PEREIRA, Mateus H. F. A Máquina da Memória/Almanaque Abril: o tempo presente entre a história e o jornalismo. Bauru: EDUSC, 2009. 312p .

June 28, 2017 | Autor: Mateus Pereira | Categoria: History, Historiography, Historia, História, Memoria, Historiografia, Almanaques, Historiografia, Almanaques
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A Máquina da Memória O tempo presente entre a história e o jornalismo

CONSELHO EDITORIAL

Prof. Ms. Rodrigo Antonio Rocha – Presidente Prof.ª Dr.ª Irmã Elvira Milani Prof.ª Ms. Irmã Ilda Basso Prof.ª Ms. Irmã Susana de Jesus Fadel Prof. Esp. Alexandre de Oliveira Irmã Irene Cavassin Prof. Dr. Marcos da Cunha Lopes Virmond Prof. Dr. José Jobson de Andrade Arruda – Editor

A Máquina da Memória O tempo presente entre a história e o jornalismo

Mateus Henrique de Faria Pereira

Rua Irmã Arminda, 10-50 CEP 17011-160 - Bauru - SP Fone (14) 2107-7111 - Fax (14) 2107-7219 e-mail: [email protected] www.edusc.com.br

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Pereira, Mateus Henrique de Faria. A Máquina da Memória: o tempo presente entre a história e o jornalismo. / Mateus Henrique de Faria Pereira./ -- Bauru, SP: EDUSC, 2009. 312 p.; 23 cm -- (Coleção História) Inclui bibliografia ISBN 978-85-7460-358-2 1. Almanaque Abril 2. História – tempo presente 3. Evolução histórica I. Título II. Série CDD 920.081

Copyright© EDUSC, 2009

Figura 1 – “A máquina da memória.”

Fonte: Placar. São Paulo: Abril, n. 710, p. 73, 30 dez. 1983.

Dedico este trabalho à minha avó, Juscelina, que, mesmo sem saber ler, me ensinou a amar os livros e a leitura; à minha mãe, por ter me dado a vida, amor e atenção; e à minha filha, por existir.

Os historiadores confiam demais na sabedoria adquirida com a distância, acreditando que esta de algum modo confere objetividade – um daqueles valores inatingíveis nos quais depositam tanta fé. Talvez haja algo a dizer com relação à proximidade. Simon Schama

Expliquemos o mundo ao mundo. Por meio da história. Mas que história? Peço aos historiadores, quando estes vão trabalhar, que nunca se façam colecionadores de fatos, ao acaso. Peço-lhes que nos dêem uma História não automática, mas problemática. Lucien Fevre

A mais importante diferença entre os homens das sociedades arcaicas e tradicionais, e o homem das sociedades modernas, com sua forte marca de judeucristianismo, encontra-se no fato de o primeiro sentir-se indissoluvelmente vinculado com o Cosmo e os ritmos cósmicos, enquanto que o segundo insiste em vincular-se apenas com a História. Mircea Eliade

Este livro originou-se de uma tese de doutorado defendida junto ao Departamento de História da UFMG, em 2006. O texto foi escrito em vários espaços e tempos. Tenho uma dívida enorme com uma infinidade de pessoas. Infelizmente, na dialética da lembrança e do esquecimento, nesse caso, há uma vitória desse último. Peço a compreensão daqueles que aqui foram esquecidos. Essa longa trajetória começou em 1996, quando, com 18 anos, ingressei no curso de História da UFMG. Nesse sentido, em primeiro lugar, devo agradecer à Universidade pública e gratuita por ter me acolhido ao longo de dez anos. Em segundo lugar, devo agradecer à professora Eliana Dutra pela paciência, atenção, pelo carinho, pela competência e pelo rigor com que me orientou desde a iniciação científica, em 1999. Não há palavras que possam expressar minha admiração e gratidão por sua orientação e amizade ao longo desses anos. Gostaria de agradecer aos professores Carla Anastasia, Cristina Campolina, Efigênia Resende, Francisco Vinhosa, Heloisa Starling, José Dabdab, José Raimundo, Luiz Arnaut, Regina Helena, Rodrigo Patto e Ronaldo de Noronha. Em especial, gostaria de agradecer à professora Maria Elisa, pois muitas questões aqui presentes são, de certa forma, tentativas de responder às suas indagações; e ao professor José Carlos Reis, por suas constantes questões e pelo talento de nos fazer pensar. Agradeço também aos professores Luiz Carlos Villalta e João Pinto Furtado pelas questões, críticas e sugestões ao texto, apresentadas no exame de qualificação que me conduziu do mestrado para o

doutorado. Agradeço ainda ao professor Eduardo Paiva pelas dicas preciosas para a realização do meu estágio na França. Aos funcionários da FAFICH, devo imensamente. Agradeço ao Marinho, Alessandro, Vilma, Valteir, Kelly, Ana e Magda. Agradeço aos órgãos de fomento que foram fundamentais para que a minha formação se completasse. À FAPEMIG, pela bolsa de iniciação científica e pelo apoio para a publicação da tese em forma de livro; ao CNPq, pela bolsa de mestrado, e à CAPES, pela bolsa de doutorado e pela bolsa PDEE, permitindo-me estagiar na França por quase um ano. Na França, sou grato ao professor Jean-Yves Mollier por ter me acolhido, orientado e dirigido no “Centre d’Histoire Culturelle des Sociétés Contemporaines”, na Université de Versailles Saint Quentin en Yvelines. Agradeço ao professor Jean Hébrard pela interlocução instigante e constante. Agradeço ainda aos professores que se dispuseram a dedicar um pouco de tempo para discutir meu projeto, em especial a Anne-Marie Chartier, Christian Delporte, Diana Cooper-Richer, François Dosse, Frédéric Barbier, Hans-Jurgen Lüsebrink, Henri Rousso, Jean-François Brotel, Patrick Garcia, Philippe Castellano, Roger Chartier, e Veronique Sarrazin. O contato com esses autores foi fundamental para o desenvolvimento do trabalho e o marcou mais do que havíamos pensado inicialmente. Agradeço à minha família pela paciência com que me aguentou ao longo desses anos; aos meus irmãos Arayan, Raoni, Saulo e Rafael, pelos inúmeros galhos quebrados; aos meus pais, pelo incentivo e auxílio constantes. Agradeço à minha madrinha e ao meu padrinho pela interlocução; à minha vó Iraci, ao tio Roberto e à tia Inamar, pela força de sempre. Agradeço à minha filha, Igraine, pela compreensão que, espero ter um dia, dos momentos em que não pude estar ao lado dela para me dedicar à tese e aos estudos. Mas ela foi, todo o tempo, a luz que me deu força para continuar. Agradeço às companheiras que tive ao longo desses anos. Elas também me deram a atenção e o carinho que precisei para prosseguir. Agradeço à Shirley por sempre ter apoiado meus estudos, por ter me incentivado, pelo carinho e companhia; à Mylene pelas conversas, amizade e companhia; à Geisa pela atenção na hora certa e por ter me ensinado a ser muito melhor; e também à Fernandinha, por ter representado um pouco de esperança quando precisei. Agradeço, em especial, à Alexandra, por ter sido sempre compreensiva e por

ter olhado a nossa filha com todo carinho, atenção e amor de que ela precisou. Agradeço à Adryana, pelo carinho e estabilidade que foram fundamentais para a revisão da tese. Agradeço a todos meus ex-alunos pela compreensão, paciência, pelo estímulo e, principalmente, pelo que me ensinaram. Em especial, aos alunos do curso de história e do mestrado da FUNEDI/UEMG (Divinópolis). Agradeço a todos os colegas e funcionários dessa instituição, em especial, Alexandre, Alyson, Ana Paula, Batistina, Brat, Francisco, Gil, Helena, Janaina, Miriam, Mônica, Paulinho, Pedro, Professor Gilson, Rose, Zé Geraldo. WAgradeço ainda ao Pedro por ter sido mais do que um irmão e à Susane pelo carinho, amizade e companhia nas angústias de nossas teses. Agradeço ao Fernando e à Mirian Sardo por terem me acolhido em São Paulo. Agradeço aos colegas de todas as escolas e faculdades em que lecionei, em especial a Bia, Fábio, Jayme, Lurdinha, Márcia, Moacir, Patrícia, Rita e Sílvia. Agradeço aos amigos, interlocutores e leitores que em muito contribuíram, em especial ao Adalson Nascimento, Álvaro Antunes, Ana Claudia, Bráulio Brito, Carmem Nascimento, Carlinhos, Daniele Lessa, Elza Silveira, Flávia Abreu, Flávia Lemos, Gilson Raslan, João Ricardo, Juliana Catão, Juliana Melo, Leandro Catão, Letícia Julião, Mauro Teixeira (Fofão), Mariza Guerra, Marcus Silveira, Raquel Mello, Rodrigo Rodrigues, Sabrina Santana e Sinara Guimarães. Agradeço à Priscila Antunes pelas críticas e sugestões na parte referente ao Golpe; à Gisela Amorim pelo levantamento de dados, leituras, críticas e sugestões na parte referente aos “anos” Vargas; à Valéria Paiva pela minuciosa leitura da última versão da tese – suas críticas e sugestões fizeram a diferença; à Miriam Hermeto pelas leituras, críticas e sugestões das inúmeras versões e, em especial, da parte referente ao ensino de história; à Ana Mônica pelas leituras, críticas e sugestões das inúmeras versões e, em especial, da parte referente à leitura e às diversas questões teóricas – esse trabalho deve muito às suas leituras, às nossas conversas e à sua competência; à aluna Andreza Cristina pela interlocução e pelo auxílio na formatação e normatização, e à Elisabete Marin Ribas pela paciência e dedicação na coleta de dados referentes aos leitores, junto à Editora Abril. Agradeço à Editora Abril por ter contribuído para a realização do trabalho, em especial ao setor de Relações Cooperativas, por ter franqueado minha pesquisa junto ao Departamento de Documentação da Editora Abril

(DEDOC) e ao Memória Abril. Agradeço ainda à redação do Almanaque Abril pelo apoio, em especial, à Simone Bortolotto. Agradeço a todos os jornalistas que me concederam entrevistas, em especial, Bias Arrudão, Celso Nucci Filho, Josefina Duques, Lauro Machado Coelho, Lucila Camargo, Marília França, Marilda Varejão, Marcia Tonello, Samuel Dirceu e Sheila Mazzolenis. Agradeço aos meus professores de francês, que fizeram o “milagre” de me ajudar a passar na prova da Aliança, em especial ao Leo Babo, Gustavo Coscareli e, principalmente, à Teresa. Agradeço aos professores Jean Hébrard, Tânia Regina de Luca, Manoel Luiz Salgado Guimarães, José Carlos Reis, Luiz Carlos Villalta e a orientadora Eliana Dutra pelas questões, críticas e sugestões na defesa da tese. Procurei, na medida do possível, incorporar algumas das ricas reflexões desses generosos e ilustres leitores. Agradeço à Flávia, Lia e Luiza, pelo carinho e amor em novas terras. À Dolores, Manuel, Guida, João, Paulinho pela hospitalidade e recepção. Aos colegas da UFU pelas rápidas e instigantes trocas. Agradeço ainda a todos os buscadores da verdade.

Sumário



17 Introdução

Capítulo 1 33 “Origens” do sucesso do Almanaque Abril Capítulo 2 73 História editorial de um best-seller brasileiro Capítulo 3 133 Almanaque Abril e a permanência de uma história dita “positivista” ou “tradicional” Capítulo 4 171 Almanaque Abril, acontecimento e tempo presente “terminado” Capítulo 5 219 Almanaque Abril, acontecimento e história do tempo presente “inacabado” 267 Considerações finais 275 Referências

Introdução

O que nos engana é que consideramos qualquer máquina complicada como um objeto único. Gilles Deleuze e Felix Guattari

O Almanaque Abril (1975-2006) pode ser considerado um dos maiores sucessos editoriais do mercado brasileiro contemporâneo. Vender aproximadamente 100 mil exemplares por ano, de 1975 a 2006, não foi um feito qualquer. Como compreender e explicar o feito dessa obra que em sua campanha publicitária de 1984 se definiu como uma Máquina da Memória? Trata-se mesmo, como afirmava o anúncio, de “uma verdadeira máquina para ajudar a você a recordar coisas esquecidas e a conhecer coisas novas”? O que era lembrado e o que era esquecido por essa memória mecânica? Acreditamos que livros como os almanaques de atualidades, presentes na maior parte dos países do mundo no fim século 20, eram (e são) herdeiros de um subgênero da “antiga” literatura dos almanaques urbanos enciclopédicos.1 Articuladas em torno dos eventos e da atualização de dados do ano que se findava, essas obras não perderam uma das características simbólicas desse

1 SARRAZIN, Veronique. Les Almanachs parisiens au XVIIIe siècle: production, commerce, culture. Thèse de l’Université de Paris I, sous la dir. De D. Roche, 1997; BRAIDA, Lodovica. Les Almanachs Italiens. Evolucion et Stéréotypes d’un Genre (XVIe-XVIIe Siècles). In: CHARTIER, Roger; LÜSEBRINK, Hans-Jürgen (Orgs.). Colportage et Lecture Populaire. Imprimés de Large Circulacion en Europe XVIeXIXe Siècles. Paris: IMEC Édition, 1996. p. 183-208.

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tipo de literatura: mostrar e lembrar que o tempo passa, e os anos se sucedem. Não é por acaso que a única seção que praticamente inicia todas as edições da Máquina da Memória é a cronologia do ano que passou. Cremos, assim, que o gênero foi “reinventado” por algumas obras contemporâneas de referência anual de caráter geral, de modo que a palavra almanaque ainda designa algumas publicações deste tipo em países como Itália, Inglaterra, Alemanha, México, Colômbia, Canadá e Estados Unidos.2 Como essas publicações tinham (e têm) apenas um volume, os textos eram (e são) mais curtos do que em uma enciclopédia. Na verdade, essas publicações se encontravam em uma encruzilhada de gêneros: às vezes, um livro do ano das enciclopédias, ou seja, um livro que atualizava as informações e fazia um resumo, uma resenha e uma cronologia dos acontecimentos “mais relevantes” do ano que terminava; às vezes, um manual, dado que havia conteúdos de divulgação científica e de utilização didática; às vezes, um anuário estatístico, porque continha muitos dados e tabelas; às vezes, um atlas, dado o conjunto de mapas, gráficos e bandeiras; às vezes, uma publicação biográfica; e, às vezes, ainda, uma enciclopédia, porque pretendia dar conta “de todo o conhecimento”. Os “antigos” almanaques precisavam se renovar para se perpetuarem e se mostravam, ao mesmo tempo, como fontes para a escrita histórica.3 A esse respeito, o ex-diretor estratégico da Máquina da Memória durante parte da década de 1980 e 1990, Celso Nucci, afirmou que a singularidade da obra residia no fato de que “ela tornava-se, assim, a única ‘enciclopédia’ atualizada jornalisticamente todos os anos, muito mais ágil do que qualquer livro do ano das enciclopédias tradicionais. De certa forma era um registro vivo da história contemporânea”. Celso Nucci conta, ainda, que os jornalistas que trabalhavam na



2 Alguns exemplos de obras de referência anuais e contemporâneas ao Almanaque Abril: Almanaque Mundial (México), Almanaque Anual (Colômbia), Britannica of The Year (Inglaterra), Canadian Global Almanac (Canadá), Libro del A–o Barsa (Espanha), The CBS News Almanac (Estados Unidos), The All Street Journal Almanac (Estados Unidos), The World Almanac: and book of facts (Estados Unidos), The Europa World Year Book (Inglaterra), The International Year Book and Statesmen’s Who’s Who (Inglaterra), The New York Times Almanac: The Almanac of Record (Estados Unidos), Whitake’s Almanack (Inglaterra), L’État du Monde (França), Quid (França).



3 SARRAZIN, 1997, p. 80-81.

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publicação costumavam “dizer na época que ‘daqui a muito tempo, uma coleção antiga de Almanaques Abril será uma fonte de pesquisas indispensável’”.4 Apesar da separação clara entre os terrenos do historiador e do jornalista, da memória e da história, no depoimento mencionado, entendemos que isso não ocorre quando observamos o conteúdo da publicação. Essa dificuldade nos conduziu, como se verá nas páginas que se seguem, a um problema semelhante ao que Benedetto Croce formulou, em 1916, ao questionar a oposição entre história e crônica. Para ele, atribuía-se à segunda o papel de relatar os fatos “individuais”, enquanto a primeira se fixava nos fatos “gerais”, como se o geral não fosse sempre individual e o individual, geral. O autor afirmava, ainda, que se atribuía à história a narrativa dos fatos “importantes” (acontecimentos memoráveis) e à crônica, a narrativa dos fatos “não importantes” – como se a importância dos eventos não fosse relativa às situações em que o observador se encontrava. Tratava-se, para ele, de duas formas de história que se complementavam mutuamente sem qualquer tipo de subordinação. Essas duas “atitudes espirituais diferentes”5 são hibridizadas de diversas formas ao longo da história da edição da Máquina da Memória. O resultado é um conjunto complexo, de difícil apreensão, de histórias e memórias híbridas. Nesse aspecto, apoiamonos na reflexão de Nestor Garcia Canclini quando destaca que hibridação não é sinônimo de fusão sem contradições: “entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”.6 Utilizando outro vocabulário, na década de 1970, Michel de Certeau nos esclarece que o “discurso histórico” é uma montagem de outros “discursos”, que se produz em função de dispositivos muito variados, como o estilo indireto, o relato, as aspas, a ilustração, dentre outros recursos. Dessa forma, pode-se afirmar que o “passado” representado é o efeito do modo pelo qual o “discurso histórico” conduz sua relação com a crônica.7 Indo à direção

4 Celso Nucci Filho, entrevista escrita ao autor, 29 abr. 2002.



5 CROCE, Benedetto. História e Crónica. In: GARDINER, Patrick. Teorias da História. Lisboa: Gulbenkian, 2004. p. 280-283.



6 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 2006. p. XIX.



7 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 118.

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semelhante, Krzystof Pomian afirmou que o relato dos acontecimentos no mundo contemporâneo “é apanágio do jornalista, que desempenha a função do antigo cronista, notando os eventos à medida que se verificam. É também apanágio do historiador-escritor, que conta a um vasto público os eventos sucedidos no passado”. Ambos satisfazem uma necessidade vital: conhecer o que aconteceu ontem, há cem anos ou mesmo há vários milênios. Como o relato dos acontecimentos não é “simples descrição de mudanças percebidas, o jornalista e o historiador-escritor dão também um significado àquilo que falam, satisfazem a necessidade de atribuir um sentido ao mundo”.8 Em 1972, o historiador Pierre Nora afirmou que a mídia tornou-se capaz, ao ocupar o espaço do “historiador positivista”, de controlar a produção dos eventos, transformando-os em monstros.9 Passados 30 anos, François Hartog, procurando definir nosso presente histórico, retomou a mesma problemática e afirmou: “tais são os principais aspectos desse presente multiforme e polifônico: um presente monstro. Ele é, ao mesmo tempo, tudo (não há nada além do presente) e quase nada (a tirania do imediato)”.10 A economia mediática do presente não pararia, nesse sentido, de produzir e consumir o evento por meio da particularidade de seu olhar: no momento em que o acontecimento emerge, ele já é observado como histórico, como passado. Tendo em vista essas considerações e o fato de que o evento ganha, desde os anos 1970, uma nova legitimidade como objeto histórico, entendemos que os almanaques são uma fonte privilegiada para se pensar a questão do acontecimento. Afinal, o discurso ao mesmo tempo retrospectivo e seletivo dos almanaques, desde o século 18, reagrupava os acontecimentos de todo um ano, mostrando o desenvolvimento e a “lógica” da história a um público amplo.11 O que as publicações periódicas e os almanaques em particular fazem, então, é exprimir



8 POMIAN, Krzysztof. Ciclo. Enciclopédia Einaudi. Tempo/temporalidade. Impressa Nacional, 1993. p. 231. v. 29.



9 NORA, Pierre. O retorno do fato. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.



10 HARTOG, François. Régimes d’Historicité: Présentisme et expériences du temps. Paris: Seuil, 2003. p. 217.



11 LÜSEBRINK, Hans-Jürgen; MOLLIER, Jean-Yves; GREILICH, Susane (Dir.). Presse et événement: journaux, gazettes, almanachs (XVIIIe-XIXe siècle). Bern: Lang, 2000a.

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uma significação que, em tese, seus leitores demandam e, ao fazê-lo, contribuem para conferir sentidos ao evento.12 Entender os produtos da imprensa como objetos históricos significa, assim, percebê-los situados entre a história cultural, social, econômica e política, considerando que a imprensa é o principal meio de construção de temporalidades nas sociedades contemporâneas.13 Para pensarmos essas questões, retomamos uma perspectiva já utilizada para a análise dos almanaques como suportes privilegiados que, contendo relações específicas com a temporalidade, podem ser interpretados, ao mesmo tempo, como fonte e objeto.14 Em seu trabalho sobre o Almanaque Brasileiro Garnier, Eliana Dutra afirmou: aqui somos defrontados com a rica problemática da interação entre fonte e realidades históricas, uma vez que, neste trabalho, utilizamos prioritariamente o Almanaque Brasileiro Garnier como fonte e objeto final de estudo. Assim sendo, o que nos interessa, ao trabalharmos com o Almanaque, não é unicamente o que ele nos traz ou nos permite afirmar acerca de algo que se passa fora dele – no sentido que não estamos buscando registros específicos para a construção de um dado acontecimento histórico. Mas, sobretudo, nos interessamos pela historicidade do Almanaque em si mesma (...). Neste sentido, o Almanaque, enquanto um tipo de literatura, não será lido, necessariamente, a partir de um contexto histórico que o contém e/ou ao qual representa, como que presos em uma rede de causalidade e historicidade, mas numa temporalidade própria.15

A partir dessas sugestões, entendemos que o Almanaque Abril apresenta-se como um locus interessante para pensarmos alguns aspectos sobre a relação da sociedade contemporânea com a temporalidade e, em especial, alguns aspectos da relação entre história, acontecimento e tempo presente. Sendo assim, temos como hipótese de investigação que a narrativa do passado, dada a ler nas páginas da publicação em questão, situa-se na confluência da história ensinada, do conhecimento histórico acadêmico e do discurso jornalístico. Pretende-se, assim, compreender e explicar como ocorreram, no interior da Máquina da Memória, alguns cruzamentos dessas três formas de

12 LÜSEBRINK; MOLLIER; GREILICH, 2000a. p. 313-318.



13 CHARLE, Christophe. Le siècle de la presse: 1830-1939. Paris: Éd. du Seuil, 2004.



14 DUTRA, Eliana. Rebeldes Literários da República: História e identidade nacional no Almanaque Brasileiro Garnier (1903-1914). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005. p. 39-41.



15 DUTRA, loc. cit.

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representações do passado no presente histórico. E, a partir dessa pequena escala, procura-se pensar sobre uma questão maior: o que separa e o que aproxima a história e o jornalismo? Como nossa análise é um trabalho histórico sobre uma publicação jornalística contemporânea – o Almanaque Abril, e tendo em vista a complexidade das questões aludidas acima, procurou-se articular nossas questões com alguns dos pressupostos que orientam a “história do tempo presente” francesa. A “história do tempo presente”, de alguma forma, pretendeu não abandonar o presente unicamente aos jornalistas. A desconfiança dos historiadores em relação ao jornalismo e, principalmente, em relação à “tirania da atualidade”, vem de longe. Jules Michelet, por exemplo, afirmava que: “todo aquele que se ativer ao presente, ao atual, não compreenderá o atual”.16 Será que os fatos próximos de nós não podem ser estudados com serenidade ou “objetividade”? Para responder a essa indagação, Marc Bloch propôs a dialética de compreender o passado pelo presente e o presente pelo passado. Conhecer a história às avessas, pelo método regressivo, permitiria ao historiador não se perder na obsessão pelas origens. Ao mesmo tempo, a ciência dos homens no tempo teria que vincular o “estudo dos mortos” com os vivos; a ignorância do passado compromete no presente a própria ação. Nesse sentido, o desconhecimento do presente nasce também da ignorância do passado. Porém, de nada adianta compreender e explicar o passado se nada sabemos do presente. Afinal, “nesta faculdade de apreensão do que é vivo é que reside, efetivamente, a qualidade fundamental do historiador”.17 O desenvolvimento da pesquisa histórica permitiu superar o corte radical entre passado e presente, construído, em fins do século 19, pelos historiadores profissionais, a fim de justificar suas competências de especialistas. Para eles, recusar o estudo do mundo contemporâneo foi uma forma de não serem confundidos com os historiadores amadores: era necessário impor critérios estritos que permitiam dividir os “verdadeiros” historiadores (que criticavam as fontes) e os “amadores” (que confundiam os falsos documentos dos verdadeiros e cometiam anacronismos).18



16 MICHELET apud BLOCH, Marc. Apologia da História, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 36.



17 Ibid., p. 42 e 46.



18 NOIRIEL, Gérard. Qu’est-ce que l’histoire contemporaine? Paris: Hachette, 1998. p. 13-14.

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As reflexões dos Annales foram importantes para que se constituísse uma reflexão sobre o presente histórico. Marc Bloch, por exemplo, questionou a ideia da história como “ciência do passado”, na medida em que não haveria entre o passado e o presente uma ruptura radical, pois, no infinito da duração, o presente é sempre uma forma de passado. O tempo seria, assim, continuidade e mudança simultaneamente, sendo essa a contradição que torna possível o ofício do historiador. Porém, grande parte daqueles que se alinharam aos fundadores dessa escola, posteriormente, desinteressaram-se pela história contemporânea. E foi somente no final da Segunda Guerra Mundial que o interesse pela história próxima foi retomado, ganhando, pouco a pouco, na França e, em boa medida, em diversos países, legitimidade como “história do tempo presente”. Se, como destacou Gérard Noiriel, essa expressão foi progressivamente banalizada, bem como a de “história contemporânea”, foi essa escola histórica que se confrontou, no entanto, com um problema que a historiografia até então deixara de lado: o da relação entre memória e história. É na tensão entre esses dois conceitos que, na visão do autor, a “história do tempo presente” está situada. Esse debate é pertinente para este livro se pensarmos que, por um lado, talvez o jornalismo seja a principal instância produtora e reprodutora da memória do mundo contemporâneo e, por outro lado, que a necessidade da imprensa em julgar e explicar a informação levou à produção de uma história dita “imediata”.19 A “história imediata” de Jean Lacouture era essencialmente filha do jornalismo, e não da história. Ela se confundia com o jornalismo.20 Para evitar a confusão entre os dois ofícios, os historiadores recusaram a expressão, distinguindo-na da história do tempo presente, que procura articular o tempo curto ao tempo longo.21



19 RIOUX, Jean-Pierre. Histoire et journalisme. Remarques sur une rencontre. In: MARTIN, Marc (Dir.). Histoire et médias. Journalisme et journaliste français. 19501990. Paris: Bibliothèque Albin Michel, 1991. p. 192-205.



20 LACOUTURE, Jean. L’Histoire Immédiate. In: REVEL, Jacques; LE GOFF, Jacques; CHARTIER, Roger. La Nouvelle Histoire. Paris: Retz, 1978; CHAUVEAU, Agnès; TÉTARD, Philippe (Orgs.). Questões sobre a história do presente. São Paulo: EDUSC, 1999.



21 FRANK, Robert. Préface. IHTP. Écrire l’Histoire du Temps Présent. Paris: CNRS, 1991. p. 11-18.

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A história do tempo presente, portanto, procura inscrever sua operação historiográfica na duração. No entanto, por não limitar o objeto ao instante, busca pensar e recortar o tempo como descontínuo.22 Essa história procura caminhar em direção de instâncias mais profundas que um simples acesso ao mais contemporâneo, ao efêmero. O presente não é, assim, entendido como um lugar de passagem contínua entre o antes e o depois, mas como uma lacuna, uma brecha, uma possibilidade entre o passado e futuro.23 O tempo é narrado não como um continuum, mas como um momento em que o ser humano se encontra. Essa forma de fazer história pode contribuir para a busca de outros presentes no passado.24 Como esta obra foi alimentada pelas problemáticas da história do tempo presente, alguns dos dilemas que perpassam esse tipo de “fazer história” atravessam verticalmente a reflexão aqui contida. A proximidade temporal do objeto seria uma dificuldade por não permitir hierarquizar, a partir de uma ordem de importância, a massa de dados disponíveis, pois o desconhecimento dos destinos temporais (consequências?) dos fatos estudados poderia impedir que se diferencie o que é epifenomênico do que é histórico.25 Paul Ricoeur mostrou que há certas dificuldades em relação à perspectiva temporal curta, uma vez que o historiador escreve com a sua memória e a de outros em presença.26 Há existência de vivos no momento da exploração dos documentos. A história do tempo presente questionaria o adágio: “em história tratamos quase exclusivamente de mortos de outrora”.27 Neste senti

22 DOSSE, François. Empire du Sens: l’humanisation de la sciences humaines. Paris: La Decouvert, 1995.



23 ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 1991a; DOSSE, op. cit.; PASSERINI, Luisa. La « lacune » du présent. In: FRIDENSON, Patrick. Histoire du temps présent et sociologie: réponse à Alain Touraine. In: Écrire L’Histoire du Temps Present. Paris: CNRS, 1991. p. 35-42.



24 DOSSE, François. Lieux, travail, devoir de mémoire chez Paul Ricoeur. In: ______. Ricoeur. Paris: Editions L’Herne, 2004a. p. 26.



25 Id., 1995, p. 376.



26 RICOEUR, Paul. Remarques d’un philosophe. In: Écrire L’Histoire du Temps Present. Paris: Seuil, 1991a. p. 35-42.



27 RICOEUR, Paul. Memoire: approches historiennes, approche philosophique. Le Débat, Paris, Galimard, p. 59, 2002; RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oublie. Paris: Seuil, 2000. p. 441.

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do, esse tipo de história precisa delimitar um fim, para que haja os mortos. Mesmo que o presente seja entendido como um período flexível em que há lembranças de vivos, é necessário um sentido de fim, de uma data de término para se instaurar um corte entre o passado e o presente, pois, para o filósofo em questão, não existiria história até os dias atuais. Sem esse corte, não seria possível delimitar o lugar dos mortos, a fim de liberar o lugar dos vivos. Mesmo com ele, aliás, os lugares ainda podem ser confundidos.28 Para evitar essa confusão neste livro, decidiu-se utilizar todos os verbos no passado, mesmo sabendo que o Almanaque Abril ainda é publicado. Consideramos o período de 1975 a 2006 sendo um passado que se faz presente. Foram empregados os verbos no tempo presente quando se quis contrapor o tempo da escrita com o “passado” a que se propôs analisar. Tendo em vista essas questões, Ricoeur estabelece uma distinção, utilizada neste livro, para pensar o tempo presente. Ele propõe distinguir, no passado recente, entre o tempo “inacabado” e o tempo “terminado”. O primeiro é cheio de previsões e antecipações para se compreender a história em curso e um aspecto prático deste tempo é a impossibilidade de se consultar livremente os arquivos que, muitas vezes, ainda estão em constituição. No segundo, é perceptível certa cristalização do evento.29 Partilharmos da percepção de que “a história não pertence apenas aos historiadores”30, na medida em que devemos considerar e respeitar todas as modalidades de testemunhos sobre o passado. Nesse sentido, endossamos a seguinte reflexão de Manoel Guimarães: “a história na sua forma disciplinar deve ser considerada como apenas uma das inúmeras formas de elaboração significativa do tempo decorrido, como parte de algo mais amplo que chamaria de ‘cultura histórica como parte de uma cultura da lembrança’”.31 Concorda-se, ainda, que é necessário avançar a reflexão sobre a relação conflituosa entre a memória e a história no interior da história do tempo presente.32 A proposta de valorizar a competência dos historiadores no

28 RICOEUR, 2002, p. 59-61.



29 Id., 1991a, p. 35-42; DOSSE, 1995, p. 376.



30 RICOEUR, loc. cit.



31 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Entre as luzes e o romantismo: as tensões da escrita da história no Brasil oitocentista. In: ______. Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. p. 70.



32 NOIRIEL, 1998.

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tocante à pesquisa em arquivos e à crítica de fontes não é suficiente para diferenciar a história da memória,33 porque cada vez mais se percebe que “há história na memória”.34 A memória coletiva sempre se escreve no presente. É a reconstrução da história passada no tempo presente que permite, através de um jogo de lembranças e esquecimentos, estabelecer uma identidade coletiva, exaltando, muitas vezes com sensibilidade e emoção, elementos comuns a seus membros.35 Ela é, assim, uma reconstrução subjetiva e concreta, ao contrário da reconstrução histórica que visa à universalidade e à abstração, através do esforço de imparcialidade do historiador. O historiador interrogará o passado a partir dos problemas que ele quer “resolver”, destacando conflitos, diferenças e possibilidades. A história-saber, ou disciplina, pode se distinguir da memória por ter como base certos processos e técnicas para explorar suas fontes e pela existência de um corpo de pares que julgam o trabalho dos seus respectivos colegas.36 Cabe perguntar até que ponto essas distinções radicais nos auxiliam a ver a complexidade dos processos de representação do passado no presente. No limite, essas distinções podem levar a pensar que a história só começa quando a memória termina. Para a comunidade de historiadores, a problematização, a crítica documental e a validação coletiva devem estar articuladas para que uma determinada produção seja aceita como produto da história-disciplina: “se nós aplicamos essa definição às numerosas publicações denominadas do ‘tempo presente’, compreende-se melhor porque a maioria das obras escritas por jornalistas revelam a memória, mais do que a história”.37 Essas publicações são



33 NOIRIEL, 1998.



34 RICOEUR, 1991a, p. 36.



35 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944): mito, política, luto e senso comum. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos & abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996. POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.



36 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1990.



37 NOIRIEL, op. cit., p. 212.

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distintas da história-disciplina, não por serem melhores ou piores, mas por representarem o passado de forma diferente, na maioria das vezes, de um modo mais próximo à memória do que à história. No entanto, como nos ensina Paul Ricoeur, não há história sem memória e memória sem história ao afirmar que não há fidelidade sem verdade e tampouco verdade sem fidelidade.38 A partir das reflexões desse filósofo, compreende-se a memória como a presença do ausente, como uma ponte essencial de ligação entre o passado e o presente. É por essa razão que a memória deve ser considerada matriz da história, pois ela é a guardiã da relação representativa do presente ao passado.39 Refletir sobre a memória, tanto individual como coletiva, é uma forma de contribuir para que ela não reste fossilizada diante da compulsão presentista por repetição (podendo abrir-se em direção à memória do outro), e nem se perca diante de uma história teleológica.40 O estudo da memória, no nosso caso da Máquina da Memória, pode, assim, ajudar-nos a pensar formas de ação a partir de nossa relação com o passado, bem como indicar que a pluralidade que a caracteriza também pode ser vista na produção da história, ou, talvez pudéssemos dizer, das histórias. Afinal, tendo em vista a pluralidade de modos de representação do passado no presente, faz sentido ainda pensarmos a história no singular?41 Nossa reflexão pretende fazer parte, portanto, de um amplo movimento de desnaturalização da linguagem, do objeto e dos sujeitos a partir da crítica da separação radical entre o mundo, as coisas e a representação, a natureza e a cultura, negando a hibridação. Compartilhamos, assim, da afirmação de que a história está situada numa terceira margem, em um entre-lugar: “como o rio, a História arrasta as suas margens para seu leito, num trabalho incessante de corrosão, em que figuras de objetos e figuras de sujeitos, coisas e representações, natureza e cultura se entrelaçam e se misturam, remoinham-se, enovelam-se, hibridizam-se”.42 Tendo em vista a complexidade da escrita da história, Manoel Guimarães faz um comentário importante para nossa cami

38 RICOEUR, 2000.



39 Ibidem.



40 DOSSE, 2004a.



41 Para a história da construção da História como singular coletivo, ver Koselleck (1990).



42 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da História. Bauru: Edusc, 2007. p. 29.

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nhada. Para o autor, “a narrativa produzida pelo historiador não pode mais ser vista como desveladora de um real pré-existente e de sua verdade implícita, mas como parte de um complicado processo de elaboração e significação deste real a ser partilhado socialmente”.43 Por outro lado, para Jeanne Marie Gagnebin, algumas questões inquietantes atravessam A memória, a história, o esquecimento (La mémoire, l’histoire, l’oublie) de Paul Ricoeur e que de algum modo, a nosso ver, relacionam-se com as nossas inquietações: “será que a escrita da história (...), não termina por destruir a memória viva em vez de servi-la? Será que a ciência histórica, na sua obsessão com o passado, não tem como alvo oculto a desvalorização do presente – e talvez queira, com isso, nos impedir de assumir os riscos da verdadeira vida?”44 Este livro também dialoga com outro campo de estudo, seguindo os traços abertos pela história da edição e/ou do livro. Ele se põe, nesse sentido, como um exemplar dessa subdisciplina que se encontra em uma encruzilhada de diferentes disciplinas.45 Assim, procurou-se apreender o Almanaque Abril e seus textos de forma complexa. O Almanaque será, ao mesmo tempo, objeto para se pensar questões relativas à literatura de almanaques, à história da edição e da leitura, e fonte para se estudar as questões relativas ao conhecimento histórico, especificamente questões relacionadas à escrita da história efetuada por historiadores e jornalistas, aos conceitos de acontecimento e tempo presente e à permanência de uma determinada concepção de história nas páginas da Máquina da Memória (desde a sua primeira edição, em 1975, até 2006). É a partir dessas questões que se procurou, também, explicar e compreender o sucesso editorial dessa obra produzida por jornalistas. Fiel à proposta de inserir o presente na duração, no primeiro capítulo, procurou-se analisar as “origens” do sucesso do Almanaque Abril, a partir dos



43 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Memória, história e historiografia. In: BITTENCOURT, José Neves; BENCHETRIT, Sara Fassa; TOSTES, Vera Lúcia Bottrel (Orgs.). História representada: o dilema dos museus. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2003a. p.78.



44 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 180.



45 MOLLIER, Jean-Yves. L’histoire de l’edicion, une histoire à vocation globalizante. Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, Paris, n. 43, 2, p. 329-348, 1996.

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nomes almanaque e Abril. Destacou-se, em um primeiro momento, a dupla relação da obra com a tradição dos antigos almanaques enciclopédicos, na medida em que ela ao mesmo tempo herda e reinventa essa tradição. Em um segundo momento, analisou-se a trajetória da Editora Abril, buscando realçar suas relações com a política e a cultura para pensar o lugar do Almanaque nas estratégias políticas, culturais e comerciais da casa editorial. Procurou-se demonstrar como a Máquina da Memória se insere em uma estratégia de ocupação de todos os espaços do mercado editorial brasileiro de grande tiragem e de adaptação de obras internacionais para esse mercado. No segundo capítulo, recuperou-se a história editorial do Almanaque por meio de suas estruturas materiais e de entrevistas com editores, relacionando as transformações dos aspectos formais e de escritura do Almanaque Abril à possível emergência do regime de historicidade presentista. Procurou-se, com isso, explicar e compreender alguns elementos que possibilitam pensar o sucesso desse best-seller brasileiro. Na primeira parte desse capítulo, foram estudadas as fases da história editorial da obra a partir de seus dispositivos materiais. Na segunda parte, apresentou-se uma descrição parcial do que o leitor diz sobre o Almanaque Abril, procurando problematizar a ideia, presente em Michel de Certeau, de que a leitura é uma “tática” em oposição à “estratégia”.46 Nos terceiro, quarto e quinto capítulos, procurou-se entender a relação da Máquina da Memória com o conhecimento histórico. Desse modo, procurou-se pensar, a partir da fonte/objeto, a permanência e as estratégias construídas para superar uma história dita “acontecimental”, positivista e/ou tradicional no ensino de história. Tendo em vista uma análise sobre as polêmicas historiográficas acerca de temas relativos à cronologia, periodização e história tradicional no ensino de história, apresentou-se uma visão geral de como a história foi escrita e reescrita nas páginas do Almanaque Abril. Com o quarto e o quinto capítulos, pretendeu-se contribuir para o debate em curso sobre a transformação da história em memória e vice-versa47 e sobre a questão de que “nas sociedades democráticas, a definição do conteúdo



46 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994a.



47 RICOEUR, 2002.

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e das fronteiras da história não é um apanágio dos historiadores de ofício”.48 Tendo em mente a divisão que Paul Ricoeur faz do tempo presente como “tempo acabado” e “tempo inacabado”,49 analisou-se, no capítulo quatro, como os historiadores e os textos construídos essencialmente por jornalistas do Almanaque Abril tratam dois eventos do tempo presente “terminado”, a Primeira Guerra Mundial e a Era Vargas; e, no capítulo cinco, dois eventos do tempo presente “inacabado”, o Golpe Militar de 1964 e a queda do muro de Berlim. Esses acontecimentos foram escolhidos também em razão da existência de sínteses historiográficas sobre eles. Tendo em vista os objetivos desta obra, não houve interesse pelos eventos em si, nem pela relação entre eles e, sim, pelas questões que eles suscitam a partir da forma como foram postos em perspectiva e narrados pela Máquina da Memória. Cabe realçar, no entanto, que, metodologicamente, este livro insere-se no que Paul Ricoeur denomina grande conquista ou liberdade metodológica do trabalho do historiador: o jogo de escalas, pois indica uma saída para a falsa alternativa que estruturava o trabalho histórico entre os partidários do evento e os da longa duração. O que conta, assim, é o princípio de variação e não a escolha de uma escala particular. Desse modo, em cada escala, veem-se aspectos que não são vistos em outra e cada olhar tem a sua legitimidade.50 Uma peça publicitária do Almanaque Abril 1983, intitulada “remédio contra o esquecimento”, afirmava que na Máquina da Memória seria possível encontrar uma fórmula eficiente que não falharia nunca: “1 milhão de dados para você recordar o que já esqueceu e aprender coisas novas”. Com rapidez e eficiência, na dose de que o leitor precisasse, fosse a dúvida grande ou pequena, o Almanaque resolveria sem contraindicações ou efeitos colaterais: “fórmula: 848 páginas de informações que abrangem todas as áreas do conhecimento humano!”.51 Encontra-se, nessa peça publicitária, o problema da escritura tal como formulado por Platão em Fedro: como um remédio em relação à memória, protegendo-a contra o esquecimento. Porém, poderíamos pensar, ao mesmo tempo, como um veneno, na medida em que pode substituir o esforço

48 POMIAN, Krzysztof. Sur l’histoire. Paris: Seuil, 2000. p. 387.



49 RICOEUR, 1991a, p. 35-42.



50 Id., 2000. Ver, também, Revel (1998).



51 REMÉDIO contra o esquecimento. Veja, São Paulo, n. 745, p. 102, 15 dez. 1982.

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de memória.52 Levando até as últimas consequências a ideia de ser um remédio contra o esquecimento, a obra é representada, como já dissemos, na peça publicitária de 1984, como “A máquina da memória”. Entende-se que o saber histórico presente no texto dessa obra foi, em alguns momentos, transformado em memória. Mas, muitas vezes, essa memória é, também, transformada em história. Tendo em vista a interpretação de que os textos do Almanaque podem ser lidos a partir de cruzamentos entre três representações do passado – a história ensinada, o conhecimento histórico acadêmico e o discurso jornalístico –, faz-se um convite ao leitor a penetrar nas diversas escalas de observação construídas para pensar essa fonte/objeto singular.



52 Ver a leitura que Ricoeur (2000) faz de Fedro. Ver, também, Derrida (2005).

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Capítulo1

“Origens” do sucesso do Almanaque Abril A Abril transformou o Almanaque Abril em um Almanaque Abril Biotônico Fontoura. A individualidade que o Almanaque Abril possuía foi destruída, passou a ser uma enciclopédia comum. (Carta de um leitor do Almanaque Abril 1996). O “Seu Victor (Civita)” nos chamava para falar da Abril e dizia: “nós somos uma empresa de comunicação e lazer. Queremos explorar todas as áreas, todas as oportunidades que isto permitir”. A Abril sempre foi muito preocupada com a comunicação. Não é imprensa, não é jornal. É um conceito muito mais amplo. (Samuel Dirceu, primeiro editor do Almanaque Abril, entrevista ao autor, 2002).

Os historiadores têm fascinação pela ideia de origem. Marc Bloch denunciou essa prática na primeira metade do século 20.1 Suas reflexões possibilitaram certa liberdade por parte dos historiadores de construir outras formas de categorização da temporalidade.2 Ainda que deixemos de lado a obsessão pela ideia de origem, pretende-se, neste capítulo, abordar as “origens” do Almanaque Abril como contextos para compreender e explicar o seu sucesso.3 Essa “busca” será centrada em duas partes; a primeira é consagrada à história da literatura de almanaques e, a segunda, à história editorial da Abril.



1 BLOCH, 2001.



2 RAULFF, Ulrich. De l’origine à l’actualité: Marc Bloch, l’histoire et le problème du temps présent. Sigmaringen (Thorbecke), 1997.



3 Para uma análise do conceito de contexto no plural, ver Revel (1998).

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Literatura de Almanaque e Almanaque Abril Almanaque: um gênero editorial de formas múltiplas Até o século 20, os almanaques foram, depois da Bíblia, um dos principais impressos utilizados no ocidente. Dada sua origem remota, sua larga difusão e sua longevidade, não é fácil definir esse gênero editorial.4 De qualquer maneira, concorda-se que o termo almanaque é utilizado, desde meados do século 17, para designar diversas publicações articuladas em torno do calendário.5 A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, ao definir a palavra Almanaque, relata uma lenda: (...) quási tão velha como o Mundo, segundo a qual o primeiro almanaque fôra elaborado por dois filhos de Seth, nas vésperas do Dilúvio. Conhecendo as tentações de Deus, os dois videntes angustiaram-se ante a próxima perda de tôda a Ciência, que tão penosamente havia sido acumulada desde o Paraíso. Decidiram por fim arquivar, gravando em matéria imperecível, tôda a ciência que possuíam. Durante três dias e três noites gravaram sobre o granito e sôbre o tejôlo o Livro de Todo-o-Saber, que era nada mais nada menos, que o nosso Almanaque com a divisão do tempo, o nascimento do Sol, as inconstâncias da Lua, a violência dos ventos e a previsão das tempestades.6

A ideia de ser um Livro de Todo-o-Saber acompanha esse gênero, afinal, um almanaque “contém essas verdades iniciais que a humanidade necessita sa

4 Para uma definição da literatura de almanaque como um gênero editorial, ver Lüsebrink (2000b, p. 47-64).



5 DUTRA, 2005. Ver, também, Bollème (1969). Para Vera Casa Nova (1996), a palavra pode ter várias origens: “do oriental (...) almeneg, cálculo para memória; do artigo al, e do latim manachus, círculo representando a linha eclíptica divida em doze partes para os doze signos (...). (...) do céltico al, mon, aght, que significa a observação de todas as luas. (...). (...) do árabe almanakh, lugar onde se manda ajoelhar os camelos; (...) e, finalmente, calendário. (...). Ainda há outra hipótese apresentada por Geneviéve Bollème: a origem na união do árabe al e do grego men – mês. (...) nas línguas orientais, almanach significa presente de ano novo, étrennes. (...) outra possibilidade: grego menás, lua; latim mensis; antigo indiano mas, medir. Dessa forma, em sua origem, almanaque estaria ligado a calendário lunar pela contagem do tempo e principalmente na tentativa de sua organização” (p. 16-17).



6 GRANDE ENCICLOPÉDIA PORTUGUESA E BRASILEIRA, Lisboa: Editorial Enciclopédia, s/data. p. 23. v. 2.

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ber, e constantemente rememorar, para que a sua existência, entre uma Natureza que a não favorece e a não ensina, se mantenha, se regularize, e se perpetue”.7 Para Machado de Assis, “o Tempo inventou o almanaque; compôs um simples livro, seco, sem margens, sem nada; tão somente os dias, as semanas, os meses e os anos. (...). O Tempo os imprime, Esperança os brocha; é toda a oficina da vida”.8 Na Idade Média, essas publicações ligavam-se aos devocionários e, depois da invenção da imprensa, sábios, médicos e astrólogos criaram vários almanaques para difundir suas visões de mundo. Após o século 17, diversas publicações passaram a ser denominadas almanaques. Em geral, eram anuais e apresentavam o calendário, informações diversas e úteis. No século 18, a astrologia perde espaço para a história e a ciência.9 Ilustrados com signos, figuras e imagens, os almanaques reuniam e ofereciam um saber para todos.10 Os almanaques considerados “populares” tiveram um mesmo ancestral comum, o Le Grand Calendrier et Compost des Bergers, de 149111. O modelo desse tipo de publicação é o mais antigo e o mais durável, sendo endereçado a um público essencialmente rural e camponês. Os textos sobre agricultura, medicina, predições meteorológicas, política, astronomia, astrologia e história eram um prolongamento do calendário. Esses almanaques eram estruturados a partir de quatro funções básicas: informações práticas, calendário, narração histórica e variedades.12

7 QUEIRÓS apud DUTRA, Eliana Regina de Freitas. História e Memória nos Almanaques Luso-brasileiros. Escravidão, Abolição e Uma Geografia do Esquecimento. In: CONGRESSO LUSO-AFRO-BRASILEIRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, 3., 1996, Lisboa. Actas das sessões temáticas. Lisboa: 1996, p. 313.



8 ASSIS, Machado de. Como se inventaram os Almanaques. Disponível em: . Acesso em: 11 out. 2005.



9 BOLLÈME, Genevièse. Les Almanachs populaires aux XVII et XVIII siècles. Essai d’Historie Sociale. Montou, 1969.



10 (...) astronômico, com eclipse e as fases da Lua; religioso e social, com as festas e especialmente as festas dos santos que dão lugar aos aniversários no seio das famílias; científico e técnico, com conselhos sobre os trabalhos agrícolas, a medicina, a higiene; histórico, com as cronologias, os grandes personagens, os acontecimentos históricos ou anedóticos; utilitário, com a indicação das feiras, das chegadas e partidas dos correios; literário, com anedotas, fábulas, contos e, finalmente, astrológico (LE GOFF, 1984, p. 288-289).



11 BOLLÈME, op. cit., p. 16.



12 MOLLIER, Jean-Yves. Introdution. In: LÜSEBRINK, Hans-Jürgen et al. (Dir.). Les lectures du peuple en Europe et dans les Amériques (XVIIe-XXe siècle). Bruxeles: Complexe, 2003a. p. 13. Para uma análise da questão da relação, na literatura de

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Desde muito tempo, esse gênero foi formado de vários subgêneros que frequentemente se mesclavam de diversas formas. Os almanaques endereçados a um público rural e pouco alfabetizado – na medida em que muitas vezes os “livrinhos” eram lidos em voz alta para os menos letrados – era apenas parte dessa tradição: “para responder à demanda por informações úteis ou simplesmente cativantes, os editores (nos séculos XVII e XVIII) experimentaram todas as fórmulas que este gênero eclético permitia”.13 Encontravam-se, a partir do fim do século 17, almanaques para todas as classes sociais, para todos os interesses e níveis culturais.14 O almanaque foi um gênero suscetível de se adaptar a conteúdos e formas múltiplas. Qualificá-los de “populares” e/ou “eruditos” é uma prática reducionista dos usos e do próprio gênero. Não sem motivo, a forma almanaque pode ser comparada ao mito grego de Proteu.15 Na mitologia grega, esse deus marinho, filho de Netuno e de Tétis, tinha como função guardar animais do mar que pertenciam ao pai. Proteu possuía o dom da profecia, mas, para obtê-lo, era necessário acorrentá-lo enquanto dormia. Nesse instante, ele se transformava em animais, vegetais, fogo e água. Caso o interessado em saber o futuro não se assustasse e o mantivesse preso, ele retornava à forma original e respondia a todas as questões.

Permanência de um subgênero editorial da Literatura de Almanaques Tendemos a acreditar que, a partir do contato com o campo do jornalismo, os almanaques dos tipos estatísticos, genealógicos, científicos e/ou enciclopédicos se tornaram, em um lento processo, obras de referência de caráter genérico, de um único volume. Esse movimento ocorreu com o intuito de transformá-los em um guia de cultura geral. Além de apresentarem uma almanaque, entre as funções orientação no tempo, transmissão de saberes, diversão e relações com o poder político, ver Lüsebrink (2001, p. 432-441) e Lüsebrink (2006, p. 567-578).

13 BRAIDA, 1996, p. 200.



14 BRAIDA, loc. cit.



15 SARRAZIN, 1997.

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resenha do ano que passou, divulgavam também informações pontuais, dados e estatísticas do “mundo-como-um-todo”. Esse processo, que poderia ser entendido como a intensificação da metamorfose do gênero, iniciada no século 18,16 está ligado ao desenvolvimento da globalização.17 Esses “novos” almanaques guardam alguns traços dos almanaques urbanos e enciclopédicos que surgiram na França, no século 18, com a publicação do Almanach Royal e o Calendário de la Cour, ambos de 1700, destinados ao público burguês e citadino. Veronique Sarrazin identificou, nesse país, de 1700 a 1789, 1.200 títulos desse subgênero.18 Essas publicações eram diferentes dos almanaques ditos “populares”, e mesmo seus editores utilizaram diversas estratégias para distinguir essas “novas” publicações dos almanaques considerados “populares”. Talvez a obra mais importante do subgênero de almanaques urbanos enciclopédicos tenha sido a obra produzida na Alemanha denominada Almanach de Gotha, cujo primeiro exemplar data de 1763. Possivelmente, essa foi uma das publicações mais conhecidas a disponibilizar dados do “mundo-como-um-todo”. Era editada em francês e alemão. Progressivamente, a publicação tornou-se uma fonte de consulta diplomática. Ela abandonou as variedades (até 1827 há artigos desse tipo) e se especializou na crônica do ano que passou (a partir de 1793), com os principais eventos de vários países do mundo; nas estatísticas sobre os países e questões geográficas mundiais (o primeiro quadro estatístico dos principais Estados da Europa data de 1787); e nas histórias das casas dinásticas (presente desde o primeiro número). No final do século 19, a obra se especializou em genealogias. Possivelmente sofrendo forte influência da obra produzida na cidade de Gotha (e de outras similares, como os Directory), foi publicado, em 1868, nos Estados Unidos, pelo jornal New York World, o The World Almanac: and book of facts. Esse almanaque tinha a intenção, pelo menos desde 1886, de ser uma obra de referência de caráter geral com informações estatísticas sobre to-



16 BRAIDA, 1996, p. 200.



17 Para Rolan Robertson (1994), o conceito de globalização deve ser aplicado a “uma série específica de desenvolvimentos relacionados com a estruturação concreta do mundo-como-um-todo” (p. 28) (grifo no original).



18 SARRAZIN, 1997.

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dos os países do mundo e sobre, em particular, os Estados Unidos.19 Em 1869, na mesma linha, foi publicado o Whitaker’s Almananak, na Inglaterra. Na França e na Espanha não há, atualmente, obras desse tipo que são denominadas almanaque. A principal razão para isso, pelo menos no caso francês, é que, a partir do século 18, os editores desse tipo de obra preferiram chamá-la de anuário, pois a denominação almanaque não dispunha de uma boa reputação, dado o prestígio que desfrutava entre os meios ditos “populares”. Porém, há, na França, vários livros de referência de caráter geral, como o Quid e o L’État du Monde (também editado em espanhol).20 Na Inglaterra, nos Estados Unidos e na Alemanha os almanaques gozavam, desde o século 16, de grande prestígio frente às elites intelectuais, e justamente nesses países encontram-se, ainda hoje, anuários denominados almanaque. A partir dos anos 1990, os “novos” almanaques nesses países procuram condensar e organizar um grande número de informações sob as quais os leitores estão imersos em razão da disseminação da informática e da Internet. Em 1954, começou a circular na América Latina o Almanaque Mundial. No México, na América Central, Colômbia e Venezuela esse almanaque sempre teve grande prestígio. A versão em português do Almanaque Mundial: o mundo em suas mãos surge no ano de 1960, com 600 páginas em média e com o tamanho padrão da Bíblia. O anuário continha 14 seções, com o resumo de cada uma entre parênteses. Os assuntos tratados pelos textos do Almanaque Abril, em sua primeira edição, eram basicamente os mesmos do Almanaque



19 Em 1968, afirmava-se que a publicação era compendium of universal knowledge (THE WORLD ALMANAC, 1968, p. 4). Ao longo do século 20, nos Estados Unidos, foi criada uma infinidade de obras com o mesmo formato e objetivos. Uma das mais importantes foi o Information Please Almanac, cuja primeira edição data de 1947. Nos anos 1990, muitas empresas jornalísticas americanas começaram a publicar almanaques semelhantes ao The World. Alguns exemplos: o The New York Times Almanac: The Almanac of Record e o The Wall Street Journal Almanac. Todas essas obras eram feitas de papel jornal em preto e branco, encarte com mapas, letras pequenas e formato de livro pequeno (20,5 cm x 13,5 cm, com espessura de 4 cm), parecendo uma Bíblia popular. Esses lançamentos podem ser explicados como resultado da facilidade, fruto da informatização dos departamentos de pesquisa, de organizar bancos de dados e publicá-los em um formato barato.



20 Ver os verbetes “almanach” e “annuaire” em Fouché (2002).

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Mundial.21 Outra publicação semelhante que existia no Brasil na década de 1970 era o Almanaque de Seleções: a enciclopédia compacta, publicada com mais de mil páginas. Portanto, na América Latina, essa tradição de almanaques, publicados por empresas jornalísticas com vistas a oferecer dados sobre todos os países do mundo, instalou-se à medida que o processo de urbanização e industrialização ganhou grandes dimensões, em parte, fruto dos novos rumos que a modernidade-mundo22 tomou após a Segunda Guerra Mundial.23 Acredita-se que, no século 20, o subgênero dos almanaques urbanos e enciclopédicos procurou acompanhar o desenvolvimento da “modernidade-mundo”, com a intensificação da modernização capitalista, a globalização e a radicalização do projeto moderno. Nesse sentido, sustenta-se que os almanaques se transfor

21 As seções com alguns dos seus respectivos resumos eram as seguintes: “Seção noticiosa – Biografias ilustradas de 60 figuras mundiais do ano; fatos importantes de 1958-1959; Mapas – Novos mapas de todos os continentes com as últimas alterações políticas; Nações do Mundo – dados novos e atualizados (...) –; Conhecimentos Gerais; Organizações Internacionais; – Ind. Comércio e Comunicações; Seção histórica; Jornalismo; Geografia e demografia; Pesos e medidas; Astronomia; Seção de esportes; Calendário e assuntos religiosos” (ALMANAQUE MUNDIAL, 1960, p. 2).



22 Para Jean Chesneaux (1995a), o conceito “modernidade-mundo” possibilita perceber que partilhamos de um conjunto de situações e expectativas que transcendem os nossos territórios. Percebe-se, aí, o contorno de uma megassociedade que redefine os conceitos de tempo e espaço. A análise da relação pessoal e social com a duração permite perceber que “o tempo da modernidade se contrai no imediato, impõe à nossa vida cotidiana as formas diversas do instante. As novas tecnologias comprimem o tempo e o reduzem, elas dominam o espaço e o dilatam ao infinito, mas mutilam e desagregam o tempo” (p. 31). Esse seria o paradoxo espaço-temporal da modernidade. O passado cada vez mais estaria não acabado e desarticulado, pois a sociedade moderna se envolve na perpetuação de seu próprio presente. Mas, mesmo assim, esse “presente monstro” cria espaços de preservação de memória e pensamos que o Almanaque Abril foi um desses lugares. A análise desse historiador pode ser complementada pelas do sociólogo Anthony Giddens. Este autor entende que a modernidade é inerentemente globalizante. Sendo assim, a globalização diz respeito à interseção entre presença e ausência, ao entrelaçamento de eventos e relações sociais à distância com contextualidades locais: “por globalização entendemos o facto de vivermos cada vez mais num ‘único mundo’, pois os indivíduos, os grupos e as nações tornaram-se mais interdependentes” (GIDDENS, 2004, p. 52). Ver, também, Giddens (1991).



23 Sobre os novos rumos da modernidade-mundo após a Segunda Guerra, ver Ortiz (1997).

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mam, no século 20, em espaços de preservação da memória, apesar do envolvimento das sociedades contemporâneas na perpetuação de seu próprio presente.24 Publicações como o Almanaque Abril, que pretendiam ser anuários de referência de caráter geral, distinguem-se dos “antigos” “almanaques urbanos enciclopédicos” por se apresentarem em grandes formatos e com grande número de páginas. Dentre outros motivos, também por serem publicados (em geral) por grandes casas jornalísticas e não por editoras especializadas.25 Não se pode afirmar que os “novos” almanaques também se dirigiam, como os almanaques ditos “populares”, a um público pouco alfabetizado, com pouco contato com a leitura e com o mundo dos livros. Percebe-se, por exemplo, que o Almanaque Abril guardava boa distância em relação aos almanaques direcionados a um público “popular”, sendo que, no Brasil, os mais conhecidos foram os almanaques, de poucas páginas, entregues por farmácias.26 No entanto, a obra precisou dialogar com a tradição dos almanaques de farmácia, pois o Almanaque Abril foi fruto de uma transferência cultural, conforme será analisado a seguir.

O problema do nome almanaque segundo os ex-diretores do Almanaque Abril A ausência de referência ao subgênero, no que diz respeito aos almanaques urbanos e enciclopédicos nos dicionários de língua portuguesa, é um indício de que esse tipo de almanaque não era muito difundido no Brasil. Além disso, a referência ao caráter pejorativo da palavra almanaque mostra a força que os almanaques ditos “populares” alcançaram no país. A edição de 1925 do Dicionário da Língua Portuguesa Caldas Aulete, por exemplo, afirmava: “Almanach, s.m. calendário contendo os dias do anno, festas, luas etc. Por ext. livrinho publicado annualmente, e contendo alem do calendario, indicaçoes sobre differentes, anedoctas, poesias”.27

24 Thompson (1998) afirma que as tradições não desaparecem com a modernidade, são reinventadas.



25 SARRAZIN, 1997.



26 Sobre os almanaques de farmácia, ver Casa Nova (1996) e Park (1999).



27 AULETE, Caudas. Diccionario Contemporaneo da Lingua Portugueza. Lisboa, 1925. p. 95.

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Uma definição próxima a essa podia ser encontrada na edição de 1999 do Dicionário Aurélio, a saber: “publicação que, além de um calendário completo, contém matéria científica, literária, informativa e, às vezes, recreativa e humorística. (...). De almanaque. Diz-se de cultura, saber, conhecimento, imperfeitos, precários, superficiais”.28 A única diferença em relação à outra definição é justamente a menção ao sentido pejorativo. Apesar da pluralidade do gênero e de sua transformação ao longo do século 20, os dicionários da língua portuguesa apresentam uma definição restrita da palavra. Percebe-se que o gênero é definido a partir dos almanaques de “variedades” e/ou “científicos” do final do século 19 e início do século 20, como o Almanaque Bertrand. O mais recente dicionário da língua portuguesa, o Dicionário Houaiss, amplia o sentido da palavra, mas não completamente, a saber: Almanaque (...) 1. Calendário com os dias e os meses do ano, os feriados, as luas, as festas etc.; 2. Folheto ou livro que, além do calendário do ano, traz diversas indicações úteis, poesias, trechos literários, anedotas, curiosidades etc. 3. Edição especial, mais volumosa, de revista (esp. de histórias em quadrinhos), publicados de forma esporádica ou periódica. 4. Anuário genealógico e diplomático que contém as genealogias das famílias reinantes e principesca, além de outras informações. 5. Por indivíduo falador; linguarudo. a. astronômico (...). a. náutico. (...). de a. superficial, imperfeito (falando-se de cultura, conhecimento, saber, humor etc.).29

É interessante notar que o sentido principal da palavra continua sendo o dos almanaques de “variedades” e/ou “científicos”. Os anuários genealógicos e diplomáticos são lembrados, mas os almanaques de farmácia e os enciclopédicos, como Almanaque Abril, não são mencionados.30 Apesar da importante inclusão das edições especiais de revistas em quadrinhos (cuja longa tradição remonta ao Almanaque Tico-Tico), ficou de fora o sentido de variedade, cuja presença é, no entanto, significativa na mídia brasileira contemporânea.31 A

28 HOLANDA, Aurélio Buarque de. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 101.



29 DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 45.



30 Nem mesmo o sentido de almanaque de autoajuda como o Almanaque do Pensamento, existente no mercado brasileiro desde 1912, é mencionado.



31 A revista Época, os jornais Folha de São Paulo e O Tempo têm seções Almanaque. O canal Globo News tem também um programa de mesmo nome. A Revista de

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palavra, significando uma publicação que contém, além de variedades, todo o conhecimento sobre um determinado tema ou assunto, também não é ressaltada.32 Mesmo sem poder comprovar é possível que o Almanaque Abril, dado seu sucesso, tenha sido em boa medida responsável por ter resignificado e dado nova vida à palavra almanaque na língua portuguesa. Mesmo tendo existido na França uma perda de prestígio da palavra almanaque, muito em função do caráter pejorativo associado ao gênero, a palavra é definida pelos dicionários da língua francesa de forma mais aberta, no sentido de contemplar a pluralidade do gênero. O dicionário Le Petit Robert, por exemplo, afirmava: 1. calendário acompanhado de observações astronômicas, de previsões meteorológicas, de conselhos práticos relativos aos trabalhos a serem feitos segundo as estações. Agenda, efemérides. Os antigos almanaques ilustrados. O Almanach des Muses que continha poesias; 2. nome de diversos anuários e publicações que tenham vagamente por base o calendário. O Almanach de Gotha: anuário genealógico e diplomático. L’Almanach Vermot célebre por suas piadas populares.33 (grifo nosso).

De todo modo, há 250 anos, os editores de almanaques urbanos parisienses também procuravam se distinguir da tradição de almanaques “populares”, criando uma série de estratégias. Uma propaganda de um desses almanaques, de 1762, por exemplo, afirmava: “o que é um almanaque hoje? É um pequeno livro, onde se apresenta ao leitor (...) uma leitura mais séria (...)”.34 Nota-se que a reputação de livro de origem “popular” continuava. “Portar o nome de almanaque, não deixava de ser um primo do Almanach de Liège e do Messager Boiteux (...). A consciência dessa mutilação se exprime em vários prefácios cujos editores se esforçam em distinguir seus livros dos almanaques populares”.35 Outra peça publicitária de um almanaque urbano, de meados do História da Biblioteca Nacional apresenta uma seção homônima. Além disso, a companhia áerea TAM edita uma revista de variedades de bordo, denominada Almanaque Brasil, que pretende resgatar o “espírito” dos almanaques de variedades.

32 Esse sentido é muito usado em publicações esportivas como o Almanaque do Corinthians e do Flamengo, e em vários sites sobre times de futebol.



33 LE PETIT ROBERT. Paris: Le Robert, 1998. 1 CD-ROM.



34 SARRAZIN, 1997, p. 18.



35 Ibid., p. 42.

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século 18, afirmava que o número de “almanaques sérios e úteis” poderia ser reduzido a três ou quatro.36 Esse tipo de argumento, além de mostrar que o almanaque era um gênero de má reputação, servia para distinguir, por contraste, os almanaques que se representavam como “sérios”. Mas entre a “vergonha” de ser um almanaque e a vantagem de uma forma editorial barata e rentável, os editores do século 18 optaram por se localizar nesta ambiguidade. Sheila Mazzolenis trabalhou no Almanaque Abril até a edição de 1990. Ela afirmou que a palavra almanaque significava, “na cabeça das pessoas, um lugar em que caberia qualquer tipo de informação que você quisesse dar. Desde informações sérias até receita de bolo, como era nos almanaques antigos”.37 É daí que, provavelmente, surge a força do Almanaque Abril. Ele não é, pois, somente herdeiro de uma forma editorial que permite colocar tudo em seu interior, mas também de uma ambiguidade relativa à desvantagem simbólica versus a vantagem editorial da forma almanaque. Essa ambiguidade perpassa toda a trajetória de produção do Almanaque. Nos idos de 1950, Samuel Dirceu, primeiro editor do Almanaque Abril, iniciou suas atividades jornalísticas escrevendo em jornais mineiros como Diário Católico, Binômio, Correio da Manhã e Diário de Minas. Desde então, ele tomou contato com os almanaques americanos, como o Information Please e The World Almanac; e obras similares produzidas por jornais brasileiros, como o Almanaque Correio da Manhã e do Almanaque do Estado de São Paulo: “Eu comprava todo ano. Eram livros de cabeceira”. Em meados da década de 1960, foi convidado a trabalhar no Departamento de Documentação do Jornal do Brasil. Alguns anos depois, já era o diretor dessa seção, mas depois se transferiu para o Jornal da Tarde, ocupando o cargo de subeditor. Em 1968, foi convidado a criar o Departamento de Documentação da Editora Abril (DEDOC) para dar suporte ao novo lançamento da Abril, a revista Veja. Em meados de 1973, Samuel Dirceu foi chamado à sala do filho do fundador da Editora Abril, Roberto Civita, que teria dito: “tem aqui um almanaque [provavelmente um almanaque americano], você acha que o DEDOC pode fazer?”. Segundo ele, era seu sonho fazer uma obra como aquela e a editora oferecia toda a estrutura necessária para a realização desse sonho.38

36 SARRAZIN, 1997, p. 653.



37 Sheila Mazzolenis, entrevista ao autor, 24 jan. 2002.



38 Samuel Dirceu, entrevista ao autor, 28 jan. 2002.

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Sheila Mazzolenis, uma das jornalistas que trabalharam no primeiro número do Almanaque, afirmou que em 1973 “começou a se pensar que dentro do DEDOC havia uma quantidade de informações que não era desprezível e não era inteiramente utilizada pelas publicações da Editora Abril”.39 Levando em consideração essa necessidade de receita para o departamento de documentação, a ideia de fazer um almanaque foi considerada adequada. O almanaque da Associated Press foi escolhido para ser o “almanaquemãe”, segundo o primeiro editor, Samuel Dirceu, pois essa agência tinha contratos e relações comerciais com a Editora Abril. Assim, a aquisição dos direitos foi fácil e barata. Segundo ele, almanaque era o nome ideal para se tratar de temas jornalísticos, temas de cultura geral e curiosidades em uma mesma obra. Dirceu acreditava que um almanaque poderia se mostrar para o público como uma obra séria, apesar do caráter pejorativo que envolvia as publicações “populares” desse gênero. Nesse sentido, o Almanaque Abril seguiu a tradição de algumas empresas jornalísticas que faziam livros do ano e denominavam a publicação de almanaque, como os jornais O Estado de São Paulo e o Correio da Manhã. O jornalista Lauro Machado Coelho, que trabalhou em 20 edições do Almanaque, afirmou que foi contra a utilização do nome almanaque por acreditar que o conceito do Almanaque Abril não seria bem compreendido pelos leitores. Segundo ele: (...) o Samuel Dirceu percebeu que era necessário ter uma publicação que ao mesmo tempo utilizasse a mão-de-obra do DEDOC e fosse uma espécie de compactação do trabalho (do DEDOC) (...). Foi aí que surgiu a idéia de fazer um almanaque. Não um almanaque de variedades, tipo almanaque de farmácia. Mas um trabalho sério, mais livro de referência mesmo, com informações não só por coisas permanentes, mas sobre atualidade. A idéia inicial (...) foi adaptar e traduzir um almanaque americano (...) já havia (principalmente nos E.U.A.) uma tradição de livro de referência chamada almanaque. Eu fui contra esta idéia (do nome ser almanaque), (...) (porque para) o leitor brasileiro almanaque está ligado à idéia de almanaque de farmácia. Ao longo de toda a nossa história, nós recebíamos muitas cartas de leitores que perguntavam por que a gente não tinha palavras cruzadas, charadas e piadas. Também está arraigado (...) que almanaque é algo próximo ao Almanaque Mariana que você descobre se vai ou não chover, onde você encontra receita para tirar mancha. Além disto, com freqüência na cabeça do leitor, almanaque dá uma idéia não muito séria.40



39 Sheila Mazzolenis, entrevista ao autor, 24 jan. 2002.



40 Lauro Machado Coelho, entrevista ao autor, 9 jan. 2002 (grifo nosso).

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Desse modo, para Lauro Machado Coelho, o nome almanaque foi escolhido para a nova publicação em função de uma tradição que não era plenamente difundida no Brasil, dada a popularidade dos almanaques de farmácia. O jornalista afirmou, ainda, que o Livro do Ano (Yearbook), por exemplo, inspiraria mais confiança do que almanaque (Almanach) e complementa: “é uma tolice, mas é um fato”. Nota-se que há a necessidade de diferenciar o Almanaque Abril dos almanaques considerados “populares”. A expressão cultura de almanaque é uma forma de demarcação de território entre o “erudito” e o “popular”. Entretanto, alguns trabalhos mostram que, ao contrário do que pensam os defensores da “Cultura”, os almanaques de farmácia desempenharam um importante papel cultural no Brasil, principalmente quando se leva em conta o relato dos leitores dessas obras. O preconceito contra o almanaque, visto como um gênero “popular”, implicou sua desconsideração enquanto um produto de importância cultural. Sendo assim, defende-se que o rótulo cultura de almanaque precisa ser revisto e repensado.41 No mesmo sentido, o diretor estratégico da Máquina da Memória por várias edições, Celso Nucci, afirmou que a tradição brasileira de almanaques se apresentava em “publicações estimadas pelo povo, mas tidas como de segunda linha pelos editores intelectualizados”.42 Para ele, nos Estados Unidos, os almanaques são publicações de referência sérias e que vendem muitos exemplares: “almanaque lá nada tem a ver com a tradição de almanaque aqui”.43 Como se viu, há certo exagero aqui, pois havia uma tradição de almanaques urbanos e enciclopédicos também no Brasil, porém, não era tão difundida como a dos almanaques de farmácia. Para Nucci, um dos maiores problemas enfrentados pelo Almanaque Abril foi “impor-se como uma publicação séria frente aos leitores, apesar de ostentar no título a palavra almanaque”.44 Apontou ainda que



41 PARK, Margareth Brandini. História e Leitura de Almanaques no Brasil. São Paulo: Mercado de Letras, 1999. Para uma análise do desejo de se diferenciar das “classes inferiores”, ver Bourdieu (1983). Sobre a relação entre os conceitos de “erudito” e “popular”, ver Chartier (1996) e Certeau; Julia; Revel (1995). Para uma análise da circulação entre o “popular”, o “erudito” e o “massivo”, ver Canclini (2006).



