Johann Fabricius. Como se depreende dos pedidos, Feijó queria fazer um exaustivo levantamento do ambiente geográfico e da história natural do Ceará, tal qual aparecia nas instruções das viagens filosóficas elaboradas pelos jovens naturalistas luso-brasileiros e por Vandelli. Pretendia fazer incursões nos campos da botânica, do estudo das madeiras, das riquezas minerais e mesmo da cartografia. Em suma, pretendia elaborar uma extensa história natural do Ceará. No entanto, ficou longe de receber tudo aquilo que solicitara à coroa, o que é um indício de que Feijó continuava a ser considerado um personagem secundário no ambiente científico-administrativo da época. Os seus pedidos, bastante razoáveis, diga-se, quase nunca foram plenamente atendidos. Na mesma época, outros naturalistas comissionados pela coroa contavam com desenhistas em suas equipes. O pernambucano Manuel Arruda Câmara itinerou pelo sertão nordestino, de Pernambuco ao Ceará, entre 1797 e 1799.153 Levava consigo o padre João Ribeiro Montenegro, que deixou um interessante legado de ilustrações botânicas e zoológicas. Arruda Câmara encerrou suas viagens filosóficas em meados de 1799, exatamente na serra dos Cocos, onde se encontrava Tatajuba. Em sua curta estadia em Pernambuco, 152 AHU, Ceará, Cx.14, D811. 13 de dezembro de 1800. 153 Sobre as viagens do naturalista ao serão nordestino, ver MELLO, José Antonio Gonsalves de. Estudo biográfico. In: CÂMARA, Manuel Arruda da. Obras reunidas. Recife: Fundação Cultural Cidade do Recife, 1982. p.25-35.

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Feijó examinara amostras de salitre vindas da serra dos Cocos, em poder do bispo Azeredo Coutinho, que, à época, transformara o seminário de Olinda em um centro de difusão de saberes iluministas.154 As instruções que Câmara recebera insistiam em que ele investigasse principalmente as ocorrências de salitre. O naturalista pernambucano também percebia 400 mil réis de salários. Assim, é plausível a suposição de que Feijó fora enviado como substituto de Câmara. A diferença entre ambos é que um era um grande fazendeiro que periodicamente era comissionado pela coroa para realizar viagens de estudo enquanto o outro dependia do parco salário estatal para sua sobrevivência. Feijó, no entanto, não foi o único herdeiro de Arruda Câmara na missão de procurar salitre no sertão nordestino. Exatamente na mesma época em que ele começava a esquadrinhar o Ceará, o mesmo era feito no Maranhão e no Piauí pelo padre Joaquim José Pereira e pelo bacharel Vicente Jorge Dias Cabral.155 As diversas memórias que elaboraram trazem informações que permitem supor que dispunham de um laboratório químico e, mais tarde, um pintor ou desenhista botânico teria trabalhado com eles. Nesse período, Feijó teve que enfrentar uma outra fonte de desassossego, desta vez de origem familiar. Quando viera de Portugal para o Ceará, ele deixara seu filho João Maria em Lisboa, interno em um colégio. O rapaz iniciara carreira militar sentando praça no Regimento de Lippe. No entanto, Feijó parecia pretender destiná-lo a uma carreira de letras, pois deixou-o interno no “Collegio do Professor Luiz Antonio”, muito provavelmente tratava-se de Luiz Antonio de Azevedo, professor régio de gramática e língua latina em Lisboa. O rapaz acabou expulso por mau comportamento. Deve ter voltado ao seu regimento, pois participou da Guerra das Laranjas, um trágico fiasco militar português no qual tropas da aliança franco-hispânica tomaram diversas praças militares no Alentejo. O episódio foi um primeiro anúncio da invasão napoleônica de Portugal, que ocorreria alguns anos depois. Na seqüência da guerra, D. Rodrigo

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154 NOBRE, op. Cit. p.182 e AHU, Ceará, Cx.13, D749. 155 Sobre a viagem filosófica dos dois naturalistas ver BONATO, Tiago. O olhar, a descrição: a construção do sertão do nordeste brasileiro nos relatos de viagem do final do período colonial (1783 - 1822). Curitiba: UFPR, 2010. (Dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-graduação em História da UFPR)

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de Souza Coutinho enviou o jovem cadete João Maria Feijó para o Ceará, ao encontro do pai e da família. Todavia, o convívio demonstrou-se impossível. [...] e porque este Rapaz apesar de repetidas admoestações, repreensões e algum castigo, que tem recebido ainda mesmo do meu Governador, se não quer emendar, fazendo-se de cada vez mais indócil, e indigno com uma perversíssima conduta de todos os modos contemplada, com o que não satisfeito encher-me de vergonha, e desassossego doméstico, e político, tem ultimamente cometido o arrojo de mandar-me ameaçar; de cujos procedimentos, a conduta pode V. Ex.cia haver individual informação do mesmo meu Governador; nestas circunstancias, Ill.mo e Ex.mo Senhor, busco a Justiça de V. Ex.cia a quem rogo hoje de compadecer-se de mim, remediando este mal, ordenando que ele seja castigado, indo servir para Angola, ou para a Índia por algum tempo, com o que pode talvez emendar-se, e vir a ser útil ao Estado, e a si; do contrario, Ill.mo e Ex.mo Senhor, não poderei aqui persistir sem arriscar-me a funestas conseqüências, quando menos em uma continuada perturbação, e vergonha em prejuízo do complemento de meus deveres: Sobretudo V. Ex.cia mandará o que for servido.156

As súplicas do naturalista foram atendidas e seu filho acabou desterrado para Angola. Esta era uma prática bastante comum na época. Mandavam-se os filhos rebeldes para ocupar postos militares em locais considerados remotos, na expectativa que os jovens se ‘emendassem’, tornando-se ‘homens de verdade’. De certa maneira isto também acontecera com Feijó. O seu ‘desterro’ em Cabo Verde significou a passagem da fase das “rapaziadas” para o mundo adulto. O jovem irresponsável que tanta preocupação causara aos superiores sofria agora com a insubordinação do filho. Existe um fator que, em parte, pode explicar a difícil convivência entre ambos. João Maria acabara de nascer à época em que o naturalista foi mandado para Cabo Verde, onde passou 14 anos. Só se conheceram, portanto, quando o filho era já um adolescente. Decorridos menos de dois anos, o naturalista partiu para o Ceará. Assim, é possível perceber que Feijó e seu filho eram praticamente estranhos um para o outro. Há, porém, que se considerar que isso era bastante comum à época, sem que levasse a conflitos entre pais e filhos. Esse afastamento entre Feijó e seu filho pode também ajudar a explicar o caráter lacunar da preservação da biografia do naturalista. Em muitos 156 AHU, Ceará, Cx., D876. 25 de novembro de 1801.

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casos, foram os filhos dos integrantes da intelectualidade colonial coimbrã luso-brasileira que estabeleceram o culto da personalidade dos seus pais, no âmbito do IHGB e seus congêneres regionais. Feijó, ao contrário, não teve entre seus descendentes nenhum cultuador ou continuador. Apesar desses transtornos familiares e de Feijó sentir-se desconsiderado em suas aspirações, em um aspecto pelo menos ele sobressaiu-se. A questão do salitre ocupava um lugar central na política científica portuguesa para o nordeste brasileiro. Muita gente se envolveu na procura do composto, pensando em receber benesses da coroa. O padre Joaquim José Pereira tinha altas pretensões a respeito. Escreveu diversas memórias sobre o tema e tinha a intenção de receber da coroa a incumbência de produzir salitre artificialmente. No entanto, a escolha recaiu sobre Feijó, que após a fase de prospecção, tentou dar início à produção em escala econômica. Para tanto, foi escolhida uma jazida situada na Fazenda Tatajuba157, que se localizava em uma pequena serra no sertão de Quixeramobim. Até mais do que Feijó, o governador Bernardo Manoel de Vasconcelos foi um entusiasta da exploração econômica de salitre no Ceará. Por ordem do governador, foi construída uma casa de taipa para sediar o laboratório volante onde era finalizada a produção de salitre bruto. Outra pequena construção foi comprada em Fortaleza destinada a abrigar o processo pelo qual o salitre bruto vindo do sertão era refinado. Apesar das restrições de Feijó, Vasconcelos insistia ainda que fosse experimentada a exploração de supostas jazidas de salitre em Tajacioca, onde também parece ter sido erguida outra casa de taipa para laboratório. 158 Iniciada a produção experimental de salitre, Feijó enviou uma primeira partida a Lisboa, a qual daria início a uma série de controvérsias referentes ao preço e à qualidade do composto produzido no Ceará. Amostras do salitre elaborado por Feijó foram analisadas em Lisboa por Carlo Antonio Napione, um químico de origem italiana trazido para Portugal por D. Rodrigo, que assumira a direção das Reais Fábricas da Pólvora, em setembro de 1801. O parecer do italiano foi devastador.159 O salitre era de baixa qualidade e não servia para

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157 Não confundir com a praia de Tatajuba, no litoral do Ceará. 158 AHU, Ceará, Cx. 15, D879. Fortaleza, 31 de dezembro de 1801. 159 NAPION, Carlos. Relatório de Charles Napion sobre reações quimicas em vários minerais. In: Flora Fluminensis de frei José Mariano da Conceição Vellozo; Documentos.

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a fabricação de pólvora, pois continha muriato de soda (cloreto de sódio, sal de cozinha) em excesso. Carlos Napion, como era conhecido, também fez diversos comentários sobre os preços das matérias primas, insinuando que estaria ocorrendo ou malversão, ou improbidade.160 De novo é preciso relativizar essas afirmações. Napion acabara de assumir a direção do complexo de produção de armamentos e pólvora da região de Lisboa e apresentava-se como um moralizador. Acusava os seus antecessores de total desordem financeira e administrativa. No entanto, passados alguns anos, era ele que precisava defender-se de acusações semelhantes. Em ofício de 8 de Agosto de 1805, protestava ante seus superiores: “Vossa Excelência pode ver, por conseqüência, se um homem honrado pode ficar um só momento neste emprego e em um arsenal onde não reina senão a intriga, a calúnia e a impostura”.161 Napion sobreviveu aos seus detratores e veio para o Brasil no episódio da transferência da família real. No Rio de Janeiro, acumulou a direção da Academia Militar e da Fábrica de Pólvora da Lagoa.162 Feijó também sobreviveu às criticas do italiano. Protestava que não tinha meios para assegurar a qualidade do salitre produzido no Ceará. a falta de aparelhos próprios, e de uma porção de dissolução de prata, em ácido nitroso, para tais averiguações químicas são a causa de nunca poder-me livrar de um erro involuntário; Se V. Ex.a p.m for servido dignar-se atender-me, vou suplicar-lhe queira mandar, que eu seja socorrido com um pequeno, porém bem sortido laboratório químico portátil, para estas, e outras averiguações, e exames químicos.

