Performance principle e Performance Art: Marcuse e a normatividade do sensível

August 18, 2017 | Autor: Silvio Carneiro | Categoria: Performance Studies, Herbert Marcuse, Performance Art, Estética, Teoría Crítica, LATESFIP-USP
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Performance Principle e Performance Art: Herbert Marcuse e a normatividade do sensível Silvio Ricardo Gomes Carneiro1

Foi em 1969 que Marcuse se pronuncia breve, mas duramente, sobre o destino das artes no território da performance. Em seu texto “A arte como forma de realidade”2, apresentado no ciclo de debates no Museu Guggenheim, o autor procura compreender os destinos das artes contemporâneas, sobretudo a respeito do tema curiosamente ainda presente nos debates estéticos sobre o “im das artes”, no sentido de seu esgotamento expressivo. Ainal, se é que tal destino é possível, seria a performance uma expressão deste esgotamento? O que estaria acontecendo no horizonte estético ao ponto de movimentos culturais apresentarem-se como anti-arte? Qual a força crítica deste processo de criação/destruição cultural? Eis algumas questões enfrentadas por Marcuse naquela ocasião. Dentre os pontos levantados, não basta reincidir na qualiicação da performance como parte do complexo da indústria cultural, posto que as manifestações performáticas de então buscavam uma expressão diversa e, por vezes, consciente do combate contra a cultura airmativa do capitalismo. Julian Beck, um dos principais membros do Living heatre, reconhecidamente um dos principais grupos de performance da época, reiteradamente considera a produção de seu grupo como of-Broadway. As montagens de peças como Frankenstein ou he Brig (de autoria do próprio grupo), ou

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Dr. Fausto acende as luzes (de Gertrude Stein), ou Antígona (baseada na leitura de Brecht sobre o clássico grego) são amostras importantes desta característica. O próprio Marcuse reconhece o caráter político assumido pelos movimentos culturais de então, quando compara os modos “clássicos” de protestos entre as canções da Guerra Civil Espanhola e as músicas de protesto nos anos 1960, ou ainda, entre a representação teatral crítica de Brecht e do Living heatre. No emparelhamento destes dois tempos, Marcuse descreve: Testemunhamos não apenas o ataque político, mas também e primeiramente, o ataque artístico à arte em todas as suas formas, à arte como Forma propriamente; se a arte continua a ser em geral nada, ela deve ser real, parte e parcela da vida – mas da vida enquanto é ela própria negação consciente do modo de vida estabelecido, com todas as suas instituições, com toda a sua cultura material e intelectual, toda sua moralidade imoral, seu comportamento clandestino e solicitado, seu trabalho e sua diversão.3

Ou seja, o que se percebe cada vez mais é que as manifestações artísticas de grupos de esquerda desferem não apenas um ataque político, mas um ataque à forma artística, procurando se distanciar do campo cultural burguês da Arte pela Arte enquanto se aproxima cada vez mais da esfera da vida como eixo de criação. Passo que nos oferece muitos elementos de relexão sobre o signiicado das performances nas artes contemporâneas. Talvez, de início, resida aí a diiculdade entre os estudiosos em deinir a performance enquanto arte. Segundo Marvin Carlson4, uma performance não se restringe a algum gênero artístico prévio: não é nem dança, nem teatro, nem cinema, nem poesia, nem arte plástica apenas. No entanto, elementos variados destes gêneros artísticos estão fortemente presentes em seu processo criativo. Assim, o antropólogo Victor Turner chega a deinir a performance como uma “atividade liminóide”5, uma arte que não se restringe por um material que lhe dê suporte, mas que opera “entre” todos eles. Com isso, oferecer a experiência sobre os estados intermediários pode ser sua principal característica de uma manifestação performática. Alcançar a experiência desta liminaridade, no caso do Living heatre, marca a experiência teatral que se dissolve e se aproxima da esfera da vida. Ali, não se procura mais o distanciamento radical entre ator e público. Sequer uma experiência do ator ou do público em separados. Pensa-se, antes de mais nada, em como apreender o intermédio entre ator e público e, neste sentido, desenvolver jogos, rituais ou representações que permitam a interferência entre os espaços, de modo a tornar indistintos os seus limites. No universo de Julian Beck, é pos-