42 Celso Nucci Filho, entrevista escrita ao autor, 29 abr. 2002.



43 Celso Nucci Filho, loc. cit.



44 Celso Nucci Filho, loc. cit.

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muitas pesquisas mostraram que os leitores não consideravam uma publicação chamada almanaque como uma fonte de referência confiável. Contudo, nós o considerávamos tão sério que uma vez colocamos a frase “A enciclopédia em um só volume”, certos de que ele realmente preenchia essa função para muita gente que não precisava de uma enciclopédia em cinqüenta volumes. Ele trazia o essencial de uma enciclopédia para satisfazer muita gente. Realmente, ele era um competente resumo das informações sobre o Brasil e o mundo. Principalmente porque as informações no Brasil é dispersa e desarticulada. Quem se dedique a coletar de boas fontes e editar essas informações ditas de referência, em qualquer área faz um grande trabalho e tem muita chance de ser bem aceito no mercado. Há muita gente que precisa de informação de boa qualidade.45

A ex-diretora de redação da publicação nos anos 1980, Sheila Mazzolenis, desejava que a publicação fosse mais utilizada pelas redações jornalísticas: “gostaria que ele fosse mais usado nas redações. Mas a visão preconceituosa da imprensa em relação ao Almanaque Abril era muito grande”.46 Pensa-se que outro aspecto que contribuiu para essa “visão preconceituosa” é o fato de o Almanaque, até a edição de 1996, ter utilizado papel jornal. Assim, o desejo de ser durável e sério entrava em contradição, para alguns possíveis leitores, com o suporte material utilizado. De todo modo, como a história editorial da publicação mostrará no próximo capítulo, a aposta, feita pelo primeiro editor, Samuel Dirceu, de colocar o nome da nova publicação de almanaque foi uma das bases do sucesso da Máquina da Memória. A Editora Abril apostou em um subgênero da literatura de almanaques já difundido no Brasil, porém pouco conhecido se comparado aos almanaques de farmácia. Contudo, ela beneficiou-se da popularidade de um gênero que já tinha gozado de grande difusão e utilização no país,47 mesmo que estivesse em decadência em âmbito mundial.48 .

45 Celso Nucci Filho, entrevista escrita ao autor, 29 abr. 2002.



46 Sheila Mazzolenis, entrevista ao autor, 24 jan. 2002.



47 Ver Dutra (2005); Park (1999); Casa Nova (1996); Gomes (2002); Meyer (2001); Lüsebrink (2003a) e Almeida (1981).



48 Essa perda do prestígio e da popularidade do gênero foi um processo que ocorreu em vários países desde fins do século 19. Segundo Mollier (2003b, p. 206), houve,

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Editora Abril e Almanaque Abril Visto que o gênero editorial almanaque é a primeira “origem” do sucesso da Máquina da Memória, considera-se que a segunda “origem” do sucesso do Almanaque Abril deve ser buscada na história da casa editorial que o lançou no Brasil. Em meados dos anos 1970, a Editora Abril era a maior editora da América Latina, sendo responsável pela publicação de cerca de 80 periódicos no mercado brasileiro. Dada a facilidade de contar com uma estrutura editorial dessa magnitude, o Almanaque tornou-se, em pouco tempo, um sucesso de vendas e um importante bem simbólico da empresa. De maneira geral, com avanços e recuos, permanência e rupturas, houve uma evolução da história da edição contemporânea (séculos 19 e 20). As casas de edição (editoras) se transformaram em empresas de edição e, mais tarde, em empresas de comunicação de caráter nacional ou internacional.49 Neste item, pretende-se compreender e explicar parte da trajetória da Editora Abril que é, em amplo entendimento, uma das principais editoras a criar, no Brasil, o modelo de empresa de edição e de grupo de comunicação.50 Logo, situar-se-á o lugar que o Almanaque Abril ocupa no seio desta empresa.

A formação de um império O fundador da Editora Abril, Victor Civita, nasceu em Nova York, no dia 9 de fevereiro de 1907. Mas, desde os dois anos, foi criado no país onde seus pais nasceram, a Itália. Com 32 anos, Civita mudou-se para os Estados Unidos com

no final daquele século, uma progressiva diminuição de títulos de almanaques. O desenvolvimento das linhas ferroviárias, da escola, da imprensa e de coleções de livros a bom preço contribuiu para condenar o gênero à morte. Depois da segunda metade do século 20, a quantidade de títulos produzidos no Brasil declina, mas o gênero ainda hoje tem diversos representantes com larga aceitação.

49 MOLLIER, Jean-Yves. L’évolution du système editorial français depuis l’Encyclopédie de Diderot. In: MOLLIER, Jean-Yves et collectif. Oú va le livre? Paris: La Dispute, 2000; 2002. p. 23-39. Ver, também, Michon; Mollier (2001). Para uma crítica ao atual estado do mercado editorial, ver Bourdieu (1999, p. 3-28) e Schiffrin (1999; 2005).



50 Para um panorama da história de edição no Brasil, ver Hallwell (1985) e Paixão; Mira (1998).

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a mulher e os dois filhos. Depois de dez anos morando naquele país, foi passar férias com a família na Itália, onde reencontrou o irmão César, que vivia na Argentina, país onde fundara a Editora Abril, “cujo símbolo era uma árvore”, e lançara uma revista chamada El Pato Donald”.51 O irmão mais velho de Victor já havia sido responsável, na editora italiana Mondadori, pelas versões das revistas Disney na Itália. Com a Segunda Guerra, migrou para os Estados Unidos e lá ganhou a licença da Walt Disney para publicar revistas na América do Sul. Victor Civita chegou ao Brasil em 1949, com 42 anos. Foi convidado pelo irmão a assumir a filial brasileira da empresa argentina que havia sido fundada sob o nome Editora Abril LTDA, em São Paulo, dois anos antes.52 A empresa era um desdobramento da Editorial Abril, criada em 1941, em Buenos Aires (Argentina), por César Civita. Oficialmente, a Editora Abril foi inaugurada no Brasil em junho de 1950, com a chegada às bancas de jornal do primeiro exemplar de O Pato Donald, cuja edição vendeu 82.370 exemplares. A revista de fotonovelas Capricho foi lançada em 1952, com a tiragem de 92 mil exemplares. Em 1956, essa publicação vendia 500 mil exemplares por edição.53 Durante a década de 1950, a Abril dedicou-se, basicamente, a publicações de revistas em quadrinhos e fotonovelas. Nos anos 1960, no entanto, essa casa editorial lançou quatro revistas importantes: Quatro Rodas (1960), Claudia (1961), Realidade (1966) e Veja (1968). Teve início, a partir daí, a produção de livros, fascículos e coleções. Na década de 1970, foram lançadas, dentre outras publicações, Exame (1971), Nova (1973) e Playboy (1978). Daí para frente, uma infinidade de títulos foi colocada no mercado. Falando sobre Veja e Realidade, Victor Civita explicou, a seu modo, que o editor é aquele que cria necessidades: “o editor tem de se antecipar, tem de ter a coragem e, finalmente, também os recursos que uma grande empresa pode ter e dizer ‘bom, vamos fazer isto’. Isto aconteceu também com Veja, (e) com Realidade, (...)”.54

51 TOLEDO, Roberto Pompeu. Victor Civita. In: Abril: os primeiros 50 anos. São Paulo: Abril, 2000. p. 41.



52 GONÇALVES, Benjamin S. Cronologia Histórica da Editora Abril. Mimeogrado, s/ data.



53 GONÇALVES, loc. cit.



54 QUEM É QUEM NA HISTÓRIA DO BRASIL. Edição Especial do Almanaque Abril. São Paulo: Abril, 2000. p. 164.

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Em 1982, Victor Civita dividiu suas empresas em dois grupos: Comunicação Lazer e Cultura (CLC) e Editora Abril. Richard Civita ficou com a CLC, responsável por uma rede de hotéis, uma empresa de frigorífico e as publicações de livros e fascículos da Abril Cultural. Roberto Civita, junto ao pai, permaneceu na direção da Editora Abril. Na década de 1980, a editora consolidou-se como um grupo de comunicação. Na década seguinte, já sem contar com a presença de seu fundador,55 a empresa começou a investir em “novas tecnologias”, em especial, na televisão e na Internet. Todavia, o produto “revistas” permaneceu como a principal fonte de receita do grupo. Um texto sobre a empresa, publicado em 2000, afirmava que a Abril detinha 64% do mercado brasileiro de revistas: “a empresa, que começou com o Pato Donald, publica hoje 219 títulos, entre eles sete das dez maiores revistas brasileiras, e chega a 30 milhões de leitores. Ainda o principal produto da empresa, as revistas tornaram-se hoje um dos itens de um cardápio”.56 Em 2004, o Grupo Abril era constituído pela da Editora Abril, pela TVA, MTV e Abril Educação (Editoras Ática e Scipione, adquiridas em 1999). Nesse ano, a editora publicou 90 títulos regulares e respondia por 70% do faturamento do grupo; a Abril Educação representava 13%; a TVA, 12% e a MTV 5%. Ainda nesse ano, a editora colocou em circulação 170 milhões de revistas e 56 milhões de livros escolares; a receita líquida do grupo foi de 2,1 bilhões de reais.57 Victor Civita desejava, desde o primeiro momento, realizar grandes tiragens. A gráfica montada em 1952 tinha capacidade de produção dez vezes superior ao que o mercado suportava na época.58 O Relatório Anual do Grupo Abril, realizado em 2004, confirmava a permanência dessa estratégia. Tal fonte afirmava que: “a gráfica da Abril é a maior da América Latina e a única da região a utilizar a rotogravura – processo de impressão recomendado para tiragens superiores a 300 mil exemplares”.59 Afirmava-se, ainda, que em 2004 a gráfica imprimiu 600 milhões de revistas – 50 milhões por mês e 2 milhões por dia, além de 25 milhões de livros por ano.60

55 Victor Civita morreu em 24 de agosto de 1990.



56 ABRIL: os primeiros 50 anos. São Paulo: Abril, 2000. p. 4.



57 RELATÓRIO anual do Grupo Abril 2004. São Paulo: Abril, 2005. p. 3 e 14.



58 ABRIL: os primeiros 50 anos, 2000, p. 61.



59 RELATÓRIO Anual do Grupo Abril 2004. São Paulo: Abril, 2005. p. 14.



60 Ibid., p. 64.

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Produção de fascículos, enciclopédias e coleções pela Editora Abril A Máquina da Memória fez parte de uma tradição da Editora Abril em publicar títulos considerados de cunho educativo e cultural. Em 2004, as 42 principais publicações da editora estavam agrupadas em 14 núcleos e, não sem razão, o Almanaque encontrava-se agrupado ao núcleo denominado “Cultura”.61 Pretende-se, neste item, recuperar parte dessa tradição para se compreender melhor o papel do Almanaque Abril no interior das estratégias editorias do grupo Abril e, com isso, explicar melhor as razões do seu sucesso. Apesar do grande investimento em publicações relacionadas à área de educação, o grande destaque da editora ocorreu, na década de 1970, na área de produtos “culturais”. A Abril Cultural, de 1968 até 1982 (data em que essa empresa deixou de existir), lançou mais de 200 fascículos, livros e discos no mercado editorial e fonográfico brasileiro.62 Foram vendidos mais de um bilhão de fascículos, 30 milhões de romances e 11 milhões de enciclopédias.63 Só na década de 1970, a Abril Cultural vendeu 18 milhões de livros em bancas de jornal, por meio de oito coleções de livros, em um total de 465 títulos. A coleção de textos de filosofia Os Pensadores, lançada pela primeira vez em 1972, com um total 68 títulos, vendeu mais de quatro milhões de exemplares. O primeiro volume sobre Platão vendeu 100 mil exemplares em apenas 15 dias.64 Boa parte do sucesso dos fascículos da Abril Cultural deveu-se à estrutura de distribuição da Editora Abril. Para Victor Civita, a criação da Distribuidora Abril, em 1961, era o grito de liberdade: “Eu queria ter a gráfica, a redação e a distribuição para conquistar independência”.65 A principal estratégia foi a utilização das bancas de jornal para a venda dos produtos, resol

61 RELATÓRIO Anual do Grupo Abril 2004, 2005, p. 84.



62 De acordo com Mercadante (1987), em 1982 a Abril Cultural torna-se Nova Cultural e passa a fazer parte do grupo Comunicação, Lazer e Cultura (CLC), sendo Richard Civita seu proprietário.



63 MARKUN, Paulo. VC em revista. Imprensa, São Paulo, 1 out. 1987.



64 PAIXÃO, Fernando (Ed.); MIRA, Maria Celeste (Coord.). Momentos do livro no Brasil. São Paulo: Ática, 1998. p. 164-165.



65 ABRIL: os primeiros 50 anos, 2000, p. 22.

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vendo o problema do baixo número de pontos de comercialização de livros e congêneres no Brasil. As iniciativas da Abril Cultural tinham como objetivo, dentre outros, levar a cultura “dominante” para as casas dos “dominados” e/ou “emergentes”.66 Tratava-se, dentro de uma perspectiva iluminista, de divulgar e vender a cultura como um patrimônio.67 Essa “estratégia” deve, no entanto, ser entendida em conjunto com uma outra, própria da “indústria cultural”, que é formar e cativar um público para conseguir grandes lucros.68 Do ponto de vista do mercado editorial, pode-se dizer que a Editora Abril contribuiu para a consolidação da indústria cultural e da “comunicação de massa” no país.69 Todos os fascículos e enciclopédias da Abril Cultural eram assinados por Victor Civita no prefácio. Eles permitiam, assim, perceber algumas das representações, pressupostos e protocolos de leitura que orientavam o trabalho do editor. São interessantes, também, porque ali encontram-se expostos vários princípios que nortearam o projeto editorial do Almanaque Abril. Concorda-se com Jean-Yves Mollier quando ele afirma que a “magia” do editor moderno – definido como criador de necessidades culturais – é o seu produto. O livro incorpora uma relação que existe entre a economia e a cultura. Em outras palavras, o livro é, ao mesmo tempo, um produto material fabricado de forma industrial, submetido à lógica do lucro, e um objeto cultural.70 Essa relação dupla, que distingue o produto cultural de outras mercadorias, confirmava-se, no caso dos fascículos e das enciclopédias da Abril Cultural, com o comprometimento do dono da editora em assinar cada prefácio, utilizando-o como um instrumento no processo de convencimento do cliente. Victor Civita



66 Sobre esta questão, ver, dentre outros, Bourdieu; Passeron (1975).



67 Sobre a cultura como um patrimônio, ver Chartier (1987, p. 249-268).



68 Utilizamos os conceitos de “indústria cultural” e “cultura de massa” por considerarmos que são conceitos já assentados na literatura, mas concordamos que, conforme Thompson (1998), esses conceitos apresentam uma série de limitações.



69 Sobre esse processo do ponto de vista editorial, ver Hallwell (1985); Paixão; Mira (1998) e Reimão (1996). Numa perspectiva mais ampla, ver Ortiz (1991) e Mira (2001). Para uma análise do papel da mídia nas sociedades modernas, ver Thompson (1998). Quando for analisada a história editorial do Almanaque Abril, voltar-seá a essas questões.



70 MOLLIER, 2000; 2002, p. 23-39.

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enfatizava que o vendedor ideal de livros seria aquele que usasse a persuasão sem alterar a verdade. Para ele, esse vendedor “tem consciência da importância do produto que oferece e vende, vende, vende! E que faz a venda, convicto de que está não só vendendo, mas divulgando conhecimentos, repartindo cultura”.71 Portanto, o fetiche da mercadoria é encoberto pela venda de cultura. Era exatamente esse aspecto que Victor Civita buscava destacar em seus prefácios. A Enciclopédia Abril, lançada em 1971, foi a primeira obra do gênero a ser apresentada em forma de fascículos semanais no Brasil. A obra continha três mil biografias, 15 mil ilustrações, três mil verbetes e contou com mais de cem colaboradores. Na apresentação, Victor Civita procurou enfatizar que o objetivo daquela publicação era exatamente “divulgar conhecimentos”. Afirmava que esta obra possibilitava ao leitor atualizar e renovar seus conhecimentos e o objetivo da editora, ao publicar uma enciclopédia daquela envergadura, era colaborar para que a cultura “fosse fator de engrandecimento e de alegria para um grande número de pessoas”.72 O prólogo da coleção Grandes Personagens da Nossa História, dirigida pelo historiador Sergio Buarque de Hollanda, lançada em 1969, destacava a contribuição da Editora Abril para o “engrandecimento da Nação”. Mostrava, ainda, um aspecto da visão de história de Victor Civita. Se, para Monteiro Lobato, um país se faz com livros e homens, para a Abril, ele acrescentava, eram necessários exemplos: “é o exemplo dessas personalidades que desejamos projetar no futuro das gerações, como lição e incentivo”, pois “editores que somos, fazendo da leitura o nosso apostolado, damos ao Brasil, com esta obra, nossa contribuição a essa causa”.73 Essa obra, levando-se em conta as duas reedições, vendeu mais de 17 milhões de exemplares.74 No preâmbulo de Novo Conhecer, em 1977, Victor Civita afirmou que, embora fosse inegável o progresso do sistema escolar brasileiro, nenhuma escola podia ser responsável isoladamente pela formação do cidadão. A família desempenhava um papel capital nesse processo e os pais conheciam o valor

71 CIVITA, Victor. O representante Abril: um deles falando, sou eu falando. Release Líder Abril, 1 mar. 1974. Mimeografado.



72 CIVITA, Victor. Caro Leitor. In: Enciclopédia Abril. São Paulo: Abril Cultural, 1971. p. 7.



73 GRANDES Personagens da Nossa História. São Paulo: Abril Cultural, 1969. p. 3.



74 GONÇALVES, s/data.

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de uma enciclopédia para a formação dos filhos. Por essa razão, em 1966, foi lançada a primeira edição de Conhecer.75 Tendo em vista esses prefácios, é possível apontar algumas características das estratégias utilizadas por Victor Civita em seus prefácios. A primeira consistia em compartilhar com o leitor o sucesso da editora, destacando o caráter pioneiro dessa empresa no processo de “democratização do conhecimento”. A segunda dizia respeito à necessidade de mostrar ao leitor que ele estava adquirindo uma obra de “substância cultural”. O terceiro aspecto referia-se ao fato de ele destacar a importância que os saberes e o conhecimento legitimado adquiriram no mundo contemporâneo, conforme detalhado no texto da enciclopédia Tudo, de 1977. O preâmbulo desse texto é, também, elucidativo para a compreensão das sínteses e representações que Victor Civita fazia dos “leitores modernos”. Para ele, os leitores seriam pessoas apressadas que precisavam de informações atualizadas e sintéticas. Ele afirmava que, para se manter atualizado, não adiantava ao leitor dispor de várias fontes de consultas. Era necessário facilitar o acesso ao conhecimento de modo rápido. Atender a essa necessidade justificava a publicação de Tudo. Essa obra ofereceria, em um único volume, o conhecimento global, condensado de maneira inteligente e aferido com as fontes mais atualizadas. “É uma obra de consulta para pessoas de grande atividade, que precisam de respostas instantâneas (...). Era isto que pretendíamos: uma enciclopédia em um só volume, que respondesse a todas as suas perguntas”.76 Percebemos que boa parte dos pressupostos do projeto editorial do Almanaque Abril, a serem analisados no próximo capítulo, encontram-se expostos nos prefácios descritos. Não é, pois, por acaso, que encontramos, já no prefácio da enciclopédia Tudo, aquela que viria a ser a chamada mais duradoura do Almanaque Abril (de 1985 até 1995): “uma enciclopédia em um só volume”.

Notas à história editorial da revista Veja Antes de Realidade (1966-1976), a Abril era considerada uma empresa produtora de entretenimento. Essa revista pode ser considerada um preâmbu

75 CIVITA, Victor. Carta do Editor. In: Novo Conhecer Brasil. São Paulo: Abril Cultural, 1977a. p. 3.



76 CIVITA, Victor. Carta do Editor. In: Tudo, São Paulo, 1977b. p. 1.

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lo de Veja, porém, comparativamente, sem grandes preocupações com a conjuntura política imediata, já que era mensal.77 Apesar de não constar o nome de Roberto Civita no expediente do primeiro número, era ele o editor da publicação. Formado em jornalismo e economia pela Universidade da Pensilvânia (EUA) em 1957, realizou um estágio na empresa americana Time. Depois disso, quase todas as revistas lançadas pela Editora Abril, a partir de 1968, faziam parte das publicações desse grupo americano de comunicação.78 Victor Civita foi responsável principalmente pelas publicações ligadas ao entretenimento e à cultura. As revistas mais relacionadas ao processo político foram idealizadas e dirigidas por Roberto Civita. Para os objetivos deste livro, é importante destacar que foram as revistas Realidade (1966) e Veja (1968) as responsáveis por dar um perfil jornalístico à Abril. A editora percebeu, com o sucesso de Realidade, que havia um novo nicho de mercado a ser explorado: “uma revista que oferecesse reflexão, aprofundamento e síntese a um leitor que já não tinha tempo para digerir toda a informação que recebia”.79 Uma revista semanal de informações, com efeito, cumpre a função de economizar tempo para o leitor, já que as informações são produzidas em uma velocidade crescente. O leitor moderno necessitava, na concepção de certos editores, do máximo de informações no mínimo de tempo possível. Com essa ideia, a revista americana Time foi criada em 1923. “Time ou Veja ocupam, no mundo das revistas, o mesmo lugar que o fast food em relação aos hábitos alimentares: correspondem a um novo hábito de leitura que se introduz em um momento de modernização econômica das sociedades atuais”.80 Veja e quase todas as publicações da Abril foram criadas em um contexto no qual a informação tem grande valor e não se pode perder tempo. Para fornecer ao leitor esse tipo de informação rápida, era preciso certa padronização, daí ser possível falar em fast news.81 Assim como o “homem moderno” não tem

77 Sobre essa publicação, ver, dentre outros, Faro (1999) e Mira (2001).



78 MIRA, Maria Celeste. O Leitor e a Banca de Revista: a segmentação da cultura no século XX. São Paulo: Olhos d’ Água; FAPESP, 2001. p. 77.



79 ABRIL: os primeiros 50 anos, 2000, p. 24. Mino Carta, primeiro diretor da revista, declarou: “os proprietários (de Veja) achavam (...) que o caminho das revistas semanais era outro, que era o (...) de inspiração americana (...). Agora, eles não percebiam que uma revista desta tem uma implicação política” (GAZZOTI, 1998, p. 11).



80 MIRA, 2001, p. 86.



81 MIRA, loc. cit.

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muito tempo para se alimentar e necessita de comida rápida, o “leitor moderno” também precisaria de informações rápidas e sintéticas sobre a atualidade. Veja foi lançada em setembro de 1968. O primeiro número vendeu 650 mil exemplares. Para o lançamento, fez-se um anúncio para ocupar páginas inteiras de todos os jornais das capitais do Brasil. Foi gravado um teipe de 12 minutos que passou em várias emissoras de TV e um documentário foi exibido nos cinemas.82 O segundo vendeu 250 mil. A vendagem foi caindo até chegar a 16 mil exemplares. Os prejuízos durante os cinco primeiros anos foram próximos a seis milhões de dólares.83 Em 1981, no entanto, a revista alcançava novamente a vendagem de 500 mil exemplares. Em 1991, foi a primeira revista do Brasil a ultrapassar um milhão de exemplares em uma só edição. No final dos anos 1990, era a terceira mais vendida e a maior revista de informação do mundo, fora dos Estados Unidos. Em 2003, era a quarta mais vendida.84 Um documento da redação da revista, datado de 2002, afirmava que a revista deveria tratar de forma aprofundada e analítica os fatos considerados mais importantes da semana, “mostrando ao leitor como esses fatos influem no seu dia-a-dia. Para que isto seja verdade, Veja tem que cobrir um amplo leque de assuntos de interesse geral com a atenção voltada para leitores de todo o território nacional.”85 Outro documento da redação, dirigido aos jornalistas da publicação, permite perceber quais seriam os leitores supostos pela redação. Entre outros pontos, afirmava-se que “calão e termos chulos continuam proibidos, inclusive sob o disfarce de asteriscos. Esta é uma revista de família” e “não force a barra



82 GONÇALVES, s/data.



83 Uma das razões da recuperação foi a criação do sistema de assinaturas. Ver Mira (2001, p. 75-95).



84 Os dados para 1999 eram os seguintes: 1.º (lugar) Time (Estados Unidos): 4.083 milhões (exemplares semanais); 2.º Newsweek (Estados Unidos): 3.178 milhões; 3.º Veja (Brasil): 1.107 milhões; 4.º Der Spiegel (Alemanha): 1.039 milhões; 5.º Focus (Alemanha): 767 milhões; 6.º Panorama (Itália): 508 milhões e 7.º L’Express (França): 441milhões. Dados do 1.º semestre de 1999. (ABRIL: os primeiros 50 anos, 2000, p. 21). No ano de 2003, essa classificação estava do seguinte modo: Time (Estados Unidos): 4.100 milhões; Newsweek (Estados Unidos): 3.100 milhões; U.S. News (Estados Unidos): 2.000; Veja (Brasil): 1.100 milhões e The Economist (Estados Unidos): 1 milhão (RELATÓRIO anual do Grupo Abril 2004, 2005).



85 O QUE é Veja? Mimeografado, s/data. Fornecido pela redação da revista.

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quando descrever as posses de alguém. Nosso leitor é de classe média (...).”86 Mas para se tornar uma “revista de família de classe média”, a publicação teve um papel atuante durante a Ditadura Militar (1964-1985) na defesa das liberdades individuais e de expressão.87 De todo modo, essa revista sempre foi, desde sua primeira edição, um dos libelos da impressa na defesa do pensamento liberal.88

O lugar do Almanaque Abril dentro da Editora Abril Um documento da Editora Abril, datado de 1972, véspera do lançamento do Almanaque, mostrava que ela vivia, então, um excelente momento do ponto de vista comercial: Estamos totalmente integrados: editamos, publicamos, imprimimos e distribuímos revistas, fascículos e livros em uma faixa de aproximadamente 16 milhões de cópias por mês. Publicamos 37 revistas, já lançamos 32 coleções de fascículos (no momento há 12 delas nas bancas), além de livros escolares e de interesse geral. Empregamos mais de 7.000 pessoas, e nossas publicações cobrem todo o Brasil (15.000 pontos de venda). A partir de 1971, iniciamos a exportação de nossos fascículos, em espanhol, para toda a América Latina e Espanha. Em 1972, nosso faturamento será de aproximadamente US$ 80.000.000.89

Tendo em vista o bom desempenho da Editora Abril no mercado editorial, no período, e a possibilidade de extensão desse mercado, ainda pouco competitivo, os Civita perceberam que a Abril deveria se tornar uma empresa de comunicação que atuasse em todas as áreas, pois “as tiragens no Brasil ainda são pequenas; a única forma de manter uma grande empresa em crescimento é ir ao encontro de todos os segmentos do mercado”.90 A Editora Abril tinha uma “vocação” para a produção industrial e para descobrir novos segmentos:

86 INFORMAÇÕES sobre o estilo em Veja. Mimeografado, s/data. Fornecido pela redação da revista.



87 Ver Gazzoti (1998). Quando Mino Carta deixou a redação no início de 1976, a revista tinha uma tiragem de mais 200 mil exemplares. Para ele: “Veja firmouse como um órgão de oposição à ditadura, seus primeiros leitores eram muito politizados” (AFINAL, 3 set. 1987). Sobre a memória da “resistência” à ditadura construída pela impressa, ver Aquino (1999).



88 Sobre o liberalismo, ver, dentre outros, Vincent (1995).



89 THE SCIENTISTS: The great adventure of scientific discovery. São Paulo, Abril, 1972.



90 CIVITA, Victor. A incessante criação de mercados. Expansão, São Paulo, 28 jun. 1972.

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(...) em termos práticos, o resultado é que a editora não é uma grande empresa, mas a soma de muitas pequenas empresas, que têm as vantagens e desvantagens de pertencer a uma grande empresa (…). Segundo item: disposição para tentar coisas novas. Esta é uma vantagem de uma empresa grande. Nós tentamos. Sistematicamente, dezenas de coisas por ano que ninguém em sã consciência, ninguém responsável, ninguém lúcido faria se a sua sobrevivência dependesse do sucesso de qualquer uma delas, porque nós sabemos, por experiência, por bom senso, e também por “chutômetro” que uma parte dessas coisas vai dar certo e outras não. A nossa preocupação, que vem a ser o terceiro item, é uma preocupação constante com a definição precisa da personalidade e do mercado de cada publicação. De vez em quando, a gente consegue identificar um mercado novo, uma área nova onde falta uma publicação. Às vezes a gente faz uma pesquisa, outras vezes a gente sai com a cara e a coragem para ver se existe mesmo esse mercado.91

Os trechos citados ilustram que a Máquina da Memória foi criada em um momento de expansão da Editora Abril e do mercado editorial brasileiro. Seu lançamento esteve, assim, relacionado a uma estratégia de ocupação de todos os espaços do mercado editorial (e de comunicação) que, como se viu, ainda admitia a adoção de posturas pouco “empresariais”. É possível perceber também, a partir das citações, que o Almanaque era apenas mais uma publicação da Editora Abril. Para se ter uma ideia, no ano em que o anuário chegou às bancas, foram lançadas 15 outras publicações, incluindo novas revistas e fascículos. No ano anterior e no posterior, a editora colocou nas bancas mais 13 novas publicações. Em uma empresa como essa, acostumada a grandes tiragens, uma obra que vendia “pouco mais de cem mil exemplares anuais” não era nenhum carro-chefe e não recebia qualquer atenção especial. A Abril funcionava tendo por base a descentralização: a partir da delegação de autoridade e responsabilidade, cada departamento ou unidade era um “centro de lucro” com orçamento próprio, com resultados mensais independentes e com responsabilidades do diretor. A história relatada a respeito do encontro de Samuel Dirceu e Roberto Civita para o lançamento do Almanaque torna-se passível de ser entendida quando se percebe que o “espírito da empresa”, na época do lançamento do Almanaque Abril, era o de criar mercados e conquistá-los. Esse “espírito”, no entanto, não explica tudo. O Almana

91 CIVITA, Victor. A Conquista de Novos Leitores pela Editora Abril. 1 fev. 1973. Mimeografado. (grifos nossos).

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que foi lançado a partir da “necessidade” do Departamento de Documentação da Editora Abril (DEDOC), criado para a revista Veja, ter uma receita própria. Como o setor era, desde sua fundação, uma unidade ou “centro de lucro”, havia o desejo de criar um produto que desse receita. Roberto Civita deu o “pontapé” inicial, e a equipe comandada por Samuel Dirceu desenvolveu o projeto. Marília França, editora executiva do primeiro número, trabalhava no DEDOC desde 1971. Ela afirmou que, em 1973, “resolveu-se fazer alguma coisa no DEDOC que desse algum dinheiro, porque tinha aquele acervo enorme que só atendia às revistas. Fazer alguma coisa com aquilo que gerasse algum produto, aí se decidiu fazer o Almanaque”.92 O DEDOC, cuja especialidade era “vender o saber em pedaços”, não estava, portanto, dando lucro dentro da lógica capitalista. Desse modo, o Almanaque Abril foi, portanto, um subproduto do trabalho do DEDOC, que estava em consonância com a política comercial da empresa, cujo objetivo era atingir todos os mercados. Qual é a dinâmica histórica que contribuiu para o sucesso dessas obras, fascículos, enciclopédias e livros, incluindo-se o Almanaque Abril, vendidos em bancas de jornal, na década de 1970, no Brasil? Após o golpe militar de 1964, a “indústria cultural” se desenvolveu no sentido de atingir o mercado da classe média, mas sua consolidação no país foi anterior ao golpe.93 Entre 1945 e 1964, ocorreram três processos simultâneos no Brasil: 1) a industrialização; 2) as migrações internas e 3) a urbanização. Para a maior parte da população, as dimensões mais significativas dessas mudanças, e principalmente seu impacto negativo, não foram visíveis de 1964 a 1979. O rápido crescimento da industrialização e da urbanização criou oportunidades de vida e trabalho para a maioria da população, proporcionando certa mobilidade social. Houve, também nesse período, aumento da taxa média de escolarização.94

92 Marília França, entrevista ao autor, 13 jan. 2002. Para uma análise dos procedimentos relativos ao trabalho com fontes orais, ver, dentre outros, Ferreira (1996; 2002).



93 ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1991 e HOLLANDA, Heloísa Buarque de; GONÇALVES, Marcos Augusto. Política e Literatura: a ficção da realidade brasileira. In: ______. Anos 70 – Literatura. Rio de Janeiro: Europa Empresa Gráfica e Editora, 1979-80.



94 MELLO, João Manuel Cardoso de; NOVAIS, Fernando A. Capitalismo Tardio e Sociabilidade Moderna. In: SHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da Vida Privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 559-658. O Brasil estava, nesse período, inserido em um processo de

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A grande expansão da Editora Abril ocorreu entre 1960 e 1970. Ela foi uma das empresas de comunicações mais beneficiadas pelas políticas econômicas dos militares, mesmo que indiretamente.95 A Ditadura Militar (19641985) financiou a modernização dos meios de comunicação brasileiros e, em boa medida, esse incentivo era parte de uma estratégia do ideário de segurança nacional dos militares. Assistiu-se, nesse momento, à grande concentração dos meios de comunicação e ao declínio da posição hegemônica que o Rio de Janeiro ocupava no cenário nacional, em relação à edição de jornais e revistas. Isso se explica, em parte, pela incapacidade de renovação dos periódicos após o advento da televisão – uma inovação tecnológica que exigia reestruturação no formato, na linguagem e no estilo das revistas. “A Editora Abril percebeu isso, levou para São Paulo os melhores profissionais e impôs uma nova orientação ao veículo”.96 O mercado editorial brasileiro acompanhou as mudanças da segunda metade do século 20. Na década de 1950, a indústria gráfica cresceu 143%. Na década de 1970, a indústria de publicações, incluindo revistas e fascículos, teve sua produção quadruplicada. Entre 1969 e 1973, a produção de livros aumentou em três vezes e o país entrou no ranking dos dez maiores produtores de livros. “Vivíamos um paradoxo: nunca se proibiu e nunca se produziu tanta cultura como nos anos do regime militar”.97 Nesse período, a produção editorial ficou menos onerosa, pois, a partir de 1967, houve isenções de impostos para a produção e venda de livros.98 Durante os anos 1970, o Brasil se tornou, também, o sexto mercado fonográfico do mundo, o sétimo em publicidade e o segundo em emissoras de rádio. O cine-

crescimento econômico mundial. Ver Hobsbawm (1995, p. 223-263). Para interpretação do período militar, ver, dentre outros, Fico (2004a).

95 Sobre as relações dessa empresa com a Ditadura Militar, ver Mira (2001) e Marconi (1980, p. 116-122). Sobre as medidas econômicas dos governos militares, ver, dentre outros, Silva (1996, p. 300).



96 ABREU, Alzira Alves. A modernização da impressa (1970-2000). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 18-19.



97 PAIXÃO; MIRA, 1998, p. 143.



98 HALLWELL, Laurence. O Livro no Brasil – sua História. São Paulo: T. A. Queiroz; Universidade de São Paulo, 1985. p. 544-558 e REIMÃO, Sandra. Mercado Editorial Brasileiro (1960-1990). São Paulo: Com Arte; FAPESP, 1996.

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ma produzia mais de cem filmes por ano: “com o ‘milagre’ econômico, houve uma significativa elevação do poder aquisitivo das classes médias em paralelo à difusão do ensino em geral, do Mobral à universidade”.99 Basta dizer que o número de estudantes universitários, ao longo da década de 1970, passou de 100 mil para um milhão. O impacto dessas transformações era notável, com efeito, no mercado editorial. Percebe-se, de 1973 a 1979, um crescimento real de 50%. Em 1973, foram vendidos 166 milhões de exemplares e, em 1979, 249 milhões. Na década seguinte, o mercado editorial continuou seu processo de crescimento e diversificação. A esse respeito, convém destacar, por exemplo, que a Editora Brasiliense, apostando em textos introdutórios destinados ao leitor jovem, lançou, somente no ano 1981, mais de 400 títulos, vendendo mais de dois milhões de exemplares. Em 1983, títulos como A revolução industrial, de Francisco Iglesias; Paris 1968: as barricadas do desejo, de Olgária Matos e O populismo na América Latina, de Maria Lígia Prado, venderam mais de 600 mil exemplares.100 O mercado editorial começou a se profissionalizar e, ao mesmo tempo, investir em publicações segmentadas. O final do século 20 foi testemunha não só do crescimento, mas também da diversificação do setor. Em 1993, o Brasil contava com 600 editoras que produziam 300 milhões de exemplares por ano, inserindo o país em sétimo lugar no mercado editorial mundial. Tendo em vista esses contextos,101 concorda-se com Nestor Canclini quando afirma que os fascículos culturais e revistas vendidos em bancas de jornais “levam as inovações literárias, plásticas e arquitetônicas aos que nunca visitam as livrarias nem os museus.”102 Assim, no Brasil, como em boa parte da América Latina, a “socialização” e a “democratização” da cultura foi realizada pelas “indústrias culturais” a partir de empresas privadas na medida em que a cultura não é vista, em geral, como um bem público. Inserido na dinâmica histórica mencionada, a Máquina da Memória foi lançanda em dezembro de 1974. Do ponto de vista econômico, o ano 1974 significou o fim do “milagre” e, do ponto de vista político, o início da abertura realizada pelos militares. Dois acontecimentos marcaram esse ano. De um



99 PAIXÃO; MIRA, 1998, p. 143.

100 Ibid., p. 173. 101 Para uma análise do conceito de contexto, no plural, ver Revel (1998). 102 CANCLINI, 2006, p. 88.

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lado, a posse do general Geisel, com uma proposta de transição controlada em direção à democracia. De outro, a vitória legislativa do único partido legal da oposição, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Os anos seguintes foram marcados por um processo tumultuado e não linear de progressiva defesa do restabelecimento das instituições democráticas, pois a conquista da democracia não era considerada como dada.103 O Almanaque se consolidou em meio aos processos de luta pela democratização e de constantes crises econômicas. A Ditadura Militar chegou ao fim em 1985. O retorno da estabilidade econômica só veio em 1994.104 É ainda importante realçar que parece não ter havido qualquer influência de Victor Civita na concepção e publicação do Almanaque. Todas as obras planejadas por ele tinham um prefácio seu na edição de lançamento, e não havia qualquer um na primeira edição da Máquina da Memória. Na terceira edição, encontra-se, no entanto, no verso da capa, um texto de divulgação geral com sua assinatura. A partir do poder simbólico que, naquela época, a Abril já detinha, o texto buscava uma legitimação educacional e cultural para a Máquina da Memória.105 Na 20.ª edição do Almanaque, em 1994, a diretora de redação, Lucila Camargo, procurou legitimar a obra por meio das tradições, dos objetivos e do poder simbólico da editora. Segundo ela, essa edição representava um marco histórico para a Editora Abril, “tradicionalmente pioneira na democratização do conhecimento. Afinal, cumprimos o desejo de seu criador, Victor Civita – de publicar obras de substância cultural (...)”. Além de carregar o símbolo da empresa, o Almanaque Abril foi a única obra que carregou o nome da casa de edição em seu título. A Editora Abril foi, assim, a única editora brasileira 103 REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; SÁ MOTTA, Rodrigo Patto. O golpe e a Ditadura Militar: 40 anos depois (1964-2004). Bauru: Edusc, 2004. p. 44. Sobre as características do processo de democratização, ver, dentre outros, Kinzo (2001); O’Donnell; Schmitter (1988); Silva (2003); Fico; Araújo (2004b); Reis Filho; Ridente; Sá Motta, (2004) e D’Araújo; Soares; Castro (1995). 104 CARNEIRO, Dionísio Dias. 1974-1994: os desafios da estabilidade postergada. In: LAMOUNIER, Bolivar (Org.). 50 anos de Brasil, 50 anos de Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: FGV, 1994 e CARNEIRO, Ricardo. Desenvolvimento em Crise: a economia brasileira no último quarto do século XX. São Paulo: Fundação da Editora UNESP, 2002. 105 Sobre o poder simbólico, ver Bourdieu (1999a).

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de grande porte que manteve a tradição de publicar um almanaque, expressa do seguinte modo pelo dicionário do Frei Domingos Vieira, em 1871: “as grandes emprezas jornalísticas também costumam publicar annualmente seu almanach”.106 Como visto, no momento da publicação da Máquina da Memória já existia, na Editora, uma tradição de publicações de cunho educacional e cultural, que iam desde as obras didáticas até os fascículos, livros e enciclopédias de divulgação ou difusão científica. O anuário analisado é herdeiro dessa tradição. A obra se inseria no projeto de levar a “cultura legítima” a preços populares para as classes média e baixa, dentro de uma perspectiva da “cultura de massa”, reafirmando a representação dos leitores modernos e a função da leitura construídas por Victor Civita em seus prefácios. Outro ponto que contribuiu para o sucesso do Almanaque, além da tradição da Editora no mercado educacional e cultural de publicações, foi o fato de ele ter se aproveitado da estrutura de distribuição e publicidade já estabelecida na Abril. No que se refere ao primeiro item, pode-se afirmar que o pioneirismo do esquema de distribuição da Distribuidora Abril, e depois da Distribuidora Nacional de Publicações (DINAP), em bancas de jornal, foi determinante para sua consolidação no mercado editorial. Máquina da Memória, desde seu lançamento, podia ser encontrado em todas as bancas de jornal do país, fato que aumentou enormemente seu público potencial, como a imagem a seguir ilustra muito bem. Foi somente no final da década de 1990 que a publicação começou a ser vendida também em livrarias, supermercados e lojas de conveniência. Utilizar-se-ão várias peças publicitárias como um traço, um indício ou um “vestígio arqueológico” que vai nos conduzir a um entendimento inicial do sucesso do almanaque.107 Foram encontrados 23 anúncios publicitários do almanaque. A maioria deles foi publicada na revista Veja e pretendia atingir um público amplo. Um anúncio específico para mães foi encontrado na revista Claudia e outros direcionados aos professores foram retirados de uma publicação voltada para esse público: a revista Nova Escola.

106 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. São Paulo: Bertrand, 1999a. p. 230. 107 Para um estudo de peças publicitárias como “vestígios arqueológicos”, ver Rocha (1995, p. 98). Para uma análise mais global da publicidade, ver Thompson (1995).

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Em 1969, Roberto Civita, como já foi citado, afirma que a Abril, por meio da DINAP, tinha à sua disposição 12 mil pontos de venda versus apenas 800 livrarias.108 Em 1996, a DINAP tinha 23,9 mil pontos de vendas, dos quais 17,1 mil eram bancas de jornal, o que representava 98% do potencial consumidor brasileiro.109 Em 2004, a distribuidora contava com mais de 30 mil pontos de venda, sendo 20 mil bancas de jornal e 14 mil pontos de venda “alternativos”, cobrindo 3,6 mil municípios do país.110 Para efeito de comparação, deve-se mencionar que a maior distribuidora de livros no Brasil, a Catavento, atingia, em 2003, três mil pontos de venda, um número bastante elevado, haja vista que o país contava, neste ano, com cerca de 1.500 livrarias apenas.111 Isso significa que o distribuidor do Almanaque Abril atingia dez vezes mais pontos de venda que o maior distribuidor de livros do país. Assim, o anuário tinha a seu dispor um dos melhores sistemas de distribuição do Brasil, senão o melhor, deixando-o livre do principal “problema” do livro brasileiro: a própria distribuição.112

108 CIVITA, Victor. Palestra sobre publicações periódicas e sua influência na cultura. 13 out. 1969. Mimeografado. 109 THE ABRIL Group Brazil’s leading communications enterprise. São Paulo: Abril, 1996. p. 42. 110 RELATÓRIO anual do grupo Abril 2004, 2005, p. 60. 111 EARP, Fabio Sá; KORNIS, George. A Economia da Cadeia Produtiva do Livro. Rio de Janeiro: BNDS, 2005. p. 46. 112 EARP; KORNIS, 2005, p. 18.

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Figura 2 – “Fique de olho no seu jornaleiro”

Fonte: Veja. São Paulo: Abril, n. 375, p. 135, 12 nov. 1975.

No que se refere à publicidade, o Almanaque e o “centro de lucro” a que ele pertencia sempre teve grandes descontos para fazer sua divulgação nas revistas da Abril, um suporte que, por si só, tornava possível realizar uma excelente campanha de divulgação. Para se ter uma ideia, em 1974, ano de

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lançamento da primeira edição, encontravam-se peças publicitárias em Veja, Quatro Rodas, Realidade, Claudia e Placar.113 Havia ainda uma reportagem de três páginas, também na revista Realidade, sobre o lançamento do anuário.114 Para o lançamento das edições de 1980 e 1985, por exemplo, foram encontradas três peças publicitárias para cada ano nas revistas Veja, Quatro Rodas e Playboy.115 A utilização das facilidades estruturais disponibilizadas para a divulgação do Almanaque nas demais revistas da Editora Abril também foram, portanto, determinantes para seu sucesso. Concorda-se que o trabalho editorial é marcado não somente pelos aspectos comerciais e empresariais, mas igualmente por uma tensão entre a esfera da cultura e a da política.116 Por essa razão, acreditar que o Almanaque Abril é uma obra que está no cruzamento entre a tradição jornalística liberal e a tradição de obras “culturais” e “didáticas”, como os fascículos e enciclopédias. A filiação liberal da empresa, como já se viu, encontra-se explicitamente presente nas páginas da revista Veja. Victor Civita afirmou, por exemplo, em um editorial de 1978: Para começar, queremos afirmar que nos consideramos liberais. (...) E ser liberal para nós é querer o progresso com ordem, a mudança pela evolução, e a manutenção da liberdade e da iniciativa individuais como pedra angular do funcionamento da sociedade. Acreditamos, assim, no capitalismo democrático e estamos convencidos de que a livre iniciativa é o meio mais eficiente para promover o progresso social. Isto porque consideramos a livre iniciativa o único sistema compatível ao mesmo tempo com uma sociedade pluralista, com as liberdades fundamentais do indivíduo, com a eficiência, com o dinamismo, com a inovação.117

113 Veja (n. 123, p. 123, 11 dez. 1974), Quatro Rodas (n. 173, p. 278, 1 dez. 1974), Realidade (n. 105, p. 105, 1 dez. 1974), Claudia (n. 159, p. 129, 1 dez. 1974,) e Placar (n. 247, p. 37, 13 dez. 1974). 114 UM LIVRO com um milhão de informações: no “Almanaque Abril” os grandes acontecimentos do ano. Realidade, São Paulo, n. 104, p. 111-113, nov. 1974. 115 Veja (n. 592, p. 18, 9 jan. 1980 e n. 865, p. 97, 3 abr. 1985), Quatro Rodas (n. 233, p. 120, 1 dez. 1979 e No. 294, p. 35, 1 jan. 1985) e Playboy (n. 53, p. 170, 1 dez. 1979 e n. 116, p. 42, 1 mar. 1985). 116 MOLLIER, Jean-Yves. Édition et Politique (XIXe-XXe siècles). In: BERSTEIN, Serge; MILZA, Pierre (Dir.). Axes et méthodes de l’histoire politique. Paris: PUF, 1998. 117 CIVITA, Victor. Carta do Editor. Nos 10 anos de Veja uma reafirmação de princípios. Veja, São Paulo, Edição 523, p. 6, 13 set. 1978.

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Roberto Civita, refletindo sobre a história de sua empresa, afirmou, em 1998: A Abril fez um caminho de abertura de leque, passando de publicações infantis para femininas, de negócios, masculinas. Só no final entramos com uma revista semanal de informação. Há, portanto, um enorme leque de atividades (além das revistas, há os fascículos, os livros e enciclopédias) que não visaram, em nenhum momento, uma participação no processo político – apenas a cobertura dele. Ligada à informação, a Abril tem apenas a Veja e a Exame (...). As demais publicações, embora tenham uma visão de mundo, não são essencialmente ligadas ao processo político. (...) O papel da imprensa (...) [é] colocar as coisas para o leitor, tentando mudar a cabeça das pessoas nas suas páginas e não nos gabinetes.118

Essas falas permitem entender que todas as publicações da Abril, de alguma forma, difundiam e defendiam, cada uma à sua maneira, a cultura política liberal.119 Sendo assim, percebe-se que boa parte das peças publicitárias da Máquina da Memória recorreu a argumentos liberais para realçar os atributos da publicação. Sustenta-se, nesse sentido, que a maneira particular do Almanaque Abril expressar a cultura política liberal de seus proprietários, mantendo, no entanto, uma produção relativamente imparcial e independente, está, em boa medida, relacionada à formulação de seu conteúdo publicitário. No momento da publicação do Almanaque tem-se, no Brasil, a consolidação da “indústria cultural”.120 Essa consolidação pode ser explicada por alguns fatores como, por exemplo, o desenvolvimento das “classes médias” devido à urbanização crescente. Esse público diversificado e presumido que se constitui em plena Ditadura Militar será “o leitor-modelo” da Máquina da Memória, segundo algumas peças publicitárias. Algumas vezes, tais peças simplificam o projeto editorial da publicação dado o apelo liberal. O apelo liberal do projeto editorial do Almanaque pode ser percebido desde a primeira peça publicitária e de sua primeira capa, como pode ser observado na figura a seguir. A capa é o rosto, a face, a apresentação das publicações impressas. Ao contrário da sóbria capa das enciclopédias, as do Alma 118 CIVITA, Victor. Sou o fim de uma era e o início de outra. Meio & Mensagem, São Paulo, 20 abr. 1998. 119 Para as relações entre outras empresas de comunicação e liberalismo, em outra conjuntura histórica, ver Capelato (1988a). 120 ORTIZ, 1991.

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naque Abril utilizam imagens e textos, pretendendo ser uma síntese da obra e não deixando de ser um tipo de publicidade da publicação. Todos esses aspectos são essenciais para uma publicação que era vendida em banca de jornal. A capa deve chamar atenção em um espaço pequeno e cheio de outros impressos. Na Máquina da Memória, elas são o “cartão postal” da obra, possibilitando o leitor a viajar por várias partes do mundo e do almanaque sem sair de casa ou sem virar uma página. Como a publicação desempenha também a função de guia de viagens imaginárias, nada melhor que um “cartão postal”.121 Tanto o azul turquesa e a cor de fundo quanto a distribuição espacial foi utilizada na primeira capa aparecem em quase todas as edições, até 1984. O que mais chama a atenção é a foto do planeta Terra visto do espaço. Nas décadas de 1960 e 1970, intensificava-se o processo de globalização e a imagem em questão sugere que, com aquela obra, o leitor teria uma compreensão maior, de forma fácil e rápida, do “mundo-como-um-todo”. A imagem da Terra vista de cima também se relacionava com a viagem e com o olhar do primeiro astronauta a ver o planeta do espaço, Yuri Gagarin. Abaixo da indicação do ano ao qual se destinava o primeiro Almanaque Abril, encontra-se sugerida a associação que os editores faziam entre o perfil do periódico, seus potenciais leitores e seus supostos usos: “Mini-enciclopédia indispensável em casa, no escritório, na escola e para os vestibulares” (grifo nosso). A publicação era uma enciclopédia portátil e, por isso, poderia ser utilizada em qualquer lugar, circunstância e necessidade. A tira vermelha no canto inferior direito destaca o número de páginas (686), realçando o caráter volumoso da publicação. Afirmava-se também que a obra tinha um milhão de dados e ainda 16 páginas de mapas em cores.122 A contra-capa, como todas as posteriores, privilegiava a mensagem escrita. Uma frase sintetizava o que a Máquina da Memória desejava ser: “100 enciclopédias reunidas em um único livro de referência”.

121 Sobre a relação entre imagem e texto, ver Novaes (1998, p. 116). Sobre os cartões postais, ver Kossoy (2000, p. 63-71). 122 O miniatlas, até o início da década de 1990, foi constituído, basicamente, de mapas políticos e/ou físicos das nações. Algumas capas e anúncios faziam questão de ressaltar que essa parte, que continha também as bandeiras dos países, era a única colorida (até a edição 1996).

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Figura 3 – “Finalmente, o Almanaque sabe-tudo!”

Fonte: Veja. São Paulo: Abril, n. 327, p. 123, 11 dez. 1974.

De acordo com as imagens construídas na primeira capa e contracapa, utilizadas na primeira peça publicitária, a obra permitia diversos usos e apropriações. No entanto, o anúncio procurava enfatizar, dentre outras informações, dois aspectos da teoria liberal: a competição e o individualismo.123 Não se está dizendo, com isso, que a publicação fosse ou defendesse diversos pressupostos

123 Sobre o liberalismo, ver, dentre outros, Vincent (1995).

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liberais, mas que ela fazia um uso simbólico do liberalismo. É possível, principalmente tendo em vista o citado anúncio, que o objetivo fosse induzir o leitor a acreditar que aquela publicação era suficientemente abrangente e, por consequência, ao comprá-la, ele não necessitaria de outras fontes. Essa hipótese não descarta o fato de que a abrangência do conhecimento veiculado era posto como um meio de realização pessoal: “Seja esperto. Tenha um milhão de informações atualizadas ao alcance da sua mão. Consultou, respondeu. O Almanaque Abril sabe tudo. Com ele ao seu lado, você leva uma tremenda vantagem sobre os outros”.124 A Máquina da Memória oferecia um conhecimento atualizado e não deixava margem ao questionamento ou dúvida, afinal ele seria o “sabe-tudo”: “Não pergunte. Consulte o Almanaque Abril”. Não era necessário indagar ou ter dúvida, bastava consultar o “sabe-tudo”: “o Almanaque Abril tem respostas imediatas para todas as suas perguntas!”. Esse mesmo recurso foi utilizado por obras semelhantes ao Almanaque Abril. A obra de referência francesa Quid, por exemplo, em 2001, afirmava em sua capa: “tudo sobre tudo e um pouco mais que tudo”. Nesse primeiro anúncio, destacando-se o caráter prático da obra, há indícios para pensar-se que o público-alvo, ao menos da peça publicitária, era, essencialmente, “os novos setores médios” surgidos com o processo de modernização, principalmente após o milagre econômico.125 A publicação poderia, inclusive, facilitar o ingresso na carreira universitária, como é destacado tanto na primeira capa e na primeira peça publicitária, quanto como um dos temas da campanha produzida para a edição seguinte. Essa peça publicitária afirmava: “Alguns pontos a mais no exame de conhecimentos gerais podem garantir a sua vaga na faculdade. Consulte o Almanaque Abril 76. Você que vai prestar vestibular, fique na cola do Almanaque Abril 76. (...) No mínimo, você vai ter um milhão de dicas para seu exame de Conhecimentos Gerais. Já nas bancas”.126 O anúncio referente à edição de 1985 talvez seja o que melhor ilustra a temática da realização individual, como pode ser observado na próxima figura. Ha 124 FINALMENTE, o Almanaque sabe-tudo! Veja, São Paulo, n. 327, p. 123, 11 dez. 1974. 125 Sobre esse processo de modernização durante a Ditadura Militar, ver Mello; Novais (1998, p. 559-658) e Silva (1996, p. 273-291). 126 ALGUNS pontos a mais no exame de conhecimentos gerais podem garantir a sua vaga na faculdade: consulte o Almanaque Abril 76. Veja, São Paulo, n. 377, p. 137, 26 nov. 1975.

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via uma imagem de uma mulher com luvas de boxe e uma chamada que afirmava: “Vamos à luta!”. Segundo o texto, o periódico protegeria o leitor em todas as suas lutas. Como pode ser observado, o leitor, ao utilizar o Almanaque Abril 1985, estaria preparado para vencer: “Consulte-o para pesquisas ou leia-o pelo prazer de descobrir muito mais do que esperava. Você vai ganhar todas!”. Percebe-se que esta peça era dirigida ao público do sexo masculino. Naquela época, final da Ditadura Militar, a mulher era um tema recorrente na publicidade brasileira e, ao que parece, até meados da década de 1990 os leitores do anuário, segundo as pesquisas internas da redação, seriam predominantemente masculinos. Figura 4 – “Vamos à luta!”

Fonte: Veja. São Paulo: Abril, n. 865, p. 97, 3abr. 1985.

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Percebe-se, na maioria das peças publicitárias encontradas, que o foco das mensagens relaciona-se à necessidade de informação do indivíduo. Elas pretendiam inserir o benefício da compra na vida pessoal do consumidor, dando a entender, explícita ou implicitamente, que a obra colaborava para a realização pessoal (“para vencer na vida!”) e, por isso, a publicação seria necessária para o leitor. Em geral, havia em quase todas as edições uma insistência sobre a esfera privada dos leitores (os estudos, o trabalho, a casa), sem referência a um público-alvo específico. Como exemplo dessa permanência, cita-se o mote da campanha publicitária da capa da edição de 2005 que afirmava: “o Almanaque Abril 2005 traz tudo o que você precisa saber para se dar bem na escola e no trabalho”. Sem procurar exaurir o tema das “origens”, acreditamos que os dois fatores realçados, o pertencimento a um gênero editorial de larga difusão e aceitação, bem como o fato de ter sido lançado pela maior editora brasileira na última metade do século 20 explicam, em grande medida, o sucesso e a permanência da Máquina da Memória no mercado editorial brasileiro desde a edição de 1975. No próximo capítulo procurar-se-á reconstruir a história editorial deste best-seller brasileiro.

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Capítulo 2

História editorial de um best-seller brasileiro

Tendo em vista as “origens” e os contextos analisados no capítulo anterior, explicar-se-á, na primeira parte deste capítulo, a estrutura material do Almanaque Abril, apresentando a divisão da história editorial da publicação em três momentos: da edição de 1975 a 1984; 1985 a 1995 e 1996 a 2006. Na segunda parte, apresentar-se-á uma descrição parcial das práticas de leituras realizadas pelos leitores que escrevem cartas para a publicação.1

Almanaque Abril: estruturas dos conteúdos Sessenta por cento da primeira edição da Máquina da Memória foi uma tradução do The Official Associated Press Almanac.2 Os 40% restantes, referentes a assuntos brasileiros, foram editados pelo Departamento de Documentação da Editora Abril, o DEDOC. A edição brasileira preservou a tradição presente no Almanaque americano, que remontava ao século 18; segundo essa tradição, a obra recebia o nome da casa editorial que a publicava, daí Almanaque Abril.

1 Para uma análise que privilegia o que o livro diz sobre a leitura e o que o leitor diz sobre o livro, ver Botrel (2004, p. 99-120).



2 THE OFFICIAL ASSOCIATED PRESS ALMANAC 1975. Successor to The New York Times Encyclopedic Almanac. Maplewood, Hammond Almanac, Inc., 1974.

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Dividido em 29 capítulos, a obra utilizou, até a edição de 1996, o papel jornal, considerado um dos mais baratos e de baixa qualidade. O tamanho original (15 cm de largura por 23,5 cm de comprimento) foi mantido até 2001. Em todas as edições analisadas, percebe-se uma escrita padronizada, dando a impressão de que a obra foi redigida do início ao fim pela mesma pessoa. No Brasil, esse modelo de jornalismo ganhou força a partir do lançamento da revista Veja, em 1968: “o fato de selecionarem e organizarem a notícia e a forma impessoal e objetiva de expor os fatos dão a entender que o que se lê é uma avaliação neutra dos fatos”.3 A estrutura básica dos conteúdos abordados nas 32 edições da Máquina da Memória esteve presente desde o primeiro número. A maior variação consistiu no abandono progressivo das questões relativas às ciências físicas e biológicas. Basicamente, eram quatro as temáticas trabalhadas: 1) Retrospectiva do ano que passou; 2) Brasil; 3) Mundo; e 4) Conhecimentos Gerais. O índice da edição de 1994, conforme pode ser observado na imagem a seguir, talvez seja o que melhor ilustra graficamente essa divisão. Figura 5 – “Sumário”

Fonte: Almanaque Abril 1994. São Paulo: Abril, 1994. p. 7-8.



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3 MIRA, 2001, p. 89.

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História da Edição4 Primeiro momento (1975-1984) Mesmo tendo identificado quatro temáticas básicas ao longo das edições do Almanaque Abril, é necessário enfatizar que nem sempre elas apareciam de forma tão evidente como na imagem anterior. Na primeira edição (1975), percebemos que a retrospectiva do ano anterior era trabalhada no capítulo referente à “Cronologia 1973/1974”, “Destaques” e “Obituário”. Os assuntos referentes ao Brasil eram tratados nos capítulos “Brasil, História e Governo”; “Brasil, Geografia”; “Brasil, População”; “Brasil, Criminalidade”; “Brasil, Orçamento”; “Estados e Territórios”; “Cidades Brasileiras”; “Educação”; “Saúde Pública e Medicina”; “Transporte e Turismo”; “Assuntos Militares” e “Economia e Trabalho”. As informações sobre o mundo estavam concentradas nos seguintes capítulos: “Assuntos Diplomáticos”; “Nações do Mundo” (maior capítulo, com 141 páginas) e “Mapas”. Os mapas encontravam-se inseridos em um encarte que contava com 16 páginas coloridas. Os conhecimentos gerais eram tratados, em geral, nas seguintes seções: “Ciências”; “Estrelas e Planetas”; “Terra: Fatos e Números”; “Grandes Desastres”; “Meios de Comunicação”; “Artes”; “Prêmios”; “Religiões”; “História Antiga e Moderna” e “Esportes”. No primeiro número, muitas vezes, alguns assuntos referentes ao Brasil e ao mundo estavam no mesmo capítulo. No capítulo “Religiões”, por exemplo, havia um título sobre “Personagens da Religião no Brasil” e outro sobre “Filósofos, Teólogos e Religiosos no Mundo”. No capítulo sobre “Economia e Trabalho”, havia um grande número de informações sobre o Brasil, mas também alguns títulos sobre o mundo, como por exemplo, “Taxa de Inflação dos Principais Países Ocidentais”, “Energia Elétrica no Mundo” e “As Maiores Empresas Industriais do Mundo”. As informações sobre o Brasil também se misturavam com as de conhecimentos gerais. No capítulo sobre “Saúde Pú-



4 Para não sobrecarregar o livro com notas, optou-se por citar no texto apenas a edição em que a informação foi retirada do Almanaque Abril e a localização da seção onde se pode encontrá-la no Almanaque. A presença de um bom índice temático na publicação dá liberdade para tomar tal decisão.

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blica e Medicina”, por exemplo, havia informações sobre “Doenças Transmissíveis no Brasil” e “Câncer no Brasil” junto a informações sobre “Peso Médio dos Vários Órgãos Humanos” e “Glossário Médico e Psiquiátrico”. De 1977 a 1979, percebe-se que muitos capítulos foram apenas atualizados. A atualização é uma dimensão essencial na “nova” literatura de almanaques. O Almanach de Gotha para o ano de 1862, por exemplo, afirmava na introdução: “a redação fez todos seus esforços para revisar o conteúdo da edição deste ano tendo em vista as informações mais recentes”. A edição de 1978, do Almanaque Abril, utiliza mapas, pela primeira vez, fora do encarte próprio. São plantas, em preto e branco, dos metrôs de São Paulo, Rio de Janeiro, Nova York, Paris e Londres. Havia também três desenhos do corpo humano e do esqueleto, além de músculos e órgãos internos. Essa edição foi a primeira a inserir bandeiras dos Estados brasileiros, já que, até então, o encarte de mapas continha apenas bandeiras das nações. Os mapas reforçavam o caráter utilitário da Máquina da Memória que, desde o primeiro número, já editava uma lista de Códigos de Endereços Postais (CEP) e de códigos de Discagem Direta à Distância (DDD). A parte mais ligada à utilidade foi, talvez, a denominada desde 1977 como “Guia de Profissões”. Dado o sucesso dessa seção, em 1984 surgiu o primeiro subproduto do Almanaque: o anuário Guia do Estudante, denominado inicialmente de Cursos e Profissões, que progressivamente ganhou vida própria e se separou da redação do Almanaque Abril em 1986. A primeira tentativa de rompimento com o modelo inicial aconteceu em 1979 quando, além de mudanças de conteúdo, houve inúmeras modificações na organização interna. Até então, a obra era organizada em capítulos. A partir desta edição, surgem seções temáticas agrupando os diversos capítulos. Um destaque foi a criação do tópico denominado Curiosidades. Em 1983, outro arranjo é tentado, mas os textos do Almanaque continuam tratando dos mesmos temas, porém reagrupados. Em todo esse período, a mesma contracapa foi utilizada, com poucas alterações no texto. A edição de 1983 foi a primeira produzida fora do DEDOC. A obra se integrou a outro setor da Editora. Essa edição também foi a primeira a utilizar fotos dentro da obra (são cinco no sumário). A edição seguinte (1984) introduziu algumas modificações, como um pequeno aumento no tamanho das letras, que de certo modo já anunciava o próximo momento.

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Convém, ainda, situar e diferenciar as relações da publicação com o DEDOC. Bias Arrudão afirma que o DEDOC era um “depositário de informações – um misto de biblioteca com hemeroteca mais um gigantesco arquivo de fotos –, e os pesquisadores que nele trabalhavam eram, a princípio, especialistas em recuperá-las para o usuário”.5 Na década de 1990, os usuários passaram a fazer eles mesmos as pesquisas. Desde então, parte dos pesquisadores organizava as informações para que o usuário as encontrasse, e outra parte passou a recolher informações para a montagem de bancos de dados. Nesse momento, as atividades realizadas pela redação do Almanaque e do DEDOC, teriam ficado mais próximas, pois “por um lado se organizava as informações e por outro elas eram sistematizadas; no caso do Almanaque, para serem publicadas, no do Dedoc para serem recuperadas pelo usuário”. No entanto, Arrudão destaca que nesse momento, na década de 1990, o “Almanaque também já tinha mudado seu foco, tornara-se mais ‘jornalístico’, como várias pessoas que trabalharam nele na década de 1990 costumavam dizer, e praticamente já nem usava o DEDOC”. Comparando as atividades profissionais realizadas no Almanaque e no DEDOC, o jornalista Lauro Machado Coelho, que trabalhou na publicação de 1974 até 1994, afirmou: o Departamento de Documentação da Abril atendia a pedidos de pesquisa das diversas publicações da empresa, que iam desde perguntas de algibeira – uma data, a grafia de um nome – até levantamentos mais elaborados, sobre os mais diversos assuntos, de política à fabricação de cerâmica chinesa. O Almanaque oferecia pesquisas mais organizadas, feitas dentro de áreas mais específicas, que incluíam o contexto histórico, os acontecimentos mais atualizados possíveis e, também, uma certa dose de análise. Foi assim na cobertura extensiva que fizemos de conflitos como o do Chade, do Sudão, do Líbano, do Irã, o árabe-israelense, etc. além do material existente em História e Países, havia os ensaios, às vezes muito amplos, dos Destaques do Ano, em que eram traçados panoramas analíticos – por exemplo da Era Bréjnev ou Mao Tsetung, quando ambos morreram; do processo de dissolução da URSS e de desmonte do bloco socialista, e assim por diante. Termos nascido como um subproduto do DEDOC que, depois, ganhou vida própria e tornou-se totalmente independente dele, teve a vantagem de termos herdado do trabalho lá a tarimba de pesquisador, a facilidade em garimpar informações, a flexibilidade no uso do material disponível, etc.6

5 Bias Arrudão, entrevista escrita ao autor, 15 fev. 2007.



6 Lauro Machado Coelho, entrevista escrita ao autor, 8 fev. 2007.

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Percebe-se, desse modo, que a marca da pesquisa jornalística específica do DEDOC – esse “misto de biblioteca com hemeroteca” – acompanhou a “fabricação do texto” do Almanaque mesmo depois de sua saída desse departamento. Esse “pesquisador”, formado no DEDOC, era especialista em organizar informações para os leitores da Máquina da Memória. Por outro lado, a saída desse departamento representou, inclusive materialmente, transformações na fórmula que haviam consagrado a publicação até a edição de 1984. Bias Arrudão destacou, também, que a saída do DEDOC refletiu uma tendência de profissionalização da Editora Abril nos anos 1980. Para esse jornalista, a entrada em um setor mais dinâmico e comercial resultou em maior pressão pois, naquele momento, a obra começou a sofrer interferência de pessoas de fora da redação. No que se refere à forma material, o “primeiro momento” (1975-1984), portanto, foi marcado por certa uniformização de capas, lombadas e poucas mudanças de conteúdos.

O segundo momento (1985-1995) Desde o início, a obra pretendia encontrar a fórmula certa para que o leitor, em um tempo mínimo, achasse a informação de que necessitava. No segundo momento, várias mudanças nos protocolos de leitura foram efetuadas para atingir esse objetivo. Em 1985, a obra assumiu o slogan de capa “a enciclopédia em um só volume”. Nesse período, a utilização de imagens dentro da publicação e as preocupações didáticas ganharam maior relevo. No prefácio da edição de 1987, a diretora de redação, Sheila Mazzolenis, afirmou: Há treze anos a “Editora Abril” lançava o Almanaque Abril como uma inédita obra de referência no Brasil. Foi a primeira publicação séria no gênero a reunir, de maneira sintética e organizada, milhares de informações sobre o Brasil e o mundo. O Almanaque firmou grande prestígio de seriedade na informação e transformouse em um banco de dados ágil, de fácil consulta e sempre atualizado. Cada nova edição do Almanaque é resultado de um impressionante trabalho de pesquisa, realizado anualmente, que se baseia na análise diária de todos os jornais e revistas mais importantes do Brasil e do exterior – principalmente Europa e Estados Unidos – que se completa com a consulta aos bancos de dados mais atualizados do mundo e a especialistas das mais diversas áreas. ‘Procure no Almanaque Abril’ já se tornou

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uma resposta clássica às dúvidas de milhares de leitores que se habituaram a ter o Almanaque sempre por perto (grifo nosso).

Esse prefácio consolida o trabalho editorial de construção de uma série de imagens da publicação em suas capas, contracapas e publicidades. Em primeiro lugar, destacava-se a capacidade de síntese da Máquina da Memória, sua seriedade e agilidade de consulta. Para confirmar a idoneidade e mostrar a rotina de trabalho dos jornalistas, a diretora de redação revela que a leitura de publicações europeias e norte-americanas era uma prática na redação do periódico. A alusão à reputação que a publicação teria adquirido (referente à expressão “procure no Almanaque Abril”) de fato foi confirmada por cartas e entrevistas com leitores, como se verá mais adiante. No prefácio da edição de 1988, a diretora de redação reafirmou que o leitor ideal do Almanaque era todo brasileiro de 8 a 80 anos, fossem eles estudantes (de todos os graus), profissionais liberais, professores, pais, ou simplesmente curiosos de qualquer idade ou profissão: “– ou seja, gente como você, que precisa estar sempre bem informada. Este é o nosso universo de leitores, tão amplo e variado quanto o próprio Almanaque Abril”. Na edição de 1989, redefiniu-se para três o número de seções da Máquina da Memória: “Brasil em Dados”, “Brasil e Mundo” e “Guia Mundial”. Iniciaram-se mudanças “radicais” com o objetivo de auxiliar o leitor a encontrar mais facilmente as informações. Além do índice remissivo e do sumário, havia índices no princípio das três seções e em todos os capítulos; marcadores laterais para a parte referente ao Brasil e ao mundo. Entre essas seções, encontrava-se a parte denominada “Brasil e Mundo”, que continha também capítulos sobre cultura geral. No prefácio dessa edição, a diretora de redação afirmou que os textos haviam sido reformulados para triplicar a quantidade de informação e “facilitar ainda mais a consulta para nossos leitores”. Dentre as modificações com o objetivo de melhorar ou agilizar a consulta, destacavase uma parte que procurava ensinar os diversos usos do periódico, denominada “como usar o Almanaque”. A introdução à edição de 1990 afirmava que a publicação havia mudado, pois ganhara mapas de todos os continentes e de 169 países. Um capítulo sobre ecologia foi criado e havia um levantamento inédito sobre a história da ciência no Brasil. Ao elogiar o novo formato do Almanaque, o redator-chefe,

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no entanto, realçou que a obra continuaria sendo “a publicação mais atualizada, precisa, ágil e bem informada do Brasil, sobre todos os assuntos – afinal, foi com essa fórmula que, ao longo dos últimos 16 anos, atingimos a marca recorde de 2 milhões de exemplares vendidos”. Foi a primeira vez que se fez referência à vendagem da Máquina da Memória. A passagem fazia questão de re-enfatizar certos atributos, como agilidade, precisão e a capacidade de se atualizar. Dentre outros aspectos, essa insistência não deixava de ser uma tentativa de distinguir o Almanaque das enciclopédias tradicionais. Nestas, em geral, o conhecimento não era apresentado de forma sintética, além de não ser atualizado. A procura, na maioria das vezes, não era rápida, em função do tamanho dos verbetes e do número de volumes.7 Segundo seus editores, além de ser mais barato, a publicação ainda tinha todas aquelas vantagens. A partir da edição de 1991, os textos da Máquina da Memória passaram a cobrir acontecimentos do dia 1.º de janeiro a 31 de dezembro e não mais de 1.º de setembro a 31 de agosto. Segundo a diretora de redação, essa mudança atendia a um desejo manifestado pelos leitores habituais da publicação, de que seu lançamento coincidisse com o início do ano escolar. Tal intenção se torna clara se considerarmos que, junto à edição de 1991, foi distribuído um manual denominado “Pesquisas Escolares”. A diretora de redação afirmou que os estudantes do Ensino Fundamental e Médio iriam encontrar, nesse brinde, material de qualidade para seus trabalhos. Apesar da contra-capa afirmar que o anuário era “a mais útil fonte de pesquisas para todos os níveis”, percebe-se que a intenção era tornar o periódico cada vez mais didático, com o objetivo de focá-lo no público estudantil. Porém, essa intenção só se tornou ação concreta na edição de 1996. De acordo com o Histórico Editorial,8 a partir da

7 Rey (1982) destaca que o discurso didático das obras de referência, em especial, das enciclopédias, nasceu no final do século 18 com a Encyclopaedia Britânica. Ele suplanta a forma metódica ou analítica presente, por exemplo, na Encyclopaedia de Diderot e D’Alembert. Para acessar o real, esse discurso tende a suprimir e/ou limitar a polêmica em prol de um didatismo informativo e persuasivo. Os anuários como os almanaques do tipo Almanaque Abril levam tal princípio às últimas consequências, principalmente por disporem de pouco espaço. Ver, também, Campello (1998) e Silberger (1991). Sobre o enciclopedismo, ver, também, Schaer (1996); Meschonnic (1991) e Mollier (1999, p. 329-338).



8 Documento fornecido pela redação do Almanaque que continha descrições sobre a memória da publicação.

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edição de 1991, aumentou o grau de atualização dos assuntos e a publicação passou a ter maior caráter jornalístico (isto é, com privilégio das informações sobre atualidades, mediante textos curtos, claros e objetivos). No prefácio da edição de 1992, a diretora de redação, Lucila Camargo, voltou a ressaltar a tradição à qual a publicação pretendia filiar-se, a função e a imagem da obra: “para produzir estas 786 páginas com o rigor jornalístico necessário a uma obra de referência de caráter enciclopédico e de livro do ano, mobilizando, ao longo dos últimos doze meses, além da equipe fixa, mais de 120 consultores e colaboradores”. Segundo o Histórico Editorial, a edição representou uma conquista dentro do desafio de tornar o Almanaque mais legível: “com o novo projeto gráfico, o corpo das letras é aumentado sem perda de conteúdo: 80% da obra foi reescrita em linguagem mais objetiva e enxuta”. Ainda de acordo com o Histórico, o Almanaque havia sido feito em computação gráfica, e esse fato provavelmente auxiliou no processo de aumento das letras. Em 1994, foi lançado o primeiro CD-ROM do Almanaque Abril; progressivamente, a edição eletrônica interfere na publicação impressa de duas formas. Por um lado, esse tipo de edição leva a um encurtamento dos textos da versão impressa para que eles pudessem ser aproveitados na versão eletrônica, uma vez que se supunha que textos longos não eram lidos em tela. Por outro lado, a versão eletrônica começou a conter determinadas informações que a versão impressa tratava de forma resumida ou simplesmente não mencionava. Ela apresentava mais informações que a versão impressa. Um artigo sobre o CD-ROM do Almanaque afirmava que esse outro suporte continha 25% a mais de dados que a versão impressa e possibilitava ao leitor utilizar vídeos, sons e imagens. Percebe-se, novamente, a tentativa de distinguir a Máquina da Memória das enciclopédias tradicionais, já que esse processo de migração do texto impresso para o digital gerava, nas enciclopédias, um efeito inverso, pois os textos em CD tinham menos informações que a versão em livro.9 O segundo momento (1985-1995) foi caracterizado por várias experimentações na diagramação, nas capas e na abordagem dos conteúdos, sem que a obra abandonasse, contudo, sua dimensão enciclopédica. Aliás, a marca



9 A TRANSIÇÃO para o século XXI. Jornal da Tarde, São Paulo, p. 7, 21 jul. 1994. 1 CD-ROM.

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principal desse momento foi o subtítulo “A enciclopédia em um volume”. A título de ilustração da estrutura material desse período, reproduzimos a seguir a primeira página do capítulo de “História do Brasil” da edição de 1995.