Dizia também que as contas que estavam sendo feitas pelo italiano eram tendenciosas. Seu detrator dividira todas as despesas feitas pelo naturalista, desde sua chegada ao Ceará, pela quantidade de salitre enviado, chegando

Rio de Janeiro: Publicações do Arquivo Nacional, 1961. 160 Ver essa polêmica em FERRAZ, Maria Helena M. A produção de Salitre no Brasil Colonial. Química Nova, v. 23, n. 06, 2000. p.845-850. 161 Apud PINTO, Renato Fernando Marques. As Indústrias Militares e as armas de fogo portáteis no Exército Português. Revista Militar. Portugal. http://www.revistamilitar.pt/modules/articles/print.php?id=528 162 AHU, Ceará, Cx.17, D971. Fortaleza, 20 de fevereiro de 1803.

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a um preço unitário absurdo. Feijó argumentava que não deveriam ser computados os gastos em prospecções gerais no sertão nordestino e que nem mesmo o investimento com os laboratórios e seus petrechos poderiam ser computados integralmente na determinação do preço.163 O governador tentava explicar que a seca que reinava à época tinha dificultado e encarecido o processo, pois a água necessária à produção e ao consumo humano, e mesmo a alimentação dos trabalhadores, tinham que ser trazida de longa distância. Feijó, por sua vez, argumentava que era normal que os custos fossem mais altos no começo e que aos poucos eles baixariam para um patamar aceitável. Em 1801, D. Rodrigo saiu da Secretaria do Ultramar e assumiu a presidência do Real Erário. No entanto, o seu envolvimento com o fomento da economia colonial era tão direto que o comando dessas políticas ilustradas acompanhou-o para o novo órgão. É por isso que parte da documentação referente ao período encontra-se nos arquivos do Real Erário, atual Casa da Moeda de Portugal, e não no Arquivo Histórico Ultramarino. O Visconde de Anadia, substituto de Coutinho na pasta do Ultramar, passou a transferir diretamente para o Erário a correspondência sobre remessas de plantas e a exploração de novos produtos coloniais. O projeto de produção de salitre no Ceará não importava somente a Souza Coutinho. O Secretário de Estado dos Negócios e Estrangeiros e da Guerra, D. João de Almeida Melo e Castro, também encomendou um parecer sobre as amostras mandadas por Feijó. O material foi examinado por Manoel Jacinto Nogueira da Gama164, outro luso-brasileiro do grupo próximo a Souza Coutinho, que fora reunido no Real Erário. Nogueira da Gama foi nomeado, em 1801, para a função de Inspetor-geral das Nitreiras e Fábricas de Pólvora de Minas Gerais, mas não chegou a assumir.165 Permaneceu em Lisboa e acabou por tornar-se ajudante do Intendente-Geral das Minas e Metais do Reino,

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163 AHCMP, Laboratório de Química, 1801-1826, Arq.1, Maço 718. Ceará, 15 de Janeiro de 1803. 164 O futuro Visconde de Baependi, do Brasil Império. 165 CARDOSO, J. L. Novos elementos para a história do Banco do Brasil (1808-1829): crónica de um fracasso anunciado. Revista Brasileira de História, vol.30, no.59, 2010. p.181. Segundo o autor “Manuel Jacinto Nogueira da Gama não era apenas um homem da estima técnica e política de D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Fazia parte da sua

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José Bonifácio de Andrada e Silva, além de ser designado responsável pelo laboratório do curso de Docimástica (mineralogia) que passou a funcionar na Casa da Moeda.166 A sua principal incumbência foi, no entanto, a construção de nitreiras artificiais no Braço de Prata, e delas nomeado Inspetor. Publicou uma longa memória sobre essa experiência. 167 O Conde de Galveias - D. João de Almeida Melo e Castro - e o Conde Linhares - D. Rodrigo de Souza Coutinho - formavam o núcleo duro do ‘partido inglês’. Buscavam manter a aliança com a Inglaterra e providenciar o fortalecimento bélico de Portugal, de maneira a conseguir alguns meios, por mínimos que fossem, de fazer frente à ameaça napoleônica. Os luso-brasileiros que orbitavam esse grupo eram movidos pelo mesmo espírito nacionalista e estavam envolvidos, entre outras coisas, na busca da auto-suficiência nas matérias primas para a produção de pólvora. O parecer de Nogueira da Gama está eivado deste espírito nacional-português.168 Assim como Napion, ele detectaria a presença excessiva de sal nas amostras enviadas do Ceará, mas o seu discurso era de estímulo. Chega a duvidar das informações de custo que recebera. Assim como Feijó, assumia a noção de que os custos diminuiriam quando a produção ganhasse escala e os trabalhadores, experiência. Enquanto desenrolavam-se as polêmicas, morreu Bernardo de Vasconcelos. O comando da capitania do Ceará foi assumido por uma junta provisória da qual fazia parte Francisco Bento Maria Targini, que era escrivão e deputado da Fazenda, com quem o governador se atritara, por conta dos gastos realizados com as atividades científicas.169 Esse atrito administrativo tornou-

rede próxima no plano profissional mas era também pessoa da confiança íntima e freqüentador assíduo da casa da família Linhares no Rio de Janeiro.” 166 Sobre esse laboratório e seu funcionamento precário, ver VARELA, Alex G. “Juro-lhe pela honra de bom vassalo e bom portugês”; análise das memória científicas de José Bonifácio de Andrada e Silva (1780-1819) São Paulo: Annablume, 2006. p.159-170. 167 GAMA, Manoel Jacinto Nogueira da. Memoria sobre a absoluta necessidade que ha de Nitreiras nacionaes para a independencia e defensa dos Estados: com a descripção da origem, actual estado, e vantagens da Real Nitreira Artificial de Braço de Prata. Lisboa: Impressão Régia, 1803. 168 AHU, Reino, Maço 2705. 169 Para maiores detalhes sobre esses conflitos, ver NOBRE, op. cit, p.99 e ss.

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se uma guerra pessoal e o escrivão usou de todos os meios ao seu dispor para desmantelar o sonho do governador de produzir salitre no Ceará. Apesar dos altos custos, D. Rodrigo continuou bancando a tentativa. Em meados de 1802, dera ordens diretas para que o governador continuasse “a dar a este Estabelecimento toda a extensão possível, procurando que o Salitre vá saindo mais barato, que é o ponto principal, e que venha em maior abundância”.170 O ministro tinha consciência de que se tratava de um processo experimental, e demonstrava-se disposto a esperar e a investir para que ele mudasse de escala. No entanto, o projeto não chegou à maturidade, pois, logo a seguir, sofreria o golpe final. Desenrolavam-se, na Europa, as guerras napoleônicas e Portugal via-se cada vez mais ameaçado. Na tentativa de apaziguar os ânimos espanhóis e franceses, a coroa portuguesa passou a dar maior espaço ao “partido francês”, alijando do poder aqueles que integravam o “partido inglês”, Souza Coutinho e o Conde de Galveias à frente.171 Muito provavelmente, o fim da tentativa de aproveitamento econômico das terras nitrosas do Ceará aconteceu para alívio de Feijó. Ele não tinha a pretensão de assumir permanentemente a produção de salitre. Afirmava que “a mim, como naturalista, só me toca apontar o lugar e os meios de o extrair comodamente e pô-lo em ponto de servir”.172 Concordava com Targini que os métodos utilizados não levariam ao barateamento do salitre. O modelo ideal de produção proposto pelos dois era aquele utilizado nos engenhos de cana movidos a mão de obra escrava africana, uma vez que os índios, contratados como trabalhadores livres, eram acusados de dar prejuízo devido à sua “inata preguiça”. enquanto estas Oficinas forem Sujeitas a tais despesas, e nelas se não introduzisses escravos próprios, e melhores, e mais como dos utensílios, não poderiam fazer conta a Sua Alteza Real, e é o que convence a diária experiência, quando não fosse bastante as que nos dá a conduta e economia dos Engenhos d’Açúcar, que se não forem trabalhados com escravatura, não faria conta alguma aos proprie-

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170 NOBRE, op. Cit., p.199. 171 HERMANN, Jacqueline. Dom Sebastião contra Napoleão: a guerra sebástica contra as tropas francesas. Topoi, n.5, 2002. p.108-133. 172 AHCMP, Laboratório de Química, 1801-1826, Arq.1, Maço 718. Ceará, 15 de Janeiro de 1803.

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tários; donde parece seria vantajoso a Sua Alteza Real o ter nestas oficinas Escravos, Carros, Carretas, e Bois próprios proporcional.te ao seu maneio manejo; este corte de despesas diárias não deixaria de concorrer, com muita vantagem para o cômodo preço do salitre.

O método escravista de produção de salitre jamais chegou a ser experimentado no Ceará. Francisco Bento Maria Targini acabou deixando a capitania e as tensões administrativas locais abrandaram. Alguns anos depois, esse ‘paladino da moralidade’ viria a ser uma figura poderosa na corte carioca de D. João VI, de quem se tornou um dos principais conselheiros. Apesar de filho de um caixeiro, foi nobilitado com o título de Barão e, depois, de Visconde de São Lourenço. Durante o período em que dirigiu o Real Erário, ganhou fama de grande corrupto, fama que foi cantada em prosa e verso. Um conhecido dito popular português foi especialmente adaptado para ser a ele dedicado.173 Quem furta pouco é ladrão. Quem furta muito é barão. Quem mais furta e esconde. Passa de barão a visconde.

Apesar de Targini ter deixado o Ceará, a produção de salitre no sertão nunca foi retomada. Sem a proteção de Souza Coutinho, o propósito foi saindo das prioridades da administração central portuguesa. Em consonância com João Carlos Augusto de Oyenhausen, novo governador do Ceará, Feijó tentou encontrar outras jazidas mais produtivas e em locais mais práticos, com vistas a transferir o laboratório de Tatajuba. A escolha recaiu sobre as jazidas encontradas em Pindoba, na Serra da Ibiapaba. Os petrechos metálicos do laboratório desativado chegaram a ser transferidos para a região, mas, devido ao custo das operações e aos fracos resultados iniciais, as tentativas de produ-

173 Ver MONTEIRO, Tobias. História do Império: a elaboração da independência. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1927. p.282. BRAGA, Teófilo. Cancioneiro popular portuguez. Lisboa: 1911. Lisboa: J. Roderiguez, 1911.

