Perpectivas, Fins e Meios de uma Educação Contínua

July 19, 2017 | Autor: Paulo Selke | Categoria: Genetics, Animal Behaviour, Behavioural Sciences
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Director: Henri Dieuzeide Chefe da redacção: Zaghloul Morsy Adjunto: Alexandra Draxler

Perspectivas publica-se também: e m Árabe:

Mustaqbal al-Tarbiya (Unesco Publications Centre, I Talaat Harb Street, Tahrir Square, Le Caire, Egypte)

e m Espanhol: Perspectivas, revista trimestral de educación (Santillana S . A . de Ediciones, calle Elfo 32, Madrid-27, Espagne) e m Francês :

Perspectives, revue trimestrielle de l'éducation (Unesco)

c m Inglês:

Prospects, quarterly review of education (Unesco)

© Unesco, 1976 ©

para a tradução portuguesa, Livros Horizonte, Lda., 1976

Tradução realizada sob a responsabilidade de Livros Horizonte

Livros Horizonte R u a das Chagas, 17, l.°-Dto. — Lisboa — Portugal Impresso em Portugal

1 4 NOV. 1979

revista trimestral d e e d u c a ç ã o

Unesco Vol. VII

Sumário

N.° 2

1977

A unidade biológica da humanidade : etologia humana, conceitos e implicações Irenäus Eibl-Eibesfeldt

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Problemas de teoria e de política da edução na Jugoslávia Niksa Nikola Soljan

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Posições/Controvérsias A crise da planificação e os limites do auxílio externo Manzoor Ahmed O livro para crianças e os direitos do h o m e m Marc Soriano

191 199

Elementos para u m dossier: Fins e meios de u m a educação contínua A Unesco e o desenvolvimento da educação dos adultos

220

A educação dos adultos, as mulheres e o desenvolvimento Lucille Mair Escolar, extra-escolar e justiça social

230 Yusuf O. Kassam

236

Educação dos trabalhadores e organizações populares rurais V. S. Mathur

243

Aprender a viver melhor Hilary Perraton

247

A educação dos adultos na República Democrática Alemã Gottfried Schneider A educação dos adultos e m Ontário Ignacy Waniewicz U m a conquista dos trabalhadores italianos: as «150 horas» Filippo M . De Sanctis Desenvolver auditórios de massa para a rádio educativa: duas abordagens Jonathan Gunter e James Theroux Tendências e Casos A influência da edição transnacional sobre o saber nos países e m desenvolvimento Keith B. Smith Notas e Comunicações Revista de publicações.

255 264 273 281

293

304

O s artigos assinados exprimem a opinião dos seus autores e não necessariamente a da Unesco ou da Redacção. P o d e m ser reproduzidos, sob reserva da autorização do redactor-chefe. A redacção gostaria de receber para publicação contribuições ou cartas contendo opiniões fundamentadas, favoráveis ou não, sobre qualquer artigo publicado e m Perspectivas ou sobre os temas abordados. Toda a correspondência deve ser dirigida ao redactor-chefe, Perspectivas, Unesco, 7, Place de Fontenoy, 75700, Paris, France.

Irenäus Eibl-Eibesfeldt

A unidade biológica da humanidade: etologia humana, conceitos e implicações

Irenãus Eibl-Eibesfeldt (Áustria). Biólogo, especialista de biologia do comportamento e, em particular, de etologia humana; estudou com Konrad Lorenz e Wilhelm von Marinelli. Chefe de um grupo de investigações no Instituto Max Planck sobre filosofia do comportamento, professor de zoologia na Universidade de Munique. Participou em numerosas expedições de investigação. Autor de um grande número de artigos e de obras científicas.

C o m o todo o organismo vivo, o ser humano comporta-se de m o d o previsível: é u m das premissas incontestadas de toda a ciência do comportamento. Todas as ciências humanas reconhecem que os seres humanos estão programados tendo e m vista acções específicas. M a s não existe concordância quanto ao m o d o de intervenção da programação. N o Ocidente pensa-se que os homens e as mulheres devem adquirir todo o seu reportório de comportamentos, pois são, quando nascem, folhas e m branco que a educação preencherá. Esta teoria mesológica está na base da nossa prática educativa, segundo a qual a criança é maleável quase até ao infinito, podendo u m a «boa» educação transformá-la n u m adulto adaptado a normas e conceitos precisos. D e acordo com esta teoria, nada é inato e o comportamento é modelado pelo meio. Os seres humanos são inteiramente condicionados e as normas éticas que guiam a sua conduta são derivadas de funções. « B o m é o que contribui para a sobrevivência de u m a cultura», declarou Skinner, u m dos defensores da doutrina mesológica. N ã o somos bons n e m maus, somos o simples produto da nossa educação. O relativismo cultural é apenas u m a consequência desta teoria. N ã o existem normas imperativas para a humanidade.

As adaptações filogenéticas nos animais

Os etólogos emitiram dúvidas sobre esta teoria. A s investigações empreendidas por Lorenz e Tinbergen, há mais de trinta anos, provaram que os animais actuam de acordo com programas inatos. A aprendizagem completa estas estruturas de comportamento herdadas, m a s eles estão dotados de programas de comportamento de base, sob a forma de adaptações filogenéticas. Alguns modelos de comportamento funcionam desde a eclosão ou do nascimento, como demonstra a atitude do pato recém-nascido. Logo que nasce realiza u m certo número de acções adaptativas. A n d a e nada, peneira a lama, unta as penas, para mencionar apenas alguns exemplos. Mal sai da concha o tentilhão abre o bico, reacção característica do desejo de alimento. Outros esquemas de comportamento desenvolvem-se durante a ontogenèse sem neces-

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sidade de aprendizagem. O estudo do canto dos pássaros fornece-nos alguns exemplos (Koniski. 1964, 1965a, b)1. Estes esquemas motores constituem coordenações herdadas o u «inatas». Para ser mais preciso: a rede de neurónios e as suas conexões c o m os órgãos receptores e efectores desenvolvem-se o u amadurecem durante u m processo de autodiferenciação de acordo c o m as instruções codificadas pelos genes. Muitas discussões se têm desenvolvido e m torno do conceito de «inato». Alguns defendem que n e m a experiência mais rigorosa permite excluir todas as eventuais fontes de aprendizagem. N o entanto, o que devemos reter é que os esquemas de comportamento estão adaptados a certas condições do meio. Sendo assim, devemos supor que a adaptação se deve à aquisição de informações estruturadas e específicas respeitantes às condições do meio durante afilogénese,por mutação e selecção, o u durante a ontogenèse, por aprendizagem individual. N o primeiro caso, se a informação é transmitida de geração e m geração, p o d e m o s falar de adaptaçãofilogenéticae não cultural, e, se o indivíduo se adapta unicamente por meio de aprendizagem, falaremos de adaptação individual. Procedendo a experiências de privação, é possível, de resto, saber se u m esquema de comportamento resulta, o u não, da adaptação filogenética. Para saber, por exemplo, se u m pássaro é ou não obrigado a aprender o canto da espécie, podemos criá-lo e m estado de isolamento n u m local insonorizado. Se emitir melodias conhecidas muito particulares, fica provado que as informações relativas aos esquemas específicos devem ter sido codificadas nos genes (Lorenz, 1961, Eibl-Eibesfeldt, 1975¿). Numerosos estudos mostraram que as adaptaçõesfilogenéticasdeterm i n a m os comportamentos de diferentes m o d o s O s animais estão equipados de mecanismos inatos, dão provas de aptidões inatas. Apresentámos já alguns exemplos. A l é m disso, são capazes de responder de imediato a certos estímulos, dando provas de adaptação, testemunhando u m saber adquirido a priori. U m a vez metamorfoseada, a rã não necessita, ao sair da água, de aprender c o m o apanhar moscas c o m a língua. Ainda há pouco era u m girino, rapando as algas d o fundo c o m a ajuda de maxilas especiais! E , de repente, ei-la capaz de apanhar as suas presas c o m movimentos repetidos da língua. Experiências efectuadas c o m objectos artificiais mostraram que ela se lança sobre tudo o que se m o v e , incluindo folhas e pedras de dimensões reduzidas, m a s que aprende rapidamente a evitar os objectos perigosos. A reacção não selectiva inicial desempenha u m papel preciso, pois habitualmente os únicos objectos móveis n o meio e m que se encontra a rã são presas. A atitude inata para reagir a simples estímulos — neste caso corpos que se deslocam — pressupõe a existência de u m aparelho que «filtra» estímulos específicos, desencadeando as correspondentes consequências de comportamento apenas e m contacto c o m estes. Designou-se este dispositivo por mecanismo

1. Ver as referências bibliográficas no fim do artigo.

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A unidade biológica da human. : etologia humana, conceitos e implicações

automático de desencadeamento ( M A D ) . N o s animais, muitas reacções sociais são desencadeadas por estes mecanismos — aproximação da fêmea, luta, reflexo de fuga, submissão, etc. N o caso da parada nupcial, o parceiro apresenta normalmente sinais particulares, igualmente hereditários (manchas coloridas, modificações da plumagem, movimentos expressivos, odor, vocalização, etc,), «em harmonia» c o m os M A D do destinatário. N u m certo número de animais a existência destes mecanismos foi demonstrada experimentalmente. Durante o período de reprodução, o carapau macho delimita u m determinado território, o ventre torna-se vermelho e afugenta os rivais. Neste espaço de tempo, procura as fêmeas cujo abdome se apresenta prateado e inchado. Perante u m objecto que reproduza c o m exactidão u m carapau cujo ventre não esteja vermelho n e m intumescido, ele não mostrará qualquer interesse. M a s , se lhe apresentarmos u m objecto de cera, e m forma de salsicha, vermelho por baixo, atacá-lo-á imediatamente, e se a parte inferior estiver tumefacta e prateada, será cortejado. Este comportamento observa-se m e s m o e m carapaus machos e m isolamento (Cullen, 1960; Tinbergen, 1951). Reencontramos estes mecanismos automáticos de desencadeamento nos macacos. Sackett (1966) criou macacos presos desde o nascimento e m condições tais que se encontravam privados de companhia: não eram capazes de olhar para fora da sua jaula n e m de se mirarem n u m espelho. A sua experiência visual resultava de diapositivos projectados na parede da jaula e representando jovens macacos, paisagens, figuras geométricas, etc. O s macacos eram capazes de projectar os diapositivos montados, por meio de u m a alavanca. Cada diapositivo era projectado durante quinze segundos e a operação podia ser repetida durante cinco minutos. A frequência da autoprojecção marcava a preferência por determinada imagem. Verificou-se que os animais gostavam de observar a imagem dos seus congéneres. A frequência de projecção destes diapositivos aumentou rapidamente; ao vê-los os animais emitiam gritos de contacto, aproximavam-se e chegavam a tentar brincar c o m as personagens representadas. O s outros diapositivos suscitavam apenas u m interesse passageiro e a taxa de projecção mantinha-se fraca. Entre os diapositivos que m o s travam macacos, u m deles, representando u m adulto ameaçador, m a n teve u m a certa popularidade durante algum tempo. M a s , quando a idade dos macacos atingiu os dois meses e meio, o comportamento dos indivíduos modificou-se. Subitamente, perante a imagem da «ameaça», começaram a retrair-se, a fechar-se e a emitir gritos de medo, e a taxa de autoprojecção baixou rapidamente. C o m o até então os animais tinham sido privados de toda a experiência social, esta modificação reflectia necessariamente o desencadeamento de u m mecanismo automático de reconhecimento das estruturas expressivas É perfeitamente aceitável que tal aconteça aos dois meses e meio, pois é nessa idade que os jovens entram normalmente e m contacto c o m os outros membros do grupo — e torna-se, então, extremamente importante poder identificar u m a expressão ameaçadora.

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Irenäus Eibl-Eibesfeldt

O s sinais — referimo-nos aos «desencadeadores» u m a vez que geram comportamentos específicos no parceiro — não são apenas visuais. A s diversas formas assumidas pelo coaxar das rãs, o s o m dos grilos e o canto dos pássaros constituem outras tantas características que servem para reconhecer os congéneres. U m a m ã e galinha sabe perfeitamente que osfilhoscorrem perigo quando ouve os seus gritos de aflição. Se colocarmos u m a campânula de vidro sobre u m pintainho de tal m o d o que a m ã e o possa ver m a s não ouvir, os seus movimentos não impedem que a m ã e se vá embora c o m o resto da ninhada. Por outro lado, a m ã e galinha reagirá rapidamente se ouvir u m dos pintainhos piar do outro lado de u m a paliçada. Acorre ao local e m que ele se encontra e chama por ele sem, no entanto, o ver. U m a perua prodigaliza cuidados maternais a todo o objecto cujo chamamento se assemelhe aos dos seus peruzinhos. Se munirmos de u m alto-falante emitindo os chamamentos apropriados u m toirão empalhado cujo aspecto se assemelha muito pouco ao do peru, a perua prontifica-se a chocá-lo. U m a perua surda mata osfilhosporque apenas o seu pipilar é capaz de lhe despertar o comportamento maternal (Schleidt, W . M . e outros, 1960). O s animais também são motivados por mecanismosfisiológicosinatos que poderemos classificar de pulsões: não esperam passivamente os estímulos. Diversos mecanismosfisiológicosincitam u m animal a procurar, por meio de u m comportamento dito apetitivo, situações estimulantes (Lehrman, 1955; Hinde, 1966; von Holst, 1935), Quando os animais se acasalam, caçam, se alimentam, bebem e, pelo menos os de certas espécies, revelam u m comportamento agressivo, estão, e m parte a obedecer a estas pulsões. Finalmente, a aprendizagem é determinada por adaptações filogenéticas, de tal m o d o que os animais aprendem o que contribui para a sua sobrevivência e modificam o comportamento e m função da experiência. E m particular, observou-se que certos animais aprendem, e m períodos sensitivos, a produzir certas reacções que, u m a vez fixadas, parecem resistir à extinção, a ponto de, por vezes, se tornarem irreversíveis, Este fenómeno foi designado por impressão (Lorenz, 1935; Hess, 1973; Immelmann, 1966). A aptidão para a aprendizagem, semelhante à «pulsão», é u m termo descritivo e não implica, de m o d o nenhum, u m mecanismo unitário. D e resto, o estudo do canto dos pássaros mostrou b e m que o m e s m o resultado — neste caso o facto de u m pássaro aprender o canto de u m congénere — pode ser obtido de várias maneiras (Koniski, 1964, 1965a, b; Marler, 1959; Thorpe, 1961). O s tentilhões, por exemplo, sabem o que devem imitar. Quando ouvem várias gravações, preferem o canto da espécie. Por meio de u m esquema inato — que Koniski designou por «padrão» — sabem reconhecer este canto. N o tentilhão raiado a aprendizagem do canto apropriado faz-se normalmente durante u m período e m que o animal é particularmente sensível aos cantos. O que é memorizado nesse momento tem prioridade sobre as experiências ulteriores.

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A unidade biológica da h u m a n . : etologia humana, conceitos e implicações

C o m o a origemfilogenéticapode actualmente ser considerada u m a realidade, é pertinente perguntar se, pelo menos o comportamento humano, não estará eventualmente pré-programado, c o m o sucede c o m os animais. N o entanto, a simples sugestão de que o comportamento do h o m e m , especialmente e m sociedade, poderia, e m parte, estar pré-programado por adaptaçõesfilogenéticassuscitou réplicas polémicas por parte dos defensores da doutrina mesológica, que acusaram os biólogos de reforçar, c o m o seu «determinismo biológico», os princípios autoritários e conservadores que justificam o statu quo e incitam ao fatalismo, u m a vez que não é possível fazer nada para modificar as características inatas. M a s os especialistas de etologia repetem que o h o m e m é capaz de controlar, no plano cultural, todos os seus comportamentos, incluindo os comportamentos inatos, e que deve ser educado. Antes de analisar as incidências de u m a óptica mesológica rigorosa e m relação ao método do biólogo, gostaríamos de examinar a prova, na qual se baseia a nossa hipótese, de que o comportamento h u m a n o está e m parte pré-programado.

Estudos do comportamento nos bebés O recém-nascido possui u m reportório de esquemas motores funcionais. Assim, consegue m a m a r e procurar o seio por meio de movimentos da cabeça. Além disso, certas experiências mostraram que os bebés são capazes de responder a estímulos adaptando-se-lhes, sem qualquer experiência prévia. Se apresentarmos a lactentes de 2 a 11 semanas, presos a u m a cadeira, silhuetas que aumentam de maneira simétrica, eles reagem c o m a aproximação de u m a colisão. Desviam a cabeça, protegem-se levantando as mãos e o pulso acelera-se. Reagem do m e s m o m o d o quando objectos volumosos se deslocam, efectivamente, na sua direcção. Por outro lado, se as silhuetas aumentarem de maneira assimétrica, c o m o se passassem ao lado, nenhuma reacção deste género se verifica nos lactentes (Ball e Tronick, 1971). T . G . Bower (1971) comenta estas experiências do seguinte m o d o : « A precocidade desta reacção é extraordinariamente surpreendente do ponto de vista tradicional. Penso até que estas conclusões constituem u m golpe fatal para as teorias tradicionais do desenvolvimento h u m a n o . N a nossa cultura, é pouco provável que u m a criança de menos de 2 semanas tenha sentido no rosto u m a pancada provocada por u m objecto e m movimento; por conseguinte, nenhum dos lactentes observados durante este estudo tinha aprendido a recear u m objecto que se desloca e a pensar que ele possui qualidades tácteis. Podemos apenas concluir que, no h o m e m , existe u m a unidade primitiva dos sentidos, c o m variáveis visuais correspondendo a consequências tácteis e esta unidade primitiva é inerente à estrutura do sistema nervoso humano.»