O terceiro momento (1996-2006) No terceiro momento, ocorreram duas importantes mudanças na publicação. Em primeiro lugar, o periódico mudou seu foco, isto é, seu públicoalvo. Se os exemplares, até o início desse momento, pretendiam atingir um público amplo, a partir da edição de 1996 a publicação foi dirigida para o leitor jovem. Houve “melhoras” no que se referia à qualidade do papel, à visualização dos textos e à maior utilização de imagens. As páginas correspondentes ao calendário e a temas correlatos ganharam espaço no terceiro momento. O início da disseminação da Internet, da TV a cabo, dentre outras tecnologias similares, além da existência do CD-ROM do Almanaque, tiveram influência direta nos rumos da publicação a partir da edição de 1996. Na década de 1990, percebeu-se, principalmente na mídia impressa brasileira, maior preocupação em melhorar a apresentação estética, com reformas gráficas e utilização de cores e ilustrações. O prefácio intitulado “Caro Leitor”, dizia que o Almanaque 1996 era completamente novo, pois havia ocorrido uma série de transformações visuais e de conteúdo: “com mais páginas, melhor papel e impresso em cores, traz mais de 600 ilustrações, mapas e bandeiras. Reorganiza em ordem alfabética as informações sobre o Brasil e o mundo”. Só nesse pequeno trecho, foram citadas três importantes mudanças. A utilização de papel de boa qualidade (que, pela primeira vez, deixa de ser o jornal) e o uso das cores foram as principais transformações. Apesar de não haver fotos, havia ilustrações e mapas. As duas modificações materiais citadas (cores e papel de qualidade) acabaram por encarecer o Almanaque, como será mostrado mais adiante. O trecho citado anunciava também que o anuário abandonava a ordem temática. Essas mudanças, no entendimento posterior dos editores e leitores, limitaram os usos da Máquina da Memória pois, com essa estrutura, as pesquisas sobre grandes temáticas foram comprometidas. Percebe-se que tais modificações tinham o objetivo de atrair ou focar a obra no público jovem ou estudantil. Abandona-se, portanto, a perspectiva de atingir todo brasileiro de “8 a 80 anos”.

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Segundo a concepção dos diretores da publicação, os jovens tinham maior interesse em utilizar um periódico com textos curtos, de fácil localização (daí a organização alfabética), com páginas ilustradas e de boa aparência. O Histórico Editorial afirmou: “após discussão do plano editorial com a diretoria editorial, trabalha-se na reestruturação do ‘Almanaque Abril 1996’ com foco no leitor jovem”. Nessa edição, a linha fina, ou slogan, da Máquina da Memória passa a ser “a sua fonte de pesquisa” em substituição ao “uma enciclopédia de um só volume”. Lucila Camargo, diretora de redação durante a década de 1990, destaca que: tinha a missão de transformar o Almanaque Abril em obra de referência de caráter jornalístico, pois até 1989 (edição de 1990) ele era uma obra de referência de caráter mais enciclopédico, cujos assuntos variavam pouco. Nem era bem uma enciclopédia, nem era bem um livro do ano. Não tinha público definido e tendia a uma linguagem mais formal, intelectual, portanto, atingindo um público bastante elitizado do ponto de vista cultural. O objetivo da Abril era tornar o Almanaque Abril mais jovem, mais popular, para atingir um número maior de leitores. Por outro lado, os leitores pediam uma obra de referência mais atualizada do que vinha sendo até então. (...) Aí fomos fazendo mudanças para torná-lo uma obra de referência acessível aos estudantes de primeiro e segundo graus, mas sem perder a perspectiva de atender outros públicos (...). Portanto, ele não se tornou uma obra segmentada e sim uma obra de referência sobre o Brasil e o Mundo mais popular, mais acessível em termos de linguagem, mais atualizada em termos jornalísticos (por exemplo, fomos a primeira publicação a editar o mapa da ex-União Soviética dividida em vários países formando então a CEI). (...) A organização por ordem alfabética foi uma tentativa de facilitar a recuperação da informação para um público mais amplo. Uma obra de referência depende, fundamentalmente, das formas com que ajuda os leitores a encontrar a informação que buscam. Portanto, índices variados e ordem alfabética são grandes facilitadores.10

Apesar da tentativa de “popularizar” (isto é, de “atingir um número maior de leitores”) a Máquina da Memória focando-a no público jovem, Márcia Tonello, uma das jornalistas responsáveis pela publicação em 1996, e posteriormente diretora da publicação, afirmou que a adoção da ordem alfabética “foi uma decisão equivocada, porque o conteúdo é bastante cruzado e se relaciona muito”.11 Com a ordem de A a Z, perdia-se o relacionamento entre os



10 Lucila Camargo, entrevista escrita ao autor, 10 mai. 2002.



11 Marcia Tonello, entrevista ao autor, 14 jan. 2002.

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conteúdos, obrigando os jornalistas a escrever mais sobre um determinado assunto. “Na organização por capítulo não precisava ficar retomando aquele assunto, mas no A a Z precisa, pois há uma relativa independência.” Para ela, no entanto, o princípio que havia orientado a mudança era correto. Ela afirmou que, até então, o Almanaque atendia a um grupo mais ligado à cultura enciclopédica. Porém, em 1996, esse grupo representaria algo em torno de 20% dos leitores. A mudança se deu de forma brusca em função de uma decisão editorial externa à redação, em que foi estabelecido que a obra deveria ser mais utilizada pelo jovem estudante. Nesse período, mais ou menos 60% dos leitores eram estudantes secundários e professores. No entanto, as mudanças materiais foram defendidas. Para ela, antes, o anuário trabalhava com um corpo ilegível, pois as letras eram muito pequenas, e o texto era, muitas vezes, rebuscado. Havia compulsão por escrever, sem se preocupar se o leitor iria conseguir ler e entender. Ela afirmou que “tornar-se mais legível é também uma exigência dos tempos. Temos que melhorar a apresentação e a legibilidade”. A edição de 1997 manteve a ordem alfabética. Segundo o Histórico Editorial, “há um aperfeiçoamento da pauta, com foco em pesquisas escolares, e são incluídos índices temáticos que possibilitam melhor acesso ao conteúdo. Intensifica-se o uso de recursos visuais (...)”. Tanto a edição de 1998, como as de 1996 e de 1997 utilizaram símbolos, ícones e palavras grafadas em cores, dando a sensação de que a publicação impressa estava sendo feita tendo em vista a versão eletrônica. Em 1999, a publicação voltou a ser impressa em preto e branco, utilizou papel mais barato e foi dividida em 14 seções temáticas. Dessa edição em diante, fez-se uso de marcadores laterais para facilitar ainda mais a procura por informações. Percebeu-se uma retomada dos assuntos e das seções das edições anteriores à de 1996. Segundo o prefácio, em 25 anos a publicação havia vendido mais de três milhões de exemplares, além de ter sido pioneiro em publicações eletrônicas. Os jornalistas que faziam a Máquina da Memória estariam atentos às rápidas mudanças do mundo e prontos para produzir conteúdos relevantes: “Afinal, de que vale 1 milhão de informações se elas não forem realmente úteis e organizadas de forma a estar sempre à mão quando delas se precisa? Esse é o valor do Almanaque Abril (...)”. Percebe-se que houve abandono da tentativa de vincular a obra exclusivamente à pesquisa escolar. Em um momento em que as pesquisas via Internet fo-

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ram se consolidando, as funções do Almanaque Abril se transformaram. Para se adaptar a essa nova realidade, o periódico procurou ser o livro capaz de sistematizar o conhecimento atualizado difundido pelos diversos meios de comunicação. Os protocolos de leitura e as imagens vinculadas a Máquina da Memória pretenderam fazer o leitor acreditar que a publicação continha os elementos essenciais para a compreensão do tempo presente. Do ponto de vista comercial, a edição de 1999 apresentou uma queda de vendas substancial. Se a edição de 1995, a última do modelo “enciclopédico”, vendeu 160 mil exemplares, a edição de 1999, que foi bastante inspirada na edição de 1995, vendeu “apenas” 90 mil exemplares; ao passo que as edições 1998 e 2000 venderam, respectivamente, mais ou menos 115 mil e 110 mil exemplares. Desse modo, pode-se afirmar que parte das mudanças introduzidas a partir de 1996 foi incorporada pelos leitores. A edição de 2000 radicalizou as intensas mudanças que haviam caracterizado a história editorial do Almanaque, desde 1996. A publicação foi dividida em dois volumes, “Brasil” e “Mundo”. A divisão implicou, segundo o Histórico Editorial, uma necessidade de redimensionar os conteúdos, pois os assuntos internacionais ocupavam um número maior de páginas. A quantidade de ilustrações aumentou, consolidando uma tendência perceptível desde a edição de 1990, mas intensificada a partir de 1996. A edição de 2001 manteve a divisão “Brasil” e “Mundo”. A então diretora de redação, Márcia Tonello, afirmou, no prefácio, que a Máquina da Memória organiza para o leitor as informações essenciais que o ajudam na compreensão deste momento, marcado por grande diversidade”. Essa passagem é um exemplo da imagem que a obra buscou assumir para competir com a Internet: a de organizadora ou sistematizadora dos acontecimentos ditos “atuais” de uma sociedade cuja quantidade de informação e o conhecimento ganham, cada vez mais, dimensões caóticas.12 Esse objetivo, presente desde o

12 Convém ressaltar que essa imagem construída pelo editor foi fragilizada após a disseminação do site Google no início dos anos 2000. Esse site, muito conhecido, é um banco de dados e um buscador capaz de hierarquizar a pesquisa na Internet. É preciso, ainda, destacar que o acesso à Internet não é muito difundido no Brasil contemporâneo. Segundo o Almanaque Abril 2002, para uma população de quase 180 milhões de habitantes, o país contava, em 2001, com aproximadamente 14 milhões de usuários, principalmente das classes mais ricas, sendo que apenas 10 milhões de brasileiros tinham computadores em casa (p. 204). Em 2003, 80% dos alunos de escolas públicas secundárias não tinham computadores, sendo que a

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primeiro número, não era tão acentuado até 1995, porque a Máquina da Memória procurava abarcar, também, o conhecimento enciclopédico. O prefácio da edição de 2002 ressaltava os consideráveis avanços editoriais, como o aumento do número de páginas, utilização de melhor papel e o retorno das cores ao longo de todo o Almanaque. A diretora de redação afirmou que o anuário reuniria “todas as qualidades para atender os leitores mais exigentes”. Retomando um slogan das primeiras edições, o prefácio expressava as funções e os usos que a obra poderia possibilitar: “na escola, no trabalho ou em casa, o Almanaque Abril quer ser o caminho mais curto entre você, leitor, e a informação de que precisa, satisfazendo plenamente suas pesquisas, dúvidas ou simples curiosidades”. Os prefácios das edições seguintes procuraram demarcar o terreno da Máquina da Memória frente à Internet e destacaram a credibilidade da publicação. Em 2003, destacava-se a ênfase da obra nas “atualidades”: “‘A Enciclopédia da Atualidade’: nessas poucas palavras, resumimos o que é o Almanaque Abril do século 21, sendo os conteúdos organizados de forma ordenada e criteriosa”. A obra possibilitaria a formação de senso crítico por parte do leitor. A edição de 2005 reforça essa nova função. Afirmava-se que a missão do Almanaque “é ser a mais completa, mais atual e mais confiável obra de referência sobre o Brasil e o mundo publicada em nosso país. A pretensão é grande, e o desafio, também, por causa da popularização da Internet”. A diferença da publicação consistia em ter uma equipe especializada formada por jornalistas, consultores e pessoas, cujas funções eram confirmar as informações, possibilitando a reunião do que era mais relevante, atual e confiável. Afirmava-se que aqueles que faziam a obra eram “especialistas em complexidade”, pois “selecionamos e reunimos em um espaço finito de páginas uma quantidade infinita de informações”. A edição seguinte apresentava os mesmos argumentos das anteriores e reforçava o surgimento de novidades, como uma agenda e um ranking de curiosidades; novas seções relativas à cultura popular e à cronologia das artes; um anuário de resenhas com textos inéditos de Anthony Giddens, Leonardo Boff e Luiz Fernando Veríssimo, dentre outros. Portanto, no terceiro momento (1996-2006), o modelo enciclopédico

metade dos profissionais da Educação Básica não tinham acesso a computadores ou à Internet (FOLHA DE SÃO PAULO, 29 abr. 2003, Cotidiano, p. 4.).

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foi progressivamente abandonado sem que um formato estável fosse alcançado. Houve uma acentuação da tensão antigo-moderno na publicação13 e também da tensão nacional-global, na medida em que a obra tentava encontrar um novo formato. Transformações substantivas na estrutura material foram instituídas, com a introdução do uso de cores e melhoria na qualidade do papel (com algumas regressões) e, a partir de 2000, com a tentativa de diminuir o volume da obra, dividindo-a em duas (com exceção da edição de 2004). Houve também um aumento do tamanho das letras e uma diminuição no tamanho dos textos. Percebe-se, além disso, uma tentativa de mudanças estruturais na abordagem dos conteúdos, com a introdução da ordem alfabética, o direcionamento da publicação para o leitor jovem (tentativas redimensionadas a partir da edição de 1999) e a ênfase na publicação de “atualidades” como uma forma de “competir” com a Internet. Discutir-se-ão, de forma mais sistemática, alguns pontos relativos à mudança do projeto editorial da Máquina da Memória a partir da edição de 1996.

Economia do livro Podemos constatar que o recurso à ideia de novidade teve efeitos do ponto de vista comercial. Sobre a “vendagem” da publicação, sabe-se, pelo prefácio da edição de 1999, que a publicação teria vendido três milhões de exemplares até aquele ano. A Tabela 1 contém alguns dados sobre a vendagem da obra e suas datas de lançamento. Tabela 1 – “Vendagem” aproximada e datas de lançamentos Edição “Vendagem” aproximada Datas de lançamentos 1975 67 mil 12/1974 1976 92 mil 11/1975 1977 96 mil 11/1976 1978 90 mil 11/1977 1979 94 mil 12/1978 1980 100 mil 12/1979 1981 118 mil 12/1980 1982 189 mil 12/1981 1983 168 mil 12/1982

13 Essa tensão é constitutiva da literatura de almanaques. Ver Mollier (2003a).

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1984 1985 1990 1991 1995 1998 1999 2000 2001

120 mil 105 mil 164 mil 160 mil 115 mil 90 mil 110 mil 110 mil

12/1983 11/1984 10/1989 03/1991 02/1995 02/1998 02/1999 02/2000 02/2001

Fonte: Redação do Almanaque Abril e Dinap.

Os dados sobre vendagem confirmam que a Máquina da Memória tem uma tiragem muito elevada para um livro brasileiro, estando sempre próxima dos 100 mil exemplares. Supera a tiragem de um best seller e de obras didáticas, que é de 30 mil exemplares.14 Por não ter à disposição dados referentes a todos os anos, bem como de outros que permitam uma análise mais aprofundada, fazer algumas generalizações ficaram impedidas de serem realizadas. O que esses dados indicam, no entanto, é que a receptividade da publicação foi muito grande na medida em que a “vendagem” do primeiro número para o segundo aumentou em 25 mil exemplares. Os 71 mil exemplares vendidos a mais pela edição de 1982, segundo os antigos diretores de redação, como já indicado, deveram-se ao fato de esse ano ter contado com uma campanha publicitária bem agressiva. De todo modo, ter-se-ia que comparar essa informação com o investimento publicitário dos outros anos e com o contexto econômico do país. O interesse deste livro é apenas mostrar que a publicação vende uma quantidade estrondosa de exemplares anualmente. Assim, podemos afirmar, com certa tranquilidade, que o Almanaque é um verdadeiro best seller brasileiro.15 Ao que parece, obras de referência como o Almanaque Abril têm essa característica. Apesar de serem dados indiretos, parece que na década de 1980, por exemplo, na França, o Quid vendia quase 400 mil exemplares por ano, e o L’État du Monde 60 mil exemplares. O almanaque americano The World afirma em sua contra-capa, também nos anos 1980, que ele era o livro mais vendido dos Estados Unidos depois da Bíblia. Tal constatação não deixa de

14 EARP; KORNIS, 2005, p. 20.



15 SARRAZIN, 1997, p. 397.

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ser uma mostra da permanência da literatura de almanaques. Segundo Veronique Sarrazin: “as tiragens de almanaque são muito variadas. Elas se situam quase sempre em um degrau superior em relação às tiragens ordinárias, e para alguns títulos elas atingem os números com os quais temos poucas comparações, senão as edições de usos religiosos e os da Bilbiothèque Bleu. Mesmo nesses casos, as tiragens dos almanaques são relativamente mais importantes, pois são destinadas ao término do ano. Elas pertencem a uma economia do livro que se distingue da livraria ordinária, caracterizada pela prudência de tiragens e por preços elevados. Para garantir seus lucros sobre essa massa de livros, os editores devem então enfatizar a venda acelerada em torno de três fatores: preço, distribuição e publicidade”. Outro aspecto que pode ser observado por meio da análise da tabela diz respeito ao início das transformações que culminaram na edição de 1996. A mudança da data de lançamento para fevereiro/março, a partir de 1991, já indicava, como se ressaltou, um direcionamento ao público escolar, reforçando as constatações sobre o caráter instável do mercado editorial brasileiro, bastante dependente da produção didática.16 A obra deixava, pois, de ser publicada no período de festas, momento em que um público mais vasto poderia comprá-la, passando a coincidir com o início do ano letivo. Essa mudança também possibilitou que a publicação passasse a cobrir todo o ano civil, em sua resenha do ano que passou. O início da transformação do conteúdo da Máquina da Memória coincidiu com a mudança na data de seu lançamento. Essas transformações, em 1991, são fruto, também, da saída da antiga diretora de redação, Sheila Mazzolines (que trabalhou no Almanaque desde a primeira edição), e da chegada de Lucila Camargo para ocupar esse cargo (permanecendo nessa função até a edição de 2000). Têm-se indícios que permitem afirmar que o preço de capa da obra – relativamente baixo nos primeiros anos – aumentou à medida que inovações gráficas foram sendo introduzidas, como mapas e fotos. O preço de capa da primeira edição, segundo a redação do Almanaque Abril, era de 3,36 dólares; 4,69 dólares para a edição de 1985; 10,70 dólares para a edição de 1992; 20,3

16 BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Textos, Impressos e Livros Didáticos. In: CAMPELLO, Bernardete Souza et al. Formas e Expressões do Conhecimento: introdução às fontes de informação. Belo Horizonte: Escola de Biblioteconomia da UFMG, 1998. p. 217-247.

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dólares para a edição de 1996 e 17,1 dólares para a edição de 1997. Em 1996, ano em que toda a Máquina da Memória utilizava cores, e o papel era de melhor qualidade, o preço da publicação chegou ao seu preço máximo (20,3 dólares). Considerando que há, na história econômica do Brasil, um progressivo aumento do custo de vida, não acompanhado por um aumento correspondente dos salários, percebe-se que até o início dos anos 1990, o Almanaque visou ao público dos setores médios baixos. Do ponto de vista dos preços, daí em diante o anuário foi se “elitizando”. Ao que parece, a tendência de alta no preço de capa da publicação foi independente das oscilações do salário mínimo. Tudo leva a crer que o públicoalvo, após 1996, do ponto de vista econômico, ficou ligeiramente mais restrito às classes médias altas e à classe alta. Porém, no início do século 21, percebe-se nova baixa no preço da publicação. Se os dados fornecidos pela redação do Almanaque são corretos, pode-se realizar algumas comparações. Em dezembro de 1974, o salário mínimo valia 50,7 dólares e o Almanaque custava 3,36 dólares: a obra valia, então, 6,62% do salário mínimo. Em 1996, valia 17,8% e, em 2006, 10%. Avaliando que uma coleção de enciclopédia valia, em 2006, no mínimo dez vezes mais que o salário mínimo, percebemos que o atrativo econômico do Almanaque Abril era muito grande para as classes médias e baixas, pois ele nunca custou mais que 20% do valor do salário mínimo; esteve próximo do valor de um livro brasileiro, um dos mais caros do mundo.17 A mudança de preço da Máquina da Memória, a partir de 1996, seguido da melhoria da qualidade do papel, utilização de cores, dentre outros, modificou também, do ponto de vista simbólico, o status da publicação. Essa transformação provavelmente teve efeitos sobre o público-alvo. Sobre essas questões, o ex-diretor estratégico da publicação, Celso Nucci, destacou que o Almanaque “teria bom tempo de vida ao servir gente sem acesso à Internet. (...) Acho uma estratégia equivocada, não a opção pelos jovens, mas a estrutura gráfica sofisticada e cara.”18 Os dados indicam, portanto, que houve uma vendagem média próxima a 100 mil exemplares anuais. Também mostram que a mudança no projeto editorial, a partir de 1996, não resultou em maior número de vendas se

17 EARP; KORNIS, 2005.



18 Celso Nucci Filho, entrevista escrita ao autor, 29 abr. 2002.

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comparamos com as tiragens anteriores a essa data. Entre 1995 e 2003, o PIB brasileiro cresceu 16%, enquanto o faturamento declarado das editoras teve uma queda de 48%. Percebe-se também, no mesmo período, um aumento do número de títulos no mercado editorial nacional, mas com uma tiragem menor.19 A crise vivida pelo setor editorial brasileiro, nesse momento, só atingiu parcialmente o Almanaque Abril, mesmo com um preço de capa mais elevado que na década de 1980. Tendo em vista essa crise, mas principalmente o fato de que o período referente aos anos de 1974-1994 foi um período de excessiva instabilidade econômica do país,20 percebe-se que a capacidade da Máquina da Memória de se manter como um best-seller foi notável. Ainda mais se levar em conta que não havia dotação orçamentária do Governo Federal para compra de livros de referência e livros em geral para bibliotecas públicas.21

A edição de 1996 como símbolo de ruptura de um projeto editorial: da escrita enciclopédica à tirania das atualidades As transformações da Máquina da Memória e a recorrência do argumento da novidade guardam alguma herança da tradição de almanaques urbanos enciclopédicos. Desde o século 18, o argumento fundamental de venda de alguns almanaques foi a novidade. “Eles se anunciam sempre como ‘almanaques novos para o presente ano.’”22 Essas obras insistiam enormemente na atualização: “sem ser submetidos à tirania da atualidade, eles devem se renovar simplesmente para se perpetuar, como deve ser toda produção periódica.”23 Um desses almanaques urbanos afirmava: “todos os anos um

19 Ver Earp; Kornis (2005, p. 30).



20 CARNEIRO, 1994.



21 Segundo Earp; Kornis (2005), “o Brasil é o único país cujo governo não compra livros para bibliotecas – apenas México e Argentina apresentam resultados comparáveis, em uma espécie de inanição latino-americana. (...). O que mostra que o governo brasileiro, ainda que compre muitos livros, compra menos do que a maioria dos países” (p. 66-67).



22 SARRAZIN, 1997, p. 22.



23 Ibid., p. 417.

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novo almanaque do novo gênero, mas sempre cheio de eventos diferentes.”24 Essas publicações se renovavam todos os anos, mas se modificavam pouco. O discurso do novo era parte de uma estratégia comercial do gênero. Neste sentido, as constantes mudanças na estrutura interna e na forma material do Almanaque Abril podem ser explicadas, em boa medida, pelo fato de o almanaque ser um gênero suscetível de se adaptar a conteúdos múltiplos e com a necessidade vital de se renovar para sobreviver. Há, porém, uma diferença entre se atualizar e ser submetido à “tirania da atualidade”. As transformações no aspecto material e na organização dos conteúdos (ordem A a Z) não devem ser supervalorizadas, na medida em que elas não modificaram totalmente a forma anterior (como, por exemplo, o tamanho) e não foram mantidas por várias edições (como, por exemplo, a qualidade do papel). Mas essas transformações materiais pretendiam ratificar certas mudanças na concepção da publicação. A abordagem enciclopédica cedeu lugar, a partir da edição de 1996, à análise jornalística das atualidades, e isso marcou uma ruptura no projeto editorial inicial da Máquina da Memória. Enfatiza-se que a grande mudança da obra aconteceu a partir da edição de 1996. Até essa data, o periódico pretendia organizar e difundir dados e informações sobre todos os países e sobre o Brasil, todos os fatos do ano que passou e “todo” o conhecimento, utilizando textos longos e, em geral, complexos, para atingir um público amplo com uma publicação barata e sem grandes sofisticações gráficas. Após 1996, a Máquina da Memória passou a tentar organizar e disponibilizar, da forma mais acessível, os fatos do ano que passou, alguns conhecimentos e algumas informações e alguns dados sobre o Brasil e o mundo, procurando descrever e analisar o tempo presente, utilizando textos curtos, ilustrados e, em geral, de leitura simples. A escrita também foi modificada. A linguagem, que até então guardava algo da escrita literária, cedeu lugar a textos objetivos em nome do aproveitamento do espaço. Essa escolha implicou necessariamente maior simplificação, muitas vezes contribuindo para afirmações absurdas como a que encontramos no verbete sobre o ateísmo na edição de 1996: “(...) o ateísmo está na base do desenvolvimento de correntes culturais-filosóficas e movimentos políticos-sociais como o liberalismo, a democracia, o anarquismo e o socialismo” (p. 179). Um

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24 SARRAZIN, 1997, p. 417.

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exemplo do que era essa “escrita enciclopédica literária” pode ser encontrado em uma das descrições sobre o cometa Halley. Na edição de 1985, no capítulo denominado “Astronomia”, havia uma seção referente a cometas. O texto, escrito em função da passagem do cometa Halley, era bem extenso (três páginas). No final do último item, afirmava-se que “a grande maioria, a incontável legião de espectadores – homens, mulheres e crianças – que já começam a espreitar o céu nas noites estreladas, esses contarão apenas com os olhos e a sensibilidade” para ver o cometa. Percebe-se, aqui, a riqueza do vocabulário e a sutileza da mensagem. O curioso é que, em seguida, dentro deste item do capítulo sobre “Astronomia”, afirmava-se que as pessoas teriam os olhos e a sensibilidade como os do poeta Carlos Drummond de Andrade, que em 1910 viu o cometa e narrou sua experiência no livro A Bolsa e a Vida. Surpreendentemente, encontramos reproduzida (em 29 linhas) parte da crônica de Drummond. Além das dimensões estratégicas, editorias e comerciais, a ruptura com o modelo enciclopédico pode ser um sintoma do que François Hartog denomina de regime de historicidade “presentista”. 25 Entre um futuro infinitamente aberto, e logo sem perspectiva, e um passado opaco, o presente se tornou uma categoria para a compreensão de nós mesmos. Porém, trata-se de um presente dilatado, em que a mudança se tornou contínua, deixando de lado o passado. Esse presente multiforme e onipresente é um elemento essencial do projeto editorial da Máquina da Memória desde sua origem. Mas, após 1996, ele se torna tirânico, transformando-se na categoria dominante do tipo de explicação dos eventos que a Máquina da Memória pretendia dar a seus leitores. Far-se-á aqui uma pequena digressão para desenvolver a hipótese que as transformações materiais e de conteúdo do Almanaque Abril a partir da edição de 1996 podem ser vistas como um sintoma da emergência do regime de historicidade presentista. Koselleck nos ensina que a construção do mundo moderno passou pela construção de uma nova relação com a ordem do tempo, tanto é que o conceito de progresso único e universal, criado no final do século 18, sintetizaria as experiências históricas do início da modernidade.26 Poder-se-ia



25 HARTOG, 2003.



26 KOSELLECK, Reinhart. Le Futur Passe: contribution à la sémantique des temps historiques. Paris: EHESS, 1990. Ver, também, Reis (1994a).

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falar que hoje viveríamos uma nova relação com tempo? Será que a relação com tempo construída pela modernidade não nos serve mais? Ao que parece, François Hartog pensa que estamos vivendo uma descontinuidade histórica. Uma nova relação com o tempo está sendo construída, vivida e experimentada. Para François Dosse, desde o fim da Segunda Guerra, mas, sobretudo após a queda do muro de Berlim, estamos vivendo uma “descontinuidade crescente de um espaço de experiência por muito tempo submetido a um horizonte de expectativa erigido como uma verdadeira grade de leitura.”27 O futuro foi percebido como retrospectivamente ligado ao passado, haveria, portanto, hoje uma progressiva dissociação das expectativas em relação às experiências passadas. Essa dissociação guarda a possibilidade de “reabrir o passado como recurso vivo para alimentar o presente”. Para Dosse, a noção de regime de historicidade pode contribuir para esse processo na medida em que ela pressupõe a articulação histórica entre os conceitos meta-históricos de campo de experiência e horizonte de expectativa. Tal noção possibilita pensar a experiência do tempo de forma complexa. Por meio dessa noção, podemos refletir sobre a pluralidade de modos de relações que as sociedades humanas estabeleceram com o tempo. Pensar a partir desses futuros passados poderia, assim, auxiliar-nos a refletir sobre outros presentes. O tempo folheado nos permitiria compreender melhor os componentes subjetivos da relação que as sociedades estabelecem com seu passado. Essa noção pode nos auxiliar a apreender o funcionamento não linear das temporalidades: podemos assim identificar um determinado número de condições de possibilidades para articular as diversas modalidades de divisão do tempo nas civilizações. Essa noção estabelece a ponte entre a parcela subjetiva do sujeito histórico, individual ou coletivo, e o estado objetivo de existência no tempo. Como sublinhou Claude Lefort a partir de 1952, o regime de historicidade revelaria a modalidade de consciência de si de uma comunidade humana.28

Refletir sobre o nosso possível regime de historicidade não é esperar uma nova brecha do tempo, é sim, de algum modo, construir possibilidades de emergências de tais brechas. Trata-se de construir categorias de ação e re

27 DOSSE, François. História e Ciências Sociais. Bauru: EDUSC, 2002a. p. 56. Ver, também, Dosse; Delacroix; Garcia (2009).



28 DOSSE, 2002a, p. 58.

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flexão a fim de lutar contra o que Hannah Arendt denominou dupla infinidade do passado e do futuro, pois essa percepção do tempo eliminaria todas as noções de começo e fim, e, estabelecendo a humanidade, estabelecer-se-ia também uma imortalidade terrestre potencial.29 Nesse sentido, François Hartog destaca também que as experiências do tempo são múltiplas; cada sociedade estabelece uma relação particular com o passado, o presente e o futuro. O regime de historicidade é a forma como essas temporalidades foram articuladas no tempo e no espaço. O autor sugere a existência de dois grandes regimes de historicidade: passadismo do passado; o modelo da história mestra da vida, em que o presente era iluminado pelo passado por meio de exemplos; o futurismo do futuro, o modelo de aceleração do tempo, que ganha força após a Revolução Francesa, no qual o futuro ilumina o presente. O exemplo foi substituído por um passado, ou melhor, um conjunto de fatos que não se repetem mais. Quem sabe até no futuro poderia ser descoberta a Lei da História. A emergência de um novo regime de historicidade, o presentismo do presente mais que uma ruptura definitiva representa uma crise da (des)ordem do tempo. Essa nova forma de experiência do tempo pode ser entendida como o fechamento do presente sob ele mesmo; passado e futuro deixam de ser categorias de relação. O presente se torna onipresente. Em outras palavras, o presentismo seria a possibilidade de fusão do campo da experiência – relativo à forma como as experiências passadas são apropriadas no presente – com o horizonte de expectativa – relativo às maneiras pelas quais os homens do presente se relacionam com o devir. Para Hartog, o presentismo emerge no interior da problematização do regime de historicidade moderno. Percebe-se como essa análise é próxima à reflexão de Néstor Cancline quando esse percebe a “pós-modernidade” não como uma etapa, mas como a possibilidade de relativização do moderno.30 Porém, o principal traço, destacado por Hartog, desse novo regime de historicidade, é a problematização da ideia de futuro. Nosso presente é marcado pela experiência de crise do futuro; por um lado, devido à crise da noção de progresso e, por outro, devido às ameaças que esse futuro cada vez mais presente nos coloca.



29 ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 1991a.



30 CANCLINI, 2006. p. 28.

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Face ao presentismo como possibilidade de “realidade histórica”, Hartog nos convida a pensar nas categorias ou nos princípios de responsabilidade e de precaução31 como forma de tencionar o fechamento do presente sobre um único presente, sob o ponto de vista do presente sobre ele mesmo. A perda das referências de categorias meta-históricas de experiência e expectativa (ou espera) pode ser cruel na medida em que é o futuro, bem como os futuros do passado, portam o caráter contingencial da história humana. A esse respeito, Paul Ricouer afirma: o historiador deve [se] transportar, em imaginação, para um momento do passado em que o futuro era incerto, indeterminado, aberto, devido à ignorância do que viria depois. Para os homens do passado, o passado tinha um futuro (...). Se levarmos até as últimas conseqüências essa idéia da indeterminação do futuro no passado, atingiremos a idéia, mais importante ainda, das promessas não cumpridas no passado (....). À indeterminação do futuro no passado junta-se a não realização ulterior dos desejos.32

O presentismo do presente nos coloca diante de um mundo sem futuro, sem expectativa e, portanto, sem sonhos. O presentismo é estimulado pela mídia, pela guerra em “tempo real”, pelo turismo, pelo “homem sem futuro”, o desempregado. Reconciliar com o futuro torna-se uma tarefa difícil, pois as utopias modernas utilizaram os vivos como um meio para se chegar ao “paraíso”. Aliás, uma das heranças do evolucionismo é a naturalização do tempo e o distanciamento do passado do próprio homem. Deveríamos, assim, reconstruir, por meio dessa ética responsável do futuro, a própria ideia de humanidade; a fim de construirmos uma consciência do fato que vivemos num “mundocomo-um-todo”. Nesses termos, a ideia de globalização poderia, a nosso ver, vir a ser utilizada positivamente. Outra relação com a temporalidade poderia se construir se o homem fosse colocado no centro do projeto de consciência de que estamos na mesma travessia das diferenças e semelhanças? O presente nos coloca na encruzilhada, coloca-nos escolhas, como atores sociais, entre a humanidade e a desumanidade do homem. Não se trata de prever o futuro, ou exercitar a futurologia, mas de medir efeitos reais da ação do presente, a partir do fardo do nosso passado comum. Hartog propõe a cons

31 Ver Jonas (2006).



32 RICOUER, Paul. O passado tinha um futuro. In: MORIN, Edgar. A Religação dos Saberes: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 337.

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trução reflexiva de um presente para além do presentismo. Cabe destacar que só é possível ultrapassar essa compreensão contemporânea do presente se trabalharmos com outra ideia de temporalidade. Seria necessário, de fato, conceber o presente como folheado, múltiplo e multidirecionado. Nesse sentido, para François Hartog, o presentismo do presente caracterizar-se-ia por uma relação entre passado/presente/futuro a partir da lógica do instante.33 Na medida em que o tempo torna-se um objeto de consumo, o presente é um instante a ser consumido vorazmente. Não sem razão, uma das características do presentismo é a tendência à historização imediata. Resumidamente, pode-se afirmar que, no presentismo do presente, o presente é percebido como dilatado e onipresente, consumido em sua “imediaticidade” eterna; o futuro como fechado e imprevisível, pois praticamente desapareceu do horizonte; e o passado é esquecido ou, incessantemente e compulsivamente, visitado, revisitado e/ou historicizado. De todo modo, Nobert Elias destaca que a relação passado/presente/futuro não representa apenas uma sucessão, mas a presença dessas três dimensões do tempo na experiência deste ser histórico que é o homem. Tratar-se-ia, no limite, de uma divisão de um mesmo conceito.34 A reflexão de François Hartog nos convida, em grande medida, a nos reconciliarmos, a partir de outra relação, com o presente, passado e futuro.



33 Em Apresentação da Filosofia, Comte-Sponville nos propõe uma ética do presente, única categoria temporal da vida. Para o autor, o instante é a incapacidade de articular as durações (passado e futuro) no presente; ao passo que viver no presente é ter a consciência que passado e futuro se constroem no presente. O autor se pergunta: “Viver no presente? Tem de ser, já que só isso nos é dado. Viver no instante? De jeito nenhum! Seria renunciar à memória, à imaginação, à vontade – ao espírito e a si. (...). Viver no presente não é amputar sua memória ou sua vontade, já que fazem parte dele. Não é viver, já que é durar já que é persistir já que é crescer ou envelhecer” (COMTE-SPONVILLE, 2001, p.119-120).



34 ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. Talvez seria interessante pensar essas questões à luz das contribuições de Gilles Deleuze. Para o autor, há duas formas de relação com o tempo, duas temporalidades: Chronos e Aiôn. Para Chronos, só o presente existe no tempo, passado e futuro são dimensões relativas. Para Aiôn, o presente é relativo ao passado e ao futuro, é o instante que divide cada presente em passado e futuro. O autor opõe, assim, o presente “corporal” de Chronos ao presente “incorporal” de Aiôn. Aiôn só existe por meio de sua significação, a descontinuidade do acontecimento não é entendida como erupção ou explosão e sim como ruptura, mutação. O “presentismo” seria, então, uma revolta de Aiôn sobre Chronos? Ver, Deleuze (1974).

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Essas reflexões nos impõem uma reflexão séria e complexa sobre a nossa dívida para com as gerações futuras. A construção de uma nova relação, ou, num primeiro momento, de uma outra reflexão, com a temporalidade poderá revigorar de esperança tanto a experiência quanto a expectativa. Poderemos romper com a solução fácil do cinismo e do niilismo, repensando novos sentidos da ação deste ser que produz e faz história no tempo e no espaço que é o homem. Enfim, poderíamos, construir outras formas de relação com o tempo: dinamizando o ponto (o presentismo do “presente monstro”), que se constitui num processo ainda em curso e aberto, a linha (o futurismo da história teleológica) e o círculo (passadismo da história mestra da vida). Hartog destaca que, na experiência histórica, nenhum regime de historicidade existe em estado puro. Sua reflexão pode em alguns momentos parecer esquemática, mas a nosso ver ela prima pelo didatismo e pela construção/inovação conceitual. Portanto, a Máquina da Memória é, assim, contemporâneo de uma importante mudança vivida pela sociedade brasileira, em relação à temporalidade. O Brasil, entendido como uma sociedade organizada no equilíbrio de contrastes e antagonismos, vem se redirecionando, desde os anos 1980, rumo a um culto do presente.35 Outros autores, além de Hartog, também destacam uma mudança na forma de apreender o tempo na contemporaneidade, o que o Brasil, de forma singular, acompanha. Para Frederic Jameson, por exemplo, pouco a pouco, o mundo contemporâneo perdeu sua capacidade de preservar o próprio passado. Percebe-se uma fragmentação do tempo em uma série de presentes perpétuos. Ao mesmo tempo, a saturação de informações transforma personagens recentes em figuras do passado distante. Os meios de comunicação acabam desempenhando o papel de relegar ao passado as experiências históricas recentes: “a função informativa dos meios seria, desse modo, a de ajudar a esquecer, a de servir de verdadeiro instrumento e agente de nossa amnésia histórica”.36 De alguma forma, até 1996, a publicação em questão pretendia ser “o remédio contra o esquecimento”, contra essa “amnésia histórica”, conforme sua representação pela peça publicitária referente ao ano de 1983, podendo ser vista na Figura 6. A ideia da automedicação era o mote, já que a obra estava inserida dentro de um frasco de remédio. Segundo o texto da mensagem pu

35 Para uma análise do presentismo na sociedade brasileira, ver Silva (1999).



36 JAMENSON, Frederic. Pós-Modernidade e a Sociedade de Consumo. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 12, p. 25, jun. 1985.

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blicitária, ao qual já se fez menção na introdução deste livro, “no Almanaque Abril você encontra uma fórmula eficiente que não falha nunca: 1 milhão de dados para você recordar o que já esqueceu e aprender coisas novas”. Afirmava-se, ainda, que o leitor tomaria “a dose como quiser, seja grande ou pequena a sua dúvida, o Almanaque Abril resolve. Com rapidez e eficiência. Sem contra-indicações ou efeitos colaterais”. “Fórmula: 848 páginas de informações que abrangem todas as áreas do conhecimento humano.”37 Figura 6 – “Remédio contra esquecimento.”

Fonte: São Paulo: Abril, n. 745, p.102, 1982.



37 REMÉDIO contra o esquecimento. Veja, São Paulo, n. 745, p. 102, 15 dez. 1982. Na medida em que associa “remédio” a “almanaque”, o anúncio também relacionava o Almanaque com a tradição, existente no Brasil desde o século 19, referente à literatura de almanaques de farmácia.

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Até a edição de 1996, havia um equilíbrio precário entre o lembrar e o esquecer. Parte do “passado imediato”, considerado útil para a compreensão do “presente imediato”, dentro dos limites do projeto iluminista,38 era preservada. Afinal, seria possível um livro ser tão eficiente e auxiliar o leitor a lembrar e apreender “tudo sobre tudo”, como sugeriam algumas capas da publicação? Não se pode viver sem memória. Mas, principalmente, não se pode viver sem o esquecimento.39 Um dos grandes problemas do mundo contemporâneo, para o qual a Máquina da Memória apresentava-se como um “remédio”, refere-se ao aumento de dados oferecidos: “vivemos em uma sociedade super-informada, na qual a verdadeira sabedoria não consiste em adquirir informações (...), mas em rejeitá-las.”40 Assim, na realidade, a Máquina da Memória pretendia ser, ao contrário do que dizem boa parte das imagens construídas nas peças publicitárias, nos prefácios, nas capas e entrevistas, um bom selecionador. A questão que fica em aberto, a partir daí, é: até que ponto esse “remédio” pode se transformar em veneno? A transição, na década de 1990, de uma escritura “enciclopédica” para uma “jornalística” deve ser compreendida também como uma “necessidade” do mercado editorial em função da maior disponibilidade de informação, fruto da disseminação, em fins dos anos 1990, da Internet, do telefone celular e de outras tecnologias. Os jornalistas que escreviam o anuário queriam adaptar a Máquina da Memória a esses tempos e às expectativas dos leitores inseridos em um novo regime de historicidade. O jornalismo focado no presente imediato seria, para eles, a forma ideal de escritura desse tempo. Era necessário adequar-se às “exigências” do mundo contemporâneo, pois, como já se afirmou, “tais são os principais aspectos desse presente multiforme e polifônico: um presente monstro. Ele é, ao mesmo tempo, tudo (não há nada além do presente) e quase nada (a tirania do imediato)”.41 As falas de alguns editores esclarecem como se deu a transição de uma opção pela atualização enciclopédica para uma escritura focada no presente

38 Sobre a importância da cultura como um patrimônio, ver Chartier (1987, p. 249268). Para uma defesa do iluminismo, ver, dentre outros, Habermas (1981).



39 WEINRICH, Harald. Arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Sobre a relação entre memória, história e esquecimento, ver Ricoeur (2000).



40 WEINRICH,op. cit., p. 285.



41 HARTOG, 2003, p. 217.

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imediato. Sheila Mazzolenis, que trabalhou na publicação do primeiro número até a edição de 1990, afirmou que, após as primeiras edições, começou-se a “nacionalizar” a Máquina da Memória: “todo mundo começou a concordar que se nós quiséssemos utilizar o acervo do DEDOC não era necessário copiar nada de almanaque nenhum.”42 Para ela, sair do DEDOC (refere-se à edição de 1983) foi muito importante para a consolidação do produto, pois as condições de trabalho, de divulgação e de comercialização não eram boas. A redação do Almanaque utilizava a estrutura do DEDOC, mas não se relacionava plenamente com o que se fazia ali. O problema é que não havia, até 1982, um núcleo dentro da empresa que quisesse absorver a publicação. A mudança para o núcleo ligado ao grupo de guias – responsáveis por produzir, por exemplo, o Guia 4 Rodas – só ocorreu em função do destaque comercial da publicação em 1982, fruto do investimento de um gerente comercial: a vendagem que era de 118 mil exemplares, em 1981, vai para 189 mil, em 1982. Mazzolenis afirmou que a obra apresentava uma visão enciclopédica e paradidática: “procurávamos ser enciclopédicos mas a Máquina da Memória era uma obra híbrida e única. Mostrava o que havia acontecido no ano [livro do ano], mas havia uma perspectiva e uma intenção de dar uma abordagem histórica e queríamos que se facilitasse a pesquisa escolar”. Ainda que as informações não fossem aprofundadas, elas “davam uns toques para o estudante”. “Naquela época havia um clima de se começar a popularizar a informação enciclopédica. As pessoas precisavam de informação. Elas queriam e nós queríamos informar. Hoje você tem a informação na sua casa.”43 Na década de 1980, além de maior infraestrutura, a publicação passou a contar com um diretor, Celso Nucci, que não estava diretamente ligado à redação. Para esse jornalista, a Máquina da Memória era uma publicação difícil, sendo que sua edição foi uma das atividades mais complexas que já conheceu. Ele destacou que: Na tentativa de vender mais e de viabilizar uma publicação industrialmente muito cara, tentávamos achar os melhores caminhos para atrair mais leitores. Às vezes acertávamos, outras erramos em cheio. O grande problema da relação conteúdo/leitor no caso do Almanaque Abril é o fato de que o conteúdo pode ser quase tudo e os leitores quase todos. Parece brincadeira, mas é sério e problemático. É



42 Sheila Mazzolenis, entrevista ao autor, 24 jan. 2002.



43 Sheila Mazzolenis, loc. cit.

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preciso manter um delicado equilíbrio entre o conteúdo e o espectro de leitores que se quer atingir. Se a gente dá uma deslocada mais forte para um segmento de leitores pode provocar mau humor em muitos outros e conseqüente abandono da publicação por eles. Por isso, cada decisão editorial tinha que ser muito bem pesada. Se ele fica com a fama de ser uma obra para estudantes, muitos outros podem fugir. (...) Acho que o Almanaque Abril sempre foi algo secundário no portfólio da editora. Primeiro porque dava pouco dinheiro. Segundo porque ninguém da direção entendia direito como funcionava o Almanaque Abril. (...) Porque não é todo jornalista que gosta de trabalhar em publicação de referência. (...) Portanto o Almanaque sempre teve muito pouco investimento à disposição. Sempre quisemos que se fizesse uma grande campanha para mostrar a publicação, pois achávamos que havia muitos leitores potenciais do Almanaque Abril que não conheciam a publicação. (...) As variações de orientação na condução do Almanaque Abril são fruto dessas tentativas de posicioná-lo para vender mais. Poucas deram certo.44

O jornalista Bias Arrudão afirmou que a obra “era uma mistura de jornalismo de referência com enciclopedismo de referência. (...) Os Almanaques da década de 1980 eram muitos bons, especialmente se você levar em conta as condições em que ele era feito.”45 A estrutura material da Máquina da Memória foi obrigada a mudar e a renovar intensamente pelo fato de a obra estar inserida dentro de uma grande empresa jornalística que era, ao mesmo tempo, uma editora. Mas as transformações de forma e conteúdo também se relacionam com uma concepção, por parte dos editores, do que era o leitor, em especial o leitor brasileiro. O jornalista Lauro Machado Coelho resume bem essa imagem: Aqui havia o Almanaque Bertrand, o Almanaque de Seleções, que morreu por quê? Porque não se renovava. (...) Assim uma coisa que ficou muito clara, desde o início, foi o seguinte: mudar ou morrer! Mudar para valer. Se você der uma olhada na estrutura dos Almanaques ao longo da história deles há mudanças bem visíveis de um ano para outro, pois se você quer fazer uma publicação anual que se venda, você tem que ter um conteúdo renovável considerável para justificar que o leitor compre sempre. Para impedir que o leitor comprasse a cada três anos. (...) O Almanaque Abril conseguiu resistir porque garantiu as vendas para um público fiel, havia um núcleo fiel e outro flutuante. Esse grupo que se mantinha fiel nos permitiu resistir, ainda que à custa de muitos sacrifícios, como cortar em um ano radicalmente o número de páginas por uma decisão comercial.46

44 Celso Nucci Filho, entrevista escrita ao autor, 29 abr. 2002 (grifo nosso).



45 Bias Arrudão, entrevista ao autor, 22 jan. 2002.



46 Lauro Machado Coelho, entrevista ao autor, 9 jan. 2002.

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A diretora de redação em 2002, Márcia Tonello, destacou também a pressão que havia sobre a redação da publicação para se vender mais. Segundo ela, “a publicação tem que dar lucro porque a Abril tem uma estrutura cara de produção, de gráfica, de pessoal, etc.” Dentro dessa lógica capitalista, era necessário que a editora tivesse produtos que vendessem em grande quantidade e dessem lucros substantivos. Para ela, as mudanças, principalmente após 1996, tornaram a obra cada vez mais jornalística: “hoje o foco está mais na atualidade (...). E ele foi incorporado pelos leitores. Hoje eles sempre dizem que quando lêem o Almanaque eles ficam atualizados. Mas alguns leitores ainda reclamam.” Por outro lado, a jornalista destaca que as excessivas mudanças da obra eram fruto da “dificuldade de se obter maiores informações, mais seguras, sobre qual deveria ser de fato o formato da publicação. (...) Tudo funciona muito na base da intuição”. Segundo Márcia Tonello, a Máquina da Memória se diferenciava das obras semelhantes a ele em outros países em função das especificidades do mercado editorial brasileiro: “mas isto não poderia ser uma justificativa para tão grandes mudanças na organização”. Ela afirmou que a força da publicação deveria estar na reunião de informações e não em mudanças bruscas. E que um dos problemas do anuário era que os leitores mudavam muito, e a obra teria que ser concebida tendo em vista essa variável.47 As transformações de forma e conteúdo da Máquina da Memória nos anos 1990 também foram parte de um processo de mudança que atingiu a produção de livros didáticos desde o fim dos anos 1970, pois a partir daí iniciouse um processo de profissionalização e concentração da indústria editorial do livro didático.48 A grande imprensa também viveu fenômeno semelhante nos anos 1990: “por pressão da publicidade, por exemplo, quase todos os jornais de grande circulação passaram a usar cor, o que os obrigou a melhorar a qualidade do papel.”49 Em 1957, Wilson Martins afirmou: “pouco a pouco, a imagem transborda do seu papel meramente subsidiário de linguagem auxiliar para usurpar funções tradicionalmente reservadas à palavra.”50 Pode-se dizer que a

47 Marcia Tonello, entrevista ao autor, 14 jan. 2002 e 17 jan. 2002.



48 MUNAKATA, Kazumi. Histórias que os livros didáticos contam, depois que acabou a ditadura no Brasil. In: FREITAS, Marcos Cezar (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 4. ed. São Paulo: Contexto, 1998. p. 274-277.



49 ABREU, 2002, p. 29.



50 MARTINS, Wilson. A palavra escrita: história do livro, da imprensa e da biblioteca. São Paulo: Ática, 1998. p. 418.

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Máquina da Memória resistiu a esse processo até a utilização da fotografia em suas páginas, a partir da edição de 1990. A própria forma de exercer o jornalismo também mudou. O comportamento do jornalista, desde os anos 1990, esteve cada vez mais submetido à concorrência dos diversos tipos de mídia e à disputa pelo mercado: “a concorrência obrigou-os a uma postura menos política e menos ideológica diante dos fatos e das notícias. A informação, além de um bem simbólico, tornou-se um bem econômico, uma mercadoria.”51 Uma das características desse processo foi certa homogeneização das informações divulgadas pela imprensa que disputa o público de classe média. Esperava-se do jornalista, desde então, eficiência e não mais “talento individual”.52 Por questão de espaço e de foco do trabalho, não serão apresentadas as biografias dos jornalistas que trabalharam na redação da Máquina da Memória. Até 1994, parte considerável era constituída de jornalistas profissionais, isto é, pessoas com formações diversas que se profissionalizaram no jornalismo. Após essa data, a maior parte dos editores era constituída de jornalistas formados em escolas de jornalismo. Apenas a título de ilustração, vale a pena observar que o jornalista Lauro Machado Coelho foi por muito tempo a “alma do Almanaque Abril”. Dono de uma erudição notável, trabalhou da primeira edição até a de 1994. Até 1973, foi professor de idioma e literatura na Aliança Francesa. Na redação do Almanaque, trabalhou essencialmente como editor de política internacional e escreveu textos relativos à cultura geral em outras seções. Tornou-se também crítico de cinema e de ópera. Depois que saiu da Editora Abril, tornou-se diretor do Teatro Municipal de São Paulo. Em 2002, momento da entrevista, ele escrevia uma coleção de 15 volumes sobre a história da ópera, publicada pela Editora Perspectiva, e era um dos responsáveis pela crítica musical do jornal Estado de São Paulo.53 Esse jornalista pode

51 ABREU, 2002, p. 35.



52 Ibid., p. 37.



53 Lauro Machado Coelho, entrevistas ao autor, 9 jan. 2002 e 22 jan. 2002. Os jornalistas entrevistados nessa pesquisa, bem como as funções deles, são: Samuel Dirceu, editor da edição 1975; Marília França, diretora de redação da edição 1975 até 1978; Sheila Mazzolenis, diretora de redação da edição 1979 até 1989; Lauro Machado Coelho, jornalista da edição 1975 até 1994; Bias Arrudão, jornalista da edição 1985 até 1990; Celso Nucci, direção editorial da edição 1985 até 1995; Lucila Camargo, diretora de redação da edição 1991 até 2000; Marcia Tonello, diretora de redação da edição 2001 até 2003.

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ser considerado o último a representar, na redação da Máquina da Memória, o papel de resistência ao que Alzira Abreu denominou de “subserviência” do jornalismo ao leitor.54 A tabela a seguir permite compreender que a publicação (sem grandes alterações no número de páginas) foi progressivamente aumentando o tamanho das letras e, conseqüentemente, diminuindo a quantidade de informação e dados disponíveis. Tabela 2 – Número de páginas e de informações veiculadas pelo Almanaque Abril Linhas/ Ano N.º de páginas Toques/Linha* N.º de toques página 1975 668 144 49 4.713.408 1978 784 166 52 6.767.488 1981 784 166 52 6.767.488 1983 846 162 54 7.400.808 1985 850 162 54 7.435.800 1989 832 162 55 7.413.120 1990 864 162 59 8.258.112 1991 768 162 58 7.216.128 1992 786 170 57 7.616.340 1993 784 156 52 6.359.808 1994 790 152 55 6.604.400 1995 790 152 50 6.000.400 1996 832 132 47 5.161.728 1997 832 127 45 4.754.880 1998 704 127 48 4.291.584 1999 834 134 48 5.364.288 2000 (2 v.) 866 136 48 5.653.248 2001 (2 vol.) 770 136 45 5.751.900 2002 (2 vol.) 1028 126 48 6.785.856 2006 (2 vol.) 804 120 42 4.052.160 * Toques = espaço de letras em uma frase. Nem sempre foi homogêneo. Nesses casos, utilizou-se como referência as letras mais utilizadas. Fonte: Redação do Almanaque Abril e Almanaque Abril.



54 ABREU, 2002, p. 33.

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Percebe-se que o número de linhas por página diminuiu consideravelmente (de 162, em 1978, para 132, em 1996), bem como o número de toques, isto é, a quantidade de espaços das letras numa linha ou página (de 52, em 1978, para 47, em 1996). Esse dado permite compreender a quantidade de informação veiculada (de 6.767.488, em 1987, para 5.161.728, em 1996). Observando o número de toques total, observa-se nitidamente que o Almanaque Abril 1990 foi o ápice da “sede” de informar sem grandes preocupações com a forma de leitura, e mais especificamente, com o tamanho das letras. A partir desse momento, com pequenas variações, houve melhora da apresentação visual, com muitas ilustrações e com um considerável aumento do tamanho das letras em detrimento da quantidade de informação disponível. No que se refere ao número de páginas, apesar de apresentar variações, houve certo padrão. Mesmo havendo, após 1996, recusa da escritura enciclopédica, a Máquina da Memória, não perdeu totalmente sua “vocação” de ser o Livro de Todo-o-Saber. Pelo simples fato de ser um almanaque, continuou mostrando que tudo sabia sobre as ditas “atualidades” ou sobre o “presente monstro”. Para Roger Chartier: A idéia de uma biblioteca universal, a busca de uma língua perfeita, a construção de uma enciclopédia são imagens desta vontade que procura inscrever em palavras a totalidade dos fatos e coisas, que seja do passado, do presente e dos tempos futuros. A máquina enciclopédica de Lulle, a língua analítica Wilkins, a biblioteca exaustiva de Lasswitz ilustram, cada um a sua maneira, o desejo esperado de capturar, por uma acumulação sem falta, todos os possíveis do real. (...) “Não há classificação universal que não seja arbitrária e conjetural. A razão é muito simples: nós não sabemos que coisa é o universo. (...) A impossibilidade de penetrar na ordem divina do universo não nos pode impedir de organizar as ordens humanas elas mesmas, mas admitindo que essa organização é provisória” [Borges]. A História da utopia enciclopédica e essa das enciclopédias bem reais, que foram inscritas sobre argila, papiros ou papel e que já estão na tela, ilustram magnificamente essa paradoxal aspiração (....).55

O Almanaque é, assim, um excelente exemplo da permanência desse sonho, cheio de decepções, de reunir de forma “arbitrária e conjetural” todo

55 CHARTIER, Roger. L’arbre et l’Ocean. In: SCHAER, Roland (Dir.) Tous les savoirs du monde. Encyclopédies et bibliothèques, de sumer au XXI siècle. Paris: Flammarion, 1996a. p. 482 e 485.

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o saber produzido pelo homem em um só espaço por meio das “palavras a totalidade dos fatos e coisas”, conforme a história editorial da publicação nos mostrou. A montagem a seguir, feita a partir das peças publicitárias das edições 1977, 1980 e 2003, ilustra como as peças publicitárias da obra utilizam o “desejo esperado de capturar, por uma acumulação sem falta, todos os possíveis do real” para vender a Máquina da Memória. Figura 7 – Montagem a partir das peças publicitárias referentes às edições 1977, 1980 e 2003

Fonte: “Tudo que você precisa saber sobre tudo”. Veja. São Paulo: Abril, 8 dez. 1976; “O Almanaque Abril responde tudo!”. Veja. São Paulo: Abril, n. 592, p. 18, 2 jan. 1980, e “Para você ter certeza de tudo”. Veja. São Paulo: Abril, ed. 1796, ano 36, n. 13, s/ p., 2 abr. /2003.

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História da Leitura Fragmentos de práticas de leitura: cartas de leitores do Almanaque Abril Empreender uma análise sobre a história editorial da Máquina da Memória, deixando de lado seus leitores seria considerar que a publicação existe apenas em sua materialidade. Sabe-se que o “mundo do texto” só adquire sentido em contato com o “mundo do leitor”.56 No entanto, não se pretende explorar de forma abrangente as práticas de leitura do Almanaque. Apresentar-se-á, com o sentido de fornecer indicações sobre o “mundo do leitor”, a descrição de algumas dessas práticas por meio de uma tipologia, construída a partir das cartas de leitores que nos foram fornecidas pela Editora Abril, uma vez que a Máquina da Memória não publicava cartas. As opiniões proferidas por esses leitores podem ser lidas em dois corpus documentais que se permite ter uma visão das práticas de leitura do Almanaque Abril. O primeiro corpus é um documento com trechos de 1.192 cartas de leitores, confeccionado pelo responsável pelo atendimento ao leitor do Almanaque Abril 1996; o segundo consiste em aproximadamente 135 cartas de leitores a que se teve acesso na redação da publicação, sendo que 119 destas cartas são referentes às edições de 1997 até a de 2002. Cinquenta e oito cartas foram postadas nas capitais e 47 em cidades do interior.57 As outras 16 cartas são referentes à edição de 2005. É importante ressaltar, ainda, que o conjunto analisado tem por padrão definidor a espontaneidade do leitor em se comunicar com a editora e a demarcação de um espaço de interlocução, mesmo sem representarem uma “imagem real” dos possíveis públicos atingidos pela obra.

56 RICOEUR, Paul. Temps et récit. Le temps raconté. Paris: Seuil, 1985. p. 284-329. Tome 3.



57 Conforme acordado com a direção de redação do Almanaque Abril, não será revelada a identidade nem as iniciais dos leitores do Almanaque, uma vez que estas cartas não foram escritas para serem publicadas. As cartas foram recebidas pela redação do Almanaque nos seguintes anos: 1997, 2; 1998, 21; 1999, 13; 2000, 21; 2001, 59 e 2002, 4. O número de cartas referentes a cada região é o seguinte: Norte, 9; Sul, 9; Nordeste, 32; Centro-Oeste,10; Sudeste, 4; sem referência, 22; e exterior, 2. Não se encontrou a cidade do remetente em 12 cartas.

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Segundo Roger Chartier, o estudo das práticas de leitura está inserido em um projeto de explicação/compreensão de práticas culturais. Michel Foucault nos alerta para os dispositivos disciplinares, Michel de Certeau, para as “artes do fazer” do cotidiano, e Pierre Bourdieu, para as ações comandadas pelo “senso prático”. Todos esses autores tentaram, cada um à sua maneira, “inventar uma escritura capaz de responder a essa exigência impossível e, no entanto, necessária, que é a submissão à ordem do discurso das práticas não discursivas. É na evidência mesma deste desafio que deve se escrever uma história das práticas culturais.”58 Diante da dificuldade do estudo das práticas culturais, procurar-se-á entender, a partir dos dois corpus citados, as apropriações, os usos e modos de leitura expressos pelo leitor do Almanaque Abril, por meio de uma tipologia das práticas de leitura daqueles que escrevem cartas para a publicação. Tendo em vista a tensão entre a liberdade dos leitores e a tentativa de imposição de um sentido ao texto, Roger Chartier propôs o estudo das práticas de leitura através de comunidades sociais de interpretação,59 ou seja, as práticas não podem ser deduzidas apenas dos textos, pois, frente a uma liberdade “infinita”, os leitores obedecem a regras, lógicas e modelos próprios disseminados no meio em que eles se inserem com fins de “cercear” sua “inventividade”. Além disso, transformações tipográficas modificam demasiadamente os usos, as circulações e as compreensões de uma mesma escritura. As significações diferenciadas de um texto não podem se separar de suas modalidades materiais. Construir comunidades sociais de interpretação, observar como as formas materiais interferem na produção de sentindo, “localizar a diferença social nas práticas mais do que nas diferenças estatísticas, são muitas das vias possíveis para quem quer entender, como historiador, essa ‘produção silenciosa’ que é a ‘atividade leitora’”.60 As comunidades de intérpretes (ou de leitores) se diferenciam umas das outras, uma vez que as práticas de leituras de grupos são governadas por de

58 CHARTIER, Roger. Le passé au présent. Le débat, Paris, Galimard, n. 122, p. 165, 2002.



59 SARTI, Flávia Medeiros. Leitura profissional docente em tempos de universitarização do magistério das séries iniciais. 2005. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo. 2005. p. 26. Ver, também, Fish (1982).



60 CHARTIER, Roger. A Ordem dos Livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora UnB, 1994. p. 27.

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terminados coeficientes formadores. Cada comunidade partilha um conjunto de competências que está diretamente relacionado aos usos, apropriações, objetivos, engajamentos, contratos e expectativas formadores de seu ethos. Nesta obra, em vez de identificar uma “comunidade social” de leitura específica do Almanaque Abril, criou-se, de forma “artificial”, uma comunidade: a dos leitores que escreveram cartas privadas à redação da Máquina da Memória. Trata-se, aqui, de uma apropriação invertida do que Daniel Dayan denunciou sendo uma comunidade constituída sob convite.61 Essas cartas não publicadas permitem recuperar, em relação ao Almanaque Abril, alguns traços da leitura como prática social na contemporaneidade. No entendimento de Armani Petrucci, a leitura não é mais “o principal meio de aculturação à disposição do homem contemporâneo.”62 Além disso, os leitores, cada vez mais sem tempo, estariam acostumados a receber das outras mídias e do grande número de textos impressos disponíveis mensagens constituídas de fragmentos e sem homogeneidade. Na medida em que as práticas de leitura não podem ser reduzidas a um subjetivismo, uma vez que os leitores estão inseridos em grupos e comunidades, pretendese reconstruir alguns de seus “horizontes de expectativas”. Afinal, o sentido é construído no diálogo entre o “mundo do texto”, com certos contratos presos à materialidade do suporte, e o “mundo do leitor”, com suas competências específicas e criatividade própria. As cartas são um desses indícios em que se percebe o jogo de tensão entre as competências específicas dos leitores e os dispositivos escriturais e formais dos textos apropriados por eles.63 Gerard Mauger e Claude Poliak destacam que as práticas de leitura consistem em um movimento em três tempos: um momento anterior à leitura, o ato da leitura e um momento posterior a ela. A análise das cartas nos permite compreender, essencialmente, o último momento, pois os leitores leram para escrever. As práticas epistolares a serem analisadas nos permitem também situar a pesquisa no interior das pesquisas referentes à “antropologia da leitura”, que

61 DAYAN, Daniel. Le mystères de la réception. Le Débat, Paris, Galimard, n. 71, p. 146162. 1992. Ver, também, Mauger; Poliak (1998, p. 3-24). 



62 PETRUCCI, Armani. Ler por Ler: Um Futuro para a Leitura. In: CHARTIER, Roger; CAVALO, Guglielmo. História da Leitura no Mundo Ocidental. São Paulo: Ática, 1998. p. 219. 2 v.



63 Sobre essas questões, ver Ricoeur (1985, p. 284-328).

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pretende resgatar as singularidades das leituras para além da ideia da representatividade do “todo” (1.300 cartas versus 100 mil exemplares, por exemplo). Para Anne-Marie Chartier e Jean Hébrard, as reflexões de Michel de Certeau, em A invenção do cotidiano (a primeira edição é de 1980), abriram vários caminhos para pensar as práticas da leitura, possibilitando pensar as leituras como trajetórias individuais, constitutivas de identidades particulares. Nesse sentido, Michel de Certeau instalou a antropologia da leitura no espaço do próprio leitor e na temporalidade de sua história singular.64 Procura-se, assim, uma alternativa ao domínio da estatística que, segundo Certeau, contenta-se em classificar, calcular e tabular as unidades “léxicas” das trajetórias dos consumidores culturais.65 As cartas, como prática escriturária, têm implícita a presença de um destinatário, de um leitor. Escrever uma carta é buscar um interlocutor.66 Acredita-se que a maioria daqueles que escreveram cartas para a Máquina da Memória eram leitores que se consideravam passíveis de estabelecer um “diálogo” com a obra. Percebemos que a maioria dos emissários das cartas é constituinte de uma comunidade de “iguais” que escrevem para “um igual”. A informalidade marca o discurso de boa parte delas, e a relação de apropriação estabelecida se revela no fato de os leitores se colocarem como interlocutores/produtores de discursos feitos para serem lidos e/ou ouvidos. O fato de escrever e/ou ligar para algum tipo de serviço de atendimento demarca, por parte do consumidor/produtor, uma expectativa de audiência. Tendo em vista essas questões, nossa tipologia é composta de três grupos de leitores: • críticos (subdivididos em comparatistas e eruditos);

64 CHARTIER, Anne-Marie; HÉRBRARD, Jean. Discours sur la Lecture (1880-2000). Paris: BPI-Centre Pompidou, Fayard, 2000. p. 613.



65 CERTEAU, 1994a, p. 45-46.



66 GÓMES, Antonio Castillo. Como o polvo e o camaleão se transformaram. Modelos e práticas epistolares na Espanha Moderna. In: BASTOS, Maria H. C.; CUNHA, Maria T. S.; MIGNOT, Ana Chrystina V. (Orgs.). Destino das Letras: história, educação e escrita epistolar. Passo Fundo: Ed. UPE, 2003. Verônica Sierra Blas (2002, p. 121-140) destacou que “es la carta, por tanto, un producto de interacción entre el remitente y el destinatário, y ambos son protagonistas de la misma, porque de ambos aporta información. Sin embargo, una vez escrita, la carta ya no es de quien la escribe, sino de quien la recibe, de ahí la importância de preguntarse por el destinatário y no concentrarse unicamente em el autor del escrito”.

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• satisfeitos (sem subdivisão); • solicitantes (subdivididos em de informação e de produtos). Os críticos comparativistas confrontavam as edições do Almanaque entre si e, às vezes, com diferentes obras. Além dessas práticas, os críticos eruditos indicavam possíveis erros. Já os satisfeitos apresentavam um elevado grau de confiança na publicação. Os solicitantes de informação pediam a inclusão de dados na próxima edição e os solicitantes de produtos perguntavam sobre como adquirir o Almanaque ou como recebê-lo por meio de doação. Como já foi indicado, dividiram-se os leitores que se mostram críticos em dois grupos e, muitas vezes, se complementam: comparatistas e eruditos. Os que se apresentam como críticos comparatistas contrastavam as edições da Máquina da Memória entre si e, algumas vezes, com outras fontes. Em geral, apresentavam suas críticas de forma cordial. Um leitor, por exemplo, que se denominava “colecionador”, afirmava que a edição de 1999 era mais completa no que se referia à economia dos países que o exemplar de 2001. Outro leitor, que afirmava ser médico, dizia que adquiria o anuário havia 16 anos. Em sua primeira carta, ele queria dar os parabéns à equipe e pedir mais curiosidades. Porém, ele advertia que a edição de 1998 não continha qualquer informação sobre a Austrália e a Áustria e concluía: “há que se corrigir, porque se fosse a primeira vez não compraria mais”. Dos leitores dessa categoria, destacamos uma carta que tinha a diretora de redação como interlocutora: Sou Tomé de Souza, primeiro Governador-Geral do Brasil. Gostaria que você estivesse aqui para ver de perto as futuras belezas da futura capital da colônia (cita Caramuru). Gostaria de passar pela Guiana Francesa, mas você nada disse a respeito desta Guiana e também esqueceu de colocar o mapa do Suriname. Gosto de ler o Almanaque Abril mas deste jeito não dá. Faça tudo separado por continente, pois facilitaria as pesquisas dos meus futuros brasileiros. (...) Recado do seu amigo.

Outro aspecto muito enfatizado pelos leitores críticos comparatistas é a qualidade do papel do Almanaque. Um leitor, aparentemente um jovem, afirmava que estava decepcionado com a edição de 2000, pois as edições anteriores tinham mapas coloridos e, por isso, pensou que “em 2000 iam caprichar, (...) eu devia ter ficado só com os ‘velhinhos’, anteriores (96 em diante), quando o papel era ótimo”. Sobre esse mesmo assunto, teve-se acesso a uma carta enviada por e-mail. O leitor afirmava:

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Sra. Claudia Giudice, Venho manifestar meu repúdio em relação à qualidade do papel usado no Almanaque Abril/05. É lamentável que um trabalho tão cuidadoso seja tão seriamente comprometido pela péssima qualidade do papel usado – sou policial civil em Minas Gerais e nem o papel higiênico que os detentos usam se parecem com o que vocês usaram no Almanaque. A partir desse grave erro, como o qualifico, outros pontos também ficam comprometidos, por exemplo: o papel ruim compromete a qualidade da impressão, daí as fotos saem péssimas, os mapas horrorosos, e por aí vai. Se o problema é o preço, ou melhor, manter um preço atrativo para o leitor, sugiro que voltem com o papel usado em 2003, porém vendam os Almanaques separadamente. Por exemplo, para mim, o Almanaque Esportes é uma grande bobagem. Mas há quem goste. Daí, se vocês vendessem separadamente, eu compraria apenas o que me interessava, ainda que pagasse um pouco mais “por essa parte do Almanaque” individualmente. Acho também que vocês deveriam voltar com os mapas grandes que vinham como encartes, mapa do Brasil, e mapamundi. É muito bacana podermos acompanhar as mudanças de um para outro acompanhando no mapa. Em relação a isso, sugiro que vocês dêem mais ênfase ao cotidiano dos países. A História é legal, mas o cotidiano também, e vocês têm deixado muito pouco espaço para comentar os dias atuais desses países.  Deveriam vocês, por exemplo, comentarem sobre o padrão de vida dos povos: “X% vivem com 2 salários mínimos que equivalem a y dólares... trabalham n horas em condições insalubres...”. É isso Sra. Claudia Giudice, espero ter de alguma forma colaborado. Vem como encarte uma folha de respostas sobre o Almanaque, eu não vou enviá-la porque nenhum dos pontos que abordei aqui não são citados naquela folha resposta. Aqui consegui a amplitude que precisava.

Percebe-se, nessa carta e nas outras, uma relação de ambiguidade. Ao mesmo tempo em que os leitores assumem uma postura de “amizade” em relação à publicação, assumem também uma postura de “ameaça”. Nesse jogo, esses leitores reafirmam a fidelidade mercadológica para negociar. A partir de leituras diferenciadas de outras obras de referência, procuram negociar o conteúdo e a forma do Almanaque. Vê-se que a comparação entre exemplares é um fator que motiva os leitores a escrever para a redação da Máquina da Memória. É interessante observar, também, como, muitas vezes, os leitores sabem o que desejariam ler e propõem mudanças em partes específicas da publicação. John Thompson destacou que, no mundo contemporâneo, a recepção de produtos da mídia é uma rotina integrada às vidas cotidianas dos indivíduos. Os indivíduos percebem, trabalham e interpretam o material simbólico que recebem: “ao receber matérias que envolvem um substancial grau de distanciamento espacial (e talvez também temporal), os indivíduos podem ele-

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var-se para acima de seus contextos de vida e, por um momento, perder-se em outro mundo.”67 Esses leitores incorporam a leitura da Máquina da Memória em suas rotinas, “exploram possibilidades, imaginando alternativas, fazendo experiências como projeto do self ”, pois “as nossas biografias estão abertas para as experiências mediadas, nós também nos descobrimos atraídos por questões e relações sociais que ultrapassam os ambientes em que vivemos.”68 Vários dos que se mostraram críticos da edição de 1996 são comparatistas, isto é, comparam várias edições da Máquina da Memória entre si e/ou a obra com outras publicações. Um leitor, por exemplo, afirmava: “esse ano me surpreendi ao abrir o Almanaque Abril e atestar uma péssima organização. Gostaria que o Almanaque 97 voltasse com divisões por assuntos, pois ela é melhor do que a ordem alfabética. Daquela maneira os temas têm continuidade”. Outros eram ainda mais duros e afirmavam: “a organização do conteúdo desta edição (ordem alfabética) ficou horrível. A forma anterior era muito melhor. A cada ano o ‘Almanaque Abril’ está ficando mais superficial”. Uma professora também reclamava da ordem alfabética e afirmava: “a ordem alfabética tira a visão de conjunto do aluno. Ele não enxerga mais a unidade. As informações estão muito dispersas e as remissões não permitem agrupá-las.” Outros leitores afirmavam que a Máquina da Memória havia perdido sua “individualidade” e se transformara em uma enciclopédia: “deixou de ser um ‘Almanaque Abril’ detalhado e virou uma enciclopédia qualquer”; “está parecendo uma enciclopédia. Tudo misturado, uma confusão! A junção de países, estados e assuntos gerais perde muito em termos geográficos e dificulta muito a pesquisa, fica confuso. Parece que perdeu a seriedade, virou enciclopédia escolar”; “se o Almanaque quiser se assemelhar a uma enciclopédia, deveria ser mais completo”; “não gostei da forma de A-Z, misturando todos os assuntos, principalmente para a História do Brasil tinha mais noção do tempo e espaço dos fatos ocorridos”, e ainda, “ao adotar a forma de consulta direta, por ordem alfabética e sem divisão por assunto, o ‘Almanaque Abril’ evidenciou ser incompleto demais. Ficou parecido com uma enciclopédia mas muito incompleta. A divisão por assunto era mais adequada”.