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ção foram interrompidas. Anos depois, o naturalista procurava instruções de Lisboa sobre o que fazer com os petrechos e o resto do salitre produzido.174 Fracassado o projeto do salitre, Feijó declarou-se velho, cansado e doente pelos 23 anos de contínuos serviços prestados à coroa. Seu objetivo era obter a mercê régia de ser transferido para o Rio de Janeiro, para “acabar o Resto de meus dias em minha Pátria, e no centro da minha humilde família, em um emprego menos laborioso que este, visto não ser mais precisa a minha residência neste país para o objeto do Salitre”. Um atestado médico, anexado por Feijó em sua correspondência, dizia que ele sofria “de uma obstrução no Baço, e Fígado” provocada pelos “vapores dos ácidos minerais, que divagam pela atmosfera do Real Laboratório do Salitre”. Por mais de uma vez, a correspondência refere-se aos ataques sofridos pelo naturalista. O Cirurgião Mor da Capitania do Ceará comentou que ele padecia de “uma grande quantidade de Atrabilis espalhada por toda a superfície da pele”.175 Não é difícil de imaginar que a icterícia que o acometeu poderia ter sido provocada por intoxicação, como diagnosticara o médico, ou mais provavelmente por ter contraído hepatite. O pedido de transferência não foi atendido e Feijó permaneceu no Ceará, atuando como naturalista da coroa, por cerca de 15 anos. Paralelamente ao projeto de produzir salitre ele desenvolveu uma série de observações científicas, que começaram assim que chegou à capitania. Na companhia do Governador Bernardo Manoel de Vasconcelos, visitou, ainda em finais de 1800, as antigas lavras de ouro da Mangabeira.176 Sob a supervisão dos dois, foram feitas escavações para encontrar antigos filões abandonados. O resultado, no entanto, foi desanimador. A recomendação foi que as minas não fossem reabertas sob administração da coroa. No máximo poderia ser permitido que bateadores faiscassem ouro, pagando o quinto régio. Feijó aproveitou as observações feitas nas lavras e escreveu uma memória endereçada a Souza Coutinho, a qual permaneceu inédita por pouco mais de um século, até ser publicada

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174 NOBRE, op. Cit., p.236. 175 AHCM, Laboratório de Química, 1801-1826, Arq.1, maço 718. Fortaleza, 11 de março de 1803. 176 NOBRE, op. Cit. p.195 e ss.

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pelo Instituto do Ceará.177 Também deu notícias e mandou amostras do ferro e do amianto encontrado nas minas. O que mais chamou a atenção de Feijó nessa viagem foi a profusão de fósseis que podiam ser encontrados e coletados a céu aberto nas serras do Ceará. Reuniu diversas coleções que foram enviadas a Lisboa. A sua curiosidade foi despertada pela petrificação de tecidos moles de animais marinhos. Propôs-se a escrever uma memória sobre o assunto. No entanto, se o fez, o texto não chegou até o presente. Parte dos fósseis enviados a Lisboa foi incorporada ao Museu de História Natural da Academia de Ciências e ali estudados por Alexandre Antonio Vandelli178, filho no naturalista italiano e futuro genro de José Bonifácio de Andrada. Devido a esses estudos, Alexandre Vandelli é considerado o pai da paleontologia em Portugal.179 Em suas viagens em busca de salitre, Feijó não descurou das recolhas botânicas. Fez diversas remessas de sementes e mesmo de mudas de árvores para Jardim Botânico e Museu da Ajuda. As mudas saiam de um horto anexo ao laboratório de Tatajuba. A coroa da Prússia solicitara a Portugal que fossem enviados espécimes de sua colônias para Real Jardim Botânico de Berlim. A tarefa foi repassada para Feijó que, entre 1803 e 1806, passou a fazer remessas paralelas para os dois hortos. Não deixa de haver nisso certa ironia, pois alguns anos depois Heinrich-Friedrich Link assumiria a direção desse jardim e museu de história natural e deve ter tomado contato com o produto das remessas feitas pelo naturalista brasileiro. Sem uma tarefa específica, como a da exploração do salitre, Feijó ficou livre para desenvolver as atividades gerais que eram consideradas próprias de um estudioso das ciências naturais. Entre outras coisas, continuou coletando material botânico para a Ajuda e fez experiências médicas com supostas espécies de quinas.180 A busca por plantas com propriedades febrífugas, como a quina, foi outra obsessão da coroa e dos cientistas da época. Periodicamente, 177 FEIJÓ, João da Silva. Memória sobre as antigas lavras do oiro da Mangabeira da Cappitania do Siará. RIC, v.26, 1912. p.364-371 178 MARQUES, Adílio J. e FILGUEIRAS, Carlos A. L. O químico e naturalista luso-brasileiro Alexandre Antonio Vandelli. Química Nova, v. 32, n.9, 2009. p.2494. 179 ANTUNES, M. T. Publicação do II Centenário da Academia das Ciências de Lisboa. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1986. v.2., p.773-814. 180 AHU, Ceará, Cx.18, D1036. Ceará, 28 de março de 1804.

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o naturalista voltava à carga, pedindo um desenhista para ajudá-lo, além de livros instrumentos e um laboratório portátil. Lentamente, Feijó vai desaparecendo da documentação administrativa do Ceará. Vez por outra aparece no expediente sobre providências e prestação de contas referentes à velha questão dos laboratórios de produção de salitre. Também aparece no expediente oficial por questões pessoais. Em 1806, parece convencido de que o castigo de degredo em Angola imposto ao filho João Maria já tinha sido suficiente. porque me consta conduzir-se digno de atenção, imploro ao Mesmo Senhor a Mercê de permitir-lhe o seu regresso, ou para o Rio de Janeiro para algum dos Regimentos daquela cidade, ou para a minha companhia, deixando-se o mesmo Senhor atendido, promovendo-o a algum Posto subalterno, em contemplação a ter-se oferecidos voluntariamente a Seu Serviço no tempo da Guerra.181

Feijó também volta a insistir na pretensão de retornar ao Rio de Janeiro. Na mesma correspondência, pediu licença remunerada de um ano para tratar dos “interesses de minha casa, largados à discrição no Rio de Janeiro há anos, por me ver ocupado no Real Serviço”. A licença foi concedida em 1808 e quem a concedeu foi D. Rodrigo de Souza Coutinho.182 Depois da longa ‘travessia do deserto’, o ministro e seu partido inglês haviam reassumido a condução do reino, providenciando a transferência da corte para o Brasil. O Conde de Linhares dava novamente as cartas e, com ele, a idéia de retomar a produção de salitre no Ceará. A produção de composto na capitania nordestina, no entanto, não foi retomada. D. Rodrigo chegou a fazer gestões nesse sentido. No entanto com sua morte, em janeiro de 1812, a idéia foi novamente abandonada.

5. Sobre Lembranças e Esquecimentos A documentação mostra que Feijó esteve no Rio de Janeiro, entre 1809 e 1811. Um de seus propósitos era vender o patrimônio pessoal que detinha na 92



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181 AHU, Ceará, Cx.19, D1109. Ceará, 3 de Fevereiro de 1806. 182 NOBRE, op. Cit. p.240.

capitania, fruto de herança de seus pais. Parece ter resolvido essa questão, mas a viagem foi mais produtiva do que isso, muito provavelmente pela retomada de contatos com Souza Coutinho. No período em que ali permaneceu, foi promovido a Tenente-coronel do Primeiro Regimento da Cavalaria de Milícias do Ceará. Aproveitou, também, para publicar alguns textos referentes à sua atuação no nordeste. Em 1810, a Imprensa Régia, recém instala no Brasil, publicou o seu Preâmbulo ao ensaio filosófico e político sobre a Capitania do Ceará.183 No ano seguinte, saiu do prelo a Memória econômica sobre a raça do gado lanígero do Ceará.184 Note-se que com as suas publicações na Academia das Ciências, n’O Patriota e na Imprensa Régia, Feijó passou a fazer parte na República das Letras, não só em Portugal como na Europa em geral. Seus artigos e opúsculos aparecem em diversas bibliografias científicas e ele passou a ser citado por autores das mais diversas nacionalidades. Sem pretensão de discorrer exaustivamente sobre isso, vejamos alguns exemplos. Poucos anos depois de editada, a memória sobre a criação de carneiros no Ceará aparece citada por Henry Koster, na obra referente às suas viagens pelo Brasil.185 Isto, no entanto, indica um círculo de leitura ainda restrito. É de se esperar que os viajantes estrangeiros que circulavam pelo país tivessem contato com as obras científicas dos nacionais e as mencionassem. Contudo, ainda que publicada em português, a circulação e o alcance dos textos impressos acadêmicos podiam mais amplos do que se costuma imaginar. No verbete sobre “Schaf und Schafzucht” da Oekonomische Encyklopädie, de 1824, Feijó mais uma vez é citado a propósito do gado lanígero do Ceará.186

183 FEIJÓ, João da Silva. Preâmbulo ao ensaio filosófico e político sobre a Capitania do Ceará para servir para a sua história geral. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1810. 184 FEIJÓ, João da Silva. Memória econômica sobre a raça do gado lanígero do Ceará. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1811. 185 KOSTER, Henry. Travels in Brazil. London: Longman, Hurst, Rees, Orme, and Brown, 1816. v.1, p.152. 186 Oekonomische encyklopädie. Berlin: J. Pauli, 1824. v.138, p.608.

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No mesmo ano, Spix e Martius, referem-se a uma de suas memórias sobre Cabo Verde.187 Sua produção acadêmica sobre o arquipélago aparece mencionada tanto em repertórios acadêmicos europeus188, quanto por viajantes.189 As suas observações sobre o vulcão da Ilha do Fogo aparecem na literatura especializada francesa.190 O público de língua alemã também teve a oportunidade de tomar contato com Feijó não apenas através da obra conjunta de Spix e Martius e da Oekonomische Encyklopädie. O barão de Eschweg no seu Pluto Brasiliensis discorreu longamente sobre a tentativa de fabricar salitre artificial no Ceará, inclusive os conflitos com Targini.191 Assim, João da Silva Feijó chegou a conhecer uma fugaz notoriedade extra Brasil e extra Portugal, principalmente nas décadas de 1820 e1 1830. Justamente no ambiente científico de língua alemã foi publicado o desagravo das críticas feitas pelo naturalista Heinrich-Friedrich Link a Ale-

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187 SPIX, J. B. von. & MARTIUS, C. F. P von. Reise in Brasilien: auf Befehl Sr. Majestät Maximilian Joseph I., Königs von Baiern in den Jahren 1817 bis 1820 gemacht und beschrieben. München: Lindauer, 1828. v.1, p.86. 188 REUSS, Jeremias D. Repertorium commentationum a societatibus litterariis editarum. Gottingen: Henricum Dieterich, 1808. v.7, p.326. Bulletin des sciences géographiques, économie publique; voyages. Paris, tome XX , 1829. p.57. 189 BENNET, George. Wanderings in New South Wales, Batavia, Pedir Coast, Singapore, and China: being the journal of a naturalist in those countries during 1832, 1833, and 1834. London: Richard Bentley. 1834, v.1, p.27 190 D’AVEZAC, M. Îles de l’Afrique. Paris: F. Didot fréres, 1848. p.207. 191 ESCHWEG, W. L. von. Pluto brasiliensis. Berlin:G. Reimer, 1833. p.492-494.