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Irenäus Eibl-Eibesfeldt

É evidente que nos encontramos na presença de provas bastante impressionantes da existência de mecanismos inatos de tratamento de dados, cujo significado teórico é considerável. Outros investigadores observaram alguns lactentes «petrificados» à beira de u m a falésia, o que mostra que o m e d o de cair é inato. Aos 2 meses a criança é capaz de reconhecer formas invariáveis, perante diversas transformações. Por exemplo, foi possível ensinar lactentes a manipular c o m a cabeça comutadores eléctricos fixados n u m suporte onde encostam a cabeça, obtendo como recompensa a presença de u m a pessoa que sorri. O sinal de aprendizagem era u m cubo de 30 c m de aresta, apresentado a u m metro de distância. Ora, os lactentes reagem raramente a u m cubo de 90 c m de aresta apresentado a três metros de distância, apesar da imagem retiniana ter a m e s m a dimensão do que a projectada pelo cubo de 30 c m situado a u m metro (Bower, 1966). A s crianças também possuem u m a aptidão inata para integrar impressões visuais e tácteis. Sabemos que u m objecto que escondemos atrás de u m biombo aí permanece. D e acordo c o m a teoria clássica, a criança toma consciência deste fenóm e n o passando a m ã o por trás do biombo. Bower (1971) realizou u m a experiência durante a qual mediu as reacções de surpresa dos lactentes (aceleração do pulso) quando eram submetidos a diferentes ilusões de óptica. Projectou n u m écran objectos que eles tentavam alcançar. N ã o conseguindo agarrar o «objecto», manifestavam-se surpreendidos o que era testemunhado pelo ritmo do pulso. Por outro lado, quando tinham efectivamente possibilidade de se apoderarem de qualquer coisa, o pulso não registava nenhuma modificação. O lactente espera, portanto, poder tocar no objecto que vê. U m a vez que já reage assim aos 2 meses podemos concluir pela existência de u m a disposição inata tal que a impressão óptica prevê a impressão táctil. «Estes resultados eram surpreendentes e interessantes. Mostravam que pelo menos u m aspecto da interacção olho/mão é inerente ao sistema nervoso» (Bower, p . 35), E m seguida, Bower considerou a possibilidade de processos mais complexos programados no sistema nervoso humano. N a presença de crianças muito pequenas, dissimulou objectos atrás de u m biombo que, e m seguida, retirou após intervalos mais ou menos longos. A s crianças não se mostravam perturbadas se verificavam que o objecto lá continuava. Por outro lado, alarmavam-se (como testemunhava a aceleração do pulso) quando o objecto tinha desaparecido, desde que o intervalo entre o momento e m que se colocava o biombo e aquele e m que se retirava não fosse muito longo. «Até m e s m o as crianças muito novas parecem saber que o objecto continuava lá depois de ser dissimulado, mas, se a experiência se prolongar, esquecem-no completamente. Atendendo à reduzida idade dos indivíduos e à novidade das condições do teste, é improvável que esta reacção necessite de ser aprendida» (p. 35), E m outros testes, Bower descobriu crianças de 8 semanas que prevêem o reaparecimento de objecto desaparecidos acidentalmente atrás de u m biombo. Revelam emoção se o objecto reaparece rapidamente ou se não reaparece nunca. N o entanto, parece não haver diferença na reacção da criança se e m vez de u m a bola aparecer u m cubo do outro lado do biombo. M a s são neces-

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A unidade biológica da h u m a n . : etologia humana, conceitos e implicações

sários movimentos b e m encadeados para que o olhar da criança possa acompanhar. C o m o é evidente, a identidade do objecto tem de ser aprendida. A s experiências demonstram a existência no ser h u m a n o de mecanismos inatos de tratamento de dados, apresentando, portanto, u m a grande importância teórica. Confirmam o ponto de vista de K . Lorenz, segundo o qual mecanismos inatos de desencadeamento estão na base de u m grande número das nossas estruturas de pensamento e atitudes.

O estudo das crianças deficientes

Grande parte dos nossos esquemas motores não estão presentes ao nascer. Assim, a maior parte das nossas expressões faciais desenvolvem-se durante a ontogenèse. Estes esquemas motores serão o resultado de u m a aprendizagem ou dá-se u m a maturação? O s estudos sobre surdos e cegos de nascença fornecem u m a resposta a esta interrogação. A s crianças surdas e cegas de nascença crescem na obscuridade e no silêncio. N ã o ouvem n e m vêem o que as outras pessoas fazem; se o conceito mesológico fosse verdadeiro, comportar-se-iam de m o d o diferente das que recebem estes dados. Examinámos estas crianças, filmám o s o seu comportamento e observámos que têm, e m geral, as mesmas expressões faciais — sorriso, riso, choro, raiva, dentes cerrados, etc. — e nas mesmas condições que as crianças normais. A s crianças surdas e cegas sorriem quando a mãe brinca c o m elas, choram quando se m a g o a m e agitam o punho quando se zangam, para nos limitarmos a alguns exemplos. Poderíamos citar ainda o caso das crianças vítimas da talidomida, nascidas surdas e cegas, que n e m sequer tiveram possibilidades de explorar o ambiente c o m o sentido do tacto, e que apresentam reacções análogas. Pode, contudo, verificarle u m a influência externa, quando, por exemplo, a m ã e recompensa os sorrisos c o m carícias afectuosas ou reconforta a criança que chora. Devemos contar c o m este reforço, mas são necessários, à partida, esquemas identificáveis de expressão facial. E m esquemas mais complicados de mímica, tais c o m o o comportamento associado à raiva, é difícil ver o efeito de u m a acção fortuita. O s surdos e os cegos de nascença também revelam certas reacções sociais fundamentais entre as quais o medo de estranhos apresenta u m interesse particular. Apesar destas crianças nunca terem sido maltratadas por desconhecidos, distinguem pelo olfacto as pessoas familiares e as outras. Estas últimas desencadeiam o reflexo de m e d o . A criança esquiva-se e procura o contacto de u m a pessoa conhecida. Mais tarde, o m e d o dos estranhos transforma-se e m rejeição activa. Pode acontecer que a criança actue de maneira agressiva e repila a pessoa e m questão antes de se esquivar. T a m b é m podemos observar esta reacção e m crianças pertencentes a diferentes culturas. A tendência do h o m e m para viver e m grupos exclusivos e para dar provas de suspeição, ou até de hostilidade perante estranhos parece basear-se nesta disposição inata.

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Irenäus Eibl-Eibesfeldt

A informação tirada do estudo dos surdos e cegos de nascença apresenta u m grande interesse teórico, se b e m que limitado, tendo e m conta que muitos dos nossos esquemas de comportamento e m sociedade são desencadeados por estímulos auditivos e visuais. C o m o estas vias se encontram bloqueadas no surdo e cego de nascença, necessitamos de explorar outras vias para saber se esquemas de interacção social mais complexos pertencem ao nosso programa de comportamento adquirido pelafilogénese.Para tal, estudámos o caso de cegos de nascença e procedemos a comparações entre culturas. A o dirigirmo-nos a u m cego de nascença, podemos suscitar modos de comportamento complexos, c o m o a timidez. Basta fazer u m elogio a u m a jovem para que ela enrubesça, baixe a cabeça, se desvie discretamente e, e m seguida, volte novamente a cabeça para o interlocutor, sorrindo. U m rapaz cego de nascença, ao sentir-se embaraçado, escondeu a cabeça entre as mãos.

A comparação entre culturas ESQUEMAS MOTORES HOMÓLOGOS

A comparação transcultural baseia-se e m documentos filmados. Ainda recentemente, a documentação etnológica referia-se essencialmente a certos aspectos da cultura material e a manifestações c o m o danças e cerimónias rituais Mostrou-se e m pormenor como os autóctones tecem tapetes, fabricam cerâmica ou constroem u m a cabana. M a s , para saber como as pessoas de diferentes culturas se cumprimentam, transportam os filhos, namoram ou discutem, procurava-se e m vão u m a colecção sistemática de documentos realizados ao vivo. Estabelecemos, portanto, u m programa de documentação transculturalfilmandopessoas, sem o seu conhecimento, por meio de teleobjectivas munidas de espelhos (para mais pormenores ver Eibl-Eibesfeldt 1973c, 1975o). N o decurso dos últimos dez anos concentrámos a nossa atenção nas culturas ameaçadas de extinção rápida, que nada tinham modificado no seu m o d o de vida original, escolhendo as que representavam modelos por diferentes etapas da evolução cultural. C o m intervalos regulares observámos os Bochimanes do Kalahari (!ko, G / W i , !Kung) que vivem da caça e da colheita, os Ianomani (Alto Orenoco) que começam a praticar a horticultura, os Eipos, os Biami e outros horticultores neolíticos da N o v a Guiné, os Himbas (Kaokoveld/Sudoeste Africano) representando os pastores, os Balineses representando os orizicultores e muitos outros grupos. Filmámos essencialmente cenas m o s trando manifestações espontâneas de interacção social. Todas são acompanhadas por descrições que precisam o contexto (o que provocou a cena, o que se lhe seguiu e o que, entretanto, aconteceu) para permitir u m a análise comparativa ulterior. Evitámos, tanto quanto possível, ser selectivos, filmando sempre que u m a interacção se produzisse; por exemplo, quando as pessoas se deslocavam ou se dirigiam 170

A unidade biológica da human. : etologia humana, conceitos e implicações

umas para as outras, sem saber antecipadamente se se tratava de u m a interacção de tipo amigável ou agressivo O s estudos transculturais mostraram que u m grande número de esquemas motores se situam no m e s m o contexto e m toda a parte. É evidente que n e m todos podem ser considerados inatos. Experiências semelhantes efectuadas n o início da vida da criança p o d e m gerar u m comportamento análogo e m culturas diferentes. Se, por exemplo, o movimento de cabeça que significa «não» vem do acto de voltar a cabeça quando a criança recusa o seio depois de satisfeita, assim se explica que, e m muitas culturas diferentes, este sinal de cabeça se traduza por «não» T a m b é m devemos ter e m conta que as aptidões inatas para a aprendizagem oferecem, talvez, u m meio de aprender e m condições semelhantes n o seio de culturas diferentes. U m certo número de factos, que examinaremos, comprovam a existência destas aptidões. O facto de se encontrarem numerosas semelhanças nas diversas culturas pode explicar-se por u m a identidade de funções. N ã o existem muitas maneiras de se repelir u m adversário ou de lhe dar pontapés e, por conseguinte, se encontramos semelhanças e m várias culturas, não devemos aceitar automaticamente que existe u m património biológico c o m u m , m e s m o que seja esse o caso. E u pensava, por exemplo, que esconder o rosto quando nos sentimos embaraçados era u m gesto aprendido. A criança esconde-se atrás das mãos e julga — c o m o não pode ver — que também não é vista. Parecia plausível que as crianças de outras culturas sentissem a m e s m a impressão, o que explicaria a universalidade das reacções. Desde quefilmeio rapaz cego que tapava o rosto, já não estou tão certo de que este gesto seja adquirido. Para além destes casos duvidosos, existem muitos esquemas de comportamento cuja forma particular não é ditada pela função. Por exemplo, o sorriso exprime u m a intenção amigável, os gritos e o choro traduzem desgosto, a troça u m a forma particular de agressão. Trata-se aparentemente de convençõesfilogenéticas,pois são transmitidas c o m poucas modificações evidentes, contrariamente às convenções manifestamente culturais que sofrem transformações rápidas, c o m o a linguagem. N a N o v a Guiné existem várias centenas de línguas faladas: c o m efeito, bastam algumas gerações para criar u m a nova língua. É a conformidade de pormenores que surpreende o observador. A elevação das sobrancelhas constitui u m exemplo particular de comportamento transcultural que merece ser examinado. Observei que, e m culturas muito diversas, as pessoas que se encontram se cumprimentam do seguinte m o d o : levantam a cabeça por breves instantes, elevam rapidamente as sobrancelhas, que se mantêm nesta posição durante a sexta parte de u m segundo. Segue-se u m movimento de cabeça acompanhado por u m sorriso que pode preceder a elevação das sobrancelhas. Esta mímica reflecte surpresa —agradável, c o m o indica o sorriso que a acompanha — e, portanto, u m a disposição favorável ao contacto. E o que podemos observar quando as pessoas se cumprimentam, tecem galanteios, afirmam a sua concordância, assim c o m o e m outras situações que exprimem u m a disposição favorável ao contacto. Outros fenómenos de «ritualização» surgem quando a elevação das 171

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sobrancelhas, associada a u m olhar ameaçador, traduz desprezo. Neste caso, o interessado conserva as sobrancelhas elevadas durante o tempo de duração do confronto. A s diferenças de ordem cultural têm influência sobre a frequência da elevação das sobrancelhas. O s Polinésios usam-na abundantemente. T a m b é m cumprimentam deste m o d o os estranhos e acompanham c o m este sinal u m puro e simples «sim». O s Japoneses, no entanto, abstêm-se entre adultos, pois esta mímica passa por ser incorrecta. Pode, contudo, ser utilizada c o m as crianças. Pela nossa parte, parece que nos encontramos n u m a situação intermédia. Servimo-nos deste sinal como galanteio, quando cumprimentamos os amigos mais íntim o s e ainda quando testemunhamos a nossa concordância. O esquema motor «elevação das sobrancelhas» é considerado pelos biólogos como «inato». A elevação das sobrancelhas é regularmente associada aos outros esquemas motores inatos tais como o sorriso, a elevação da cabeça e provavelmente também o abanar da cabeça, e apresenta-se-nos como u m elemento do programa dado. Outro m o d o de comportamento que é u m sinal universal de afeição : o beijo. E m todas as culturas que estudei até hoje, observei que as mães apertam contra si e beijam as crianças, tanto entre os Papuas como entre os aborígenes da Austrália, os Japoneses, os Balineses, os Bochimanes, os Himbas, os Ianomani e muitos outros ainda. Segundo as culturas, este gesto é mais ou menos utilizado na comunicação entre adultos. E m algumas delas parece ser proibido, pelo menos e m público. T e m origem na alimentação de boca a boca e está ligado a comportamentos homólogos nos primatas não humanos. Passemos agora a esquemas mais complexos. Já se afirmou que os mamíferos têm modos de comportamento tão diversos que não é possível falar de esquemas imutáveis (Schenkel, 1947). Lorenz (1953) respondeu a esta argumentação mostrando que, se combinarmos vários elementos produtores de estímulos, e m graus diversos, desencadeamos no cão movimentos instintivos de raiva e de medo que se traduzem por diferentes mímicas. D o m e s m o m o d o , muitos jogos de fisionomia do h o m e m , que parecem variados à primeira vista, podem ser reduzidos a algumas «constantes» que se justapõem ou se sucedem alternadamente. Consideremos, por exemplo, o comportamento de u m a adolescente tímida. Olha, baixa os olhos, desvia a cabeça, e m seguida eleva-a, espreita pelo canto do olho ou olha de frente. T a m b é m pode, nesta m e s m a situação, sorrir, mas de maneira crispada, serrando os maxilares, colocar a m ã o e m frente da boca para dissimular o sorriso, tentar esconder-se atrás de alguém ou de alguma coisa, ou agarrar-se e m busca de protecção. Pode piscar os olhos amigavelmente mas baixando imediatamente o olhar para se furtar ao olhar do outro. Pode também olhá-lo, esquivando-se por meio de u m leve movimento do busto. Pode ainda manifestar u m a certa agressividade batendo c o m o pé, dando u m encontrão n u m a amiga que se encontre ao lado, gritando ou metendo os dedos na boca, roendo as unhas ou mordendo os lábios. E m suma, é evidente que dois tipos de reacção são suscitados simultaneamente: u m é u m sentimento de confiança, u m desejo de sociabilidade, e o outro 172

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u m sentimento de hostilidade que gera u m a atitude agressiva e vontade de fugir. Estas reacções coexistem ou sucedem-se; p o d e m combinar-se de muitas maneiras e traduzir-se por todo u m conjunto de mímicas. É , porém, muito fácil interpretar e classificar estes modos de c o m portamento m e s m o e m contextos culturais completamente diferentes. O que está de acordo c o m as conclusões de E k m a n , Eriesen e Ellswerth (1972) que apresentaram a indivíduos instruídos e a analfabetos fotografias de mímicas tiradas ao vivo e gravações de sons vocais. O s indivíduos interrogados reconheceram quase sempre c o m grande exactidão as expressões de outras culturas. CONVENÇÕES CULTURAIS E ESQUEMAS MOTORES INATOS

O s movimentos que acompanham o «sim» e o «não» são, por vezes, desconcertantes. Todos sabemos que existem variantes culturais, m a s abanar a cabeça para dizer «não» é certamente o gesto mais universal. Fihnei-o, entre outras, e m várias tribos papuas, entre os índios Ianomani, os Bochimanes do deserto de Kalahari e os Himbas. Encontramo-lo u m pouco por toda a parte, m a s não é, de m o d o n e n h u m , a única maneira de exprimir u m a recusa. O s Gregos e muitos outros povos d o Mediterrâneo e do Próximo Oriente dizem «não» atirando a cabeça para trás, fechando os olhos, muitas vezes inclinando a cabeça para o lado e, por vezes, levantando u m a m ã o , ou as duas, e m sinal de negação. Observa-se a m e s m a mímica e m muitas outras culturas quando se trata de exprimir contrariedade; assim, reagimos de maneira idêntica quando nos sentimos chocados por qualquer afirmação e a rejeitamos c o m u m a energia violentamente eivada de emoção. Este jogo de fisionomia é, no entanto, muito raro para significar u m «não» puro e simples. O s índios Aioreos do Paraguai têm u m m o d o muito próprio de dizer «não». Franzem o nariz c o m o se sentissem algum odor nauseabundo, fecham os olhos e, muitas vezes, fazem beiço. T a m b é m eles recorrem raramente a esta mímica para dizer muito simplesmente «não», m a s é verdade que, e m todo o m u n d o , u m odor desagradável incita as pessoas a franzir o nariz e a fechar os olhos. Trata-se, na verdade, de impedir a passagem aos estímulos desagradáveis. O s Eipos da N o v a Guiné têm duas mímicas para dizer «não». A b a nar a cabeça indica u m a recusa pura e simples, m a s , nas relações sociais, a recusa traduz-se por u m a expressão de desaprovação. Fazer beiço também é u m a mímica universal para responder a u m insulto e interromper o contacto. E m suma, é possível dizer «não» de muitas maneiras e podemos fazê-lo a partir de jogos de fisionomia que exprimem já u m a recusa por se inscreverem no contexto de relações sociais, ou por traduzirem a vontade de eliminar u m estímulo ou de rejeitar qualquer coisa1. Neste último caso, 1. A experiência fornecida por Darwin já não é confirmada pelos dados actuais. O mecanismo motor de rejeição é muito comum entre os mamíferos e as aves.