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sível se questionar até onde segue o ator, até onde segue o público, até onde seguem os personagens. Neste sentido, Pierre Biner, estudioso do Living heatre, faz o seguinte retrato do alvo a ser atingido pela performance: Habitualmente o ator goza de um estatuto privilegiado, tanto no palco, como na vida real. No palco, fala na terceira pessoa; fala dos outros, dos seus papéis. E o espectador tem a tendência de se ver livre de perguntas embaraçosas que certas pessoas podiam formular, dizendo para consigo: ‘são atores, é tudo teatro, não é a valer’. Portanto, não sente realmente. Experimenta mentalmente. Para que o espectador sinta, é preciso que o seu físico – o sofrimento físico deixa o homem autenticamente desarmado, ao contrário do que acontece com o sofrimento psíquico – seja atingido.6

Tal busca pela sensação do caráter diruptivo da performance sobre os espectadores – já acostumados com ironias e distanciamentos , outrora brechtianos, agora recorrentes nos espetáculos da Broadway – tem relexos na concepção de espaço teatral e sua linguagem. Seu teatro tem o cenário esvaziado, de tal modo que, muitas vezes, é o corpo do ator ou do público que assumem as imagens cênicas do palco. De acordo com Biner, o teatro vivo é “um local de recolhimento, um local nu, em que não haja fugas, como é geralmente o caso: eliminação de tudo o que não é essencial, sendo o essencial o corpo do ator, a presença carnal do ator”7. Ou seja, há uma construção que procura explorar todas as dimensões do corpo, o qual, por vezes, assume a função de uma cadeira para outro personagem, por outra, reúne-se aos demais corpos de atores, formando o movimento de uma nau, de uma grande cruz, ou de uma criatura composta de diversos corpos mortos, como a imagem inal da peça Frankenstein, apresentada a seguir8:

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Desde então, o limite a ser enfrentado não é simplesmente a quarta parede que divide o espetáculo e o público, mas um redimensionamento dos elementos performáticos, alargando a dimensão do espetáculo até o espaço do público, ou ainda, até as ruas. É assim que arte e vida se diluem uma na outra, de tal modo que o impulso criativo das performances do Living heater se orienta pelo ritmo da vitalidade. Como lembra Marcuse, em performances como esta, seria a vida que desfere o ataque político e, ainda mais, o ataque artístico às artes; seria a vida, enquanto consciência negativa da realidade estabelecida que seria apresentada no palco do Living heatre, ensaiando o horizonte das críticas ao universo descrito, continuamente por Julian Beck, de uma sociedade disciplinar e prisional. Presos diversas vezes, inclusive em Ouro Preto nos anos 1970, Beck e sua companheira Judith Malina sempre airmavam que o cárcere difere da vida cotidiana apenas por conta desta ser uma prisão ilusória; ilusão que se apresenta em diversas formas nos comportamentos e nos papeis sociais desta civilização repressiva. Portanto, a partir de seus alvos, não se pode airmar que a performance do Living heatre deixaria de ser crítica. Entretanto, no texto de Marcuse, a desconiança ainda paira no ar. Ainal, por mais radicais que sejam as críticas de Julian Beck e sua trupe, nada alivia um certo incômodo na postura de Marcuse diante esta manifestação artística, quando airma: ao eliminar a distância entre os atores, o público e o ‘exterior’, estabelecem uma familiaridade e uma identiicação com os atores e a mensagem deles as quais dirigem rapidamente a negação, a revolta para o universo cotidiano – como um elemento prazeroso e compreensivo deste universo. A participação do público é espúria e o resultado de acordos prévios; a própria mudança na consciência e no comportamento faz parte da peça – a ilusão é mais fortalecida do que destruída.9

Airmação que contrasta com os modos radicais reconhecidos por Marcuse na música de Schöenberg, na literatura de Kaka ou nas peças de Beckett. O que nos leva a questionar: o que sustentaria tais preferências? Haveria um conservadorismo estético por trás destas airmações que cegariam Marcuse entre as manifestações artísticas dos anos 1960? A performance como princípio Explicar a posição de Marcuse por um conservadorismo parece ser a resposta mais clara. No entanto, esta clareza pode signiicar outra coisa: uma resposta fácil ao questionamento da radicalidade crítica das artes.