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xandre Rodrigues Ferreira e, por tabela, a Feijó. Como vimos, Link serviu de porta-voz das pretensões de Felix de Avelar Brotero. Segundo Martius, por razões desconhecidas Ferreira “mergulhou numa profunda melancolia” que o impediu de tirar o devido proveito das remessas e da documentação produzida durante a viagem filosófica à Amazônia.192 “Após sua morte, seus volumosos manuscritos chegaram às mãos de Félix Avelar Brotero, um homem temível, lerdo e ciumento, que ademais não fez nada e se locupletou aproveitando-se do honrado esforço científico de seus colegas”, ou seja Ferreira, Feijó, Galvão e Silva.193 O próprio Link reviu posteriormente o seu apreço por Brotero. Ambos envolveram-se em projetos concorrentes de publicação de Floras de Portugal. Brotero publicou primeiro, o que provocou uma reação irada. Em primeiro lugar esse auctor não acompanhou o seu texto de estampas, e pelo que diz respeito às que se encontram na phytographia, a execução é bastante dura. Omittiu quase sempre os synonimos, os quaes em toda parte, segundo nossa opinião, contribuem singularmente para o conhecimento exato da planta. Além d’isso menciona como novas numerosas espécies, o que o celebre Desfontaines já divulgou na sua Flora Atlântica com discripções completas e excelentes estampas: outras acham-se na Flora Britânica de Smith. [...] Eis as razões que nos decidiram a não abandonar nosso projeto de Flora Portugueza. 194

Enfim, Felix Avelar Brotero passara a ser um botânico incompetente e defasado. Mudam-se os tempos, mudam as afinidades!

Um favor à história natural 192 São diversos os casos de viajantes naturalistas inadaptados ao retornarem à Europa. O caso mais famoso é o de Aimé Bonpland “que não consegue se contentar com a vida tranqüila que lhe é oferecida nos jardins de Malmaison”. BOURGUET, Marie-Noëlle. O explorador. In: VOVELLE, Michel. (org.). O homem do iluminismo. Lisboa: Editorial Presença, 1997. p.237. 193 MARTIUS, op. Cit., p.16-17. 194 BRANCO, Manoel Bernardes. Portugal e os estrangeiros. Lisboa: A. M. Pereira, 1879. v.1, p.395. Neste aspecto, Link foi mal sucedido. Da sua projetada Flora Lusitânica, elaborada em parceria com o conde de Hoffmansegg saíram apenas os primeiros volumes. O restante permaneceu em manuscritos, que foram destruídos em 1943, por ocasião dos bombardeios aliados à Alemanha, na Segunda Grande Guerra.

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Quando estava no Rio de Janeiro, ou quem sabe antes disso, Feijó deve ter recebido a notícia do que acontecera com o seu herbário de plantas de Cabo Verde, aquele desdenhado por Link. A coleção despertara grande interesse em um outro naturalista em ‘visita’ a Portugal. As forças francesas que invadiram Lisboa haviam trazido consigo um soldado da ciência: Geoffroy de Saint-Hilaire. Este botânico francês foi encarregado de saquear as instituições científicas portuguesas e mandar o resultado para o Jardin des Plantes, em Paris. Como bem caracterizou a historiadora Lorelai Kury, Saint-Hilaire acreditava que os naturalistas portugueses tinham um status científico muito inferior ao seu. Assim, “tirar-lhes partes das coleções seria prestar um favor à própria história natural, já que os portugueses não haviam estudado o rico material coletado em suas colônias”.195 O material botânico confiscado da Ajuda e mandado para a França passou a constituir uma parte significativa do acervo do Jardin des Plantes. Os herbários trazidos de Lisboa pelo sr. Geoffroy compreendem 1.188 plantas do Brasil, 226 de Angola, 83 do Cabo da Boa Esperança, 289 do Peru, 962 de Cabo Verde, 35 de Goa, 90 da Conchinchina recolhida por Loureiro e finalmente 182 dos arredores de Uppsala. Quase todas essas plantas desidratadas com suas flores, e freqüentemente também com seus frutos, estão perfeitamente conservadas. A maior parte das do Brasil, de Angola, da Conchinchina e de Cabo Verde faltava na coleção do Museu, e é sobretudo possível, após um longo tempo, ter um herbário do Brasil, país fértil em vegetações raras e curiosas que só conhecíamos através do trabalho de Marcgraf e Piso, cujas definições e desenhos são muito incompletos.196

Não vamos discutir aqui a moralidade, ou não, desses atos de pirataria científica. Eles servem, no entanto, para que percebamos a importância estratégica que na época era dada às ciências naturais. O príncipe regente D. João não deixou passar o episódio em branco. Assim que a família real chegou

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195 KURY, Lorelai. As coleções, a invasão francesa e o Brasil. In: O Gabinete de Curiosidade de Domenico Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes, 2008. p.252. 196 Relatório sobre os itens de história natural coletados em Portugal pelo sr. Geoffroy de Saint-Hilaire. In: O Gabinete, op. Cit. p.269. Nesta obra recente, a transcrição indica que o herbário continha 962 espécies. No entanto, desde o século XIX, a literatura afirma que eram 562. Ver, entre outros, DOLEZAL, Helmut. Friedrich Welwitsch; vida e obra. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1974. p.144-145.

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ao Brasil, foi ordenada a invasão da Guiana francesa. Quando Caiena foi ocupada, o jardim de aclimatação de La Gabrielle foi saqueado e parte do seu acervo foi trazida para os jardins botânicos do Rio de Janeiro e do Pará. No que diz respeito a João da Silva Feijó, interessa reter algumas características da composição do butim científico levado da Ajuda por Saint-Hilaire. O herbário que reunia espécies brasileiras era composto de 1.188 plantas. Veja-se nele o trabalho de Alexandre Rodrigues Ferreira, mas, quem sabe, não só. Dezenas de curiosos e naturalistas, entre eles o próprio Feijó, contribuíram com a remessa de espécimens botânicos do Brasil para a Ajuda. Já o herbário de Cabo Verde, composto de 562 espécies era fruto praticamente exclusivo do trabalho de Feijó. Esse fato, por si só, nos dá uma noção da escala de seu esforço científico. O material enviado a Paris foi rapidamente incorporado às coleções francesas e os responsáveis pela recolha foram simplesmente esquecidos. Os muitos portugueses e luso-brasileiros que durante anos dedicaram-se a reunir o material jamais foram lembrados e homenageados pelos ‘colegas’ franceses. Sequer no batismo de alguma espécie, como era corrente à época. Das 562 espécies de Cabo Verde de que constava o herbário de Cabo Verde levado para a França, o nome de nenhuma delas homenageia Feijó, até onde foi possível alcançar. As espécies zoológicas apropriadas pelos franceses tiveram destino semelhante. Em algumas raras descrições de animais ainda é possível perceber muito fragmentariamente a presença da memória da atuação científica do naturalista. Macroscincus coctei a été mentionné pour la première fois en 1784 par José DASILVA. Plusiers spécimens on été sortis ou perdus du Museun de Lisbonne (Portugal). En 1809, un des spécimens fut transporté au Museun de Paris (France). Em 1832, Charles DARWIN visita le Cap Vert et fut marqué par l’eparpillement et la la l’absence de biodiversité dues à l’impact de l’Homme. En 1833, la population s’est effondrée quand un groupe de forçats affamés ont échouer sur Ilh’eu Branco. L’utilisation de Macroscincus coctei comme nourriture et comme remède médical à cause de sa richesse en graisse on conduit à un rapide déclin. En 1839, Macroscincus a finalement été décrit par DUMERIL & BIBRON sous le nom de genre Euprepes et nommé d’aprés Cocteau, un scientifique. Bizarrement,

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ils crurent que ce scinque nouvellement décrit provenait de la côte ouest de l’Afrique.197

Até hoje, a incursão de Saint-Hilaire pelos acervos portugueses se esconde atrás de certos eufemismos terminológicos. Este lagarto, hoje extinto, foi “achado” - ou “perdido”? - no Museu de Lisboa e foi “transportado” para a França. Para a desgraça de Feijó ele se chamava João da Silva, o que contribuiu para que fosse estabelecida a mais completa confusão sobre a sua contribuição científica. Não esqueçamos que as remessas de Manuel Galvão da Silva, enviado pela coroa portuguesa a Moçambique, e as de Joaquim José da Silva, provenientes de Angola, foram também ‘expropriadas’ por Saint-Hilaire. O acúmulo dos Da Silva ultrapassou a capacidade de discernimento dos estudiosos que usaram o material reunido no Jardin des Plantes, o que provocou o surgimento de um criatura híbrida, que as vezes aparece na literatura especializada com o nome de João José da Silva ou, mais correntemente, de José da Silva.198 Na maioria das vezes esse José da Silva é o nosso Feijó, outras vezes é Joaquim José da Silva. No caso do lagarto gigante de Cabo Verde, o José Dasilva é de fato Feijó, mas os franceses supuseram que se tratava de Joaquim José da Silva, uma vez que imaginaram que o espécime estudado era oriundo de Angola: de “la côte ouest de l’Afrique”. O mistério da origem do lagarto só foi resolvido em 1874 pelo naturalista português Barbosa du Bocage, que descobriu que os franceses haviam descrito um dos exemplares mandados de Cabo Verde por Feijó. Além disso, Bocage rejeitou a sua classificação como Euprepes

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197 SCHINEREL, Brian L. Macrocincus coctei, Duméril & Bribon 1839; Le scinque géant du Cap Vert. http://s3.archive-host.com/membres/up/753664049/tiliqua/Macroscincus_coctei.pdf 198 Para não cometermos injustiça com os franceses, é preciso mencionar que em muitas obras recentes em língua portuguesa existe a mesma confusão. Isso acontece, inclusive, na recente tradução de Link, na qual aparece: “José da Silva Feijó (1760-1825): naturalista e botânico, sócio correspondente da Academia das Ciências, autor de várias memórias sobre as ilhas de Cabo Verde”. LINK, Heinrich Friedrich. Notas de uma viagem a Portugal e através da França e Espanha. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2005. p.192.

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e propôs a criação de um novo gênero de scincoides: o Macrocincus.199 Já o Cocteau, homenageado no nome dado ao lagarto, nada teve a ver com essa história. Era um especialista em répteis da primeira metade do século XIX. Os responsáveis pela descrição do Macrocincus, Dumeril e Bibron, eram seus parceiros de estudo.200 Típico exemplo dos processos reiterativos através dos quais as nações dominantes de um dado período ‘marcam o seu território’ científico. Apesar das confusões, este foi o único caso na zoologia em que a literatura especializada reteve a contribuição de Feijó. Na Botânica há uma homenagem singular prestada ao naturalista, em meados do século XIX. Quando publicou sua obra sobre flora brasileira, o botânico alemão Otto Karl Berg denominou um gênero de mirtácea em homenagem a Feijó.201 O gênero Feijoa é composto de apenas uma espécie, a Feijoa sellowiana, nome científico dado à goiaba serrana, originária do sul do Brasil. Essa goiaba silvestre foi levada para a Nova Zelândia, passou por melhoramentos genéticos, e hoje está virando um modismo de consumo mundial. O Brasil está começando a produzir feijoas comercialmente. Feijó nunca esteve no sul do Brasil e não deve ter incluído a espécie em suas remessas. O que, então, teria levado o botânico alemão a fazer essa homenagem? Muito provavelmente em reconhecimento ao trabalho prestado pelo naturalista brasileiro ao Jardim Botânico de Berlim, remetendo espécimes do sertão nordestino. Além disto, como vimos, Feijó figurara com alguma freqüência na literatura especializada em língua alemã. Na francófona também, mas não a ponto de estimular a fraca memória dos naturalistas franceses.