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a quase total ausência de emoção permite exprimir u m «não» puro e simples melhor do que o poderiam fazer outras mímicas susceptíveis de ser consideradas ofensivas. Algumas culturas transformam-nas e m modos de expressão convencionais. Trata-se, então, de modelos universais que adquirem u m sentido preciso depois de terem sido integrados n u m a cultura.

ANALOGIAS NOS PRINCÍPIOS U m a comparação transcultural permite verificar que muitos esquem a s de comportamento se assemelham, mas esta semelhança não é tanto u m a questão de forma c o m o de princípio. Muitos deles fazem parte do património hereditário do indivíduo, da sua bagagem filogenética. C o m o já dissemos, os animais e os seres humanos são dotados não só de u m sistema de coordenações motoras instintivas, como tamb é m de u m sistema de resposta a certos estímulos ou a certas situações, que desempenha o papel de u m mecanismo de alarme e provoca comportamentos determinados. N ã o é necessário nenhum condicionamento prévio, pois o animal possui, de certo m o d o , u m conhecimento inato destes fenómenos. Encontramo-nos e m presença de u m «mecanismo automático de desencandeamento». Alguns dos nossos mecanismos de tratamento dos dados respondem a sinais provenientes de outros indivíduos. O s lactentes, por exemplo, apresentam u m certo número de particularidades que classificamos de «adoráveis». Refiro-me essencialmente às particularidades físicas c o m o o tamanho desmedido da cabeça e m relação ao resto do corpo, as extremidades pequenas, a testa saliente n u m rosto minúsculo e olhos enormes. A s faces parecem agir c o m o sinais. É muito fácil criar personagens «adoráveis», basta exagerar alguns traços. É o que fazem os caricaturistas (Walt Disney, por exemplo) que desenham animais «adoráveis» fazendo u m a cabeça enorme e m relação ao corpo. Todos os lactentes se assemelham e inspiram invariavelmente u m sentimento de ternura que exclui a agressividade. N ã o nos devemos surpreender com o facto de, e m muitos ritos de boas vindas, se apresentar u m a criança para indicar que se possuem intenções pacíficas. Quando os índios Ianomani são convidados para u m banquete levam consigo as mulheres e as crianças. A o entrar na aldeia, os visitantes executam u m a dança guerreira, organizam u m a parada brandindo arcos e flechas. Esta demonstração de agressividade é neutralizada pela dança de u m a criança que agita folhas de palmeira. Nas nossas civilizações, os visitantes de categoria são saudados por tiros de canhão (ostentação de agressividade) m a s , simultaneamente, u m a criança oferece-lhes flores. T ê m sido descritas curiosas exibições fálicas e m numerosos primatas não humanos para exprimir u m a ameaça. Quando u m grupo de macacos vervets está ocupado a esgravatar o solo, vários machos mantêm-se de guarda voltando-lhes as costas e exibindo os órgãos genitais. C o m o é evidente o h o m e m não utiliza este processo de vigilância mas fabrica imagens de que se serve c o m o espantalhos para proteger

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os campos e as casas. Estes espantalhos têm u m a expressão ameaçadora e exibem o sexo. Encontramo-los e m todo o m u n d o , tal c o m o as exibições fálicas são correntes e m encontros agressivos. Verificam-se, porém, diferenças de pormenor. Existem imagens deste tipo na Europa, na Ásia Tropical, na N o v a Guiné, na América do Sul, e m África, etc., e são frequentemente utilizadas como amuletos; especialmente no Japão, onde se destinam a proteger o indivíduo. E m situações de agressividade proferem-se ameaças fálicas directas. Pode tratar-se de u m a ameaça de agressão sexual expressa verbalmente ou c o m o auxílio de gestos. O s Eipos (tribo da Nova Guiné indonésica) quando são surpreendidos, batem repetidas vezes c o m o polegar na região púbica para atrair a atenção para a exibição fálica. Qualquer pessoa que, n u m a situação inesperada, sinta receio, adopta u m a atitude de rejeição. O s Eipos também pronunciam palavras sagradas que são, e m geral, tabus. Fazemos o m e s m o quando invocamos os nomes dos santos para exprimir espanto ou quando proferimos injúrias. A ostentação dos ombros constitui outra interessante manifestação de virilidade. O s índios Ianomani ornamentam-nos c o m plumas, os Europeus e os Japoneses enchumaçam-nos, pois os ombros largos correspondem aos cânones da beleza masculina. Verifica-se que a linha pilosa que atravessa as costas do h o m e m desde o fundo até ao cimo, contrariamente ao que se passa c o m os macacos, termina e m tufos nos ombros dos indivíduos cujo sistema piloso é muito desenvolvido. É fácil supor que estes tufos eram ainda maiores nos nossos antepassados, muito peludos, e que alargavam a silhueta. Trata-se certamente de u m fenómeno de adaptação à posição de pé, pois não o encontramos nos macacos superiores (Leyhausen e m Eibl-Eibesfeidt, 1975). Procurou-se substituir u m a particularidade congénita depois dela ter desaparecido quase completamente. T a m b é m a esteatopigia1 sublinha as ancas da mulher, o que é considerado, e m certas raças u m ornamento sexual e u m elemento de beleza. O facto da m o d a continuar a salientar esta parte do corpo por meio de laços,fitas,cintos, etc,, faz-nos pensar que esta particularidade se encontrava outrora muito mais espalhada. ESTRIBILHOS VERBAIS O vocabulário e a gramática utilizados pelas pessoas quando falam são certamente u m produto da evolução cultural. Parece, contudo, que as pessoas dizem, e m princípio, a m e s m a coisa n u m a situação dada. C o m o este domínio tem sido pouco explorado, pretendo chamar a atenção para ele. Quando as pessoas se cumprimentam trocam também algumas palavras. C o m e ç a m por exprimir solicitude: « C o m o tem passado?» é u m a fórmula corrente. Existem outras fórmulas que traduzem u m a dádiva simbólica, u m voto de felicidade (bom dia!). Segue-se, e m geral, u m diálogo que não contém verdadeiramente informação factual. U m indivíduo dirá: «Que belo tempo que está hoje!» e o inter1. Acumulação de tecido adiposo ao nível das nádegas (sobretudo nas mulheres).

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locutor responderá u m a banalidade c o m o : « M a s u m pouco de chuva não faria mal à agricultura!», e o outio retorquirá: «Lá isso é verdade!» N ã o é a informação trocada que tem importância. A m b o s sabem perfeitamente que está b o m tempo. M a s deram o sinal de que a via da comunicação está aberta e de que estão os dois de acordo. Deixar-se-ão c o m outro voto, outra dádiva verbal. O h o m e m traduz e m palavras a maior parte dos seus comportamentos instintivos. A troca de presentes é u m costume universal, que corresponde a mecanismos semelhantes nos animais e devemos considerá-la u m a disposição inata. O h o m e m pode, contudo, dar u m presente sob forma de desejo ou de promessa verbal. Para manifestar u m a preocupação, pode exprimi-la pela expressão do rosto, m a s também pode utilizar palavras. Prefere recorrer a ameaças verbais do que c o m bater o adversário. Atendendo à importância do papel desempenhado pelas «ritualizações» através da história, c o m o , por exemplo, a substituição de combates mortais por u m a cerimónias ritual, permitimo-nos pensar que se tem exercido u m a pressão selectiva sobre a linguagem à medida que esta tem evoluído. Todos os indivíduos parecem pronunciar mais ou menos as mesmas palavras quando se irritam, quando se dirigem a u m a ente querido ou quando manifestam surpresa. Os termos afectuosos utilizados pelos pais («meu pequenino», «meu passarinho») têm o efeito de estreitar os laços que os u n e m aos filhos, enquanto a injúria aviltante («patife! canalha!») exerce u m a função de afastamento, de distanciação, para citar apenas alguns exemplos.

«Ritualização» cultural e biológica

A s «ritualizações» culturais e biológicas seguem a m e s m a via, u m a vez que as pressões selectivas sobre a acção e a pré-adaptação que fornece o ponto de partida são e m princípio as mesmas. O s sinais — e a ritualização diz respeito à evolução dos sinais — devem ser bem visíveis e transmitir o sentido sem ambiguidade ao indivíduo a quem se dirigem. A s conexões motoras, no decorrer da sua transformação progressiva e m sinais, simplificam-se ao amplificarem-se (exageração das mímicas). A demonstração é sublinhada pela repetição ritmada. O ritual da aproximação amorosa que filmámos e já descrevemos (Eibl-Eibesfeldt, 1974) fornece-nos u m b o m exemplo Por vezes, os movimentos transformam-se e m gestos (ameaçadores, por exemplo). O s rituais biológicos e culturais partem muitas vezes de pré-adaptações semelhantes. Esquemas análogos desenvolvem-se, pois, independentemente uns dos outros. A maneira como as armas ou os meios naturais de defesa são apresentados para significar que estamos animados de intenções pacíficas é a m e s m a entre os homens e entre os animais. Algumas aves voltam as costas ao adversário e olham para o céu para indicar que não têm intenções belicosas. A s cerimónias de apresentação de armas para desejar as boas vindas a u m visitante inspiram-se no m e s m o princípio.

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Oferecer alimentação a u m amigo traduz u m desejo de aproximação tanto entre os homens como entre os animais e constitui u m ritual que se desenvolveu paralelamente ao da troca de presentes. Poderíamos citar muitos outros exemplos (ver, a este respeito, Eibl-Eibesfeldt 1973a, 1975a). Existem leis derivadas de funções que regem estes desenvolvimentos.

Perspectivas abertas: a biologia e os homens

N o s parágrafos precedentes estudámos as adaptaçõesfilogenéticasno comportamento h u m a n o , assunto que tem sido muito desprezado até hoje. Ainda não sabemos ao certo e m que medida o nosso comportamento social é programado, n e m como o é. M a s as adaptações filogenéticas parecem ter aberto a via à competição social e explicam a disposição dócil de certos indivíduos, a intolerância perante os estranhos e a agressividade, assim como as tendências altruístas e o desejo de estabelecer contactos amigáveis, isto é, a nossa afectividade, no sentido mais geral do termo. Se estas hipóteses se verificarem, deveremos concluir que somos forçados a obedecer a todas as nossas pulsões instintivas? Q u e somos vítimas impotentes? H á q u e m pretenda que a etologia, pela importância que atribui aos caracteres inatos, reforça doutrinas conservadoras c o m o as que preconizam o imobilismo da sociedade. É verdade que a etologia corre o risco de ser mal interpretada. M a s os etólogos, para se defenderem destes abusos, sublinharam por várias vezes que as adaptações filogenéticas estão longe de ter razão de ser. Assim c o m o o nosso apêndice perdeu a sua utilidade e subsiste c o m o órgão supérfluo, também muitas das nossas tendências instintivas são talvez «apêndices». Somos, portanto, forçados a aceitar este lastro, este resíduo da evolução e, como «criaturas naturalmente culturais» (Gehlen, 1940), somos certamente capazes de o fazer. Enquanto os animais obedecem a pulsões instintivas e apresentam comportamentos minuciosamente programados — o iguano, por exemplo, quando trava u m combate, evolui segundo regras imutáveis —, o que não acontece c o m o h o m e m . Este está anim a d o por pulsões e adapta-se a alguns esquemas de acção pré-determinados, mas dispõe também de u m sistema de respostas não condicionadas a certos estímulos. Além disso, certas regras morais parecem basear-se e m adaptaçõesfilogenéticas,m a s o conjunto d o comportamento humano não se encontra estritamente condicionado. É maleável, m a s não infinitamente. O s condicionamentos culturais impõem limites a esta maleabilidade. N o entanto, c o m o estes esquemas culturais variam de local para local, os homens souberam adaptar-se rapidamente a diversas situações mesológicas. A s pulsões agressivas o u sexuais de u m Esquimó não necessitam de ser dominadas como as de u m Masai ou u m citadino da nossa época. A l é m disso, podemos modificar os mecanismos culturais de contrôle do comportamento quando considerarmos necessário, e é precisamente o que estamos a fazer. Actualmente, a opinião segundo a qual a criança não deve receber nenhuma directiva ganha

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terreno. O s programadores desta ideia consideram que se deve deixar o ser h u m a n o desenvolver sozinho. M a s , e m que base? A partir das suas tendências naturais? Estas são essencialmente determinadas por mecanismos de pulsão. A pré-programação da evolução do h o m e m não é suficiente para abrir a via a u m a vida social harmoniosa. Temos necessidade de que nos transmitam mecanismos de controle culturais para nos podermos adaptar à sociedade. Se nos colocarmos nesta óptica, os defensores intransigentes dos métodos de educação não autoritários não poderão escapar completamente à acusação de se dedicarem a experiências muito levianamente. Parece paradoxal que os que atribuem tamanha importância ao papel do ambiente na formação da personalidade humana não tenham e m conta as influências socioculturais no estabelecimento de u m a linha de conduta. C o m o é evidente, não devemos permitir a estagnação das «fórmulas» culturais. É possível u m a modificação, mas o desenvolvimento cultural deveria, c o m o a evolução biológica, processar-se por fases. O s ideólogos que pretendem romper a todo o custo a tradição arriscam-se a favorecer a sua destruição e não a sua evolução (ver também Lorenz, 1970). É importante descobrir a natureza do h o m e m , afimde evitar que a evolução cultural procure a sua via tacteando, pelo método das tentativas e erros. O conhecimento íntimo das relações de causa a efeito, muito particularmente no que diz respeito aos factores de programação do h o m e m , poderá revelar-se u m dos mais úteis na procura dos remédios para a nossa existência visivelmente muito perturbada. O s etólogos foram obrigados a enfrentar ataques por terem sublinhado os factores biológicos determinantes do comportamento. Insisto, pois, no aspecto positivo de u m património c o m u m que nos fornece a base de u m a compreensão mútua. Se assim não fosse, as culturas comportar-se-iam como espécies diferentes e seria muito difícil superar os obstáculos à comunicação delas resultantes. O etnocentrismo não conheceria limites, moralmente falando. A humanidade continua a considerar-se incluída n u m a única e m e s m a família apesar da diversidade cultural, devido ao seu património biológico. N ã o é por os biólogos não verem, ou não apreciarem, a beleza da diversidade cultural e racial, mas é para o poderem fazer plenamente, que devemos estimular o sentimento de unidade na diversidade e servir-nos do nosso património hereditário para desmontar o etnocentrismo. Assim, parece-me difícil compreender porque é que os biólogos que sublinham a importância do nosso patrimóniofilogenéticosão tão atacados e c o m tanta virulência. C h a m a m o s a atenção para o perigo que apresenta para a humanidade u m dogmatismo mesológico demasiado rigoroso. Skinner, c o m o já disse, considera que o comportamento do h o m e m é inteiramente condicionado pelo ambiente e que tudo, incluindo a moral, é resultado de u m condicionamento. Segundo Skinner, as regras da moral são deduzidas das funções e o b e m é o que contribui para a sobrevivência de u m a cultura. M a s , q u e m pretender que o b e m corresponde à definição dada por u m a ideologia ou u m a cultura, dificilmente poderá

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esperar que os outros considerem normais as motivações que o anim a m . Sabemos que certas culturas elaboraram regras de conduta que exercem u m a pressão impiedosa sobre outras culturas e que, por vezes, originaram a sua extinção, o que parece provar a relatividade das regras de conduta promulgadas pelos homens. M a s , observando bem, apercebemo-nos de que estas normas culturais foram muitas vezes aplicadas a normas biológicasfilogeneticamentedesenvolvidas, que são pertença de todo o h o m e m e constituem o seu património c o m u m . O h o m e m «biológico», e m toda a superfície do globo, parece experimentar u m a viva repugnância e m matar ou maltratar u m dos seus semelhantes. Está programado para reagir a certos sinais que desencadeiam piedade, como a expressão ou os gritos de aflição de u m a criança. N o entanto, acontece que mata. O h o m e m «cultural» passou as normas biológicas pelofiltroda cultura e foi, assim, levado a desejar a morte dos inimigos do seu grupo. E m sua opinião, só os homens do seu grupo são homens verdadeiros, e situa-os e m destaque e m relação aos outros, que trata como sub-homens. Pode, portanto, matar, m a s , ao fazê-lo, encontra-se perante u m conflito; na verdade, se certas normas foram efectivamente aplicadas às normas biológicas, estas n e m por isso deixaram de existir, e contin u a m a desempenhar o seu papel. O h o m e m não se emociona c o m a morte à distância de u m dos seus semelhantes, durante o bombardeamento de u m a cidade, por exemplo. M a s experimenta u m sentimento de culpabilidade quando a morte ocorre n u m confronto de h o m e m para h o m e m . O próprio Freud tinha perfeitamente consciência deste interessante facto. Tinha verificado que e m muitas culturas os guerreiros que tivessem morto u m inimigo eram considerados impuros; deviam, portanto, submeter-se a ritos de purificação nos quais viam a manifestação de u m a m á consciência. Nos últimos anos, os etólogos têm insistido e m sublinhar a unidade biológica do h o m e m que se opõe à sua diversidade cultural e na qual baseamos a nossa experiência n u m futuro melhor. Tendo e m conta os trabalhos violentamente polémicos recentemente publicados (Montagu, 1968; Hollitscher, 1973; Tobach e outros, 1974; Allen e outros, 1976), insisto e m sublinhar que os educadores, para quem o h o m e m é infinitamente maleável, correm o risco de elaborar programas de educação desumanos. A esperança do h o m e m reside na educação e, por vezes, na repressão dos seus instintos. M a s , tendo e m conta os caracteres inatos do h o m e m , é possível evitar submetê-lo a frustrações inúteis.