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Para um ilósofo que tem o campo estético em alta conta, do primeiro ao último de seus ensaios, sobretudo no que diz respeito ao teatro e à literatura10, airmá-lo conservador demais para compreender a vanguarda de uma nova geração signiica deixar de lado os caminhos pelos quais a estética permeia seu pensamento. No entanto, ainda há outra hipótese que explica a rejeição da performance pelo autor: as críticas marcuseanas seriam contraditórias, quando lembramos que, já em sua tese de germanística sobre o Romance de Formação do Artista bem como posteriormente em Dimensão Estética, as inquietações do autor quanto as articulações entre arte e vida, relação que apresenta a estética como arma crítica da sociedade estabelecida. Estaria Marcuse se contradizendo ao recuar diante da performance teatral de Julian Beck, que procura em seu teatro justamente uma expressão artística da vida? A hipótese do Marcuse contraditório seria válida, não fosse o modo como a articulação entre vida e arte é problematizada pelo ilósofo. Ainal, há um princípio que organiza a relação entre ambas no pensamento de Marcuse, que é deixado de lado pelo Living heatre. Trata-se do caráter mimético de uma obra de arte, elemento ausente nas performances. Sobre isso, o antropólogo Richard Schechner airma que a performance não é uma arte mimética, na medida em que o processo de imitação não deixa de separar arte e vida11. Em outros termos, enquanto na concepção tradicional, a arte é uma imitação da vida, mantendo um distanciamento da vida pela forma artística, a expressão performática pretende reproduzir a vida. Como Pierre Binier exempliica, enquanto em uma peça de Brecht, a atriz airma ao público representar uma personagem, provocando o sentido do distanciamento ao espectador, no caso do Living heater, os atores airmam-se enquanto atores representando uma personagem, gerando algo diverso de um estranhamento brechtiano, a saber: a possibilidade direta de diálogo com o público para saber como o ator deve representar sua personagem, qual o destino dela em determinado momento da peça etc. Com tal recurso, o espaço e o tempo da performance são determinados pela particularidade do encontro, deixando o processo criativo ao impulso do momento, de modo que a contingência da vida ganha espaço no interior da encenação. Na leitura marcuseana, o limite da performance se daria justamente neste momento: no ataque às formas artísticas burguesas, evidenciando a vida como dispositivo criativo, procurando atingir no público a experiência sensível da repressão social mediante a ruptura do distanciamento e o convite à participação, atingindo mais do que as formas burguesas de

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arte; no limite, atinge-se a forma estética como um todo, desmoronando assim, aquilo que Marcuse considerava um dos pilares críticos do universo estético: a ruptura da arte diante da realidade estabelecida. Ainal, se algo ainda se preserva como crítico no universo das artes é seu caráter dual, que permite uma outra construção social, recusando a realidade estabelecida em todas as suas formas; sobretudo, quando a realidade é organizada pelo performance principle12, categoria central das críticas marcuseanas à sociedade contemporânea. Termo recorrente na obra marcuseana. Já em Eros e civilização, o performance principle possui um caráter organizativo dos modos de vida próprios de uma racionalidade que dissolve as oposições à realidade estabelecida. Em outros termos, é a partir do que é dado, nua e cruamente na vida social, que os sujeitos desempenham suas funções no interior de uma sociedade clivada por um sistema de classes. Neste sentido, acostumamo-nos a caracterizar o performance principle a partir da sociedade burocratizada e repressiva tanto da extinta URSS quanto do Estado de Bem-Estar social em que os “homens não vivem suas vidas, mas desempenham [perform] funções preestabelecidas”13. Contudo, é possível airmar que o performance principle impera em dinâmicas sociais mais lexíveis, conforme Marcuse avança em seus estudos sobre a sociedade unidimensional. No interior de uma sociedade em que as oposições não precisam mais ser dissolvidas mediante o terror, uma vez que passam a ser integradas no corpo social, cada vez menos o pensamento crítico encontra espaço disruptivo avesso ao que é estabelecido. Por conseguinte, partidos em disputa se pautam em universos de ação e de discurso muito próximos. No caso especíico da arte, a performance apenas indicaria para Marcuse o sentido estético cada vez mais restrito que escape do universo integrado de experiências mutiladas. Ou seja, quanto mais próximo da vida e mais contrário à constituição de uma forma estética, mais a arte se enreda pelo universo estabelecido do discurso. Por mais que se questione ao público pelas opções de sua trama, mais lhe é oferecido os restos da experiência mutilada da sensibilidade e do pensamento unidimensional. É bem verdade que a recusa do Living heatre atinge a relação entre a forma estética enquanto forma mercadoria (algo que pode ser exempliicado mediante a queima de dólares em uma de suas peças). No entanto, ao dizer sem muitas metáforas suas críticas e procurando atingir de maneira mais direta as ilusões de seu público, até que ponto o Living heatre abandonaria o território contra o qual se rebela? Até que ponto sua performance não passa a ser invadida pelos elementos da realidade que pretende criticar?