67 THOMPSON, John B. A Mídia e a Modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 43.



68 Ibid., p. 202.

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Um leitor, indignado com as transformações referentes à edição de 1996, afirmava que “embora não informado por grandes coisas sobre transporte, comunicações e outras baboseiras, estou muito bem informado sobre Hindi, House Music, BB King e equivalentes. Parabéns”. Esse leitor terminava de forma enfática: “o problema será o copyright com o Almanaque Abril do Xarope Bromil e do Fortificante Fontoura”. Observa-se, nessas e em outras cartas, que vários leitores procuravam distinguir o Almanaque Abril dos almanaques de farmácia, tidos como superficiais. Outro leitor da edição de 1996 fez uma afirmação na mesma linha: “curiosidade tem um aspecto muito feio, de almanaque vagabundo, o que não é o caso do Almanaque Abril”. Os críticos eruditos também comparavam as edições do Almanaque entre elas, e entre outras obras de referência, procurando apontar possíveis erros. Por isso, esses leitores foram classificados como “eruditos”. Esse tipo de leitor elabora suas críticas tanto a partir de fontes não reveladas, quanto a partir da leitura de outras edições do Almanaque Abril e de outras obras de referência. Um leitor, por exemplo, afirmava que era um heraldista e que havia erros e omissões na edição de 1997 na bandeira real portuguesa. Outro leitor dizia que, em uma viagem pela Ásia, percebeu que a grafia correta de Vietnã seria Vietnam. Esse leitor afirmava que tinha afinidade com a Editora Abril (percebe-se aqui a legitimidade da editora em relação ao anuário) e que “o excelente Almanaque Abril é quase uma Bíblia, mas não é o possuidor da verdade, as pessoas usam como enciclopédia, ele é dinâmico e deve se aperfeiçoar”; por isso, a publicação deveria acatar seus conselhos. Um leitor afirmou que tinha comprado as publicações da Abril Cultural (ele diz ter utilizado a Enciclopédia Abril quando era estudante) e que a Máquina da Memória mantinha o “alto nível” das publicações editadas nos anos 1970, mas que ele havia escrito para ressaltar que encontrou um erro na data da constituição americana no “excelente Almanaque Abril”. Segundo a responsável pelo atendimento ao leitor em 2001, Josefina Duques, muitos leitores consultavam o anuário enquanto assistiam ao programa televisivo de perguntas e respostas de conhecimentos gerais, Show do Milhão.69 Essa afirmação foi comprovada em algumas cartas. Um leitor, por

69 Josefina Duques, entrevista ao autor, 21 jan. 2001. Na época, esse programa televisivo, comandado pelo apresentador Sílvio Santos, fazia perguntas de conhecimentos gerais aos candidatos.

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exemplo, relatava não concordar que a Indonésia fosse a maior ilha do mundo, como constava no Almanaque Abril, ao contrário da Enciclopédia Barsa. Ele cita que várias obras (Encyclopedia Americana, Barsa, Facts About the World, Hutchison Encyclopedia Britanica), das quais ele anexou um xerox em sua carta, apresentavam outras informações. Por fim, dizia que o Almanaque deveria ter seguido o Guinnes Book, que dava a mesma indicação. Outro leitor afirmava que o Almanaque Abril 1991 e a Barsa 2000 (referência do Show do Milhão, segundo o leitor) afirmavam que o Geórgia pertencia à Ásia, mas a edição do Almanaque 2001 constava que o referido país pertencia à Europa. Encontramos a carta-resposta da redação do Almanaque Abril para esse leitor, assinada pelo consultor de geografia da obra, que procurava justificar as razões pelas quais se deveria considerar que a Armênia, Azerbaijão e Geórgia pertenciam ao leste da Europa. Encontram-se algumas correspondências que fazem menção à questão da superficialidade. Um leitor português, por exemplo, afirmava: “embora sem muita profundidade, acabo de ler o Almanaque Abril 98, pois a Máquina da Memória é leitura obrigatória todos os anos. Parabéns, melhorou o sistema de consulta e aspecto gráfico”. Ele pedia mais informações sobre o Timor Leste, afirmava que o time Benfica era português e não espanhol e terminava de forma irônica: “como ficariam os brasileiros se falassem que o Flamengo é um time argentino?”. Outra carta do exterior, neste caso do Japão, afirmava: “anos atrás, já encaminhei a vossa senhoria uma carta indicando certas incorreções sobre o Japão que continuavam erradas na edição de 2000”. Dentre outras informações, os dados da Máquina da Memória diziam que a rendição japonesa havia ocorrido em setembro de 1945, porém, segundo o leitor, a data correta seria agosto de 1945, conforme cópia do New York Times anexada à carta. Percebe-se que o leitor crítico erudito é aquele que lê partes ou a Máquina da Memória do início ao fim e identifica erros. Um leitor, por exemplo, afirmava que, apesar de não ter lido toda a obra (“mas estou na metade”), já havia identificado 23 possíveis erros, dentre eles a falta de menção ao local onde ocorreu a Cabanagem. Ele identificou, também, alguns erros de português e afirmava que estava escrevendo para a melhoria da obra, “pois confio nos dados do Almanaque”. Outros leitores, no entanto, foram mais “duros”. Um leitor, por exemplo, afirmava que havia recebido da esposa, como “presente de Páscoa”, o Almanaque Abril 1998. Ele dizia que conhecia a obra de

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edições anteriores, porém: “fiquei desapontado com inúmeros erros, pois como diz a introdução, a obra se destina a pesquisas escolares, logo = jovem”. Ele escreveu que Belo Horizonte não havia sido mencionada como uma das principais cidades brasileiras; que a superfície do atol das Rocas estaria incorreta; que haveria erros quanto à sigla dos Estados; que a edição apresentava problemas na escala dos mapas, dentre outras questões. Ele perguntava se não existia serviço de revisão no Almanaque.70 O segundo grupo de leitores – os satisfeitos – se distingue dos críticos e dos solicitantes por manifestar um grau de confiança muito elevado na Máquina da Memória. Não dividimos os leitores satisfeitos em subcategorias. Os satisfeitos nos mostram que muitos deles consideravam que a publicação poderia ser um meio digno de grande confiança para a realização individual.71 Um leitor escreveu que adquiriu um Almanaque Abril e estava “na maior felicidade do mundo” em possuí-lo, pois antes ele o observava na biblioteca pública. Outro leitor procurava compartilhar a sua formação com o Almanaque e afirmava: “hoje, sou um homem lido, graças ao hábito de leitura nas edições do Almanaque Abril”. Ele conta que havia mandado um anteprojeto para o Congresso Nacional e obteve êxito. Ele agradecia à publicação por seu sucesso e acreditava que o periódico deveria fazer divulgação na televisão. Alguns leitores reclamavam da divulgação do anuário. Um leitor, por exemplo, afirmava que gostaria de ver a propaganda do “nosso Almanaque nas revistas da Abril” e se candidatava a fazer a peça publicitária.72

70 Encontramos as seguintes identificações de erros que, segundo o documento sobre o Almanaque Abril 1996, consideram as informações dos leitores corretas: “Maria Antonieta jamais proferiu que ‘não tem pão que comam brioche’”, “Jairzinho não foi o único que marcou pelo menos um gol em todas as partidas de uma copa. Gighia do Uruguai também marcou”, “o Brasil não é a 6.ª população do mundo e sim a 5.ª”, “corrigir a definição de ácido dentro do capítulo substâncias químicas”, “o universo contém bilhões de Galáxias mas o verbete estrela afirma que existem 500 bilhões”, “o PNB per capita da Eslováquia é de US$ 1.950 e não US$ 232.000”, dentre outros.



71 Sobre a questão da confiança nos materiais simbólicos mediados e nos sistemas peritos, ver Giddens (1991) e Miguel (1999).



72 Apesar do fato desse tipo de reclamação ser frequente, os dados dos quais se dispõe nos indicam que havia, nos anos 1990, um investimento considerável na publicidade da publicação. Sobre a campanha publicitária da edição 1994, o periódico Meio & Mensagem (28 jan. 1994) declarou que esta “recebeu investimentos da ordem de US$ 500 mil”. Sobre a edição 1996, a mesma fonte afirmou: “O Al-

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Os professores eram, em geral, os intermediários que contribuíram para a manutenção do poder simbólico da Máquina da Memória. Dada a intensa profusão de materiais simbólicos mediados, indicavam a publicação como uma fonte legítima para a aquisição de conhecimento e para a autoformação. A título de exemplo, a fala de um deles foi reproduzida: “para os carentes de conhecimento a reportagem sobre a capoeira (...) é demais. Sou professor de Matemática e gosto de conhecimentos gerais. É preciso estar em sintonia com a globalização.”73 Encontram-se vários registros de elogios referentes à edição de 1996. Alguns realçavam as mudanças materiais, a saber: “o Almanaque Abril está de cara nova. Gostei do tamanho das letras, tipo de papel, mais atraente. Parabéns”; “o Almanaque está fantástico. A qualidade do papel é excelente, a disposição dos conteúdos satisfatória e todas as páginas estão coloridas, o que é muito bom”; “ficou mais higiênico e fácil de manusear devido ao papel”; “bom tamanho, boa qualidade do papel, dando mais prazer de se usar”; “quero parabenizá-los pela excelente qualidade de encadernação, ilustração, mapas, capa, linguagem, etc. Para mim a Editora Abril é a melhor do país”; “parabéns pela edição, papel de qualidade superior, colorido, valeu pagar os 20 reais”; “só não gostei das tabelas, achei algumas desatualizadas. Em compensação vocês estão de parabéns com a mudança do visual do Almanaque, fiquei super feliz com as novas folhas”; “sou usuário antigo do Almanaque Abril desde 80, fiquei surpreendido com o de 96 pelo papel de melhor qualidade, pois o antigo parecia catálogo telefônico”; “este ano o Almanaque melhorou, está mais resistente, papel melhor e letras maiores (já não preciso usar minha lupa). Está mais bonito e colorido”; “esta edição veio colorida as páginas, isso incentiva mais o leitor. Eu acho que o Almanaque deve sempre mudar, como mudou neste ano, eu achei ótimo não tem defeito”; “está mais prático, atualimanaque Abril 96 chega às bancas e livrarias com novo projeto editorial e gráfico, resultado de investimento de US$ 2 milhões anunciados pela Editora Abril. (...) a campanha de lançamento inclui um forte esquema promocional, (...) O anúncio de quatro páginas em cores será veiculado na revista Veja, e de página inteira nas revistas Capricho, Nova, Manequim, Claudia, Placar e Superinteressante” (Meio & Mensagem, 1 abr. 1996).

73 Encontramos peças publicitárias do Almanaque destinadas exclusivamente aos professores. Ver Nova Escola (p. 60, 1 maio 1991); Nova Escola (n. 60, p. 60, 1 mar. 1993); Nova Escola (n. 100, p. 6, 1 mar. 1997); Nova Escola (n. 121, p. 2, 1 abr. 1999).

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zado inclusive o tamanho, mais fácil para carregar, o colorido também facilita a compreensão” e “ao adquirir a obra tive duas satisfações: uma genérica, ao observar que a opinião do leitor é levada em conta; a outra específica: minha sugestão de impressão em cores foi acatada”. Ainda referente à edição de 1996, algumas observações foram encontradas no que diz respeito à organização e ao conteúdo, a saber: “por ser atualizado, linguagem simples pode ser usado até por crianças”; “em minha casa ele é muito usado por mim e meus filhos, para pesquisa escolar. Acho-o prático e claro em seus textos”; “o índice diversificado ficou muito bom”; “no ano passado sugeri que colocassem filosofia, recebi uma carta da Abril informando que a edição 96 viria com filosofia, pela minha sugestão. Adorei.”; “todos os assuntos em um só conjunto distribuídos de A a Z = novidade! Ótimo!”; “surpreendente, vocês revolucionaram. A mais perfeita combinação entre didática e curiosidades. Acaba aqui qualquer possibilidade de superação por parte dos concorrentes”; “o Almanaque Abril é sinônimo de consulta rápida e eficiente”; “é justamente o que eu queria, uma enciclopédia resumida”; “comprei mais por causa do meu filho de 13 anos, que viu na casa do avô e sempre folheou o antigo Almanaque Abril do meu pai. Acho que sempre que puder vou comprálo”; “este Almanaque caiu do céu pra mim a partir do momento que descobri. Moro em um bairro a 30 km do centro, onde não há bibliotecas. Para pesquisas de emergência ele está sempre aqui à mão”; “o Almanaque Abril é uma referência bibliográfica que todos deveriam ter em casa”; “é a primeira vez que compro mas já leio há muito tempo, espero que continue assim”; “o Almanaque Abril é muito indicado pelos professores da escola e também procurado pelos nossos alunos. É ótimo pois ele traz todos os assuntos. É o livro mais atual da biblioteca”; “quando ainda criança ouvi algumas pessoas dizerem a outras assim: ‘você está muito desatualizado, vai ler o Almanaque Abril’, vocês estão de parabéns”; “ pretendo fazer uma viagem para Europa, o Almanaque me auxilia muito sobre dados de outros países”; “há muito tempo já deveria ter adquirido, é prático a gente pode levá-lo na bolsa pra qualquer viagem e o preço nem se fala, já pensou? Tantos assuntos em um só volume”; “é bom saber que a Abril trata assuntos políticos com imparcialidade”; “parabenizo mais um vez a Editora Abril pela preocupação em educar e instruir o cidadão brasileiro”; “é um livro de cabeceira para aquele que deseja saber principalmente sobre a situação de todos os países do planeta”; “depois que comecei

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a comprar o Almanaque tive uma visão diferente das dimensões nacionais e internacionais”; “uma pena que as bibliotecas dos colégios públicos não os tenha para pesquisas”; “ele é um ótimo companheiro. Além de aprender me divirto muito” e “eu compro o Almanaque desde o 1.º e não consigo criticá-lo. Fiz três vestibulares e passei nos três. Sabe com que estudei para a área de Geografia e História, além de Artes e Literatura? Resposta: Almanaque Abril ”. Percebem-se, também, várias comparações com enciclopédias: “as enciclopédias têm alguns assuntos desatualizados, além de ser um produto caro, nem sempre disponível às famílias de classe média, diferente portanto desta publicação atualizadíssima e de baixo custo”; “desde o ano passado passamos a nos utilizar do Almanaque, ele nos tem ajudado muito. Como costumo dizer ‘está melhor que o livro do ano da Barsa’. Eu simplesmente adoro”; “no meu nível de estudo o Almanaque Abril está excelente. Dispensa qualquer enciclopédia”; “ é um livro essencial pra a biblioteca da escola. É um quebra-galho para os alunos e para o professor. Vale por uma enciclopédia” e “jamais deixem de publicar o Almanaque Abril pois é um livro completo para quem tem poder aquisitivo baixo. É como possuir uma enciclopédia. Ajudou-me a formar-me e a formar minhas filhas”. Um leitor do Almanaque Abril 2005 afirma que a publicação “é a melhor obra de referência do Brasil e deve ser uma das melhores do mundo!! Mas vai aqui uma sugestão por que o Almanaque Abril não se transforma uma vez por todas em uma enciclopédia, seria demais!”. Percebe-se que mesmo os satisfeitos realizam comparações, porém eles contrastam a Máquina da Memória, em geral, com outras obras de referência e não destacam pontos específicos. Concordamos que o termo “apropriação” refere-se “a este extenso processo de conhecimento e de autoconhecimento.”74 Nesse sentido, essas cartas nos mostram que o leitor da Máquina da Memória, ao interpretar a publicação, refazia a própria compreensão que tinha de si, dos outros e da publicação. Ele utiliza a obra “como veículo para reflexão e auto-reflexão, como base para refletirem sobre si mesmo, os outros e o mundo a que pertencem.”75 Assim, está “implicitamente construindo uma compreensão de si mesmo, uma cons-



74 THOMPSON, 1998, p. 45.



75 THOMPSON, loc. cit.

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ciência daquilo que é e de onde ele está situado no tempo e no espaço.”76 O Almanaque era para os leitores um meio de autoformação. Isso ocorre, segundo John Tompson, pelo motivo de que, no mundo contemporâneo, “o processo de formação do self (eu) é cada vez mais alimentado por materiais simbólicos mediados.”77 O Almanaque Abril contribuiu, para esses leitores, para a construção de uma narrativa coerente da própria identidade, dentre outros motivos, por ser uma forma “vicária” privilegiada “de viajar que permite ao indivíduo se distanciar dos imediatos locais de sua vida diária.”78 Dessa maneira, podemos dizer que os leitores críticos têm uma apropriação controlada da publicação, pois negociam conteúdo, forma e, em certo sentido, suas práticas de leitura. Nos leitores considerados satisfeitos, isso geralmente não ocorre. Percebemos que, de fato, para tais leitores, a Máquina da Memória é um dos elementos centrais para a sua autoformação.79 Os leitores classificados como solicitantes foram divididos em de informações e de produtos. Os solicitantes de informações, em geral, pedem a inclusão de algum dado na próxima edição. Uma das cartas, assinada pela comissão organizadora do carnaval fora de época de Cuiabá, pedia que essa festa fosse incluída no calendário do Almanaque 1998, e dizia, caso isso ocorresse: “a festa se sentiria honrada, já que o Almanaque Abril é uma publicação muito importante no cenário editorial brasileiro”. Ainda sobre as datas comemorativas, outra carta pedia para incluir, na edição de 1999, “o Dia do Amigo”. Outro leitor sugeria que a próxima edição trouxesse o significado das cores das bandeiras de cada país. Ele afirmava que isto poderia ser feito nas seções de cada país. No entanto, caso não fosse possível, ele aceitaria o envio de um suplemento para saciar sua curiosidade. Uma mãe afirmava: “no geral o Almanaque Abril é o primeiro a ser consultado sobre qualquer tipo de pesquisa pelos meus filhos estudantes. O que não se acha às vezes em enciclopédia, acha-se no Almanaque Abril”. Mas ela sugeria que fossem incluídas informações sobre o horóscopo. Vê-se, aqui, como o nome Almanaque “induz” o leitor



76 THOMPSON, 1998, p. 46.



77 Ibid., p. 181.



78 THOMPSON, op. cit., p. 185.



79 Infelizmente, não podemos inferir possíveis diferenças de capital simbólico, econômico e cultural entre esses grupos de leitores.

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a buscar esse tipo de informação. Havia leitores que pediam a volta da biografia dos compositores na seção referente à música. Outro pedia o retorno das informações sobre religião, pois havia procurado a religião do Iêmen e não teria encontrado. Outro sugeria que o capítulo de países indicasse a data de independência das nações e pedia para que fosse verificada a possibilidade de incluir, em uma futura edição, dados sobre os múltiplos e submúltiplos do metro e informações sobre a produção agrícola e industrial brasileira (ele dava exemplo de como isso poderia ser feito através de uma cópia do The Europe World Year Book). Ele ainda solicitava que fossem certificadas “as informações em que Moçambique é equivocadamente relacionado como membro da comunidade Britânica das Nações”. Um estudante de curso superior de Geografia afirmava que estava fazendo uma monografia sobre o conflito entre a Índia e o Paquistão a respeito da Caxemira e que, embora a Máquina da Memória disponibilizasse muitos dados, gostaria que mais informações lhe fossem enviadas pelo correio. Outro leitor, preocupado, perguntava: “se cair em um concurso quantos países tem na América do Sul, devo considerar a Guiana Francesa?”. Percebemos que a obra continua sendo uma referência para a constituição da identidade dos solicitantes de informações, como ocorre com os satisfeitos. Eles se posicionavam como “iguais” porque conhecem a publicação há tempos e/ou porque se sentem livres para pedir informações diferentes que para eles, leitores, são importantes e/ou, principalmente, porque escrevem para a Máquina da Memória na tentativa de estabelecer um diálogo. Dessa maneira, considera-se que entre os críticos e os solicitantes de informação há uma diferença entre o tipo de crítica que um e outro fazem. Os críticos assumem a representação que a publicação quis veicular ao longo de sua trajetória, de ser um livro sério, preciso, sobre assuntos importantes da atualidade. Eles aceitaram o “princípio” básico que orientou a feitura da publicação. Ao passo que os solicitantes de informação, em geral, não aceitaram e questionaram precisamente esse princípio (afinal, por que não horóscopo, receita etc.?) por meio de pedidos completamente diferentes. Além das diferenciações internas a cada grupo, há, assim, engajamentos, negociações, expectativas e competências diferenciadas os tipos de leitores. Os solicitantes de produtos perguntavam sobre como era possível adquirir a publicação ou doações. Os leitores com menos poder aquisitivo eram

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os desse grupo. Um estudante, por exemplo, pedia edições antigas, pois era pobre e não tinha condições para comprar bons livros. Outro esperava obter um bom desempenho no vestibular utilizando o Almanaque Abril; por isso, pedia doação. Dentre as cartas consultadas, talvez a mais emocionante tenha sido a seguinte: Sou pobre, moro no sertão nordestino, região que tem enfrentado fortes secas. Meu pai é agricultor e na minha casa é somente um salário para sustentar 5 pessoas. Eu tenho um amigo que compra anualmente as edições do Almanaque Abril. É um excelente produto. Quando ele compra eu tomo logo emprestado para ler, mas ele foi morar em Natal (....). Por isso peço um exemplar como doação.

Um presidiário, que se dizia arrependido, queria doação do Almanaque Abril para que pudesse estudar no presídio, pois a obra seria de grande utilidade. Há instituições, como associações e bibliotecas públicas, que também escreviam solicitando exemplares. A secretária de educação de uma cidade do interior de Minas Gerais assinava uma carta em que pedia a doação da Máquina da Memória para o acervo. Ela afirmava que, já que 2002 era o ano do voluntariado, esperava contar com a atenção da Editora Abril, uma vez que professores e alunos do município utilizariam a publicação. Encontramos mais duas correspondências de professores pedindo doações para escolas estaduais do interior de Estados da Federação. Alguns leitores solicitavam brindes. Um deles, por exemplo, afirma que comprava o Alamanaque desde 1981 e que havia verificado o aumento dos preços, a redução de páginas e o resumo das biografias. Ele sugeria que, para compensar, o anuário deveria dar o Código de Defesa do Consumidor e a Constituição como brindes. Outros leitores apresentavam pedidos de descontos. Um leitor afirmava que era assinante da Abril e que a Máquina da Memória era fundamental na vida cotidiana, um livro de cabeceira “de prazer e concentração’’, mas, já que era maio, ele queria um preço promocional. Portanto, como se indicou, por meio da tipologia construída, a maioria das cartas apresentava grande ambiguidade, pois ao mesmo tempo em que os leitores criticavam a obra, consideravam-na digna de grande confiança no processo de apropriação. Um leitor, por exemplo, expressava sua satisfação e suas reclamações em relação ao anuário em forma da poesia: Banco de fatos/ O livro: algo especial/ Ler é um ato de sabedoria/ É estar calmo como um céu/ Buscar na leitura as mais doces fantasias/ Ler não é viajar/ Mas sim

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buscar na sua imaginação/ O motivo certo pra sonhar/ Sem precisar de nenhuma preocupação/ As informações são preciosas/ Um tesouro seria pouco para definilas/ Pois informar é algo que não se dosa/ O Brasil e o mundo em um banco de fatos/ As verdades mostradas e remostradas/ Momentos onde até eu vivi!/ Histórias que falam, depois de serem caladas. Tudo em páginas que eu li./ E as palavras ganham sentidos históricos/ Se vê com importância o que era pacato/ Um homem se torna um ser heróico/ A humanidade em um banco de fatos/ Comentário: O Almanaque Abril enfoca tudo. Chega de tanto esporte. Fazer uma cronologia da História Geral e não citar Leonardo da “Vinci” é inaceitável. Resumindo o Almanaque Abril mundo 2001 está muito restrito ao “geográfico” e ao “político” que volta a abranger o tudo. Esse era e deve continuar seu objetivo.

É importante destacar que em algumas cartas observamos uma mistura entre os tipos de leitores críticos, satisfeitos e solicitantes. Afinal, nas práticas, tipos se misturam.80 O comportamento dos críticos, satisfeitos e dos solicitantes (em especial, dos solicitantes de informações) foi resultado da “intimidade à distância” proporcionada pela Máquina da Memória: “a quase-interação mediada não é dialógica, a forma de intimidade que ela estabelece não tem caráter recíproco, isto é, não implica o tipo de reciprocidade característica da interação face a face.”81 Os homens, nas sociedades modernas, tornam-se cada vez mais dependes de sistemas sociais que lhes escapam ao controle. As cartas



80 Como exemplo, transcreveu-se inteiramente a carta de uma leitora do Almanaque Abril 2005 que morava em uma cidade do interior do Ceará: “08 de junho de 2005. Desde 1991 que compro o ‘Almanaque Abril’, tanto para utilizar no trabalho como fonte de pesquisa quanto para me manter informada. Reconheço que é sem dúvida, a mais completa fonte de pesquisas, no entanto, esta sensacional obra escrita a meu ver vem perdendo detalhes de sua qualidade no quesito fonte de pesquisas pois de a muito sinto falta de seções como Astronomia, Curiosidades, Os maiores e menores entre outros. Entendo que tudo deve se modernizar mas mantendo o cuidado de não perder a sua identidade. A título de sugestão, espero que algumas modificações sejam acrescidas para a edição 2006: os mapas dos países estão em qualidade muito ruim me arrisco a dizer que nesse quesito a melhor edição foi a de 1998. Sugeri ainda que ao lado do nome oficial de cada país seja colocado a sigla do país como é mundialmente conhecido. No Brasil as seções geográfica e carnaval são fortemente sentidas, pois as informações detalhadas de assuntos como fusos horários do Brasil, clima e relevo e hidrografia no mundo são fundamentais. Por fim gostaria de saber se é possível adquirir volumes antigos pois as edições 91 e 92 foram destruídas na biblioteca da escola pela chuva. Aguardo resposta e espero que estas sugestões sejam apreciadas com carinho”.



81 THOMPSON, 1998, p. 191.

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indicando erros e sugestões, quase em coautoria, indicam que esse é o meio utilizado pelo leitor, cujo fim é a procura do controle de um tipo de interação em que a interlocução é pequena, em que praticamente há uma ausência de reciprocidade. Percebemos, no entanto, que, quando o leitor vê suas sugestões acatadas, ele expressa grande satisfação, exatamente porque, nesse momento, ele alcança um tipo de relação dialógica com a publicação.

Práticas de leituras e Máquina da Memória: entre a lembrança e o esquecimento Em que media uma “memória mecânica” serve, por exemplo, a “cultura histórica”, uma cultura que deve ser, sobretudo, reflexiva? Tendo em vista as reflexões esboçadas neste capítulo, percebeu-se, a partir das trajetórias dos leitores que escreveram cartas à redação da Máquina da Memória, tanto posturas de resistência como de aceitação. Não é possível dizer que as práticas de leituras efetuadas não são reflexivas. Elas o são, porém de diversas maneiras. Tais posturas seriam uma contestação, segundo a análise efetuada por Michel de Certau, das práticas de leitura? De acordo com o autor, a leitura é uma prática da ordem das táticas, em contraposição à escrita, que seria da ordem das estratégias. As estratégias seriam um cálculo de relação de forças de um sujeito detentor de algum tipo de poder que “(...) postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e, portanto, capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta.”82 As táticas, por sua vez, são entendidas como ações “desviacionistas”, criam efeitos imprevisíveis. Em oposição às estratégias – que visam “produzir, mapear, impor” –, as táticas geram diferentes maneiras de fazer –caminhar, ler, produzir, falar, etc. A tática oferece aos atores condições para um jogo, no sentido de escapar às empresas de controle graças a suas capacidades inventivas. As táticas estão no cotidiano da cultura ordinária, na qual são desenvolvidas as práticas e apropriações culturais dos “não produtores”. Elas não desejam qualquer posição de poder, querem a bricolagem: criam surpresas. Trata-se de compreender a ligação dos “fracos” com a cultura, mas não pelo



82 CERTEAU, 1994a, p. 46.

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signo da falta, pois eles têm uma cultura própria.83 O consumo, nessa perspectiva, deve ser compreendido como um lugar em que também se produz sentido. A sugestão de Certeau é que a análise dos produtos culturais se desloque, então, para as operações de seus usuários. Muitas práticas cotidianas como falar, ler, circular, cozinhar, ir ao supermercado, dentre outras, são do tipo da tática. Em geral, elas são “maneiras de fazer”, isto é, vitórias do fraco sobre o mais forte, pequenos sucessos, “arte de dar golpes”. Com isso, Certeau apresenta uma resposta original ao pessimismo que caracterizava os estudos que denunciavam a total passividade dos sujeitos no consumo da “cultura de massa”. No entanto, como destaca Dosse,84 alguns trabalhos produzidos nos anos 1980 indicaram a necessidade de se repensar o esquema binário tática/estratégia construído por Michel de Certeau para pensar as práticas de leitura.85 Para Phillipe Urfalino, tais oposições pressupunham que havia um poder “flexível” e “móvel”, porém “localizável”, que se impõe por meio de um modelo estratégico de ação, assumindo eficácia social, enquanto os dominados não dispõem de um lugar para inscrever suas práticas.86 Tal abordagem não seria adequada para a análise das relações complexas que são estabelecidas entre as liberdades e os constrangimentos, a memória e o esquecimento na sociedade contemporânea. Nessa direção, pensamos que as cartas são exatamente o lugar de cruzamentos e hibridações entre a “estratégia” da escritura e as “táticas” de leitura”.87 O simples ato de escritura de cartas já é um indício da não-passividade, da inventividade do leitor. Mas, é também um indício de que o leitor deseja ganhar posições, ele quer dar ou entender o sentido “correto” dos textos lidos na Máquina da Memória. Jean Hébrard destaca que é possível encontrar práticas nas quais as táticas de leitura e as estratégias de escritura se

83 A esse respeito, ver Chartier (1998). François Dosse (2002b, p. 206-222) ressalta que Michel de Certeau pretende contrapor a ideia de habitus de Pierre Bourdieu, que negava a ideia da criatividade e resistência no processo de dominação.



84 DOSSE, François. L’art du détournement. Michel de Certeau entre stratégies et tactiques. Esprit, Paris, Éditions du Cerf, n. 283, p. 206-222, mars-avril 2002b.



85 CERTEAU, 1994a.



86 URFALINO, Philippe. La mémoire et l’oubli: l’invention du quotidien. Espirit, Paris, n. 51, p. 136-146, mars, 1981.



87 Sobre as “estratégias” da escritura e as “táticas” da atividade leitora, ver Certeau (1994). Ver, também, Chartier; Hébrard (1988, p. 97-108).

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confundem de maneira indissociável, na perspectiva de melhor apropriação dos textos lidos: “de certa maneira, Michel de Certeau nos ajuda a entender melhor a maneira de ler dos leitores instruídos, competentes do que dos leitores iniciantes”.88 Nesse sentido, o leitor que “caça em terras alheias” muitas vezes não é o “homem comum” e/ou o “fraco”, e, sim, o leitor competente. Procurando romper com o debate entre os críticos presos na autoridade do texto e os que adotam análises empíricas e enfatizam a liberdade do leitor, alguns estudos sobre as práticas de leitura, no mundo contemporâneo, propõem pensar a liberdade do leitor em relação às imposições, à sua capacidade de agir e aos limites de seu poder, observando, enfim, as condições de ação do público e/ou leitor.89 O público é, assim, considerado ativo na utilização e interpretação das mídias, porém, sua atividade não pode ser confundida com um poder efetivo sobre as mídias.90 As reflexões de Bernard Lahire91 têm mostrado que, no lugar de haver um leitor “ingênuo” e outro “esperto”,92 há um leitor plural, que revela sua face no ato da leitura pelas competências que possui e o encaminham. Para Lahire, o ator plural está submetido a princípios de socialização heterogêneos, às vezes contraditórios. Assim, a leitura, nesse sentido, deve ser considerada não apenas um consumo cultural, mas uma experiência social do ator plural. Tendo em vista as cartas dos leitores da Máquina da Memória analisadas, tende-se a considerar a leitura um lugar central de tensão entre mecanismos de dominação e de resistência, percebendo a coexistência entre a resistência e a submissão.93 A partir das cartas dos leitores do Almanaque Abril,



88 HÉBRARD, Jean. Peut-on faire une histoire des pratiques populaires de lecture à l’époque moderne? Les ‘nouveaux lecteurs’ revisités. In: Histoires de lecture: XIXeXXe siècles. Présentées par Jean-Yves Mollier. Bernay: Société d’histoire de la lecture, 2005. p. 111.



89 BEAUD, Paul et al. Sociologia de la communication. Paris: Réseaux-CNET, 1997.



90 ANG, Ien. Cultura e communication. Pour une critique ethnographique de la consommation des médias. Hermes, Paris, Cognition, Communication, Politique, n. 1112, p. 73-93, 1993.



91 LAHIRE, Bernard. O Homem Plural. Petrópolis: Vozes, 2002.



92 ECO, Umberto. Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 1986.



93 GRIGNOU, Brigitte Le. Du côté du public: usages et réceptions de la télévision. Paris: Economica, 2003. p. 49 e 56.

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tende-se, pois, a perceber a leitura sendo uma prática situada entre estratégias e táticas. Mesmo que essa análise não tenha sido exaustiva, pode-se perceber, a partir da descrição efetuada, que de fato os textos da Máquina da Memória possibilitaram grande diversidade de leituras e apropriações, na medida em que a publicação – e/ou seus textos – foi parte constitutiva da formação da identidade de um número considerável de leitores que escreveram cartas para a redação da publicação. Esse trabalho inclina-se, desse modo, a concordar com Jean-Claude Passeron, afirmando que o enigma político das ciências humanas e sociais é compreender como os dominados aceitam determinada ordem dominante.94 Logo, pensar a relação dominante/dominado para além de uma simples oposição pode nos servir para elucidar novas facetas desse “mistério”. Assim, pensa-se que provavelmente as práticas sociais e culturais frente à obliquidade do poder tendem a agir, reagir, resistir, atuar, utilizar, negociar, produzir e se apropriar também de forma oblíqua. Para Nestor Canclini, o poder não funcionaria se fosse exercido de forma unilateral. As formas de dominação são, assim, oblíquas, não lineares, tortuosas. É exatamente essa singularidade que confere eficácia a determinadas formas de dominação.95 A Máquina da Memória pode ser entendida, portanto, como um “artefato cultural” produto e ator da atual reorganização das culturas, pois hoje “todas as culturas são de fronteira. Perdem relação com o território e ganham em comunicação e conhecimento”.96 É parte integrante dos conflitos e das tensões gerados em função da “decadência de projetos nacionais de modernização na América Latina”.97 Para Jorge Luis Borges, a Biblioteca de Babel seria o lugar onde todos os livros que existem e que se possam imaginar estariam lá.98 Um dia, os bibliotecários procuram um livro que reúne em si toda a complexidade dos demais, quase que uma divindade. Mas eles não o encontram e a decepção se instaura. Como se pode ver, “a máquina da memória” é um dos

94 PASSERON, Jean-Claude. Morte de um amigo, fim de um pensador. In: ENCREVÉ, Pierre; LAGRAVE, Rose-Marie. Trabalhar com Bourdieu. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 60.



95 Sobre os “poderes oblíquos”, ver Canclini (2006).



96 CANCLINI, 2006, p. 348.



97 Ibid., p. XVIII.



98 BORGES, Jorge Luís. A biblioteca de Babel. In: ______. Obra completa: poesia, crítica e crônica. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1963. p. 809-835. v. 3.

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“remédios” criados para dar conta dessa decepção. Os textos do Almanaque podem ter sido o “remédio”, para milhões de leitores que das formas mais diversificadas utilizaram essa publicação. Afinal, tinha “tudo que você precisa saber sobre tudo”. Porém, ainda é preciso retomar a questão: quais os limites de um projeto como esse? Afinal, a Máquina da Memória, além de “remédio”, pode ser também, e ao mesmo tempo, um veneno. Como mostra Harald Weinrich, para os gregos, Letes é uma divindade feminina que forma um par contrastante com Mnemosyne, deusa da memória e mãe das musas. Se pensarmos na “memória natural”, a escrita é antes uma aliada do esquecimento do que da lembrança, a revolução escrita deixou “preguiçosa” a referida memória. Com a invenção da imprensa, essa realidade sofre transformações. Os livros denominados por Borges “simulacros da memória” são acessíveis a todos e se conseguem facilmente. Desde então, a “memória cultural” existe materialmente em muitas bibliotecas públicas e privadas e, se muitas coisas agora já não são sabidas de cor, sabemos onde as encontrar facilmente. Por outro lado, desde então, uma série de críticas à “acumulação ingênua do saber” começou a ser feita. Kant, por exemplo, criticava a “memória mecânica”, pois, para ele, as pessoas são apenas treinadas e adestradas, não se pode esperar que a instrução as leve a “aprender a pensar”: “[Kant] se sente melhor no esquecimento do que na memorização; pois quem esquece pelo menos não é um mero ‘recitador’ nem ‘macaco cego’, e, porque esquece, também pode agir como pensador autônomo (...).”99 No entanto, como vimos, os leitores em suas táticas e estratégias podem ressignificar em suas práticas essa “memória mecânica”. Subvertendo ou não o projeto editorial do Almanaque, as práticas de leitura nos levam para dentro e para fora da lógica mecanicista, pois as lacunas e brechas da tensão entre memória e esquecimento nos textos da Máquina da Memória e nas práticas de leitura tornam as possibilidades de leituras múltiplas e abertas. Isso se deve tal-



99 WEINRICH, 2001, p. 111. Indo à direção semelhante à de Kant, Schopenhauer (2005) afirma: “quando lemos, outra pessoa pensa por nós; apenas repetimos seu processo mental (...). Quando lemos, somos dispensados em grande parte do trabalho de pensar. (...) quem lê muito e quase o dia todo, mas nos intervelos passa o tempo sem pensar nada, perde gradativamente a capacidade de pensar por si mesmo – como alguém que, de tanto calvagar, acabasse desaprendendo a andar. Mas é este o caso de muitos eruditos: leram até ficarem burros” (p. 127-128).

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vez, em grande medida, porque o esquecimento pode ser pensado para além da relação de “uma memória posta como desejo primeiro de persistência”.100 Nietzsche já havia afirmado que “é possível viver quase sem lembrança, e mesmo viver feliz, como mostra o animal: mas é inteiramente impossível, sem esquecimento, simplesmente viver”.101 Jeanne Marie Gagnebin afirma que o esquecimento pode ser essa sorte de impulso primeiro, “indício de nossa animalidade opaca, que faz com que vivos continuem a viver apesar da morte, apesar dos mortos, apesar também do horror, passado e presente”. Para a autora, os homens não são animais tão específicos porque possuem uma memória: mas somente porque se esforçam em não esquecer. A escrita da história é sim atravessada pela morte, como afirmava o deus solar do Fedro; mas se o historiador luta contra o esquecimento (Heródoto) e trabalha para cavar um túmulo, seu gesto recorda simultaneamente aos vivos que nenhuma memória poderia torná-los inesquecíveis, isto é, eternos. Assim, a história luta igualmente contra esse esquecimento que nos é tão caro: o esquecimento de nossa própria morte.102

Em certo sentido, portanto, tendo em vista as reflexões de Gagnebain, a partir de Nietzsche e Ricoeur, há limites para o esquecimento. De certo modo, viver é lutar contra o esquecimento. Devemos esquecer, por exemplo, a Grande Guerra, o Holocausto, a tortura e o Golpe de 1964? A esse respeito, Paul Ricoeur fala em perdão difícil, entendendo esse tipo de perdão como uma forma de se reconciliar, sem esquecimento, com o passado: “o perdão, se ele tem um sentido e se ele existe, constitui o horizonte comum da memória, da história e do esquecimento.”103 Hannah Arendt afirmou que a única solução possível para o problema da irreversibilidade, entendida como a impossibilidade de se “desfazer o que se fez, embora não se soubesse nem se pudesse saber o que se fazia – é a faculdade de perdoar. A solução para o problema da imprevisibilidade, da caótica incerteza do futuro, está contida na faculdade de prometer e cumprir promessas.”104 Ricoeur, por sua vez, concorda com Hannah Arendt, mas ele avança no sentido de acreditar que a concessão do perdão está funda 100 GAGNEBIN, 2006, p. 191. 101 NIETZSCHE, Frederic. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 66. 102 GAGNEBIN, op. cit., p. 192. 103 RICOEUR, 2000, p. 593. 104 ARENDT, Hannah. A condição Humana. São Paulo: Universitária, 1991b. p. 249.

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mentada no desligamento do ato de seu agente. O perdão é sempre dirigido ao outro e não à ação mesma. Da nossa parte, é importante destacar que é preciso pensar uma educação histórica que se preocupe em evitar a repetição. Desse modo, uma questão inquietante é: qual o papel do conhecimento histórico e do trabalho de memória para a superação da repetição tanto no plano individual como no coletivo? Afinal, como afirma Koselleck: “a história demarca os limites para um futuro possível e distinto, sem que com isso possa renunciar às condições estruturais associadas a uma possível repetição dos eventos.”105 A utopia do perdão é, portanto, uma possibilidade para uma memória feliz, tranquilizada, apaziguada. A memória justa (feliz?), então, não seria constituída a partir de uma luta contra o esquecimento e, sim, como uma forma de reconciliação tensa e negociada entre lembrança e esquecimento, a partir da relação entre o trabalho de memória e trabalho de luto. Ricoeur faz uma importante observação a esse respeito: Continuo preocupado com o inquietante espetáculo proporcionado pela memória demais aqui, pelo esquecimento demais acolá, para não falar na influência das comemorações e dos abusos de memória – e de esquecimento. A idéia de uma política da justa memória é, sob esse aspeto, um de meus temas cívicos confessos.106

Deve-se buscar uma memória justa, pois uma memória sem esquecimento pode ser um fantasma. O trabalho histórico é, portanto, a busca desse senso de justiça. Desse modo, considera-se que, dada a nossa condição mortal, a Máquina da Memória é mais um remédio e/ou veneno que contribui para esse esforço dos homens em não se esquecer de si mesmos, do tempo e da própria morte. As práticas e as apropriações plurais do Almanaque Abril podem tornar seus textos um remédio, um remédio e veneno e, ainda, remédio ou veneno para esse esforço em não se esquecer de si, do tempo e da própria morte. Tendo em vista a “irredutível suspeita” do texto escrito e da relação entre história e memória entre ser remédio ou veneno – e/ou os dois ao mesmo tempo, Paul Ricoeur nos ensina que a narrativa histórica escrita e publicada em forma de livro busca um interlocutor desconhecido. O livro, nesse processo, rompe as amarras impostas pelo enunciador. A autonomia semântica do texto 105 KOSELLECK, 1990, p. 146. 106 RICOEUR, 2000, p. I.

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atinge, portanto, nas práticas de leituras, “uma situação de aflição”, que só ganha limites no “trabalho interminável de contextualização e recontextualização em que consiste a leitura”.107 Nosso estudo, tecido neste capítulo que se finda, permitiu-nos compreender e explicar, de forma fragmentária, dimensões dos horizontes de expectativas dos leitores da história da Máquina da Memória e como a publicação procura responder a essas expectativas, pois, como afirma Ricouer, não se tem nada melhor do que a memória, entendida como matriz da história, para se assegurar de que alguma coisa ocorreu no passado. Sendo assim, agora que já foi apresentada uma visão editorial do Almanaque Abril e de suas práticas de leitura, pretende-se, nos próximos capítulos, por meio de um trabalho de “contextualização e recontextualização”, mostrar como ocorreu a relação entre essa forma editorial, que objetiva mostrar que o tempo passa, e o conhecimento dos homens no tempo: a história.

107 RICOEUR, 2000, p. 177.

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Capítulo 3

Almanaque abril e a permanência de uma história dita “positivista” ou “tradicional” Senhora Diretora, é com muita satisfação que escrevo para informá-la sobre a importância do Almanaque Abril, para os meus trabalhos escolares. Leciono de 1.ª a 4.ª séries, tenho o curso de Pedagogia quase completo e ingressei no curso de História em uma Faculdade existente próxima à minha cidade, a 78km de distância. O Almanaque Abril está sendo um recurso importante na elaboração dos meus trabalhos. (Leitora do Almanaque Abril 2005. A remetente postou a carta em uma cidade do interior do estado de Pernambuco).

O projeto editorial e o sucesso da Máquina da Memória podem ser entendidos, em boa medida, a partir do tratamento dado à história ao longo de sua publicação. As contra-capas das edições de 1979 a 1984 afirmavam, por exemplo, que “o Almanaque Abril é uma obra de referência que não tem similar dentro da nossa tradição informativa”, pois abordava todas as áreas do conhecimento humano, “não só mostrando sua acumulação através do tempo e suas últimas conquistas, como também estabelecendo uma relação de causa e efeito entre o fato político da atualidade e a história do povo a que se refere”. Acredita-se que até a edição de 1996, de fato, as narrativas da Máquina da Memória procuraram articular presente e passado dentro de uma concepção de causalidade “tradicional”. Após essa data, como se viu, o presente ganhou destaque em detrimento do passado, sem que a história deixasse de existir no interior das páginas obra. Os Almanaques do século 18 e, sobretudo, do século 19, estavam a meio caminho da mídia e do conhecimento histórico e anteciparam a função dos

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livros de história ligados ao ensino no final dos oitocentos.1 Pensou-se, a partir dessa sugestão, que a história dada a ler pela Máquina da Memória esteve situada no cruzamento entre o discurso jornalístico, o conhecimento histórico acadêmico e a história ensinada. Tendo em vista essa hipótese, procurou-se pensar, neste e nos próximos capítulos, se a recusa de uma história dita factual, tanto por parte dos “novos” currículos de história, quanto de uma significativa produção historiográfica, também poderia explicar o sucesso do Almanaque Abril, na medida em que ele se constituiu como um lugar de “refúgio” paradidático da cronologia, da periodização e dos eventos tradicionais. Nos próximos dois capítulos, enfatizar-se-á a relação da Máquina da Memória com o conhecimento histórico acadêmico e o discurso jornalístico. Neste capítulo, analisar-se-á a existência – e o grau de permanência – de uma concepção de história dita “tradicional” ou “positivista” no campo do ensino de história e a relação desta continuidade com a forma como essa representação do passado foi concebida pelos textos da Máquina da Memória. A partir de uma visão geral sobre a forma como a história foi contada nas páginas da publicação, apresentarse-á, também, uma reflexão sobre a importância da cronologia e da periodização para o Almanaque Abril, para o ensino e para a disciplina histórica.

O Ensino de História no Brasil e a “História Tradicional” Segundo José Murilo de Carvalho, a principal mudança pela qual passou a escrita da história, no mundo contemporâneo, foi a perda do “Estado Nacional” como tema. Esse autor destacou, ainda, três fases na historiografia brasileira: a primeira, em que se pensou a construção do Estado (século 19); a segunda, a construção da Nação (primeira metade do século 20); e a terceira, que estaríamos presenciando hoje, em que se pensa a constituição da sociedade.2 Tomando essas considerações por pressupostos, procurou-se pensar o

1 LÜSEBRINK, Hans-Jürgen. Introduction. In: ______; MOLLIER, Jean-Yves; GREILICH, Susane (Dir.). Presse et événement: journaux, gazettes, almanachs (XVIIIeXIXe siècle). Bern: Lang, 2000c. p. 4.



2 CARVALHO, José Murilo. O historiador às vésperas do terceiro milênio. In: ______. Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1999, p.

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ensino de história no Brasil e sua relação à permanência de uma história dita factual, ou mesmo “positivista”, na Máquina da Memória. As mudanças da escrita da história no final do século 20 levaram os professores da disciplina a procurar uma superação do modelo tradicional introduzido no Brasil, no século 19, a partir do modelo francês.3 Para pensarmos o ensino de história após o lançamento da Máquina da Memória, isto é, desde 1975, devemos retomar a forma que esse ensino assumiu após a Ditadura Militar.4 Para Elza Nadai, o Golpe Militar de 1964 e a radicalização a partir de 1968 desfecharam um golpe nas diferentes experiências de ensino que, desde 1945, procuravam romper com a história dita “tradicional”.5 Com a formação dos cursos de licenciatura curta, a introdução de disciplinas cívicas (Organização Social e Política do Brasil – OSPB – e Educação Moral Cívica – EMC) no currículo, a diminuição da carga horária, e, ainda, a introdução dos Estudos Sociais (reunião de história e geografia nas primeiras séries do Ensino Fundamental), boa parte dos professores, em geral formados nos referidos cursos, tornaram-se cada vez mais dependentes de livros didáticos. A ênfase no civismo, que pretendia estabelecer “valores” para a sustentação da Ditadura Militar,6 implicou uma descaracterização da disciplina escolar. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais de História (PCNs de História), os conteúdos da disciplina foram esvaziados ou diluídos, adquirindo certo caráter ufanista. A preocupação com o tempo, presa a uma visão linear e progressiva dos acontecimentos, perpassava quase todos os livros didáticos do período. Nessa época, percebe-se, ainda, uma gradativa deterioração da qualidade do ensino e das condições de trabalho na escola pública. Não

451. Para uma análise sintética do impacto da perda do “Estado-Nação” como tema no ensino de história, ver Bittencourt (2003).

3 NADAI, Elza. O ensino de História no Brasil: história e perspectivas. Disponível em: . Acesso em: 30 jul. 2003.



4 Para uma análise da história do ensino de história anterior a 1964, ver, dentre outros, Bittencourt (1993); Abud (1993, p. 163-174); Abud (1998, p. 103-113); Brasil (1998); Hansen (2000); Mattos (2000); Gasparello (2002) e Guimarães (2003b).



5 NADAI, loc. cit.



6 FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da História Ensinada. São Paulo: Papirus, 1995.

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podemos minimizar a capacidade de resistência e contestação a esse quadro, por parte dos profissionais do ensino de história, e é importante destacar que, desde a década de 1960, os estudos marxistas ganhavam força na academia e na escola brasileira. Assim, na contra-mão do controle do Estado Autoritário dos anos 1970, iniciou-se uma série de estudos sobre a classe trabalhadora “começando pelo operariado, sua imprensa, seus movimentos associativos, suas formas de luta e de resistência e atingindo os estigmatizados – camponeses, mulheres, prostitutas, homossexuais, etc.”7 Em meados dos anos 1980, juntamente com as novas reflexões historiográficas e pedagógicas que, desde os anos 1970, ganhavam espaço nos cursos de licenciatura e na prática dos professores, surgiu um movimento de elaboração de propostas alternativas para o ensino. Esse movimento, que procurava também repensar a função da história como disciplina escolar, ganhou força, na sociedade e entre os professores, à medida que se avançava o processo de redemocratização das instituições brasileiras.8 Nos anos 1990, novas propostas curriculares para o ensino da história do Brasil surgiram em todos os Estados da Federação.9 Foi realçada a ideia das diferentes temporalidades, bem como o pressuposto de que os ritmos históricos não eram apenas definidos pelas instituições (Estado ou Nação) ou pela esfera econômica. Além disso, percebeu-se uma valorização do cotidiano do aluno. A necessidade de formação de uma cidadania política para a construção de uma sociedade democrática transparece na maioria das propostas. Alguns programas, reconhecendo a impossibilidade do ensino de história geral, propuseram currículos sem conteúdos fixos e sequências obrigatórias. Nota-se, nessas propostas, no entanto, a permanência da ideia da ação individual como fundamental na dinâmica da história. Uma história de matriz branca, ocidental, sem conflitos e sem questionamento de conceitos-chave, como o de “cultura”. De todo modo, os PCNs de história afirmam que, nas décadas de 1980 e 1990, a “história tradicional” sofreu diferentes contestações, principalmente

7 NADAI, 2003.



8 FONSECA, 1995.



9 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Propostas curriculares de História: continuidades e transformações. In: BARRETO, Elba Siqueira de Sá (Org.). Os currículos do Ensino Fundamental para as escolas brasileiras. São Paulo: Autores Associados/Fundação Carlos Chagas, 1998. p. 128-161. (Coleção Formação de Professores).

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no que dizia respeito à seriação dos acontecimentos em um eixo espaço-temporal eurocêntrico, por meio de um processo evolutivo com sequências cronológicas.10 Nos anos 1990, as ideias de história integrada (do Brasil e Geral, ainda de vocação enciclopédica) e história temática ganharam força. Além disso, a história e a geografia reapareceram como disciplinas autônomas. Os PCNs, que surgiram com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 9394/96, talvez sejam a maior inovação desse período. Os PCNs de história – que não têm caráter normativo, pondo-se, na verdade, como orientação ou sugestão oficial – legitimam várias propostas e práticas que nasceram na década de 1980.11 Com o seu surgimento, o ensino deixa de ser considerado uma simples transmissão de saberes e a escola o lugar de mera reprodução dos saberes constituídos.12 Nesse sentido, ele se apresentou como um “espaço” para a reflexão sobre a história do ensino escolar no Brasil: “a existência da História escolar deveu-se sobretudo ao seu papel formador da identidade nacional, sempre paradoxal, no caso brasileiro, uma vez que deveríamos nos sentir brasileiros mas antes de tudo pertencentes ao mundo ocidental e cristão”.13 Portanto, procurando repensar esse passado, em diversas passagens dos PCNs de história, percebe-se a insistência para que o professor rompa com a ideia de tempo único, contínuo e evolutivo, enfatizando o confronto entre povos, grupos e classes, além das ideias de permanências e transformações, rápidas e lentas.

10 BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: História e Geografia. Brasília, 1998. p. 28. v. 5. Para uma ideia dos debates dos anos 1980, ver, dentre outros, Nadai (1986); Anpuh (1990); Silva (1984) e Cabrini (1986). Para uma análise histórica desses debates, ver Cordeiro (2000) e Caimi (2001).



11 SÁ MOTTA, Miriam Hermeto de. Um estudo sobre a causalidade no ensino de História. 2002. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002.



12 André Chervel (1990) introduziu a ideia de disciplina escolar tendo um estatuto próprio de conhecimento. As disciplinas escolares não são reflexo, nem vulgarização dos saberes da pesquisa acadêmica. Além disso, por mais que a escola “se esforce, raramente pode-se vê-la seguir, etapa por etapa, nos seus ensinos, o progresso das ciências que se supõem que ela deva difundir” (p. 182). A escola tem, segundo esse autor, cultura própria, sendo criações didáticas originais, configurando-se no preço que a “sociedade deve pagar à sua cultura para poder transmiti-la no contexto da escola ou do colégio” (p. 222). Ver, também, Prost (1998, p. 55-64).



13 BITTENCOURT, 1998, p. 144.

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A redefinição dos três conceitos fundamentais da história ensinada – fato, sujeito e tempo – é uma clara oposição entre a nova proposta e a história dita “tradicional”. Segundo o documento, em uma perspectiva “tradicional”, o fato é definido pelas festas cívicas e pelos heróis nacionais, de modo isolado de seu contexto. É proposto no PCN, ao contrário, que os fatos sejam entendidos como ações humanas significativas em contextos de mudanças e permanências. Em contraposição aos sujeitos históricos, entendidos pela “história tradicional” por meio de ações isoladas de poucos homens poderosos, apresenta-se a alternativa dos sujeitos como agentes de uma ação social: indivíduos pertencentes a grupos ou classes sociais (trabalhadores, políticos, escravos, partidos, etc.). O tempo histórico trabalhado na perspectiva tradicional é entendido, segundo os PCNs, como o tempo cronológico do calendário e as datas, transmitindo a ideia de uniformidade, de regularidade, de sucessão crescente e cumulativa, limitando as ações humanas a uma ordem evolutiva, em que o presente é o estágio mais avançado da história. Baseado nas categorias braudelianas, que serão discutidas no próximo capítulo, o documento privilegia a dialética das durações, em especial, a longa duração, sobre a cronologia: “os ritmos da duração, por sua vez, possibilitam identificar a velocidade com que as mudanças ocorrem. Assim, podem ser identificados três tempos: o tempo do acontecimento breve, o da conjuntura e o da estrutura.”14 Problemas metodológicos, somados aos problemas estruturais relacionados ao ensino e à formação dos professores no Brasil, dificultaram, no entanto, a incorporação das propostas presentes nos PCNs à prática diária do professor de história. Além disso, durante sua “implementação”, surgiram críticas a alguns de seus pressupostos,15 à sua proposta de hierarquização da temporalidade histórica calcada nas categorias braudelianas e, também, à sua opção pela polêmica história-temática. François Dosse defendeu, a partir do cenário francês, um currículo escolar de história que levasse em conta as descontinuidades, sem a utilização de eixos-temáticos.16  Por outro lado, Patrick Garcia sustenta, inspirado em



14 BRASIL, 1998, p. 38.



15 Ver, por exemplo, Soihet (2003).



16 DOSSE, François. L’inflexion patrimoniale: l’enseignement de l’histoire au risque de l’identité? Espaces Temps, Paris, n. 66-67, 1998.

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Marc Bloch, a aplicação dos procedimentos regressivos assumidos enquanto tais. Eles permitiriam escolher, junto aos alunos, diferentes modos de apreensão e reativação do passado e a compreensão dos jogos e manipulações da memória e da temporalidade.17 O método regressivo consiste, então, em partir de uma realidade presente e voltar no passado para conhecer a(s) gênese(s) da situação, as permanências, as inovações e as diferentes temporalidades. Para Burguière, trata-se de um método particularmente difícil, levando-se em conta os materiais com que o historiador está acostumado a lidar.18 Do nosso ponto de vista, por mais que tais ideias tenham pressupostos teóricos sofisticados, acredita-se que a aplicação no ensino é bastante problemática em função das dificuldades inerentes tanto à história-temática, quanto ao método regressivo, à formação do professor e à estrutura de ensino da escola brasileira. Pensa-se que, para o aluno entender a história como uma construção intelectual e o tempo histórico como plural, não é necessário modificar radicalmente os temas tratados pelos currículos. Pode-se, inclusive, utilizar um manual tradicional desde que a concepção de história seja problematizada e/ ou relativizada. Além disso, a mudança de temas pela simples novidade pode não mudar em nada a realidade do ensino e dos livros didáticos. A esse respeito, Marcos Napolitano observou: “a História tradicional, descritiva e linear, pode entrar pela porta dos fundos, não mais pelos fatos políticos chatos, mas pelos agradáveis fatos do cotidiano.”19 O almejado rompimento com a história dita “tradicional”, percebe-se, ainda está muito distante da prática do ensino da disciplina.20 É importante

17 GARCIA, Patrick. Histoire enseignée: la tradition bousculée. Espaces Temps, Paris, n. 82-83, p. 110-119, 2003a.



18 BURGUIÈRE, André. Histoire d’une histoire: la naissance des Annales. Annales ESC, Paris, Armand Colin, n. 6, 1979.



19 NAPOLITANO, Marcos. Pensando a estranha História sem fim. In: KARNAL, Leandro (Org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2002. p. 180.



20 A esse respeito é bastante inquietante e verdadeiro o depoimento de um ex-aluno de prática de ensino de história. Perguntado sobre as lacunas da sua formação, que dificultaram (e dificultam) sua prática profissional, ele afirmou que: “ciência histórica não trabalha mais com imposições da cronologia, a ditadura das datas históricas, e desenvolve uma atuação relativista de conhecimento, dispensando visões absolutas sobre os fenômenos sociais. Nada disso é praticado nas escolas

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destacar que a noção de linearidade cronológica permanece central na tradição escolar até os dias de hoje. O primeiro risco dessa operação é a obsessão pela origem, denunciada por Marc Bloch. O segundo é o enrijecimento da história em direção a um determinismo.21 A linearidade cria uma relação de causalidade que faz esquecer as possibilidades perdidas e a dinâmica histórica do passado, pois ela cria um “efeito de real” e/ou “verdade” em que o anterior explica o posterior mecanicamente. As dimensões criativas e ativas dos atores são reduzidas a um jogo de que já se sabe o resultado final. Os projetos que não obtiveram sucesso são ignorados completamente pelo “rolo compressor” da cronologia teleológica. O “perigo” da cronologia é que ela tende a fazer sentido imediatamente. Os agentes, enquanto produtores de história, ignoram a continuidade, sempre aberta e não dirigida, cheia de projetos perdidos, refeitos, incompletos e inacabados.22 A linearidade cronológica dissimula a operação historiográfica, pois, se o historiador parte de traços do passado que subsistem no presente, a ordem de restituição se faz em sentido inverso, na medida em que a história é escrita a partir do presente daquele que a escreve: “ela (a cronologia) é a condição de possibilidade do recorte em períodos. Mas (no sentido geométrico) rebate, sobre o texto, a imagem invertida do tempo que, na pesquisa, vai do presente ao passado. Segue seu rastro pelo reverso.”23 A ordem cronológica contribui para construir um “efeito de real” e/ou “verdade”, porém a ordem seguida pelo historiador se dá em sentido inverso, isto é, do presente para o passado. Por essas razões, afirma-se que a cronologia e os eventos devem ser problematizados no ensino de história. Porém, lutar contra um ensino teleológico e “elitista” talvez não imaté então. Somos testados e avaliados com relação aos fatos históricos e as datações precisas dos mesmos. E somos maus profissionais por não dominarmos esses dados. Ainda mais que nós fomos a primeira turma de licenciados em história da cidade (Divinópolis). Os profissionais formados anteriormente, habilitados em Filosofia e Ciências Sociais, acreditavam que todo conhecimento de fatos e dados relativo à história deveriam ser de domínio nosso, professores especialistas em história” (Faber Clayton Barbosa, entrevista escrita ao autor, 1 abr. 2009). Um contraponto a essa realidade pode ser visto em Costa (2007).

21 GARCIA, 2003a, p. 110-119. Ver, também, Bloch (2001).



22 RICOEUR, 2000.



23 CERTEAU, 1982.

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plique rejeitar as cronologias, as periodizações e os eventos tradicionais. No próximo capítulo, destacar-se-á o argumento de Koselleck, afirmando que “o pano de fundo no qual diferentes acontecimentos se organizam em um evento é, antes de tudo, a cronologia natural”. O autor adverte que, para a compreensão e as explicações do tempo longo, isto é, estruturais, o rigor cronológico deixa de ser fundamental, mas “ambos os níveis, o das estruturas e o dos eventos, remetem um ao outro, sem que um se dissolva no outro.”24 Nesta direção, Nicholas Davies adverte: “ao contrário do que muitos (livros didáticos, professores, etc.) vêm afirmando nos últimos anos, toda História é, ao mesmo tempo, factual e conceitual”. Essa falsa contradição – entre o factual e o conceitual – talvez tenha sua origem na ênfase em um tipo específico de factualidade, porém “a História-disciplina é necessariamente uma seleção de fatos a partir de uma teoria esposada consciente ou inconscientemente, esperta ou ingenuamente, pelo historiador.”25 É importante retomar o historiador francês Fernand Braudel, um dos principais responsáveis pela vulgarização da crítica a uma história dita “tradicional” ou “positivista”. Em 1966, no prefácio à segunda edição do livro O Mediterrâneo, Braudel afirmou que o leitor não deveria se iludir com os argumentos do prefácio à primeira edição, “pois eles visavam combater teses obsoletas, hoje em dia já esquecidas no mundo da investigação, se não mesmo no do ensino. O combate de ontem é hoje apenas contra sombras.”26 Em 1983, porém, diante de um cenário diferente de discussões historiográficas, Braudel suaviza suas críticas à história tradicional, pelo menos no contexto escolar: Para uns, a história tradicional, fiel à exposição, escrava da exposição, pródiga em datas, em nomes de heróis, em feitos e gestos de grandes personagens que não tem o cuidado de poupar às memórias, arruinando-as; para outros, a História “nova”, a que se diz “científica”, a que entre outras coisas, cultiva as grandes épocas e despreza os acontecimentos, seria a responsável pelos grandes fracassos,



24 KOSELLECK, 1990, p. 135.



25 DAVIES, Nicolas. História conceitual x História Factual; Raciocínio x Memorização – oposições reais ou falsas no ensino da história? In: ENCONTRO PERSPECTIVAS DO ENSINO DE HISTÓRIA, 2., 1997, São Paulo. Anais... São Paulo, 1997. p. 596-597.



26 BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo na época de Filipe II. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983. p. 27.

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verdadeiras catástrofes que, no mínimo, acarretam o imperdoável esquecimento da cronologia. (...) Sempre defendi, no que se refere às crianças, uma exposição simples, imagens, séries de televisão, cinema, ou seja, em geral, uma história tradicional mas melhorada, adaptada aos media a que as crianças se habituaram. (...) O problema está em levá-los a descobrir, ao longo do percurso, a perspectiva, a realidade do tempo vivido, as direções e os significados que implica, as sucessões que, ao marcá-lo, o delimitam e lhe conferem o primeiro rosto reconhecível. Para mim, é simplesmente abominável que um aluno médio não situe Luís XIV relativamente a Napoleão ou Dante relativamente a Maquiavel... Que o tempo, que se reconhece pouco a pouco, se preste o menos possível a confusão! (...) Pessoalmente, como sempre propus, teria incluído uma introdução à nova história, apenas ao programa do último ano. (...) Ora, é o contrário que se tem feito. A nova história foi posta arrumada, nos primeiros anos onde, evidentemente, fez estragos. Poderia ter acontecido outra coisa?27

No que se refere aos materiais didáticos de história no Brasil, análises recentes indicam a permanência da tradição. Para Kazumi Munakata, a maioria dos livros didáticos de história, escritos após o fim da Ditadura Militar, fez a opção de manter os conteúdos “consagrados pela tradição”. Segundo sua análise, “no Brasil, os livros didáticos pelo menos resguardam o seu público (professores e alunos) do risco do nenhum saber, por mais que essa história seja suspeita aos olhos do historiador acadêmico”. O que prevaleceu foi o “conteúdo consensual dos livros didáticos completado pelos paradidáticos.”28 Como se mostrou no capítulo anterior, um dos principais usos do Almanaque é o uso escolar. Pode-se explicar esse fato, em primeiro lugar, pela ausência de outras obras de referência atualizadas e a bom preço, disponíveis para alunos e professores. Em segundo lugar, as razões para o sucesso dos usos escolares do Almanaque podem ser encontradas na contradição de um ensino que, por um lado, absolutiza os marcos tradicionais e, por outro, baseia-se em diretrizes curriculares que propõem desvalorizá-los ou superá-los. Provavelmente, uma forma de superar os falsos dilemas no ensino – visões tradicionais que supostamente estariam em oposição às novas visões – consistiria em fazer uma reflexão mais sistemática sobre as dimensões de

27 BRAUDEL, Fernand. Gramática das civilizações. Lisboa: Teorema, 1989. p. 5-7 (grifo no original). Para uma denúncia da distância entre a história ensinada e o conhecimento histórico acadêmico na França, nos anos 1980, ver, por exemplo, Citron (1990). Para uma análise mundial do ensino de história após 1950, ver Laville (1999).



28 MUNAKATA, 1998, p. 271-296.

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memória e história. Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que, em certa medida, alguns dos dilemas do ensino e do conhecimento histórico repousam, por um lado, em considerar que “a história não é dada a priori, mas que ela se constrói. Logo, o ensino de história serve a inculcar os rudimentos de um procedimento crítico que está no coração da história enquanto disciplina científica.”29 Mas, por outro lado, tais dilemas referem-se ao fato de o ensino também contribuir para a construção de cidadãos que pertencem a uma dada comunidade. Apesar de também opor pesquisa e ensino, Fernando Novais oferece pistas interessantes para refletir sobre esse ponto. Para ele, a questão da memória é de tal modo central na reflexão sobre o ofício de historiador que reponta também nos estudos sobre o ensino da História. Pois é por intermédio do ensino que se transmite mais diretamente o cânon factual que o discurso historiográfico vai gestando nos seus vários estratos, desde a pesquisa de ponta até as obras de divulgação e os livros didáticos. (...) Ficamos esperando dos especialistas (...) estudos sobre o ensino universitário de História, que deve formar ao mesmo tempo o professor (isto é, o transmissor da memória) e o pesquisar (seu elaborador).30

Tais perspectivas contribuiriam, talvez, para que o ensino de história pudesse cumprir suas três funções, tal como sistematizadas por Michelle Perot. Primeiramente, conservar o conhecimento histórico como fonte de orientação no tempo e no espaço, tendo em vista os processos de rupturas, os conflitos e, também, as indeterminações. Em segundo lugar, refletir sobre a memória, pois a memória não deve ser monopólio dos dirigentes, mas deve servir como um meio para a ação sobre nossos destinos. Por fim, a história ensinada deve ser um exercício de crítica e não uma opinião, ela deve dotar o indivíduo de armas críticas para que ele possa ser capaz de considerar as manipulações das quais pode ser objeto. Segundo Perrot, a história poderia ajudar a descortinar um acontecimento sem necessariamente estabelecer uma relação de causa e consequência, ou mesmo dar-lhe um sentido, através

29 NOIRIEL, 1998, p. 215.



30 NOVAIS, Fernando. Aproximações: estudos de história e historiografia. São Paulo: Cosacnaify, 2005. p. 308. Para uma reflexão pioneira sobre uma “pedagogia da memória”, ver Citron (1990). Para uma reflexão que procura pensar as especificidades da história ensinada, ver Monteiro (2007).

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da apreensão das complexidades envolvidas em um determinado tempo e espaço. Ela assumiria sua função crítica ao relativizar crenças, discursos, mitos e sistemas.31 Pensamos que, para que essas questões nos ajudem a pensar nossa fonte/objeto, a Máquina da Memória, elas devem ser completadas por uma análise geral da história, da cronologia e da periodização nas páginas da publicação.

A história nas páginas do Almanaque Abril Para pensar sobre a história dada a ler pelo Almanaque Abril, far-se-á a opção de escolher o relato de dois dos jornalistas que trabalharam na publicação em busca de compreendermos melhor a fabricação do texto da Máquina da Memória. Escolhemos o jornalista Bias Arrudão por ter trabalhado no DEDOC antes e depois de sua passagem pela redação da publicação e também por ter feito mestrado em história na Universidade do Texas, com ênfase em História da América Latina, em 1980. Ele trabalhou no Almanaque Abril da edição de 1985 até a de 1990. O outro jornalista escolhido é Lauro Machado Coelho, que trabalhou nas 20 primeiras edições da publicação (1975-1995) e, por sua longa experiência, foi também escolhido. Bias Arrudão afirmou que, quando esteve na redação da obra, todos os textos eram relidos a cada edição, sendo que alguns eram totalmente refeitos. Nos capítulos de “História do Brasil” e de “História Geral”, as principais notícias da cronologia da edição anterior eram selecionadas, editadas (por exemplo, agrupando-se uma mesma seqüência de fatos que haviam ficado espalhados ao longo de vários meses) e agregadas ao final do capítulo. O mesmo se fazia com a cronologia de história dos países no capítulo de Nações do Mundo. A cada início de edição a equipe se reunia para discutir a edição anterior, determinar as linhas-mestras da nova edição e estabelecer a pauta e a divisão de trabalho dela. Os editores estavam sempre abertos às contribuições de redatores, colaboradores e consultores. Sugestões dos leitores consideradas relevantes foram muitas vezes incorporadas à pauta.32

31 PERROT apud DOSSE, 1998, p. 137-145.



32 Bias Arrudão, entrevista escrita ao autor, 15 fev. 2007.

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Sobre essas questões, Lauro Machado Coelho afirma que os capítulos e textos eram sempre repensados: “havia uma preocupação constante em atender às necessidades dos leitores e, para isso eram utilizados diversos instrumentos ou ‘termômetros’”.33 Coelho ainda destaca que alguns verbetes da publicação eram semelhantes à de uma enciclopédia, porém havia sempre a preocupação em conservar uma linguagem clara de caráter mais jornalístico do que acadêmico. Para Arrudão, o jornalismo praticado para a elaboração da Máquina da Memória era bem diverso do “jornalismo convencional”. Ele destaca que, até o final da década de 1980, a obra era uma publicação de referência: “feita por jornalistas de uma empresa jornalística, sim, mas inteiramente distinta das demais publicações da Editora Abril”. “Por isso o jornalista que trabalhou por muito tempo no Almanaque é um tipo especial de profissional, uma mistura de pesquisador com enciclopedista com jornalista”. O jornalista afirma que saiu da universidade diretamente para o DEDOC, depois para a redação da Máquina da Memória depois retornou ao DEDOC, apesar das diferenças em ambos os casos se praticava o que denominou de “jornalismo de referência”. Segundo ele, ao sair da Editora Abril, em 2000, “faltavam-me várias ferramentas básicas do jornalismo comum, e sobravam outras que, embora sejam necessárias, costumam ser desprezadas/ignoradas pela imensa maioria dos jornalistas”. Arrudão destaca que se considera parcialmente responsável por certas modificações da “postura” dos textos da Máquina da Memória em relação à história. Segundo ele, ao ingressar na redação, em 1984, “espantou-me a visão antiquada e o eurocentrismo do Almanaque. A História do Brasil começava com a chegada de Cabral! Asiáticos, africanos e povos pré-colombianos e latino-americanos eram olimpicamente ignorados”. Assim, “tratei de fazer com que o Almanaque ‘olhasse’ para o restante do mundo, inclusive para o fato de que vivia gente no que hoje é o Brasil antes da chegada dos europeus. Isso evoluiu para a preocupação em dar certa interpretação aos fatos históricos”. Em princípio, a história era a simples enumeração de fatos em sequência cronológica, isto é, uma visão, “tradicional, factual e cronológica, da História. O que, no caso de uma publicação de referência, não está totalmente equivocada”. O jornalista destaca que, de algum modo, a escrita da história presente nas páginas da Máquina da Memória mais se aproximava da memória do que da história dos historiadores, pois “sem que haja decorrido tempo suficiente

33 Lauro Machado Coelho, entrevista escrita ao autor, 8 fev. 2007.

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para se fazer uma reflexão sobre acontecimentos passados o que se tem são registros para a memória”. A demora em abordar temáticas ligadas a Ditadura Militar de forma crítica é interpretada por ele como certa prudência, pois simplesmente não havia passado tempo suficiente para permitir uma análise – qualquer uma – do regime militar. Hoje, é claro, não se faria capítulos de história como aqueles, em que eram privilegiados acontecimentos políticos em detrimento das circunstâncias econômicas e sociais. Mas tampouco se faria um Almanaque como aquele.