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Irenäus Eibl-Eibesfeldt

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Niksa Nikola Soljan

Problemas de teoria e de política da educação na Jugoslávia1

A reforma da educação e m curso pretende, no essencial, trasnformar fundamentalmente as relações socioeconómicas e políticas na Jugoslávia. A aplicação de u m sistema integrado de trabalho associado2 é u m dos elementos que exercem u m a influência directa sobre as modificações introduzidas na educação. N o entanto, existe u m a interacção, educação e trabalho associado, e a educação pode contribuir para a edificação do sistema de trabalho associado, da qual constitui apenas u m a das partes. Seria interessante estudar de m o d o aprofundado os aspectos sociais e ideológicos dos fundamentos teóricos da educação. Este estudo, essencialmente crítico, talvez contribuísse c o m novos elementos para as ideias e m vigor neste domínio abrindo novas vias à reflexão sobre o papel da educação na instauração de u m socialismo autogestionário na Jugoslávia3. O s problemas da educação não p o d e m continuar a pertencer unicamente ao domínio da pedagogia: a educação prende-se cada vez mais c o m fenómenos sociais muito mais vastos. É por isso que é neces1. 2.

3.

O presente artigo reproduz, completando-o, u m texto de introdução redigido para a conferência que se realizou e m Zagreb, e m Junho de 1976, sob o título «Problemas particulares da teoria da educação e do trabalho associado.» A expressão «trabalho associado» é empregada e m servo-croata há alguns anos. Designa a fase mais recente do desenvolvimento das relações socioeconómicas e políticas ligadas à autogestão na Jugoslávia. «Trabalho associado: categoria fundamental do regime socioeconómico da Jugoslávia, incluindo: a propriedade colectiva dos meios de produção, o direito de trabalhar utilizando meios pertencentes a todos, o direito dos trabalhadores gerirem integralmente a produção, incluindo o direito de tomar decisões e m matéria de distribuição, o direito dos trabalhadores se associarem para defender os seus interesses económicos comuns, a integração directa dos meios de reprodução social, o direito inalienável à autogestão.» (Prática e pensamento sociais: glossário, p. 7. Belgrado, 1974). N a Jugoslávia, a política da educação está largamente descentralizada, sobretudo desde 1973. N ã o existe actualmente nenhum organismo federal encarregado dos problemas da educação. O poder de decisão pertence, nesta matéria, às diversas repúblicas e regiões autónomas. N o entanto, ao nível destas últimas, a política da educação resulta cada vez mais do trabalho associado e da própria população, e cada vez menos do secretariado da instrução e dos serviços administrativos. Apesar da política da educação estar muito descentralizada, alguns problemas continuam a ser comuns ao conjunto do país.

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Niksa Nikola Soljan (Jugoslávia). Departamento da educação, Faculdade de Filosofia, Universidade de Zagreb. Autor de: A s bases do ensino programado; O ensino apoiado por ordenador; O ensino programado e o ensino apoiado por ordenador: abordagem cibernética; Tecnologia da educação e educação permanente. (ed.) em servo-croata.

Problemas de teoria e de política da educação na Jugoslávia

sário abordar a teoria da educação sob vários aspectos:filosófico,sociológico, antropológico, psicológico, sociopsicológico, económico, etc. Procedendo deste m o d o , poderíamos, pensamos, superar u m estado de crise que se explica, e m parte, pelo facto de considerarmos as questões unicamente sob o aspecto pedagógico. A l é m disso, as transformações sociais, económicas e políticas actuais afastam a educação do meio fechado da pedagogia para a integrar no domínio do trabalho associado e da sociedade e m geral. Durante o período do após-guerra, a teoria da educação na Jugoslávia foi essencialmente marcada por abordagens normativas, prescritivas e descritivas, baseadas e m valores morais. A teoria pedagógica, apesar da herança incómoda da pedagogia burguesa, concentrava-se e m problemas c o m o o conteúdo ideológico, a base de classe da educação, o comunalismo, o formalismo na educação, etc. Mais tarde, a partir de 1950, a teoria da educação conservou o seu carácter normativo, paralelamente à introdução da autogestão na economia e nos serviços colectivos. Contudo, atendendo a que as relações de autogestão se desenvolveram a u m a cadência relativamente mais lenta nas actividades sociais do que nas actividades económicas, a educação e a instrução, nos anos cinquenta e sessenta, continuaram a ser actividades de carácter socialfinanciadaspelo orçamento ou por fundos de proveniências diversas. A educação continuava a ser considerada n o contexto das despesas sociais. N o início dos anos sessenta aumentou o interesse pelo estudo experimental e pelas aplicações práticas dos métodos novos, a fim de circunscrever c o m precisão os fenómenos e os processos próprios da educação. A orientação para a investigação empírica, admissível n o seu princípio, teve, então, tendência para assumir u m carácter de exclusividade científica: admitia-se apenas aquilo que podia ser apresentado sob a forma experimental e estatisticamente estabelecido c o m o possuidor de valor científico. Simultaneamente, a forma substituiu o fundo: a perfeição técnica e metodológica ocupou o lugar do objectivo e do valor pedagógico e social da investigação e do trabalho educativo. C o m o a investigação experimental se aplica melhor aos processos de formação e de ensino, a atenção dedicada a este processo deslocou o seu centro de interesse, que deixou de ser a educação 1 . A educação, 1. Impõe-se u m a explicação para os leitores estranhos à Jugoslávia. E m servo-croata existem dois termos que designam o que o francês exprime pela palavra educação: odgoj (em croata) ou vaspitanje (em servo) e obrazovanje. Estes dois termos empregam-se, na maior parte das vezes, juntos. Para simplificar, digamos que odgoj (ou vaspitanje) diz respeito essencialmente ao domínio dos valores, e obrazovanje ao dos factos, do saber, dos conhecimentos práticos e técnicos. N o entanto, o termo odgoj emprega-se simultaneamente n u m sentido mais restrito e n u m sentido mais lato, incluindo este último obrazovanje. Odgoj e obrazovanje não possuem equivalente e m francês. Contudo, a fim de estabelecer u m a distinção entre estas duas palavras, na presente versão do nosso texto, traduzimos odgoj por educação (em inglês: education) e obrazovanje por formação (em inglês: training). Assinalamos ao leitor que esta tradução não é, certamente, inteiramente satisfatória, m a s é a melhor aproximação possível atendendo às diferenças de natureza e de emprego que existem nas duas línguas.

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entendida no sentido mais amplo do que a formação, e estreitamente ligada à socialização do h o m e m , viu-se, pois, progressivamente eliminada da investigação durante os anos sessenta e, circunstância agravante, a opinião segundo a qual a medida da educação — que conduz à dedução e à especulação — é u m a operação difícil que não apresenta as características de u m método científico. C o m a orientação empírica da teoria da educação surgiram os primeiros efeitos da revolução científica e técnica. O súbito aumento da soma dos conhecimentos provocou o recuo dos limites dos programas escolares e trata-se, agora, de adquirir o maior número possível de informações. Sob muitos aspectos, a formação substituiu a educação e limitou-se à aquisição de u m a certa quantidade de conhecimentos. N a filosofia da educação, actualmente reduzida àfilosofiada formação, a quantidade é considerada o valor fundamental. Simultaneamente, a teoria da formação e do ensino tentava explorar os resultados de investigações recentes sobre a capacidade da m e m ó ria a curto ou a longo termo, a fim de aperfeiçoar ao máximo os instrumentos de medida das informações armazenadas nos «bancos de dados» (ou seja, o cérebro dos alunos). Para tal, passaram-se testes «aferidos» e «não aferidos», utilizando a formação c o m o medida, o que, na verdade, constituía nas nossas escolas, muitas vezes, u m a simples preparação para as provas. O fim da educação e da formação tornou-se, assim, o exame, e a únicafinalidadedos estudos a preparação para o exame. Nestas condições, a teoria da educação procurou soluções na aplicação dos conhecimentos científicos ao processo de educação. C o m e çou a considerar-se a educação, a formação, o ensino e a aprendizagem c o m o processos que é possível dirigir, cujo controle e regulação p o d e m ser assegurados. Assim, por u m lado, aplicou-se mais a cibernética aos fenómenos e processos pedagógicos e, por outro lado, a tecnologia da educação permitiu elaborar u m a tecnologia dos processos intelectuais da educação baseada na ciência do comportamento. Sob estas duas formas, tentou-se, de facto, aperfeiçoar as técnicas de trabalho para, graças a u m a racionalização da transmissão, da recepção, do tratamento e da armazenagem da informação, melhorar os resultados da educação e da formação. M a s não nos afastámos nada do campo da tecnologia ou da tecnocracia, cujos únicos objectivos são a produtividade, a racionalização e o rendimento, c o m prejuízo para a educação no sentido lato do termo. Por outro lado, ao aplicar sem discernimento a tecnologia da educação, orientamo-nos para os princípios teóricos do neobehaviourismo contemporâneo. Nestas condições, o processo de educação tem por objectivo condicionar o jovem segundo métodos que têm o seu fundamento teórico na «ciência do comportamento», Esta, inspirada nos princípios da cibernética ou nos do neobehaviourismo, eleva a prática do condicionamento no meio educativo ao nível de u m a manipulação científica. A orientação da teoria pedagógica para as questões de formação, as investigações sobre os problemas de formação, a elaboração e a aplicação de instrumentos de medida da aprendizagem, e o aumento

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do rendimento da educação graças à tecnologia educativa, deu origem a u m a mudança de atitude fundamental: foram as questões de formação, de ensino e de instrução que monopolizaram a atenção, e m detrimento dos problemas relativos à educação. C o m o consequência, atribuiu-se pouca importância aos problemas de educação sob o aspecto teórico. A democratização da educação teve, entre outras consequências, o aumento súbito do número de alunos e estudantes, primeiramente no ensino primário, depois no ensino secundário e, finalmente, no ensino superior. O subsistema da educação dos adultos baseado na teoria da andragogia constituiu-se independentemente. Cada u m destes subsistemas adquiriu a sua própria estrutura, os seus objectivos e a sua filosofia do comportamento. O sistema escolar, estruturado c o m o acabamos de indicar, continuou a desenvolver-se e a funcionar da m e s m a maneira até aos nossos dias. A sociedade evolui, pois, para u m a forma de sociedade educativa de que a escola é o símbolo e cujo último objectivo é a aquisição d o diploma que sanciona o nível e a extensão das capacidades, competência ou conhecimentos diversos do indivíduo. Esta orientação para a escola, para u m diploma, é muitas vezes motivada pelas vantagens reais que daí resultam na vida extra-escolar: u m lugar na divisão social do trabalho, o rendimento que ele proporciona, u m certo nível de vida material e u m a categoria nas diferentes configurações sociais. A educação torna-se, assim, u m instrumento de produção social, u m valor que justifica u m investimento. Estas características acentuaram-se c o m a introdução de valores mercantis no domínio da educação, e m particular no da educação de adultos e ao nível dos altos estudos universitários. A educação começou a surgir c o m o u m b e m que se possui e que pode ser comprado; u m domínio cujo sentido decorre da categoria do «ter», e não do «ser» ou do «tornar-se», para parafrasear P . Lengrand i. A educação decorre, portanto, dos direitos do cidadão, é u m assunto pessoal, u m b e m que pode c o m prar-se e vender-se n o circuito da comunicação social. N o rasto destafilosofiada educação, duas disciplinas adquiriram u m desenvolvimento particular: a teoria da educação dos adultos (andragogia) e a da pedagogia do trabalho industrial. N ã o podemos afirmar, contudo, que a extensão alcançada por estas disciplinas tenha contribuído para a avaliação do «valor mercantil» da educação. Este resulta, pensamos, da realidade socioeconómica. Mais u m a vez, foi desprezada a dimensão da educação, dimensão que não pode, e m caso algum, estar ligada à oferta e à procura. À crise da formação veio juntar-se a da educação. Procura-se sair da primeira considerando a educação u m processo que se estende por toda a vida. É , de resto, neste conceito de educação permanente que assenta o novo conteúdo da educação e m todos os domínios. Entretanto, salienta-se mais a formação, a informação e o saber do que a

1. P. L E N G R A N D , Introduction à l'éducation permanente, p. 60, Paris, U N E S C O , 1970.

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educação, estando aqueles aspectos ligados ao desenvolvimento rápido das ciências e das técnicas. Ainda não nos conseguimos libertar do modelo tenocrático da educação, cujo papel se limita, e m larga medida, a seguir e a adaptar inovações n u m a sociedade baseada no crescimento da produção e do consumo. Por muito permanente que seja, a educação continua a ser essencialmente utilitária. Esforçando-se por clarificar afilosofiada educação permanente, a teoria pedagógica tem-se voltado também, nos últimos anos, para os problemas da auto-educação. Desenvolveram-se sérios esforços no sentido de apresentar u m a análise teórica dos métodos de auto-educação. T a m b é m neste caso podemos afirmar que foi a auto-instrução, muito mais do que a auto-educação, q u e m continuou a reter a atenção. M a s o futuro oferece ao h o m e m grandes possibilidades de formação permanente, possibilidades que só poderão realizar-se se existirem igualmente para além dos estabelecimentos de ensino de tipo clássico, para além das escolas. N o s últimos anos a teoria da educação tem sido obrigada a enfrentar tarefas imensas: e m primeiro lugar, introduzir u m conteúdo novo na educação, e para além dos programas escolares clássicos. A educação já não pode ser concebida unicamente dentro do quadro da escola. A educação extra-escolar e circum-escolar exerce actualmente u m a influência tão importante c o m o a que se dispensa à escola, e este facto não pode ser ignorado. Transformar a sociedade n u m a sociedade educativa1 é u m objectivo que não podemos deixar de subscrever. O que pressupõe, b e m entendido, que a educação deixe de ser considerada u m b e m que se possui e que surja c o m o u m valor ao qual se acede por u m processo de transformação. Assim concebida, a educação transcende os limites de u m simples instrumento destinado a aperfeiçoar os meios técnicos de acção e de produção, ou a melhorar o funcionamento dos sistemas sociais. A educação impõe-se c o m o u m valor e m si, não só porque preenche esta função essencial, m a s sobretudo porque, ao participar, o h o m e m pode desenvolver o potencial nele existente, dentro de limites determinados pelas condições sociais e pelas suas próprias capacidades, fazendo desaparecer, deste m o d o , a alienação do m u n d o prisioneiro das relações socioeconómicas, do m u n d o das coisas e do m u n d o da cultura. A questão fundamental da teoria da educação não consiste, pois, e m saber o que os homens p o d e m fazer, mas e m saber de que espécie de homens se trata2. Até agora a teoria da educação preocupou-se mais c o m a primeira questão, desprezando os aspectos qualitativos associados à segunda: de que espécie de homens nos ocupamos? Mantendo-se afastada do conteúdo fundamental da existência do h o m e m —conteúdo que constitui o sentido da vida humana, a sua 1. 2.

T . H U S E N , The learning society, Londres, Methuen, 1974. B . D U C H O D O L S K I analisou brilhantemente estes problemas n u m artigo intitulado «Alguns problemasfilosóficosda educação permanente», e m N . N . S O L J A N (dir. publ.), Permanente obrazovanje (Educação permanente), p . 23-57, Split, Marko Marulió, 1976.