199 BOCAGE, J. V. Barbosa du. Sur l’habitat et lês caracteres zoologiques du Macroscincus Coctei (Euprepes Coctei Dum. Bibr.) Jornal de sciencias mathematicas, physicas, e naturaes. n.7, dez.1873. p.295-306. 200 COCTEAU, Jean Théodore. Etudes sur les Scincoïdes. Imprimerie de Terzuolo, Paris, 1836. 201 BERG, Karl Otto. Flora Brasiliensis Myrtographia; sive descriptis Myrtacearum in Brasilia provenientim. Lipsiæ: F. Fleischer, 1858. 2.v. A obra contém de 85 pranchas botânicas de mirtáceas brasileiras, entre as quais a Feijoa.

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6. De volta ao Ceará Após retornar ao Ceará, Feijó continuou as atividades próprias de um naturalista régio a serviço da capitania. No entanto, a sua presença na documentação oficial foi ficando cada vez mais tênue. Em contrapartida, os historiadores do Instituto do Ceará, em especial o Barão de Studart, conseguiram reunir diversos documentos que dão pistas sobre sua vida pessoal. Quando partiu de Fortaleza em direção ao sul, o naturalista estava endividado e teve que hipotecar a sua casa. De volta ao Ceará, trazendo recursos da venda de seus bens e com o salário melhorado pela nova patente militar de tenente-coronel, parece menos pressionado pela busca da sobrevivência. Foi capaz de alguns gestos de largueza, como o de ceder a água de uma nascente da chácara que servia como sua morada urbana para que a câmara fizesse um chafariz público. Os anos que se seguem são os do reconhecimento da carreira científica de Feijó. Em 1813, começou a circular no Rio de Janeiro o primeiro periódico de caráter científico editado no Brasil. Chamava-se O Patriota. Durou apenas 2 anos, mas em sua curta vida, o periódico abriu amplo espaço para a produção do naturalista. Nada menos que três de suas monografias foram publicadas no periódico. Duas delas tratavam de Cabo Verde: Ensaio político sobre as ilhas de Cabo Verde202 e a Memória sobre a última erupção vulcânica do Pico da Ilha do Fogo203. Sua produção científica mais recente também foi contemplada, com a publicação da Memória sobre a Capitania do Ceará204, aquela que, mais tarde, seria qualificada por Martius de pouco proveitosa à botânica.

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202 FEIJÓ, João da Silva. Ensaio político sobre as ilhas de Cabo Verde para servir de plano a História Filosófica das mesmas. O Patriota, t.3, n. 3, maio_jun.1814. p.29-54. 203 FEIJÓ, João da Silva. Memória sobre a última erupção vulcânica do Pico da Ilha do Fogo, sucedida em 14 de Janeiro do ano de 1785. O Patriota, t.3, n. 5, nov.1814. p.23-32. A versão enviada à Academia das Ciências de Lisboa só foi impressa em 1857. Ver FEIJÓ, João da Silva. Memória sobre a última erupção vulcânica do Pico da Ilha do Fogo, sucedida em 24 de Janeiro do ano de 1785. Memórias da Real Academia das Sciencias de Lisboa. Classe das Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes. Nova Serie. tomo 2 parte 1, 1857. p.17-25. 204 FEIJÓ, João da Silva. Memória sobre a Capitania do Ceará. O Patriota, t.3, n.1, jan.-fev.1814. p.46-62.

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Segundo o historiador Marco Morel, os autores que publicaram n’O Patriota integravam o círculo de mecenato de D. Rodrigo de Sousa Coutinho. O veículo, de certo modo, foi uma tentativa de sobrevida desta articulação, após a morte de seu patrocinador. Estava, portanto, no cerne das disputas de poder no império português, sendo por elas atingido.205 Isto explicaria o curto espaço de vida do empreendimento editorial. No início de 1814, haviam terminado as campanhas peninsulares da guerra napoleônica e Portugal começava a voltar à normalidade. A Academia Real das Sciencias de Lisboa retomou a publicação das Memórias Econômicas. No segundo número dessa nova fase, publicado em 1815, aparecem dois textos de autoria do naturalista, ambos referentes à sua viagem filosófica a Cabo Verde. O primeiro foi uma Memória sobre a Urzela, um líquem das ilhas atlânticas utilizado na produção de corantes púrpuras.206 O outro, uma versão de seu Ensaio economico sobre as ilhas de Cabo Verde.207 Enfim, João da Silva Feijó havia deixado de ser visto como um mero coletor de produtos da natureza, que era o que mais temia quando chegou ao Ceará. Queria chegar ao estágio dos verdadeiros botânicos, aqueles que, na classificação de Lineu, “entendem a Botânica por seus fundamentos”. Não na função de “Colector”, mas na de “Metódico”, que na classificação lineana dos botânicos eram os “Filósofos, Sistemáticos e Nomencladores”.208 Apesar do silêncio da documentação disponível sobre suas atividades científicas do período, é muito provável que tenha se concentrado no grande projeto que havia enunciado assim que voltou ao Brasil: elaborar uma História Natural do Ceará. Dedicou-se, especialmente, a preparar uma Flora Cearense. No entanto, por falta de um desenhista, o projeto ficou pela metade.

205 MOREL, Marco. Pátria polissêmica. In: KURY, Lorelai (org.) Iluminismo e império no Brasil; O Patriota (1813-1814). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007. p.33. 206 FEIJÓ, João da Silva. Memória sobre a urzella de Cabo Verde. MEARSL, n.5, 1815. p.145-154. 207 FEIJÓ, João da Silva. Ensaio economico sobre as ilhas de Cabo Verde, em 1797. MEARSL. n.5, 1815. p.172-193. 208 LINNÉ, Carl von. Fundamentos botanicos que expõem, em fórma de aforismos, a theoria da sciencia botanica Carl Von Linné. Lisboa: offic. de Joaquim Thomaz de Aquino Bulhões, 1809. p.5.

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As Floras eram álbuns de estampa que traziam a representação gráfica das partes das plantas necessárias à sua classificação pela taxonomia proposta por Lineu. Também traziam a própria catalogação lineana e, com freqüência, um pequeno texto explicativo sobre as utilidades e os nomes nativos de cada planta. Ao publicar uma flora regional, os botânicos apresentavam ao mundo científico as espécies ainda não catalogadas, batizando-as com o nome de cientistas e personagens importantes da época. O último nome agregado à espécie descrita era o do próprio responsável pela catalogação da planta, que assim se “imortalizava”. Organizar e publicar uma flora regional era, portanto, o grande sonho de qualquer naturalista da época. O problema, no entanto, era o alto custo deste tipo de publicação. Depois de desenhadas, as pranchas eram transferidas por um gravador a uma chapa metálica, para então serem impressas. Em alguns casos, utilizavam-se gravuras a cores ou as pranchas eram aquareladas uma a uma. A coroa portuguesa jamais conseguiu bancar a publicação de uma flora como era para ser. A Florae Lusitanicae et Brasiliensis de Domingos Vandelli estava longe daquilo que se esperava deste tipo de obra.209 O principal responsável pela recolha das espécies brasileiras descritas por Vandelli, foi outro naturalista luso-brasileiro, Joaquim Veloso de Miranda.210. Vandelli homenageou-o com o gênero Vallozia. A Flora Lusitânica de Brotero, publicada em 1804, também estava bastante aquém dos padrões ideais da época. 211 O grande projeto de elaboração de uma flora regional do Brasil foi, no entanto, a tentativa já mencionada de publicação da Flora Fluminensis, de autoria do frei Mariano da Conceição Veloso. O projeto se arrastou por décadas e pouco avançou, mesmo tendo contado com o apoio de D. Rodrigo de Souza Coutinho. Mais de quinhentas chapas metálicas já gravadas, que se encontravam na Imprensa Régia, foram ‘apropriadas’ por Geoffroy de Saint-

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209 VANDELLI, D. Florae Lusitanicae et Brasiliensis specimen. Et Epistolae ab eruditis viris Carolo a Linné, Antonio de Haen ad Dominicum Vandelli scriptae. Coimbra: Ex Typographia Academico-Regia, 1788. 210 STELLFELD, Carlos. Os dois Vellozo. Gráfica Editora Sousa: Rio de Janeiro, 1952. 211 BROTERO, Felix Avelar. Flora Lusitanica. Lisboa: Tipographia Regia, 1804.

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Hilaire.212 Os desenhos originais, contudo, escaparam do saque. Somente em 1825 foi impresso no Rio de Janeiro o texto latino de introdução. As gravuras começaram a ser impressas na França, por ordem de D. Pedro I, em 1827. Com a queda do nosso primeiro imperador, os governos das regências não reconheceram a dívida aos livreiros franceses, que, por sentença judicial, ficaram donos da edição feita por encomenda. A obra começou a ser vendida apenas em 1831. Esta pequena história é apenas para ficarmos cientes das dificuldades de se publicar esse tipo de obra e não estranharmos o fato de que Feijó jamais tenha conseguido publicar a sua flora. Como nunca conseguiu contar com a colaboração de um desenhista especializado, o naturalista designou a sua flora de Coleção descritiva das plantas da Capitania do Ceará.213 Quando voltou ao Rio de Janeiro fez gestões sem sucesso para publicá-la. Após a sua morte, os seus papeis dispersaram-se. Os manuscritos de sua Flora Cearense ou Coleção Descritiva foram resgatados e copiados de uma confeitaria pelo naturalista Freire Alemão, onde eles estariam sendo usados como papel de embrulho.

Por serem todos elles pedreiros livres Quando Feijó retornou ao Ceará, o novo governador da capitania era Manuel Inácio de Sampaio e Pina Freire, com quem criou forte inimizade. Num depoimento prestado pelo alferes do regimento de infantaria de Fortaleza, referente a 1816, é possível perceber a ruptura que se estabelecera no interior da elite administrativa da capitania. E aconteceu assistir eu em alguns jantares de Carvalho, a que sempre assistiam como certos o vigário Antonio José Moreira, o tenente-coronel João da Silva Feijó, Luiz Antonio da Silva Vianna, Marianno Gomes da Silva e algumas vezes o padre Amaro, vigário de Arronches e Joaquim Ignácio Lopes de Andrade; e lembra-me, que por, todas 212 Ver BORGMEIER, O. F. M. A história da “Flora Fluminensis” de Frei Vellozo. In: Flora Fluminensis de frei José Mariano da Conceição Vellozo; Documentos. Rio de Janeiro: Publicações do Arquivo Nacional, 1961. p.6. 213 FEIJÓ, João da Silva. Coleção descritiva das plantas da Capitania do Ceará. Rio de Janeiro, 1818. BNRJ, 10, 1, 12.