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Antígona Um caso exemplar para relexão é o modo como o Living heatre representa nos anos 1960 o prólogo de Antígona a partir das adaptações de Bertold Brecht. No caso do dramaturgo alemão, havia duas versões deste prólogo. Na primeira, atualiza-se a discussão de Antígona – a personagem grega que invoca a lei dos deuses contra a lei dos homens – mediante a encenação da execução de um soldado alemão desertor capturado pelas tropas da SS, enforcado na porta da casa de sua família em Berlim no ano de 1945. As duas irmãs do soldado, encontram na casa as marcas do irmão que retorna foragido e, ao longe, acabam ouvindo alguém torturado. Sem saber que era seu irmão, as duas travam o diálogo sobre o que fazer: mostrar-se ou manter-se ocultas? Mais tarde, sabendo do destino trágico do irmão, perguntam-se, de um modo similar à tragédia grega, sobre o que fazer com o corpo, enforcado na praça pública como traidor. Após este prólogo, inicia-se o primeiro ato com o diálogo entre Antígona e Ismênia. Uma segunda versão foi apresentada anos mais tarde por Brecht: ao invés de remeter o público ao cenário de Berlim em ins de guerra, os atores apresentam seus personagens na tragédia grega, airmando ao público naquele instante o universo teatral da representação da tragédia. Nas duas versões, embora por caminhos diversos, Brecht procura explorar o universo do estranhamento: seja pelo deslocamento temporal da peça: remetendo a tragédia grega aos tempos contemporâneos; seja através da ruptura entre personagem e ator, como no prólogo que adverte seus espectadores do que estavam representando. Nos dois casos, o estranhamento desloca a realidade, mantendo o universo teatral intacto em sua forma estética. Na versão do Living heatre, o prólogo se dá de modo completamente diverso, conforme descreve Pierre Biner: Enquanto o público se instala, os atores chegam um a um e viram-se para o público. Os grupos fazem-se e desfazem-se. Estão iluminados o palco e a sala [onde está o público e que representa Argos, adversária de Tebas, cidade de Creonte e Antígona]. O olhar dos atores é frio e duro, por vezes pessoal: um ator observa sem amenidade um espectador. Os tebanos observam os argianos. O espectador sente-se pouco à vontade. Ele viera para a ‘festa’, mas é acolhido com severidade. É destronado, já não é rei. No ar paira a hostilidade. Nada de frivolidades. Os atores, por momentos, ousam mesmo conversar. Sem respeito pelo público, parece, por ele que pagou para os ver. O público já não se reconhece como tal. (…) Quando a hostilidade é claramente pressentida, o Living, que não fez mais do que medir o adversário, com a disposição de espírito de um combatente que avança para o exército inimigo, passa ao estado

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de guerra: os atores acocoram-se e, protegendo a cabeça com as mãos como se ensina a fazer às crianças das escolas americanas para se preparar contra ataques aéreos, emitem um som que imita o das sirenes. Creonte, momentos depois, envia combatentes para Argos, Quando termina a batalha, faz-se um grande silêncio”14.

Comparando esta descrição com a perspectiva brechtiana, é possível destacar algumas divergências. Primeiramente, no que se refere à dissolução dos limites entre os campos do ator e do espectador. Muito embora haja uma postura hostil ou mesmo a indiferença do ator perante seu público, o alvo do Living heatre é a sensibilidade do público. Não se trata de uma técnica de estranhamento aos moldes de Brecht, mas de uma identiicação do público com o clima da peça; um público que entra no jogo, que sente na pele fazer parte da peça. Conforme Marcuse, entre a peça brechtiana e a performance do Living heatre há uma diferença fundamental: através do estranhamento, o ataque político e artístico de Brecht preserva, no limite, uma forma estética, uma proposta de criação que, evita fazer da Antígona uma reprodução clássica da tragédia, mas que não deixa de preservar uma forma estética própria ao seu tempo. Algo que não se sustenta na versão do Living heatre, uma vez que é o caráter da experiência vivida, ainda que mutilada, o caráter determinante do rumo de sua performance. Neste sentido, é característico quando Biner, ao descrever as peças da trupe, comenta o quanto este seu esforço é limitado, posto que as apresentações variam a cada dia, alongando-se em alguns momentos, reduzindo-se em outros – na medida em que se busca a sensibilidade a cada apresentação. Talvez, para Marcuse, o Living conceda demais à sensibilidade mutilada pelo princípio do desempenho. E, assim, ao atingir o alvo político, o grupo acaba atingindo a manifestação artística, reduzindo o caráter crítico e criativo da forma estética ao jogo lúdico – ou transgressivo – permitido socialmente. A crítica que nasce da estética Neste sentido, o que explicaria a opção marcuseana por Brecht ao invés da performance do Living heatre reside muito mais na capacidade disruptiva que a forma estética brechtiana permite do que uma opção conservadora ou contraditória de um autor que sempre pensou a relação entre arte e vida. A desconiança marcuseana se dá no limite das manifestações artísticas diante das exigências críticas próprias ao princípio do desempenho. Entretanto, como romper com esta grade de ferro?