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Problemas de teoria e de política da educação na Jugoslávia

orientação e os valores existenciais fundamentais — e baseando-se no estado e no desenvolvimento da teoria pedagógica nos outros países, a teoria da educação construiu o seu próprio sistema de pensamento e de acção, que, muitas vezes, ficou muito aquém das tendências reais da nossa sociedade. Consideramos que o tempo concedeu à educação u m lugar inteiramente novo na sociedade. É totalmente ilusório pensar que a educação, tal c o m o está, acaba por modificar as condições socioeconómicas. E m última análise, o inverso é que seria verdadeiro. N o entanto, m e s m o nas condições presentes, a educação pode ajudar a transformar a existência dos indivíduos e contribuir para o desaparecimento da alienação n o m u n d o do trabalho, das coisas e da cultura. A s hipóteses de que é necessário partir para eliminar esta alienação resultam do desenvolvimento ulterior das relações socioeconómicas e políticas de autogestão, na Jugoslávia; da integração d o trabalho do h o m e m n u m sistema unificado de trabalho associado. Paralelamente, o papel da educação não se limita a contribuir para o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade e para o aumento do seu rendimento global, m a s , contribuindo activamente para libertar o h o m e m da sua alienação, a educação deve também transformar-se n u m valor «independente», capaz de enriquecer o h o m e m durante toda a vida. A nossa situação permite-nos socializar a função educativa integrando os diversos aspectos da educação no conjunto do trabalho associado, a fim de os ligar a todas as fases da sua evolução cultural. O controle da educação pelo trabalho associado — do qual a educação é parte integrante e não u m elemento estranho ao sistema, u m acréscimo vindo do exterior — v e m realçar u m certo número de problemas teóricos e práticos que ainda não tinham surgido na teoria n e m na prática da educação. É verdade que os clássicos do marxismo previram a evolução da sociedade e da educação e m condições e m que as relações socioeconómicas atingiram u m certo grau de desenvolvimento. A sua análise e observações sobre o elo que une a educação e o m u n d o do trabalho ainda nos são úteis actualmente, quando atribuímos u m conteúdo novo à articulação e à reforma dos horários e dos programas de educação, de trabalho e de lazer. N o entanto, apesar de tudo, não se fez o suficiente do ponto de vista da teoria marxista, para clarificar os grandes problemas levantados pela articulação do trabalho e da educação ou, n u m sentido mais amplo, pela integração dos diversos aspectos da educação no conjunto do sistema da produção e da reprodução sociais. Apesar dos esforços realizados, podemos afirmar que os problemas fundamentais respeitantes à integração das diversas formas de actividade da educação n u m sistema unificado de trabalho associado ainda não foram resolvidos. A reforma da educação ou, mais exactamente, a sua transformação radical, está ligada a factores de ordem socioeconómica e política, porque, na Jugoslávia, não se trata unicamente de reforma pedagógica. A ciência da educação encontrou-se, c o m o consequência, perante tarefas consideráveis que ultrapassam objectivamente os meios, muito modestos, de que dispõem os educadores, assim c o m o as capacidades científicas muito insuficientes do país neste domínio.

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Assim, se pretendemos transformar a educação n u m a função social, n o quadro conceptual de u m sistema unificado de trabalho associado, os teóricos de u m grande n ú m e r o de especialidades relacionadas c o m as ciências sociais d e v e m participar, tanto mais que os problemas e m causa ultrapassam largamente as fronteiras d a teoria d a educação para atingir afilosofia,a sociologia, a política, a economia e outras disciplinas. M e s m o que os especialistas de fenómenos sociais mais vastos se tenham interessado anteriormente pela educação n a medida e m que procuraram transformá-los n u m sistema integrado de trabalho associado, é talvez a primeira vez que a educação se apresenta c o m o u m assunto de estudo para u m tão importante grupo de teóricos. Facto mais importante ainda : estes fenómenos poderiam passar para a experiência d a vida quotidiana do trabalho associado e m todos os domínios e a todos os níveis d o seu funcionamento. A teoria d a educação poderia, assim, superar a dualidade que existe entre u m a acção muitas vezes fechada e m si própria e os imperativos d a realidade social. Se n ã o fizer este esforço, a ciência d a educação dará razão à sociedade que a critica cada vez mais por «subir a u m a m o n t a n h a para parir u m rato» t e por se conservar, assim, afastada das grandes correntes desta sociedade, c o m o u m espectador sentado na eterna barreira d o aparelho administrativo. Nestas condições, é interessante estudar a relação existente entre a teoria e a reforma d a educação. É evidente que, n o passado, a teoria da educação n ã o se interessou, pelo m e n o s n u m a medida apreciável, pelos problemas de reforma. D e acordo c o m a ideia segundo a qual a reforma decorre d o domínio administrativo, a teoria d a educação continuou s e m influência directa e real sobre a reforma. A l é m disso, as reformas têm-se exercido sobre subsistemas escolares e, e m geral, t ê m sido aplicadas separadamente. Tratava-se, neste caso, de reformas d a escola. N a Jugoslávia, a última reforma n ã o foi concebida unicamente c o m o reforma d o sistema escolar, m a s c o m o reforma global integrada n o desenvolvimento essencial das novas relações socioeconómicas de autogestão. Quanto ao significado fundamental da instauração de relações novas n o quadro d o trabalho associado, é n o domínio de u m m u n d o estranho ao h o m e m que a devemos procurar. É por isso que, por m e i o da educação, p o d e m o s eliminar esta alienação, expulsando-a, e m primeiro lugar, d o m u n d o d a produção. Este processo reside n o controle do trabalho associado sobre a produção imediata d o rendimento social global e sobre a distribuição primária e secundária. Afastada, até agora, do contexto d a distribuição primária, a educação manteve-se t a m b é m fora d o c a m p o de interesse d o trabalho associado e d a sua influência principal. É aí que, e m grande parte, p o d e m o s encontrar a resposta para este problema: até que ponto o trabalho associado assumiu o domínio d a educação? A t e n d e n d o a que as relações socioeconómicas alargadas se baseiam nas relações de produção e de distribuição, a teoria d a educação expri1. L . E L V I N , «The place of educational research», Oxford review of education, 1975, vol. I, n.° 3, p. 193.

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Problemas de teoria e de política da educação na Jugoslávia

miu necessariamente estas relações durante as diversas fases da nossa evolução socioeconómica e política. É nestas relações, condicionadas pela história e nela baseadas, que devemos procurar as verdadeiras causas das diferentes tendências de acção na teoria e na prática da educação. É possível exercer u m a influência maior sobre todos os processos da reflexão teórica relativa à educação e à prática pedagógica, actuando sobre as relações socioeconómicas fundamentais que se instauraram no quadro do trabalho associado e que estão muito afastadas do processo educativo clássico. A partir destas relações é necessário elaborar u m a teoria nova da educação na qual a educação seja considerada o pleno desenvolvimento do h o m e m n u m universo de cultura humanista n o sentido lato, tendente, na sua acção, a superar a alienação no m u n d o da produção, no m u n d o das coisas e no m u n d o da cultura. Estas relações fornecem simultaneamente a resposta às exigências de modificações dos sistemas de educação existentes, e de u m a educação que se conserva alheia ao sistema, resposta que estamos tentados a designar por reformas. Deste m o d o , a reforma não se limita a u m a simples reforma escolar, adquirindo o sentido de u m a reforma social e da transformação do ser social. Se entendermos por reforma u m a modificação constante da qualidade das relações sociais, ela não poderá limitar-se a certos elementos ou partes do sistema, n e m reduzir-se a prazos estritos. Pelo contrário, deve ser essencialmente concebida c o m o u m a reforma permanente da teoria e da prática da educação n o seu conjunto, tendo a sua origem nas modificações qualitativas que se produzem no contexto mais amplo das relações socioeconómicas. Desta maneira de abordar os problemas pode deduzir-se o verdadeiro sentido das investigações sobre educação que, devido à própria natureza do assunto, devem ser interdisciplinares. Admite-se que a investigação sobre a escola prosseguirá. N o entanto, esta tarefa liga-se fundamentalmente a u m a procura das melhores soluções na prática e na teoria da educação, considerando que formam u m a relação social completa. É evidente que, neste caso, o sentido destas investigações é inseparável das medidas de reforma e de u m a visão baseada no futuro. Trata-se de procurar novas vias de desenvolvimento, de estudar e de examinar soluções de recurso. Assim, as investigações sobre a teoria e a prática da educação deveriam atribuir às modificações, que designamos por reforma, u m carácter mais científico por meio de u m estudo empírico e experimental. Deveriam ainda libertar a reforma das improvisações voluntárias e de circunstância. Neste ponto, os interesses do trabalho associado coincidem c o m os dos investigadores, dos teóricos e dos práticos, vindos (ou não) do m u n d o da educação, e c o m os esforços dos homens políticos que se ocupam directamente dos problemas da educação, e que, c o m o se compreende facilmente, estão cada vez mais vivamente interessados.

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Posições/Controvérsias

Crise da planificação e os limites d o auxílio externo Manzoor A h m e d

Manzoor A h m e d Gostaria de comentar os debates a que deu origem nesta revista o (Bangladesh). estudo sectorial do Banco Mundial sobre a educação; penso que a Director adjunto dos estudos de estratégia discussão tem sido dominada até agora por u m a controvérsia fútil da educação sobre a interpretação de dados quantitativos respeitantes ao ensino no Conselho Internacional primário e à alfabetização — controvérsia que corre o risco de desviar para o Desenvolvimento a nossa atenção de aspectos mais importantes do desenvolvimento da da Educação (ICED), educação. Essex, Conn. (Estados Unidos E m minha opinião, Williams tem u m a concepção de educação próda América). pria de u m m e m b r o da profissão docente: identifica-a à escola, o que Ensinou no Instituto implica que o seu desenvolvimento depende sobretudo do da escolariof Education and Research da Universidade zação. O s autores do estudo do Banco Mundial partem de u m ponto de Dacca. Autor de de vista mais geral, onde a instrução extra-escolar entra também no Economics of sistema nacional de educação, m a s , c o m o seria de esperar, sentem difinon-formal education: culdades e m definir até ao fim as implicações quanto às políticas e aos resources, costs and programas. benefits e co-autor de Education for rural development: case studies for Não há motivo para satisfações planners (com Philip Coombs), Attacking rural M e s m o que consideremos apenas o aspecto quantitativo e abordemos poverty: h o w as estatísticas nacionais globais c o m o cepticismo que se impõe, é non-formal education difícil ser menos pessimista do que o Banco e mais difícil ainda subscan help.

crever os alegres prognósticos de Williams. Q u e m estiver de certo m o d o familiarizado c o m as estatísticas dos ministérios da educação sabe que as elevadas taxas de desistência e reprovação e a inclusão dos alunos «atrasados» podem falsear a interpretação da taxa de participação na perspectiva das aquisições utilizáveis, que o sistema incita a exagerar os efectivos assinalados no Gabinete Central de Estatística, que muitos são os alunos que, m e s m o após quatro ou seis anos de escola primária, são incapazes de 1er ou escrever (em geral, mais nas zonas rurais do que nas cidades), e que u m a parte dos que terminaram os estudos primários recaem rapidamente n u m analfabetismo total o u parcial. Acontece o 1.

Ver e m Perspectives, vol. v, n.° 4, 1975 e vol. vi, n.° 2, 1976, os artigos de Peter Williams, Duncan S. Ballantine e A . S. A b r a h a m .

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m e s m o c o m as estatísticas respeitantes à alfabetização. Durante a minha recente estadia nas aldeias do Bangladesh pude observar que, apesar dos números oficiais segundo os quais mais de 60 % das crianças frequentam a escola primária e a taxa de alfabetização é de cerca de 20 % , apenas 10 % da população c o m mais de dez anos é capaz de 1er e escrever de u m a maneira «útil». N ã o há razões para pensar que o Bangladesh constitua u m caso único sob este aspecto. Diga-se de passagem que as objecções que Williams opõe firmemente ao facto de se excluírem os alunos atrasados para calcular as taxas de inscrição não é sustentável. C o m efeito que sentido teria a taxa de inscrição se comparássemos todos os alunos do primeiro grau, independentemente da sua idade, n u m a base definida como a população de determinado grupo etário? É evidente que o cálculo estatístico desta taxa nada tem a ver c o m u m julgamento de valor sobre as inscrições tardias ou sobre os desvios de limite de idade. O que podemos afirmar é que, se u m sistema verdadeiramente maleável de educação de base fosse aplicado no conjunto de u m país, a taxa de inscrição por grupo etário não teria qualquer sentido, m a s esta situação não existe e m parte nenhuma.

U m falso problema

Atribui-se, erradamente, u m a extrema importância aos efectivos globais— por que razão nos debruçamos tanto sobre as estatísticas? O problema não é esse. A generalização do ensino primário e da alfabetização de adultos não produz o efeito de u m a varinha mágica sobre a vida da maioria rural pobre dos países e m desenvolvimento que se situam na parte inferior da escala (do P N B ou de u m índice composto hipotético de bem-estar). O facto de quatro grandes países pobres (Bangladesh, índia, Indonésia e Paquistão) registarem u m a taxa nominal de inscrição de 60 a 70 por cento nas escolas primárias e de, n o entanto, pertencerem à categoria dos países mais pobres e m que o nível de vida da maioria não difere muito do dos países cujas taxas de inscrição no ensino primário e de alfabetização são muito mais baixas, deveria abrir-nos os olhos. Estou intimamente convencido de que, nestes quatro países, o nível de vida dos pequenos agricultores e dos operários agrícolas que constituem mais de metade da população não é mais elevado do que e m países mais pequenos. A diferença notável de taxas de inscrição nas escolas primárias e de alfabetização não modifica muito a questão. É evidente que já não tentamos descobrir u m a ligação directa entre a taxa de inscrição e o nível de desenvolvimento e de bem-estar, mas os antigos hábitos intelectuais não se perdem facilmente. Deveríamos, no entanto, saber que o analfabetismo e a ausência de possibilidades de educação de base fazem parte da síndrome da pobreza e do desenvolvimento; é possível, c o m grande esforço e despesa, elevar a taxa de inscrição, m a s este número n e m por isso terá u m valor prático. N a ver192

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dade, para que serve saber 1er e escrever, se não há nada para 1er e muito pouco para escrever na vida de todos os dias?

U m desenvolvimento harmonioso N a medida e m que reflectem a realidade, as estatísticas dos grandes países pobres indicam principalmente que só u m esforço de desenvolvimento socioeconómico harmonioso, que provocasse u m a modificação qualitativa importante nas condições de vida da maioria e assegurasse a todos u m mínimo de bem-estar, pode conferir u m sentido aos esforços empreendidos e m matéria de educação. U m esforço de desenvolvimento concertado e harmonioso nas frentes económica e social aumenta o valor e a utilidade da educação. E m vez de nos dar a impressão de que nos aproximamos a passos largos da educação universal, os progressos quantitativos (e a sua utilidade limitada) obrigam-nos a interrogarmo-nos sobre os meios de harmonizar o desenvolvimento da educação c o m outros aspectos do desenvolvimento e de aumentar a contribuição da educação para o conjunto dos esforços tendentes a melhorar o nível de vida. É verdade que as estatísticas indicam também que u m amplo esforço tendente a alargar as possibilidades de educação primária e de educação de base pode ser justificado e apresenta hipóteses de sucesso, se fizer parte de u m programa determinado que transforme deliberadamente as estruturas da sociedade e se a educação for considerada u m instrumento essencial deste processo (como nos primeiros anos que se seguiram à revolução na União Soviética, na China, no Vietnam, e m C u b a e, talvez, na República Unida da Tanzânia). E m vez de perguntar se os quatro grandes países não socialistas da Ásia consagram demasiada energia e recursos ao desenvolvimento da educação (o que significa «demasiado»?), seria preferível procurar saber porque é que, neste caso, o progresso quantitativo não parece contribuir nada para o melhoramento das condições de vida. É , portanto, necessário perguntar o que seria necessário fazer para tornar os esforços realizados e m matéria de educação mais compensadores neste aspecto e quais os ensinamentos que podemos tirar das situações e m que a educação (assim c o m o outros esforços de desenvolvimento) teve u m a maior incidência. É de esperar que os progressos da educação se reflictam nas estatísticas, m a s n e m todos os melhoramentos apontados pelas estatísticas indicam que os objectivos e m matéria de educação e de desenvolvimento tenham sido atingidos. Dizer que «o aumento dos efectivos apresenta u m a importância vital, se pretendemos assegurar a igualdade de acesso à educação» (artigo de Williams, p . 492), é o m e s m o que fazer u m a petição de princípio.

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O desafio da planificação da educação

O estudo do Banco e os debates que suscitou não sublinharam a natureza do desafio que nos lança actualmente a planificação da educação — c o m o ultrapassar os limites da abordagem sectorial e centralizada da planificação do desenvolvimento (incluindo o domínio da educação) e como introduzir judiciosamente u m elemento de educação vivificante e m processos de desenvolvimento regional integrado baseados nas prioridades e nas necessidades essenciais da maioria da população. Este desafio já v e m de longe: a comunidade internacional não ignora, de m o d o nenhum, que é importante melhorar as condições de vida e assegurar a sobrevivência de u m a grande parte da população dos países mais pobres abordando os problemas tal c o m o se apresentam na vida quotidiana e não e m função dos organigramas de u m a burocracia. N o entanto, embora estejam conscientes deste imperativo, os organism o s internacionais e os governos não estão à altura de promover u m desenvolvimento regional integrado, baseado nos desejos do h o m e m . O s mecanismos das instituições, a tradição administrativa, a formação e a experiência do pessoal e a maneira como são efectuadas as opções e as políticas e m matéria de desenvolvimento, tanto no seio dos governos c o m o nos organismos internacionais, militam contra u m esforço transectorial concertado desta natureza. Examinando o desenvolvimento de aptidões e m meio rural, o estudo do Banco sublinha que «a educação» nas zonas rurais deveria estar integrada e m outras actividades de desenvolvimento rural à escala nacional e local» (p, 33). Indica igualmente que o Banco se propõe estimular «a integração da educação de base e m outros programas de desenvolvimento urbano ou rural» e favorecer «o melhoramento das capacidades dos gestores, à escala local, por meio de reorganizações administrativas e/ou actividades de formação» (p. 65 e 66). M a s como conseguir esta integração? D e que reorganização administrativa se trata e como se deve proceder? Que medidas pode tomar o Banco? Quais as eventuais consequências para o funcionamento, a organização e as políticas do Banco? N ã o é provável que u m estudo sectorial entre e m pormenores. N o entanto, gostaríamos de encontrar u m a indicação sobre os eventuais princípios de acção, e m especial na parte do estudo que trata dos problemas de gestão e de planificação (p. 52 a 58). N o exame dos problemas de planificação, depois de ter reconhecido os limites das abordagens baseadas n o rendimento, por u m lado, nas necessidades de mão-de-obra, por outro, e de ter assinalado que o Banco continuará a recorrer à análise da mão-de-obra e m certos casos, os autores do estudo apresentam a «análise de grupo» c o m o u m novo meio de abordar a planificação da educação. A análise de grupo e os estudos de trajectória, injustamente afastados da avaliação e da planificação da educação, p o d e m certamente ser úteis, mas não contribuem c o m nenhuma solução para os problemas cruciais que actualmente encontramos neste domínio. Parece que, apesar da retórica que envolve, a abordagem integrada do desenvolvimento e os sistemas de educação permanente à escala nacional, o m o d o de definir os problemas de plani-

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ficação da educação e de considerar a metodologia a empregar conserva ainda a marca da abordagem sectorial e da concepção estritamente escolar do ensino.