Sobre essas questões, Lauro Machado Coelho destaca: Havia capítulos em que os fatos eram apresentados em sua seqüência cronológica – a Cronologia do Ano coberto pela publicação; a de História, a de cada um dos países – associada a textos mais discursivos em que esses acontecimentos eram comentados, associados, expandidos. A partir de um determinado momento, por exemplo (...) a cronologia era interrompida por blocos de texto nela inserida, discutindo de forma mais ampla um determinado tema. Dávamos importância muito maior do que a que em geral eles têm, nos manuais disponíveis, aos fatos, movimentos e tendências contemporâneos, pois sabíamos que essas são as informações mais difíceis de encontrar compactadas em uma só publicação, sem que fosse necessário recorrer a uma série de publicações especializadas. Informar-se sobre a Renascença ou a Revolução Francesa não é problema. A encrenca era encontrar quem te oferecesse uma visão organizada e clara da Guerra do Vietnã; ou do processo que levou à intervenção soviética no Afeganistão.

Como interpretar os depoimentos de Bias Arrudão e Lauro Machado Coelho? Essas falas nos levam a crer, como se reafirmará no fim desse capítulo, que em boa parte eram os leitores que definiam o “conteúdo” da publicação através de constante negociação com as linhas editoriais definidas pela redação. Ao longo desse item, e do próximo, procurar-se-á compreender e explicar aspectos gerais dos textos de história da Máquina da Memória que nos permitem elucidar aspectos contidos nesses depoimentos. Espera-se, assim, pensar a “fabricação do texto” – consequentemente, da história – e os pressupostos que norteavam tal prática. Da primeira edição do Almanaque até a edição de 2006, a história ocupou uma média de 15% a 30% do total do espaço da publicação, considerando também a parte referente à história no capítulo de “Países” e ainda a “Retros-

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pectiva do ano que passou”.34 Como pode ser observado na Tabela 3, os capítulos propriamente históricos ocupavam, nos primeiros anos, uma média de 10% do total de páginas, mas, da década de 1980 até a edição de 1995, ocuparam uma média de 15%; a partir da edição de 1999, uma média de 5% do conteúdo. Como a Máquina da Memória tinha um número mais ou menos definido de páginas, essa redução de quase 10% ocorreu na medida em que a publicação começou a se preocupar mais com as atualidades, conforme já destacamos.35 Tabela 3 – A História nos textos do Almanaque Abril N.º de N.º de N.º de Ano páginas páginas HB páginas HG 1975 668 41 25 1978 784 31 26 1981 784 40 43 1990 864 59 90 1991 768 59 68 1992 786 60 59 1993 784 45 58 1994 790 45 63 1995 790 54 68 1996 832 1997 832 1998 704 1999 834 21 31

Total páginas Hist. 9,7% 7,2% 10,5% 17,2% 16,5% 15,1% 13,1% 13,6% 15,4% 6,2%

Legenda: HB: História do Brasil; HG: História Geral. Fonte: Almanaque Abril e redação do Almanaque Abril

Como se pode observar na Tabela 4, houve grande rotatividade da posição ocupada, no conjunto total da obra, pelos capítulos de “História do Brasil” e de “História Geral”. Na primeira edição, a “História do Brasil” era o terceiro capítulo da publicação; em 1979, era o décimo sexto; em 1982, o segundo; em 1983, o primeiro; em 1984, o quarto; em 1985, o quinto; em 1986, o sétimo;

34 O importante almanaque francês Mensager Boiteux, que se definia como um almanaque histórico, continha aproximadamente 40% de “conteúdos históricos”, nos séculos 18 e 19 (SARRAZIN, 2000, p. 129-148).



35 Em 2002, a diretora de redação do Almanaque Marcia Tonello (entrevista ao autor, 7 jan. 2002) indicava a pressão dos leitores por um maior espaço destinado à história em suas páginas.

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em 1989, o quarto; em 1993, o décimo segundo; em 1994, o quarto; em 2001, o décimo oitavo; e em 2004, o vigésimo terceiro. Em linhas gerais, somente a partir da edição de 1999 houve uma tendência a deixar esses capítulos no final da publicação. A mesma rotatividade pode ser observada em relação ao capítulo sobre “História Geral”. Na primeira edição, era o vigésimo terceiro capítulo; em 1979, o décimo terceiro; em 1982, o vigésimo; em 1983, o décimo primeiro; em 1984, o oitavo; em 1985, o décimo quarto; em 1990, o vigésimo terceiro; em 1992, o décimo terceiro; em 2000, o terceiro; em 2002, o nono; e em 2004, o vigésimo quarto. Pode-se dizer que esses constantes rearranjos foram uma estratégia editorial que contribuiu para a criação de uma expectativa no leitor de que a Máquina da Memória era dinâmica e transformava-se constantemente. Tabela 4 – Localização dos capítulos de “História Geral” e “História do Brasil” Número do capítulo de História Número do capítulo de Edição do Brasil História Geral 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 (2 v.) 2001 (2 v.) 2002 (2 v.) 2003 (2 v.) 2004 2005 (2 v.)

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3 3 3 4 14 13 13 2 1 9 15 7 6 4 4 6 4 12 7 9 Ordem alfabética Ordem alfabética Ordem alfabética 11 15 6 17 19 18 11

23 23 21 22 12 12 11 20 11 8 14 15 14 5 3 23 18 13 14 13 Ordem alfabética Ordem alfabética Ordem alfabética 11 8 7 9 10 19 8

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A separação da história em “História do Brasil” e “História Geral” e a rotatividade entre os capítulos são indicativos de uma tensão que permeia a trajetória da publicação. No século 19, boa parte dos almanaques intensificou o foco nos eventos históricos e políticos do seu tempo, principalmente tendo em vista a ideia de criar uma unidade nacional.36 A partir do início do século 20, percebe-se o surgimento de uma tensão entre o nacional e o mundial nos “novos” almanaques. Acredita-se, nesse sentido, que a Máquina da Memória serviu a dois dos vários sentidos da noção de “comunidades imaginadas”:37 a nacional e a mundial. A publicação foi uma das poucas obras de referência produzidas no Brasil com várias informações atuais e estatísticas, dados que pretendiam “localizar” e fornecer aos seus leitores os acontecimentos do “mundo-como-umtodo”.38 Todas as capas, até a divisão Brasil e Mundo feita em 2001 – divisão indicativa da referida tensão – alternavam imagens do globo com imagens de bandeiras sobre países. A capa da edição de 1977 sintetizou essa dimensão, na medida em que o globo foi representado por bandeiras nacionais. Assim, houve vários arranjos, ao longo da história da edição da Máquina da Memória, que pretendiam distribuir os conteúdos referentes ao Brasil, ao mundo e aos conhecimentos gerais (a cronologia do ano em quase todas as edições foi o primeiro capítulo). Se subtrairmos o período em que o Almanaque esteve dividido em dois volumes (edições 2001, 2002, 2003, 2005 e 2006), e o período da ordem alfabética (1996, 1997 e 1998), tem-se, do total de 24 edições, 11 em que os capítulos de história foram vizinhos ou estiveram separados apenas por um capítulo, conforme se pode observar na Tabela 4, anteriormente apresentada. Assim, com ligeiras variações, ora os capítulos de história estavam distantes, pois a “História do Brasil” estava inserida na parte que tratava do Brasil e a “História Geral” na parte que tratava do mundo; ora estavam próximas, já que o arranjo não obedecia à divisão “Brasil” e “Mundo”. A tensão entre o nacional e o global talvez seja o principal motivo pelo qual a publicação se transforma tanto, se comparada às suas “irmãs” estrangeiras. Os almanaques americanos,

36 GREILICH, Susanne; LÜSEBRINK, Hans-Jürgen. La représentation des guerres de Libération allemandes dans l’almanach du genre Messager Boiteux. In: LÜSEBRINK, Hans-Jürgen; MOLLIER, Jean-Yves; GREILICH, Susane (Dir.). Presse et événement: journaux, gazettes, almanachs (XVIIIe-XIXe siècle). Bern: Lang, 2000. p. 169-192.



37 ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ática, 1989.



38 ROBERTSON, Roland. Globalização: Teoria Social e Cultura Global. In: FEATHESTONE, Mike. Cultura Global. Petropólis: Vozes, 1994.

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canadenses, alemães, ingleses e italianos consultados, bem como os anuários franceses, contam a história a partir de uma perspectiva nacional. Além disso, as informações relativas à cultura geral também são vistas dentro de uma perspectiva mais nacionalista em comparação a Máquina da Memória.39 Tendo em vista essas questões, gostaríamos de apontar que vários eruditos, filósofos e historiadores, ao longo dos tempos, procuram atacar uma história reduzida à narrativa dos acontecimentos e reafirmaram que ela seria insuficiente. A oposição entre o relato dos acontecimentos e uma “verdadeira história” constitui um fenômeno de longa duração na historiografia.40 Haveria, então, uma “verdadeira história” ou pelo menos, bom uso da história. No entanto, “a fronteira entre uma simples narrativa dos eventos e uma História considerada útil é, pois, variável e, por isso, o conteúdo da noção de eventos é também ele variável”.41 No mesmo sentido, percebe-se ao longo da trajetória da Máquina da Memória certo reconhecimento de que a simples abordagem cronológica e a descrição dos acontecimentos foram consideradas insuficientes. Constantemente, foram inseridos elementos explicativos por meio de boxes, dentro ou fora da cronologia, que introduziam, assim, uma “história considerada útil”. Os dados sintetizados na Tabela 5, como pode ser visto na próxima página, mostram que a análise histórica dos textos da Máquina da Memória não se limitava à descrição cronológico-linear dos fatos. Um número considerável de edições – 11, aproximadamente 35% do total – rejeitou-na. Mesmo quando ela se fez presente, foi, em geral, conjugada com algum “complemento”. Das 21 edições que apresentavam uma abordagem cronológica, 18, aproximadamente 85%, procuravam conjugá-la com uma abordagem “temática”. Somente nas edições 2000, 2001 e 2002, aproximadamente 9%, encontrou-se uma abordagem puramente cronológica. As edições 1996, 1997, 1999, 2003, 2004 e 2005 utilizavam uma organização alfabética para tratar dos temas e eventos históricos, em certo sentido em consonância com a “disseminação” de uma história e um ensino “temático”, como já foi referido. Procurando conciliar

39 Seria necessário um estudo comparativo aprofundado, o que não é o foco deste livro, para comprovar a hipótese referida anteriormente. De todo modo, ao longo dos capítulos 4 e 5, procurar-se-á, em algumas notas, estabelecer algum tipo de contraste entre o Almanaque Abril e dois anuários franceses: Quid e L’État du Monde.



40 POMIAN, 1993, p. 214-235.



41 Ibid., p. 215.

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cronologia e organização temática, a edição de 2003, por exemplo, afirmou: “aqui estão relacionados os principais acontecimentos e conceitos históricos, agrupados por temas. Paralelamente, na cronologia de História Geral, (...) estão os fatos históricos na seqüência em que ocorreram”. Tabela 5 – Visão geral da História nos textos do Almanaque Abril42 Edição/ Tipo de História 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 (2 v.) 2001 (2 v.) 2002 (2 v.) 2003 (2 v.) 2004 2005 (2 v.) 2006 (2 v.)

Por temas Cronologia (inseridos na (Base Ano) cronologia sob a forma de box) X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X

Por temas (fora da cronologia, mas organizados cronologicamente) * * * *

X X X X X X X X X

X X X X X

X

X

X

Por temas (fora da cronologia, mas organizados alfabeticamente)

X X X

X X X

* Assuntos inseridos no capítulo “História Militar”

42 Foram desconsideradas algumas ligeiras variações entre o tipo de história às vezes presente, entre a história geral e do Brasil. Nesses casos, sempre se optou pelo tipo de história do capítulo de “História do Brasil”.

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Nas três primeiras edições, os temas históricos estavam presentes no capítulo referente à “História Militar”. Na edição de 1979, os dados de história do Brasil migraram para o capítulo intitulado “História do Brasil”, com ligeiras alterações e sob a forma de boxes, inseridos no interior da cronologia com a intenção de descrever e/ou analisar algum evento específico. A maior parte dos boxes apresentava análises de temas ou eventos consagrados pela tradição escolar e pela historiografia. Mas houve, também, explicações que versaram sobre temáticas que escapavam à tradição. A imagem a seguir, por exemplo, apresenta um box, presente nas edições 1984 e 1985, sobre “Os Movimentos Feministas”. Figura 8 – Almanaque Abril 1985.

Fonte: São Paulo: Abril, 1984. p. 332.

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As análises dos acontecimentos não eram hegemônicas nos assuntos tratados pelos boxes da publicação. Os primeiros, a partir da edição de 1979, além de uma biografia dos dois imperadores e de todos os ex-presidentes, tratavam de temáticas e eventos políticos e sociais. Até a edição de 1989, esses boxes foram mantidos, dentro ou fora da cronologia, sem praticamente qualquer alteração no argumento e no texto. Porém, outros temas foram introduzidos. Assim, além de datar os eventos, a introdução dos boxes – dentro ou fora da cronologia – foi uma tentativa de explicar os eventos e, de alguma forma, superar a datação. A partir de 1990, houve uma tendência de os boxes ficarem centrados não em eventos, mas em temas.43 A partir da edição de 1996, novos boxes foram produzidos e os antigos foram refeitos, haja vista que essa edição representou uma ruptura em relação ao projeto editorial anterior. Nem todas as edições de 1996 até 2006 mantiveram os boxes explicativos. Mas, nesse período, houve certa permanência dos eventos e temas tratados. A biografia de personagens históricos foi um gênero presente em boxes, em todas as edições, o que era de se esperar, dada a tradição da literatura de almanaques e o fato de que seus leitores, em geral, esperam biografias. Mas é importante destacar que essa presença também está ligada ao fato de o gênero biográfico ser bastante exercido por jornalistas. Benito Schmidt comparou

43 Como a edição 1990 abandonou a ordenação por ano, conforme foi mostrado na Tabela 5, havia uma explicação sobre como a cronologia foi construída, a saber: “(...) na elaboração desta Cronologia, os acontecimentos históricos foram agrupados em pequenos blocos, por assunto, de modo a facilitar, para o leitor, a localização dos fatos e o estabelecimento de nexo de causa e conseqüência entre eles. Além disso, cada vez que um determinado episódio da História brasileira adquiriu destaque especial, abriu-se um intertítulo, destacando-o do contexto geral da área a que ele pertence (é o caso do Café, por exemplo, tratado separadamente e não dentro do tópico genérico de Economia). Por outro lado, um sistema de remissões relaciona as entradas da Cronologia com os textos do final do capítulo – Momentos marcantes da história do Brasil – ou com textos pertencentes a outros capítulos. Para efeitos práticos, a Cronologia está dividida em duas grandes partes: a primeira, referente à fase colonial, divide-se por século e por tema, incluindo também informações sobre a história portuguesa, que sejam importantes para a compreensão dos acontecimentos desse período; a segunda, tratando do Brasil independente, separa-se em função de cada um dos governos do Império ou da República – no caso dos governos Figueiredo e Sarney, a cronologia é também dividida. Cada uma das unidades dessa segunda parte traz, antes das entradas cronológicas, a biografia do respectivo governante e os membros de seus gabinetes”.

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parte da produção biográfica de historiadores e jornalistas.44 O autor destacou que o gênero biográfico foi por muito tempo condenado pelos historiadores. Porém, nas décadas de 1980 e 1990, retornou à escrita da história, na medida em que a disciplina reincorporou os sujeitos individuais em sua produção. Portanto, se por um lado pode-se afirmar que houve nos textos do Almanaque Abril uma opção pela história do evento, ao privilegiar a cronologia, por outro, acredita-se que a introdução dos boxes analíticos representa um reconhecimento da insuficiência da simples narrativa dos acontecimentos. É importante refletir de forma aprofundada sobre como essa aparente contradição aparece no “discurso histórico” nas narrativas produzidas pela Máquina da Memória. Para refletir de forma mais adequada essas variações e o jogo “datação e explicação”, serão apresentados os “começos” das cronologias eleitos pela publicação e discutir-se-á como as questões da cronologia e da periodização apareceram nas páginas do Almanaque, bem como no ensino de história e na escrita da história.

Almanaque Abril, cronologia e periodização Em história, a ideia de “começo” pode consistir em uma constelação de eventos datados por um historiador que procura, por meio de um olhar retrospectivo, entender o nascimento de uma história.45 O “começo” sempre foi uma preocupação desse campo do conhecimento – já nos referimos à crítica de Marc Bloch à obsessão pela origem – seja no campo da pesquisa, seja no ensino. Na Máquina da Memória, foram encontradas seis variações para os “começos” da história mundial. Para a edição de 1975, a história do mundo começou em 4.000 a.C. em função das atividades de agricultores às margens do Danúbio. Esse “começo” é interessante, pois rompe com a ideia da Eurásia como “berço das civilizações”, ainda hoje muito disseminada.

44 SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo biografias – historiadores e jornalistas: aproximações e afastamentos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 19, p. 3-19, 1997.



45 RICOEUR, 2000, p. 174.

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No ano seguinte, na edição de 1976, o início da história foi localizado no assentamento dos Sumérios às margens do Eufrates em 3.500 a.C. Na de 1979, esse mesmo evento foi deslocado para o ano de 5.000 a.C.; e na de 1989, a préhistória e a origem do homem foram identificadas como início. Nessa edição em que a cronologia começava sem um início definido, a seção foi denominada de “Até 753 a.C.”. É importante lembrar que, como a Tabela 5 mostrou, desde a edição de 1986, os boxes explicativos são inseridos após a cronologia histórica. O texto introdutório sobre a “Pré-História”, do nosso ponto de vista bastante adequado para a época, afirmava que os esquemas cronológicos tradicionais a definem como o período que tem início com as origens da atividade humana e termina com o aparecimento da escrita e o nascimento das primeiras civilizações urbanas. Esse momento caracterizou-se por uma economia predatória e de subsistência agrícola. “Suas diversas épocas não ocorreram simultaneamente para todos os povos; por esse motivo, adota-se hoje a divisão da PréHistória não em épocas sucessivas, mas em culturas diversas, de acordo com a presença de grupos humanos portadores de tradições diferentes”. É interessante destacar que a edição de 1994 afirmava que “a história da humanidade dividia-se em cinco grandes períodos”, ao passo que a edição de 1995 relativizava explicitamente a ideia de humanidade e de começo, ao afirmar que “a história começa quando os homens encontram os elementos de sua existência nas realizações de seus antepassados. Do ponto de vista europeu, divide-se em cinco grandes períodos” (grifo nosso). Em 1996, a pré-história foi definida como o “primeiro período da história universal”, que se iniciou “há cerca de 3,5 milhões de anos, e termina como o aparecimento da escrita, por volta de 4.000 a.C.”. Da edição de 2003 até a de 2006, enfatizou-se o surgimento das primeiras civilizações entre os anos de 4.000 a.C. e 2.000 a.C. Na parte referente à “História do Brasil”, essencialmente até 1985, o “descobrimento” apareceu nas narrativas da Máquina da Memória como evento inaugural, mas a palavra “descobrimento” não foi utilizada em nenhuma edição: “1500 – Pedro Álvares Cabral avista as terras do Brasil (22/4), tomando posse em nome de dom Manuel”. Em 1984, um box inserido na cronologia histórica, denominado “Expansão Portuguesa”, procurou explicar as conquistas portuguesas desde a fundação da “Casa dos Avis em 1385”, passando pela “Escola de Sagres” e pelos momentos da expansão. No meio do último parágrafo, afirmou-se: “em 1500, era descoberta a América portugue-

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sa – cuja posse fora obtida no Tratado de Tordesilhas (1494)”. Em 1986, ainda na cronologia, substitui-se “avista as terras” por “chega ao Brasil”, e o box é transferido para fora da cronologia em uma seção denominada “Momentos Marcantes da História do Brasil”. Na edição de 1989, verificou-se uma mudança na noção de “começo” da história brasileira. Antes da seção “Momentos Marcantes da História do Brasil”, havia um item denominado “O Brasil Pré-Cabralino”. É a primeira vez que os povos anteriores à chegada dos portugueses foram citados. De acordo com essa seção, “duas correntes científicas principais explicam o povoamento do continente no período pré-colombiano”. Uma, a teoria do estreito de Behring; a outra, a que defende as quatro migrações. Percebe-se que, via narrativa, há uma relativização da cronologia. Encontrou-se, em seguida, a afirmação de que “nenhuma dessas hipóteses, no entanto, explica a presença humana há cerca de 38.000 anos no Piauí, comprovada em 1986 – mas contestada por setores da comunidade científica”. Foi na edição de 1990 que apareceu um box explicativo sobre o “descobrimento”, contendo o núcleo do argumento utilizado pelas edições posteriores da obra para explicar esse acontecimento. O item, denominado “Descobrimento”, era divido em três tópicos: “A Expansão Portuguesa e a Concorrência da Espanha”, “O Brasil na Rota do Oriente” e “Acaso ou Intenção”. Com variações na forma de analisar o evento fundador, o argumento era essencialmente o mesmo. A edição de 1995, por exemplo, explicou a expansão comercial europeia por meio do pioneirismo português. Contra a tese do “achamento” do Brasil, a narrativa do Almanaque afirmava que “a partir de 1940 vários brasileiros e portugueses passaram a defender a tese da intencionalidade da descoberta, hoje amplamente aceita. Os historiadores argumentaram que, no final do século XV, Portugal já sabe da existência de uma grande área de terra firme a oeste do Atlântico”. Em seguida, eram citados Duarte Pacheco, Vicente Pinzón e Diego de Lepe. Em algumas edições, como as de 1996, 1997 e 1998, afirmouse que a descoberta estava inserida na “expansão do capitalismo comercial”. É interessante ressaltar outra possibilidade explicativa para o “começo” da “História do Brasil”. A primeira edição (1975) identificou como marcos os anos de 1492, ano da “Descoberta da América”, e o ano de 1494, data da assinatura do Tratado de Tordesilhas. Nas edições seguintes, essas referências foram suprimidas. O “começo” da história do Brasil pelo Tratado de Tordesilhas foi retomado pela edição de 1999, e essa explicação permanece até a edição de 2006.

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Tendo em vista esse percurso, retornemos aos dois jornalistas já citados. Para Bias Arrudão, “a abordagem cronológica tem o seu valor, na medida em que ela te dá elementos para depois você olhar criticamente os acontecimentos”.46 Ao passo que Lauro Machado Coelho afirmou que se a obra conseguisse contribuir para dar um mínimo de referência cronológica para as pessoas, isso já seria muita coisa, pois a maioria não tinha sequer essa referência. Ele declarou que o Brasil era um país “muito pouco informado, se conseguíssemos passar esta informação quadradinha já estava de bom tamanho. Mas uma pessoa mais sofisticada vai pegar aquelas informações como ponto de partida para a reflexão”. Ele ressaltou ainda que: “a visão era a mais correta possível que uma obra de referência naquele momento podia ter. Uma visão que tentava oferecer ao leitor heterogêneo uma abordagem básica do ponto de vista factual, político e econômico”. Coelho afirmou que não havia espaço para “inventar muita coisa”, mas a preocupação era oferecer as informações sem ufanismo e substanciar os dados historicamente para que mesmo as informações da atualidade não fossem “construídas na areia”. Para ele, os boxes eram uma lente da cronologia, pois a expandiam. O tripé cronologia, box e remissões ofereceria ao leitor uma ideia mais global. A ideia era “jogar o leitor de um canto para outro”.47 O problema de datação e da cronologia histórica não é, portanto, puramente objetivo, ele implica uma série de pressupostos. Toda essa variação em torno do que é o início da história serve para mostrar como mesmo a elaboração de uma simples cronologia pressupõe uma interpretação com propósitos muitas vezes didáticos e editoriais. Eric Hobsbawm afirmou, em seu livro sobre o século 20, que, ao fixar o fim do “curto século 20” em 1991, fez uma escolha: “De qualquer maneira, é muito mais fácil colocar seu início em 1914. Em 1994, época em que o livro foi escrito, era a única opção possível. Eu utilizei essa data (1991) por conveniência”. O que as datas revelam são “as conveniências históricas, pedagógicas ou jornalísticas. Uma data particular é uma questão de convenção e não algo que os historiadores estão prestes a morrer para definir”.48

46 Bias Arrudão, entrevista ao autor, 22 jan. 2002.



47 Lauro Machado Coelho, entrevista ao autor, 9 jan. 2002.



48 HOBSBAWM, Eric. Les Enjeux du XXIe siècle. Bruxeles: Complexe, 1999. p. 11-12.

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Para Hobsbawm, a cronologia é essencial ao sentido histórico moderno, já que a história é vista por ele com uma mudança direcional. Como todas as sociedades possuem mitos de criação, é necessária certa ideia de desenvolvimento temporal: “as primeiras coisas eram assim, depois mudaram assim, inversamente, uma concepção providencial do universo também implica algum tipo de sucessão de eventos, pois a teleologia (...) é um tipo de história”.49 Abordagens a-históricas, anacrônicas e manipuladoras não contribuem, no entanto, para que as lições da história sejam aprendidas. Elas não serviriam aos jovens para “compreenderem sua sociedade e como ela muda, mas para aprová-la, orgulhar-se dela, serem ou tornarem-se bons cidadãos dos EUA, da Espanha, de Honduras ou do Iraque”. Nesse sentido, a atividade do historiador, em uma sociedade que desvaloriza cada vez mais os aspectos humanos e a experiência histórica, também consistiria, para Hobsbawm, em questionar essas concepções, pois, “como Ernest Renan disse há um século: ‘entender mal a história é parte essencial de se tornar nação’. A atividade profissional dos historiadores é desmantelar essas mitologias”.50 A história como autojustificação seria, assim, uma das vendas mais perigosas das nossas sociedades; os historiadores deveriam tentar remover ou levantar, às vezes, essas vendas “e, à medida que o fazem, podem dizer à sociedade contemporânea algumas coisas das quais ela poderia se beneficiar, ainda que hesite em aprendê-las”.51 Concordando que, em grande medida, a atividade do historiador consiste em questionar a teleologia, pergunta-se: como entender um possível “retorno da cronologia” na disciplina e no ensino de história? Tal “retorno”, em 2005, ganhou uma espécie de “livro-manifesto”, na França, por meio da obra dirigida pelo historiador Alain Corbain sobre as grandes datas da história desse país.52 Alguns dos grandes historiadores franceses examinaram, nesse



49 HOBSBAWM, Eric. Sobre História – Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 34-35.



50 HOBSBAWM, loc. cit.



51 HOBSBAWM, op. cit., p. 48.



52 CORBAIN, Alain. Avant-propos. In: ______ (Dir.). 1515 et les Grandes Dates de L’histoire de France. Revistées par les Grandes Historiens d’Aujourd’hui. Paris: Seiul, 2005. Em 2007, a editora Contexto lançou, organizado por Circe Bittencourt, o Dicionário de datas da História do Brasil. A organizadora afirma dentre outras coisas: “queiramos ou não, as datas são suporte da memória. Essa conside-

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livro, uma narrativa cronológica presente em um manual escolar francês dos anos 1930. Segundo eles, boa parte dos estudantes franceses que começam a frequentar a universidade não possui mais elementos cronológicos que os permite se beneficiarem do ensino a eles destinados. O livro, mesmo privilegiando a curta duração, pretendia dar conta também das outras durações, além de mostrar que o acontecimento é resultado de uma construção e que exerce influência no tempo que se segue. Retomando uma intervenção de Jacques Le Goff no próprio livro, Alain Corbain reafirmou que a cronologia por si só é pobre se não atenta para a sincronia.53 Ele questiona se certa desvalorização da cronologia não estaria relacionada ao novo regime de historicidade presentista. Segundo o autor, a aceleração que caracteriza o mundo contemporâneo faz julgar como obsoletos os valores nos quais a cronologia é fundada. Além de vivermos em um mundo presentista, onde as sequências temporais curtas são as que contam, a introdução da história-problema e da história temática no ensino foi a base da perda deste senso de profundidade cronológica. Esqueceu-se de que ensinar história é também contar histórias. Ignorar a cronologia seria privar os futuros cidadãos de uma memória comum, com o risco de cada um procurar uma identidade própria em sua comunidade étnica, linguística, religiosa, etc., contribuindo para a fragmentação da cidadania. Para Pierre Nora, em sua intervenção nesse “livro-manifesto”, uma cronologia não é uma enumeração indiferente, é uma gramática temporal.54 Ela supõe uma articulação hierárquica dos saberes, a partir de uma narrativa ração é fundamental e realista. E, para nós, constitui uma forma de pensar sobre elas e sobre seu papel na constituição de um tempo histórico. (...) As datas, assim, podem ser entendidas como forma de registro do tempo que se ligam à memória dos indivíduos e as sociedades e tornam-se marcos referenciais. (...) Lembrar ou fazer esquecer uma data é um ato político. (...) Em cada data que marca um determinado acontecimento, em um determinado tempo, existem outros tempos, outros acontecimentos submersos e muitas vezes invisíveis. As datas vislumbradas como pontas de icebergs são possibilidades de imersão na vastidão de outros acontecimentos ligados de forma compacta a elas” (BITTENCOURT, 2007, p. 10-13).

53 Le Goff (2005) afirma que: “é dever do historiador, do professor, somente propor uma cronologia comentando, as datas, substituindo-as e explicando-as na longa duração histórica” (p. 97-98).



54 NORA. Pierre. Ce que Chronologie veut dire. In: CORBAIN, Alain (Dir.). 1515 et les Grandes Dates de L’histoire de France. Revistées par les Grandes Historiens d’Aujourd’hui. Paris: Seiul, 2005. p. 459-461.

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contínua em que as datas são os pontos de passagens obrigatórios. A aceleração do ritmo da história, que coloca o passado recente na mesma distância do passado longínquo, contribuiu para misturar, na mesma estante, De Gaulle, Napoleão e Carlos Magno. Além disso, a televisão se tornou o principal instrumento para o aprendizado da história, contribuindo para a formação de um olhar cada vez mais emotivo que crítico, e mais subjetivo que explicativo. Segundo Nora, vivemos em um mundo onde tudo tende ao anacronismo. Assim, o autor propõe uma reflexão sobre as razões do desaparecimento deste “mínimo cronológico” para que se possa pensar em construir outras cronologias condizentes com nosso presente. Se essas questões são polêmicas para a comunidade dos historiadores, talvez seja compreensível que o jornalista opte pela análise cronológica, na medida em que ela daria um “chão ao leitor”. Percebe-se, também, que, mesmo historiadores conceituados, como é o caso de Alain Corbain, continuam opondo cronologia e história problema ou temática, o que, como já se afirmou, é um dos maiores equívocos que sustentam os debates a respeito do ensino da disciplina. Essa oposição é uma criação histórica e cultural, visto que a análise histórica, seja ela continuísta e/ou descontínua, deve estar assentada tanto na cronologia quanto na problematização. Se o “primeiro” trabalho do historiador é a cronologia, após colocar os eventos na ordem do tempo é necessário interpretá-los, dar a eles uma nuance, colocando-os em relação a outras temporalidades. O “segundo” trabalho do historiador é, pois, a periodização. Em um primeiro nível, pode-se dizer que periodizamos por uma necessidade prática: não se pode abarcar a totalidade sem dividi-la: “a geografia divide o espaço em regiões para poder analisá-las, a história divide o tempo em períodos”.55 Mas essas divisões devem obedecer a um mínimo de coerência. O problema básico da periodização é articular o que muda e o que permanece. A periodização permite pensar, ao mesmo tempo, a continuidade e a ruptura.56 Os jornalistas que construíram as narrativas e cronologias dos textos do Almanaque, com o auxílio de consultores especializados, viveram, portanto, um problema central do conhecimento histórico: a periodização. Na

55 PROST, Antoine. Douze leçons sur l’histoire. Paris: Seuil, 1996. p. 114.



56 POMIAN, 1993, p. 164-213.

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maioria das vezes, a base da periodização era a cronologia linear, em alguns momentos, subvertida pela problematização presente nos boxes. A Tabela 6 permite melhor compreensão de como os textos da Máquina da Memória utilizavam certas formas de periodizar a história. Até a edição de 1989, a periodização estabelecida foi apenas a que utilizou o século como referência, e a cronologia seguia os eventos ano após ano. A partir da edição de 1990, a periodização foi construída a partir dos marcos institucionais-políticos da “História do Brasil” (Colônia, Império e República) e o esquema quadripartite para a “História Mundial” (Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea).57 Até a edição de 1995, a divisão por século foi conjugada com a referida periodização. Após essa data, ela é abandonada. No entanto, a periodização dividida através de anos só retornou a partir da edição de 1999. Tabela 6 – As periodizações da História nos textos do Almanaque Abril Edição 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996



Periodização Século e ano Século e ano Século e ano Século e ano Século e ano Século e ano Século e ano Século e ano Século e ano Século e ano Século e ano Século, década e ano Século, década e ano Século, década e ano Século, década e ano Século, década e ano, divisão político-institucional (História do Brasil) e quadripartite (História Geral) Século, década e ano, divisão político-institucional (História do Brasil) e quadripartite (História Geral) Século, década e ano, divisão político-institucional (História do Brasil) e quadripartite (História Geral) Século, década e ano, divisão político-institucional (História do Brasil) e quadripartite (História Geral) Século, década e ano, divisão político-institucional (História do Brasil) e quadripartite (História Geral) Século, década e ano, divisão político-institucional (História do Brasil) e quadripartite (História Geral) Organização alfabética de temas e eventos

57 Sobre o quadripartismo, ver Chesneaux (1995b).

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1997 1998 1999 2000 (2 v.) 2001 (2 v.) 2002 (2 v.) 2003 (2 v.) 2004 2005 (2 v.)

Organização alfabética de temas e eventos Organização alfabética de temas e eventos Ano, divisão político-institucional (História do Brasil) e quadripartite (História Geral) Ano, divisão político-institucional (História do Brasil) e quadripartite (História Geral) Ano, divisão político-institucional (História do Brasil) e quadripartite (História Geral) Ano, divisão político-institucional (História do Brasil) e quadripartite (História Geral) Organização alfabética de temas e eventos Organização alfabética de temas e eventos Organização alfabética de temas e eventos Ano, divisão político-institucional (História do Brasil) e organização alfabética de temas e eventos 2006 (2 v.) (História Geral) Legenda: Divisão político-institucional (Colônia, Império e República) e quadripartite (Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea)

Periodizar é, assim, identificar uma ruptura, tomar partido sobre o que muda. Assim, o corte em períodos carrega sempre uma parte arbitrária. A periodização, como a cronologia, torna necessária a interpretação. Toda periodização é constituída de um elemento factual e outro conceitual, na medida em que os fatos são postos em correspondência, como idade, período, era ou época. Buscam-se conceitos que permitam colocar ordem nos fatos.58 As periodizações contribuem para dar um sentido aos eventos, ajudando a reunir passado e presente em uma ideia de totalidade que conduz a um futuro. Elas são fundamentais para a história, independentemente do seu objeto de estudo. Mesmo os conceitos em história estão intimamente ligados a uma periodização. O “século”, por exemplo, foi utilizado como elemento básico da periodização em 21 edições da Máquina da Memória, sendo que em seis edições ele foi utilizado junto com a divisão em períodos político-institucionais. Essa unidade de medida da periodização foi criada pela Revolução Francesa para destacar as mudanças de uma “nova era”. O século permite realizar comparações, isto é, marcar continuidades e rupturas. Mas o século dos historiadores tem certa plasticidade. Como destacou Pomian, o problema filosófico tradicional – o tempo da história é cíclico, linear ou estacionário? – não tem sentido simplesmente. Porque as três topologias do tempo, que por certo temos o direito de dissociar e opor para as exigências duma análise lógica, estão na realidade ligadas umas às outras. Até mesmo o problema que se põe



58 POMIAN, 1993, p. 164-213.

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na prática do historiador não é efectivamente o mesmo que se põem os filósofos da história. Este concerne à articulação do ciclo, da linearidade, da imobilidade.59

As periodizações que levam a pensar o tempo histórico como linear só surgem após Hegel. A periodização tripartida – Antiguidade, Idade Média, Tempos Modernos – impõe-se como a mais adequada para a divisão do trabalho do historiador e para as necessidades do ensino apenas no século 19; antes disso, era necessário dar lugar a alguma regressão para situar a Idade Média. Porém, na realidade, como cada história é a história de algo definido, circunscrito no tempo e no espaço, cada objeto e/ou pergunta pede uma periodização específica. Pode-se ter, em uma periodização, mudanças reversíveis correspondentes às inversões da conjuntura, situadas, assim, no interior de uma dada estrutura, bem como se pode definir certas mudanças – em geral, nomeadas “revoluções” – irreversíveis que transformam uma estrutura em outra.60 Mesmo a mudança de estruturas pode não coincidir. A independência política brasileira, por exemplo, não coincide com a independência econômica. Toda periodização se refere a apenas um (ou alguns) aspecto(s) da realidade, previamente definido(s) pelo historiador para a construção de sua análise. Outra questão importante diz respeito à relação entre as diversas estruturas na sincronia e as diversas conjunturas e/ou “revoluções” na diacronia. Ainda segundo Pomian, um dos primeiros estudiosos a denunciar as pretensões universalizantes da história foi Lévi-Strauss. Para esse antropólogo, a ideia de “progresso” não é necessária para algumas civilizações e este não é necessariamente contínuo. A humanidade não sobe uma escada, como o cavalo de xadrez, há sempre variadas possibilidades de “progressões”. Em poucos momentos, a história é cumulativa. Apesar de as periodizações terem sido questionadas de São Jerônimo a Lévi-Strauss, do ponto de vista factual e conceitual, elas ainda são construídas com o objetivo de tornar os fatos inteligíveis e/ou pensáveis. Para Antoine Prost, se os períodos têm má reputação entre os historiadores, é principalmente porque “a criação torna-se criatura”. Para ele, o ensino contribui para essa petrificação dos períodos históricos: “a exposição didáti-



59 POMIAN, 1993, p. 153.



60 Ibid., p. 164-213.

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ca visa a clareza e a simplicidade, ela dá aos períodos uma sorte de evidências que eles não comportam”.61 Mesmo quando os historiadores não reconstroem a temporalidade em uma pesquisa, eles utilizam um tempo já periodizado por outros historiadores. Cada “período” também tem, assim, uma história. A Idade Média, por exemplo, como se sabe, foi uma invenção do Renascimento. Prost destaca, ainda, que os períodos não são institucionalizados somente pelo ensino e pela língua. Eles são duramente fixados pelas estruturas universitárias porque facilitam a comunicação entre os pares, permitem a classificação das fontes, além de possibilitarem o estudo da simultaneidade. Mas, como a cronologia, as periodizações devem, sempre que possível, ser matizadas, pois comportam, além de vantagens, desvantagens que não podem ser desconsideradas. Em alguns momentos, é necessário sair mesmo do período. O período cria uma unidade fictícia entre elementos heterogêneos, impedindo a visão da contemporaneidade do não-contemporâneo. Dependendo das categorias escolhidas para fazer a periodização, diferentes períodos podem coexistir em um mesmo tempo.62 Sabemos que o tempo do calendário não se confunde com o tempo histórico. Na medida em que, em função da ação erosiva do tempo, o passado chega ao presente em ruínas, pedaços e fragmentos, datar o passado é fundamental, mas é apenas o começo do trabalho do historiador: “o tempo histórico está longe de ser resolvido pelo calendário (...). Datas corretas são essenciais, mas são apenas condições prévias e não podem definir o tempo histórico”.63 A datação localiza um mundo histórico entre mundos históricos sucessivos. Após esse processo, é necessário adentrar no passado, através da relação que determinados presentes estabelecem com a temporalidade (passado/presente/futuro). Mesmo que haja uma datação objetiva, o historiador se interessa pela idade interna de uma determinada sociedade, e sua relação com a temporalidade. O conhecimento histórico é um estudo que pretende desnaturalizar a suposta “naturalização” do tempo.64 O calendário é, assim, uma criação que esquece que a vida em sociedade é múltipla, heterogênea, não linear e simultânea. O tempo da



61 PROST, 1996, p. 116.



62 Sobre essas questões, ver Prost (1996).



63 REIS, José Carlos. História & Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p. 191. Ver, também, Ricoeur (1985).



64 REIS, op. cit., p. 191.

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natureza é um primeiro tempo (repetição), o segundo é o tempo da consciência (tempo do vivido, da mudança) e o terceiro tempo é o que procura articular os dois primeiros. É a linguagem do historiador. Para José Carlos Reis, positivista é “aquele que submete o tempo humano a ritmos naturais, apagando a diferença entre eles”.65 O tempo do calendário acaba se confundido com o tempo histórico. Nesse sentido, como os textos do Almanaque Abril tende a valorizar, na maioria das edições, o evento político, a cronologia e a periodização, talvez possamos qualificá-lo por meio do tipo-ideal tradicional ou positivista? Talvez! Usamos o “talvez” como índice de nossa suspeita por acreditarmos que esse tipo-ideal deve ser utilizado com certa reticência, pois, muitas vezes, a palavra “positivista” tem conotação pejorativa no vocabulário histórico. Para Gerard Noiriel, a palavra “positivista” tem como objetivo desacreditar a pesquisa empírica em nome das teorias do conhecimento. Esse tipo de polêmica não serviria para enriquecer o saber histórico e, sim, um vocabulário de insultos. Para ele, o pesquisador, em história, não teria instrumentos teóricos e tempo – já que se concentra na pesquisa empírica – para grandes debates epistemológicos. Apesar disso, deve manifestar seus desacordos, resistências e, principalmente, justificar seu trabalho.66 Concorda-se, por um lado, que, em vários momentos, a palavra “positivista” serve para desqualificar a pesquisa empírica; por outro lado, somos reticentes no que se refere à afirmação



65 REIS, 2003, p. 190.



66 NOIRIEL, Gérard. Sur la crise de l’Histoire. Paris: Belin, 1996. De qualquer maneira, a palavra e/ou conceito “positivista” está consolidado nas reflexões teóricas sobre as ciências humanas em geral. A esse respeito, Boaventura de Souza Santos (2006) afirma: “(...) defendo uma posição epistemológica antipositivista (...). Ponho em causa a teoria representacional da verdade e a primazia das explicações causais e defendo que todo o conhecimento científico é socialmente construído, que o seu rigor tem limites inultrapassáveis e que a sua objetividade não implica a sua neutralidade (...) defendo que a ciência, em geral, depois de ter rompido com o senso comum, deve transformar-se num novo e mais esclarecido senso comum” (p. 9). Na mesma direção, Jeanne Marie Gagnebin (2006) afirma: “o paradigma positivista elimina a historicidade mesma do discurso histórico” (p. 41) e ainda: “o relativismo complacente, apático, dito pós-moderno, que, de fato, nada mais é que a imagem invertida e sem brilho de seu contrário, o positivismo dogmático” (p. 43). Chalmers (1995) talvez tenha razão em denominar o que, em geral, se chama de “positivista” de indutivista, por este tipo de procedimento (démarche) se basear, em geral, na descrição e no empirismo.

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do autor quanto à relação do historiador com a teoria. Embora a periodização da narrativa do Almanaque seja, em geral, a da “conjuntura” (para usar as categorias braudelianas), observada por meio da divisão “Colônia”, “Império” e “República”, no caso da história brasileira, a narrativa não chega a ser conjuntural: ela é, na maioria das vezes, “acontecimental” (événementielle), centrada em alguns fatos que tradicionalmente compõem a história do país. No entanto, há indícios importantes de tentativas de fuga a esse modelo. Nesse sentido, usamos o “talvez” também devido ao fato de que, às vezes, o enredo da Máquina da Memória pretende superar o tempo do calendário. De qualquer maneira, seria necessário um estudo aprofundado com todos os temas tratados nos boxes para se chegar a uma afirmação definitiva. A análise dos eventos, realizada no próximo capítulo, nos dá também alguns indícios para justificar essa afirmação. Tendo em vista as questões discutidas neste capítulo a respeito da importância da cronologia e da periodização para o trabalho histórico, e da falsa oposição entre a história dita “factual” e outra dita “temática” ou “problema”, talvez possamos questionar a exclusividade de uma história do tipo “positivista” nas narrativas, cronologias e periodizações da Máquina da Memória. A concepção de história do e no Almanaque não existe em si. Ela é experimentada e constantemente negociada com os leitores, como indicia a seguinte carta de um leitor: Muito boa, como já de costume anualmente o Almanaque Abril, agora na sua edição 2005. Mas venho pedir à toda equipe do Almanaque (e acredito que muitos leitores) uma modificação na parte de História do Brasil. Por que não colocar os assuntos em ordem cronológica. Em vez de ordem alfabética o que vem ocorrendo há muito tempo? Creio que ficaria ainda melhor termos a História do Brasil explicada em ordem cronológica do que em ordem alfabética, pois isso pode causar alguma confusão em alguns estudantes, pois em ordem alfabética assuntos do século 17 por exemplo ficam lado a lado com os do século 20 o que não ocorreria de maneira alguma se os assuntos de História do Brasil ficassem em ordem cronológica dos acontecimentos. Desde já o meu muito obrigado a toda equipe do Almanaque Abril.

O leitor deseja uma história que, para suas necessidades, seria mais simples e clara. Acredita-se que tal comunicação, e possivelmente outras com o mesmo sentido, tiveram um efeito sobre a publicação, pois, na capa da edição seguinte (2006), lê-se: “você pediu e nós atendemos. História do Brasil em ordem cronológica” e, no prefácio, “atendendo a pedidos dos leitores, profes-

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sores e estudiosos, reorganizamos o capítulo de História na forma cronológica para facilitar a pesquisa e a compreensão dos fatos”. Acreditamos que boa parte do sucesso editorial da Máquina da Memória provavelmente advém do fato de que sua cronologia era “hibrída”: majoritariamente linear, mas “mesclada” por explicações temáticas. No Brasil, no mesmo período, houve uma contradição no ensino em que se privilegiava ao mesmo tempo ora a cronologia, ora a história temática. Essa “coincidência” ajuda a compreender porque a publicação se torna boa fonte de pesquisas para as pessoas e porque seus leitores reclamam, ora da falta, ora do excesso de datas e cronologias. Dessa maneira, conclui que as categorias “tradicional” ou “positivista” são insuficientes para se compreender e explicar a história representada, construída e dada a ler pela Máquina da Memória. O conceito de tempo subjacente aos procedimentos de qualquer que seja a análise é, assim, o “nó” da questão. Nesse sentido, é preciso pensar a relação entre continuidade e descontinuidade na medida em que refletir sobre o cruzamento de temporalidades pode nos possibilitar sair das armadilhas da teleologia. A esse respeito, de certo modo sistematizando a discussão feita nesse capítulo, Claude Lévi-Strauss afirmou: Os caracteres distintivos do conhecimento histórico não se prendem à ausência de código, que é ilusória, mas à sua natureza particular: este código consiste numa cronologia. Não há história sem datas; para convencermos-nos disto, basta considerar como um aluno consegue aprender a história: ele a reduz a um corpo desencarnado, do qual as datas formam o esqueleto. Não foi sem motivo que se reagiu contra este método enfadonho, mas caindo, freqüentemente, no excessivo inverso. Se as datas não são toda a história, nem o mais interessante da história, elas são aquilo que na falta do qual a própria história desapareceria, já que toda sua originalidade e sua especificidade estão na apreensão da relação do antes e do depois, que seria votada a dissolver-se se, pelo menos virtualmente, seus termos não pudessem ser datados. Ora, a codificação cronológica dissimula uma natureza mais complexa do que se imagina, quando se concebem as datas da história sob a forma de uma simples série linear. (...) a história biográfica e anedótica é a menos explicativa; mas é a mais rica, sob o ponto de vista da informação, já que ela considera os indivíduos na sua particularidade (...). Por conseguinte, e conforme o nível em que o historiador se coloca, perde em informação o que ganha em compreensão, (...) em relação a cada domínio da história a que renuncia, a escolha relativa do historiador só se faz entre uma história que ensina mais e explica menos e uma história que explica mais e ensina menos.67

67 LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1976. p. 294-298.

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Escapar dos dilemas oriundos dessa suposta dicotomia – “uma história que ensina mais e explica menos e uma história que explica mais e ensina menos” – e da cronologia linear é uma das dificuldades que se defrontam todos aqueles que procuram ensinar e representar o passado no presente.68 Nesse sentido, dentro dos limites do projeto editorial do Almanaque, percebe-se que a obra buscou enfrentar essas questões de forma complexa. Porém, na medida em que existe uma demanda social por um conhecimento do passado linear e contínuo, vimos também que a publicação negociou, em vários momentos, alternativas para recortar o tempo de forma complexa e em outros simplesmente ordenou os eventos numa sequência linear. Percebe-se também que os jornalistas que trabalhavam na redação do Almanaque Abril, auxiliados ou não pelos consultores, procuram negociar soluções intermediárias tendo em vista as especificidades de uma obra de referência que prioriza a informação. São exatamente essas soluções negociadas que constituem a riqueza e a complexidade da representação do passado nesta obra singular. Um aspecto que é importante refletir é por que há demanda social por um conhecimento histórico que enfatiza a continuidade e a cronologia desencarnada. Em outras palavras, por quais razões há um desejo de parte considerável da sociedade por uma história “tradicional” e “positivista”. Não há uma reposta única para essa questão. Pelo momento a questão será deixada em aberto, mas esse ponto será retomado na conclusão, após penetrar-se no interior da narrativa dos acontecimentos dados a ler pela Máquina da Memória. De todo modo, é importante destacar que, nas páginas do Almanaque Abril, a história foi uma representação do passado “controlada” pela cronologia. Nos próximos capítulos, procurar-se-á dar exemplos a partir da análise dos eventos que corroboram essa afirmação. De todo modo, a partir das reflexões já efetuadas, reafirma-se que a cronologia foi a principal marca de historicidade que a publicação utilizou. Ela foi um elemento fundamental no estabelecimento do contrato de verdade entre a obra e o leitor. Essa representação do passado foi, entretanto, imbuída de autoridade e tensão, uma vez que o

68 Ao que parece, Koselleck (1990) escapa a esse dilema ao afirmar, como já se afirmou e será enfatizado no próximo capítulo, por exemplo, que “anterioridade e posterioridade são elementos constitutivos à narração dos eventos, a precisão de limites nas determinações cronológicas é, evidentemente, muito menos significativa na descrição de estados ou situações de longo prazo” (p. 136).

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próprio texto do Almanaque mostrou, ao se introduzir boxes explicativos, que a análise puramente cronológica era insuficiente para compreender a história. Na produção historiográfica, a prova documental (citada em nota), a explicação causal/final e as regras que regem a escrita (“estilo”), de alguma forma contribuem para dar um “efeito de real” e/ou “verdade” ao texto histórico.69 Era a análise dos eventos, relacionada à periodização tradicional, à cronologia linear ou simplesmente à cronologia, que dava o “efeito de real” e/ou “verdade” à história na Máquina da Memória. Essa forma de representar o passado mostra, por um lado, a força e os limites de uma cultura-histórica dita “tradicional” ou “positivista” e, por outro, que essa cultura-histórica atendia às expectativas dos leitores do Almanaque – inclusive os leitores que dele faziam uso no processo de ensino-aprendizagem da história. Mostrar-se-á, a seguir, que em alguns momentos a narrativa do passado fabricada pelo Almanaque Abril procurou articular evento e estrutura. Quando isso ocorreu, a história perdeu o rigor do número e se tornou interpretação. Nesse sentido, mesmo considerando que há no interior das páginas do Almanaque a permanência de uma história “tradicional” e/ou “positivista”, pensa-se que essa afirmação deve ser matizada, pois conforme será mostrado, e enfatizado nos próximos capítulos, esses conceitos não permitem apreender a complexidade do passado representado nas páginas da Máquina da Memória.



69 RICOEUR, 2000, p. 232.

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Capítulo 4

Almanaque Abril, acontecimento e tempo presente “terminado”

Ainda são pouco estudadas as formas pelas quais as interpretações históricas – e as das ciências humanas em geral – são apropriadas de maneira diferenciada pelos atores sociais, sendo, ao mesmo tempo, parte integrante e transformadora da própria realidade.1 E, mais especificamente, como a memória é instruída através da história.2 Tendo em vista essas questões, esses dois últimos capítulos se propõem a contribuir empiricamente para o debate em curso sobre a transformação da história em memória e vice-versa. Além desse aspecto, procurou-se abordar as temáticas do tempo presente e do evento. Como se destacou na introdução, Paul Ricoeur mostrou que há certos problemas em relação à perspectiva temporal curta, uma vez que o historiador escreve com a sua memória e a de outros em presença.3 Nesse sentido, o autor afirmou que a história do tempo presente precisa delimitar um fim, para que

1 Giddens (1984) denominou esse processo de dupla hermenêutica.



2 Comentando seu livro La mémoire, l’histoire, l’oublie, Paul Ricoeur (2002) afirmou: “eu diria hoje que falta, no meu livro, um capítulo que seria consagrado ao status da memória instruída pela história. (...) Não é suficiente dizer que a memória apresenta-se como matriz da história, como guardiã da problemática da relação representativa entre o presente e o passado. É necessário também dizer como a memória é instruída pela história, mas também traumatizada pela história (...). Essa atividade recai sobre o leitor de história como agente de uma história que se faz. É então que esse ator político, em sentido amplo, é confrontado com outras relações com o passado para além da história, relativos aos julgamentos no tribunal; através da opinião pública e das mídias. Essas outras relações com o passado contribuem para que a história e a ficção entrem em competição” (p. 44-45).



3 RICOEUR, 2000, p. 441; 2002, p. 59.

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haja os mortos. É necessário um sentido de fim, de uma data de término, para se instaurar um corte entre o passado e o presente, para que os papéis do memorialista e do historiador não se confundam. Mesmo com esta ruptura, os lugares podem ser confundidos. O luto inacabado não permite a edificação de uma tumba escriturária, que seria uma história com “distanciamento”.4 Além disso, o historiador tem determinadas “identificações” em relação ao evento que são próprias ao seu ofício, mas que seriam agravadas quando ele participa de tal conjuntura. O poder traumático dos eventos talvez pode não ter sido totalmente absorvido no momento em que ele escreve a história. Tendo em vista essas questões, o filósofo sugere distinguir, no passado recente, o tempo presente inacabado (que traz em si previsões e antecipações para se compreender a história em curso; outro aspecto desse tempo é a impossibilidade de se consultar livremente os arquivos que muitas vezes ainda estão em processo de constituição) e o tempo presente terminado.5 Aceitando o desafio de operar com essa distinção, foram escolhidos dois eventos exemplares de cada um desses tempos para se refletir sobre como os acontecimentos históricos são explicados e compreendidos pela narrativa da Máquina da Memória. Os eventos escolhidos do tempo presente terminado foram a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e os “Anos Vargas” (1930-1945); os do tempo presente inacabado foram o Golpe Militar de 1964 e a Queda do Muro de Berlim (1989). Esses momentos foram escolhidos em razão da existência de sínteses historiográficas sobre eles. Não nos interessamos pelos eventos em si e, sim, pelas questões que eles suscitam a partir da forma como foram postos em perspectiva e narrados pela Máquina da Memória. Em cada subitem, analisar-se-á, brevemente, o tratamento dado a esses mesmos eventos pelos historiadores e, depois, descrever-se-á como eles foram compreendidos e explicados pelo texto do Almanaque Abril. Essa ordem será invertida quando se analisar a Queda do Muro de Berlim, porque, neste caso, a publicação foi contemporânea do evento. Tendo em vista a hipótese de que a(s) narrativa(s) construída pelo Almanaque acabou se caracterizando como um dos lugares de “refúgio” da cronologia e do evento, ir-se-á, antes de se analisar os acontecimentos citados, refletir sobre como parte da história acadêmica, a partir da historiografia francesa, recusou e revalorizou o evento.

4 RICOEUR, 2002, p. 59-61.



5 Id., 1991a, p. 35-42. Ver, também, Dosse (1995, p. 376).

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A história entre os advogados do evento e da estrutura6 Entende-se que a história contada pelo Almanaque Abril situa-se próxima das concepções dos partidários do evento. Em 1894, Paul Lacombe, em De l’histoire consideré comme science, afirmou que para a história se tornar uma ciência, ela deveria eliminar os eventos, o caráter singular único e individual. Em 1903, François Simiand, em Méthode historique et science sociale, apropriou-se da obra de Lacombe para criticar o principal historiador dito “positivista” ou metódico: Seignobos. Na década de 1920, esse combate proposto por Simiand foi apropriado pelos fundadores da escola dos Annales: Marc Bloch e Lucian Febvre. O objetivo era criar uma história total que fosse ao mesmo tempo uma história-problema.7 No caso francês, ao final do século 19, quando a história estava institucionalizada e profissionalizada, foi iniciada uma contestação ao “positivismo” ou, mais adequadamente, à “escola metódica”.8 O ataque inicial a essa

6 Ricoeur (2000), comentando o texto “o retorno do fato”, de Pierre Nora, afirmou: “eis o evento – o evento contemporâneo – preso à nostalgia das dialéticas fomentadas pelos inimigos do acontecimento e pelos advogados da estrutura” (p. 229). Para Pomian (1984), além dos acontecimentos e das estruturas, a história tem outras duas categorias temporais, a saber: a série repetitiva e a época. Ver, também, Ricoeur (2005, p. 370-374). Cabe realçar que, diferentemente do português, o francês não tem sinônimo para a palavra événement. Do nosso ponto de vista, a existência, em português, de dois vocábulos (evento e acontecimento) não representa qualquer vantagem epistemológica. Já “fato” é derivado do latim factum, da forma verbal facere, isto é, fazer. Sobre essas questões, ver Domingues (1996). Sendo assim, traduziu-se, ao longo deste livro, a palavra événement como “acontecimento” e “evento”. Salvo quando se destacou, não se estabeleceu qualquer distinção entre essas palavras. No entanto, levou-se em consideração a diferenciação entre acontecimento e fato de Michel de Certeau. Para o autor, “o acontecimento é aquele que recorta, para que haja inteligibilidade; o fato histórico é aquele que preenche para que haja enunciados de sentido. O primeiro condiciona a organização do discurso; o segundo fornece os significantes destinados a formar, de maneira narrativa, uma série de elementos significativos. Em suma, o primeiro articula, e o segundo soletra” (CERTEAU, 1982, p. 103).



7 Ver Delacroix; Dosse; Garcia (1999). Para uma análise que procura apreender as diferenças e semelhanças do pensamento de Marc Bloch e Lucien Febvre, ver Reis (1994b).



8 Nossa abordagem dessa escola e desse debate é parte de uma leitura pessoal dos seguintes autores: Langlois; Seignobos (1898); Bourdé; Martin (1983); Ricoeur (1985,

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forma de fazer história partiu, em boa medida, da sociologia, em especial dos durkheimianos. François Simiand afirmou que os “novos” historiadores deveriam abandonar os três ídolos da “tribo dos historiadores positivistas”: a política, o individual e a cronologia. Em vez dos indivíduos, dever-se-ia estudar, de preferência de forma comparativa, as instituições e os fenômenos sociais. O estudo cronológico se perderia na busca das origens e do particular sem se entranhar em causas mais profundas e, por isso, a história deveria, ao contrário, ser regressiva, realizando o inverso do procedimento cronológico. A proposta era, portanto, partir do individual para o coletivo, do particular para o geral, da monografia para o método comparativo. Para que a história se tornasse uma ciência, ela deveria se dedicar ao estudo das regularidades, fixando-se na economia e no social. Nos anos 1980 e 1990, parte da crítica aos historiadores metódicos foi reexaminada. Nessa releitura, percebeu-se que eles não acreditavam em um progresso contínuo e universal da humanidade. Eles não eram tão deterministas como se pensava, pois não viam uma causa permanente inerente ao conjunto da humanidade. Os textos dos historiadores metódicos poderiam ser lidos a partir dos públicos visados e dos usos desejados. Examinando a produção de Charles Seignobos, Antoine Prost afirmou que uma parte desse público era formada por estudantes e outra por acadêmicos.9 Nos discursos direcionados aos estudantes e aos professores, (re)afirmava-se a importância da aplicação rigorosa do método histórico para garantir a cientificidade histórica. A crítica dos Annales se dirigiu a esses discursos. Porém, o culto ao documento deveria ser entendido dentro de uma perspectiva de formação do campo de historiadores, tendo em vista a profissionalização do ofício. Era necessária a distinção entre a história e a literatura para sua constituição profissional. Nas análises endereçadas aos acadêmicos, Seignobos colocava em relevo, no entanto, o papel da subjetividade e do tratamento para com a documentação. Para o historiador citado, a história era um conhecimento que se constituiu indiretamente a partir de traços. O dito “positivista” afirmava que

p. 349-372); Prost (1994, p. 100-118); Koselleck (1997); Carrard (1998); Delacroix; Dosse; Garcia (1999) e Reis (1996).

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9 PROST, Antoine. Seignobos revisité. Vingtième siècle: revue d’histoire, Paris, Prese Science Po, n. 43, p. 100-118, juil-sept. 1994.

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era necessário interpretar o documento, pois ele não falaria por si mesmo. Os fatos não eram diretamente acessíveis, sendo necessário utilizar mediações. O erro de Seignobos consistiu, segundo Prost, em crer que o ensino e a pesquisa seguiam a mesma lógica.10 No entanto, em certa medida, os argumentos subjetivistas de Seignobos se parecem com as críticas destinadas ao cientificismo da escola dos Annales nos anos 1960-1970. Gérard Noiriel destaca que a “história acontecimental” (ou événementielle) foi considerada o “momento fundador” da história contemporânea, sendo que, a partir dela, um grande campo de estudo foi formado. Essa história foi entendida, por exemplo, por Lucien Févre e Fernand Braudel como sinônimo de “história política” e “história tradicional”. No entanto, Raymond Aron, citado por Noiriel, afirmou que “a história factual (ou “acontecimental”) é uma noção obscura, pois é utilizada de forma polêmica pela escola dos Annales para desqualificar aqueles que a praticam”. Assim, “ao condenar a história ‘factual’, os fundadores dos Annales recusam, de fato, aceitar uma concepção de história ligada a uma dimensão pedagógica. Se eles atacam particularmente Seignobos, é pelo motivo que nenhum historiador confundiu as duas funções que deve preencher um acadêmico: a pesquisa e o ensino”.11 Em grande medida, as críticas endereçadas à história metódica visavam ao questionamento da história política. Um longo debate a partir daí, ainda não terminado, discute a importância da política como elemento central para a compreensão da história das sociedades. Para René Rémond, a “antiga” forma de escrever a história política era a própria imagem e o exemplo perfeito da história dita factual, “acontecimental” (ou événementielle), pois ficaria na superfície, esquecendo-se de vincular os acontecimentos às suas “causas profundas”. A história dos fatos políticos se mostrava como uma história do efêmero e do instante. Ignorava-se a pluralidade dos ritmos que caracterizam a história política. A nova forma de escrever essa história deveria, assim, inserir a política no jogo da continuidade e da mudança.12 Esse “retorno” a um dos “ídolos” do historiador “positivista”, o político, acabou por contribuir para o retorno de outro “ídolo”: o “evento”. A

10 PROST, 1994.



11 NOIRIEL, 1998, p. 33 e 35. Ver, também, Charle (1998).



12 Ver Rémond (1996).

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recusa e o “retorno do acontecimento” têm, assim, uma historicidade. No início do século 20, os historiadores, posteriormente agrupados pelos Annales, tentaram se distanciar da “história acontecimental”. Para que a história se tornasse ciência, acreditava-se que ela deveria sair do conhecimento centrado no parcial, no individual e buscar as regularidades. Para que ela se tornasse explicativa, deveria deslocar-se em direção à longa duração, a uma história no limite “imóvel”. A tentativa das ciências modernas de romper com os determinismos evolucionistas por meio de noções como caos e irreversibilidade, contribuíram, segundo François Dosse, para que as ciências humanas, em geral, começassem, nos anos 1970 e 1980, a construir novas formas de temporalidade que privilegiavam o tema do evento: ele cria temporalidades, práticas e herdeiros.13 Esse novo olhar sobre a questão do acontecimento permitiu reabrir o horizonte de expectativa e imprimir um novo sentido à ideia de imprevisibilidade no presente/passado/futuro. Essa concepção descontinuísta da história, que privilegia o caráter irredutível do evento, conduziu ao questionamento de uma visão teleológica da Razão. A obra de Walter Benjamin, que insistia na atitude de se passar de um tempo da necessidade a um tempo dos possíveis, desempenhou um papel fundamental.14 O presente é importante na medida em que o historiador é um mediador e o passado é a sua recriação. A história é inscrição em um presente que lhe confere uma atualidade nova, situada em uma configuração singular. Interpretar os eventos à luz do presente é diferente de procurar enquadrá-los em uma causalidade mecânica e factual.15 Fernand Braudel foi um dos historiadores que mais teorizou a recusa ao evento. Para tornar-se explicativa, a história deveria ir ao encontro da longa duração. Ele propôs uma problemática do tempo histórico, ao sistematizar certa relação com a temporalidade que os historiadores e/ou cientistas sociais, de alguma forma, já vinham fazendo. Ele decompôs a temporalidade histórica em várias temporalidades, durações e ritmos.16 Apesar do fato de que a recusa



13 DOSSE, 1995, p. 337-341.



14 BENJAMIM, Walter. Teses sobre a História. In: ______. Magia e técnica, arte e política – Ensaios sobre a Literatura e História da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.



15 DOSSE, 1995, p. 337-341.



16 Fernand Braudel institui a temporalidade no estruturalismo. Ver Reis (2003).

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ao evento é aprofundada ao longo de sua trajetória de pesquisador, foi no prefácio do seu livro sobre o Mediterrâneo, de 1946, que ele esboçou, pela primeira vez, sua reflexão. Para o historiador francês, era a dialética entre o tempo da estrutura (história das durações, quase imóvel, dos ciclos, da geografia), da conjuntura (história de um tempo médio, ritmada pelas “vagas” do fundo do mar, as guerras, os Estados, as sociedades) e do acontecimento (história dita tradicional, factual, individual, agitação de superfície, fruto de oscilações breves, rápidas e nervosas) que formariam a temporalidade histórica. Apesar da dimensão dialética, percebe-se uma hierarquização, pois o evento é apenas uma manifestação de “causas” mais profundas. Segundo Braudel, essa temporalidade “acontecimental” é a mais apaixonante, a mais rica em humanidade – e também a mais perigosa. No referido prefácio, ele conclamou os historiadores a desconfiarem do evento, principalmente na contemporaneidade, em que os homens o sentiram, o viveram e o descreveram. O acontecimento é tão efêmero como nossa vida.17 Braudel propôs dividir a história em pedaços e andares (o evento seria, nesse caso, o térreo). O tempo histórico seria, na verdade, um tempo geográfico, social e individual. Em sua aula inaugural no Collège de France, em 1950, ele afirmou que a “história positivista” (sua referência direta é Seignobos) pode ser comparada ao trabalho de um pintor que acredita registrar verdadeiramente uma paisagem e, por isso, ele se agarra ao evento.18 Em seu famoso artigo de 1958 sobre a longa duração, Braudel reafirmou que deveria se desconfiar da história factual. Só a dialética das durações (do tempo curto, médio e longo) permitiria ao historiador sair dos riscos de uma “história acontencimental”.19 Em boa medida, o projeto de Braudel, e de vários seguidores que se aprofundaram na recusa ao acontecimento, “é aprisionar o evento na curta duração”.20



17 BRAUDEL, Fernand. Ecrits sur l’Histoire. Paris: Flamarion, 1969, p. 11-13.



18 Ibid., p. 18-19.



19 Ibid., p. 41-83.



20 DOSSE, 1995, p. 341. Para esse autor, o trabalho de Michel Foucault contribui fortemente para o retorno da temática do evento a partir de sua crítica radical a toda temporalidade continuísta. Foucault se autodenominava “positivista feliz”, na medida em que, em vez de ir à busca das origens, ele procurava as descontinuidades e singularidades. Para Foucault (apud DOSSE, 1995, p. 342): “a história efetiva faz ressurgir o evento no que ele possa ter de único e agudo”.

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Em 1985, Jacques Revel declarou que mesmo Braudel não foi capaz de articular as diversas temporalidades: “ele não conseguiu completamente integrar os três tempos, com exceção no domínio econômico. Eu teria a tendência a pensar que não há três temporalidades, mas cada tipo de objeto inscrito em temporalidades, que é necessário tentar reconstruir”.21 Segundo Antoine Prost, as hierarquizações temporais poderiam ajudar os historiadores a articular diferentes tempos uns em relação aos outros. Essa foi a tentativa de Fernand Braudel. Porém, a divisão de sua tese em três partes, que o levou a pensar em três tempos, seria, na verdade, fruto das regras tradicionais da retórica da academia francesa.22 Após a hegemonia das concepções braudelianas na década de 1970, percebeu-se que a disciplina histórica experimentou um retorno progressivo aos estudos sobre o evento. Pode-se notar três novas proposições sobre o acontecimento.23 A primeira, muito ligada à moda dos anos 1970, consistiu em integrar o acontecimento a uma análise de tipo sistemática. Destaca-se um artigo de Edgar Morin para a revista Communications (n. 18, 1972) sobre o assunto. A questão colocada por este autor dizia respeito à possibilidade de

21 REVEL, 1985 apud LEDUC, 1999, p. 42-43.



22 O autor destacou ainda: “F. Braudel não era bobo, ele sabia melhor que ninguém a pluralidade indefinida dos tempos históricos. Se nós queremos conservar, preservar o procedimento braudeliano em sua fecundidade, é necessário reter a intenção e o procedimento mais do que o absolutizando. O importante é ter em conta a temporalidade própria de cada série de fenômenos na pesquisa e suas articulações” (PROST, 1996, p. 121-122). O próprio Fernand Braudel, no prefácio à segunda edição de O Mediterrâneo, afirmou praticamente a mesma coisa: “permanece contudo imutável o problema de fundo, deste como de qualquer outro trabalho histórico: será possível captar simultaneamente uma história em permanente transformação, vedete das suas próprias mudanças e dos seus espetáculos, e outra história, subjacente, mais silenciosa, discreta, passando quase despercebida às suas próprias testemunhas e actores, e que, não obstante, se mantém, contra tudo e contra todos, e até contra a usura obstinada do tempo? Essa contradição, decisiva e ainda inexplicada, é um grande meio de conhecimento e investigação. Aplicável a todos os aspectos da vida, reveste forçosamente formas diferentes, de acordo com os termos em comparação” (BRAUDEL, 1983, p. 28). Sobre articulação das durações em O Mediterâneo de Fernand Braudel, ver Dutra (2003).



23 REVEL, Jaques. Retour sur l’événement: un intinéraire historiographique. In: FABIANI, Jean-Louis (Dir.). Le Goût de l’Enquête: pour Jean-Claude Passeron. Paris: L’Harmattan, 2001.

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se compreender o acontecimento sem reduzi-lo a um elemento de um sistema. Contra o pensamento dominante de que não existiria uma ciência do particular, ele procurou compreender o papel reorganizador de alguns eventos. A segunda proposição destacou a importância de um fato em uma circunstância particular, historicamente datada, de produção, circulação e recepção da informação. Foi o que Pierre Nora denominou “acontecimento monstro” no mesmo número da revista Communication em que escreveu Morin. A renomeação do artigo, dois anos depois, para “Retorno do Fato”, na coleção Faire de l’Histoire, significou uma tentativa de reabilitação historiográfica. Na medida em que o evento é percebido e construído de forma imediata, o historiador deveria desconstruí-lo, procurando entender como as mídias o produzem. A terceira proposição foi uma tentativa de diferenciação e enriquecimento dos modelos dominantes nos anos 1970. Trata-se do livro de Georges Duby, Domingo de Bouvines. Duby pretendia estudar os traços duráveis ou deixados pelo evento, que conferiam existência ao fato fundador. O tempo curto era percebido como ocasião de uma crise excepcional, uma perspectiva do instante que se relaciona com estruturas profundas. O evento poderia ser interrogado na longa duração a partir dos traços e apropriações ao longo do tempo. Além das mudanças que caracterizam o presente do historiador, ligadas à emergência do presentismo,24 novas teorizações sobre o acontecimento contribuíram para essa inflexão em direção ao seu estudo. Destaca-se, aqui, os trabalhos de Paul Ricoeur e Reinhart Koselleck. As reflexões desses autores nos permitem pensar a relação entre a história, o evento e a estrutura, em uma perspectiva teórica que conduzirá nosso olhar para o tratamento que foi dado aos acontecimentos pelos textos da Máquina da Memória. Esses dois autores dão subsídios para se questionar alguns dos pressupostos da hierarquização das durações históricas construída por Fernand Braudel. Segundo Paulo Miceli, para Braudel: “os acontecimentos são como vaga-lumes nas noites brasileiras: brilham, não aclaram”.25 “Isso também quer dizer que as grandes explicações históricas podem ser, por assim dizer, ilustradas pelos acontecimen-



24 HARTOG, 2003.



25 MICELI, Paulo. Sobre História, Braudel e os vaga-lumes. A Escola dos Annales e o Brasil (ou vice-versa). In: FREITAS, Marcos Cezar (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. p. 265.