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as vezes, que assisti, Carvalho fazia saúdes equivocas, que algumas percebi ser contra o senhor Governador, a que os seus satellites logo satisfaziam com outras semelhantes, e por acenos.214

O Carvalho em questão era João Antônio Rodrigues de Carvalho, o ouvidor da Capitania, o qual, junto com o vigário Antonio José Moreira, pertencia ao círculo de amizades mais próximas do naturalista. O período era de tensão e, desde 1815, Feijó começara a fazer gestões para voltar ao Rio de Janeiro. Neste momento da vida, ele já não era tão dependente de seu salário pois, ao contrário do que ocorrera na licença anterior, se dispunha a abrir mão do soldo durante o afastamento. A licença sem soldo foi concedida, no entanto Feijó preparou-se para uma viagem em caráter definitivo, já que se desfez de seus bens imóveis em Fortaleza. Ele e seus familiares deixaram a cidade em meados de 1816. No entanto, ficaram retidos em Pernambuco por conta de doenças que acometeram todo o grupo. Sabemos da situação através de uma carta de Bernardo Oliveira Pacheco endereçada de Recife ao vigário Antônio José Moreira: “O Feijó fica, e não vai por estar com a filha Maria Joana de bexigas muito ruim, e ele também de cama de uma grande constipação [...] e ontem lhe caiu a mulher e as duas filhas e a criada que tudo estava de cama”.215 A família de Feijó havia crescido durante sua estadia no Ceará. Fora o filho varão ausente, era composta de três meninas: Maria Amália da Silva Feijó, Francisca Clementina da Silva Feijó e Maria Joana Honorata da Silva.216 Após esse intervalo, a família seguiu para o Rio de Janeiro. Contudo, dada a rede social a que pertencia, é de se supor que Feijó tenha tomado contato com os movimentos iniciais que levariam ao evento político que marcou a região nordestina no ano seguinte: a Revolução Pernambucana de 1817. Esse movimento republicano se estendeu às capitanias vizinhas, inclusive à do Ceará. Nesta capitania, o governador Sampaio assumiu a repressão aos suspeitos e voltou-se contra os seus desafetos, levantando suspeitas de que estavam envolvidos em conspirações.

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214 Documentos para a História da Revolução do Ceará em 1817. RIHGB, v.38, parte 1, 1785. p.162 215 NOBRE, op. Cit. p. 253. 216 BNRJ, C-0865, 040.

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Os clubs e conventículos eram pela maior parte em casa do tenente coronel Feijó, e de Mariano Gomes, e algumas vezes também na casa do Vigário Antonio José Moreira, e dele mesmo Carvalho. Não me atrevo afirmar a V. Ex.ª que nestes clubs se tratasse desde logo de idéias claramente revolucionárias, que assustariam demasiadamente, o horror à nota de infidelidade me impede d’assim asseverar sem ter provas evidentes; mas se claramente se não tratava de revolução, ao menos dispunhase tudo para este fim com a astúcia e a ardileza necessária.217

Tanto o vigário Antonio José Moreira, quanto o ouvidor João Antônio Rodrigues de Carvalho acabaram presos por suspeita de envolvimento com o levante republicano. É de supor, portanto, que Feijó teria tido o mesmo destino se tivesse permanecido em Fortaleza. Em sua defesa, o ouvidor tentou caracterizar o conflito que o opunha ao governador como algo restrito à ordem das amizades e inimizades pessoais. Tinham sido amigos próximos, mas haviam rompido por causa do círculo de relacionamentos pessoais do ouvidor. Pretendeu o Governador que eu não me desse [...] com o vigário da vila o Padre Antônio José Moreira, com o Tesoureiro do Erário Luiz Antônio da Silva Viana, com o Tenente Coronel e Naturalista João da Silva Feijó, com o contador Joaquim Inácio Lopes de Andrade, com o Inspetor de algodão José Pacheco Espíndola, e geralmente com todos os que não fossem o Escrivão da Fazenda e Secretário, únicos então de sua privança.218

A documentação sugere, no entanto, que os conflitos ultrapassavam o âmbito pessoal. Os “clubs e conventículos” que aconteciam na casa do naturalista eram reuniões da maçonaria e tudo indica que o grupo denunciado pelo governador teve algum tipo de envolvimento com a Revolução Pernambucana. Não é possível saber, no entanto, a forma e o grau de envolvimento de Feijó no episódio. Afirmava o já mencionado alferes de Fortaleza que ouvira dizer, de pessoas que estiveram no Recife logo após o início da revolta, que o ouvidor Carvalho “era o Cabeça do levante no Ceará”. Que o “tenente-coronel João da Silva Feijó” e o “capitão-mor Antonio José Moreira Gomes [...] talvez já fossem 217 Ofício do governador do Ceará a João Paula Bezerra, Secretário de Estado dos Negócios da Guerra e Estrangeiros, datado de 21 de janeiro de 1818. RIC, v.33, 1919. p.308. 218 DHBN, v.101, 1953. p. 234.

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instruídos por Carvalho sobre a revolução para o Rio de Janeiro, por serem todos elles pedreiros livres, inimigos da religião e do Estado”.219 Como se percebe, as denúncias chegam a sugerir que Feijó fora mandado ao Rio de Janeiro como emissário da conspiração, mas é difícil confirmar se ele assumira tal papel.220 Que Feijó foi maçom, a documentação demonstra plenamente. Ele e uma parte expressiva da elite intelectual do período, diga-se de passagem. É muito provável que Feijó tenha aderido à maçonaria ainda jovem, quando vivia em Lisboa. No período em que esteve no Rio de Janeiro, no gozo de sua primeira licença, a faceta maçônica do naturalista parece ter reaflorado. Se está correta a tese de A. H. de Oliveira Marques, de que D. Rodrigo de Souza Coutinho era maçom e teria iniciado muitos dos jovens intelectuais brasileiros como José Bonifácio e Hipólito da Costa Pereira, é até plausível supor que a ida ao Rio de Janeiro tenha significado a sua reintegração ao grupo do próprio ministro. Em qualquer caso, de acordo com o que propugna Evaldo Cabral de Mello, o período em que o naturalista permaneceu no Rio foi exatamente o da reestruturação da maçonaria fluminense. À reestruturação em Portugal, seguiu-se a do Rio, cujas lojas, fechadas em 1806 no governo do conde dos Arcos, reabriram após a chegada do Príncipe Regente, graças à tolerância e à cumplicidade de altos funcionário do regime, como D. Rodrigo de Souza Coutinho, que como vários outros, era tido e havido na conta de pedreiro-livre ou, ao menos, de simpatizante.221

Assim, a inserção nas redes de sociabilidade maçônica teria aberto portas a Feijó, permitindo a ele publicar em jornais como O Patriota e assegurado, mais tarde, o retorno em definitivo à sua terra natal. Certa historiografia brasileira mais antiga, e freqüentemente de corte maçônico, nos acostumou a fazer a identificação imediata entre a maçonaria e determinadas adesões políticas, entre

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219 RIHGB, v.38, 1875. p.161 e 167. 220 Evaldo Cabral de Mello desconsidera essa hipótese. Diz que o foco do envio de emissários foram as outras capitanias do nordeste e que para o Rio de Janeiro fora enviado apenas Domingos Teotônio Jorge. MELLO, Evaldo Cabral. A outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004. p.46. 221 MELLO, op. Cit. p.36

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elas a defesa da independência do Brasil. Mais recentemente, historiadores como Renato Lopes Leite, Alexandre Mansur Barata e Evaldo Cabral de Mello têm chamado a atenção para o fato de que o fenômeno da disseminação da maçonaria e a inserção dos maçons nos debates e lutas políticas daquela época é muito mais complexo do que essa historiografia procurou fazer crer. Segundo Cabral de Mello, entre os grupos maçônicos nordestinos, aqueles com os quais o naturalista esteve envolvido, predominou o republicanismo radical, que desembocaria na Revolução Pernambucana de 1817. Como é possível perceber, há uma estranha coincidência entre os movimentos do naturalista e os acontecimentos políticos do período, no qual a maçonaria desempenha um importante papel. Ele chegou a Pernambuco em finais de 1816, poucos meses antes da eclosão da revolta. Chegou inclusive a fazer esforços para permanecer em Recife. As doenças da família podem, hipoteticamente, ser consideradas um subterfúgio para permanecer na capitania.222 A documentação não permite ver com clareza a sucessão dos acontecimentos, mas parece que ele solicitou sua nomeação para o cargo de naturalista da coroa em Pernambuco. 223 Todavia, Feijó partiu para o Rio de Janeiro pouco antes início do movimento republicano. O que pode sugerir duas possibilidades, com características opostas. Uma, a de que tenha funcionado como um emissário dos revolucionários. Outra, a de que não tenha pactuado com a ala radical republicana da maçonaria pernambucana, preferindo não se envolver com a iminente revolta.

5. Um espaço público moderno No início de 1817, Feijó já estava estabelecido no Rio de Janeiro. Foi convocado, em março daquele ano, para integrar uma comissão incumbida de avaliar o interesse e o valor de “uma collecção de conchas não vulgares, e de outras de agathas orientaes”, cujo dono as queria vender para o Real Gabi-

222 NOBRE, op. Cit., p.149. 223 COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Investigações sobre mineralogia, flora e fauna de Pernambuco. Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano. v.14, 1909. p.549.

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nete de Mineralogia. D. Rodrigo de Souza Coutinho criou a Real Academia Militar do Rio de Janeiro em 1810. O primeiro Presidente da Junta Diretora da Academia e autor dos seus estatutos foi o nosso já conhecido Carlos Napion. No mesmo ano, o conde de Linhares criou também o Real Gabinete de Mineralogia, para abrigar a Coleção Werner, trazida de Portugal a propósito da transferência da corte. Em 1818, o âmbito do gabinete foi ampliado para abrigar coleções de história natural em geral e passou a chamar-se Museu Real. Este foi o núcleo básico de formação do Museu Nacional do Rio de Janeiro. A comissão encarregada de estudar a compra do acervo para o Gabinete era integrada por Feijó, pelo barão de Eschwege e, mais tarde, pelo botânico Leandro do Sacramento. Eschwege e frei Leandro eram figuras de grande prestígio científico, o que nos permite supor que Feijó também o fosse. Atuar em alguma das instituições criadas no Rio de Janeiro em decorrência da transferência da corte para a cidade era o máximo da distinção científica a que podia almejar um intelectual da época. Os professores das academias tinham os mesmos privilégios dos lentes da Universidade de Coimbra, e dela eram oficialmente considerados membros. As vagas, no entanto, eram mais do que restritas. Na área da zoologia e da botânica, o ensino na Academia Militar estava a cargo do frei José da Costa Azevedo. Na Academia Médico-Cirúrgica, o professor era o frei Leandro do Sacramento, que se tornou famoso por também dar cursos ao ar livre no Passeio Público, que atraíam dezenas de curiosos.224 Em outubro de 1817, saiu a nomeação de Feijó para o cargo de naturalista da capitania de Pernambuco.225 No entanto, como vimos, ele não assumiu o cargo. Muito provavelmente, os recentes acontecimentos políticos no Nordeste desaconselhavam o seu retorno à região. Por outro lado, apesar das denúncias do governador do Ceará, não há indício de que tenha sofrido qualquer tipo de perseguição. De fato, tudo indica que conseguiu inserir-se rapidamente no meio científico local, o que lhe garantiu atuar na Academia Militar do Rio de Janeiro.