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Decerto, a resposta não está no abandono das artes. Trata-se de encontrar nelas seu potencial crítico e, neste sentido, avançar sobre as margens sociais. Por isso, as apostas de Marcuse estão lançadas sobre aquilo que sustenta o elemento artístico. É na estética que é possível uma nova sensibilidade; é na estética que surge a racionalidade capaz de rearticular as experiências a despeito de sua mutilação. O autor indica a “forma estética” como elemento fundamental para esta crítica: “O que constitui a identidade singular e permanente de uma ouevre e o que faz de uma obra uma obra de arte – este elemento é a Forma”15 – é a forma que faz com que o conteúdo alcance a unicidade da obra de arte: o modo como uma história é contada, aquilo que se deixa dizer, mas se apresenta na obra de arte, a reunião entre pontos, linhas e cores. Conforme Marcuse, mesmo em tempos de reprodutibilidade técnica, há algo da forma estética que reside nesta reprodução, havendo uma identidade da obra no interior da reprodução16. Isto porque, mais do que uma marca identitária, a forma estética é o princípio normativo pelos quais os materiais da experiência sensível passam a ser dispostos, de modo que a Antígona nas mãos de Brecht encontra novas leis, novas formulações estéticas que assumem o compromisso de apresentar o clássico grego sem perder o desaio estético dos anos pós-guerra, ou melhor, sem perder o encontro das técnicas de estranhamento com a representação trágica. Desta maneira, enim, Antígona salta no tempo e atinge a realidade de nosso tempo: com o estranhamento, Brecht não providencia apenas uma técnica contemporânea de representação, mas um modo de atingir a realidade. Aqui, dialeticamente, a arte imita a vida de modo a estranhá-la. A performance, por sua vez, ao rebelar-se contra a “forma artística”, identiica todo jogo formal com o modo de criação burguês. Como na Antígona do Living heatre, busca-se levar ao espectador toda a sensação da hostilidade e do estado de guerra: ao fazê-lo, procuram eliminar toda a ilusão, conferindo ao público a experiência do terror em tempo real. Na busca por esta linguagem, Marcuse lembra que, ao procurar iar o processo criativo pela experiência vivida, o grupo de Julian Beck deixa de lado processos do campo artístico, de modo que, por mais que tentem reduzir os limites entre vida e arte, o máximo que conseguem é perder a qualidade artística17. Trata-se, pois, conforme Marcuse, de uma “destruição ilusória, de uma superação ilusória da alienação”. Ainal, enquanto a vanguarda artística brechtiana amplia e enrijece sua incompatibilidade com a realidade estabelecida, o combate às formas estéticas da performance apenas obscurece a distância entre arte e realidade, tornando indistinto o objeto de sua crítica.