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tos, tendo pouco resultado os esforços em contrário”.26 A reflexões de Paul Ricoeur e Reinhart Koselleck contribuíram exatamente para mostrar que, de forma antagônica ao que boa parte da historiografia defendeu ao longo do século 20, os “esforços em contrário” podem ter bons resultados e, mais do que isso, que não se trata de opor estrutura e evento e, sim, de pensá-los em termos de uma tensão. Os dois autores questionaram o divórcio construído, no século 20, entre uma história que conta os eventos e outra que não se interessa por eles: tratamos do problema das relações entre a esfera da visibilidade e o campo do invisível, entre a percepção e a linguagem, uma vez que a história tal como era praticada até finais do século XIX se situava na zona organizada em torno destes dois pólos. Considerada no conjunto, a história de hoje situa-se sempre no mesmo campo, mas consumou-se o divórcio entre uma história “popular”, que conta os eventos, e uma história “douta”, que se interessa pelo que não é evento.27

Toda obra narrativa tem uma exigência de verdade relativa ao caráter temporal da experiência humana, como mostrou Paul Ricoeur.28 O tempo torna-se humano na medida em que ele é articulado de forma narrativa. Esse autor denunciou, na década de 1980, os “riscos” do “eclipse” do evento e da narrativa no conhecimento histórico. A promoção do acontecimento é inseparável da afirmação de que não há enunciação histórica que não passe pela construção de uma narrativa na qual o evento assuma o duplo papel daquilo que acontece e do que é inscrito nas transformações da ordem do tempo. Para o filósofo, há uma indissociabilidade linguística e ontológica na constituição do evento.29 Em um determinado sentido da linguagem, o acontecimento é aquilo que acontece, ato de palavra e narratividade do discurso histórico. Ele não é força, ruptura e nem banalidade, é um fundamento da identidade narrativa. O evento está na fronteira da linguagem e da ação na medida em que é necessário contar o acontecido para lhe dar sentido. Nesse processo tão presente nos textos da Máquina da Memória e que pode ser ilustrado, por



26 MICELI, 1998, p. 265.



27 POMIAN, 2000, p. 233.



28 RICOEUR, 1985.



29 RICOEUR, Paul. Evénement et sens. In: Raisons Pratiques. Paris: EHESS, 1991b.

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exemplo, na narração construída sobre a queda do Muro de Berlim em 1989, conforme se mostrará, é necessário classificar, caracterizar e colocar o novo em relação a uma determinada ordem instituída. Como o tempo em nossa sociedade é entendido, na maioria das vezes, como uma sucessão, é necessário localizar o evento em uma ordem de antes e depois. Ele está em uma relação de simultaneidade ou sucessão no interior de um tempo único. O sentido do evento irá se construir e se reconstruir justamente nas narrativas no Almanaque Abril, nas aulas de história, no cinema ou nos livros dos historiadores. Procurando reconciliar continuidade e descontinuidade, Paul Ricoeur distinguiu três possibilidades de se compreender o evento: 1) “acontecimento infrassignificativo” ou “infra-significado” (que podia ser ilustrada pela história dita tradicional que não se abre para o imponderável); 2) “não acontecimental” (que podia ser ilustrada pela “história científica” dos anos 1960-1970) e 3) “acontecimento supersignificativo” ou “supersignificado” (síntese dialética das duas possibilidades anteriores).30 O primeiro nível, essencialmente hegemônico nos textos da Máquina da Memória, corresponde ao espaço descritivo do que aconteceu mediante a evocação da surpresa. O segundo nível propõe enquadrar o evento no interior de esquemas explicativos relacionando-o com leis e regularidades. Para Ricouer, uma síntese dialética dessas duas formas de analisar o evento nos permite perceber que toda narrativa nos reenvia ao evento como fonte da fecundidade histórica. Trata-se de interrogar o porquê de se escolher alguns eventos fundadores. Desse modo, alguns acontecimentos de origem, fictícios ou não, tornam-se constitutivos porque a narração se torna parte de certa identidade positiva (Bastilha ou 1989) ou negativa (Auschwitz ou 1914 e 1964). Trata-se de um terceiro momento interpretativo, de compreensão e explicação do evento como emergência, mas sua significação está contida no processo interpretativo. O evento não pode ser reduzido, assim, ao sentido explicativo nem à sua ausência de sentido (via seu confinamento a leis e macro explicações), ele engendra sentido por ele mesmo.31

30 RICOEUR, 1991b, p. 55.



31 RICOEUR, 1991b. Ver, também, Dosse (1995, 2005, p. 401). Apesar de não se examinar aqui, do ponto vista da filosofia, a análise de Gilles Deleuze sobre o tema do acontecimento, talvez complete a de Paul Ricoeur na medida em que aquele filósofo considera o evento “problemático” e “problematizante” (DELEUZE, 1974). Para uma análise recente, no campo na filosofia, sobre o evento, ver Borradori (2004).

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Reinhart Koselleck, por sua vez, afirma que a construção de uma cronologia, sua estruturação e sua constituição revelam dados sobre o trabalho do historiador e dos atores que ele quer analisar.32 Os acontecimentos e as estruturas têm vida própria, mas são também interdependentes. Pode-se compreender a história tanto pela explicitação das estruturas como pelos eventos, pois, para esse autor, acontecimento e estrutura vivenciam constante tensão e interdependência. Koselleck resume assim seu argumento: uma vez analisadas e descritas, as estruturas podem ser objetos de narrativas, como fatores que pertencem a um conjunto de eventos de outra ordem. A forma mais adequada para se apreender o caráter processual da história moderna é o esclarecimento recíproco dos eventos pelas estruturas e vice-versa.33

Na maioria das edições da Máquina da Memória, percebe-se a ausência de relação entre essas duas instâncias, ou seja, a tentativa de superar o evento infrassignificativo deslocando-se em direção a uma compreensão supersignificativa. Se a história científica dos anos 1960-1970 pretendia eliminar o evento, nas narrativas do Almanaque Abril tem-se uma situação inversa na maioria das edições. Conforme já se destacou e será enfatizado neste capítulo, no caso das explicações operadas pelos textos da Máquina da Memória, era o nível do evento infrasignificativo, calcado na cronologia e na periodização tradicional, o responsável pelo “efeito de real” e/ou “verdade” que as representações do passado e narrativas da publicação construíam para que o leitor tivesse a percepção de que a “verdade” ali se fazia presente e/ou para fornecer as marcas de historicidade ao texto da Máquina da Memória. No entanto, percebe-se que houve fugas em direção a uma compreensão mais sofisticada do evento, podendo ser observado por m eio do seu não-enquadramento apenas na curta duração. Concorda-se com Reinhart Koselleck que é fundamental estabelecer algum tipo de relação entre evento e estrutura, sem apagar as especificidades de cada esfera. Em torno de um evento há uma multiplicidade de níveis de temporalidade, de experiência e de conceituação. O acontecimento é, assim, fruto da tensão entre um campo de experiência e um horizonte de expectativa, uma

32 KOSELLECK, 1990, p. 133-143.



33 Ibid., p. 140.

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tensão que define um regime geral de historicidade que caracteriza as experiências históricas concretas e singulares dos atores, individuais e coletivos. Em outras palavras, o evento se situa na tensão interna entre os dois conceitos metahistóricos, o de campo de experiência e o de horizonte de expectativa, pois é importante pensar nas condições de possibilidade do acontecimento a partir de conceitos estruturantes e estruturados, partindo-se de situações singulares. O acontecimento é irredutível, na medida em que é fruto da multiplicidade das durações históricas. Ele não revela unicamente certo contrato de enunciação, há também uma exigência de tipo cognitivo, pois é constituído por um “nó” de temporalidades atualizadas em um dado momento. É nesse entrecruzamento de durações que se ancora a dinâmica histórica dos atores que se movimentam em várias temporalidades, na maioria das vezes, não lineares. Koselleck ilustrou seu argumento a partir do exemplo da batalha Leuthen. Ele afirmou que as condições anteriores à batalha não explicam suficientemente porque Frédéric II a venceu da maneira que venceu. Nessa medida, evento e estrutura reconduzem um ao outro. A composição do exército, seu sistema de recrutamento, sua implantação dentro de um sistema agrário, o sistema fiscal, o caixa de guerra, os conhecimentos táticos, as condições do adversário, as ações pontuais durante o conflito, a tradição militar, todos esses elementos devem ser considerados. Mas o desenvolvimento da batalha não pode ser contado e não adquire um sentido se não for por meio da cronologia. Como o evento se torna um símbolo, a história das consequências da batalha pode retornar a uma significação estrutural.34 Para Koseleck, os eventos são prisioneiros de um antes e de um depois, ligados à cronologia e empiricamente verificados. Porém, essa dimensão deve dialogar com a dimensão estrutural e conceitual, pois os eventos e as estruturas são, ao mesmo tempo, abstratos e concretos. É a conceituação que permite superar e compreender a massa de eventos e a singularidade de cada um. Os conceitos permitem, assim, sair da simples sucessão do tempo da história. Dessa maneira, um evento não se repete, ainda que se perceba uma repetição teórica, com situações e contingências semelhantes. Trata-se de compreender e explicar, portanto, o que Marshall Salhins, utilizando um vocabulário próximo ao de Koselleck, denominou “a contingência de eventos e a recorrência de estruturas”.35

34 KOSELLECK, 1990, p. 138-139.



35 SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 14.

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Em resumo, e utilizando as próprias palavras de Koselleck, “estruturas mais ou menos duradouras, mas de todo modo de longo prazo, são condições de possibilidade para os eventos” e “inversamente, certas estruturas só podem ser apreendidas nos eventos nos quais se articulam e por meio dos quais se deixam transparecer”.36 Portanto, para o autor: 1) os planos temporais de evento e estrutura se condicionam reciprocamente, mas não se fundem; 2) um evento pode adquirir significado estrutural; 3) a “duração” pode converter-se em evento.37 Nesta direção, o autor afirma que “toda conceitualização tem alcance mais vasto do que o evento singular que ela ajuda a compreender”.38 Jacques Revel destacou que o “retorno do evento” não foi uma solução para substituir o fracasso da ideia de uma história científica.39 Ele foi, sobretudo, um enriquecimento e um aprofundamento do debate aberto sobre a complexidade do tempo histórico e um ganho desse debate para o trabalho histórico – um debate em curso cujas respostas são múltiplas. Assim, para esse historiador, há quatro boas razões para se pensar e estudar o acontecimento. A primeira é fruto da necessidade de se pensar a multiplicidade do tempo social em termos diferentes da hierarquização objetiva construída por Fernand Braudel. Não seria mais admissível, desse modo, sair, evacuar, não perceber o evento em nome de durações mais importantes e significativas. A segunda, intimamente ligada à primeira, leva em consideração as incertezas nas quais todas as experiências sociais dos atores estão inseridas e envolvidas. Se o futuro porta uma marca essencial de imprevisibilidade, a explicação deve respeitar a natureza do evento para que se possa dar ao passado as incertezas do futuro.40 Retomar os estudos sobre o evento significa construir uma passagem necessária para reabrir essa dimensão de incerteza e de possibilidades, sem que isso indique que ele se inscreva apenas na curta duração. A terceira razão para se pensar e estudar o acontecimento diz respeito à importância que ele adquire nas ciências sociais, hoje interessadas em caracterizar as



36 KOSELLECK, 1990, p. 139.



37 Ibid., p. 141.



38 Ibid., p. 142. Talvez Paul Ricoeur (2000) avance um pouco mais ao indicar que há acontecimentos de longa duração.



39 REVEL, 2001.



40 Sobre esse ponto, ver Aron (1981).

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formas e as razões da ação no passado e no presente. Por fim, a redescoberta do acontecimento está também ligada às reflexões em curso sobre a variação de escalas de observação e sobre as possibilidades de análises diferentes do social, advindas com esses novos olhares sobre o tema do evento.41 Tendo em vista essas questões, nos próximos itens serão apresentadas reflexões sobre como os historiadores e as narrativas da Máquina da Memória analisaram os eventos selecionados.

1914-1918: a “Grande Guerra” O objeto histórico “guerra de 1914” foi, sucessivamente, construído segundo definições, problemas e temáticas diversas por historiadores, profissionais ou não. Para se analisar como esse objeto foi sucessivamente construído, vale-se do trabalho de Antoine Prost e Jay Winter.42 Os dois autores analisaram as produções francesa, alemã, inglesa e norte-americana sobre a guerra e apresentaram um dos mais completos estudos historiográficos sobre o conflito. As mudanças na disciplina história e a abertura de determinados arquivos contribuíram para as transformações dos olhares sobre esse objeto. Os autores destacaram que a maioria dos trabalhos sobre a “história da Primeira Guerra” aborda principalmente as dimensões da história política, diplomática e militar e, na maioria das vezes, sob uma ótica nacional. Para os autores, é necessário ultrapassar o quadro nacional, pois, até hoje, cada nação teve a sua guerra. No entanto, há grandes dificuldades em tal projeto, na medida em que a guerra é indissociável da nação, visto que não há uma história da guerra como um evento global, único.43 A guerra é uma experiência real que adquire sentidos diversos pelos contemporâneos: “o tempo que passa opera como que uma decantação, e depois de um século após o evento os historiadores podem acreditar que têm o monopólio da história”.44 A história, enquanto discurso específico, particular

41 REVEL, 2001.



42 PROST, Antoine; WINTER, Jay. Penser la Grande Guerre: un essai d’historiographie. Paris: Seuil, 2004.



43 Ibid., p. 264-272.



44 PROST; WINTER, 2004, p. 15.

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e regido por regras próprias, distancia-se progressivamente de um conjunto de discursos múltiplos que não são dela, mas em que há história. Os autores citados distinguem três configurações explicativas sobre a guerra. A primeira, denominada “configuração militar e diplomática”, esteve ligada à imbricação entre os atores e os historiadores, misturando testemunho e história. Os contemporâneos que presenciaram o evento entenderam que eles viviam um acontecimento excepcional, tanto é que a denominação “Grande Guerra” já aparece em 1915. Nesse primeiro momento, a publicação dos documentos diplomáticos ganhou uma dimensão relevante para se justificar e/ou explicar as responsabilidades da guerra. Por que ela começou? Por que ela demorou tanto tempo? São as primeiras questões que se pretendia explicar. O papel assumido pelos governos, tanto na divulgação de documentos como na criação de justificativas para suas ações nesse período, contribuiu para orientar as formas que essas histórias adquiriram – sustentadas por historiadores em livros didáticos, em artigos e livros. Os aspectos econômicos e sociais, em geral, foram deixados de lado. Até os anos 1960, poucos historiadores profissionais na Europa e nos Estados Unidos trabalharam sobre a história da guerra. A segunda configuração, eminentemente social, foi marcada pela inserção dos excluídos, dos soldados e dos civis. A produção literária e os manuais escolares incorporaram esses grupos sociais, na maioria das vezes, de um ponto de vista memorialístico, praticamente desde o fim da guerra.45 A Segunda Guerra Mundial, as guerras de descolonização e a Guerra do Vietnã modificaram as perspectivas e interrogações. As continuidades e diferenças entre os dois grandes conflitos (Primeira e Segunda Guerras Mundiais) ganharam espaço considerável. As interpretações do cinema e da televisão muitas vezes acabaram superando as dos historiadores. As imagens introduziram “a história dos de baixo”. Em um contexto de grande influência do marxismo, nas décadas de 1960 e 1970, não se tratava mais de explicar as responsabilidades do conflito e, sim, a relação entre a guerra, o socialismo e a revolução. A guerra foi considerada uma consequência do estado último do imperialismo. Constróise uma história social do conflito, acompanhada também pela transformação da história diplomática em história das relações internacionais.

45 PROST; WINTER, 2004, p. 110-143 e p. 241-243.

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A última configuração foi essencialmente cultural e social. Grande parte dos historiadores da segunda configuração passou a escrever uma história da guerra levando em consideração as dimensões culturais do conflito, as representações, as memórias, a arte, os sonhos, as ideias, as aspirações e as apropriações. A partir dos anos 1980, o que mudou não foi o modo de explicação e, sim, a problemática. O abandono da busca por explicações globais contribuiu para o estudo de casos particulares que ajudaram a esclarecer dimensões nunca vistas. Os temas da memória e da identidade ganharam relevância. Percebe-se, inclusive, certa transformação da guerra em patrimônio. No momento em que as testemunhas já estavam mortas, a guerra começou a fazer parte de um evento que poderia ser esquecido. Fontes nunca observadas começaram ser estudadas, tais como fotografias, cartões postais e grafites. Além da utilização de novas fontes, do surgimento de novos documentos e de mudanças no conhecimento histórico, o tempo presente colocou novas questões para o historiador. Os significados da guerra de 1914-1918 se modificaram ao longo do tempo. Inicialmente, ela foi pensada como uma luta entre nações e que seria a última das guerras. Depois, como um episódio de uma “guerra de 30 anos”, fruto da luta de sociedades. Finalmente, como um ato fundador de um século de barbárie, matriz de um século trágico. Para a primeira configuração, a guerra era explicada pelas decisões dos atores; para a segunda, por meio do jogo das forças sociais, e a última encontrou, nas dimensões culturais, a força explicativa para entender o conflito. Com o objetivo de aprofundar a análise do texto do Almanaque Abril, procurar-se-á pensar qual configuração historiográfica foi escolhida pela obra para explicar a Grande Guerra. O texto da primeira edição da Máquina da Memória trouxe dados sobre a Primeira Guerra Mundial na cronologia histórica e na parte referente aos “Assuntos Militares”. Em 1978, o texto sobre a guerra estava presente nesse capítulo como um box inserido na cronologia histórica. A partir da introdução dos boxes na parte referente à história, essa explicação foi transferida para o capítulo de “História”. O texto da primeira edição afirmou que a causa imediata da Primeira Guerra Mundial havia sido o assassinato do herdeiro do trono austro-húngaro, o arquiduque Francisco Ferdinando (28/6/1914), em Sarajevo, na Bósnia, pelo terrorista sérvio Gavrilo Princip. O texto explicou que as causas remotas foram as rivalidades imperialistas que dividiram a Europa por mais de um século.

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Afirmou-se que o velho continente era a sede de impérios dispersos em vários cantos do mundo (Inglaterra e França) e, ao mesmo tempo, de impérios que dominavam povos europeus (Rússia, Império Austro-Húngaro e Otomano): “no início do século XX, o nacionalismo tomou formas particularmente perigosas, tais como o plano da Grande Sérvia, o pan-eslavismo russo e o movimento de revanche da França”. O texto destacou ainda que “o conflito dificilmente teria tomado as proporções que tomou se não fosse o sistema das alianças múltiplas”. Explicou-se, então, esse sistema e as diversas alianças. O atentado de Sarajevo serviu, assim, de pretexto para a Áustria-Hungria atacar a Sérvia, o foco mais ativo de agitação eslava nos Bálcãs: “mas sua esperança de guerra localizada foi desfeita pela Rússia, tradicional defensora das minorias eslavas, que se colocou inteiramente ao lado da Sérvia”. A partir daí, o texto descrevia a reação em cadeia que foram as declarações de guerra das grandes potências. Em 1915, segundo a narrativa da Máquina da Memória, os aliados tiveram dois fatos a seu favor: a entrada da Itália na guerra e a conquista do sudoeste africano. No ano seguinte, a situação se modificou. Os aliados lançaram uma ofensiva contra Verdum: “essa longa batalha marcou a aparição da guerra moderna, com armas que visavam o aniquilamento total do adversário”, mas a França resistiu, apesar do saldo de 700 mil mortos. Além disso, os “impérios centrais” perdiam espaço e sentiam falta de matérias-primas e alimentos. Em fevereiro de 1917, iniciou-se a guerra subterrânea, agravando a tensão entre os Estados Unidos e a Alemanha. No dia 6 de abril, os americanos entraram na guerra ao lado dos ingleses: “essa atitude foi de grande efeito moral para os aliados e compensaria a saída das forças russas da guerra”. Os alemães, mesmo atacando com toda força o ocidente, foram progressivamente derrotados pelos aliados unidos sob a liderança de Ferdinand Foch (o texto não explica, mas ele era um militar francês). Um marco importante foi a derrota alemã na batalha do Marne, em julho de 1918. Em setembro, a guerra já havia sido ganha pelas potências ocidentais. A partir daí, começaram as rendições. As consequências da guerra foram catastróficas, para vencedores e vencidos. A narrativa do Almanaque 1975 apresentou os seguintes dados “65 milhões de homens estiveram envolvidos nas lutas, e desses, mais de 8 milhões morreram e 20 milhões ficaram feridos; 5 milhões desapareceram; 9 milhões de civis foram mortos, em conseqüência da fome, epidemias e massacres”.

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Quando esse texto saiu do capítulo de assuntos militares e tornou-se, em 1978, um box do capítulo de “História”, ele foi reduzido e dividido em subitens em negrito dispostos na seguinte ordem: “causas remotas”, “causa imediata”, “desenvolvimento”, “1915”, “1916”, “1917”, “1918” e “conseqüências”. Na parte das consequências, foi acrescentado, ao final, que “as condições extorsivas impostas pelo Tratado de Versalhes foram as causas da II Guerra Mundial (ver quadro Ascensão do Nazismo)”. Em 1994, com ligeiras alterações no estilo do texto, esses subitens mudaram para “início”, “I fase”, “II fase” (de 1916 até a entrada americana), “final” e “conseqüências”. Foi somente na edição de 1995 que a narrativa da Máquina da Memória rompeu, definitivamente, com o texto original herdado do The Official Associated Press Almanac.46 A principal inovação foi a ênfase no caráter mundial do conflito e suas implicações na geopolítica e na história do mundo. A introdução afirmou que a Primeira Guerra Mundial foi o primeiro conflito armado que envolveu diretamente as grandes potências mundiais. Até essa data, os embates envolviam apenas algumas regiões do planeta. O conflito alterou a organização social e política mundial. O texto era dividido em quatro itens, cada qual com alguns subitens. O primeiro item, “antecedentes da Primeira Guerra”, continha sete subitens em negrito. A introdução e o primeiro subitem em negrito, denomi

46 O texto sobre a Primeira Guerra, ainda no capítulo de países, na edição 1975, afirmava, por exemplo: “mas, suas causas mais remotas foram as rivalidades imperialistas que dividiram a Europa por meio século. O velho continente era sede de impérios que se espalhavam por quase todo mundo – como era o caso da Inglaterra e da França – e ao mesmo tempo de impérios russos, austro-húngaros e otomanos. No início do século XX, o nacionalismo tomou formas particularmente perigosas, tais como o plano da Grande Sérvia, o pan-eslavismo russo e o movimento de revanche na França. Os dois primeiros estavam intimamente ligados e visavam a união de todos os povos eslavos, contrariando a vontade da Áustria-Hungria. O terceiro nasceu com o desejo de alguns patriotas franceses de vingar a derrota sofrida na guerra contra a Prússia (1870)”. A edição 1994 afirmava: “por meio século, a Europa vem sendo dividida pelas rivalidades imperialistas da Grã-Bretanha, França, Rússia e dos impérios Austro-húngaro e Otomano. No início do séc. XX, o nacionalismo toma formas perigosas: o pan-eslavismo russo e o plano de criação da Grande Sérvia visam à união de todos os povos eslavos; e o revanchismo francês enraíza-se no desejo de vingança da derrota sofrida contra a Prússia em 1870”. Percebe-se que há uma repetição de termos e pequenas mudanças na escrita que, de alguma forma, diminuem o número de palavras.

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nado “rivalidades econômicas e imperialismo”, afirmavam que a disputa por matérias-primas e mercados mundiais pelas potências imperialistas causaram várias competições desde meados do século 19. Em seguida, no subitem “explosão de nacionalismo”, afirma-se que os Bálcãs, a partir de 1908, tornaram-se o foco das disputas imperialistas, em função do declínio do império otomano. Os nacionalismos europeus eram os temas dos próximos subitens: “pan-eslavismo” e “pangermanismo”. Em seguida, explicou-se o “revanchismo francês” como uma forma de vingar e recuperar a Alsácia-Lorena (região rica em minério de ferro e carvão) cedida, em 1870, à Alemanha. O próximo subitem, “crise no Marrocos”, procurou explicar um dos antecedentes mais imediatos da guerra. França e Alemanha disputavam o Marrocos e, após uma série de conferências e conflitos, a França ficou com o território disputado e a Alemanha recebeu o território do Congo. O último subitem, “crise nos Bálcãs”, explicou que os sérvios, apoiados pelos russos, procuraram conter a expansão da Áustria que, ao anexar a Bósnia-Herzegóvina, impedia que a Sérvia organizasse a Grande Sérvia (união dos povos eslavos). O segundo item, “Sistema de Alianças”, afirmou que, no início do século passado, a tensão “entre as grandes potências é tão grande que o conflito já se mostra inevitável. Os países procuram organizar os exércitos, produzir armamentos e fazer acordos entre si para garantir força na disputa”. O item seguinte, “O Mundo em Guerra”, explicou o assassinato de Francisco Ferdinando, entendido como o estopim para a guerra. Afirmou-se que a morte do imperador da Áustria-Hungria, já com 84 anos de idade, não causaria impacto na vida política do império, pois o seu filho estaria pronto para assumi-lo. “É por isso que a morte do seu filho é entendida como um ataque contra o império e a causa imediata da Primeira Guerra” (grifo nosso). Os três subitens posteriores, “objetivos dos conspiradores”, “Sérvia na parede”, “virtual rendição”, explicavam os antecedentes e os desdobramentos do atentado. Segundo o texto, o assassinato começou a ser preparado por militantes de uma sociedade secreta (Mão Negra) que pretendia impedir o plano de reorganização do império, a ser colocado em prática por Francisco Ferdinando. O inquérito para apurar o atentado comprovava a existência de uma conspiração sérvia. A Áustria exigia duras providências oficiais da Sérvia, tais como o fechamento de jornais que faziam propaganda contra o Império, a proscrição

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das sociedades secretas, a exclusão dos acusados de campanha antiaustríaca e a aceitação de cooperação de austríacos no combate ao movimento contrário ao império Habsburgo. Dois dias depois, a Sérvia aceitou quase todos os pontos. Segundo a narrativa do Almanaque, tal fato podia ser encarado praticamente como uma rendição da Sérvia. Porém, a Áustria surpreendentemente não aceitou a resposta sérvia e começou a mobilizar seu exército. Os sérvios faziam o mesmo. A atitude da Áustria “é um sintoma do precário equilíbrio político europeu que antecede o assassinato de Francisco Ferdinando. Pouco antes do atentado, a Rússia, com a concordância da França, deixa claro à Áustria que não aceita qualquer medida de agressão à Sérvia”. Ainda na edição de 1995, no item “O Mundo em Guerra”, o subitem “declaração de guerra” procurava mostrar que ainda havia futuros possíveis, em uma narrativa que buscava romper com a teleologia, ao mostrar as diversas possibilidades existentes no contexto anterior à guerra. Afirmava-se que, em 28 de julho, a Áustria havia declarado guerra à Sérvia. A Rússia mobilizou suas tropas não apenas contra a Áustria, mas contra a Alemanha também: “o kaiser alemão, Guilherme II, apela ao czar russo Nicolau II em favor da paz européia, mas a facção militarista russa convence o soberano a manter a mobilização”. A Alemanha deu um ultimato ao czar exigindo o cancelamento da mobilização: “os emissários do kaiser também procuram as autoridades francesas, na tentativa de deter o conflito. O governo francês deu uma resposta dúbia ao governo alemão e, em seguida, ordena a mobilização de suas tropas”. No dia 3 de agosto, a Alemanha declarou guerra à França. Segundo o texto da Máquina da Memória, a Bélgica era a única passagem possível para que os alemães atingissem a França. Porém, a invasão desse país era “um pretexto” do Reino Unido para entrar no conflito. A alegação foi a existência de um tratado que garantia a neutralidade do território belga.47 Em seguida, explicavam-se as razões que justificaram a entrada do Japão, da Turquia e da Itália na guerra.



47 O apoio do Reino Unido foi requerido por Berlim e Paris. A solicitação do Reino Unido foi a preservação da neutralidade belga, garantida em 1839 e 1870. A Alemanha pede à Bélgica autorização para a passagem de suas tropas sobre o território. Como o pedido não foi aceito, ela invade a Bélgica. Segundo essa explicação, o que determinou a entrada da Inglaterra na guerra ao lado da França não foram os sistemas de alianças, e sim as dinâmicas próprias da crise de julho de 1914 (PROST; WINTER, 2004, p. 55).

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A “entrada dos Estados Unidos” na guerra e a “revolução russa” também foram esclarecidas. Segundo o texto, os americanos justificaram sua entrada na guerra com o argumento de que lutavam contra o autoritarismo e o militarismo. O pretexto foi a declaração das autoridades alemãs que reafirmava o uso de submarinos, inclusive ameaçando afundar navios neutros a caminho de portos britânicos. O texto afirmou que o principal objetivo norte-americano era a preservação do equilíbrio de poder na Europa e, para isso, seria necessário evitar uma possível hegemonia alemã. Uma grande inovação, apresentada pelo texto do Almanaque 1995, foi o subitem denominado “propaganda de guerra”. Afirmou-se que os líderes dos países envolvidos nos dois lados justificaram suas ações, usando os mais nobres motivos: “A Inglaterra fala na defesa das nações mais fracas. A França diz lutar pelos valores eternos do humanismo”. O presidente dos Estados Unidos afirmou que a Entente procurava salvar o mundo do militarismo. “Até os socialistas europeus, que juram lutar contra as guerras promovidas pelos países capitalistas, se transformam em ardorosos patriotas guerreiros”. O kaiser alemão dizia que a guerra contra a Entente era a luta do bem contra o mal, sendo que o bem era a defesa da cultura superior alemã. Os subitens, “estratégia e técnicas de guerra”, “batalhas terrestres” e “novas armas”, davam uma dimensão técnica do conflito. Analisou-se, por exemplo, a utilização da metralhadora, dos tanques de guerra e dos aviões. Os outros subitens denominados “tentativas de paz”, “os 14 pontos”, “fim da guerra” e “rendição alemã” procuraram explicar as possibilidades perdidas pelos acordos de paz negociados e o desfecho final. Afirmou-se que socialistas da Holanda e da Escandinávia procuraram montar uma conferência para conseguir o término da guerra sem anexações ou indenizações. Mas os governos da Entente vetaram a participação dos delegados dos seus países no encontro e barraram outra intervenção do papa. Woodrow Wilson descartou qualquer sugestão de paz que implicasse a manutenção do kaiser no governo alemão. A narrativa da Máquina da Memória apresentou os 14 pontos propostos pelo presidente dos Estados Unidos e explicou também que, em julho de 1918, a guerra estava praticamente decidida e só continuou porque “Wilson exige a deposição do kaiser, mesmo com os alemães aceitando a rendição com base nos 14 pontos”. O texto elucidou que, pela precariedade da situação social alemã, havia várias revoltas sociais. O kaiser fugiu para a Holanda, e um conselho

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provisório socialista assinou um tratado de paz em 11 de novembro de 1918. O subitem “saldo da guerra” afirmava que os confrontos mataram 10 milhões e feriram 20 milhões de soldados, e que a vitória da Entente deveria ser compreendida por sua capacidade de controlar permanentemente as rotas de navios, além ter recebido apoio irrestrito em dinheiro, material bélico e provisões dos aliados e de dezenas de países neutros. O último subitem, ainda do item “O Mundo em Guerra”, denominado “Tratado de Versalhes”, afirmava que o tratado, que contou com a participação integral das 27 nações vencedoras, foi implacável com os vencidos: “os alemães são obrigados a aceitar essas condições que serão o germe da Segunda Guerra Mundial. (...) Os 14 pontos propostos por Wilson são praticamente postos de lado”. Mas o tratado só foi assinado pelos representantes alemães após a ameaça de invasão da Alemanha pelos exércitos vencedores. Analisou-se, ainda, a “Liga das Nações”, “As imposições do Tratado” e as “conseqüências da guerra”. Em consonância com a visão pacifista do pósguerra, afirmou-se que a Primeira Guerra Mundial foi vista como a “guerra destinada a acabar com todas as guerras” e que ela plantou as sementes do próximo conflito mundial: “o nacionalismo e o militarismo não desaparecem e surgem novos totalitarismos”. Mais à frente, afirmou-se que “tem-se o início da participação da mulher no mercado de trabalho e sua posterior emancipação, em conseqüência de seu papel decisivo no esforço de guerra”. O texto do Almanaque concluiu afirmando que as esperanças do pós-guerra logo foram abandonadas. A maioria dos países mergulhou em formas de totalitarismo “do comunismo ao fascismo e nazismo”. Pode-se perceber uma transformação desse longo texto da edição de 1995 em relação às edições anteriores. O argumento, até a edição de 1994, continha explicações essencialmente políticas e era focado na realidade europeia. Outro aspecto interessante é que as “responsabilidades” sobre as causas e o desenrolar da guerra, no texto da edição de 1995, foram compartilhados com várias nações e não só com Alemanha, Rússia, Inglaterra e França. Além disso, a análise era bem mais minuciosa. O evento na edição de 1995, em boa medida, deixou de ser percebido de forma infrassignificativa e foi analisado do ponto de vista supersignificativo.48

48 RICOEUR, 1991b.

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Dentro dos limites de uma obra de referência, a Máquina da Memória procurou articular evento e estrutura a partir de uma dimensão de totalidade. Essa edição teve como consultora de História a professora da Universidade de São Paulo (USP), Janice Teodoro. Poderia parecer simplista afirmar que apenas a consultoria de um acadêmico seria suficiente para que os textos da publicação atingissem um nível de sofisticação? No final deste capítulo, retornar-se-á a essa questão. Como já foi dito, a edição de 1996 sofreu transformações importantes para se adaptar à ordem alfabética e para direcionar os textos do Almanaque Abril a um público jovem. Fez-se um novo texto para o evento em questão, pois todos os textos Almanaque foram reescritos. Essa mudança no projeto editorial da publicação acabou por eliminar a análise mais sofisticada publicada na edição de 1995. O número de páginas destinado ao evento também diminuiu pela metade (de aproximadamente duas páginas e meia na edição de 1995 para uma página e meia na edição de 1996). Pode-se dizer que havia, na Máquina da Memória, três argumentos explicativos para a Primeira Guerra Mundial. O primeiro sobreviveu da edição de 1975, ainda no capítulo “Assuntos Militares”, até a edição de 1994. O segundo esteve presente apenas na edição de 1995. Por fim, o texto que foi apresentado pela edição de 1996 perdurou até a edição de 2006. O texto referente à edição de 1996 afirmou que a Grande Guerra foi o primeiro conflito armado a envolver diretamente as grandes potências imperialistas da Europa e do mundo. Mais de 8 milhões de soldados e 6,5 milhões de civis foram mortos: “a vitória ficou com os aliados da França, mas teve como conseqüência principal a perda, pela Europa, do papel de liderança planetária”. Os Estados Unidos, a partir daí, passaram a ser o centro de poder do capitalismo. A reorganização do cenário político europeu e as condições humilhantes impostas ao perdedor (Alemanha) são as causas da Segunda Guerra. Outro aspecto destacado foi o surgimento, durante o curso da guerra, do primeiro Estado socialista (União Soviética).49

49 Ao longo do texto dessa edição, encontravam-se, em destaque, outros temas que o leitor poderia consultar no Almanaque, formando uma espécie de remissão eletrônica. Esse recurso foi muito utilizado pelas edições 1996-1998, porém foi progressiva e parcialmente abandonado. Na edição 1996, foram destacados, ao longo do texto sobre a Primeira Guerra Mundial, os seguintes temas: Europa, Alemanha, França, capitalismo, Tratado de Versalhes, Segunda Guerra Mundial, nacionalis-

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Após esse trecho introdutório ao verbete Primeira Guerra, pequenos textos com subitens em negrito explicavam a guerra, a saber: “o cenário antes da guerra”, “preparativos”, “o mundo em guerra”, “avanço alemão”, “a paz” e “Tratado de Versalhes”. Além da mudança na estrutura do texto em relação ao ano anterior, foram acrescentadas algumas novas informações, outras foram suprimidas ou substituídas. Sobre o “cenário” anterior ao conflito, afirmou-se que, na virada do século 19, em função da Guerra Franco-Prussiana e da unificação, a Alemanha tornou-se um dos países mais poderosos da Europa. Essa nova potência ameaçou o poderio da Inglaterra, Rússia e França. Os “preparativos” tratavam da criação do sistema de alianças. O terceiro subitem, “o mundo em guerra”, afirmava que Francisco Ferdinando e sua esposa foram assassinados por um estudante anarquista (e não mais um terrorista sérvio, Gavrilo Princip, como se afirmava da edição de 1975 até a edição de 1994: A edição de 1995 afirmava apenas: “o assassinato do arquiduque austríaco, em Sarajevo, na Bósnia-Herzegóvina, pelo estudante bósnio Gavrilo Princip é encarado como um ataque contra o império e a causa imediata da Primeira Guerra Mundial”). Praticamente o contrário do que dizia a edição do ano anterior, a edição de 1996 afirmava que o governo sérvio relutava em atender às exigências dos austríacos: “o diabólico sistema de aliança, que impera no continente, arrasta o restante dos países europeus ao conflito”. As ações alemãs destinadas a evitar o conflito foram suprimidas. As explicações sobre a entrada dos Estados Unidos no conflito foram as seguintes: “com a derrota militar russa consumada, os Aliados correm o risco da Alemanha avançar pela frente oriental e dar um xeque-mate na França. A situação leva os Estados Unidos a entrarem diretamente na guerra”. Afirmavase, ainda, que, durante o período em que estiveram neutros, os americanos tinham enriquecido vendendo armas e alimentos aos Aliados, além de dominar os mercados latino-americanos e asiáticos. Como na edição anterior, afirmouse que o objetivo americano era “preservar o equilíbrio de poder na Europa e evitar uma possível hegemonia alemã”. As partes referentes à propaganda e às “inovações técnicas” foram suprimidas. Explicou-se melhor, no subitem “A

mo, Guerras Balcânicas, Otto von Bismark, Reino Unido, Bélgica, Japão, Guerra Russo-Japonesa, Revolução Russa, Polônia, comunismo, fascismo, nazismo, Oriente Médio, Arábia Saudita, Síria, Líbano, Palestina e Jordânia.

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paz”, que os 14 pontos de Wilson foram a única proposta de paz que ganhou grande importância, inclusive entre a população alemã, principalmente em função de sua ideia de uma “paz sem vencedores” e sem anexações. Porém, a capitulação alemã e a resistência americana ao kaiser também foram suprimidas. No item sobre o Tratado de Versalhes, ao contrário da edição anterior (em que se dizia que havia uma ameaça de invasão), afirmou-se que a Alemanha foi pressionada por um embargo naval para ratificá-lo. O trecho referente às consequências da guerra, que continha uma análise sócio-histórica na edição passada, foi suprimido, restando apenas a análise de cunho político.50

50 O capítulo referente à história na obra de referência francesa Quid era, em geral, mais tradicional que o do Almanaque Abril. Até a edição 1969, não havia qualquer capítulo referente a esse saber. Nesse ano, surge um capítulo sobre história da França. Desde então, tudo que se referia diretamente à história era tratado nesse capítulo. Mesmo a história dita “geral” era contada a partir da história da França. Em 1969, havia apenas uma pequena cronologia da guerra. Dez anos depois, o Quid procurava introduzir alguma narrativa e análise. Para esse livro, a guerra teve cinco causas. A primeira se referia às numerosas rivalidades entre as potências europeias. A segunda razão destacada foi a corrida armamentista. A terceira razão era o menosprezo ao poderio adversário. A quarta razão referia-se à presença de vários políticos belicistas no poder na Europa (incluindo a França, mas o chanceler alemão “Bethmann-Holweg não é um belicista é um medíocre”, pois ele pensava que a guerra poderia ser feita com a Inglaterra neutra). A quinta razão foi que a Inglaterra preferia a neutralidade, mas sob a condição de que a neutralidade belga fosse preservada, fato praticamente impossível. O Quid perguntava se a guerra era evitável. A resposta explicava o que os homens e diplomatas de Estado poderiam ter feito pela paz. Havia um item sobre o desenvolvimento da guerra, em que se destacava cronologicamente cada batalha e outros fatos da guerra, como a epidemia de gripe espanhola na França. Depois desse item, apresentava-se o custo da guerra para a França em uma tentativa de justificar o pedido de reparação. Apresentavam-se, também, alguns números de mortos civis e a quantidade proporcional de franceses mortos, tendo em vista os outros exércitos. Em 1983, para se explicar o desenvolvimento da guerra, foram introduzidas algumas informações sobre a guerra de movimento e sobre algumas das táticas dos militares em questão. Foi introduzido um item denominado, ironicamente, de “inúteis massacres”. Uma questão introduzida foi se a guerra poderia ser mais curta. Esses textos da edição 1983 não substituem os da edição 1979. Tratava-se de uma ampliação. Até a edição 2005, utilizou-se o mesmo texto com ligeiras alterações. Apesar de sua interpretação excessivamente nacionalista, para o Quid, o mais importante era oferecer o dado bruto. Mas, talvez se possa entender a presença desses dados como uma estratégia comercial. No fim dos anos 1970, os manuais escolares franceses começaram a se preocupar cada vez

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Portanto, apesar de ensaiar algumas passagens para uma história das relações internacionais e para uma história social, a história da Primeira Guerra narrada pelo Almanaque Abril estava, grosso modo, circunscrita ao que Antoine Prost e Jay Winter denominaram “primeira configuração historiográfica”. A Máquina da Memória queria explicar as causas, os objetivos e as consequências da “Grande Guerra”. Contudo, após um século, será possível saber, tendo em vista as pesquisas históricas que “nutrem” os textos do Almanaque, quais as causas e objetivos da “Grande Guerra”? O artigo 231 do Tratado de Versalhes afirmou que a Alemanha e seus aliados eram os responsáveis por terem causado todas as perdas em todos os domínios. Esse artigo, inicialmente, pretendeu responsabilizar a Alemanha para justificar juridicamente as reparações de guerra. Como eles eram os agressores, eram também os responsáveis pelo conflito. Tratava-se de uma questão importante para o pagamento de dívidas de guerra. Na Alemanha, logo após a guerra, alguns historiadores se mobilizaram para estabelecer a inocência alemã, ao passo que, na França, os historiadores afirmaram que a Alemanha e a Áustria eram os responsáveis. Alguns historiadores, entretanto, propuseram uma interpretação intermediária. Consideravam que a responsabilidade principal havia sido dos alemães e austríacos, mas havia bastante responsabilidade francesa e russa. Essa interpretação afirmava que os Aliados não fizeram tudo para impedir a guerra. Essa interpretação da responsabilidade alemã, porém, não exclusiva, foi longamente difundida na França pelos manuais didáticos franceses.51 Progressivamente, os historiadores dessa “primeira configuração”, em sua maioria, procuraram substituir em suas análises a crise de julho por um contexto mais amplo, daí a conceituação de causas profundas e causas imediatas. Essa concepção, presente nas narrativas do passado do Almanaque Abril da primeira até a edição de 1994 (e de certo modo até a edição de 1995, pois se citava o assassinato como uma “causa imediata”), foi construída pelo histomenos com as operações militares, estratégias, táticas, armas, batalhas, entre outros, passando a discutir questões econômicas, o papel dos Estados, vida e morte dos combatentes, progressos tecnológicos, dentre outros (TISON, 1994). Nesse sentido, o Quid acabou se tornando uma das poucas publicações destinadas ao grande público a oferecer esse tipo de informação.

51 Ver Tison (1994).

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riador francês Pierre Revouvin, nos anos 1920. A noção de causas profundas foi retirada de um texto de Henri Berr. Foram esses dois conceitos que permitiram que Renouvin saísse do círculo estreito dos embaixadores e chefes de Estado.52 Ao operar esse deslocamento, transformou a história diplomática, um dos símbolos da história dita “tradicional”, em história das relações internacionais. “Ao mesmo tempo em que o historiador pensa o papel respectivo das condições que tornam possível o evento, ele deve se defender contra a ‘ilusão retrospectiva da fatalidade’”. A contradição que os historiadores das origens pretendem superar é, em certa medida, insuperável, pois “após uma longa busca das causas profundas, eles retornam sempre ao caráter contingente do começo de uma guerra”.53 O próprio Pierre Renouvin afirmou que as causas profundas não eram suficientes.54 François Furet, ao analisar a Grande Guerra, afirmou que, quanto mais pesadas, fortes e traumáticas forem as consequências de um evento, mais difícil é pensá-lo a partir de suas causas.55 Dessa forma, pode-se afirmar que as representações do passado das narrativas da Máquina da Memória incorporaram uma produção historiográfica legítima e tradicional, na medida em que a guerra foi, em praticamente todas as edições, tratada dentro dos limites dos Estados Nacionais, deixando de lado os aspectos culturais e humanos. Porém, essa história dita “tradicional” ou “positivista” foi relativizada, com a incorporação dos conceitos de causas imediatas e causas profundas, cunhadas pela historiografia a fim de romper com uma história centrada na figura dos grandes líderes e com as explicações centradas na curta duração. Antoine Prost destaca que a divisão entre “causas imediatas ou superficiais” e “causas profundas” implica certo rompimento com o determinismo, pois se procura hierarquizar as causas. Sem romper com o pensamento causal, o autor sugere que talvez seja mais eficiente pensar em causas finais, materiais e acidentais, bem como nas condições de emergência do acontecimento.56



52 PROST; WINTER, 2004, p. 62. Ver Renouvin (1927, 1955).



53 Ibid., p. 63.



54 PROST; WINTER, op. cit., p. 63-64.



55 FURET apud REVEL, 2001, p. 102.



56 PROST, 1996, p. 171.

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1930-1945: os “Anos” Vargas A primeira dificuldade no estudo da chamada “Era”, “Período” ou “Anos” Vargas é a de considerar o momento que vai de 1930 até 1945 como uma continuidade, ou mesmo uma totalidade. O elemento que possibilita essa continuidade é, contudo, a permanência de um mesmo personagem, nesses 15 anos, Getúlio Vargas. Figura marcante e central para compreensão desse momento histórico, principalmente se levamos em conta a afirmação de que “a historiografia não pode ignorar os personagens que se destacam na cena da história”, “sobretudo em nós, que temos uma tradição de política personalista”.57 Desse modo, os marcos de 1930, 1937 e 1945 representaram rupturas institucionais importantes da história do Brasil e fundamentais para a compreensão dessa dinâmica histórica. Ainda nos anos 1930, o conceito de “revolução de 1930” impunhase como central para os atores políticos.58 Mas essa “revolução”, ao mesmo tempo em que era uma ruptura com a ordem legal, marcava também o início de transformações estruturais do país, sendo o “povo” seu legitimador. Um grande número de análises ditas “objetivas” e outras de cunho memoralístico foram construídas com a finalidade de explicar e consolidar o evento “Revolução de 1930”. Para Barbosa Lima Sobrinho, em 1933, o movimento de outubro de 1930 foi uma “guerra de estados”, “uma cisão das oligarquias estaduais originada no sentimento regionalista, com uma feição pequenoburguesa e grande apoio popular, baseada na impopularidade do poder público”. Lima Sobrinho, segundo Vavy Borges, “desacredita expressamente a versão do PCB então em voga como ‘a fantasia’ das interpretações de luta



57 CAPELATO apud BORGES, Vavy Pacheco. Anos Trinta e Política: História e Historiografia. In: FREITAS, Marcos Cezar (Org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. p. 440. Ainda sobre essa questão, Borges (1998) afirmou: “Embora ainda se encontre freqüentemente essa periodização (‘anos Vargas’), a história pelas grandes figuras está há décadas proscrita na universidade; entretanto, com a reafirmação recente do papel do indivíduo na sociedade, os historiadores da política voltaram a se preocupar com o papel que os grandes personagens tiveram, têm e provavelmente sempre terão na política; suas ações, se não explicam a história toda, têm nela um peso muito significativo que cabe ao historiador aquilatar” (p. 159-160).



58 BORGES, 1998, p. 166.

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entre o capital inglês e o americano”.59 Logo após o golpe do Estado Novo, procurou-se vincular 1930 e 1937. Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e Francisco Campos logo se encarregaram dessa tarefa. Este último, por exemplo, já em 1938, afirmava: “assim novembro de 37 efetiva outubro de 30”.60 O movimento de outubro de 1930 começou, pois, a se enraizar e a se construir a partir de uma representação “que atravessa essa História política brasileira: a imagem e/ou idéia da ‘revolução’”.61 A historiografia do evento 1930 tem sido marcada por duas interpretações que nasceram ainda nos anos 1930. A primeira, que “reina soberana” até os dias de hoje, “destaca uma ruptura, o que constituiria a intenção bastante bemsucedida daqueles no poder, que acabou por construir uma ‘história oficial’; a idéia de ruptura perdura até em revisões que se querem radicais”.62 Outra linha de abordagem interpretou o movimento de outubro de 1930 como uma troca de homens no poder. Essa interpretação contém pouca força explicativa pois, mesmo que se perceba continuidades do ponto de vista político administrativo, muitas alterações deram-se a partir de 1930. É esse ponto que torna a primeira interpretação majoritária, ainda que com o ônus de frequentemente apagar as diversas possibilidades e alternativas históricas presentes naquele momento.



59 BORGES, 1998, p. 166.



60 CAMPOS apud BORGES, 1998, p. 166. Segundo Ângela de Castro Gomes (2000): “a revolução de 1930 só foi o primeiro passo para o Estado Novo, porque assim o disseram e quiseram os ideólogos desse regime que, com tal afirmativa, sagravam tanto o destino centralizador de nossa história política como a grandeza de sua liderança máxima. Os anos que decorrem entre outubro de 1930 e novembro de 1937 são dominados por conflitos e negociações, violentos e delicados, conformadores de uma ‘incerteza’ que só cessou quando as forças vitoriosas definiram que ‘entre o povo e o governo não haveria mais intermediários’” (p. 514-515).



61 BORGES, op. cit., p. 170.



62 BORGES, 1998. Em 1993, Francisco Iglésias entendeu a “linha divisória de 1930” como um momento marcante, pois “a tentativa de ‘republicanizar a República’ tem seu momento expressivo em 1930” (IGLÉSIAS, 1993, p. 231). Em 2001, José Murilo de Carvalho afirmou: “afinal, 1930 foi uma versão muito melhorada do golpe de 1889. (...) Sobretudo, o movimento de 1930 distinguiu-se do de 1889 pelos resultados. Ele redefiniu de imediato a agenda política nacional, recolocou o Estado na liderança da nação, trouxe a questão social e sindical para o centro do palco, gerou movimentos de mobilização popular, provocou uma explosão de criatividade entre os pensadores da sociedade e da política” (CARVALHO, 2001, p. 87).

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Após 1964 e 1968, a “revolução de 1930” foi retomada com vigor, sendo interpretada como um dos grandes marcos de transformação do país, de acordo com as análises marxistas que procuravam romper com a “historiografia tradicional”: “se até os anos 60 as relações entre os historiadores e as camadas dominantes eram evidentes, tal tendência se reverteu nas décadas seguintes”.63 Tratava-se de pensar a questão da revolução burguesa no Brasil. Ainda nos anos 1960, surgiram análises factuais de grande valia, destacandose os trabalhos de Hélio Silva, Edgar Carone e do brasilianista Thomas Skidmore, cujas sínteses posteriores influenciaram a escrita do Almanaque Abril, de livros didáticos e outras obras.64 Na década seguinte, a interpretação de Francisco Weffort se impôs, influenciando bom número de trabalhos históricos.65 Essa interpretação enfatizou o que se denominou “Estado de compromisso”. A Primeira República foi marcada pela hegemonia da burguesia cafeeira. Vargas estabeleceu o Estado como uma espécie de árbitro entre grupos divergentes. Começou-se a perceber que o movimento de 1930 não era fruto de um luta entre as estruturas agrárias e a indústria, como teria ocorrido nas “revoluções burguesas europeias”. Destacou-se que 1930 e os anos seguintes foram marcados por uma luta entre as oligarquias e o tenentismo. Em 1970, Boris Fausto destacou a existência de duas tradições explicativas no interior da tradição marxista: “uma, sintetiza o episódio revolucioná

63 BORGES, 1998, p. 170. Nessa linha, uma interpretação que se impôs, na década de 1970, foi a de Luiz Werneck Vianna. Para o autor, inspirado em Lênin e em Gramsci, em 1930, percebe-se uma ruptura, uma revolução burguesa pela via prussiana. Tratava-se da revolução pelo alto (“revolução passiva”), responsável pela modernização conservadora do país (VIANNA, 1978, 2001, p. 111-154).



64 Ver Skidmore (1969); Fausto (1984, 1994) e Iglésias (1993).



65 WEFFORT, Francisco. Classes Populares e Política. 1968. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1968; WEFFORT, Francisco. O Populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. Esse autor, na introdução do seu livro, em 1978, afirmava que “quando começam novamente a aparecer no horizonte os sinais de um possível ressurgimento das classes populares na política brasileira, talvez valha a pena voltar a refletir sobre as experiências do passado, afinal tão recente ainda”. Nesse sentido, seu estudo pretendia discutir duas questões: “como entender as formas populistas da emergência das massas populares na política? Como entender o duplo paradoxo do populismo, de setores dos grupos dominantes que promovem a participação dos dominados e de massas que servem de suporte para um regime no qual são dominadas?” (WEFFORT, 1978, p. 11).

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rio em termos de ascensão ao poder da burguesia industrial; a outra, define-o como revolução das classes médias”.66 O autor contestou essas duas tradições, pois elas negariam a “a existência de classes nacionais cujos conflitos polares nos anos 20 poderiam explicar a revolução de 1930”.67 A “revolução de 1930” foi percebida como um conflito intraelites e uma disputa regional. A partir daí, houve o fim da hegemonia da burguesia cafeeira e mudanças na atuação do Estado. O “Estado de compromisso”, mediante uma influência direta da tese de Weffort, explicaria a “revolução” e seus desdobramentos. A partir dessa análise, começou a ser aceita a ideia de que 1930 seria uma ruptura com um Estado oligárquico. “Vitoriosa a revolução, abre-se uma espécie de vazio de poder, por força do colapso político da burguesia do café e da incapacidade das demais frações de classe para assumi-lo, em caráter exclusivo. O Estado de compromisso é a resposta para esta situação”. Fausto ainda destaca que “a mudança das relações entre o poder estatal e a classe operária é a condição do populismo; a perda do comando político pelo centro dominante, associada à nova forma de Estado, possibilita, a longo prazo, o desenvolvimento industrial, no marco do compromisso”.68 Em 1980, os historiadores começaram a se interrogar sobre as descontinuidades e as possibilidades que marcaram o período que vai de 1930 até 1937,69 procurando superar ou ir além das dicotomias entre direita e esquerda, comunismo e integralismo, mudanças e permanências. Ao serem enfatizados temas como nacionalismo, industrialização, classes médias e classe operária, iniciou-se um processo denominado por Vavy Borges de transição da “régua ao caleidoscópio ou da ideologia à representação”.70 Em certo sentido, os trabalhos de Edgard de Decca e Carlos Alberto Vesentini representaram marcos, na medida em que procuraram pensar a relação entre a memória, a historiografia, o silêncio e a construção do fato “1930” por meio da ênfase em como os vencedores constroem e legitimam uma memória: “a concepção da história

66 FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: história e historiografia. São Paulo: Brasiliense, 1970. p. 11.



67 BORGES, 1998, p. 175.



68 FAUSTO, 1970, p. 113.



69 Ver Gomes (1980).



70 BORGES, op. cit., p. 179.

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não como um processo único e por vezes inexorável, mas como um campo de possibilidades, começava a despontar para alguns historiadores”.71 Para Maria Helena Capelato, a partir dos anos 1980, os estudos sobre o varguismo – em especial sobre os “anos 30” e o Estado Novo – ganharam destaque nas pesquisas históricas. Segundo a autora, um ecletismo conceitual foi utilizado para definir o regime estadonovista por meio de conceitos como: populista, bonapartista, autoritário, fascista, totalitário. Os estudos sobre o populismo realizados até a década de 1980 consideravam a “Revolução de 30” e o golpe de 1964 como marcos desse momento, em que o populismo era considerado um todo indiferenciado característico do capitalismo brasileiro: “a nova historiografia propõe um caminho inverso: privilegia as particularidades nacionais”.72 Esses trabalhos ligados a uma nova história política recusaram a ênfase no estrutural e os enfoques deterministas ao destacarem as liberdades de escolha e as ações dos sujeitos. Essas mudanças estavam inseridas, dentre outras razões, em um movimento que começa nos anos 1970 e vai estendendo até os dias atuais, focado na tentativa de compreender as raízes e a persistência do autoritarismo brasileiro, as causas do golpe de 1964 e as dificuldades de consolidação da democracia no país.73 Em especial, procurou-se destacar o político e o cultural.74 Deve-se enfatizar que alguns desses trabalhos procuraram recu

71 Borges, 1998, p. 180. Ver Vesentini; Decca (1976); Decca (1980) e Vesentini (1997). Esses trabalhos pretendiam pensar como o vencedor da história impõe a memória da sua vitória. Analisando o artigo “A revolução do vencedor”, Vesentini (1997, p. 17) afirmou: “o balanço do material até então trabalhado nos levou a pensar o ângulo da memória histórica projetada pelo vencedor (...). A partir daqui, o ano de 1930, como fato, transparecia como idéia componente da memória do vencedor. Finalmente, mudava a qualidade da documentação compulsada: de material ‘neutro’ passava a se constituir num agente ativo de organização da memória”.



72 CAPELATO, Maria Helena Rolim. Estado Novo: Novas Histórias. In: FREITAS, Marcos Cezar (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. p. 183-213.



73 Ver, também, Gomes (1996).



74 Para Capelato (1998), até os anos 1970, boa parte da produção sobre o período é de sociólogos e cientistas políticos: “a bibliografia mais específica sobre o Estado Novo está agrupada em três linhas: estudos que procuram mostrar a política trabalhista como uma conquista da classe trabalhadora, e não como doação (...); estudos que defendem a tese da hegemonia e da autonomia do Estado na condução do processo histórico (...); e estudos que relacionam o processo de forma direta aos interesses

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perar a resistência de trabalhadores ou mesmo a aceitação à política trabalhista. Dentre esses estudos, destacou-se o trabalho pioneiro de Ângela de Castro Gomes,75 que procurou pensar a adesão dos trabalhadores tanto a partir de uma lógica material de se beneficiar com as políticas “populistas”, como também de uma lógica simbólica de formação e mobilização de identidade. Procurou-se, a partir daí, recuperar as experiências dos trabalhadores para além da história institucional, buscando o rompimento com os determinismos e variáveis socioeconômicos que caracterizavam os estudos sobre o populismo. A maioria dos trabalhos sobre o “populismo” o entendia como um momento de transição de uma sociedade tradicional para a moderna, como uma etapa do desenvolvimento latino-americano, sendo a política de massas um momento necessário para a construção de uma sociedade desenvolvida e democrática, ou mesmo socialista: “as pesquisas realizadas na década de 80 recusaram as teses que apontavam para a fragilidade e inconsciência da classe trabalhadora e da classe burguesa, privilegiando o Estado como sujeito do processo histórico”.76 Foram deixadas de lado as concepções do “populismo” como um momento de manipulação e controle das massas “passivas” e se iniciou uma revisão de seu marco temporal. Para muitos, dado o caráter autoritário do Estado Novo, não é possível considerá-lo como um regime “populista”. A política varguista, embora tenha sido inovadora em vários aspectos, em outros, “deu continuidade a procedimentos arraigados na tradição política brasileira, como é o caso da prática de valorização das elites e exclusão das massas, que explica a limitada preocupação em mobilizá-las para uma atuação mais próxima do poder”.77 O conceito de “populismo” foi visto como uma espécie de “mal” do privado e do público, constituindo-se na melhor tradução do impasse para a conquista da modernidade política. “Seu prestígio ainda não foi muito abalado, quer no espaço acadêmico, quer, sobretudo, numa retórica política pre-

do capital industrial” (p. 189). A autora destaca que a maioria desses textos precisaria de embasamento empírico. Sobre os trabalhos que representaram mudança na abordagem do tema no interior da historiografia, ver Capelato (1998).

75 GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. São Paulo: Vértice, 1988.



76 CAPELATO, 1998, p. 447-448.



77 Ibid., p. 212.

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sente nos meios de comunicação de massa e no senso comum da população”.78 Ele foi percebido como produto de um longo processo de transformação da sociedade brasileira, instaurado a partir da “Revolução de 1930” e que se manifestou como estilo de governo e como política de massas. O atraso brasileiro não era mais explicado pela “herança colonial” e, sim, pelo “liberalismo oligárquico da Primeira República e para as bases do poder do Estado pós-30, postulado como um ‘Estado de compromisso’”. “Nesses termos, numa leitura inversa e perversa, não foi o ‘populismo’ o que limitou nossa experiência democrática, mas o que a possibilitou”.79 Para pensarmos como esse universo de disputas, de divergências e de interpretações se transformam em história e em memória nas páginas do Almanaque Abril, apresentar-se-á uma análise mais detida dos textos divulgados em nossa fonte/objeto. Desde a edição de 1979 até a edição de 1986, prevaleceu a veiculação de três grandes boxes explicativos: a “revolução” de 1930, a biografia de Vargas e o período Vargas. Esses boxes eram adaptações de textos que estavam no capítulo “Assuntos Militares” desde a edição de 1975. No primeiro box, a revolução foi tratada como um desdobramento de fatores políticos, mas também econômicos: “em 1929, o crack da Bolsa de NY repercutiu seriamente no Brasil, cuja situação política estava em crise há uma década”. Afirmou-se que “trabalhadores e classe média viviam num clima de instabilidade, pelo fato de o sistema político vigente não atender mais às necessidades do ainda incipiente desenvolvimento industrial capitalista. Dominava o país uma oligarquia agrária e latifundiária”. As causas estariam associadas à crise econômica (o crack da Bolsa) e ao desgaste político (promovido pela “política do café-com-leite”, presente no Brasil desde 1894). Foi a Aliança Liberal que deu consistência e efetivou a “Revolução”. A instituição de uma nova ordem, no Brasil, com a vitória da “Revolução”, articulada por Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, viria a solucionar as questões já referidas

78 GOMES, Ângela M. de Castro. A política brasileira em busca da modernidade: na fronteira entre o público e o privado. In: SCHWARCS, Lilia Moritz. História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 544-551.



79 GOMES, loc. cit. Os trabalhos de Jorge Ferreira também têm sido importantes para a revisão do período, especialmente no que diz respeito ao conceito de “populismo” e à relação dos trabalhadores com o governo Vargas (FERREIRA, 1997).

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e desbancar “a máquina eleitoral do governo, apoiada pelos ‘coronéis’ da oligarquia agrária”. Destacou-se que o papel dos “tenentes” nas revoltas da década de 1920 foi primordial para a efetuação da “revolução”. Foram destacadas curtas biografias dos três chefes militares que, por meio do governo provisório, deram garantia à revolução: Augusto Tasso Fragoso, João de Deus Mena Barreto e José Isaías de Noronha. É interessante observar essas biografias na medida em que esses personagens são pouco conhecidos pela historiografia. A biografia de Getúlio Vargas, presente no segundo box, apresentava uma narrativa de seus primeiros anos, sua formação e sua experiência como político: “embora, até então, tivesse tido o comportamento e a carreira comuns aos políticos da Velha República, sua trajetória no poder foi diferenciada”. Isso porque Getúlio Vargas, como chefe do novo governo, não negligenciou as massas populares. Ao contrário, soube buscar nelas o apoio ao seu governo. Nesse ponto, o conceito de “populismo” foi utilizado sem maiores questionamentos e discussões acerca de suas implicações: “Vargas inaugurou um tipo de política que ficou conhecido como ‘populismo’”. Adiante, ressaltou-se que ele “reorganizou o movimento sindical de cima para baixo, criando, ao mesmo tempo, um canal para as reivindicações populares e uma dependência deste movimento em relação ao Estado”. Afirmou-se que ele, assim, “garantia o apoio às massas, ao mesmo tempo em que criava uma forma de controlá-las”. Outro aspecto da forma “getulista” de governar, para o qual aponta o Almanaque, foi o caráter nacionalista de suas ações. Entretanto, o texto da publicação fez isso sem questionar o que constituiu e representou esse nacionalismo, associado, basicamente, a critérios econômicos, como, por exemplo, a criação do Conselho Nacional de Petróleo que, posteriormente, originou a Petrobras. O terceiro box tinha por objetivo a elaboração de uma visão geral acerca da chamada “Era Vargas”. O box iniciava sua explicação pelas transformações na economia, “o período de quinze anos em que Vargas permaneceu no poder foi pleno de acontecimentos que transformaram a política e a economia do país (...)”, ou ainda “em termos gerais, o período é favorável à industrialização”. O populismo foi novamente reiterado como aspecto favorável à incorporação social: “a tendência populista de sua administração permitiu a participação de setores anteriormente marginalizados (classe média e massas populares urbanas), ao mesmo tempo em que institucionalizou e controlou

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os movimentos dessas parcelas da população”. As concessões políticas, principalmente em relação aos “interesses das oligarquias agrárias”, também foram evidenciadas: “o que torna as coisas diferentes é que nesse momento, tais setores encontram-se fora do poder: em relação aos antigos donos do poder, a política de Vargas é mais uma política de concessões”. É interessante ressaltar a utilização do termo “donos do poder”, consagrado pelo livro de Raimundo Faoro. O texto afirmava que essas “concessões” referiam-se, principalmente, às mobilizações dos comunistas e integralistas. A Revolução Constitucionalista foi apontada como o primeiro conflito enfrentado pelo governo provisório, tendo sido uma revanche ocasionada pelo fim da política do café-com-leite e pela ausência da participação decisória de São Paulo no novo governo. Uma das “consequências” da revolução foi a convocação da Assembleia Constituinte e a promulgação da Constituição em 1934. Destacava-se a intervenção estatal na economia; as “conquistas trabalhadoras”, por meio da instituição do salário mínimo e a criação da representação sindical no Congresso Federal. A oposição entre as duas doutrinas de maior destaque no período, fascismo e integralismo, era apresentada como resposta à radicalização ideológica do mundo: “crescia o movimento integralista, inspirado na ideologia do fascismo. Para combatê-lo, surgiu a ANL, que tinha como programa combater o imperialismo anglo-americano e o fascismo, pela liberdade”. O motivo político da instauração do Estado Novo era atribuído à divulgação do Plano Cohen e também, em segundo plano, ao desmantelamento das pretensões paulistas. O Estado Novo foi definido, afinal, pela intervenção nos Estados e pela crescente preponderância do Executivo. O fim do período foi associado ao desgaste político do governo (ação policial e repressora) e à nova ordem mundial, originada após a Segunda Guerra Mundial. A ação militar que depõe Getúlio foi explicada pelo temor dos generais à “pressão popular”, fruto do “queremismo”, que poderia “alterar o processo de redemocratização”. A edição de 1979 explicou o golpe do Estado Novo do seguinte modo: A Ação Integralista, chefiada por Plínio Salgado, apoiava Getúlio e as medidas autoritárias que este tomava, enquanto as oligarquias tradicionais preparavam-se para substituí-lo. Flores da Cunha, do Rio Grande do Sul, pretendia vir a ser o novo presidente, e São Paulo apresentou um candidato para as eleições de 1938: Armando de Sales Oliveira. No dia 7/9/1937, o general Góes Monteiro enviou suas tropas

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para o Rio Grande do Sul, a pretexto das comemorações do Dia da Pátria, mas, na realidade, para dominar a situação. Flores da Cunha fugiu para o Uruguai e foi substituído pelo general Daltro, da confiança de Getúlio. Para resolver o problema de São Paulo a única solução era evitar as eleições de 1938. Para isso divulgou-se o Plano Cohen (corruptela de Bela Kuhn – antigo líder comunista húngaro), do general Olímpio Mourão Filho. O plano, que divulgava os objetivos de um suposto golpe comunista, tinha como meta criar um clima de terror entre a população, para justificar um golpe que permitisse a Getúlio continuar no poder (...). Getúlio havia marcado o golpe para o dia 15 de novembro, mas, no dia 9, foi lida na Câmara dos Deputados uma denúncia feita pelo candidato paulista, que pedia o apoio dos chefes militares para a “legalidade sobreviver”. O golpe tinha sido revelado. Na manhã do dia 10, o Exército e a polícia militar cercaram a Câmara e o Senado. Nesse mesmo dia, Getúlio Vargas outorgou a nova Constituição, redigida em 1936 por Francisco Campos. O golpe do Estado Novo havia instituído novo regime no país.

Os conteúdos, até a edição de 1994, permaneceram ora suavizando, ora reiterando os argumentos já tratados. A edição de 1979 afirmou: “O período de quinze anos em que Vargas permaneceu no poder foi pleno de acontecimentos que transformaram a política e a economia do país”, ao passo que, na edição de 1989, encontramos a seguinte afirmação: “Os anos em que Getúlio Vargas permaneceu no poder transformaram a política e a economia do Brasil”. Esse fenômeno de reescritura dos mesmos textos, como já notamos quando se tratou da Primeira Guerra, foi recorrente ao longo da história da publicação.80 Percebem-se modificações importantes na edição de 1994.81 Um texto introdutório ao item “Era Vargas” afirmou, dentre outras informações, que esse período “é marcado por gradual aumento da intervenção estatal na eco

80 Outros exemplos ainda referentes às edições 1979 e 1989: “O primeiro conflito do período foi a Revolução Constitucionalista de 1932. A oligarquia agrária de SP esperava por uma oportunidade de revanche; e o fato de Vargas governar sem o apoio de uma constituição vem fornecer o motivo imediato para a movimentação. O P. Republicano e o P. Democrático uniram-se formando a Frente Única, que tinha como objetivo evitar a interferência dos comandos militares instalados em SP, derrubar os interventores” (edição 1979) e “Já em 1932, eclodia a revolução constitucionalista, em SP. O fato de Vargas governar o país por mais de um ano sem uma constituição deu ensejo a que se levantasse contra ele uma oposição liberal. Mas foi em SP que o movimento ganhou maior expressão, agravado pela ação impopular dos interventores nomeados para o estado, que acabou por unir o P. Republicano (derrubado do poder em 1930) e o P. Democrático (que havia apoiado a Aliança Liberal) na chamada Frente Única” (edição 1989).



81 Algumas dessas transformações iniciaram-se nas edições anteriores.

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nomia e na área social (...)”. O desenvolvimento econômico, com destaque para o florescimento da economia e para os incentivos à industrialização, foi posto em relevo. A “sociedade republicana” também foi abordada, por meio de uma interpretação levemente condicionada à economia: “a sociedade organiza-se nos moldes capitalistas. Forma-se a burguesia mercantil, constituída em sua maioria por estrangeiros. E, com a expansão da indústria, surgem as camadas sociais urbanas, as classes médias e o operariado”. A ação dos imigrantes foi relacionada à mudança de valores em relação ao trabalho e à família. A produção cultural apresentava o modernismo e o nacionalismo nas artes. A edição de 1995 expressou maior interesse em esgotar o período, ou melhor, em analisá-lo em dimensões mais complexas, para além dos aspectos políticos e econômicos. Havia um item que se chamava “Crise da Primeira República”, no qual era explicada a “Revolução de 30” e “Aliança Liberal”, além de apresentar uma biografia de Getúlio Vargas. Os subitens referentes ao item “Era Vargas” eram extensos e pretendiam abarcar “toda” a dinâmica histórica desse momento. No item seguinte, denominado “Segunda República”, havia a seguinte afirmação: POPULISMO – O conceito de populismo é usado para designar um tipo particular de relação entre o Estado e as classes sociais. Presente em vários países latino-americanos no pós-guerra, o populismo caracteriza-se pela crescente incorporação das massas populares ao processo político sob controle e direção do Estado. A intervenção estatal na economia com o objetivo de promover a industrialização também cria vínculos de dependência entre a burguesia e o Estado. No Brasil, o populismo começa a ser gerado após a Revolução de 30 e se constitui em uma derivação do regime autoritário criado por Getúlio Vargas.

Em 1996-1998, havia dois verbetes sobre o período: “Revolução de Trinta” e “Estado Novo”. O primeiro afirmava que o “movimento político militar que derruba o presidente W. Luís em outubro de 1930, acaba com a República Velha e leva Getúlio Vargas ao poder”. O Estado Novo foi definido como “regime ditatorial implantado pelo presidente G. Vargas no país a partir do golpe de estado de 1937, às vésperas da 2a guerra mundial (1939-1945)”. Em 1999, o texto do Almanaque Abril destacava dois acontecimentos: a Intentona Comunista e sua respectiva repressão; 82 e as leis trabalhistas. A

82 “Com o apoio às Forças Armadas, domina os rebeldes no mesmo dia. Revoltosos

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publicação dessas leis foi entendida pela narrativa do passado construída pela Máquina da Memória como uma estratégia: “para conquistar os trabalhadores e transformá-los em base de sustentação política, o governo Vargas estabelece a jornada de trabalho de 8 horas diárias e torna obrigatória a carteira profissional” (grifo nosso). Ao longo das edições, os sujeitos históricos presentes eram bem amplos.83 Entretanto, o papel do Estado é entendido de forma tradicional. Em todos os anos ele foi caracterizado em função do seu papel transformador, controlador. O Estado, encarnado na figura mítica de Getúlio Vargas, foi um agente central do processo histórico: “O período de quinze anos em que Vargas permaneceu no poder foi pleno de acontecimentos que transformaram a política e a economia do país” (Almanaque Abril 1979). A edição de 1999 afirma que Getúlio implantou o Estado Novo; criou o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), o Departamento de Impressa e Propaganda (DIP); o Conselho Nacional do Petróleo (CNP); instituiu o salário mínimo; fundou a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN); o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI); estabeleceu a jornada de trabalho, dentre outras medidas. Em 2003, “por outro lado, o período do E.N. é de grande avanço nas políticas sociais e econômicas, sobretudo pela implantação de uma ampla legislação regulamentando o trabalho urbano” (grifo nosso). As Constituições apareceram, ao longo das edições, como um dos elee simpatizantes são perseguidos e presos em todo o país. Alguns líderes são torturados e mortos e Prestes fica na prisão de 1936-1945. Sua mulher, a judia alemã Olga Benário, mesmo grávida, é entregue à polícia política da Alemanha Nazista e morre num campo de concentração naquele país, em 1942, algum tempo depois de dar à luz uma menina”.

83 Ao longo de todas as edições, percebe-se uma infinidade de sujeitos citados, como políticos envolvidos nos processos eleitorais e outros incidentes: Washington Luís, Júlio Prestes, Getúlio Vargas, João Pessoa, Armando Salles de Oliveira etc.; os chefes militares – Juárez Távora, Tasso Fragoso, João de Deus Barreto, José Isaías de Mendonça, o próprio Vargas, Góes Monteiro, Pantaleão Teles Ferreira, os soldados da FEB, Dutra, Olímpio Mourão Cunha etc.; os comunistas: aqueles que os nomes não aparecem, os participantes do PCB, além de Júlio Prestes, Olga Benário; os integralistas: os anônimos, Plínio Salgado Belmiro Valverde e, por vezes, Gustavo Barroso; os estudantes: criação da UNE, preso Hélio Mota, mortos na Revolução constitucionalista (Mário Martins de Almeida, Euclides Bueno Miragaia, Antonio Americo Camargo de Andrade, Dráusio Marcondes de Sousa); a classe média e popular; mulheres; imigrantes: italianos, seguidos de portugueses, espanhóis, alemães, japoneses; e cangaço: Lampião e Maria Bonita.

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mentos fundamentais desse período. Assim, elas receberam destaque em quase todos os anos. A Constituição de 1934 foi, em geral, caracterizada como liberal, inspirada na República de Weimar, tendo assimilado as mudanças do novo código eleitoral implantado em 1932. Fez-se referência ao direito de voto concedido às mulheres, ao ensino primário obrigatório e gratuito e, ainda, à criação da justiça eleitoral e do trabalho. Em 1993, apareceu a ressalva de que a Constituição havia sido “pouco respeitada [a Constituição], de um lado pelo desinteresse do próprio Vargas e, de outro, pela radicalização de movimentos políticos, como o levante comunista de 1935 e a revolta integralista”. Sobre a Constituição de 1937, o Almanaque Abril 1993 cita como principais características: a centralização do poder político, a concentração de poderes no Executivo, a extinção dos partidos políticos e a instituição da pena de morte. Segundo Jorge Ferreira, a historiografia que se debruça sobre esse período, principalmente sobre o conceito “populismo”, tem trabalhado equivocadamente com a dicotomia entre as classes e, sobretudo, com a ampla intervenção do Estado frente à sociedade e suas camadas amorfas, inertes. Isso se torna explícito no tratamento das questões trabalhistas, em que o Estado aparece ora como o arquiteto do controle, ora como o grande concessor.84 Raras vezes as leis trabalhistas foram enfocadas, nos textos da Máquina da Memória, como vitórias das “conquistas trabalhadoras”. Nesse sentido, a edição de 1995 foi parcialmente uma exceção. Sobre esse ponto específico, o subitem “conquistas trabalhistas” afirmou: O governo Vargas atende várias reivindicações operárias. Em 1932 a jornada de trabalho passa a ser oficialmente de oito horas e o trabalho da mulher e do menor é regulamentado. É estabelecido o princípio de salário igual para trabalho igual e as mulheres ganham o direito à licença-maternidade de dois meses. A lei de férias, criada em 1926, é regulamentada em 1933, a previdência social começa a ser organizada sob o controle do Estado e são criados os institutos de aposentadorias e pensões (IAPs). Eles praticamente eliminam as antigas entidades assistenciais dos trabalhadores e colaboram para aumentar a força do Estado com imensos recursos recolhidos dos assalariados e das empresas (grifo nosso).