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224 ROQUETTE-PINTO, Edgar. Ensaios brasilianos. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1940. p.45-47. 225 Ver COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Anais Pernambucanos. Recife: Governo do Estado de Pernambuco, 1983. v.2, p.142.

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Mais uma vez, as fontes são silenciosas e as referências documentais diretas sobre sua presença na Academia são escassas. O historiador militar Francisco de Paula e Azevedo Pondé localizou nos arquivos da Escola de Engenharia da UFRJ os primeiros livros de registro da Academia Real Militar, os Livros de Matrículas e os Livros de Portarias e Ofícios, que cobrem o período de 1811 a 1830. Esses têm sido os instrumentos básicos de pesquisa dos primeiros anos da Academia. Não foi possível consultar essas fontes, todavia, nenhum dos estudiosos que trabalhou com elas refere-se à atuação de Feijó na instituição de ensino militar. O historiador José Carlos de Oliveira também fez um levantamento dos professores no período inicial de funcionamento da instituição e não incluiu Feijó em suas listagens226. Dificuldade semelhante encontrou Souza Nobre.227 Assim, a presença do naturalista naquela instituição de ensino é polêmica e vinha sendo inferida por registros documentais muito tênues. Na Coleção Descritiva das Plantas da Capitania do Ceará, ele se qualifica da seguinte forma: “João da Sylva Feijó Naturalista de S. Mage Encarregado dos Exames, e Investigações Philosophicas dos objetos do Bem Publico da mesma Capitania e Lente de Historia Natural na Rl Academia Militar do R. de Janrº”.228 As historiadoras Maria Margaret Lopes e Clarete Paranhos da Silva localizaram no Museu Nacional do Rio de Janeiro outro documento que confirma a atuação de Feijó como professor. Em 1822, encontramo-lo já como Tenente Coronel do Corpo de Engenheiros e lente de História Natural, Zoológica e Botânica da Academia Militar, solicitando ao já ministro José Bonifácio de Andrada e Silva “franquear as salas do Museu Nacional, para lá serem feitas demonstrações práticas de espécimens de História Natural, um dia por semana”.229 226 OLIVEIRA, José Carlos de. D. João VI, adorador do Deus das ciências?: a constituição da cultura científica no Brasil (1808-1821) Rio de Janeiro: Editora E-papers, 2005. p.198-215. 227 NOBRE, op. cit., p. 156 e ss. 228 BNRJ, 5,4,32, nº 11. NOBRE, G. S. Estudos sobre a Coleção Descritiva das Plantas da Capitania do Ceará. Fortaleza: Grecel, 1984. 229 LOPES, Maria Margaret; SILVA, Clarete Paranhos . Investigações em História Natural no Ceará: os estudos do naturalista João da Silva Feijó (1760-1824). Revista de Ciências Humanas (Taubaté), v. 9, 2003. p.69-75. Museu Nacional do Rio de Janeiro, n. 11, Pasta 1.

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Uma vez que continuou autoqualificar-se como encarregado dos “exames e investigações filosóficas” da Capitania do Ceará, é de se presumir que tenha mantido o vínculo formal, o salário e a patente referentes àquela capitania. Na época, isto era perfeitamente normal. Basta lembrar que Alexandre Rodrigues Ferreira, apesar de diretor de fato do Jardim Botânico da Ajuda, recebia salário como selador da alfândega do Maranhão.230 O fato de Feijó ter continuado a receber remuneração como tenente-coronel da milícia do Ceará ajuda a explicar o silêncio documental sobre a sua atuação na Academia. No entanto, não há dúvidas, de que ele foi professor da instituição. A nomeação do naturalista para o posto apareceu tanto na imprensa do Rio de Janeiro quanto na de Portugal. Uma edição da Gazeta de Lisboa, de 1818, reproduziu diversos despachos oficiais que constavam de número extraordinário da Gazeta do Rio de Janeiro de 26 de janeiro de 1818, entre eles os de nomeações de professores da instituição de ensino militar. 231

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230 AHU, Maranhão, Cx.113, D 8819. 231 Gazeta de Lisboa, n.107, 7 de maio de 1818.

Tanto na Universidade de Coimbra como nas diversas academias portuguesas, uma das tarefas atribuídas aos professores era a compilação ou tradução do material didático a ser adotado nas aulas. Na Real Academia Militar do Rio de Janeiro não foi diferente. Os manuais didáticos representaram uma parte significativa das obras editadas nos primeiros anos da imprensa estabelecida por D. João no Rio de Janeiro. No entanto, uma fonte apócrifa que fazia a crítica do estado da Academia em 1815, lamentava a demora com que os manuais estavam sendo organizados ou traduzidos.232 Na estrutura curricular da Academia Militar, a cadeira de Mineralogia e a de Zoologia e Botânica situavam-se respectivamente no sexto e no sétimo anos e, portanto, os compêndios demoraram mais ainda a serem organizados. Em 1800, o bispo Azeredo Coutinho criou em Olinda um seminário em que a estrutura curricular, de cunho iluminista, se inspirava na reforma da Universidade de Coimbra. Uma das novidades era o ensino regular de filosofia natural, diga-se ciências naturais, que ficou a cargo do padre José da Costa Azevedo. Com a criação da Academia Militar, Azevedo foi chamado de volta ao Rio de Janeiro, de onde era natural, para assumir o ensino de Zoologia e Botânica. Tudo indica, porém, que sua inclinação era pelos estudos mineralógicos. Como vimos, ele cedeu espaço a Feijó e foi transferido para a cadeira de Mineralogia, acumulando a função de Inspetor do Gabinete mineralógico. Logo a seguir, com a criação do Museu Real, foi promovido à condição de diretor da instituição. Costa Azevedo encarregou-se de organizar o compêndio que seria utilizado no sexto ano da Academia Militar: Elementos de Mineralogia segundo o Método de Werner. A obra, contudo, permaneceu inédita.233 Feijó também se incumbiu de organizar um compêndio destinado ao ensino da sua disciplina. Segundo Adrian Balbi, “Dans ses élémens de zoologie et de botanique, qu´il a composés pour ses éleves, mais qui ne son pas encore imprimés, il a suivi le systéme de Cuvier pour la zoologie et celui de Linnée pour la botanique”.234 Como Balbi nunca esteve no Brasil só pode ter 232 Memória histórica e política sobre a creação e estado actual da Academia Real Militar. 1815. RIHGB, v.236, 1957. p.450-469. 233 BALBI, op. Cit. v.2, p.LVI. 234 BALBI, op. Cit. v.2, p.LIII.

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conhecido o manual através de alguma cópia feita a mão. Ainda era freqüente, à época, que manuais didáticos circulassem em cópias manuscritas, passadas de aluno para aluno, ou de interessado para interessado. É curioso perceber que a cópia do compêndio de História Natural, de autoria de Feijó, usada na transcrição que integra a presente obra, era de propriedade do frei José da Costa Azevedo. Com a criação da Academia, a publicação dos manuais de geometria, matemática, física e química adotados nos primeiros anos do ensino, quase todos traduções de obras francesas recentes de Legendre, Lacroix, Monge, Lacaille, Francoeur, Haüy e Fourcroy, ocuparam boa parte da capacidade produtivas dos prelos da Impressão Régia.235 Em 1812, saiu da gráfica as Variações dos triângulos esphericos, de Manuel Ferreira de Araújo Guimarães.236 Este pequeno tratado, elaborado para uso didático na Academia, foi o “primeiro trabalho original de ciência escrito por um brasileiro, impresso no Brasil”.237 Guimarães foi o idealizador e editor da revista O Patriota, da qual, como vimos, Feijó foi um assíduo colaborador. É de se supor que essa colaboração passada tenha contribuído para que o naturalista fosse integrado nos quadros da Academia Militar. Os manuais de Mineralogia e de Zoologia e Botânica, organizados por José da Costa Azevedo e por João da Silva Feijó, não tiveram a mesma sorte e, como vimos, nunca chegaram a ser impressos. Quando eles ficaram prontos, os tempos já eram outros. A Imprensa Régia estava cada vez mais saturada e não dava conta de atender a crescente procura. A tímida abertura política provocada pela Revolução Liberal ampliou ainda mais a demanda por impressão. Além disso, a Academia Militar não ocupava mais o centro das atenções. Vivia-se já a conjuntura que levaria à independência e a elite intelectual da época estava cada vez mais ocupada com outras questões.

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235 Ver CAMARGO, Ana Maria de Almeida e MORAES, Rubens Borba. Bibliografia da Impressão Régia do Rio de Janeiro, 1808-1822. Volume 1. São Paulo: Edusp, 1993. 236 GUIMARÃES, Manuel Ferreira de Araújo. Variações dos triângulos esphericos. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1812. 237 MORAES, Rubens Borba. Livros e bibliotecas no Brasil colonial. Rio de janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1979. p.111.

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No olho do furacão O naturalista João da Silva Feijó foi um homem do seu tempo e participou plenamente do turbilhão político que, naquele período, se abateu sobre o Império Português como um todo, mas especialmente sobre o Brasil, Rio de Janeiro à frente. A virada da década de 1810 para a de 1820 representou um momento de aggiornamento político. A monarquia portuguesa dava os seus últimos suspiros, como já acontecera com a maior parte das monarquias do Ocidente, golpeada, entre outras coisas, por novas formas de debate político que lhe escapavam do controle, conforme apontou o historiador Marcos Morel. As maçonarias e a República das Letras – com suas diferenças e pontos em comum – constituíram o embrião do “reino da crítica” e de um espaço público moderno, na concepção de Koselleck (1979) e Habermas (1983). Em outras palavras, de um espaço onde se travavam discussões políticas diante do poder constituído e fora do controle hegemônico das monarquias absolutistas.238

A questão da maçonaria tornara-se especialmente candente. Em fevereiro de 1818, num gesto de conciliação, D. João ordenou o encerramento da devassa referente ao episódio revolucionário pernambucano de 1817.239 No entanto, em 30 de março assinou o alvará que proibia o funcionamento de sociedades secretas, em particular as maçônicas, enquadrando os participantes no crime de lesa majestade. Se a maçonaria e a República das Letras representavam o embrião de uma nova forma de espaço público, não podemos deixar de pensar na ‘modernidade’ de Feijó. Era exatamente nesses espaços que o naturalista transitava. O associativismo dos letrados no Brasil colônia já vinha de longa data, estabelecendo uma persistente tradição de tentativas falidas ou abortadas de criação de academias nas colônias. A última delas era bastante recente. O advogado

238 MOREL, Marco. Sociabilidades entre Luzes e sombras: apontamentos para o estudo histórico das maçonarias da primeira metade do século XIX. Estudos Históricos, n.21, 2001. p.8. 239 MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste 1817: estruturas e argumentos. São Paulo: Perspectiva, 1972. p.63.