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No interior desta crítica, há algo que precisa ser ressaltado. Apesar da insistência no tema da forma estética, Marcuse não se caracteriza como um formalista. A forma estética é uma estrutura histórica e, longe do idealismo com que vestimos este termo, possui uma potência de criação de realidades sem nenhum comprometimento com a realidade estabelecida. Por isso, a forma estética é um modo da recusa tão valorizada pelo pensamento radical marcuseano. Recusa da realidade em nome de uma realidade a ser construída. Talvez por isso, no interior da cultura norte-americana, Marcuse aposte suas ichas na radicalidade em outro plano: no movimento cultural negro. Ali, uma nova vertente se organizar pelo mote “black is beautiful”, resigniicando a ideia mais tradicional do pensamento estético, a saber, a ideia de belo. Toda uma linguagem, toda uma sonoridade e um imaginário passam a se articular e gerar correspondências em torno deste novo campo do belo ocupado pelos negros. Como airma Marcuse, em seu An essay on liberation, o movimento cultural negro “anuncia um universo mais subversivo de discurso”: os negros “elevam” alguns dos mais sublimes e sublimados conceitos do ocidente, “dessublimando-os e redeinindo-os” - diga-se de passagem, sem recorrer em uma dessublimação repressiva18. Por exemplo, o “soul” (alma), o conjunto tradicional de tudo o que é verdadeiramente humano, profundo, imortal – a palavra que se tornou (…) falsa no universo estabelecido de discurso – tem sido dessublimada e em sua transubstanciação, migrou para a cultura negra: (…) o soul é negro, orgiástico, violento; não está mais em Beethoven, Schubert, mas no blues, no jazz (…). Paralelamente, o slogan militante ‘black is beautiful’ redeine outro conceito central da cultura tradicional revertendo seu valor simbólico e associando-o com a anti-cor da escuridão, da magia-tabu, do fantástico.19

Neste exemplo, aparece o potencial da forma estética, quando o estético entra no território da política, revirando sem concessões os valores simbólicos da realidade estabelecida. Neste exemplo a forma estética assume seu caráter de Grande Recusa. Neste sentido, a arte, mais do que a vida, conigura o caminho de crítica diante das ambivalências do princípio de desempenho. Reside aí, pois, a dúvida emblemática de Marcuse sobre os processos das vanguardas performáticas.

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Notas Doutorando em Filosoia pela FFLCH-USP, com a pesquisa “Poder sobre a vida: Herbert Marcuse e a biopolítica”. Desenvolveu o mestrado “O discurso ontológico e a teoria crítica de Herbert Marcuse: gênese da ilosoia da psicanálise (1927-1955)”. Membro do coletivo editorial Zagaia (www.zagaiaemrevista.com. br). Bolsista FAPESP. 1

Texto publicado em duas versões. A primeira na coletânea On the future of art (New York: Viking Press, 1970), editada por Edward F. Fry, sob o título “Art as a form of reality”. A segunda, publicada na New Let Review (London, July-August, 1972), entitulada “Art as form of reality”. Seguiremos esta segunda edição, publicada na coletânea das obras escolhidas de Marcuse, Art and Liberation, organizada pelo Prof. Douglas Kellner. 2

MARCUSE, Herbert. “Art as form of reality” in Herbert Marcuse´s collected papers - Art and Liberation, vol. 3, p. 140.

3

Cf. CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução crítica, trad. haís F. N. Diniz e Maria Antonieta Pereira, São Paulo, Belo Horizonte: Ed. Humanitas, Ed.UFMG, 2010.

4

Cf. TURNER, Victor. From ritual to theatre, New York: Performance Arts Journal Publications, 1982.

5

6

BINER, Pierre. O Living heatre, Lisboa: Ed. Forja, 1976, p. 42.

7

BINER, op. cit., p. 91.

Imagem retirada do programa da turnê de 1968 do Living heatre Frankenstein. NYPL, Billy Rose heatre Division (retirado do sítio eletrônico: http://exhibitions.nypl.org/biblion/outsiders/frankenstein/image/0-nypl-184 - visitado em 15/08/2012). 8

9

MARCUSE, op. cit., p. 146.

Lembremos que a estética é fulcral no pensamento marcuseano. Seu primeiro ensaio de largo fôlego seria a tese de doutorado em germanística sobre o Romance de Artista Alemão (1922); sua última obra, A dimensão estética (1972).

10

Cf. SCHECHNER, Richard. Performance heory, New York, London: Routledge Press, 2005.

11

Traduzido no Brasil como “princípio do desempenho”, recuperando o sentido presente no termo inglês “performance” enquanto desenvolvimento eicaz de uma atividade. V. MARCUSE, Herbert. Eros e civilização – uma interpretação ilosóica do pensamento de Freud, trad. Álvaro Cabral, Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1968.

12

13

MARCUSE, op. cit., 1968, p. 45.

14

BINER, op. cit., pp. 146-7 – com algumas modiicações.

180

15

MARCUSE, “Art as form of reality”, 2010, p. 142.

16

MARCUSE, idem, p. 141.

17

MARCUSE, idem, p. 146.

18

MARCUSE, An essay on liberation, Boston: Beacon Press, 2000, p. 35.

19

MARCUSE, idem, p. 36.

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