Apesar do título e da ideia de reivindicações, os verbos atender e ganhar acabavam por minimizar o papel dos movimentos sociais. A partir da edição

84 Ver Ferreira (2001).

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de 1996, mesmo a ideia das conquistas foi deixada de lado. Destacou-se que o período do Estado Novo foi, “ao mesmo tempo, de grande avanço nas políticas sociais e econômicas, sobretudo através da implantação de uma ampla legislação trabalhista para os trabalhadores urbanos e de apoio à industrialização, mediante projetos oficiais na área siderúrgica e petrolífera” (grifo nosso). A edição de 2006, na mesma linha da edição de 1995, afirmou: “1934 – O governo Vargas estabelece a jornada de trabalho de oito horas diárias e torna obrigatória a carteira profissional” (grifo nosso). A luta dos sindicatos em defesa de melhores condições de trabalho foi destacada, mas, quando se falou do salário mínimo, afirmou-se simplesmente: “1940 – já previsto na Constituição de 1934, o salário mínimo é instituído pelo presidente Getúlio Vargas por meio de um decreto-lei” (grifo nosso). É ainda importante destacar que, nos anos 1990, e mesmo antes, a historiografia passou a analisar as experiências históricas concretas, as possibilidades e as diversas historicidades do período, pois “a persistência, por sua vez, de componentes da cultura política introduzida pelo varguismo dificulta a consolidação de práticas democráticas na sociedade atual”.85 Nas palavras de Edgar de Decca, na crítica à memória histórica da revolução descobriu-se a questão da democracia e, ao mesmo tempo, a historiografia, que floresceu a partir desses novos referenciais, e reivindicou no terreno da história os direitos políticos da cidadania para os rebeldes primitivos.86

Essa mudança de enfoque indicava que, no início dos anos 1990, os eventos que envolviam os “Anos Vargas” (1930, 1937 e 1945) tinham se cristalizado. Em 1991, na apresentação do livro que reunia as contribuições do seminário sobre o cinquentenário do Estado Novo, José Luiz Werneck da Silva afirmou:



85 CAPELATO, 1998, p. 213. Segundo Vianna (2001, p. 152), “o Estado Novo pavimentou, de fato, o caminho para a modernização econômica do país, assim como refundou a República, ‘ampliando’ o escopo do Estado a fim de abrigar os novos personagens sociais nascidos do mundo urbano-industrial. Mas o preço da modernização autoritária e da ‘ampliação’ por cima da cidadania importará a perda da autonomia da sociedade quanto ao Estado e uma herança do autoritarismo político a pesar sobre a nossa história republicana (...)”.



86 DECCA, Edgar de. O Silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 28.

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o historiador Mário Barata – depois de constatar que a geração da qual uma parcela que institucionalizou cruelmente o Estado Novo em 1937 praticamente já desapareceu, e a outra parcela que sofreu, ainda jovem, os seus efeitos, começou inelutável e lutuosamente a partir – percebeu, com clareza essa postura crítica, esse papel que caberia à academia. Escrevendo em 1987, ele diz: “no tocante à memória do Estado Novo chegou a hora da História falar”. Até porque – continuava – “os homens que haviam vivido, pela idade, os fatos ocorridos em 1937, já os recordavam, em geral, sem possibilidade de justa avaliação correta”.87

O evento deixava o “tempo presente inacabado” e começava a frequentar o “tempo presente terminado”. Assim, como no caso da Primeira Guerra, o evento começava a se tornar privilégio dos historiadores.88 Esse processo de cristalização do evento ocorreu, certamente, após a primeira eleição direta para presidente, em 1989, depois de 30 anos; após a queda do Muro de Berlim (também em 1989); após Fernando Henrique Cardoso ter dito em sua posse, em 1994, que seu governo representaria o fim da “Era Vargas” e após a eleição para presidente da República, em 2002, na qual foi eleito ex-operário Luiz Inácio Lula da Silva (constantemente denominado pela imprensa e por adversários de “populista”). Tendo em vista a transformação da história em memória, e mesmo em outra história, nas páginas do Almanaque Abril, concorda-se que, “no tornar simplificado e unitário o conhecimento, apenas um discurso se reforça e toma o ‘ar’ de ‘verdade’. Temas, em seu momento bastante complexos, são submetidos à simplificação, assumindo esse sentido de unicidade de significado”. Esse processo é, para Carlos Vesentini, parte do “procedimento fatualizador”. Desse modo, para ele, categorias como “Descobrimento do Brasil”, “A Independência”, “A Proclamação da República”, “A Abolição” e “A Revolução de 1930”, em seu próprio interior, excluem “divergências de significação, porque unitárias, e eliminam o pensamento referenciado por outras categorias, que não ela mesma”.89 O autor ainda apontou que é inerente ao procedimento

87 SILVA, Luiz Werneck da (Org). Introdução. In: ______. O Feixe e o Prisma: uma revisão do Estado Novo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991a. p. 22.



88 Apesar disso, o ano de 2006 assiste ao lançamento, com ampla divulgação, do livro do jornalista Domingos Meirelles, sobre os “vencidos” da “revolução do 1930” (MEIRELLES, 2006).



89 VESENTINI, Carlos A. A teia do fato: uma proposta de estudo sobre a memória histórica. São Paulo: HUCITEC; USP, 1997. p. 70-72.

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fatualizador a simplificação que elide outras visões dos atores participantes do fato, pois esse processo “exclui divergências de significação” e “elimina o pensamento referenciado por outras categorias, que não ela mesma”.90 Por outro lado, as obras didáticas, paradidáticas e de ampla divulgação, como as novelas, as séries televisivas, o cinema, a literatura, e, por que não, a Máquina da Memória, são fundamentais para o “enriquecimento do fato”, pois “vão marcando os fatos, vamos memorizando-os, começamos a integrar-nos neles e a sentir alguma intimidade”.91 Como já se evidenciou, na visão de Koselleck, o acontecimento é irredutível, pois ele é constituído por um nó de temporalidades atualizadas em um momento dado. Os eventos são prisioneiros de um antes e de um depois, ligados à cronologia e empiricamente verificados. Mas essa dimensão deve dialogar com a dimensão estrutural e conceitual, pois os eventos e as estruturas são ao mesmo tempo abstratos e concretos. E é a conceituação, por meio de conceitos como “causas profundas” e “populismo”, que permite superar e compreender a massa de eventos e a singularidade de cada um. São esses conceitos que possibilitam o diálogo entre a história acadêmica, não acadêmica e a história ensinada nas páginas da Máquina da Memória. Muitos desses conceitos gestados no interior da pesquisa universitária se transformam também em memória na medida em que são apropriados didaticamente pela narrativa do Almanaque Abril. Essa dimensão conceitual é, em grande parte, resultado do trabalho do consultor de história. Do nosso ponto de vista, a edição de 1995 foi a que apresentou uma visão mais processual e mais global do processo histórico. Não é fortuito que, nesse ano, a consultora de história da publicação tenha sido a conhecida professora da USP, Janice Teodoro. Nos outros anos, a maioria dos consultores da publicação foram profissionais que tinham relações com a “história não acadêmica” e com a “história ensinada”. Até 1990, o principal consultor da redação do Almanaque foi o professor de história da Rede Pitágoras de Belo Horizonte, Renato Rocha Mesquita. Após essa data, o principal colaborador foi o autor de livros didáticos e paradidáticos de história, Francisco Teixeira da Silva. Sobre o trabalho dos consultores, Bias Arrudão destaca que “os consultores tinham total autonomia para ‘pensar’ seu trabalho. No máximo os

90 VESENTINI, 1997, p. 72.



91 Ibid., p. 73-75.

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editores davam a eles algumas diretrizes básicas sobre o que se pretendia e qual era o público do Almanaque”.92 Lauro Machado Coelho ainda destaca que os consultores de todas as áreas tinham toda a autonomia. “As propostas deles eram geralmente acatadas sem dificuldade pois, de antemão, já selecionávamos pessoas que, a nosso ver, estivessem afinadas com os nossos objetivos”. “Havia apenas a necessidade de pequenos ajustes de linguagem, quando o consultor não estava muito familiarizado com a linguagem jornalística”.93 A nosso ver o trabalho dos consultores pode ser considerado a partir do que Coelho afirma, isto é, já havia uma seleção prévia. Essa seleção, de algum modo, mostra-nos o quanto o termo autonomia pode ser relativo. Autonomia para realizar um trabalho que choca com alguns pressupostos norteadores do projeto editorial não era possível, já que a seleção prévia operava os limites da autonomia.94 Além disso, Sheila Mazzolenis destacou que vários consultores eram professores ligados à Educação Básica; esta escolha se justificava, pois a Máquina da Memória pretendia ser uma publicação de referência com fins didáticos.95 Percebe-se, portanto, que o critério da seleção era dado pela inserção profissional do consultor de história. Os professores universitários são, dessa forma, excluídos, pois, a princípio, a linguagem acadêmica não é vista, pelos jornalistas, como didática. É importante destacar que a introdução de certas abordagens mais sofisticadas do ponto de vista historiográfico na edição de 1995, e sua retirada a partir da edição de 1996, fogem parcialmente à nossa compreensão, mas indícios apontam que essa mudança esteve ligada à modificação do projeto editorial da publicação a partir dessa edição, conforme destacamos no segundo capítulo. A partir daí, a análise tornou-se outra vez centrada nos processos políticos e, algumas vezes, econômicos. Perdeu-se a dimensão global que a edição de 1995 procurou imprimir. Nesse sentido, essa mudança possivelmente também ocorreu porque, como já se afirmou reiteradas vezes, a cronologia e os eventos, na maioria das vezes, políticos, davam ao leitor da Máquina da Memória o “efeito de real” e/ou “verdade” e/ou as marcas de historicidade

92 Bias Arrudão, entrevista escrita ao autor, 15 fev. 2007.



93 Lauro Machado Coelho, entrevista escrita ao autor, 8 fev. 2007.



94 Sobre as limitações da autonomia e outras questões correlatas, ver Abramo (1991).



95 Sheila Mazzolenis, entrevista ao autor, 24 jan. 2002.

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do texto da publicação. A cronologia e a dimensão política do evento, em certo sentido, ficavam diluídas na edição de 1995. A abordagem cronológica, conjugada com a análise centrada nos fatos políticos, mediados por conceitos, foi fundamental, ao longo de todas as outras edições analisadas, para o estabelecimento do contrato de verdade entre a obra e o leitor. A partir dessas questões, pode-se perceber nas páginas do Almanaque Abril, ao analisar a Primeira Guerra e os “Anos” Vargas, que não há uma história total que se constituirá por acumulação de verdades parciais. Há várias formas de se pensar sobre uma mesma história, que respondem a lógicas diferentes e conduzem cada uma, por meio de problemáticas, fontes e argumentação, a resultados diversos. Muitas vezes, a narrativa da Máquina da Memória foi nutrida por conceitos e discussões consagradas, cristalizadas pela historiografia, mediados pelo trabalho dos consultores. Esses resultados não são menos verdadeiros ou menos reais. É necessário compreender e aceitar a pluralidade irredutível das histórias.96 Deve-se olhar para eles sob um ponto de vista complementar, na medida em que cada “verdade” deve ser entendida em seu registro: “contudo, as diferentes histórias não são relativamente verdadeiras, quer dizer verdadeiras até certo ponto, mais ou menos verdadeiras ou falsas: elas são verdadeiras se elas são fundadas em uma documentação sólida e em uma argumentação rigorosa”.97 Trata-se, assim, de procurar a fidelidade e a verdade, mesmo reconhecendo que “uma narrativa não se parece com o acontecimento que ela narra”.98 Por outro lado, Ricoeur lança mão de mais uma inquietante observação: “a competição entre a memória e a história, entre a fidelidade de uma e a verdade da outra, não pode ser decidida no plano epistemológico”.99 Apesar desta limitação, Ricoeur destaca, a partir de Koselleck, que o enredo, a intriga histórica – entendida como síntese do heterogêneo mesclando intenções, causas e acasos – opera uma espécie de integração narrativa entre três momentos – estrutura, conjuntura, acontecimento – que a epistemologia dissocia: “a intriga (ou enredo) é capaz de articular numa mesma configuração estruturas e

96 Sobre esse ponto, ver, dentre outros, Prost; Winter (2004).



97 Ibid., p. 289.



98 PROST; WINTER, op. cit., p. 293.



99 RICOEUR, 2000, p. 648.

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acontecimentos”.100 Afinal, “compreender uma narrativa é, conseqüentemente explicar os acontecimentos que ela integra e os fatos que ela relata”.101 Na narrativa histórica, assim como nas representações da memória, há sempre uma interação entre o apagamento (o esquecimento) e a conservação. Antes do abuso, há o uso, ou seja, o caráter seletivo da narrativa. Se não se pode lembrar de tudo, não se pode também tudo contar. As estratégias do esquecimento se colocam ao narrar, porque se pode contar suprimindo, enfatizando determinados fatos, refigurando diferentemente os protagonistas da ação. Daí a importância das aporias da verdade e da referencialidade para o discurso histórico.102 Nessa direção, pode-se dizer que, em cada momento histórico, os acontecimentos são percebidos a partir de uma riqueza, de uma pluralidade própria. Nem sempre o olhar de um determinado presente é superior ou melhor do que o de outra época, como bem resumiu Renato Janine Ribeiro: O conhecimento de cada época, ou mesmo cada conhecimento, pode ser irredutível a outro. Hoje lemos diferentes de outros tempos; sob certos aspectos, melhor, até. Em compensação, há muitos ângulos que perdemos. O nosso conhecimento do passado, ou do outro, pode melhorar e piorar, à medida que ganha e perde perspectivas; e ganha-as e perde-as ao mesmo tempo.103

Considerando a falsa oposição entre evento e estrutura e a importância do estudo do evento para as pesquisas históricas, torna-se mais ou menos nítida a predominância de uma “história acontecimental” no Almanaque Abril, conforme se apresenta neste capítulo. Em certo sentido, as representações narrativas do passado construídas pela Máquina da Memória acabaram sendo, como já se afirmou, um refúgio do evento, visto que, se na história, o evento perdeu sua importância em boa parte do século 20, nas obras didáti-

100 RICOEUR, 2000, p. 316. 101 Ibid., p. 289. 102 Cabe dizer que, para pensar essas questões, Ricoeur (2000, p. 253-267) cunha o conceito de representância, isto é, a capacidade do discurso histórico em representar o passado. Esse conceito é cunhado, pois a história se referencia ao texto e ao “real” ao mesmo tempo, constituindo um entre-lugar entre a ciência e ficção. 103 RIBEIRO, Renato Janine. Posfácio. In: GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 237.

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cas, paradidáticas, de divulgação e no jornalismo isso nunca se deu. No que se refere ao jornalismo, tal fato talvez se explique pela natureza desse campo, pois o mesmo pode ser caracterizado como uma forma de conhecimento da realidade centrada no “singular”.104 No próximo capítulo, procurar-se-á analisar como a memória se transforma em história e como a história se transforma em memória nas páginas da Máquina da Memória. Haja vista que o tempo presente inacabado é o tempo em que os historiadores não têm o monopólio da história, no próximo capítulo, discutir-se-ão as questões relativas à tensão entre história e jornalismo no interior do tempo presente, a partir da forma como o enredo dado a ler pelo Almanaque Abril compreendeu e explicou dois eventos históricos: o Golpe de 1964 e a Queda do Muro de Berlim.

104 FILHO, Adelmo Genro. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do Jornalismo. Porto Alegre: Tchê!, 1987.

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Capítulo 5

Almanaque Abril, acontecimento e história do tempo presente “inacabado” Tendo em vista a discussão efetuada no quarto capítulo, neste, continuar-se-ão as análises dos eventos históricos tratados pela Máquina da Memória. Foram escolhidos aqueles em que há uma tensão entre história e jornalismo, que se expressa nas páginas da publicação. Sendo assim, serão feitas algumas ponderações sobre essa tensão antes de se passar para os acontecimentos propriamente ditos.

Algumas considerações sobre história e jornalismo Alguns trabalhos já procuraram diferenciar os objetos analisados pelos jornalistas daqueles que são estudados pelos historiadores. “Para o senso comum, a história enuncia ‘aquilo que teve lugar’; ela é o conhecimento do passado. Ela ‘pára’ no presente e torna-se atualidade”.1 O estudo dos “fatos do presente”, dentro desse tipo de concepção, é atribuído ao sociólogo e ao jornalista. Outros afirmaram que a investigação jornalística se aproxima das ciências sociais e da história no que se refere à “história imediata”.2 O “jornalismo convencional” e o



1 FERRO, Marc; PLANCHAIS, Jean. Les Médias et l’histoire: Le Poids du passé dans le chaos de l’actualité. Paris: CFPJ, 1998.



2 Ver, dentre outros, Ferreiro (2003).

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“jornalismo de investigação” se diferem. O primeiro se esforçaria em descrever e construir um fato (daí a proximidade com a crônica), ao passo que o segundo pretenderia compreender a dinâmica que conduziu ao acontecimento. Nesse caso, haveria uma tendência de deslizamento desse tipo de jornalismo em direção a práticas e formas explicativas típicas das ciências sociais. O “jornalismo de investigação” trabalharia um fato na duração com uma grande diversidade de fontes. Além disso, procuraria explicar, pois não obedece à lógica da pressa e da urgência, próprias do “jornalismo diário ou semanal”.3 Mesmo que a divisão entre “jornalismo convencional” e jornalismo de “pesquisa”/”referência” ou de “investigação” seja problemática,4 há alguns aspectos que são esclarecedores para se compreender a prática jornalística da Máquina da Memória. Porém, a nosso ver, para uma maior compreensão das semelhanças e diferenças entre o jornalismo e a história, presente nos textos dessa obra, é necessário um olhar mais aprofundado sobre as duas disciplinas. Concorda-se que o jornalismo pode ser caracterizado como uma forma de conhecimento da realidade centrada no “singular”: “o critério jornalístico de uma informação está indissoluvelmente ligado à reprodução de um evento pelo ângulo de sua singularidade”.5 Assim, pois, “o jornalismo abre seu caminho entre duas margens: a imediaticidade, que desperta interesse e emoção; e certo grau de reflexão, que assume diferentes níveis de distanciamento e globalização, sem os quais não há notícia”.6 O jornalismo é, assim, uma forma de construção da realidade e não mera reprodução dos acontecimentos. Anthony Giddens destacou que a modernidade seria inseparável de sua “própria” mídia, pois os antigos jornais, revistas e periódicos “desempenharam um papel importante na separação entre espaço e lugar, mas esse processo só se tornou um fenômeno global por causa da integração da mídia impressa e eletrônica”. (...) “Esses meios são tanto a expressão das tendências globalizantes, desencaixa

3 FERREIRO, 2003.



4 Marchetti (2000) mostrou que os ditos jornalistas ou jornais “investigativos” estão submetidos a pressões muito próximas dos chamados “convencionais”. Apesar de imperar a concepção de que “o fato falará por si”, o autor destacou a ideia de que jornalismo de “investigação” é um pleonasmo.



5 FILHO, 1987.



6 RIBEIRO, Jorge Claúdio. Sempre Alerta. Condições e Contradições do Trabalho Jornalístico. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 9.

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doras, da modernidade, como instrumentos dessas tendências”.7 A modernidade, para esse sociólogo, caracterizou-se, dentre outros fatores, pelo “desencaixe” das relações sociais de seus contextos locais. Elas são constantemente reestruturadas “através de partes indeterminadas do espaço-tempo”.8 Um dos mecanismos de “desencaixe” é a influência dos sistemas peritos, isto é, “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes materiais e sociais em que vivemos hoje”.9 Desse modo, o jornalismo pode ser entendido como um sistema perito10 que se caracteriza, na maioria das vezes, por “impor como indiscutível o fato que se relata”.11 Certa aproximação entre o jornalismo e a história não é fortuita. Josefo, historiador judeu do primeiro século, por exemplo, afirmou que o historiador mais louvável era aquele que estabelecia o relato dos acontecimentos do seu tempo para o uso da posteridade. Escrever a história contemporânea constituía maior mérito do que a dos séculos passados, pelo fato de que o passado já teria os seus historiadores, “ao passo que a época contemporânea espera que um historiador se torne fonte histórica e estabeleça a tradição”.12 O historiador seria uma autoridade para seus sucessores. O respeito à verdade advinha, então, não das fontes que o historiador citava, mas da investigação (significado primeiro da palavra história): “do mesmo modo, não é pelo respeito pelas fontes que se julga um jornalista, mas pela crítica interna, ou ainda por algum pormenor”. Segundo Paul Veyne, são certos critérios internos, como a inteligência, a imparcialidade, a precisão e a cultura geral, que definem se um texto jornalístico é bom: “é precisamente deste modo que Políbio (...) julga e condena o seu predecessor Timeu (...)”. A base não eram os documentos. O bom historiador, para Tucídides, deveria “saber verificar a informação como dizem os nossos repórteres”.13 Os historiadores modernos propõem uma in

7 GIDDENS, Anthony. Admirável mundo novo: o novo contexto da política. In: MILIBAND, David (Org.). Reinventando a Esquerda. São Paulo: Ed. Unesp, 1997. p. 30.



8 Ibid., p. 24.



9 GIDDENS, Antohny. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: UNESP, 1991. p. 35.



10 MIGUEL, Luis Felipe. O Jornalismo como sistema perito. Tempo Social, Revista Social, USP, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 197-208, maio 1999.



11 Ibid., p. 200-201.



12 VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos? Lisboa: Edições 70, 1987. p. 22.



13 VEYNE, loc. cit.

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terpretação dos fatos e dão ao leitor os meios para verificarem as informações e, talvez, formularem outra interpretação. Os historiadores da Antiguidade verificavam as informações eles mesmos e não deixavam essa ação para o leitor: “porque o seu leitor não era ele próprio historiador, do mesmo modo que os leitores de jornais não são os jornalistas: aqueles e estes confiam no profissional”.14 Foi a partir da ascensão da Universidade que o critério mudou: o historiador não escrevia mais para simples leitores, tal como faz o jornalista, mas para seus pares. Para Eric Dupin, o jornalista, por definição, não apresenta distanciamento em relação ao fato narrado – o que é excitante, mas tem limites. O jornalismo tem que reagir imediatamente ao evento, respondendo a uma demanda social, política e comercial concreta. Atualmente, o trabalho jornalístico é um dos materiais primeiros dos historiadores do tempo presente, pois pode servir de fonte aos mesmos. Para Dupin, “todo jornalista mede a dimensão mítica do conceito de ‘objetividade’”, mas ele participa da fabricação dos eventos do tempo presente.15 Há um engajamento, mesmo que involuntário. Os jornalistas podem ser entendidos, assim, como os cronistas provisórios, os primeiros narradores da sucessão dos eventos. Se “a história é reescritura permanente de escrituras anteriores, pode-se dizer, talvez, que o jornalista é quem faz o primeiro rascunho”.16 Segundo Paul Ricoeur, sem a memória jamais saberíamos que algo ocorreu. Só depois desse processo é que podemos construir um relato. “A história sabe que há o passado porque a memória já o disse antes dela. Por menos fiável que seja a memória, por menos fiel que ela seja ao passado, ela é nossa

14 VEYNE, 1987, p. 23. Sobre a historiografia da Antiguidade, em especial a grega, Hartog (2005) afirma que os Gregos não são os inventores da história, e sim do historiador como sujeito escritor. O autor ainda afirma que “a diferença em relação à Bíblia, que se quer uma história contínua desde o início dos tempos, é que a história grega cria um ponto de partida e tem um desenvolvimento numa seqüência limitada” (p. 55) e “o historiador grego queria guardar do esquecimento os grandes momentos (Heródoto), ou dar um instrumento que permitiria não prever, mas compreender o futuro, aquilo que nós aconteceria (Thucydide)” (p. 203).



15 DUPIN, Eric. Le journalisme. IHTP. Écrire l’Histoire du Temps Présent. Paris: CNRS, 1991. Ver, também, Dupeaux (1997, p. 15).



16 DUPIN, op. cit., p. 372. Para uma análise do campo do jornalismo, ver, dentre outros, Bourdieu (1997).

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primeira abertura em relação a ele”.17 “Ora, a estrutura que assegura a transição da memória à história é o testemunho, a saber, a operação de linguagem pela qual as coisas vistas são transferidas para o plano das coisas ditas”.18 Essa estrutura fiduciária traz uma dimensão crítica potencial, isto é, a crítica do testemunho, por meio da comparação entre o relato de diversas testemunhas. O momento de inscrição do testemunho recebido por outro é o instante onde se passa do campo da oralidade para o campo da escritura.19 A partir daí, o historiador pode arquivar os relatos, compreender/explicar o que se passou e criar uma escrita regida por critérios de cientificidade. Somos, portanto, obrigados a “confiar” nas palavras alheias20 e nos “primeiros rascunhos”: Nesse sentido, uma ampliação do conceito de testemunha se torna necessária; testemunha não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos, o histor de Heródoto, a testemunha direta. Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras o levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar ou por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar uma outra história, a inventar o presente.21

O testemunho é, assim, fundamental para a relação entre história e memória. Paul Ricoeur adverte que a operação historiográfica não começa nos arquivos e, sim, com o testemunho.22 Apesar das possíveis “faltas” no que se refere à fidelidade do testemunho, nós não teríamos nada melhor que ele para

17 RICOEUR, 2005, p. 374.



18 Ibid., p. 375.



19 Sobre a relação entre oralidade e escrita, Gagnebin (2006, p. 11) afirma: “a memória dos homens se constrói entre esses dois pólos: o da transmissão oral viva, mas frágil e efêmera, e o da conservação pela escrita, inscrição que talvez perdure por mais tempo, mas que deseja o vulto da ausência”.



20 RICOEUR, op. cit., p. 375.



21 GAGNEBIN, 2006, p. 57. É importante destacar que a autora, nessa passagem, a partir de Primo Levi, aponta a possibilidade da existência da testemunha que ouve o trauma e não só aquela que vê e registra os acontecimentos notáveis ou da vida cotidiana. Gagnebin indica, portanto, a existência do “testemunho traumático” como outro tipo de testemunho a ser investigado e pensado.



22 RICOEUR, 2000, p. 181-230.

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nos assegurar de que alguma coisa aconteceu. Se o jornalismo é, a partir da investigação e da construção da informação, uma instância de produção, reprodução, registro de testemunhos, pode-se dizer que uma operação fundamental é a confrontação dos testemunhos, pois a existência do testemunho possibilita que a memória seja arquivada. Além do registro, produção e reprodução de testemunhos o jornalismo exerce, ao mesmo tempo, uma primeira seleção e confrontação de testemunhos. O jornalismo é, assim, um dos ofícios que possibilitam a existência da “memória de papel”.23 De certo modo, a Máquina da Memória, por ser anual, tem, além de certo distanciamento temporal com os eventos, maior possibilidade de confrontação de testemunhos registrados pela imprensa diária, semanal e mensal. Por outro lado, Ricoeur afirma: “não temos nada melhor do que a memória para certificar a realidade de nossas lembranças. Dizemos agora: não temos nada melhor do que o testemunho e a crítica do testemunho para dar crédito à representação historiadora do passado”.24 Tendo em vista que história e jornalismo estabelecem relações diferenciadas com a questão do testemunho,25 epistemologicamente, poder-se-ia distinguir as duas profissões a partir da relação que elas estabelecem com o tema do evento. Para Jean-Guy Sarkis, o jornalista trabalha com o evento “quente”, por meio de um contato direto, e o historiador, com o acontecimento “frio”, uma vez que os fogos da atualidade são apagados. “O jornalista é impaciente e apressado enquanto que o historiador espera”.26 O historiador está submetido aos métodos da pesquisa acadêmica, ao passo que o jornalista está mais diretamente submetido à lógica do mercado. Talvez alguns periódicos e programas jornalísticos fujam a essa lógica. Mas, se isso acontece, permanece uma inquietação: mesmo esses que parecem fugir à lógica do mercado não estariam, na verdade, atentos a um segmento de consumidores? E quanto ao historiador? Está mesmo hoje totalmente livre das demandas de mercado?

23 Sobre a metáfora da “memória de papel” e sua relação com a operação historiográfica, ver Ricoeur (2000, p. 525).



24 RICOEUR, 2000, p. 364.



25 Para a importância da crítica do testemunho, do testemunho, do arquivo e da prova documentária na operação historiográfica, ver Ricoeur (2000, p. 181-230).



26 SARKIS, Jean-Guy. La Notion de Grand Événement: Approche Épistémologique. Paris: Les Éditions du Cerf, 1999. p. 123.

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Os leitores implícitos dos textos que ambos constroem são diferentes. O historiador também utiliza a imprensa para seu trabalho, mas lança mão de vários outros arquivos, dispondo, assim, de um escopo de fontes muito maior. O jornalismo, em geral, está tão preocupado com as aparências da atualidade que pode dar uma importância mínima, por exemplo, a um acontecimento que o tempo pode revelar como de enorme relevância. Para o jornalista, a novidade em relação às dimensões precedentes é capital, ao passo que, para o historiador, a dimensão de novidade é articulada também a outras dimensões históricas e temporais. O jornalista é, em geral, tributário dos eventos tal como eles se impõem via opinião ou atualidade.27 Não há um questionamento sobre a fabricação do mesmo, sobre a natureza da atualidade. A história parte de outra chave de leitura – a qual também a distingue da sociologia, da geografia e da economia – que diz respeito aos arquivos e à distância crítica.28 A história é traço e expressão de uma relação particular com a escrita, a memória, o tempo e a morte.29 Ela é um conhecimento que procura estudar as singularidades do homem no tempo, articulando, assim, diversas durações que se entrelaçam por meio do trabalho com a prova documental. O jornalismo, por outro lado, é, em geral, um discurso sobre o particular focado no presente, muitas vezes privilegiando apenas o imediato, o instante. Isso não significa que essas funções não se confundam na prática, sobretudo porque historiadores e jornalistas têm a intenção representar em verdade as coisas passadas. Gerard de Noiriel destacou que a história pode ser definida como um conjunto de atividades profissionais que podem ser divididas em: atividades do saber (produção do conhecimento em primeira mão); de memória (ensino e escritos de divulgação) e de poder (administração da pesquisa, do ensino, concursos, comissões e participação em bancas de doutorado e mestrado). Para ele, todo



27 NORA, Pierre. De la l’histoire contemporaine au présent historique. In: Écrire L’Histoire du Temps Present. Paris: CNRS, 1991. p. 43-48. Para uma análise que pretende distinguir o trabalho do historiador do tempo presente e do sociólogo, ver Schnapper (1991, 49-52); Touraine (1991, p. 341-348) e Fridenson (1991, p. 349-355).



28 NORA, op. cit.



29 HARTOG, François. Évidence de l’histoire. Ce que voient les historiens. Paris: EHESS, 2005. p. 23.

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historiador contribui para esses três tipos de atividades.30 Assim, a história acadêmica é construída por um conjunto de especificidades. Para Marc Bloch, ela é um conhecimento indireto baseado em traços que não estuda nem o passado em si, nem o tempo em si, mas os homens no tempo.31 Essa forma de conhecimento é fundada por uma intenção de verdade, sendo que sua “verdade” é garantida por operações controláveis, verificáveis e renováveis. Isso não significa que não haja incertezas sobre o status de conhecimento indireto, conjuntural e baseado em indícios, sendo que sua escrita é comandada por uma intenção e um princípio de verdade.32 O conhecimento histórico é, assim, uma prática “científica” produtora de “verdade” a partir de regras que comandam sua escrita. Isso porque a história é uma prática cuja modalidade depende de variações de processos técnicos, de contratos que impõem o seu lugar social e o da instituição de saber onde ela é exercida. Nesse aspecto, o conhecimento histórico produz um corpus de enunciados “científicos” com um conjunto de regras que permitem controlar as operações proporcionalmente à produção de determinados objetos.33 Deve-se, assim, estar atento à tensão entre a produção de um conhecimento dito “verdadeiro” e outro dito “falso”. Esse conhecimento, a história, pretende ser um discurso da verdade, o resultado de uma relação entre os dados que advêm do conhecimento. Para obter isso, faz-se necessária a passagem de uma realidade histórica para uma realidade textual historiográfica, produzida por uma operação cujas normas são dadas antecipadamente. Neste trabalho, entendemos a história acadêmica a partir da definição de Michel de Certeau: “a operação histórica se refere à combinação de um lugar social, de prática ‘científicas’ e de uma escrita”.34 Todas as análises citadas nos dão elementos para diferenciarmos a “história acadêmica” da “história não acadêmica”. Mas concordamos que é impossível edificar uma muralha entre a história-disciplina, o jornalismo e a literatura: há sempre um caráter arbitrário em toda tentativa “de oposi

30 NOIRIEL, 1996.



31 BLOCH, 2001.



32 RICOEUR, 2000; CHARTIER, Roger. Au Bord de la Falaise: l’histoire entre certitudes et inquiétude. Paris: Editions Albin Michel, 1998.



33 O termo científico é definido como “a possibilidade de estabelecer um conjunto de regras que permitem ‘controlar’ operações destinadas à produção de objetos determinados” (CERTEAU, 1982, p. 109, grifo no original).



34 CERTEAU, 1982, p. 66 (grifo no original).

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ção da história dos historiadores profissionais àquela dos escritores e amadores, destacando o interesse desses últimos à biografia, aos fatos diversos, aos pequenos eventos ou aos eventos em geral”.35 Dessa forma, a “história não profissional” (dos jornalistas, escritores e amadores) não coincide com a história universitária basicamente por quatro razões. Em primeiro lugar, esta estuda períodos e objetos que não interessam àquela. As histórias antiga, medieval, populacional e econômica, por exemplo, têm dificuldades e questões tão específicas que os jornalistas, escritores e amadores podem, no máximo, divulgar os resultados obtidos por elas. Em segundo lugar, para a “história não profissional”, a escritura e o julgamento dos fatos de diversas ordens, em geral, são mais importantes que a pesquisa. Em terceiro lugar, há uma diferença entre a relação que essas duas formas de história estabelecem com a memória. Quando o historiador se afasta da atualidade e dos grupos a que pertence, como por exemplo, da nação, a distância entre a história e a memória é maior. Quando a distância temporal é menor, há maior aproximação entre a memória e a história, “na medida em que a história não profissional se interessa principalmente pelo tempo presente e pelo passado próximo, ela se situa por inteiro no terreno da memória”,36 mesmo que seja para contestála. Por fim, é necessário dizer que a história universitária, em seu interior, é profundamente diversificada. Não há, assim, uma escritura da história no singular. Apesar dessas diferenças, Pomian afirmou que o comum entre as diversas histórias universitárias é a tentativa de situar no tempo os fatos que elas contam, interpretam e descrevem, por meio de diversos procedimentos, tais como a cronologia, a comparação e/ou estudo da sincronia. Além disso, elas apóiam-se em provas atribuídas e datadas como vestígios do passado, independentemente de serem lembrados ou não pela memória. Para o autor, essa história delimitada, de um lado, pela ficção e, de outro, pela memória, carrega consigo uma série de marcas de historicidade como nomes de personagens, de lugares, datas, citações, notas, além de uma retórica particular que faz com que um texto desse tipo seja reconhecido pelos pares do historiador.37 Pomian destacou que, desde o fim do século 19,

35 POMIAN, 1993, p. 391.



36 Id., 2000, p. 391.



37 POMIAN, loc. cit.

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os historiadores universitários recusavam ou desconsideravam as publicações produzidas fora da corporação profissional por estas não atenderem aos critérios da história-disciplina. A ausência da distância temporal por vezes aproxima jornalistas e historiadores, mas há no interior da história acadêmica uma diversidade, uma especialização e, principalmente, uma tentativa deliberada e secular de afastar e colocar em oposição história e memória. No Brasil, o desenvolvimento dessa história universitária é bastante recente. Apesar de termos tido uma institucionalização da história escolar em meados do século 19, a profissionalização, no sentido da formação de cursos universitários de história, só começou a ocorrer, em algumas partes do país, nos anos 1930, e ganhou uma dimensão nacional apenas nas décadas de 1950 e 1960. Francisco Falcon afirmou que a produção historiográfica brasileira, a partir dos anos 1960, foi marcada por uma espécie de dialética entre a tradição e a inovação. O autor entendia que o “empirismo positivista ou metódico” foi considerado a única forma séria e científica de escrever a história até o final dos anos 1950 e começo da década de 1960. A inovação remonta aos anos 1930 com a presença de professores franceses no país e com a publicação dos clássicos de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda e Caio Prado Júnior. Apesar disso, tanto no ensino, como na pesquisa, as possibilidades de inovação demoraram cerca de duas décadas. A partir do final da década de 1950, inovação e tradição tornavam-se polos das atividades do historiador. A renovação se deu por uma “simbiose” entre a Escola dos Annales, com a tradição teórica marxista,38 porém: “a tradição continuou solidamente implantada em termos institucionais e, salvo raras exceções, era quem ditava currículos e leituras na esfera da graduação em História”.39 Nos anos 1950 e 1960, iniciou-se uma disputa entre esses grupos, principalmente no tocante ao ensino da história. Viveu-se, nesses anos, uma polarização entre professores, cursos e obras empiristas, informativos versus professores, cursos e publicações teóricas interpretativas. Esse debate foi impor

38 Essa simbiose talvez tenha ocorrido pela própria interpretação de alguns historiadores de que tanto o marxismo, quanto a Escola dos Annales, eram paradigmas conciliáveis. Para uma defesa dessa posição, ver Cardoso; Brignoli (1979) e Cardoso; Vainfas (1997). Para uma crítica a essa posição, ver Reis (1998).



39 FALCON, Francisco C. A Identidade do Historiador. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 17, p. 9, 1996.

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tante “para algumas tomadas de consciência a propósito das diferenças entre a forma tradicional e a nova de se conceber a natureza do ofício do historiador e o próprio ensino de História”.40 Nos anos 1970, fica nítido o embate entre os que possuíam uma concepção descritiva, narrativa ou factual de história e os que “preconizavam uma Nouvelle Histoire, em moldes annalistas; uma História estrutural, totalizante, crítica, mas inovadora em relação às fontes e, sobretudo, baseada em pressupostos teóricos-metodológicos explícitos ou implícitos”.41 Porém, dado o clima autoritário e repressivo da Ditadura Militar, a concepção tradicional foi favorecida. A expansão dos cursos de pósgraduação em história, nos anos 1970, foi de fundamental importância para o surgimento do historiador profissional no país. Todavia, é importante ressaltar que boa parte dos fundadores de tais cursos era graduada em história e, com essa formação, procuravam incorporar as contribuições inovadoras. De qualquer maneira, até o começo dos anos 1980, cada programa de pósgraduação articulou, à sua maneira, a historiografia marxista, tradicional e a dos Annales. Na década de 1980, ainda segundo Falcon, começou a haver um lento declínio do modelo tradicional e da forma mais complexa do marxismo e uma expansão da Nouvelle Histoire, sendo que também houve um declínio da história quantitativa no interior dessa corrente. De forma geral, pode-se dizer que “a historiografia nacional brasileira, no momento em que a crise dos paradigmas chega ao país, no final dos anos 1980, era até então dominada por uma postura marxista de entendimento da história”.42 A partir daí, a oposição entre modernos e tradicionais tornou-se mais complexa, considerando a maneira como foram recebidas essa crise e a proposta de novas abordagens e objetos, apropriadas e resignificadas pelos historiadores brasileiros. Na passagem do século 20 para o século 21, percebe-se certo predomínio das produções denominadas como história cultural. Chegava-se a afirmar que, então, cerca de 80% da produção historiográfica nacional corresponderiam a essa forma de fazer história. Esse rápido esboço



40 FALCON, 1996.



41 Ibid., p. 10.



42 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p. 10.

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nos permite concluir que é relativamente recente a consolidação da profissionalização da história acadêmica no Brasil.43 Como se afirmou na introdução, Krzysztof Pomian observou que o relato dos eventos no mundo contemporâneo “é apanágio do jornalista, que desempenha a função do antigo cronista, notando os eventos à medida que se verificam. É também apanágio do historiador-escritor, que conta a um vasto público os eventos sucedidos no passado”. Ambos satisfazem uma necessidade vital: conhecer o que aconteceu ontem, há cem anos ou mesmo há vários milênios. “Uma vez que o relato dos eventos nunca é (...) uma simples descrição de mudanças percebidas, o jornalista e o historiador-escritor dão também um significado àquilo que falam, satisfazem a necessidade de atribuir um sentido ao mundo”.44 Esta forma de atribuir sentido é perpassada, com o já foi dito, por uma intenção de representar em verdade as coisas passadas. Tendo em vista essas pistas e a discussão esboçada neste primeiro item, procurar-se-á pensar como se dá a tensão jornalismo e história nas páginas da Máquina da Memória. Afinal, como o tempo presente inacabado é o tempo em que os historiadores não têm a primazia e/ou monopólio da história, analisar-se-ão as referidas tensões no interior desse tempo a partir do tratamento que a Máquina da Memória dá a dois eventos: o Golpe de 1964 e a Queda do Muro de Berlim.

1964: da “revolução” ao golpe Realizando um excepcional exercício de história do tempo presente, dois anos depois do golpe de 1964, o brasilianista Thomas Skidmore publicava o seu livro sobre o período de 1930 até 1964 – Brasil: de Getúlio a Castelo, publicado nos Estados Unidos, em 1966, e no Brasil, em 1969. No prefácio, o



43 Para uma análise mais complexa da profissionalização da história no Brasil, ver, dentre outros, Reis (2000); Iglesias (2000); Mota (1985, 1999); Campos (1983); Cardoso; Vainfas (1997); Cardoso; Malerba (2000); Fico (2000); Fico; Polito (1992); Lapa (1980, 1981); Moraes (2002); Rago (1995, p. 67-82); Gomes (1996, p. 157-186; Freitas (1998, p. 159-180); Carvalho (1999, p. 441-447); Capelato (1995, p. 85-94); Samara (2002) e Rodrigues (1978).



44 POMIAN, 1993, p. 231.

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autor afirma que começou a escrever o livro com o objetivo de pensar as causas da queda do ex-Presidente João Goulart, mas “o projeto inicial teve logo de ser ampliado, porque achei impossível explicar o sistema político em que Goulart trabalhava, sem examinar as origens desse sistema, na década seguinte à Revolução de 1930 (...)”. O autor ainda afirmou que estava “convencido de que a derrubada de Goulart pôs termo à era de política democrática que começou em 1945”, na medida em que “a polarização, tão evidente em março de 1964, tinha raízes bem mais profundas do que a controvérsia imediata que cercava os atos de Goulart como presidente”.45 Estava anunciada, nessa passagem, uma das controvérsias mais interessantes da historiografia brasileira do tempo presente: como articular os elementos de curta, média e longa duração para explicar as “causas” do Golpe Militar de 1964.46 Tendo em vista a relação de certas interpretações com a temporalidade, Lucilia de Almeida Neves Delgado procurou organizar as análises sobre o golpe em quatro grupos interpretativos: 1) interpretações estruturalistas e funcionais; 2) interpretações que enfatizam o caráter preventivo da intervenção civil e militar; 3) análises que privilegiam a versão conspiratória e 4) interpretações que destacam as ideias de ação política conjuntural e de falta de compromisso com a democracia.47 Para a autora, o primeiro tipo de análises, em geral efetuadas por cientistas políticos, sociólogos e economistas, hegemônicas durante os anos 1970, vinculava-se ao tempo longo por enfatizar problemas estruturais como o subde

45 SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). São Paulo: Paz e Terra, 1969. p. 17-18.



46 É possível que a afirmação seguinte de Ricoeur (2000, p. 336) sobre o Holocausto se aplique plenamente à Ditadura Militar: “tal redobramento da relação transferencial confirma a posição híbrida do historiador (e talvez até do jornalista, diríamos nós) confrontado com o Holocausto: ele fala na terceira pessoa enquanto cientista profissional e na primeira pessoa enquanto intelectual crítico”.



47 DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. 1964: temporalidade e interpretações. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; SÁ MOTTA, Rodrigo Patto. O golpe e a Ditadura Militar: 40 anos depois (1964-2004). Bauru: Edusc, 2004. Levando em conta outros critérios, Fico (2004b) afirmou que as principais teses explicativas sobre o golpe podiam ser agrupadas em três eixos: 1) valorização do papel dos militares (por exemplo, Alfred Stepan e Gláucio Ary Dillon Soares); 2) teorizações da Ciência Política (por exemplo, Wanderley Guilherme dos Santos e Argelina Cheibub Figueiredo) e 3) análises marxistas (por exemplo, Jacob Gorender e René Dreifuss).

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senvolvimento e a industrialização “tardia” a fim de explicar a deposição de João Goulart. Foram citados como exemplo os trabalhos de Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Maria da Conceição Tavares e Francisco Oliveira.48 Deixando de lado as diferenças, essas análises enfatizaram que a industrialização tardia pedia a resolução das inquietações sociais engendradas, sendo que o autoritarismo havia sido a forma encontrada para a regulação desses conflitos. A ruptura da ordem política institucional foi resultado, assim, dos conflitos sociais e políticos criados, por sua vez, pelo modelo desenvolvimentista sustentado pela industrialização dependente e pela concentração de renda. Esse projeto era contraditório com o modelo econômico nacionalista e distributivo defendido por setores progressistas, acirrando o conflito social, político e ideológico. As mudanças no padrão de capital e a crise do “populismo” tornaram o golpe inevitável. O segundo tipo de análise enfatizava o caráter preventivo do golpe. Destacam-se os trabalhos de Florestan Fernandes, Caio Navarro de Toledo e Lucilia de Almeida Neves.49 Esse grupo defendia que a ação militar procurou evitar possíveis e profundas transformações nos sistemas econômicos e políticos do país. Essa perspectiva procurava articular o tempo longo com o tempo curto. Esses autores sustentavam que, tendo em vista as ações dos movimentos sociais do período, o país poderia adotar um modelo distributivo ou mesmo, como apontou Florestan Fernandes, dirigir-se em direção ao socialismo.50



48 IANNI, Otávio. O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971; CARDOSO, Fernando Henrique. Associated-Dependent Development: Theoretical and Pratical Implications. In: STEPAN, Alfred (Ed.). Authoritarian Brazil. New Haven: Yale University Press, 1973; TAVARES, Maria da Conceição. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1975 e OLIVEIRA, Francisco. Economia brasileira: crítica à razão dualista. São Paulo: Cebrap, 1975.



49 Ver Fernandes (1981), Delgado (1989, 1997) e Toledo (1982, 1997a, 2004). (coloque assim para não ficar uma nota muito extensa).



50 Uma das importantes explicações sobre o golpe através do viés marxista foi elaborada por Jacob Gorender em 1987. Segundo o autor, o pré-64 foi uma ameaça real à classe dominante e ao imperialismo norte-americano. O golpe seria, assim, uma reação preventiva da burguesia brasileira à ameaça revolucionária (GORENDER, 1987). Em 1994, Nelson Werneck Sodré e Jacob Gorender negam a inevitabilidade do golpe: “Seria possível evitar o golpe de 64? Sim, teria sido se realmente nossas instituições fossem democráticas e sólidas. Não haveria as intervenções, nem os golpes, daí o cuidado que devemos ter, hoje, para que não haja uma ruptura no processo

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As análises que privilegiavam as versões conspiratórias, hegemônicas nos anos 1980, destacavam certa aliança entre setores da forças armadas anticomunistas, do empresariado nacional, de latifundiários, da igreja católica, de partidos de direita e do capital internacional, que proporcionaram a execução do golpe. Lucilia Delgado destaca, nesse grupo, os trabalhos de Moniz Bandeira, Heloísa Starling e René Dreifuss.51 Há um predomínio do tempo curto, mas com ênfase nas dimensões conjeturais da conspiração. As interpretações que destacavam as ideias de ação política conjuntural e a falta de compromisso com a democracia, tanto da esquerda como da direita, ganham destaque desde fins dos anos 1980. Esses trabalhos enfatizavam as variáveis do tempo curto com ênfase nas dimensões políticas. Destacavam-se os trabalhos de Wanderley Guilherme dos Santos, Argelina Figueiredo e Jorge Ferreira.52 “Para Santos, Figueiredo e Ferreira, foi a ‘radicalização’ política, e não fatores de ordem estrutural, a maior responsável pelo rompimento da ordem constitucional em 1964”.53 Tendo em vista essas questões, pretendese apresentar uma análise mais aprofundada do texto do Almanaque para se pensar a quais configurações explicativas essa publicação se filia. Entre 1975 e 1977, na parte referente à “Cronologia da História do Brasil”, presente no Almanaque Abril, são citados alguns fatos a respeito do ano

democrático” (SODRÉ, 1997, p. 107) e “repito, visto de perspectiva ampla, o golpe não era inevitável. Contudo, tornou-se inevitável na curta conjuntura dos dois ou três meses que o antecederam. A derrota das correntes que a eles se opunham também não era inevitável” (GORENDER, 1997, p. 114).

51 BANDEIRA, Moniz. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978; STARLING, Heloísa. Os senhores das Gerais: os novos inconfidentes e o golpe de 1964. Petrópolis: Vozes, 1986; DREIFUSS, René Armand. 1964. A conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro: Vozes, 1981.



52 Ver Santos (1973, 1986, 2003), Ferreira (2006) e Figueiredo (1993). Argelina Figueiredo, em seu trabalho, enfatizou as diversas possibilidades “perdidas” pelos “atores” entre 1961-1964 ou como ela denomina “as alternativas disponíveis em conjunturas críticas durante a presidência de Goulart”. A autora argumenta que “entre 1961 e 1964, escolhas e ações específicas solaparam as possibilidades de ampliação e consolidação de apoio para as reformas e, dessa forma, reduziram as oportunidades de implementar, sob regras democráticas, um compromisso sobre estas reformas” (FIGUEIREDO, 1993, p. 30). Ver, também, Figueiredo (2004).



53 DELGADO, 2004, p. 26. Ver, também, Fico (2004c).

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de 1964: Lei de remessas de lucros, Marcha da Família com Deus pela Liberdade, Revolta dos Marinheiros, discurso de João Goulart no Automóvel Clube e Golpe Militar. Entre outras questões, também havia o destaque da posição de Ranieri Mazzilli como chefe de governo interino; o decreto do AI-1 editado pelos ministros militares – que instituiu a eleição indireta para presidente da República –; e a “eleição” de Humberto Castelo Branco para a Presidência. Em contraposição à definição apresentada nas edições anteriores, em 1978 uma nova qualificação foi dada ao acontecimento que levou os militares ao poder. A palavra golpe militar foi substituída, na cronologia, pela palavra revolução. A partir da edição de 1979, foi adicionado um box explicativo, no interior da cronologia histórica, intitulado “Revolução de 64”. Tratava-se, em realidade, de uma migração do texto do capítulo “Assuntos Militares”, que até 1978 se chamava “Revolução de 31 de março (1964)”. O mesmo começa pela renúncia de Jânio Quadros, pelo retorno do vice-presidente João Goulart que se encontrava na China e a conjuntura de sua volta ao Brasil, quando “círculos políticos e militares opunham-se à sua posse, por considerá-lo comprometido com as esquerdas”. Em seguida, fornecia as informações sobre os levantes, sobre o parlamentarismo instituído para Goulart retornar ao país e ainda sobre o contexto econômico enfrentado por ele: inflação, desvalorização da moeda, alto custo de vida e constante crescimento da dívida externa. Também outras questões foram destacadas: as promessas que o presidente havia feito de realizar grandes reformas sociais, como a reforma agrária, e a nacionalização de empresas estrangeiras. O texto evidenciava que as contradições entre seu governo e a oposição se acentuavam cada vez mais. “Era um jogo perigoso e difícil, no qual a autoridade presidencial foi aos poucos se desgastando”. Choques entre fazendeiros aconteciam em vários pontos do país, sobretudo em Minas Gerais: “os acontecimentos se precipitaram com o anúncio, a 13 de março, da encampação das refinarias particulares: com a mensagem revolucionária enviada por João Goulart ao Congresso, no dia 15, traçando os rumos do novo caminho brasileiro”, e depois com o episódio da revolta dos marinheiros contra seu ministro.54 Todavia, o box “revolução”, ainda na edição de 1978, não expli

54 O Almanaque não explicava o que foi a revolta e não era mencionada, também, a importância da hierarquia para os militares. Sobre essa questão, ver D’Araújo; Soares; Castro (1994).

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cava qual era essa “mensagem revolucionária” e qual era o “novo caminho brasileiro”, apesar de ter afirmado que o pedido de exoneração do ministro da Marinha havia sido uma quebra da disciplina e da hierarquia. A liberação dos amotinados, a exoneração do ministro Sílvio Frota e a aceitação de outras reivindicações contribuíram, segundo o enredo da Máquina da Memória, para o aumento da insatisfação. Não é explicada, também, a importância da hierarquia para os militares.55 Complementando esse texto, pode-se ler na biografia sobre Goulart, ao lado do box sobre a “revolução”, que o presidente tinha dificuldades em harmonizar as pressões militares e empresariais, de um lado, com as demandas dos operários, do outro. O texto ainda destacou que “em Minas Gerais, quartel-general da oposição, o governador Magalhães Pinto, os generais Olímpio Mourão Filho, Carlos Luís Guedes, (...) e outros preparavam a reação”. Ficou decidido que a “revolta militar que derrubaria Jango” seria no dia 2 de abril. Entretanto, no dia 30 de março, o discurso do presidente para a Polícia Militar do Rio de Janeiro antecipou o movimento para o dia 31. “Iniciada a rebelião em Minas, as atenções voltaram-se para São Paulo, onde, depois de muita expectativa, os revolucionários conseguiram a adesão do general Kruel, comandante do segundo exército”.56 Segundo o texto, o presidente, que estava no Estado da Guanabara (atual Rio de Janeiro), ao receber o manifesto em que o general Mourão Filho exigia sua renúncia, foi a Brasília para contornar a situação. Porém, ao chegar, percebeu que não contava com o dispositivo militar. Praticamente ao mesmo tempo em que João Goulart fugiu para Porto Alegre, o presidente do Senado declarou vaga à Presidência e empossou Ranieri Mazzilli: “no Rio Grande do Sul, Goulart encontrou-se com Brizola, que insistia que seu Estado poderia resistir. Goulart recusou qualquer tentativa de resistência e, a 4/4/1964, pediu asilo político ao Uruguai” (grifo nosso). No dia 9, foi decretado o AI-1 e, no dia 15, o general Humberto Alencar Castello Branco tomou posse. Percebe-se, então, que, mesmo sem explicar, a narrativa do passado construída pelo Alma

55 Citava-se, anteriormente, sem detalhamento, o comício da Central do Brasil (com a assinatura de dois decretos: a nacionalização das empresas de petróleo, a criação da Superintendência da Política Agrária (SUPRA) e a organização da Marcha da Família com Deus pela Liberdade.



56 Também não foi destacada a importância da adesão do general Kruel. Sobre essa questão, ver D’Araújo; Soares; Castro (1994).

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naque apontou que a vacância anunciada, em 1.º de abril de 1964 por Ranieri Mazzili, foi inconstitucional, na medida em que João Goulart permaneceu no país até o dia 4 de abril de 1964. A inserção ou não da temática da vacância na narrativa da Máquina da Memória ditaria, em boa parte, o caminho que algumas edições posteriores “escolheram” para explicar os eventos. Pode-se dizer que esse box representa uma mistura da configuração “estrutural”, por manter a ideia da inevitabilidade do golpe, com a configuração “conjuntural”, por enfatizar os elementos da curta duração, isto é, de 1961 até 1964. Como foi dito, esse box não era novo. A narração sobre esse acontecimento já estava presente desde a primeira edição, no capítulo “Assuntos Militares”. Como não havia qualquer remissão na cronologia, o leitor que procurava essa informação pontual só podia acessá-la por meio do índice remissivo ou consultando o dito capítulo (“Assuntos Militares”). Mas a migração para esse box trouxe uma mudança significativa: a substituição da palavra golpe militar por revolução na parte referente à cronologia. Em outras palavras, até a edição de 1977 a revolução era explicada no capítulo referente aos “militares” e o golpe era citado na cronologia histórica. Com a migração do box para o capítulo de história, o golpe também se torna revolução. Tendo em vista que, de 1975 a 1985, os textos dados a ler pela Máquina da Memória procuram adotar uma posição de “independência” e, em alguns momentos, de crítica à ditadura, tende-se a acreditar que tal mudança ocorreu em função da interferência da censura na publicação.57 Segundo



57 A “postura política” da publicação pode ser vista nas seções referentes à análise dos fatos do “ano que passou”. Um texto da edição 1979 afirma, por exemplo: “porém, apesar de toda a publicidade em torno dos esforços do presidente Geisel e de seu sucessor, as pressões da opinião pública por mais democracia recrudesceram em 1978”. Para amplos setores, a anistia se tornou um compromisso bem mais profundo. Os esforços já tiveram alguns resultados. “Pela primeira vez a imprensa começou a divulgar os problemas enfrentados por exilados brasileiros no exterior devido à má vontade dos funcionários consulares de lhes fornecer desde passaportes até registro de nascimento de filhos”. Outra vitória destacada pela publicação foi o fim da censura prévia nos últimos jornais submetidos a ela, “apesar de permanecer em algumas emissoras de rádio e tv”. Além disso, afirma-se que o governo abriu precedentes para o retorno dos banidos políticos (refere-se ao retorno ao Brasil de Ricardo Zarattini) e “a 12/8/1978, Maria Nazaré Cunha da Rocha (57 anos, dos quais oito no exílio e banimento) desembarcou no aeroporto do Galeão, procedente de Paris. Ela ficará nos anais da anistia brasileira como a primeira banida política a entrar no

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Marília França, principal responsável direta pela obra até 1978, havia “uma pessoa que não era especificamente do Almanaque que trabalhava diretamente com a diretoria e qualquer assunto que pudesse ser meio controverso tinha que ser mostrado para ele”.58 Ela não lembrava se era um civil indicado pelos militares ou se era um funcionário que tinha ligações com os militares: “acho que ele foi contratado para a Abril se resguardar, não tenho certeza”. Ele supervisionava todas as publicações da editora, “era como se fosse um editor responsável. Era uma bobagem. Implicava com dados técnicos que o Almanaque publicava, índice de analfabetismo, dados oficiais do IBGE”. Segundo ela, ele sempre afirmava: “eu se fosse vocês não poria este dado porque eles não vão gostar”.59 Para Sheila Mazollenis, diretora da publicação durante os anos de 1979 a 1989, “o Editor Responsável indicou uma pessoa que ficava numa salinha escondida, ele lia o Almanaque de cabo a rabo por ordens deste editor. Não havia autonomia. Outras Redações também se reportavam a esta pessoa”. Para ela, nunca ficou esclarecido se ele era indicado pelos militares ou pela Abril: “ele respondia ao Editor Responsável, pois foi ele [o editor] que foi quem impôs isto para gente e essa pessoa não aparecia no expediente (...). Eu não posso garantir que não tenha sido uma censura interna que foi camuflada para a gente”. Segundo a ex-diretora, em dado momento, foi o editor de política nacional da revista Veja que desempenhou o papel de analisar os conteúdos antes que eles fossem publicados. Ela disse que esse controle só deixou de existir quando a Máquina da Memória entrou no grupo “Guias”, a partir da edição de 1983, e passou a ter um editor responsável diretamente ligado à publicação. Antes dessa data, apesar de não precisar quando, Mazollenis afirma que “muita coisa se perdeu, muita coisa foi cortada, depois se tentou recuperá-las para colocar nos Almanaques mais tarde”.60

país legalmente”. Pode-se dizer, de uma forma geral, que a “postura política” da obra estava inserida em um processo amplo de abertura política, vivido pela sociedade brasileira desde 1974. Sobre as dimensões desse processo, ver, dentre outros, Silva (2003, p. 243-282) e Araújo (2004, p. 161-178).

58 Marília França, entrevista ao autor, 10 jan. 2002.



59 Marília França, loc. cit.



60 Sheila Mazzolenis, entrevista ao autor, 24 jan. 2002. Marilda Varejão (entrevista ao autor, 10 jan. 2002), que trabalhava na Abril nesse momento, afirmou que essa pessoa era um editor responsável, pois era uma forma de a editora se resguardar.

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Para Lauro Machado Coelho, jornalista que trabalhou na redação do Almanaque da edição de 1975 até a de 1994, esse personagem era designado por um órgão militar, “vinha de fora e prestava serviço para Abril”. Portanto, “era um censor do regime”. Coelho afirmou que ele próprio era responsável por levar os textos para o censor, discutir e negociar o teor das matérias, sempre procurando imprimir um discurso “imparcial”. Mesmo que a maioria dos jornalistas que trabalhavam na redação do Almanaque e da Abril fosse de esquerda, a publicação não seria uma plataforma política de ninguém: “tentava ser imparcial. Nem fazer o jogo das autoridades e nem utilizar a Máquina da Memória como plataforma”. O jornalista afirmou que a imparcialidade era almejada por meio da apresentação dos dois lados, procurando afirmar o que a oposição e as autoridades argumentavam.61 O jornalista Lauro Machado Coelho lembrava que, uma vez por semana, enviava os textos para o censor: “ele se colocava do meu lado como se estivesse defendendo os meus interesses. Ele dizia: ‘eles não vão gostar se nós dissermos assim. Portanto, eu sugiro...’. Quando ele dizia ‘sugiro’ eu sabia que era uma ordem e era para cortar ou mudar”. Segundo o jornalista, “este ‘eles’ era uma personalidade abstrata e ameaçadora (...). Era como se ele (o censor) não tivesse nada com a história, quando ele era um instrumento da

61 Sobre a questão da imparcialidade, cabe fazer uma digressão. Após os anos 1950, teve-se, no Brasil, um aumento do monopólio e da concentração dos meios de comunicação, ao lado da profissionalização da atividade jornalística. Foi nesse momento que se constituiria o discurso da imparcialidade e da objetividade no jornalismo. A neutralidade faria a imprensa estar livre dos interesses de grupos da sociedade. De acordo com essa argumentação, os meios de comunicação e os jornalistas colocavam-se basicamente como reprodutores de fatos, acontecimentos ou mensagens produzidas na e pela sociedade. Para Carvalho (2001), o pressuposto fundamental dessa modernidade jornalística parte de uma dupla negação: 1) de que a produção de uma notícia (apuração, seleção das fontes e informações, ordenação e edição do material jornalístico) interfere no produto final e 2) de um espaço para a atuação e intervenção da subjetividade dos jornalistas envolvidos na produção da notícia. O pressuposto de que o jornalismo é “reprodutor de realidade” negava, portanto, a concepção que o mesmo é, na verdade, mais uma das instâncias que constroem “fragmentos da realidade”. A existência da censura, e a memória que se vai fazer dessa época, constituíram, assim, uma afronta a esse princípio, além de ser uma violação ao direito de livre expressão. Sobre a atividade da censura durante a Ditadura Militar, ver, dentre outros, Aquino (1999); Fico; Araújo (2004b) e Reis Filho; Ridenti; Sá Motta (2004).

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repressão”. Coelho disse que frequentemente procurava “reescrever do jeito que ‘eles gostavam’. Não me lembro de muitos cortes, houve alguns”. Lauro Machado Coelho afirmou que ele, juntamente com a diretora de redação, Sheila Mazzolenis, determinava aos outros jornalistas para não realizarem qualquer censura prévia: “pode ser que passasse. Não vamos assumir a função que era do censor. Se ele acha que não pode, ele corta! Mas, quem sabe ele, sem perceber, deixa sair”.62 De qualquer maneira, portanto, é importante salientar que o censor participou indiretamente da construção de diversos textos do Almanaque, pois, como salienta Lauro Machado Coelho, “ele [o censor] nunca proibia nada explicitamente. Eu sempre voltava desses encontros semanais com uma lista de recomendações de ‘coisas que valeria a pena repensar’ – ou seja, tesoura nelas!”.63 Se a presença da censura poderia justificar a mudança das palavras golpe militar por revolução, ela não justifica a permanência da mesma explicação e do conceito “revolução” até a edição de 1989. Quatro anos após a eleição indireta de um civil (1985), o título do item explicativo sobre o golpe ainda se chamava “revolução de 1964”. Esse texto da Máquina da Memória, referente ao golpe e presente na edição de 1989, apresentou algumas mudanças no que diz respeito ao texto original de 1978, apesar de demonstrar certa repetição de frases e estruturas explicativas. Percebia-se, também, que a questão da “vacância” do poder não era problematizada como nas edições anteriores. Afirmava-se que a Constituição de 1946 estabelecia que, em caso de vacância do poder, o presidente da Câmara deveria convocar novas eleições. Mas os militares, segundo o texto, “preferiram” escolher um novo governante “na pessoa de outro militar, o mal. Humberto de Alencar Castello Branco, que tomou posse em 11/4/1964, com poderes especiais”. Somente em 1990, essa parte da Máquina da Memória passou a se chamar “O Golpe de 1964 e o Regime Militar”. Por que esperar tanto tempo para renomear o evento? Tendemos a acreditar que uma nova estrutura explicativa e narrativa desponta somente nesse ano, em função da lógica da publicação: o Almanaque muda muito na forma sem alterar o conteúdo. Além disso, conforme se destacará no fim desse item, a narrativa do passado da Máquina da

62 Lauro Machado Coelho, entrevista ao autor, 9 jan. 2002.



63 Lauro Machado Coelho, entrevista escrita ao autor, 8 fev. 2007.

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Memória fez a opção pelo golpe quando, em certa medida, a guerra de memória sobre a conceituação do evento foi “conquistada” pelos “vencidos” no terreno da história. Dentre todos os textos analisados, a edição de 1995 apresentou a informação mais completa sobre o golpe e a Ditadura Militar, denominado pelos textos da publicação de “Regime Militar”. O texto procurou apreender os elementos culturais, políticos, econômicos e sociais. Foi a primeira edição que realmente rompeu com os elementos explicativos presentes no primeiro número. Percebese, no texto dessa edição, uma maior utilização dos jargões “históricos”. Ao contrário dos anos anteriores e posteriores, não se procurou, nessa edição, articular o golpe com os eventos que se iniciaram em 1961. A principal diferença dessa edição em relação às outras foi o fim da ambiguidade sobre a questão da vacância do poder, pois se afirmou que “nesse mesmo dia (1º de abril), ainda com João Goulart no país, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declara vaga a Presidência da República” (grifo nosso). Com a “deposição de Jango, o presidente da Câmara Federal, Ranieri Mazzilli, assume formalmente a Presidência e permanece no cargo até 15 de abril de 1964” (grifo nosso). Já o verbete “Regime Militar de 1964”, referente às edições 1996-1998, apresentou consideráveis diferenças em relação ao do ano de 1995. De acordo com esse verbete, o “regime militar” foi instaurado pelo golpe de Estado de 1.º abril de 1964 e durou até a abertura política no ano de 1985. A crise política do governo Goulart foi atribuída, mais uma vez, “à radicalização do populismo político de partidos e grupos de esquerda e a dura reação da direita conservadora”. Valorizaram-se, no texto em questão, os elementos de curta duração, sendo que o início da crise era localizado no ano de 1961: “a derrubada do presidente João Goulart e a instalação da Ditadura Militar são o desfecho de uma crise político-institucional que começa com a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961”. Percebe-se, então, a ênfase nos elementos conjunturais – expressos na radicalização da esquerda e da direita – conjugados com elementos que poderiam ser considerados de longa duração – como a explicação estrutural da crise do populismo. Mas a ênfase na ideia da “inevitabilidade” do golpe permanece. Além de mencionar a crise econômica do período e o medo do empresariado em relação às reformas propostas pelo então presidente, o verbete

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também destacou que parte dos atores políticos afirmava que Goulart arquitetava um “golpe comunista”. Tendo em vista essa conjuntura, “tem início uma conspiração civil-militar para derrubá-lo”, que culmina “no dia 31 de março quando unidades militares rebelam-se dando início ao golpe de estado” (todos os grifos são nossos). Assim, mesmo que esse verbete da edição de 1996 em vários aspectos seja diferente da edição de 1995, a explicação para o golpe permanece de acordo com concepção de deposição. Em 1999, afirmou-se que um golpe militar derrubava João Goulart, instaurando um regime militar. “O período é marcado pelo autoritarismo, supressão dos direitos constitucionais, perseguição policial e militar, pressão e tortura aos opositores e censura prévia aos meios de comunicação”. Afirmase que Humberto Castello Branco havia sido “eleito” e, embora se declarasse “comprometido com a democracia, adota posição autoritária”. Percebe-se que a edição de 1999 mantém, assim, a mesma estrutura argumentativa da edição de 1996, pois permite a interpretação de que os militares não tiveram outra escolha a não ser tomar o poder.64 Em 2006, a mesma estrutura de exposição que vinha se repetindo desde 1996 foi mantida. Porém, percebe-se que as mudanças formais acabaram alterando o conteúdo. Sobre a vacância da Presidência e o exílio de Goulart, as edições anteriores a 1996 eram mais claras. Elas apontavam que o presidente deposto exilou-se cinco dias após o golpe ou falavam em deposição, como é o caso da edição de 1995. A edição de 1996, apesar de citar a existência de uma “conspiração civil-militar” cujo objetivo era derrubar o presidente, descreveu o golpe do seguinte modo: “tropas saídas de Minas Gerais e São Paulo avançam sobre o Rio de Janeiro, onde o governo dispõe de apoio nas Forças Armadas. João Goulart recusa-se a colocar o país numa guerra civil e refugia-se no Uruguai”. Em função das mudanças formais, a edição de 2006 simplificou as explicações, pois nem mesmo essa recusa de Goulart foi apontada. Para dar conta das “atualidades”, o Almanaque passou por uma mudança editorial que reduziu o espaço destinado ao capítulo de história e, por consequência, simplificou consideravelmente a interpretação dada a ler em suas páginas sobre o evento. Para Lucilia Delgado, pensar os fatores que produzem rupturas de ordens democráticas “é tarefa complexa, supõe identificação e compreensão

64 Esse tipo de análise foi recorrente na impressa, curiosamente, logo após o golpe. Ver Abreu (2004).

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da multiplicidade de variáveis presentes nas conjunturas que precedem essas rupturas e supõe também identificação de elementos de longa duração que se atualizam nessas conjunturas”. Há, assim, um entrecruzamento de tempos históricos de longa e curta duração “conformando uma crise complexa, que não cabe ser interpretada através de qualquer tipo de esquema teórico preestabelecido, pois cada dinâmica histórica é singular”.65 Segundo Carlos Fico, sem a desestabilização ocasionada pela propaganda ideológica e a mobilização da classe média, além de uma mínima coordenação e planejamento da ação militar, o golpe seria difícil de eclodir. Nesse aspecto, é necessário distinguir a desestabilização da conspiração golpista civil-militar. “As transformações estruturais do capitalismo brasileiro, a fragilidade institucional do país, as incertezas que marcaram o governo de João Goulart, a propaganda política do Ipes, a índole golpista dos conspiradores, especialmente dos militares”, todos esses pontos “são causas, macroestruturais ou micrológicas, que devem ser levadas em conta, não havendo nenhuma fragilidade teórica em considerarmos como razões do golpe tanto os condicionantes estruturais quanto os processos conjunturais ou os episódios imediatos”.66 Percebemos que, dada a pluralidade de possibilidades interpretativas, nossa fonte/objeto optou pela interpretação que realçava os aspectos políticos imediatos sem destacar as possibilidades perdidas. A partir das entrevistas realizadas, tendemos a acreditar que os jornalistas tinham conhecimento de outras interpretações. Porém, a maior parte das explicações históricas dos textos do Almanaque realçam os aspectos da curta duração, pois se acreditava que eles dariam um “chão cronológico mínimo” ao leitor, meta a ser alcançada pelos textos da publicação, conforme já destacamos. Tendo em vista o pouco espaço disponível, foi essa a opção interpretativa da narrativa da publicação. O objetivo dos textos da Máquina da Memória era bem distinto dos textos produzidos por um historiador/cientista político ou social. A esse respeito, o jornalista Bias Arrudão afirmou que “nunca rompemos com a ordem crono

65 DELGADO, 2004, p. 26.



66 FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47, p. 29-60, 2004c. Disponível em: . Acesso em: 11 out. 2005.

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lógica, não tínhamos como romper. Nós não estávamos fazendo história e sim um livro de referência”. “Esta era a função do Almanaque. Tinha também uma finalidade comercial, não adiantava inventar muito, ele tinha uma função e tinha que cumprir aquela função”.67 É importante destacar que havia, nas representações do passado construídas pelas narrativas da Máquina da Memória, pequenas variações na ênfase dada a alguns “antecedentes”. Ora apareciam o governo Goulart, a renúncia de Jânio Quadros, a crise econômico-financeira, a radicalização partidária, a associação ao comunismo e a promessa de reformas sociais; ora eram mostradas as ações dos conservadores: a marcha da família, o movimento dos marinheiros e a repercussão da questão acerca dos fuzileiros navais. Pontualmente, podemos dizer que a eclosão do movimento em Minas Gerais nem sempre apareceu; a suspeita de um golpe comunista atribuído a Goulart só foi descrito em duas edições; nomes e detalhes sobre generais também não apareceram sempre e, além disso, o contexto político do governo Goulart e sua ligação com a esquerda também não apareceram em várias edições. No entanto, os agentes do movimento que derrubou o então presidente João Goulart não mudavam muito: eram os militares e alguns políticos (Magalhães Pinto, Adhemar de Barros, general Kruel, Olímpio Mourão Filho, Carlos Luís Guedes), com apoio de grupos conservadores da Igreja e do empresariado. O que mudou na trama da Máquina da Memória, essencialmente, não foram as “causas” do fato. Apesar de algumas modificações nos elementos de permanência e transformação. O que mudou, no que se refere ao Golpe de 1964, foi sua denominação. As várias conceituações do evento (golpe militar, revolução, golpe de estado, movimento de 1964, movimento revolucionário, movimento militar, regime militar) evidenciam que um acontecimento recente tem dificuldades para se cristalizar, para encontrar um vocabulário próprio, conceitual ou não, que o identifique. Além disso, a presença da censura, talvez as posições políticas da Editora Abril e dos jornalistas, e o projeto editorial da publicação também interferiram na forma de nomear, compreender e explicar o acontecimento. Destaca-se, também, que, em contextos ditatoriais o termo golpe militar (1975-1977), e em um contexto relativamente demo-



67 Bias Arrudão, entrevista ao autor, 22 jan. 2002.

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crático, a denominação revolução (1985-1989), foi mantida. O acontecimento buscava, ainda, uma denominação consensual. Em 1967, Thomas Skidmore perguntava: “terá sido uma autêntica revolução o trauma político de 1964? Se o definirmos em termos de uma transformação radical na distribuição do poder entre as classes ou setores, somente o tempo pode dar uma resposta a essa pergunta”.68 Em 1988, na continuação do seu primeiro livro, ele opta pela denominação do golpe como Revolução de 1964.69 A disputa em torno da nomeação do evento ainda estava em curso.70 Na década de 1990, os vencidos procuraram impor sua significação sobre os vencedores, porém esse processo ainda não está de todo terminado. Progressivamente, a revolução se tornou golpe. Se, em 1930, o vencedor da história impôs a memória da sua vitória, pois “a memória do vencedor parece agir sobre análises que levam explicitamente em conta a participação de vencidos”,71 em 1964 o contrário está se dando. Em boa medida, o vencedor nomeou o evento 1964 como revolução, tendo 1930 como referência. O ano de 1964 era, para os vencedores, uma retomada de rumos perdidos em 1930 em meio a desvios. Nesse sentido, “ruptura e fundação adquirem pleno significado para 30, identificado com a Nação, plena ‘revolução’ – 1964 é qualificada (pelos militares), nesse caso, por ela, como ‘revolução redentora’”.72 Em 1994, data dos 30 anos do golpe, “poucas foram as universidades no país que se lembraram de discutir e analisar, criticamente e em profundidade, este momento da vida política do Brasil. Da mesma forma, os meios de comunicação, sintomaticamente, pouco se interessaram em debater o tema”.73 Na apresentação do livro que reuniu alguns estudiosos na Universidade de São Paulo, Caio Navarro de Toledo citou duas frases, uma de Florestan Fernandes

68 SKIDMORE, 1969, p. 370.



69 SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.



70 É interessante que Geisel (1981 apud GASPARI, 2002, p. 138) afirmou que “o que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções se fazem por uma idéia em favor de uma doutrina”. Sobre a questão da nomeação de um evento, ver Brancher (2003).