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e acadêmico Luís Antônio de Oliveira Mendes tentou criar, em 1810, uma instituição congênere à Academia das Ciências à qual pretendia dar o nome de Real Sociedade Bahiense dos Homens de Letra. Apesar de contar com chancelas poderosas, como as de Vandelli e José Bonifácio, o propósito foi abortado com um simples despacho apenso ao projeto dos estatutos: “Não há que deferir”.240 Em 1821, um grupo de intelectuais composto por Januário da Cunha Barbosa, Joaquim Gonçalves Ledo, Padre Damaso, Amaro Batista Pereira, Diogo Soares de Bivar, José Silvestre Rebello e João da Silva Feijó assinou uma petição ao Príncipe Regente pedindo autorização para estabelecer no Rio de Janeiro a Academia Fluminense de Ciências e Artes, instituição semelhante à Academia das Ciências lisboeta. Em 31 de outubro de 1821, D. Francisco de Assis Mascarenhas, o Conde da Palma, reuniu-se com os interessados na Livraria de El-Rei241, onde comunicou não só que o príncipe aprovara a criação da Academia, mas que ela seria dotada com uma pensão anual de 6.000 cruzados, provenientes da Loteria da Santa Casa de Misericórdia. O príncipe autorizava ainda que as memórias e outros manuscritos existentes nas secretarias de estado que fossem de interesse da nova instituição poderiam ser transferidos para sua biblioteca. Por fim, a instituição foi autorizada a utilizar os prelos da Imprensa Régia.242 A Academia estabelecida naquele ato tinha por presidente o próprio conde da Palma, como secretário e vice Ledo e Januário, por tesoureiro o padre Damaso, enquanto Batista, Rebello, Feijó e Bivar seriam os censores.243 O vínculo entre a nova instituição e a maçonaria é evidente. O cargo honorário da presidência e o controle do cofre ficaram com pessoas tuteladas por D. Pedro enquanto os cargos de controle da Academia propriamente dita ficaram com a cúpula de uma das facções maçônicas do Rio de Janeiro.244.

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240 BNRJ, II-34,8,5 241 A futura Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 242 AZEVEDO, Manuel de Moreira. Sociedades Fundadas no Brasil desde os tempos coloniais até o começo do atual reinado. RIHGB, v.48, 1885. p.279-280. 243 O que hoje corresponde ao conselho editorial. 244 A única dúvida é se Amaro Batista Pereira era maçom, pois os demais todos o eram.

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Feijó não ficou alheio ao processo que conduziria à criação do Império do Brasil, com D. Pedro no trono. Como já vimos, o naturalista era maçom de longa data, provavelmente o mais antigo “pedreiro livre” em atuação nesta conjuntura. Aderira à maçonaria havia perto de 40 anos. Fora denunciado em Cabo Vede e se envolvera na criação de uma loja no Ceará. No entanto, constatar que Feijó era maçom não traz maiores esclarecimentos à sua biografia. Como já advertiu Alexandre Mansur Barata, tendemos a padronizar os integrantes do movimento maçônico, como se não houvesse “a possibilidade de cisões e projetos políticos divergentes” entre eles. Podemos dirigir a Feijó, os mesmos questionamentos lançados pelo historiador à maçonaria em geral. Em que medida os maçons das lojas que funcionavam, sobretudo no Rio de Janeiro, estavam envolvidos nos debates relativos ao futuro do Império Português. Quais as saídas propostas pelos maçons para a crise vivenciada? Quais eram os seus projetos? Seria possível pensar a atuação dos Maçons de forma unificada?245

Infelizmente as fontes disponíveis não permitem responder à maior parte dessas questões, que podem ser resumidas a uma única: que tipo de maçom foi Feijó? Em resposta, o que pode ser feito são especulações, cujas bases documentais são frágeis. As acusações feitas a Feijó no Ceará podem levar à suposição de que ele integrava o grupo de pedreiros livres nordestinos que defendiam opções republicanas mais radicais e de cunho regional, desvinculadas da proposta de constituição de um estado nacional brasileiro. Se as hipóteses de Evaldo Cabral de Mello estão corretas, os maçons radicais pernambucanos caracterizavam-se pela oposição ao eixo maçônico França-Portugal-Rio de Janeiro, vinculando-se diretamente à maçonaria britânica. Isso ajuda a explicar o radicalismo antiportuguês pernambucano. Por algum motivo, o naturalista não permaneceu em Pernambuco e, ao retornar ao Rio de Janeiro, aproximou-se do grupo maçônico de Joaquim Gonçalves Ledo, que inicialmente também pregava uma solução republicana

245 BARATA, Alexandre Mansur. Maçonaria, sociabilidade ilustrada e independência do Brasil; 1790 – 1822. São Paulo: Annablume, 2006.

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para o Brasil. No entanto, estes republicanos integravam o ambiente maçônico do Rio de Janeiro, no qual predominava a proposta de constituição de um estado unitário e centralizado. Cabral de Mello chega mesmo a duvidar da existência de fato do “mofino republicanismo fluminense”, do grupo de Ledo. Afirma que tal republicanismo foi antes uma invenção dos Andradas, para satanizar o grupo rival. 246 De fato, é difícil acreditar em um Feijó radical republicano e, muito menos, anti-lusitano. Afinal, ele era cria da mais tradicional maçonaria portuguesa. Apesar de pertencer a uma geração um pouco mais velha, integrou os quadros de intelectuais luso-brasileiros arregimentados por D. Rodrigo de Souza Coutinho. Sabe-se que essa intelectualidade, formada em Coimbra nas últimas décadas do século XVIII, embora nutrisse amplas expectativas em relação ao ‘progresso’ e ao desenvolvimento econômico da colônia do Brasil, pertencia a uma elite que, via de regra, seguia padrões de lealdade à coroa, da qual era ‘servidora’. Grande parte desses colonos ilustrados foi copartícipe das políticas da metrópole e estava longe de nutrir qualquer inconformismo independentista. Quase todos, inclusive Feijó e José Bonifácio, antes de serem partidários da independência do Brasil tinham em mente a constituição de um Grande Império Luso-Brasileiro. A independência foi uma solução drástica, à qual muitos aderiram na última hora.247 Independentemente do momento em que aderiu à proposta da independência, percebe-se que Feijó foi uma figura ativa no processo que levou à ruptura e nos momentos que se seguiram a ela. A historiografia oficial maçônica consagrou o dia do ‘Fico’ como o coroamento de uma ação concertada pelas lojas cariocas, com vistas à independência do Brasil. Atualmente, esta visão unitária é questionada por muitos historiadores. Segundo Renato Lopes Leite, “a unidade em torno do Fico é uma invenção simbólica do imaginário político da

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246 MELLO, op. Cit., p.13. 247 A historiadora Maria de Lourdes Viana Lyra deu um contributo original para se pensar a permanência da idéia de Império entre as elites políticas do Brasil, mesmo após a emancipação da colônia. Ver LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1994.

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época”.248. São fortes os indícios de que o grupo de Joaquim Gonçalves Ledo e José Clemente Pereira, entre outros, pregava que o príncipe D. Pedro se retirasse do Brasil, com vistas à implantação de uma república. Assim, a adesão desta facção ao movimento que levou ao ‘Fico’, em 9 de janeiro de 1821, foi antes uma derrota ou uma atitude de ‘real politcs’. De qualquer forma, Ledo, Pereira, Januário da Cunha Barbosa, entre outros republicanos, assinaram o Manifesto do Povo do Rio de Janeiro, que pedia a permanência do Príncipe D. Pedro no Brasil.249 Feijó também foi um dos signatários do documento. Além disso, o naturalista participou da reorganização da maçonaria após a independência. Em julho de 1822, a antiga Loja Comércio e Artes foi dividida em três (Comercio e Artes na Idade de Ouro, União e Tranqüilidade, Esperança de Niterói) e criado o Grande Oriente do Brasil. Feijó passou a integrar a loja União e Tranqüilidade e foi um dos signatários da criação da obediência maçônica brasileira. Apesar de pertencer ao grupo mais radical da maçonaria do Rio de Janeiro, ele não se inclui entre aqueles listados na devassa ordenada por José Bonifácio contra os acusados por conspiração, em novembro de 1822, a qual resultou na prisão de diversos líderes maçônicos. Na época, com 62 anos de idade, Feijó não ocupou nenhum papel de liderança. Junto com Gonçalves Ledo deve ter-se afastado do republicanismo acomodando-se ao estatuto de monarquia constitucional adotado no novo império do Brasil. Um pequeno detalhe chama atenção. Ao contrário de todos os seus parceiros de maçonaria, Feijó aparentemente nunca teria adotado um nome simbólico. Januário da Cunha Barbosa era “Kant”, Joaquim Gonçalves Ledo atendia por “Diderot”, e José Clemente Pereira adotou “Camarão”, em homenagem ao Filipe das guerras holandesas. José Bonifácio de Andrada e Silva era o “Pitágoras” e até D. Pedro assumira o nome fantasia de “Guatimozin”, o último imperador asteca do México.250 Todavia, quando se trata de Feijó, até em detalhes como este os pesquisadores encontram problemas. O nome simbólico

248 LEITE, Renato Lopes. Republicanos e libertários: pensadores radicais no Rio de Janiro. (1822) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p.51. 249 AHU, Rio de Janeiro, Cx.283, D125. BARATA, op. cit, p. 212. 250 Ver listagem dos nomes iniciáticos dos maçons do período em BARATA, op. Cit, p.300 e ss.

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de João da Silva Feijó supostamente não é conhecido. No entanto, pode estar havendo um erro de apreciação entre os estudiosos. Diria que, muito provavelmente, o nome simbólico de Feijó na maçonaria era “Feijó”. Ou seja, que o criptonome do naturalista tornara-se o seu nome público e, portanto, não havia como ou porque escolher um outro nome maçônico. João da Silva, seja lá qual tenha sido o seu outro sobrenome, faleceu um ano e meio depois de o Brasil tornar-se independente. Sobre a morte do naturalista, diz Paulino Nogueira, seu primeiro biógrafo: O que sei é que faleceu na Corte, já no posto de Coronel, no dia 10 de Março de 1824, e foi sepultado na sepultura nº 24 dos claustros da Capela de Nossa Senhora da Consolação, do Rio de Janeiro, da Ordem 3ª de S. Francisco de Paulo.251

Feijó, no entanto, não deixou a vida para entrar na Glória, ou na História. Ao contrário de muitos dos integrantes da intelectualidade lusobrasileira do período, que passaram a ser glorificados no Panteão dos vultos nacionais, a freqüentarem os compêndios escolares e a serem polemizados pela historiografia especializada, Feijó deslizou para o limbo do esquecimento, de onde a presente obra pretende regatá-lo. Com ele, resgatar também um fragmento expressivo da memória científica do Grande Império Lusitano com o qual muitos dos “filósofos” luso-brasileiros haviam sonhado.

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251 NOGUEIRA, op. Cit, p.276. A data aparece também em SILVA, Diccionario, op. Cit. t.IV, p.35.

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