Alguns pontos deixados na sombra

N ã o existe certamente nenhuma fórmula simples que permita resolver o desafio da planificação da educação e do desenvolvimento. Algumas questões merecem ser examinadas mais profundamente do que no estudo sectorial: Por que é que vários departamentos do Banco —desenvolvimento rural e agricultura, população e saúde, indústria e educação— não trabalham e m conjunto e m determinadas regiões rurais de certos países pobres para realizar a promessa de M c N a m a r a no sentido de ajudar prioritariamente os que vivem e m estado de «pobreza absoluta» e para contribuir, nessa m e s m a ocasião, para o melhoramento dos conhecimentos adquiridos e dos métodos utilizados quanto aos problemas de planificação, de organização e de gestão de u m desenvolvimento regional integrado descentralizado? U m a colaboração análoga c o m instituições especializadas das Nações Unidas e, eventualmente, c o m certos organismos bilaterais permitiria realizar u m a abordagem integrada, descentralizada e comportando medidas educativas, concretizá-la por meio de programas respondendo às aspirações e às necessidades essenciais dos habitantes de determinadas regiões? Q u e ensinamentos podemos tirar actualmente da participação do Banco e m certos projectos de desenvolvimento regional, por exemplo no Malawi (Lilongwe) e na Etiópia ( W A D U ) e que teria sido possível fazer para aumentar o contributo do elemento educação para estes projectos? Q u e modificações se i m p õ e m na organização, nas técnicas, no funcionamento, no pessoal, na política do pessoal, nos mecanismos de avaliação e estabelecimento de relações, etc., dos serviços de planificação e de administração do desenvolvimento aos níveis nacional e regional, se pretendemos incorporar os esforços de educação e m programas integrados de desenvolvimento regional? Q u e assistência p o d e m fornecer o Banco e outros organismos exteriores para promover as transformações necessárias nos países beneficiários e que eco poderão encontrar nestes países? Quais os obstáculos mais prováveis aos esforços externos tendentes a modificar o fundo e a forma da planificação da educação nos países beneficiários? Estarão o Banco e os outros organismos equipados para os ultrapassar e, caso contrário, que devem fazer para o estar — transformar as estruturas internas, formar novos peritos, modificar os m é todos de concepção e de avaliação dos projectos, elaborar novas formas de colaboração c o m os outros organismos, etc.? É interessante notar que, pouco depois da publicação do estudo sectorial sobre a educação, o Departamento do desenvolvimento rural x

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do Banco publicou, também, u m documento de política sectoriali. Este documento sublinha a importância do papel do ensino rural, que «deve estar ao serviço dos grupos beneficiários determinados e responder a necessidades reconhecidas», preconiza a integração do ensino rural e m outras actividades de desenvolvimento e cita u m estudo que recom e n d a a descentralização da planificação e da direcção «de tal m o d o que as actividades pedagógicas possam ser efectivamente adaptadas às condições e às necessidades locais» (p. 60 e 61). Examinando a organização e a planificação do desenvolvimento rural, os autores deste documento apontam a necessidade de u m mecanismo eficaz de coordenação no seio do governo central, da descentralização e da coordenação ao nível local e da participação da colectividade «na selecção, concepção, preparação e execução de programas de desenvolvimento rural» (p. 42). Estudam a aplicação do «método do mínimo indispensável» assim c o m o do método global na execução dos programas de desenvolvimento rural e sublinham alguns dos perigos que comporta este tipo de desenvolvimento local, e m particular a concentração desproporcionada e deficiente repartição dos recursos e das competências e m zonas limitadas, assegurando vantagens a u m grupo reduzido (p. 54). O conceito de desenvolvimento rural está resumidamente explicado c o m o se segue: « E m n e n h u m caso os objectivos operacionais do desenvolvimento rural se limitam a u m único sector: trata-se, na verdade, de aumentar a produtividade — e , por conseguinte, os rendimentos— dos grupos indicativos e de assegurar a todos os mínimo e m matéria de alimentação, de habitat, de educação e de saúde. A realização destes objectivos exige que se coloquem mais bens e serviços à disposição da população pobre dos campos, que se criem instituições e que se elaborem políticas que permitam tirar plenamente partido de todos os serviços sociais e económicos (p. 20)». N o entanto, o programa de empréstimos a favor do desenvolvimento rural, tal c o m o o documento estipula, baseado quase exclusivamente na produção agrícola, não reflecte esta visão global do desenvolvimento rural. Até m e s m o os projectos ditos de «novo estilo», que o departamento lança actualmente, só diferem dos antigos projectos agrícolas na medida e m que tentam conjugar diversos serviços e factores de produção agrícolas e atingir prioritariamente os pequenos exploradores. O Departamento do desenvolvimento rural parece ter melhorado a integração dos diferentes elementos do desenvolvimento agrícola, m a s ainda hesita e m incorporar nos projectos outros aspectos do desenvolvimento rural. Assim, a inclusão de elementos sociais, de serviços fundamentais destinados aos mais desfavorecidos e a criação de estruturas institucionais e de serviços locais de desenvolvimento rural integrado são ainda u m a excepção m e s m o nos projectos de «novo estilo». Estes comentários não se referem a todos os méritos do documento de política sectorial respeitante ao desenvolvimento rural, que é interessante sob muitos aspectos, m a s que não satisfaz os leitores sedentos 1. Banco Mundial, «Desenvolvimento rural — politica sectorial», Washington

D. C , 1975.

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de nele encontrar sinais de iniciativas ousadas tendentes a integrar as actividades e m curso a favor da educação e do desenvolvimento e m geral n u m a planificação descentralizada adaptada às necessidades. Constitui certamente u m a prova de que até m e s m o os organismos internacionais exprimentam dificuldades e m promover o desenvolvimento integrado, o facto de nenhum dos dois estudos mencionar as incidências das políticas e das actividades de u m departamento sobre o programa do outro, n e m u m a eventual colaboração interdepartamental — c o m o se os dois departamentos e os documentos que têm respectivamente publicado se cruzassem nas trevas, ambos indiferentes à presença do outro.

Os limites do auxílio externo

Muitos leitores pertencentes aos países que beneficiam dos empréstimos do Banco concordarão certamente c o m Williams, segundo o qual o estudo do Banco pressupõe a existência de possibilidades de acção que o Banco poderia explorar, se não se verificasse resistência por parte desses países (Williams, p . 489). Estaria de acordo c o m Williams (p. 503) ao pensar que os autores do estudo subestimam o problema que consiste e m fazer aceitar a ideia de u m a educação de base nos países de recursos reduzidos enquanto existir u m sistema paralelo de escolas primárias. N o entanto, tenho a impressão de que não se aperceberam da natureza fundamental do conflito existente n u m sistema duplo. N o s países que possuem estruturas socioeconómicas fundamentalmente injustas e que se prestam à exploração (a maior parte dos países de fracos recursos entram nesta categoria), a existência de sistemas paralelos de educação de base e de ensino primário institucionalizado corre o risco de favorecer o estabelecimento e o reforço desta exploração. É possível elaborar várias estratégias destinadas a aumentar as possibilidades de educação de base para todos graças a u m sistema nacional unificado (mas não necessariamente uniforme e centralizado) e conviria que o Banco Mundial e outros organismos externos estudassem o que poderiam fazer para ajudar os países beneficiários a conceber e aplicar essas estratégias. U m a vez que as opções e as decisões competem aos próprios países, o mínimo que os organism o s externos poderiam fazer era absterem-se de ajudar a consolidar e a legitimar, deliberadamente ou não, o dualismo social que os caracteriza. Alguns aplaudirão também as reservas que Williams formula quanto ao optimismo c o m o qual o Banco considera o aumento dos empréstimos a favor da educação de base e do ensino primário O s obstáculos ao desenvolvimento da educação de base, e m particular se ela for integrada nas actividades de desenvolvimento local, não se referem tanto à falta de recursosfinanceirosc o m o ao facto dos objectivos e das prioridades de desenvolvimento não reflectirem as necessidades da maioria, e das instituições e estruturas entravarem os esforços de desenvolvimento integrado descentralizado. Devemos ainda evitar que o auxílio

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extemo concedido à educação de base incite os países a adiar o momento e m que deverão fazer opções determinantes e m matéria de educação, atrase os esforços de mobilização dos recursos internos, favoreça estruturas de custos inaceitáveis a longo termo e reforce o dualismo existente na sociedade. N ã o se trata de fazer o processo do auxílio externo, mas simplesmente de sublinhar os seus eventuais limites. M a s os pontos que aqui evocamos não acompanham, de m o d o nenhum, o principal argumento de Williams, isto é, que o problema da educação de base e do ensino primário nos países pobres está quase resolvido. T a m b é m m e é muito difícil compreender porque é que Williams ironiza assim — e creio que os responsáveis políticos e os planificadores dos países pobres estão, como eu, surpreendidos— c o m o facto do Banco defender propostas destinadas, por exemplo, a desenvolver aptidões de maneira selectiva e m função de imperativos específicos e urgentes, a definir de u m ponto de vista funcional os objectivos e o conteúdo da educação de base como as «necessidades de instrução minimal» e a dispensar a educação de base sob formas diferentes nos diversos países, de acordo c o m as necessidades das pessoas que se dirigem e c o m as imposições resultantes dos recursos disponíveis (Williams, p. 502). Williams não pode ignorar que existe u m fenómeno designado por limitação dos recursos, exigindo u m a planificação que requer opções colectivas quanto ao que pode ser realizado e ao que não o pode. A s teses de Illich a favor de u m a espécie de livre empreendimento no domínio da educação trarão a marca de u m preconceito ocidental? U m a observação para terminar: para retomar a metáfora de Williams, os peregrinos que sobem ao monte Olimpo para confessar os seus pecados n e m por isso trazem aos seus semelhantes a boa palavra e m matéria de educação. Esta analogia pitoresca atribui demasiada importância ao auxílio externo e m prol do desenvolvimento da educação nos países pobres, embora não fosse essa, certamente, a intenção de Williams.

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O livro para crianças e os direitos do h o m e m Marc Soriano

M a r c Soriano (França). Professor de literatura francesa contemporânea na Universidade de Paris VII e de Metodologia das ciências sociais. Especializou-se na investigação interdisciplinar das ciências humanas a partir das literaturas funcionais e da pedagogia dos meios audiovisuais e da leitura. Em particular, autor de: O s contos de Perrault, cultura erudita e tradições populares; Guia da literatura para a juventude.

Grande esperança ou grande ilusão? O livro representou u m verdadeiro salto qualitativo e m relação à invenção da escrita o u até m e s m o e m relação às oficinas de copistas que, no fim da Idade Média, aumentavam de maneira notável o número de manuscritos e m circulação A relativa fragilidade do suporte, que poderia ter desvalorizado a mensagem, contribui, pelo contrário, para a enriquecer. Reduzindo o preço, ela permite u m a multiplicação e u m a dispersão teoricamente infinitas do texto, o que o torna indestrutível. Simultaneamente, encontram-se instauradas melhores condições para u m a aprendizagem institucional das técnicas de «decifração» : alargamento das camadas sociais abrangidas pela escolarização, utilização de manuais, emulação, etc. A partir daí generaliza-se a esperança de que o livro se torne u m instrumento privilegiado para inculcar no h o m e m a ideia dos seus direitos e o desejo de os defender É b e m verdade que o livro desempenhou, mais o u menos claramente, este papel. Primeiramente ao nível dos artistas, dos pensadores e, mais geralmente, daqueles que designamos por «intelectuais». A o «massificar» o seu público, o livro obrigou-o não só a procurar verdades admitidas aqui e além, c o m o também a expô-las da maneira mais clara possível, a ter e m conta, na própria investigação, os centros de interese da «maioria», isto é, a orientar-se para a universalidade e a objectividade. A o nível d o público, a leitura permitiu novas relações que não existiam nas comunicações de via oral. A informação que contém a mensag e m escrita, encontrando-se exposta e situada c o m precisão n u m espaço (o do livro), torna-se referenciável e disponível a todo o m o m e n t o , o que evita o recurso incessante à experiência ou à memória e representa u m a apreciável economia de tempo. Deste m o d o imensos campos, antigos e recentes, se abrem à reflexão e à investigação O leitor dispõe ainda da possibilidade de reduzir ao seu ritmo, para as compreender, as ideias que lhe são propostas, de interromper a leitura para fantasiar o u reflectir, sem ceder à «magia» da palavra que força a adesão no seu fluxo.

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M a r c Soriano

O s leitores que atingiram o nível da leitura «corrente» têm também acesso aos prazeres da «identificação». Apesar da sociedade que limita as suas virtualidades, tornam-se tão inteligentes, tão aventureiros c o m o o criador nos seus momentos de «inspiração». Esta análise abstracta poderia justificar-se c o m numerosos exemplos históricos. Limitar-nos-emos a duas observações que nos remetem para investigações já clássicas, por exemplo as de Lucien Febvre e H.-J. M a r tin, sobre a difusão da imprensa ou as de E m m a n u e l L e R o y Ladurie sobre a cultura e m meio camponês. É muito provável que o protestantismo, sem a imprensa, tivesse continuado a ser u m a heresia semelhante a tantas outras. Graças ao livro e à reflexão que ele permite, o pensamento de Luther o u de Calvino sobre a graça e o destino propagou-se c o m o u m incêndio, tornou-se revelador de oposições económicas, políticas e sociais. Por intermédio do livro, constituiram-se também, entre o século xvii e o século xviii, verdadeiros «viveiros» de pessoas informadas, de especialistas da reflexão. «Tradicionais» ou «anexados», segundo a terminologia de Antonio Gramsci, estes «intelectuais», ao serviço de quadros administrativos n o poder, transmitem, conscientemente o u não, ideias novas ou, desenvolvendo as letras, as artes e as ciências, contribuem de certo m o d o para a tomada de consciência das massas trabalhadoras. É assim que, na Europa Ocidental, a conquista dos direitos do h o m e m e, de u m m o d o geral, a democratização, surgem, no fim do século xviii e mais nitidamente ainda no início do século xix, ligadas à alfabetização. Esta grande esperança no livro nunca se exprimiu tão directamente — ou tão ingenuamente — c o m o na literatura destinada à juventude. Para nos limitarmos ao século xix, isto é, à época e m que se constitui, na maior parte dos países da Europa Ocidental, u m a «literatura infantil» específica, impõe-se rapidamente a ideia de que o estado de adulto não é favoráveis à educação e que é preferível dirigir-se às crianças, mais maleáveis. Esta preocupação ideológica temperada c o m u m desejo de eficácia encontra-se, mais ou menos explicitamente, na maior parte daqueles que se vão interessar pelo livro para crianças, editores c o m o Hetzel o u Hachette, o u ainda escritores c o m o Collodi e D e Amicis, Sophie Rostopchine, condessa de Ségur, Hector Malot, Júlio Verne ou Selma Lagerlöff. Tanto nuns c o m o nos outros se distingue, e mfiligrana,o projecto de u m texto ideal, livro de leitura romanceado sobre o qual se debruçariam crianças e pais e que serviria tanto de informação c o m o de prazer, dando-lhes u m a ideia da sua terra, das suas tradições, dos seus direitos e deveres. Ora, esta esperança — a salvação pelo livro e pela alfabetização — surge rapidamente c o m o u m a ilusão. A alfabetização progride, o livro conquista importantes posições, sem que, entretanto, se reconheçam melhor os direitos do h o m e m . Outro dado singular do problema: novos meios de expressão e de difusão do pensamento se impõem, os 1.

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Les intellectuels et Vorganisation de culture, Einaudi, 1953; última tradução francesa, Gramsci dans le texte, Paris, Editions sociales, 1975.