71 VESENTINI, 1997, p. 169.



72 Ibid., p.159 e 161.



73 TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: Visões críticas do golpe. Campinas: Unicamp, 1997a. p. 10.

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e outra de Francisco de Oliveira, as quais evidenciavam que o conceito de golpe já se impunha, mas que 1964, e o evento derivado desse acontecimento – a Ditadura Militar (1964-1985) –, ainda não tinham se cristalizado, a saber: a “ditadura, como constelação social de um bloco histórico de estratos militares e civis, ainda não teria se dissolvido no Brasil de hoje”, e “o nosso futuro estará concluído ou estará projetado na medida em que tivermos a capacidade de resgatar a luta pela qual muitos homens, mulheres e crianças deste país morreram, deram suas vidas e seus ideais”.74 Uma década depois, em 2004, o tom já era diferente. O livro 40 anos do golpe, resultado de encontros para se discutir o evento, afirmou em sua “Apresentação” que os 40 anos do golpe militar não deveriam ser a ocasião de comemorar um aniversário, mas uma oportunidade para refletir sobre o significado do golpe e da Ditadura Militar. “Até alguns anos atrás eram poucos os historiadores que se debruçavam sobre o tema. Hoje, a pesquisa sobre os mais diversos aspectos do período do regime militar está se tornando uma área nobre da nossa historiografia”. “Mas nosso intuito não foi apenas acadêmico: acreditamos que a reflexão sobre este período pode nos ajudar a compreender os desafios de nossa democracia e a potencialidade de nossa sociedade”. Portanto, o seminário “também pautou-se pela defesa da pluralidade, da democracia e da tolerância. Um registro histórico e uma denúncia contra o arbítrio”.75 A “Apresentação” de outro livro, em 2004, também anunciou que, apesar do acontecimento ainda se fazer presente, ele começava a se cristalizar: Em 1974, dez anos depois de instaurada a ditadura, só foi possível falar com liberdade sobre o assunto em encontros realizados no exílio. No próprio país, sob o som de clarins, predominavam as ordens do dia, a exaltação do regime militar, da gênese aos celebrados feitos do milagre econômico. (...) Mais tarde, em 1984 e 1994, quando bateram os sinos dos 20 e dos 30 anos do regime militar, a sociedade, embora já tendo recobrado as liberdades democráticas, não pareceu ainda muito propensa a debater o tema, como se estivesse mais inclinada a esquecer do que a recordar com espírito crítico um passado que, visivelmente, mais incomodava do que interessava, ou satisfazia a imensa maioria. Em 2004, quarenta anos depois, pode-se constatar que o cerco do esquecimento enfraqueceu-se.76

74 TOLEDO, 1997a, p. 10-12.



75 FICO, Carlos; ARÁUJO, Maria Paula. Apresentação. 1964-2004: 40 anos do golpe. Ditadura Militar e Resistência no Brasil. Rio de Janeiro: 7 letras, 2004b. p. 11-12.



76 REIS FILHO; RIDENTI; SÁ MOTTA, 2004, p. 9.

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Ao lado de uma geração que viveu o golpe e a ditadura havia “uma nova geração de estudiosos, que não viveu pessoalmente os episódios, e extrai sua reflexão de documentos orais e escritos, e não mais da traiçoeira memória”.77 Nesse sentido, a reflexão de Daniel Aarão Reis é bastante elucidativa para se compreender as batalhas que se seguiram: “como se sabe, em História, quando ainda se desenrolam os enfrentamentos nos terrenos de luta, ou mal se encerram, o sangue ainda fresco dos feridos, e os mortos sem sepultura, já se desencadeiam as batalhas de memória”.78 Os derrotados na luta aberta podem ser os vitoriosos na luta do amanhã travada na memória coletiva. Segundo o autor, as direitas estavam, em 1964, ao contrário do que ocorreu em 1961, numa posição de defesa da legalidade, sendo o golpe um recurso para salvar a democracia. As esquerdas, iludidas pela vitória de 1961, passaram à ofensiva e desafiavam abertamente a legalidade. Em 1964, porém, a direita ganhou e imediatamente iniciaram-se as batalhas de memória: “as direitas no poder, enquanto durou a Ditadura Militar, esmeraram-se em cultivar a memória do golpe como intervenção salvadora”. Nesse sentido, “a partir de certo momento, já todos, ou quase todos, passavam a se referir ao golpe militar, que de fato se verificara, como revolução, como os golpistas gostavam de referir a intervenção militar”.79 Para o autor, muitas vezes, as esquerdas ressurgiram como vítimas bem intencionadas e vitoriosas nas batalhas de memória. No entanto, as dificuldades de encarar o evento traumático eram evidentes – a sociedade brasileira, “depois que aderiu aos valores e instituições democráticas, enfrenta grandes dificuldades em compreender como participou, em um passado ainda muito recente, da construção de uma ditadura, que definiu a tortura como política de Estado”.80 Datas como 1889, 1930 e 1964 marcam, ao mesmo tempo, o fim de um período e o início de outro, ao menos do ponto de vista político. Esses eventos devem ser considerados como a encruzilhada de um antes e de um depois. Percebe-se que 1964 começou, nos anos 2000, a entrar progressivamente no presente da história, mesmo que os governos democráticos presididos por

77 REIS FILHO; RIDENTI; SÁ MOTTA, 2004, p. 10.



78 Ibid., p. 30.



79 REIS FILHO; RIDENTI; SÁ MOTTA, loc. cit.



80 REIS FILHO; RIDENTI; SÁ MOTTA, loc. cit.

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homens que combateram a ditadura se esforçassem em criar normas, como o decreto 4.553, de 2002, que impedia os pesquisadores de terem acesso aos arquivos do período.81 A história transforma o trabalho da memória em um trabalho de luto. Muitas vezes, é uma forma de retirar dor dos objetos históricos, interiorizando-os, principalmente quando estamos na “onda de choque” do evento traumático.82 A dificuldade, nesses casos, não é simplesmente de conceituar bem, mas fazer corretamente o trabalho de luto. Ao que parece, essa tem sido uma das preocupações dos historiadores que se debruçaram sobre o tema 1964, produção essa ainda não totalmente apropriada pela Máquina da Memória, mesmo que, do ponto vista conceitual, seja perceptível que a narrativa do passado construída pelo Almanaque operou um trabalho sobre o luto com as ferramentas disponíveis a partir das escolhas possíveis de uma obra de referência de caráter didático de uma grande empresa capitalista. Desse modo, “manter presente o acontecimento” para guardá-lo como algo a ser pensado é uma forma de impedir sua dispersão no tempo e no esquecimento,83 pois o esquecimento dos acontecimentos traumáticos pode ter por efeito inesperado o retorno, no presente, dos mesmos sob a forma fantasmagórica e/ou violenta.84

1989: a queda do Muro de Berlim Como se viu no item anterior, o evento tem força inaugural e geracional. No entanto, na maioria das vezes, são os “eventos horríveis”, e não os “admiráveis”, que se impõem à memória.85 Desse modo, escolheu-se analisar a maneira como a queda do Muro de Berlim é representada via narrativa pela Máquina da Memória pelo fato de este ser um dos grandes eventos históricos admiráveis que foram tratados por ele durante o momento mesmo em que

81 Ver Costa (2004) e Sousa (2004).



82 RICOEUR, 1991a.



83 CARDOSO, Irene de Arruda Ribeiro. Foucalt e a noção de acontecimento. Tempo Social. Revista de Sociologia USP, São Paulo, n. 7, v. 1-2, p. 57-58, 1995.



84 Sobre esse ponto, ver Dosse (2005, p. 407).



85 RICOEUR, 1991a.

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acontecia. Optou-se, ao contrário do que se fez nos itens anteriores, por mostrar como a publicação narrava o evento para, depois, contrapor a análise dos textos da publicação com as pesquisas históricas. Neste item, procurar-se-á mostrar, também, algumas das possibilidades de intertextualidade no interior da Máquina da Memória. O texto da primeira edição do Almanaque Abril apresentou a Alemanha Oriental como uma solução temporária para os problemas gerados a partir da Segunda Guerra Mundial. A cronologia, presente no verbete “República Democrática Alemã” (RDA), no capítulo de “Países”, apresentava alguns elementos básicos para a compreensão desse Estado. Afirmou-se que, entre 1948 e 1949, os aliados ocidentais instalaram uma enorme ponte aérea até Berlim, desafiando a tentativa soviética de bloquear a cidade. Ao mesmo tempo, a Assembléia Constituinte da Alemanha Oriental adotou uma Constituição provisória. Assim, a Alemanha Oriental, sob ocupação soviética, estabeleceuse como um Estado comunista: “República Democrática Alemã” (RDA). Segundo o enredo do Almanaque, em 1961, o governo da Alemanha Oriental construiu o Muro de Berlim, em um esforço para evitar a fuga dos alemães orientais para o ocidente através de Berlim Ocidental. Já em 1972, o Estado da Alemanha Ocidental reconheceu a existência de um povo e de dois Estados e, nesse mesmo ano, foi assinado um protocolo final pelos Estados Unidos, França, Inglaterra e União Soviética sobre a divisão de Berlim e sobre o tráfego civil no interior dos territórios e em seus arredores. No texto que precedia essa cronologia da edição de 1975, afirmou-se que os primeiros anos foram particularmente difíceis, pois era necessário pagar os custos das tropas soviéticas em território alemão. “Isso provocou uma revolta anticomunista, em 1953, sufocada por tropas soviéticas, e um fluxo contínuo de refugiados, que escapava para a Alemanha Ocidental”, sendo expressivo o número “de profissionais liberais e de operários qualificados e que só foi estancado pela adoção de rigorosas medidas de controle das fronteiras (entre as quais a construção, em 1961, do Muro de Berlim)”. O texto do capítulo de “Países” da edição de 1989, ano da queda do Muro de Berlim, afirmava que os dirigentes alemães orientais não recebiam, com bons olhos, a política de reforma de Gorbatchov, afirmando que elas não se aplicavam ao seu país. Nesse sentido, o ano de 1988 marcou um retrocesso em relação à aparente abertura política do ano anterior. Esse endurecimento

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ganhou relevância durante os protestos que ocorreram na ocasião das comemorações oficiais do aniversário de morte dos dirigentes comunistas históricos, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. “Foram efetuadas mais de duzentas prisões e alguns líderes da oposição (...) foram obrigados a emigrar”. Outro texto da edição de 1989, presente no capítulo de “História Geral”, procurou, dentre outros aspectos, analisar de uma forma mais articulada os fatores que levaram à construção do Muro. Esse texto estava dentro do box explicativo denominado “A Expansão do bloco socialista (1945- )”. Havia textos sobre a União Soviética, Iugoslávia, Albânia, Polônia, Romênia, Tchecoslováquia, Hungria, Alemanha Oriental e China. A narrativa sobre a Alemanha Oriental se propunha a explicar basicamente a construção do Muro de Berlim. Destacou-se que “em 1953, os líderes da República Democrática Alemã – que tinha sido proclamada em out. de 1949, inspirada no modelo soviético – anunciaram a adoção de uma ‘nova linha’ visando melhorar o nível de vida da população”. Porém, “as aspirações populares, ligadas ao fato de que, por sua posição geopolítica, Berlim Ocidental foi um ponto de atrito na ‘guerra fria’, fizeram eclodir motins que, a 17/6/1953, foram reprimidos pelo Exército soviético”. Em 1958, começaram as divergências entre a URSS e os aliados ocidentais em torno do problema “do acesso ao lado oriental, e da constituição de Berlim como ‘cidade livre’: isso culminou, em ago. de 1961, na crise do Muro de Berlim, erigido em torno do setor ocidental para que o trânsito interzonas passasse, obrigatoriamente, pelos postos de controle da polícia ocidental”. Portanto, se, para a edição de 1975, a construção do Muro foi apenas uma questão de política nacional, para a edição de 1989, o Muro era também fruto das disputas da Guerra Fria. A narrativa da edição de 1991 foi a primeirA a tratar da queda do Muro de Berlim. Logo no texto introdutório da publicação, afirmou-se que a Alemanha unificada havia sido uma grande conquista para a democracia. O texto do capítulo de “Países” inicialmente explicava como havia sido feita a união dos dados para essa nova seção.86 Além disso, vários aspectos do processo de unificação ainda eram provisórios e o texto do capítulo de países cobria um período que ia até a data da unificação. A análise que constava no capítulo de “Países” procurava explicar e compreender o acontecimento:

86 Até a edição 2001, a obra de referência Quid não tinha feito a união desses dados.

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A 19/1/1989 o então chefe do Estado da Alemanha Or., Erich Honecker, declarava que o Muro de Berlim estaria “ainda em pé dento de cinqüenta ou mesmo cem anos, se persistissem as razões para sua edificação.” Menos de dez meses depois, uma multidão de alemães dos dois lados, munidos de picaretas, derrubavam o Muro e comemoravam o fim da separação forçada de mais de quatro décadas. A 3/10/1990, a nação alemã dividida após a derrota na II Guerra Mundial, encontrava-se de novo unificada. Neste curto espaço de tempo, a História alemã tivera uma de suas mais rápidas e radicais viradas de repercussão mundial, ainda não totalmente avaliadas. O principal protagonista dessa mudança foi o próprio povo do leste alemão, que isolou e derrubou o governo de Honecker – no poder desde 1971 –, afastando do caminho todas as barreiras que impediam a unificação. O primeiro passo foi dado no verão de 1989, quando milhares de alemães-orientais viajaram de férias aos países do Leste, particularmente à Hungria que, desde 2/5, começara a desmantelar a rede eletrificada em sua fronteira com a Áustria (grifos nossos).

O texto adquire um tom teleológico em alguns momentos, explicitamente presente na ideia de que era só vencer algumas barreiras para se chegar à unificação (“afastando do caminho todas as barreiras que impediam a unificação”). Nesse texto, percebe-se boa parte do sentido do evento para a história, tanto no que diz respeito à sua imprevisibilidade, na medida em que, para o dirigente da Alemanha Ocidental (Honecker), o Muro de Berlim era uma realidade dada e consolidada, no que se refere à impossibilidade de se compreender, no presente, o evento e sua difusão (“ainda não totalmente avaliados”). Percebe-se, aqui, a dificuldade de inteligibilidade que a irrupção do evento impõe a todos e, em especial, ao jornalista, já que ele deve buscar, por dever do ofício que exerce, esquemas interpretativos para pensar o novo. Isso ocorre porque o evento é indissociável das opções que o fazem aparecer. Ele surge em lugares surpreendentes e modifica todo um coletivo de forma inesperada. Há certos eventos que são a novidade e o princípio ao mesmo tempo, por isso eles causam perplexidade.87 Ao que parece, esse foi o caso de 1989.88 Tendo em vista a análise que se realizou da “Grande Guerra”, dos

87 CERTEAU, Michel de. Prise de la Parole et d’autre écrits politiques. Ed. établie et présentée par Luce Giard. Paris: Seuil, 1994b. p. 81.



88 Para Ricoeur (1991a), por exemplo, o  ano de 1989 foi  uma abertura que permite configurar conjuntos de inteligibilidade uma vez que um ciclo terminou. Segundo Nouschi (2000), os anos de 1815, 1918 e 1945 fazem parte das grandes datas que transformaram do mundo. Mas eles foram as consequências de macro conflitos. Em 1989, pela primeira vez na história contemporânea, as mudanças se realizaram fora de qualquer afrontamento.

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“‘Anos’ Vargas”, do “Golpe Militar de 1964” e da “Queda do Muro de Berlim”, percebe-se que o evento só ganha sentido na temporalidade: “um evento não é o que se pode ver ou saber sobre ele, mas aquilo que ele se torna (e inicialmente para nós)”.89 A temporalidade esclarece, explica e pode até mudar os sentidos do evento, que podem ser também, ao mesmo tempo, repetição e princípio e não novidade e princípio.90 Assim, o tempo e as apropriações futuras constroem os sentidos do evento, pois o acontecimento é um tecido que se recostura continuamente. A narrativa da Máquina da Memória trata do evento Queda do Muro de Berlim no momento de sua construção. O acontecimento, assim, aparece em um estado de incerteza, no momento “hesitante do evento”. Mesmo inserido em uma temporalidade outra que a do jornal diário, os jornalistas que escreviam os textos da Máquina da Memória tinham que tentar explicar essa irrupção do novo na edição seguinte. Procurava-se inserir o evento, então, em uma categoria preexistente, através da tentativa de introduzir “o presente no passado”.91 Os textos da Máquina da Memória não podiam, dada sua natureza jornalística e periódica, esperar a cristalização do evento para descrever o que se passou. Era necessário compreender o acontecimento por ele mesmo e transmiti-lo por meio da linguagem, pois ela é, ao mesmo tempo, um meio e, talvez, o fim, para a compreensão/explicação do



89 CERTEAU, 1994b, p. 51. Essa concepção é muito próxima do primeiro apêndice das teses da história de Benjamin (1985, p. 232): “O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da História. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente”. Pensamos que as reflexões de Marshall Sahlins complementam as de Michel de Certeau. Para o antropólogo: “O surgimento de Cook, vindo de além do horizonte, fora realmente um evento sem precedentes, jamais visto antes. Mas, por assim abarcar aquilo que é realmente singular naquilo que é conceitualmente familiar, introduz o presente no passado. (...) Ou, em outras palavras, um evento não é somente um acontecimento no mundo; é a relação entre um acontecimento e um dado sistema simbólico. (...) O evento é a interpretação do acontecimento e interpretações variam” (SAHLINS, 2003, p. 182 e 191). Ver, também, Sahlins (2006). É interessante essa passagem sobre a introdução do presente no passado quando o novo emerge, pois, para Jacques Derrida, a incapacidade da sociedade contemporânea em entender o que foi o atentado de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos nos levou a denominar o evento com um número. Ver Borradori (2004).



90 CERTEAU, 1994b.



91 SAHLINS, 2003, p. 182.

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evento. Quando se afirma que sabemos o que se passou, há uma tendência em cair em um postulado, do ponto de vista discursivo, de que nenhuma possibilidade poderia ter acontecido. Ao afirmar que “o primeiro passo foi dado no verão de 1989”, percebe-se que a narrativa do Almanaque Abril tendia a buscar algumas das origens do fato. No entanto, o texto acabou sugerindo que, dadas essas condições “naturais”, o evento se manifestaria da forma como se manifestou. Eis aí uma contradição intrínseca ao trabalho interpretativo do acontecimento: mesmo em uma explicação elaborada “no calor da hora”, no momento de construção do significado do evento, o relato assume um olhar retrospectivo. Durante esse processo de aquisição de sentido(s), o evento muda nossos conhecimentos e valores. Ao mesmo tempo, ele se torna um mito, um símbolo.92 Em 1989, qual é o símbolo? Qual é o evento? A unificação alemã? A queda do Muro de Berlim? Ambos? A queda do Muro e a unificação fazem parte de um mesmo processo? Ou são dois acontecimentos que, dada a rapidez com que ocorreram, fundem-se em um “maior”? O historiador pode esperar para tentar dar uma resposta que, na sua perspectiva, será mais completa, o jornalista, não. Na medida em que o acontecimento inaugura uma possibilidade, é necessário exumá-lo para entendê-lo.93 A descrição do evento por meio da narrativa do passado construída pelos textos da Máquina da Memória procurou, no capítulo de “Países”, exumar o acontecimento do seguinte modo: “Em 19/8/1989, cerca de seiscentos alemães, misturados a milhares de húngaros e austríacos, atravessaram essa fronteira, depois de um piquenique organizado pela oposição húngara e por um deputado austríaco, para facilitar a passagem”. Da Áustria, eles foram para a Alemanha Ocidental e “ao mesmo tempo, milhares de outros alemães orientais mantinham ocupadas as embaixadas de seu país em Praga e Varsóvia reivindicando também a emigração para o lado ocidental” (grifos nossos). Segundo o texto, as reações da Alemanha Oriental levaram os governos da Alemanha Ocidental e da Hungria a agir de forma cautelosa, em um primeiro momento. Mas, em 11 de agosto, a Hungria abriu definitivamente as fronteiras aos refugiados. Nesse dia, dez mil pessoas cruzaram a fronteira. E ao fim de um mês, já era de 25 mil o número de refugiados neste país. Em um

92 CERTEAU, 1994b, p. 54.



93 Ibid., p. 51.

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processo de êxodo sem fim, em primeiro de outubro, sete mil refugiados na embaixada da Alemanha Ocidental em Praga foram autorizados a partir em trens especiais que atravessaram parte do território oriental. Logo após sua partida, uma nova onda de refugiados ocupou a embaixada, e o governo de Berlim aceitou, mais uma vez, ceder trens para que eles se exilassem. Porém, para prevenir novas fugas, restabeleceu-se a obrigatoriedade de visto nas viagens à Tcheco-Eslováquia. A narrativa continuava: Nos dias 4 e 5 milhares de pessoas acorreram às estações ferroviárias por onde passavam os trens com os refugiados, na tentativa de acompanhá-los; e entram em choque com a polícia, particularmente em Dresden. Nesta época, também, começaram, em Leipzig, as manifestações da oposição, todas as segundas feiras, após o serviço religioso nas Igrejas luteranas. Nelas destacou-se a recém criada organização oposicionista Novo Fórum. Quando M. Gorbatchev visitou a Al. Ori. para o quadragésimo aniv. de fundação da República Democrática Alemã (6 e 7/10) foram visíveis as divergências entre ele e Honecker, que se recusara a seguir o caminho da Perestroika; e a presença do líder soviético serviu, além disto, de incentivo a novas manifestações oposicionistas. O forte aparato policial não impediu a 3000 manifestantes de protestar contra a Stasi (a policia política), pedir a Gorbatchov que viesse a seu encontro na rua e gritar o slogan “nós ficamos”, como uma afirmação de seu desejo de permanecer no país. Nos dias seguintes que se seguiram a polícia reprimiu as manifestações e efetuou centenas de prisões, mas não pôde por fim ao movimento. A 8/10, 30000 manifestantes desafiaram, em Dresden, os veículos blindados da polícia. No dia seguinte, eram 50000 as pessoas nas ruas de Leipzig, e as autoridades já começavam a dar mostras de contemporização: o prefeito de Dresden, Hans Modrow, recebia uma delegação de dirigentes oposicionistas e prometia continuar o diálogo; e a 13/10 Honecker anunciava reformas políticas e econômicas, maiores facilidades para viajar ao exterior e mais liberdade na imprensa. Essas concessões, entretanto, acabaram por incentivar ainda mais os protestos. A maior manifestação ocorreu a 16/10: mais 150 000 pessoas nas ruas de Leipzig. A 18/10/1989, Honecker renunciou a todos os seus cargos na chefia do Estado e do Partido Socialista Unificado (PSU), alegando motivos de saúde, e indicou o n. 2 do regime, Egon Krenz. Este encontrou-se com líderes da igreja, tentando mostrar predisposição ao diálogo, mas sem sucesso, a oposição condenou-o por ter chefiado a delegação que viajara à China, em apoio as autoridades locais, após o massacre da Praça Celestial; e por ter sido um dos responsáveis pela fraude nas eleições municipais de 7/5/1989. Assim, todas as tentativas de Krenz de assumir o controle da situação chocaram-se com a desconfiança da população e foram incapazes de conter os protestos: 300 000 manifestantes em Leipzig a 23/10; outros tantos a 30/10, exigindo eleições livres e democracia. A 3/11, o anúncio da reabertura da fronteira com a Tcheco-Eslováquia provocou a saída do país de mais de 40 000 pessoas; no dia seguinte a oposição deu uma extraordinária demonstração de força, levando mais de meio milhão de pessoas as ruas de Berlim (grifos nossos).

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Utilizando um subitem em negrito, com um subtítulo denominado “a queda do Muro de Berlim (9/11/1989)”, o texto passou, então, para a análise e para a descrição do evento. Afirmou-se que, nesse quadro de crise absoluta, um dos chefes do Partido Comunista havia anunciado a abertura de todos os postos fronteiriços com a Alemanha Ocidental, além da entrega imediata de vistos a quem quisesse viajar. Nos dias seguintes, cerca de dois milhões de alemães-orientais atravessaram o Muro para passar o fim de semana do outro lado. Afirmou-se que os alemães dos dois lados confraternizaram por cima do Muro, arrancando pedaços dele com picaretas. Em alguns meses, os poucos pedaços que restaram eram guardados como recordação. Para essa narrativa, inserida no capítulo de “Países”, o evento em si não era a queda do Muro de Berlim, ele ainda não era um símbolo. Dada a impossibilidade de compreensão plena, a opção explicativa foi a curta duração, o contexto imediato que, nessa leitura, determinou o surgimento da novidade. O texto usou a queda do Muro para explicar o “evento maior”: a unificação das Alemanhas. Na verdade, procurou-se dar um rosto para o acontecimento. Para a narrativa do passado construída pelo Almanaque, após a queda do Muro, os protestos continuavam e a unificação havia se dado pelo próprio povo, sem esperar as decisões dos países. Tanto as potências mundiais como os governos das duas Alemanhas foram pegos desprevenidos com a queda do Muro e todos eram, segundo a trama da Máquina da Memória, favoráveis à manutenção do status quo estabelecido após a Segunda Guerra. A cronologia, abaixo da narrativa citada, ainda no capítulo “Países”, resumia as informações do texto introdutório e afirmava que no dia 9 de novembro “o gov. Krenz decide abrir todas as fronteiras do país, incluindo os postos de passagem no muro que divide Berlim; ao mesmo tempo é anunciada a legalização da Novo Fórum”. Afirmou-se ainda que, no dia posterior, mais de 100 mil berlinenses-orientais haviam atravessado o Muro de Berlim em direção ao lado ocidental e os cidadãos alemães se confraternizaram dos dois lados do muro, sendo que alguns começaram a derrubá-lo com picaretas. É interessante notar que a queda do Muro e a legalização do Novo Fórum foram colocadas quase no mesmo status. O evento era apenas um “micro-evento” ou um epifenômeno de um acontecimento maior: a unificação alemã. Os dados posteriores a esse momento poderiam ser lidos, segundo o enredo da Máquina da Memória, no capítulo sobre os “Fatos que marcaram o

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ano” e na resenha intitulada “Alemanha: um só país”. Essa resenha também tendeu a considerar a Queda do Muro como um “micro-evento” de um evento maior, como sugere o título da análise. Logo no início, afirmou-se, que, inesperadamente, “a 9/11/1989, as barreiras policiais que controlavam as passagens entre Berlim Ocidental e Oriental tornaram-se obsoletas, permitindo que milhares de alemães orientais atravancassem as ruas de Berlim Ocid.”. “A pé ou conduzindo seus ruidosos automóveis Trabant – que se tornaram o símbolo da obsolescência da indústria do Leste –, maravilhados com as riquezas da sociedade de consumo”. Dessa maneira, “a falência política do regime comunista reacendera o sonho da reunificação, levando à queda do Muro de Berlim”. A edição de 1994 citou a Queda do Muro no subitem “Alemanha Oriental”, dentro do item do capítulo de “História Geral”: “Socialismo em mutação”. Apenas foi feita uma descrição da queda. Quatro anos depois, a partir da edição de 1995, o Muro de Berlim se tornaria um ícone, um símbolo. No capítulo de “História Geral”, a construção do Muro era explicada levandose em conta a política interna e externa da República Democrática Alemã. Afirmava-se que, no dia 13 de agosto de 1961, “para interromper o fluxo de alemães orientais que buscam uma vida melhor no Ocidente, tropas da URSS e da RDA fecham 68 dos 80 pontos de passagem entre a zona soviética e o resto da cidade. Em uma noite está erguido o Muro”. No item “Crise da Europa Oriental” – no qual se analisava a situação de diversos países –, podemos encontrar, ainda dentro do subitem “Alemanha Oriental”, a afirmação de que “em 9 de novembro o governo comunista decide a abertura dos postos fronteiriços e a destruição do Muro de Berlim, precipitando a queda do regime”. “A derrubada do Muro simboliza a reunificação da Europa, o fim da Guerra Fria e a dissolução dos regimes comunistas do Leste Europeu” (grifo nosso). A edição de 1996 apresentou um verbete sobre a “Queda do Muro de Berlim”. O texto afirmava que o Muro era o símbolo da divisão da Europa e do mundo entre as superpotências (EUA e URSS) durante a Guerra Fria. O Muro foi feito para interromper o fluxo de alemães orientais que, a partir da “Berlim soviética”, fugiam em busca de melhores condições de vida na Alemanha Ocidental. Segundo a trama da Máquina da Memória, Berlim Ocidental estava encravada no território da República Federal da Alemanha e era, assim, um polo de atração irresistível para boa parcela dos alemães-orientais

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que desejavam o estilo de vida ocidental. Até 1961, cerca de 2,7 milhões de cidadãos haviam fugido para a Alemanha Ocidental, comprometendo a economia da República Democrática Alemã. Os soviéticos fizeram várias tentativas de bloqueio de fronteira. Por fim, em 13 de agosto de 1961, tropas da URSS e da RDA fecharam 68 dos 80 pontos de passagem entre a área soviética e o restante de Berlim. Afirmava-se que, uma década depois, em 1972, as potências ocidentais concederam o reconhecimento da RDA, ante a presença inevitável do Muro em um mundo bipolarizado. Basicamente, era a mesma explicação da primeira edição do Almanaque, mas, como se tratava de um verbete, a riqueza de informações era maior. Esse texto fugia um pouco da explicação calcada na curta duração. O evento era explicado a partir de suas “causas profundas”, em especial, a Guerra Fria. O interessante, para nossos objetivos, é a afirmação de que a queda do Muro inicia a unificação da Alemanha, mas simboliza também a reunificação da Europa, o fim da Guerra Fria e a dissolução dos regimes comunistas do leste europeu, presentes nos textos da Máquina da Memória desde a edição de 1995. Ao que parece, a “repercussão do evento” já tinha sido “totalmente avaliada”. Quatro anos depois, o evento já tinha se “cristalizado” e ganhado um novo sentido. A queda do Muro estaria ligada, assim, a outro acontecimento maior, denominado Guerra Fria. Cabe notar que, na edição de 2006, a última analisada neste livro, o Muro de Berlim é mencionado dentro de um box denominado “Guerra Fria”. Afirmou-se: “o símbolo do fim da Guerra Fria é a queda do Muro de Berlim, em 1989. A Alemanha é reunificada e, aos poucos, dissolvemse os regimes comunistas do Leste Europeu. A URSS se desintegra em 1991”. O argumento de Michel de Certeau de que o evento é aquilo que ele se torna fica mais evidente quando se observa, de forma diacrônica, a cronologia sobre o ano de 1961, ano da construção do Muro. A edição de 1978, por exemplo, enumerou dez eventos de destaque para esse ano.94 Em 1989, eram 15 os



94 Ruptura entre Estados Unidos e Cuba; morte de Mohamed V, rei do Marrocos; início do julgamento de Eichmann em Israel; voo de Yuri Gagarin no espaço (o primeiro de toda a história); Cuba torna-se a primeira república democrática socialista da América do Sul; assassinato do ditador da República Dominicana desde 1930, general Leônidas Trujilo; independência do Kuwait; construção do Muro de Berlim; a Síria deixa a república árabe unida após um golpe militar e a conservação do nome RAU pelo Egito.

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eventos remarcáveis para 1961.95 Já em 2002, o único evento destacado para o ano de 1961 foi a construção do Muro de Berlim. A importância simbólica adquirida pelo evento fez com que a sua edificação fosse mais importante, por exemplo, que a viagem ao espaço feita por Yuri Gagarin.96 Vejamos, agora, como os historiadores explicam a queda do Muro de Berlim. Inicialmente, analisar-se-ão obras ou trabalhos de caráter geral. Eric

95 Como a cronologia era divida por continente, tinha-se uma visão mais global. Além dos eventos citados em 1978 (apenas um é retirado), eram mencionados: o início da guerra de independência de Angola; a independência de Serra Leoa; a fundação da Organização da Unidade Africana; o início, no Irã, da “revolução branca” pelo xá Mohamed Reza Pahlevi com objetivo de modernizar o país; golpe militar na Coreia do Sul pelo general Park Chung-Hi; invasão frustrada de exilados cubanos na Baía dos Porcos; envio dos primeiros assessores militares americanos ao Vietnã do Sul; I Conferência de Cúpula dos Países Não-alinhados e Rebelião Curda no Iraque.



96 A obra de referência francesa Quid nos oferece um bom contraponto para se pensar o tratamento dado pelo Almanaque Abril à queda do Muro de Berlim. O Quid 1971 trazia um texto específico sobre o Muro de Berlim. Segundo esse texto, “as primeiras pedras foram colocadas na noite do 12 ao 13-8-61 por unidades do exército e pela polícia popular da Alemanha do Leste. (...) Terminado oficialmente em 29-11-61, o muro sofreu diversas transformações. A altura é de 3,50 m e a largura de 50 cm a 1 m dirigidos sobre os 46 km da linha de demarcação que separa o setor oriental dos setores ocidentais de Berlim. Há, na verdade, 2 muros, o 1º sobre a linha fronteiriça ela mesma e o outro a 100 metros. (...). O muro é vigiado permanentemente por 10.000 h. (....)”. Afirmava-se que ele havia custado quase 20 milhões de marcos ocidentais. Antes do muro, havia 80 pontos de passagens entre as duas Berlins. Naquele momento, apenas 7.200 pessoas tinham autorizações especiais para trabalhar no Leste. Segundo o Quid, além de impedir a passagem para Berlim Ocidental, o Muro havia sido construído a fim de impedir as atividades de espionagens exercidas a partir de Berlim Ocidental e para por fim ao mercado negro monetário. No fim de 1968, 64 pessoas tinham sido mortas ao tentarem fugir. O Quid 1980 afirma, por exemplo, que segundo a “Associação do 13 de agosto” (data da construção do Muro de Berlim), havia, em 1977, sete mil presos políticos, sendo uma grande parte de condenados por espionagem. O Quid 1987 afirma que, até o fim de 1984, 73 pessoas foram mortas na fronteira, 116 foram feridas e 38.604 fugiram, sendo 553 soldados. A edição 1990 descrevia que as 2.230.000 minas que existiam ao longo do muro foram retiradas e que esse era mais um gesto para uma possível união das duas Alemanhas. A queda do muro era tratada pela edição 1991 como apenas mais um evento, dentre outros, de um processo que culminou na unificação. Como se pode perceber, o Quid preocupava-se mais em oferecer ao leitor os dados brutos, ao contrário do Almanaque Abril e do L’État du Monde (como se mostrará mais adiante).

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Hobsbawm, em seu livro sobre o século 20, citou a construção do Muro quando analisou as responsabilidades dos Estados Unidos e da URSS durante a Guerra Fria.97 Para o autor, pode-se dizer que a responsabilidade pelo crescimento do medo recíproco e do afrontamento entre as duas superpotências coube a elas mesmas. Teria sido neste contexto de ameaças que o Muro havia sido construído. Hobsbawm não fez qualquer referência à queda do Muro em si; analisou a queda dos países do bloco socialista, pois, para ele, o grande símbolo do final do século 20 foi o fim do processo da Guerra Fria e da alternativa socialista. O evento emblemático era a dissolução da URSS. Em um livro sobre a história do século 20, Serge Berstein e Pierre Milza analisavam a queda do Muro dentro de um item sobre o fim do comunismo na Europa do Leste (1988-1991).98 A Alemanha Oriental e a Bulgária foram incluídas no mesmo quadro analítico, pois eram os dois Estados que se mostravam hostis à perestroica. Pela análise, Honecker não deixava espaço para qualquer forma de oposição e a manutenção do Muro de Berlim simbolizava essa ausência de liberdade. Segundo esses autores, alguns fatores como o êxodo massivo de alemães que emigraram para o Oeste pelas embaixadas da Alemanha Ocidental, em Praga e Varsóvia (outubro de 1989) e a ida de Gorbachev para Berlim, em comemoração ao aniversário da Alemanha Oriental, eram os sinais de uma série de manifestações populares que “sacudiram” o regime. Ao assumir o poder, Krenz prometeu profundas reformas para controlar a situação. Mas, rapidamente “os eventos se precipitaram” e deixaram vazios os planos dos dirigentes. Em 10 de novembro, a autorização dada aos alemães do leste para viajar ao exterior rompeu uma das engrenagens de sustentação do regime. O Muro, daí em diante, seria inútil e, por isso mesmo, foi desmantelado. Alguns meses mais tarde, deu-se o fim do comunismo e a reunificação alemã. Ao analisar a “crise e degradação” do socialismo, Daniel Aarão Reis afirmou que, em 1989, o socialismo desapareceu na Europa Central. Como prenúncio dessa mudança, ele citou a ascensão ao poder do sindicato Solidariedade na Polônia. O autor afirmou que, na República Democrática Alemã,



97 HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.



98 BERSTEIN, Serge; MILZA, Pierre. Histoire du XXe siècle. 1973 à nous jours vers la mondialisation. Paris: Hatier, 2001. p. 269 e 371. Tome 3.

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“apresentada como o mais próspero país socialista do mundo, grandes manifestações tinham levado à queda do todo-poderoso E. Honecher e, um pouco mais tarde, à do Muro de Berlim, erguido em 1961, e que parecia eterno”.99 São ainda mencionadas as eleições livres na Hungria, a Revolução de Veludo na Tchecoslováquia e a deposição violenta dos comunistas da Romênia. Um dos capítulos do livro O Século sombrio, denominado “As Revoluções do Leste Europeu: A Crise da Ordem Comunista”,100 apresentou um item específico sobre a queda do Muro. Os processos de democratização e de reorganização econômica implementados por Mikhail Gorbachev teriam contribuído para um movimento de flexibilização política em países como a Polônia e a Hungria. “A revolução que ganhou corpo na Alemanha Oriental, e pôs fim à ditadura comunista, se dera em virtude de mudanças radicais ocorridas em outras nações, como por exemplo, a Hungria”.101 Segundo o autor, as manifestações ocorridas um mês antes da queda do Muro, por ocasião do aniversário de 40 anos da RDA, não questionavam o comunismo enquanto sistema político, mas sua versão ditatorial. Destacou-se o medo de que as manifestações se tornassem uma explosão de violência, como ocorreu no início de 1989, na China, além da importância do papel da Igreja, que coordenava os protestos pacíficos. A queda do Muro foi descrita do seguinte modo: Diante das pressões, o regime resolveu assumir a direção da revolução e iniciou uma gama de reformas. Em 18 de outubro, o Politburo substituiu o enfermo Honecker pelo sorridente Egon Krenz, (...). O governo tentou minimizar as pressões liberando viagens ao Ocidente (...). Tratava-se, no entanto, de uma determinação de pouco fôlego diante das mudanças significativas que estavam em marcha. Essas mudanças tornariam-se irreversíveis a partir de 9 de novembro. Um membro do governo, em entrevista a imprensa, argumentou que a concessão estabelecida pelo regime anulava, na prática, os objetivos originais do Muro de Berlim. A repercussão desse comentário foi enorme. Muitos cidadãos berlinenses – de ambas as



99 REIS FILHO, Daniel Aarão. Crise e desagregação do socialismo. In: ______; FERREIRA, Jorge; ZENHA, Celeste (Orgs.). História do Século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 11-76. v. 3.

100 SILVA, Carlos Leonardo Bahiense. As Revoluções do Leste Europeu: A Crise da Ordem Comunista. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira. O século sombrio: guerras e revoluções do Século XX. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 331-345. 101 Ibid., p. 294.

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partes – correram em direção ao Muro. Diante de uma multidão, os guardas que vigiavam a fronteira prontamente abandonaram seu trabalho de emitir ou carimbar vistos. Uma euforia muito grande tomou conta das pessoas ali presentes. (...). Em poucos dias, vários pontos de contato foram abertos com Berlim Ocidental. Com sua curiosidade agudizada pela mídia, rapidamente os berlinenses orientais cruzaram a fronteira para vislumbrarem o mundo capitalista. (...) os alemães tinham posto abaixo o grande ícone da Guerra Fria. Um símbolo de intolerância e autoritarismo. E certamente extrairiam forças dessa experiência para realizar as tarefas históricas que lhes restavam cumprir.102

Como era de se esperar, os livros ou artigos específicos sobre a história da Alemanha são mais complexos. Para Jean Solchany, por exemplo, a RDA era um Estado Policial.103 Havia um colaborador informal da polícia secreta para cada 120 habitantes. Foi nesse clima de vigilância e medo que, em 1988, os resultados das eleições começaram a ser questionados. O autor propôs compreender a dinâmica histórica da Alemanha Oriental nos anos 1980, para entender o seu fim, e não o contrário: evocar as dificuldades do poder comunista no final do decênio de sua existência não deve conduzir, apesar de tudo, a privilegiar uma leitura teleológica do passado que reduzirá os anos 1980 a uma simples ante-sala dos eventos de 1989.104

Não foi em vão que os dirigentes do Estado não aderiram à perestroica. O regime da Alemanha Oriental era mais estável nos anos 1980 do que no início dos anos 1950. Segundo Solchany, deve-se buscar as causas para se compreender o fim da RDA tanto em fatores internos ao regime quanto em fatores externos. Procurando um meio termo entre essas posições, com certa tendência, no entanto, a privilegiar a influência externa, ele afirmou que a crise do final dos anos 1980, na Alemanha, não foi somente uma crise entre outras que se generalizaram na Europa comunista nessa mesma época. De acordo com o autor, devia-se analisar um conjunto de fatores de natureza econômica, social, cultural e política, sublinhando os limites internos da dominação comunista. Porém, as principais razões da dissolução desse Estado deveriam adquirir per-

102 SILVA, 2004, p. 295. 103 SOLCHANY, Jean. L’allemagne au XXe siècle. Paris: PUF, 2003. p. 420. 104 SOLCHANY, loc. cit.

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tinência à luz do contexto internacional soviético. Desse modo é que se deveriam entender a imprevisibilidade e a contingência dos eventos de 1989.105 A incapacidade do governo de conter as manifestações e de apresentar ações concretas às diversas formas de contestações, impulsionadas indubitavel 105 Para o anuário francês L’État du Monde, que era reescrito todos os anos por especialistas, a queda do Muro de Berlim não significou uma grande surpresa. A edição 1989 trazia um texto assinado por Anne-Marie Le Gloannec no qual ela afirmou que o ano de 1987 foi um ano de muitos protestos e repressões. Segundo La Gloannec, o regime não poderia, por muito tempo, controlar a situação, ainda mais sem fazer reformas como as que estavam em curso na Hungria, Polônia e URSS. A edição 1990 ainda não tratava da queda do Muro, mas Jacques Rupnik afirmava: “é conveniente falar em um processo de decomposição de um sistema comunista, decomposição cujas formas e ritmos variam. (...) Os regimes do Leste europeu estão desestabilizados no interior pela pressão das sociedades, e do exterior pelo fator Gorbachev” (p. 32-37). Mais à frente, na mesma edição, Roger de Weck afirmava que Honecker, presidente da RDA, restava com espírito estalinista, e o regime estava ameaçado pelas reformas do leste (p. 450). A edição seguinte tratava dos acontecimentos de 1989. Logo no início da publicação, Alfredo Valadão afirmava que “a queda do muro de Berlim, em 7 de novembro de 1989, acabou definitivamente com a Segunda Guerra Mundial e seu corolário, a Guerra Fria. Como em 1945, em 1919 ou nos anos 1890, a questão central que renasce é o lugar que a Alemanha terá no concerto das potências” (p. 20-22). O texto específico sobre a Alemanha, assinado por Joachim Fritz-Vannahme, afirmava: “seu 40º aniversário, celebrado em 7 de outubro de 1989, foi, para a RDA, o último enquanto Estado soberano” (p. 135-138). Segundo o autor, a partir de maio de 1989, tudo se acelerava. A Hungria abria a fronteira com a Áustria, e o partido oficial da Alemanha Oriental (SED) ganhou as eleições com 98,8% dos votos sendo acusado de fraude. Para o autor, o êxodo através da Hungria aliado a uma articulação das oposições marcará o fim do regime de Honecker. Seu substituto não era bem visto por participação nas fraudes eleitorais e por felicitação ao governo Chinês no massacre da paz celestial. O diálogo aberto com a oposição não tocava no monopólio do partido. O autor descrevia a queda do muro do seguinte modo: “A 19:07, em 9 de novembro, o regime anuncia para o dia seguinte a abertura do Muro, mas o povo não quer mais esperar e abre pacificamente as barreiras em plena noite. Nas horas que se seguem, os alemães festejam os reencontros nos dois lados do muro. Nas manifestações de segunda, aparecem os gritos: ‘nós somos o povo’ e cada vez mais acompanhados por ‘nós somos um povo’”. Percebe-se que, mesmo focando a conjuntura imediata, pela natureza de seus colaboradores (a maioria especialista nos assuntos que escreve), esta publicação (L’État du Monde) trazia uma análise mais complexa sobre a conjuntura imediata que o Almanaque Abril. É importante destacar também que o público-alvo do L’État du Monde era um pouco diferente do público do Almanaque. A maior parte dos leitores daquela obra era constituída de estudantes universitários de ciências humanas (Sergio Cordolier, Diretor do L’État du Monde, entrevista ao autor, 21 fev. 2005). Ver L’État du Monde (1988, 1989, 1990, 1991).

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mente pela pereistroica, é uma das “causas” que, segundo o autor, uma análise a posteriori permitiria identificar. Solchany procurou entender as repressões às manifestações de 1988 (em que se liam as frases de Rosa Luxemburgo) como o início de uma crise política generalizada, impulsionada pela liberalização dos outros países do Leste, sendo que, no caso da Alemanha, a Igreja Protestante desempenhou importante papel de mediação. Do ponto de vista econômico, ele argumentou que os dirigentes da Alemanha Oriental optaram por esse endurecimento por superestimar o seu desenvolvimento econômico nos anos 1980. Relatórios do Banco Mundial, publicados em 1984, colocavam o país como a 12.ª potência econômica, e outras análises, apontavam que seu nível de produtividade era superior ao da Alemanha Ocidental. Mas, para ele, as questões econômicas não desempenhavam um papel direto para o fim do regime.106 Outros aspectos dizem respeito, por exemplo, à importância das emissões televisivas da Alemanha Ocidental, dos seriados americanos, da sedução da sociedade de consumo e da diferença de vida entre os dois países, principalmente para os jovens.107 Portanto, a queda do Muro deveria ser entendida e explicada no contexto de endurecimento político (aliado a fraudes nas eleições), de crise financeira, de sedução da cultura de consumo, de protestos generalizados que a abertura da cortina de ferro pelos países vizinhos acabava ocasionando e, ainda, pelas levas e levas de migrações.108 Como foi dito, o jornalista que escrevia a Máquina da Memória estava submetido a uma temporalidade diferente do jornalista que escrevia diariamente, semanalmente e mensalmente. Porém, a leitura que os textos do Almanaque faziam do mundo era pautada por essa imprensa diária, tanto é que boa parte do trabalho dos que produziam a Máquina da Memória consistia na leitura de jornais diários e na apuração dos fatos que eles veiculavam. Comparando como os textos da Máquina da Memória relataram a queda do Muro de Berlim nas edições 1991 e 1996, percebe-se que a linguagem, a abordagem e a conceituação de um determinado acontecimento deixa de ser “jornalística” (edição de 1991) e se torna “histórica” (1996). O evento “Queda do Muro de

106 SOLCHANY, 2003. 107 Ver, também, Roth (2002). 108 SOLCHANY, loc. cit. Ver, também, Berstein; Milza (1999); Bresson (2001) e Lorrain (1995). Para uma análise simbólica da queda do Muro e, principalmente, da unificação, ver Link (1993, p. 59-61).

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Berlim”, em um primeiro momento, foi explicado com as ferramentas que o jornalista dispunha para expressá-lo na conjuntura imediata, ao passo que, após quatro anos, esse acontecimento é esclarecido a partir do jargão histórico. Nesse sentido, no interior da estrutura do Almanaque Abril havia lugares específicos, como, por exemplo, os capítulos de Países e de História, em que, tendo em vista o evento, a proximidade e o distanciamento se operavam separações e cruzamentos entre a “escrita jornalística” da “escrita histórica”. Como se viu, por meio das representações do passado narradas pela Máquina da Memória referentes ao Golpe de 1964 e à Queda do Muro de Berlim, quando o evento inicia sua cristalização, a narrativa do passado construída pelo Almanaque abandona o “domínio jornalístico” e se inscreve no “domínio histórico”, sendo nutrido pela pesquisa histórica e das demais ciências humanas e sociais. Para Sarkis, o historiador, dado a especificidade de seu ofício, em geral, dá a última palavra sobre o evento. A interpretação do jornalista pode ser questionada pelo historiador, mas a do historiador pode, no máximo, gerar controvérsia, em geral, entre próprios historiadores. “O privilégio do historiador é a duração”,109 talvez essa seja a principal diferença entre o trabalho jornalístico e o histórico. A esse respeito é bastante interessante o livro Última dança sobre o muro: Berlim (1989-1990), do historiador e jornalista Robert Darnton. Nesse livro não lemos o historiador e, sim, o jornalista.110 Darnton estava em Berlim durante 1989-1990, como testemunha do evento Queda do Muro de Berlim ele escreve um diário com suas impressões do acontecimento. Para ele, o que se passou foi uma verdadeira “revolução”. Nesse sentido, apesar de algumas intercessões, percebe-se que o “tempo do evento” não é o mesmo para jornalistas e historiadores. Porém, como a publicação trabalha com uma temporalidade mais larga, isto é, um ano, os 109 SARKIS, 1999, p. 126. 110 DARNTON, Robert. Dernière danse sur le mur. Paris  : Odile Jacob, 1992. Para Rioux (1991, p. 192-205), a relativa confusão entre jornalismo e história, e entre história do tempo presente e “história imediata”, acaba por criar alguns historiadores-jornalistas e jornalistas-historiadores. Ao que parece, no Brasil, os três jornalistas-historiadores mais conhecidos são Hélio Silva, Fernando Morais e Eduardo Bueno. Talvez o mais bem sucedido seja Elio Gaspari com sua série sobre a Ditatura Militar. O historiador Luiz Felipe Alencastro, por exemplo, assina uma coluna na revista Veja. Tais textos não deixam de ser de um historiador que faz incursões no jornalismo.

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tempos de ambos os ofícios começam, como vimos, a se confundir quando se analisam os acontecimentos do tempo presente “inacabado”. Aos olhos do jornalista diário, o jornalista que trabalha na Máquina da Memória trabalha com o “evento frio”, ao passo que, aos olhos do historiador, o jornalista que escreve os textos do Almanaque trabalha com o “evento quente”. Por ser a Máquina da Memória, a publicação visava, então, “a textos mais duráveis em que a dimensão puramente jornalística – fornecer informações o mais atualizadas possível – se fundisse à dimensão do contexto histórico e da análise”.111 Mais que qualquer outro jornalista para escrever para os textos do Almanaque Abril, era “preciso” mergulhar nas estruturas, na especificidade do próprio acontecimento – e talvez até na “conjuntura da estrutura”112 –, procurando estabelecer alguma relação entre evento e estrutura, como faz (ou deveria fazer) o historiador profissional. Por outro lado, aos olhos de um historiador, por exemplo, do período colonial, o historiador do tempo presente trabalha com o “evento quente”. Portanto, é muito difícil, e talvez não seja desejável, distinguir de forma definitiva qual é o “tempo do evento” do jornalista e do historiador. Porém, o que se deseja apontar é que se trata da existência de temporalidades distintas, não excludentes. Além disso, é importante destacar que o interesse do historiador está mais concentrado nos sentidos e na fabricação do acontecimento do que no fato em si. De qualquer maneira, procura-se demonstrar que, em função da fronteira flexível entre história, memória e jornalismo, se percebe na Máquina da Memória histórias e memórias híbridas que coexistem, muitas vezes, de forma conflituosa no interior da publicação. Portanto, para o “evento admirável” (1989), a separação entre a “escrita jornalística” e a “escrita histórica” foi superada em nome de uma abordagem consensual, ao passo que, para o “evento traumático” (1964), esse processo foi lento e, de certa forma, inconcluso até a última edição analisada. O “evento admirável”, nesse caso, cristalizou-se mais rápido do que o “evento traumático” no interior do tempo “presente inacabado”, nas páginas de nossa fonte/objeto.

111 Lauro Machado Coelho, entrevista escrita ao autor, 8 fev. 2007. 112 SAHLINS, 2003.

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Considerações finais

Sem o futuro o presente não serve para nada, é como se não existisse. José Saramago

Com este livro, procurou-se inserir uma fonte/objeto contemporâneo, a Máquina da Memória, em outras temporalidades que não o instante, buscando articular o(s) tempo(s) curto(s) e o(s) tempo(s) longo(s). A possibilidade dessa operação foi demonstrada quando se analisou as “origens” do sucesso do Almanaque, sua história editorial, como a história aparecia e foi (re)construída em suas páginas. Ao longo desse percurso, algumas direções foram tomadas. Tentou-se indicar que o almanaque é um gênero editorial suscetível de se adaptar a múltiplos conteúdos e formas. Nesse sentido, acredita-se que a “nova” literatura de almanaque reinventou a tradição de um antigo subgênero: a dos almanaques urbanos e enciclopédicos. Possivelmente, o Almanaque Abril acabou por reinventar uma tradição. Se a “primeira origem” do sucesso da Máquina da Memória se deve à sua filiação ao gênero almanaque, buscou-se identificar uma “segunda origem” desse sucesso na história da casa editorial que o lançou no Brasil. Como foi enfatizado, a obra fazia parte de um projeto da Editora Abril, na década de 1970, de ocupação de todos os segmentos do mercado editorial brasileiro de grandes tiragens. No momento da publicação do Almanaque, já havia na Abril uma tradição de publicações de cunho educacional e cultural,

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que iam desde obras didáticas até fascículos, livros e enciclopédias de divulgação ou difusão científica. A publicação se aproveitou dessa tradição e também da excelente estrutura de distribuição e publicidade pré-existente. Expôs-se, também, que a Máquina da Memória estava no cruzamento entre a tradição jornalística liberal e a tradição de obras “culturais” e “didáticas”. Apesar de se poder identificar um apelo liberal em suas peças publicitárias, acredita-se, no entanto, que a publicação esteve mais ligada à tradição cultural do que à tradição liberal da empresa. Dividindo a história da edição da Máquina da Memória em três momentos, enfatizou-se que a grande mudança do projeto editorial da obra aconteceu a partir da edição de 1996. Até essa data, o periódico pretendia organizar e difundir “todo” o conhecimento, utilizando textos longos e, em geral, complexos, para atingir um público amplo com uma publicação barata e sem grandes sofisticações gráficas. Após 1996, o Almanaque passou a organizar e disponibilizar o conhecimento com ênfase nos aspectos “atuais”, procurando descrever e analisar o presente imediato, utilizando textos curtos, ilustrados e, em geral, de leitura simples. Abandonou-se a linguagem de caráter mais “enciclopédico” em nome da objetividade e do aproveitamento do espaço. Levantou-se a hipótese de que o jornalismo focado no presente imediato pode ser interpretado como um sintoma do regime de historicidade presentista. Por outro lado, destacou-se que a recusa da escritura enciclopédica a partir de 1996 não significou o fim de sua “vocação” como o Livro de Todo-o-Saber. A Máquina da Memória continuou mostrando que tudo sabia, agora sobre as “ditas atualidades” ou sobre o “presente monstro”. Assim, pelo simples fato de ser um almanaque, ele não perdeu totalmente sua dimensão enciclopédica. Considerando a “questão da leitura e do leitor”, construiu-se uma tipologia dos leitores, a partir de cartas enviadas para a redação do Almanaque Abril, dividindo-os em três grupos: críticos, satisfeitos e solicitantes. Apresentou-se que os leitores satisfeitos construíram uma “apropriação não-controlada”, dada a confiança excessiva nas narrativas da Máquina da Memória como meio para a autoformação. Os críticos se apropriam dos textos da publicação de forma controlada por outras leituras; os textos do Almanaque para eles é um meio entre outros para a autoformação. Os solicitantes de informação também apresentam relações de proximidade e distanciamento, porém não se dispõe de elementos para afirmar como se opera a apropriação dos textos da publica-

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ção por esses tipos. De todo modo, um aspecto importante que distingue os dois tipos, críticos comparativistas e os solicitantes de informação, diz respeito à questão da proximidade e do distanciamento. A distância dos primeiros é resultante, precisamente, do acesso que esses leitores têm a outras publicações do mesmo tipo que lhes servem de base para a crítica; e a dos segundos, do contexto de suas necessidades/experiências cotidianas, não incorporadas/ atendidas pelos textos da obra. Trata-se de distanciamentos diferentes. Os dois são próximos seja porque conhecem bem a estrutura e o conteúdo da publicação e a utilizam como fonte, seja porque escrevem buscando reciprocidade. Pensa-se que os solicitantes de produtos são categorias residuais, pois, se para os outros leitores, em geral, os textos da Máquina da Memória contribuíram para a constituição da(s) identidade(s), para esse grupo de leitores ela foi apenas um recurso que poderia ou não ser constitutivo para suas vidas. Tendo em vista, essa tipificação, percebe-se, nesses leitores do Almanaque, tanto uma postura de resistência como de aceitação – levando-se a endossar certas reflexões que procuram repensar o esquema binário tática/ estratégia, construído por Michel de Certeau, para pensar as práticas de leitura. A partir das cartas, tendeu-se a perceber a leitura estando situada entre estratégias e táticas. A partir daí, procurou-se pensar o horizonte de expectativas dos leitores da narrativa do passado produzida pela Máquina da Memória e como a publicação procura responder a essas expectativas. Conforme foi apresentado, a partir da forma como a história e/ou o passado foi tratado nas páginas do Almanaque, pensa-se que talvez a maioria dos leitores compartilhe um horizonte semelhante e/ou próximo. Eles esperam do Almanaque uma narrativa cronológica, factual e linear. Nesse sentido, partindo da hipótese de que as representações do passado construídas pelas narrativas da Máquina da Memória estão situadas no cruzamento entre o discurso jornalístico, o conhecimento histórico acadêmico e a história ensinada, buscou-se pensar a permanência de uma história dita “positivista” nas páginas da publicação. Na produção historiográfica, a prova documental (citada em nota), a explicação causal/final e as regras que regem a escrita (“estilo”), de alguma forma, contribuem para dar um “efeito de real” e/ou “verdade” ao texto histórico.1 Ao

1 RICOEUR, 2000, p. 232.

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passo que, nos textos do Almanaque Abril, a história era uma representação do passado “controlada” pela cronologia. A cronologia, como principal marca de historicidade que os textos da publicação utilizavam, era um elemento fundamental no estabelecimento do contrato de verdade entre a obra e o leitor. Como se viu, essa representação do passado era, entretanto, imbuída de autoridade e tensão, uma vez que as representações do passado construídas pelas narrativas do Almanaque mostravam, ao serem introduzidos boxes explicativos, que a análise puramente cronológica era insuficiente para compreender e explicar a história. Dessa maneira, conclui-se que as categorias “tradicional” ou “positivista” são insuficientes para se compreender e explicar a história representada, construída e dada a ler pela Máquina da Memória. Buscando pensar a falsa oposição entre evento e estrutura, mostrou-se que o evento ganhou legitimidade novamente, desde os anos 1970, enquanto objeto na historiografia. Identificou-se, em várias edições, uma tentativa, mesmo que muitas vezes tímida, de estabelecer correlações entre evento e estrutura. Se a história “científica” dos anos 1960-1970, na prática, eliminou o evento, no Almanaque Abril observou-se, praticamente, na maioria das edições, uma situação inversa. Destacou-se, a partir de Reinhart Koselleck, a importância fundamental de estabelecer uma relação entre essas duas esferas, pois, em torno de um evento, há uma multiplicidade de níveis de temporalidade, de experiência e de conceituação. O acontecimento é irredutível, pois ele é constituído por um “nó” de temporalidades atualizadas em um momento dado. Os eventos são prisioneiros de um antes e de um depois, ligados à cronologia e empiricamente verificados. Mas essa dimensão deve dialogar com a dimensão estrutural e conceitual, pois os eventos e as estruturas são, ao mesmo tempo, abstratos e concretos. Os conceitos como, por exemplo, “causas profundas”, “populismo”, “revolução”, “golpe”, “unificação”, permitiram à Máquina da Memória superar, compreender e explicar a massa de eventos e a singularidade de cada um. Tendo em vista as questões da apropriação diferenciada das interpretações históricas pelos atores sociais e como a memória é instruída por meio da história e vice-versa, mostrou-se que a narrativa do passado recente construída pela publicação incorporou uma produção historiográfica legítima. No caso específico da edição de 1995, é até perceptível a pretensão de se produzir uma análise complexa e plural, para além da dimensão política. Partilhou-se

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a concepção de que é necessário compreender e aceitar a pluralidade irredutível das histórias. Não há uma história total, que se constituirá por acumulação de verdades parciais. Há várias formas de se pensar uma mesma história. Formas que respondem a lógicas diferentes e implicam resultados diferentes, mediante problemáticas, fontes e argumentação variadas. Ao longo da trajetória do Almanaque, percebeu-se que, nos capítulos de “História”, o mesmo texto aparece com estrutura editorial diferente, sugerindo uma roupagem nova para um conteúdo “velho”. Nesse caso, a conjugação da cronologia com um texto narrativo, presente em quase todas as edições, contribuiu para a sensação de transformação de um discurso que estava ancorado na “realidade objetiva” da cronologia. Deve-se observar que, em geral, era a forma que propunha o novo. Três vezes, ao longo dos eventos analisados, surgiram novas propostas editoriais que implicaram uma nova interpretação histórica. Assim, embora algumas edições tratassem com maior riqueza o acontecimento, pouco se avançava na compreensão/explicação. Em geral, o argumento utilizado na explicação era correto, mas não havia pretensão de esgotar a questão, o que era muito razoável para uma obra de referência. Na teoria, o jornalista era responsável por elaborar um texto, e o consultor do capítulo de “História”, que por sua vez era, na maior parte dos casos, autor de manuais escolares, era responsável por aprová-lo. No entanto, acredita-se que, na maioria das vezes o consultor elaborava um texto que era seguidamente refeito pelo jornalista, acarretando, em alguns casos, até a uma mudança de sentido, como no caso da “vacância de poder de João Goulart”. Muitas vezes, ainda, percebeu-se certa prudência na interpretação ou na compreensão/explicação apresentada. De todo modo, a trama da Máquina da Memória foi nutrida, muitas vezes, por conceitos e discussões consagradas, cristalizadas pela historiografia. Mesmo que o jornalista, ou o consultor do capítulo de “História” do Almanaque, pretendesse imprimir objetividade à narrativa, essa objetividade, ela por si mesma – e pela cronologia que lhe servia de base –, já implicava, implícita ou explicitamente, um viés interpretativo por parte da narrativa do passado dada a ler pela publicação. O objetivo era explicar o que aconteceu! Analisando a escrita da história, Krzysztof Pomian afirmou que há três tipos de discurso sobre os eventos: o primeiro incide sobre os que se produzem na esfera de visibilidade comum aos autores e aos leitores do discurso; o segundo, sobre os que se produzem na esfera de visibilidade dos autores do dis-

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curso, mas que, para os leitores, pertencem ao campo do invisível; e o terceiro, sobre os que pertencem ao campo do invisível tanto para os leitores quanto para os autores. Derivam daí três tipos de história: “uma história contemporânea, uma história do passado próximo, uma história do passado remoto”.2 A partir de uma sugestão de Paul Ricoeur, mostrou-se as possibilidades de se pensar o tempo presente a partir das categorias “tempo terminado” e “tempo inacabado”, pois, em certo sentido, a primeira corresponde à “história do passado próximo” e a segunda à “história contemporânea”, conforme esses dois termos são definidos por Pomian. Assim, procurando entender como a história se transforma em memória e vice-versa, na busca de compreender a problemática das diversas representações do passado no presente nas páginas da Máquina da Memória, foram indicados alguns aspectos da constituição da história do tempo presente “inacabado” e como ela se transforma em uma história do tempo presente “terminado”. Destacou-se ainda que a história transforma o trabalho da memória em um trabalho de luto. Muitas vezes, o trabalho sobre o luto é uma forma de retirar dor dos objetos históricos, interiorizando-os, principalmente quando estamos na “onda de choque” do “evento traumático”. A dificuldade, nesses casos, não é simplesmente conceituar bem, mas fazer corretamente o trabalho de luto. No que se refere ao Golpe de 1964 houve, no interior do Almanaque Abril, certa dificuldade em apropriar as reflexões do campo da história acadêmica para nomear e interpretar o evento, ao passo que as interpretações sobre os sentidos da queda do Muro de Berlim foram rapidamente aceitas. Para o “evento admirável” (1989), a separação entre a “escrita jornalística” e a “escrita histórica” foi superada em nome de uma abordagem consensual, ao passo que, para o “evento traumático” (1964), esse processo foi lento e, de certa forma, inconcluso até a última edição analisada. O “evento admirável”, nesse caso, cristalizou-se mais rápido do que o “evento traumático” no interior do tempo “presente inacabado”, nas páginas de nossa fonte/objeto. Quando foram analisadas as periodizações, reiterou-se que elas servem para tornar os fatos “pensáveis”. Há também uma questão de cunho existencial que foi deixada de lado. Uma periodização é, também, construída como uma forma de acesso ao futuro: “querem tornar-se pensáveis os fatos tam

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2 POMIAN, 1993, p. 221.

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bém, ou mesmo, sobretudo, para se poder pensar no que ainda não entrou na ordem dos fatos, mas é susceptível de entrar mais cedo ou mais tarde”.3 Talvez seja por esse motivo que uma concepção de história tradicional seja desejada pela sociedade: ela conforta o homem, pois dá o sentido de continuidade à história e à existência! A Máquina da Memória, portanto, oferece chaves de acesso para que seu leitor pense o devir. Assim, analisar o Almanaque só faz sentido se pensarmos nos leitores dos textos da publicação.4 Foi o leitor quem legitimou e se apropriou do poder simbólico da Editora Abril; foi ele quem comprou uma obra que se inseria de forma particular na tradição de sucesso da literatura de almanaques; foi ele quem, de forma particular, exerceu suas táticas e estratégias na apropriação da publicação; quem desejou viver mais, na medida em que a leitura não serve somente para dar êxito às pessoas e, sim, para além de suas funções estéticas e educativas, para dar mais vida.5 Foi o leitor quem leu, apropriou-se e utilizou a história do Almanaque. A Máquina da Memória só foi um sucesso porque existiram “milhões” de leitores que o leram, utilizaram-no e se apropriaram do conhecimento disponibilizado por esse Livro de Todo-o-Saber. No entanto, o futuro que, muitas vezes, a Máquina da Memória oferece a seu leitor, pode vir-a-ser entendido como um prolongamento do passado e do presente. Dessa maneira, articular continuidade e descontinuidade poderia vir-a-ser um importante instrumento para se conceber outro devir no jornalismo, no ensino de história, na história não acadêmica e na história acadêmica. Seria necessário, nas diversas formas de representação do passado no presente, pensar um futuro como uma possibilidade construída no presente e no passado contribuindo para se problematizar os diversos regimes de historicidade que convivem em nosso presente histórico. Em especial, para dinamizar, por meio da abertura do passado e do futuro, o campo de experiência e o horizonte de expectativa, contribuindo para impedir, assim, uma possível fusão de ambos. Nesse sentido, este livro é também uma leitura da Máquina da Memória. Procurou-se mostrar que as hibridações entre história e memória presentes no

3 POMIAN, 1993, p. 209.



4 Sobre esse tipo de abordagem, ver Grignou (2003).



5 Ver Eco (2002, p. 24).

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Almanaque Abril não ocorreram sem tensões e contradições. Para Costa Lima, “as modalidades discursivas mantêm circuitos dialógicos diferenciados com a realidade”.6 É preciso pensar que a realidade não é uma, mas múltipla e composta de tempos diversos a fim de que seja aberto “um leque de possibilidades discursivas”. Sem desejar resumir o complexo argumento, é interessante observar que o autor deixa em aberto os desafios para converter em “porosas as aporias que orientam os discursos”, pois “as aporias são indispensáveis aos discursos”, mas “hão de ser flexíveis”.7 As aporias podem ser entendidas, assim, como entroncamentos, encruzilhadas que criam obstáculos. Dessa forma, uma questão surge: como desdobrar as diversas representações do passado a fim de pensarmos em prosseguimento/movimento da vida e do presente, mas sob outros mapas?8 Assim, tentou-se problematizar o “fosso” – procurando constatar, articular e construindo pontes – entre memória e história, sem também recobrir as duas noções,9 e, sobretudo, entre a história pensada, praticada e ensinada.10 Buscou-se enfatizar também os limites das pretensões do conhecimento histórico. Por outro lado, partilha-se da observação de Paul Ricoeur, há um privilégio da história, por meio da narrativa, em escutar, criticar, corrigir e desmentir a memória coletiva de uma dada comunidade. “É sobre o caminho da crítica histórica que a memória reencontra o sentido da justiça”.11 Considera-se que, dada a nossa condição mortal, a Máquina da Memória é mais um “remédio” e/ou veneno que contribui para esse esforço dos homens em não se esquecer de si mesmo, do tempo e da própria morte. As práticas e as apropriações plurais da Máquina da Memória podem tornar seus textos um remédio, um remédio e veneno e, ainda, remédio ou veneno para esse esforço em não se esquecer de si, do tempo e da própria morte. Frente às potencialidade e aos limites do texto escrito, são os leitores que negociam e escolhem as apropriações e os usos, dentro de certos limites, que procuramos realçar.

6 LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 385.



7 Ibid., p. 13 e 14.



8 Sobre a relação desse ponto com a questão das aporias, ver o livro de Simões (2008).



9 Sobre esse ponto, ver Dosse (2005, p. 406).



10 MELLO, Evaldo Cabral de. Um imenso Portugal: história e historiografia. São Paulo: Editora 34, 2002.



11 RICOEUR, 2000, p. 650.

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O trabalho histórico foi, portanto, a busca desse senso de justiça. Escrever história hoje é buscar a felicidade do presente, a fim de uma vida justa dos homens junto a outros homens: “ouvir o apelo do passado significa também estar atento a esse apelo de felicidade e, portanto, de transformação do presente, mesmo quando ele parece estar sufocado e ressoar de maneira quase inaudível”.12 Tratar-se-ia de um compromisso e uma busca em compreender e explicar o passado “por piedade e fidelidade [aos mortos], mas também por amor e atenção aos vivos”.13 Pensar sobre representações do passado no presente e sobre as funções sociais da história, como ética de responsabilidade para o presente, é, assim, uma busca de “possibilidades perdidas”/“futuros do passado”, a fim de se construir outras histórias. Outras histórias, outras memórias, outras memórias, outras histórias. Nesse sentido, mediante o estudo sobre o Almanaque Abril, espera-se, também, ter contribuído para o debate em curso que procura problematizar certas dicotomias por muito tempo naturalizadas pelas ciências humanas e sociais, tais como: história e memória, dominantes e dominados, passado e presente, distanciamento e proximidade, evento e estrutura, história “tradicional” e história “nova”, história factual e história temática, história acadêmica e história não profissional. Sobre essa última, ainda gostaríamos de dizer que este livro nos mostrou que, por mais que nós, historiadores, esforcemosnos por monopolizar as relações do homem com o passado, elas extrapolam os objetivos e funções do nosso campo. As hibridações e a pluralidade das representações do passado no presente, que perpassam as páginas da Máquina da Memória e que está na confluência da história ensinada, do conhecimento histórico acadêmico e do jornalismo, responde a diversas demandas e lógicas desse ser histórico que é o homem. Essas representações acrescentam dimensões existenciais à vida dos homens. Elas são apropriadas de forma singular por cada indivíduo e servem para estruturar nossa vulnerável condição histórica de existir e de ser no mundo. Afinal, nós fazemos a história e nos fazemos histórias porque somos históricos.14 Outras histórias, outros passados, outros



12 GAGNEBIN, 2006, p. 12.



13 Ibid., p. 105.



14 RICOEUR, 2000. A ideia de histórias é aqui retomada no sentido das histórias de Heródoto.

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presentes e outros futuros. Nesse sentido, a partir da discussão efetuada sobre os regimes de historicidades, pensamos que fazer e ensinar histórias pode vir-a-ser uma possibilidade de construir passados sem passadismos, presentes sem presentismos e futuros sem futurismos. Cruzeiro dos Peixotos, junho de 2009.

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Sobre o Livro Formato

16 x 23 cm

Tipologia

Minion (texto) Minion (títulos)

Papel

Reciclato 75 g/m2 (miolo) Cartão Supremo 250 g/m2 (capa)



Impressão

Off-set



Acabamento



Tiragem



Costurado e colado 500

Equipe de Realização Coordenadora Editorial



Projeto gráfico



Normatização e Referências bibliográficas



Catalogação



Revisão



Capa e diagramação

Ilustração

Prof.ª Ms. Carina Nascimento Equipe EDUSC Carolina Bravalhieri Danielle Pinheiro Angela Moraes Hilel Mazzoni Máquina de Leitura (1730, Hamburg, Museum für Kunst und Gewerbe)

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