O livro para crianças e os direitos do h o m e m

media audiovisuais, que informam c o m menos despesa, m a s que, parece, alimentam a passividade do público. Ora, estes media parecem entrar e m conflito c o m o livro e contribuem para u m a espécie de «desalfabetização». Daí a situação paradoxal que caracteriza este «após-guerra» : as leis escolares votadas sob pressão dos trabalhadores abrangem camadas cada vez mais amplas da população, m a s esta «exploração escolar» não conduz ao aumento espectacular da leitura n e m a mais progressos decisivos na difusão dos direitos do h o m e m . Esta desilusão não poupa as instituições internacionais n e m , e m particular, a U N E S C O . O s peritos que ela agrupa são, sem dúvida, muito cultos e b e m intencionados. M a s , dedicando tanta atenção aos problemas da educação, da informação e do livro, surgem como generosos fantasistas, atingidos pelo idealismo dos revolucionários de 1793 ou de 1848 e convencidos de que boas constituições e mais particularmente boas leis escolares serão capazes de transformar a natureza humana. Esta ilusão adquire u m aspecto particularmente paradoxal no sector do livro para crianças. N a Europa Ocidental, por exemplo, a edição deste tipo de livros proliferou. Artesanal no século xix, tornou-se u m a indústria essencialmente regida pela lei do lucro maximal, intervindo o interesse da criança apenas c o m o u m dado entre outros nos «estudos de mercado» baseados essencialmente na exploração dos gostos existentes. Resultado : u m mercado invadido por u m a produção de série, estereotipada, que se apresenta como literatura de «puro divertimento» e cujo valor educativo é medíocre ou sujeito a caução. Perante estes empreendimentos tentaculares, constituiram-se outros, mais pequenos e muitas vezes inspirados n u m a pedagogia de ponta ou e m preocupações ideológicas, políticas e confessionais. Produção interessante, muitas vezes de nível elevado, mas que, exigindo esforço do público, beneficia de u m a audiência limitada. Neste domínio, c o m o e m outros, o m a u sobrepõe-se ao b o m . O s livros repetitivos, inteiramente baseados no «suspense» e a ele reduzidos, aumentam a passividade do público e contribuem para o orientar para meios audiovisuais que lhe proporcionam, não esqueçamos, gratificações imediatas (o que não sucede c o m o livro que exige, para transmitir o «prazer d o texto», u m a longa aprendizagem). Simultaneamente, desenvolvem-se formas de expressão intermédias a meio caminho entre a imagem e o texto, bandas desenhadas ou romances ilustrados. N ofinalde u m a evolução que se processa à nossa frente a própria palavra livro m u d a de sentido. Pode significar, não o que designou durante séculos, m a s o que traduz já para milhares de crianças e de jovens : u m a série de imagens ligadas e organizadas e m sistemas, enquadradas e centradas n u m a óptica cinematográfica, e m que o texto, expressivo, s e m dúvida, m a s encerrado e m «balões», representa u m a proporção muito reduzida da mensagem total. M a s , sendo assim, que resta das grandes esperanças que os nossos antepassados, e até os nossos pais, tinham colocado no livro e na alfabetização? Que pensar também dos esforços obstinados de certos indivíduos ou de determinadas organizações internacionais ou nacionais, como o I B B Y , a Biblioteca Internacional de Munique, a de Liège ou 201

Marc Soriano

a de Clamart que se esforçam por unir editores, autores, ilustradores, educadores, pais, etc., e procuram melhorar e defender a literatura para a juventude? Ingenuidade ou álibi? U m certo número de ciências humanas poderia ajudar-nos a sair deste dilema. N a verdade, u m livro começa por ser u m texto e diz respeito, portanto, às ciências da linguagem: linguística, semiologia, semiótica. A sua mensagem situa-se também na história, na das ideias e tamb é m na das sociedades. Finalmente, u m livro é u m a obra de arte que fala à razão, e também a esse inconsciente que a psicanálise procura explorar. Texto, contexto, intenção. Necessitamos, pois, de voltar aos dados fundamentais do problema, mas corremos o perigo de cair e m generalidades. Para evitar este risco, proponho-me, nestas reflexões, centrar a minha investigação sobre u m único eixo e sobre u m problema restrito que m e obrigará a voltar ao concreto. Será possível, será viável, neste ultimo quarto do século xx, confiar a u m livro (ou a u m a série de livros) a tarefa de inculcar e m crianças «valores humanitários»? Este livro existe ou será necessário escrevê-lo ? A que idade ou a que idades pode ou deve destinar-se? É sempre o m e s m o , adapta-se a culturas diferentes, independentemente dos desenvolvimentos desiguais dos diversos países ou deverá ser diferente para corresponder a exigências diversas? C o m o conceber a sua difusão? Deve ser confiada a u m a organização privada, nacional ou internacional? Estes problemas, por muito vastos que sejam, não são gratuitos n e m abstractos. O tipo de livros que estamos a tentar descrever talvez já não exista, mas existiu. E m diversas épocas, e m diversos países, publicaram-se obras que correspondiam muito exactamente às necessidades das crianças a que se destinavam e que, simultaneamente c o m o prazer, lhes proporcionavam u m a consciência mais clara dos seus direitos e dos dos outros. Cuore de D e Amicis, por exemplo, talvez tenha envelhecido, m a s representou, e m 1886, u m a excepcional e generosa abertura sobre o pensamento socialista. O m e s m o podemos dizer de Huckleberry Finn, de M a r k Twain, que, ainda hoje, representa u m esforço válido para escapar à óptica racista. O tipo de livro que procuram o s descrever existiu pois. Resta descobrir e m que condições estes livros, ou outros do m e s m o tipo, seriam eficazes, u m a vez que o contexto histórico parece ter mudado profundamente.

A clarificação das ciências humanas

M a s , e m primeiro lugar, o que é u m livro para a juventude? A semiologia permite-nos eliminar u m a série de pré-requisítos que poderiam não ser aceites. U m livro para a juventude é u m a mensagem, u m a comunicação histórica entre u m adulto de u m a determinada sociedade e u m destinatário criança, pertencente à m e s m a sociedade e que, de certo m e d o por definição, não dispõe ainda de conhecimento, da experiência do real e das maturações afectivas que caracterizam a idade adulta. Para que a comunicação se estabeleça, é necessário e, e m suma, suficiente, que entre o locutor e o destinatário exista u m código c o m u m 202

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e que este código se refira à realidade histórica. É , portanto, absolutamente impossível abstrairmo-nos das situações concretas que regem não só as descrição c o m o também a escuta. Esta análise evita-nos a ilusão de pensar que inventámos o problema. N a realidade, o adulto tentou necessariamente estabelecer u m a comunicação c o m as crianças da sua sociedade ainda muito antes da invenção da imprensa ou da escrita, para lhes transmitir a sua concepção dos deveres e dos direitos. Antes de adquirir as formas que conhecemos, esta mensagem utilizou outros circuitos de comunicação, por exemplo, o da tradição oral ou o das danças e dos jogos. Esta nova mensagem que procuramos formular — u m livrofinalmenteeficaz — não deverá ser situada para além do espaço e do tempo, u m a vez que as crianças a que se destina existem n u m determinado tempo e espaço. Pelo contrário, será útil situá-la n u m a tradição, o que a fará beneficiar da experiência desta tradição, valorizando simultaneamente o que contém de novo. Destruímos, assim, a ilusão de u m livro único, que poderia ser operatório n u m determinado país e n u m a determinada época. A estrutura do nosso corpo ou do nosso espírito é certamente universal, o que significa que, como Sartre afirma magistralmente, «qualquer h o m e m vale o m e s m o que eu»; m a s , desde que nasci, nunca mais deixei de ser elaborado e transformado pela minha história pessoal e pela do m e u país. Assemelho-me a todos os homens, m a s , simultaneamente, transformo- m e n u m indivíduo que não se assemelha a nenhum outro, e pertenço a u m grupo, mais ou menos extenso, que tem necessidades específicas. A universalidade da nossa razão e a da nossa consciência, se algum dia existirem, terão sido conquistadas. N ã o nos devemos deixar induzir e m erro pelo caso, muito complexo, dos «clássicos» que,finalmente,criam o seu público. São, e m geral, obras fortemente enraizadas e m terrenos restritos (basta pensar, por exemplo, nas relações entre Pinóquio e o folclore florentino) e, devido a esta especificidade, provocam no jovem leitor o desejo de procurar as suas próprias raízes ou de descobrir outras. Outra conclusão que nos permite esta breve incursão nas ciências da linguagem: o tipo de livros que procuramos, se existir, só pode nascer e difundir-se no meio educativo a que a criança está habituada. O s melhores artesãos deste tipo de livro devem ser procurados não n u m meio artificial de «generais sem tropas» (teóricos da pedagogia, «peritos» e m todos os géneros que encontram sempre as soluções que convêm a todas as situações possíveis) mas entre os educadores, investigadores e artistas dos vários países, pois são os únicos que conhecem realmente as tradições nacionais e adivinham a força de persuasão que contêm. A semiologia orienta-nos para a dimensão temporal da obra. A história e a sociologia permitem-nos evitar as esperanças exageradas e os desesperos infundados. A análise atenta de determinados contextos históricos ensina-nos a não minimizar, e também a não exagerar a influência do livro. Está — e pode estar — ao serviço dos «direitos do h o m e m » quando o poder real pertence a camadas especiais que não estão interessadas e m que os homens exerçam os seus direitos? 203

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Para evitar exemplos contemporâneos susceptíveis de tornar o debate inutilmente apaixonado, é fácil mostrar que, na França da primeira metade do século xix, o irressistível impulso popular para a cultura foi rapidamente recuperado pelo liberalismo económico. A burguesia integrou a alfabetização no seu programa político por duas razões essenciais : por u m lado, a indústria utiliza máquinas cada vez mais complexas que custam caro e que exigem, para serem rentáveis, u m pessoal qualificado; por outro lado, tomar a iniciativa da escolarização significa t a m b é m dominá-la e transformá-la e m estrutura de «reprodução»1. A burguesia apercebeu-se de que u m certo tipo de cultura cuidadosamente «despolitizada» e controlada constituía u m meio de evitar as «revoltas» selvagens do Antigo Regime, dispensando-a, simultaneamente, de justificar a sua hegemonia económica e política. É este o sentido da lei Falloux que, e m 1849, retoma as ideias «liberais» de Guizot e as reivindicações escolares dos democratas e dos socialistas de 1848, m a s que coloca o ensino, a todos os níveis, sob o duplo controle d o prefeito (poder civil) e do bispo (poder religioso). Esta análise é ainda válida nos nossos dias, quando a alfabetização e a aculturação da escola estão sujeitas a u m a «aculturação paralela», veiculada pelos mass media. O s poderes antidemocráticos sentem-se fortemente tentados a utilizar os meios audiovisuais, não para inform a r efectivamente e despertar o sentido crítico e político das populações, mas, pelo contrário, para «despolitizar» os problemas e para negar a existência das ciências humanas, o que se traduz pelo estímulo da passividade do público, pela sua «desinformação» sistemática para manter o statu quo. É , portanto, impossível separar a influência do livro dos dados históricos que a c o m p a n h a m a sua produção e a sua difusão: hábitos de leitura, estrutura das edições e das bibliotecas, leis escolares e escolarização efectiva, natureza das relações de produção e d o Estado, etc. Não podemos, pois, confiar no livro, n e m m e s m o na alfabetização, para dar aos homens a consciência dos seus direitos e, sobretudo, a vontade de os defender. A história mostra de maneira evidente que todo o direito é a expressão de relações de força. Seria ingénuo e inútil esperar que a força se incline perante o direito. O s nossos direitos só p o d e m entrar na realidade quando apoiados pela força, a dos interessados, precisamente. N ã o é correcto, portanto, apresentar a influência de u m livro c o m o u m a impregnação lenta. É u m combate e m que as forças «espirituais» aprendem a transformar-se e m forças materiais. A história ensina-nos que este combate n e m sempre é possível sob u m a forma clara. Não serve de nada falar púdicamente de «diversidade de dados socioculturais» Quando se trata de problemas concretos c o m o os da edição o u difusão de obras abordando o problema das «liberdades», 1.

Ver, sobre este ponto, Antonio G R A M S C I , op. cit., desenvolvido por Louis A L T H U S -

SER: « O S aparelhos ideológicos do Estado», em Positions, Paris, Editions sociales, 1976, e Pierre B O U R D I E U e Lean-Claude P A S S E R O N : Les héritiers, Paris, Éditions

de Minuit, 1964, e La reproduction, Paris, Editions de Minuit, 1970. 204

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somos necessariamente levados a u m a classificação mais precisa e mais operatória. A título de exemplo, segue-se a que utilizo nas minhas próprias investigações e que é, b e m entendido, muito esquemática. Distingo : a. O s países socialistas. Estes países caracterizam-se por u m a alfabetização muito desenvolvida e por u m a promoção muito eficaz do livro e das bibliotecas. N o entanto, estes resultados não devem dissimular que certas tensões persistem. E m particular, alguns deles praticam u m a política cultural autoritária que exclui, talvez m o m e n taneamente, u m a discussão totalmente aberta. b. Os países «liberais». Esta noção de liberalismo deve ser entendida, para começar, n o sentido económico e conduz à concentração das empresas e à produção e m série já descrita. Outras características da situação : ausência de u m a política cultural de conjunto, o que conduz ao favorecimento dos media audiovisuais e m detrimento do livro; promoção de u m a cultura estereotipada: distância sempre crescente entre os autênticos artistas e o público: crise da leitura. O s não-leitores, os «maus leitores» e ainda, o que é igualmente grave, os leitores de «qualquer coisa serve», atingem números alarmantes. c. Os países e m infracção institucional e permanente relativamente à Declaração Universal dos Direitos do H o m e m . Seria pueril imaginar que os governos destes países favorecem a publicação ou a difusão de livros que explicam aos homens os seus direitos, mas seria igualmente absurdo confundir estes governos, que serão afastados mais cedo ou mais tarde c o m os povos que lhes estão submetidos e que constituem u m terreno particularmente propício para u m a melhor tomada de consciência dos direitos do h o m e m . d. Os países e m desenvolvimento. A terminologia tradicional reserva esta designação aos países que estiveram, durante muito tempo, submetidos a u m a dominação estrangeira de tipo colonial e que acab a m de aceder à independência. Reduzidos por muito tempo ao papel de reservas de matérias-primas, estes países encontram-se na obrigação absoluta de recuperar o seu atraso económico, o que pode dar orig e m a orçamentos escolares reduzidos e a u m a alfabetização insuficiente. N o entanto, a pesada dominação que estes países sofreram deu origem, e m geral, à conservação quase milagrosa das culturas tradicionais, culturas há muito desaparecidas ou, na melhor das hipóteses, quase moribundas nos países industrializados. Ainda b e m que assim é, não só devido ao conteúdo de alto nível destas culturas, c o m o também, e, sobretudo, por elas terem conseguido estabelecer u m a relação autêntica e activa entre os artistas e o público. Ora, a penetração dos «direitos do h o m e m » é justamente função desta actividade do espírito que desperta u m certo tipo de arte, e que paralisa, ao contrário, u m a arte estereotipada, comercializada e de «puro divertimento». Tendo e m conta as contradições d o m u n d o actual, estes países e m que a alfabetização ainda não triunfou apresentam-se-me .— não sei se c o m razão — c o m o ilhas de resistência contra u m certo tipo de «desinformação» demasiado corrente. N ã o saber 1er, não ter vontade de 1er, p o d e m ser, e m certas 205

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condições, u m a garantia contra u m a literatura inepta. Paradoxo, sem dúvida, mas que já foi defendido por u m dos nossos mais eminentes pedagogos J.-J. Rousseau —referindo-se à monótona profusão de contos de fadas fabricados c o m todas as peças pela cultura erudita do seu tempo — c o m excepção, é certo, para Robinson Crusoé que considera mais u m jogo do que u m livro, u m a espécie de «mecano» vital que permite que a criança meça as suas forças e se confronte c o m o m u n d o real. Posição saudável, portanto, no plano teórico. Admito, porém, que é insustentável a longo prazo. N ã o saber nada é certamente u m a grande vantagem. M a s é preciso não abusar. A criança e o h o m e m , se pretend e m referenciar-se no m u n d o actual, têm interesse e m recusar u m certo tipo de informação, mas para dar mais lugar a informações que desenvolvem o espírito crítico e a criatividade, qualidades necessárias à compreensão do m u n d o e m que vivem e sem as quais não o poderão transformar. Esta situação histórica apresenta outro interesse. Permite u m a definição menos geral, portanto melhor, destes famosos direitos e deveres que se trata de inculcar nas crianças e nos homens. C o m o é evidente, é necessário que eles sejam definidos por constituições de nações ou por instituições internacionais como as Nações Unidas, pois tornar-se-ão, assim, textos de referência, e, portanto, recursos contra despotismos, mas não devemos concluir que se trata de dados metafísicos, de reivindicações alheias à história de cada país e que não devem ser atribuídas a u m a élite ou a funcionários internacionais que p o d e m ter perdido as suas raízes nacionais. A história ensina-nos, pelo contrário, que existe u m a relação entre a civilização e as civilizações, que os direitos do h o m e m constituem u m a reivindicação que nos surge como u m fermento e m cada cultura nacional, regional ou local. Consequência: apresentar estes direitos c o m o u m contributo externo é não só u m erro histórico, como u m a falta pedagógica e táctica. Estes direitos só entrarão nas consciências e nos factos na medida e m que os países os apresentem como exigências internas da sua ou das suas próprias culturas, o que está de acordo c o m a verdade e nos obriga a passar de u m a pedagogia directiva para u m a pedagogia da participação e da atracção. A psicologia e a psicanálise, nos seus desenvolvimentos mais recentes, permitem u m a nova e capital modificação dos dados do problema. Quando atribuímos ao livro o poder quase exclusivo de inculcar os direitos do h o m e m , estamos implicitamente a avalizar u m certo número de axiomas errados. O primeiro diz respeito ao próprio processo da leitura. Alguns homens, sem dúvida, sabem 1er, mas isso não significa necessariamente que saibamos ensinar a 1er. C o m o mostraram os trabalhos de Mialaret, existem vários níveis de leitura e só passamos de u m para outro através de u m a longa prática. Saber 1er não é enunciar letras ou sílabas, n e m sequer dominar os mecanismos de aprendizagem por meio de u m a abordagem silenciosa, n e m passar de u m sentido a outro referenciando-se por certas palavras através de u m a antecipação rápida 206

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e criadora; e m suma, não se trata unicamente de 1er depressa e de nos «identificarmos», trata-se sobretudo de saber mudar continuamente de ritmo de leitura e de adoptar u m a atitude crítica a respeito do que se lê. Atribuir u m a importância exagerada à alfabetização e ao livro, no nosso contexto histórico, é esquecer que o nosso ensino (devido às fraquezas da nossa pedagogia e das forças que se opõem ao espírito crítico) conduz à constituição de grupos de «maus leitores» ou de «não-leitores»; é também esquecer o fenómeno essencial da «analfabetização de recuperação» segundo a expressão de Albert Meister. E este fenómeno não diz respeito unicamente aos países e m desenvolvimento e às nações pouco desenvolvidas no plano económico, onde as «línguas maternas» têm tendência a entrar e m conflito c o m as «línguas de promoção». Trata-se de u m a orientação mais geral. Sabemos, mais ou menos, ensinar os mecanismos da leitura, m a s não o prazer do texto, o que explica que perto de u m terço da «população escolar», depois de ter passado dez anos de vida a aprender a 1er, passe o resto da sua existência a desaprender. Ora, se a prática da leitura não estiver integrada na personalidade do leitor, não podemos confiar nela para difundir os direitos do h o m e m , pois esta difusão supõe u m comportamento activo por parte do destinatário, quer se trate de crianças ou de adultos ainda mal albafetizados. N u m contexto assim definido, remetermo-nos unicamente ao livro é adoptar u m a atitude directiva e pouco eficaz, é renunciar à utilização da criatividade do meio, desse meio que, c o m o recordei, deseja c o m todas as suas forças a conquista dos seus direitos. É , e m suma, ser obrigado a levantar u m peso enorme sem utilizar as alavancas à disposição. Outro erro: o recurso ao livro pressupõe que se restrinja o trabalho de explicação sobre os direitos junto daqueles que estão e m idade de aprender a 1er ou, no caso dos analfabetos adultos, que estão à altura de dominar u m código e u m sistema de explicação baseado na razão. Ora, a psicologia e a psicanálise contemporâneas ensinam-nos, pelo contrário, que as nossas opções fundamentais (atitude do h o m e m perante a mulher, da mulher perante o h o m e m , comportamento e m relação «à raça» e, de maneira mais geral, e m relação «à diferença») se constituem antes dos cinco ou seis anos, idade considerada «normal» para a aprendizagem da leitura. A psicopatologia também nos ensina que a maior parte das perturbações do comportamento ou das grandes «neuroses» se elaboram na época do «complexo de Édipo», isto é, entre os dois anos e meio e os cinco anos, ou m e s m o antes, durante a fase «oral». Tudo se passa portanto c o m o se, por respeito pelo livro que não é mais, historicamente, do que u m circuito de comunicação entre outros, deixássemos constituirle e fortificar-se estas grandes doenças da civilização c o m o , por exemplo, o racismo ou o antifeminismo para e m seguida — e só e m seguida— nos remetermos ao livro e à razão1 1. Ver sobre este ponto B . B E T T E L H E I M , Psychanalyse des contes de fées, 1976.

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para os combatermos. Ora, é sempre mais difícil reeducar do que educar. E m resumo : o livro continua a ser u m a das vias reais para alcançar a tomada de consciência, m a s esta é mais facilmente descoberta por aqueles que provêm de meios que beneficiam há muito da cultura escrita e que dispõem, por assim dizer desde o berço, do equipamento linguístico e cultural que facilita a leitura. M a s , entretanto, impuseram-se outros media que contribuem c o m «gratificações» culturais mais fáceis de obter. Nestas condições, a leitura que exige u m esforço não desprezível de aprendizagem e u m a prática intensa pode surgir como demasiado directiva, como exterior à consciência, enquanto os direitos do h o m e m , para serem realmente assumidos pelos indivíduos, devem apresentar-se-lhes como ponto de encontro da sua própria cultura e da sua exigência íntima — o que são realmente. O problema dos direitos do h o m e m deve, portanto, formular-se sempre que possível, n u m plano simultaneamente racional e irracional, c o m a colaboração de todos os meios de expressão e de comunicação de que dispom o s , utilizando a imaginação e a emulação de todos, crianças ou adultos. Idade da leitura, portanto, m a s também da pré-leitura. Livro, sim, mas também jogo, dança, música, pintura, modelagem, etc. O prestígio de organizações internacionais como o I B B Y e as suas secções nacionais, a U N E S C O ou as Nações Unidas não pode ser ignorado, mas deve ser utilizado c o m prudência, como u m a marca susceptível de valorizar o esforço individual no seu meio natural. Trata-se sempre de criar c o m todos os elementos u m a obra funcional — u m a vez que se deverá adaptar a u m a situação específica — e também de a inserir n u m a tradição, o que conduzirá a u m a reavaliação ou a u m a redescoberta de obras existentes.

O investimento do livro para crianças pelos direitos do h o m e m : algumas orientações

Dir-me-ão que a minha reflexão é demasiado teórica. Necessito, portanto, de abordar os problemas da criação real, no sector que escolhi examinar, o da literatura para a juventude. Admitamos, portanto, que o problema seja posto nestes termos por u m a instância interior ou exterior, implícita ou explicitamente: «Basta de 'divertimentos puros'. É altura de escrever u m livro, de criar u m a actividade de tipo artístico que não se reduza ao 'prazer do texto', m a s que oriente a criança para u m a tomada de consciência dos seus direitos e deveres, que tenha e m conta a diversidade das condições culturais nos diversos países.» Responder a este problema implica clarificações prévias. Aquilo a que chamamos infância é u m longo período que se estende desde o nascimento até à adolescência. Comporta, de facto, várias «infâncias» 208

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sucessivas caracterizadas por centros de interesse distintes e referenciáveis e m relação a: Pulsões, maturações, tomadas de consciência ou regressões temporárias ou perduráveis que se equilibram mais ou menos conscientemente na história de cada indivíduo; «Desejos» adultos de u m a sociedade dada, geralmente reflectidos nos sistemas educativos praticados pelos grupos sociais dominantes ou e m determinado meio sociocultural; Dados objectivos (estruturas da família ou dos estabelecimentos educativos, imperativos sociais definindo o comportamento «normal», ideologias, e m suma, tudo o que Freud e m Le petit Hans designa por «destino» da criança). Esta perspectiva antropológica provocou progressivamente a «eclosão» da noção de idade. Aprendemos, então, a distinguir: A idade do estado civil. Durante muito tempo só esta entrava e m linha de conta. Actualmente, é utilizada apenas e m demografia; A idade mental, certamente muito controversa, m a s que conserva u m a certa utilidade na medida e m que as baterias de testes utilizadas limitam as suas ambições à determinação de conhecimentos ou aptidões médias n u m a determinada idade; A idade afectiva que corresponde às descobertas da psicanálise e que entra e m linha de conta, n u m a dada civilização, c o m a maneira como u m a criança equilibra as suas pulsões e m relação às censuras do seu grupo e assume o seu sexo ; A idade lúdica que se mede e m relação ao princípio do prazer e ao poder de jogar, definindo a diferença de tónus nos jogos ou a diferença destes jogos u m a capacidade ou u m a recusa de adaptação e, portanto, u m a atitude de conjunto perante a vida. Estas diversas idades coexistem e m cada indivíduo que pode, assim, pertencer simultaneamente a grupos de idades diferentes, Empiricamente, distinguimos, apesar de tudo, as seguintes idades que, embora imprecisas, são operatórias no domínio do livro que aqui nos interessa : Desde o nascimento até aos três anos. A criança adquire a sua imag e m global do corpo (estádio do espelho) e, dado essencial para o seu futuro cultural, aprende a manipular e a apreciar a sua «língua m a terna», duplo condicionamento que lhe permite constituir correctamente o que Winnicott designa por self e que, ensinando-lhe a situarle n u m m u n d o amigável, torna possíveis os pré-hábitos de leitura e o apetite pela cultura. Dos três aosr cinco ou seis anos. Idade fundamental também, a do «complexo de Édipo», e m que a criança assume o seu sexo. É o período e m que a criança, e m todo o caso, nas nossas civilizações ocidentais, desiludida pelos adultos, se identifica facilmente c o m os animais. Adora também os contos populares construídos e m torno de jovens heróis que, e m desvantagem à partida, conseguem à força de astúcia ou de bondade conquistar u m lugar ao Sol. Esquema político que reflecte a condição e os sonhos do povo explorado durante séculos ou milénios, e que a criança interpreta no plano pessoal.

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O periodo dos seis aos onze-doze anos. Fortemente sexualizada pelas suas recusas, merece sempre, nas nossas civilizações, ser considerada c o m o a d a «latência». A s fábulas e os contos persistem, m a s coexistem c o m a procura d e modelos. Dos dez aos treze anos. N o s nossos climas, é o período d a pré-puberdade. A diferença entre os sexos afirma-se e exterioriza-se e m comportamentos diferentes. Deixou de se verificar e m relação ao livro depois d a segunda guerra mundial. R a z ã o provável desta evolução: a recusa, cada vez mais deliberada, pelas jovens leitoras d a i m a g e m da mulher apresentada pelos livros tradicionais. A partir dos treze anos. A adolescência propriamente dita, d o m i nada pelas maturações afectivas e sexuais e pelos problemas d a sociedade adulta (escolha d a profissão, opções políticas, etc.). Consideremos as duas primeiras fases que acabo de descrever, a m b a s caracterizadas por u m certo narcisismo'—inevitável, u m a vez que a criança deve aceder à clara consciência d o seu corpo e d a sua identidade. C o m o facilitar-lhe o acesso à « o r d e m d o simbólico» onde se situarão mais tarde as noções de direito e de dever? Nesta idade, explica Henri Wallon, «o m e d o mais assustador d a criança refere-se à sua segurança. O que o alimenta é a i m a g e m das forças m á s ; o que o p o d e apaziguar é a existência d e forças c o m p a s sivas e benfeitoras (...) Outra forma desta inquietação: a dos gigantes e dos anões que são a m e d i d a respectiva d a sua fraqueza e da sua força; a violência que sofre p o d e ser exercida sobre outros; é u m a c o m p e n sação tranquilizadora. M a s , habitualmente, o par grande-pequeno, forte-fraco desdobra-se e dá-nos o par estúpido-esperto»1. A CRIANÇA E A FERA T e m a e estruturas narrativas: u m a criança foge para o bosque (ou para a floresta, o u savana, o u para a beira d o m a r o u d o rio) apesar dos pais. A í , vê aproximar-se u m a fera (escolhe-se o animal mais c o m u m n o país considerado). Neste ponto interrompe-se a narração, d e acordo c o m a técnica usual d a «história s e m fim» e s o m o s nós (narrador e público) q u e d e v e m o s imaginar a continuação. A forma proposta é, portanto, a de u m conto por via oral. P o d e m o s , n o entanto, tentar dar a este projecto a forma d e u m espectáculo d e fantoches o u d e sombras chinesas o u montá-lo sob a forma d e commedia delVarte desempenhado por crianças. A estrutura relativamente nova d a «história s e m fim» permite pôr e m causa a «pedagogia d o m e d o » , isto é, a orientação mais discutível d o repertório tradicional, os «contos d e advertência» que a c a b a m m a l e se destinam essencialmente às crianças. Assim, n a versão mais conhecida de O Capuchinho Vermelho, o lobo c o m e a m e n i n a e n o conto O lobo, a cabra e os cabritinhos, o lobo 1. H . W A L L O N , prefácio de Guide de littérature pour lajeunesse, Paris, Flammarion, 1975. 2IO

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mata alguns cabritinhos antes de morrer ele próprio de morte trágica. A o oferecer à criança u m fim desgraçado, os narradores do passado referiam-se ao princípio —actualmente cada vez mais contestado — do valor exemplar do castigo. N a verdade, há muito que este princípio foi posto e m causa. Além do final feliz de tipo erudito reunido pelos irmãos G r i m m , existe u m outro — popular e tradicional — que o adaptador dos Contos da Carochinha eliminou certamente por ser escatológico, o do «pretexto que desobriga»: a criança surge c o m u m a necessidade urgente, o lobo acaba por deixá-la ir embora, m a s prende-lhe o braço c o m u m fio de que ela se desembaraça sem dificuldade. N a versão musical de Serge Prokofief, Pedro e o lobo, o conto encontra-se enriquecido c o m duas invenções que são augúrio dosfinaisfelizes susceptíveis de agradar a outros narradores e a outros públicos infantis: animais utilizados para descrever e distinguir instrumentos de música, e também perspectiva «ecológica» : o lobo é u m monstro cruel, m a s raro ; Pedro não aceita que o matem, captura-o e leva-o, e m cortejo, ao jardim zoológico. Este esquema poderia ser utilizado durante a «hora da história», que se pratica tanto e m França c o m o na América Latina, e m Cuba ou nas repúblicas africanas. O «jogo» seria apresentado por u m professor, ou por u m narrador tradicional que privilegiaria a versão autóctone mais popular na sua área cultural. A novidade e m relação à tradição situa-se na vontade de instaurar u m debate (outra possibilidade no que respeita aos mais jovens : u m início de reflexão por intermédio da mímica, do desenho, etc.) sobre a violência. Perguntas : O s monstros ainda existem? Só existem entre os animais? Q u e atitude adoptar e m relação à violência? Papel da artimanha, da organização, etc.? E os pais? C o m o p o d e m , e devem, advertir os filhos de que a violência existe? Papel da autoridade, da repressão, etc. Função do m e d o ? É possível estabelecer u m a pedagogia baseada no m e d o ? Outro interesse deste esquema: permite utilizar as ilustrações tradicionais que p õ e m e m cena os animais ferozes de todos os continentes. A título de exemplo, o centro de documentação da U N I C E F , e m N o v a Iorque, põe à disposição de todos aqueles que o desejem u m a documentação muito variada e de alta qualidade, imagens populares e ainda u mficheirosobre a produção dos melhores artistas contemporâneos. Esta solução não exclui o recurso a artistas locais n e m a participação das próprias crianças. Esta «história sem fim» também pode ser motivo de organização de u m a nova leitura — e de u m a leitura nova — de contos o u descrições de artistas do passado que retomaram «à sua maneira» esta história, isto é, que «investiram» a sua sensibilidade neste tema.

«BEM COZIDO» Trata-se de u m conto por via oral, m a s também pode adquirir a forma de u m espectáculo de fantoches, de u m a representação teatral, de u m filme ou de u m álbum. O grupo etário abrangido é o da pré-leitura e 211

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do conto, mas este projecto também diz respeito às outras «infâncias», pois ocupa-se do problema da «diferença» (das raças, dos sexos, etc.). Trata-se de u m conto «etiológico» do folclore dos Peles-Vermelhas que explica, c o m u m certo humor, a origem das raças. Encontra-se também e m colectâneas pertencentes a ecotipos diferentes. O Espírito Criador propõe-se criar o h o m e m . Escolhe u m a argila de excelente qualidade, amassa-a, atribui-lhe u m a forma, aquece o forno, põe o h o m e m a cozer. M a s o Criador distraiu-se por u m m o mento ou o forno estava demasiado quente. Resultado: u m a criatura demasiado cozida, o h o m e m negro. Nova tentativa, mas, escaldado, por assim dizer, o Criador, cauteloso, abre o forno demasiado cedo. Daí u m a criatura mal cozida: o h o m e m branco. Mais u m a tentativa, também c o m desfecho prematuro: o h o m e m amarelo. O Espírito Criador, irritado, insiste. N ã o se poupa a esforços. Finalmente, a perfeição: o Pele-Vermelha. Desta vez, o tema é apresentado integralmente pelo autor —narrador o u escritor — m a s é seguido por u m debate que salienta o significado humorístico, muito acessível até m e s m o a u m público de quatro ou cinco anos (através da referência ao próprio corpo, à própria pele). Este projecto conduz ainda a u m estudo, simplificado ou não, sobre as diferenças étnicas (pigmentação da pele, relação entre clima e biologia) ou sobre o contributo histórico das raças. O debate a partir deste «conto acabado» pode orientar-se também para a diferença dos sexos (Adão e Eva, contos etiológicos sobre a origem do h o m e m e da mulher, mito do h o m e m «esférico» e m O banquete de Platão) e para u m a análise do preconceito antifeminista (sexo feminino «metido para dentro»; sexo masculino não c o m o «a mais», m a s «saído para fora»). Se utilizarmos este tema na idade da «latência» e da «pré-puberdade», esta orientação pode desenvolver-se e m dossiers elaborados na aula, e não só, e que p o d e m reunir os esforços já realizados pelas instâncias nacionais ou internacionais contra os preconceitos raciais, a favor dos direitos das «minorias». N ã o nos devemos esquecer de observar que entre estas «minorias» se encontram as crianças, c o m o conjunto desprovido de direitos reais e também essa «minoria» que representa metade da humanidade: as mulheres. A s estampas da América Setentrional, da Sibéria e dos países nórdicos fornecem abundantes ilustrações, mas é necessário que não nos limitemos a esta actividade, pois os contos etiológicos, pela sua própria natureza, são capazes de servir de suporte à imaginação de crianças muito diferentes.

CRIANÇAS PERDIDAS OU PAIS PRÓDIGOS? Trata-se mais de u m conjunto de temas do que de u m assunto respeitante à relação entre a criança e a família, problema que surge na idade do conto mas que se precisa essencialmente durante a latência e a pré-puberdade. Podemos, pois, considerar a forma do «conto acabado» 212

O livro para crianças e os direitos do h o m e m

ou sem fim, do romance proposto por u m autor determinado ou do «romance colectivo» a elaborar n o quadro de u m a classe ou de u m a «peça radiofónica ou televisiva». O s esquemas narrativos para este tipo de conto poderiam ser os seguintes : Pais que perdem osfilhosinvoluntariamente (guerra, tremor de terra, catástrofe natural, etc,), ou voluntariamente: são demasiado pobres e esperam que osfilhosse desembaracem melhor sozinhos; ou os filhos são turbulentos ou «contestatarios» e os pais pretendem dar-lhes « u m a lição»; Filhos que perdem os pais porque estes morrem, ou após u m a fuga motivada por m a u entendimento; Pais que ajudam osfilhosc o m dificuldades, m a s , u m dia virá e m que são os pais que sentem dificuldades e, então, osfilhosajudam-nos por sua vez. Este tema pertence a todos os reportónos tradicionais e foi adoptado pela literatura escrita, o que é explicável porque se refere ao lugar que ocupamos n o círculo familiar ou na sociedade. É muito actual, tanto mais que a estrutura da família está e m plena transformação. O objectivo pretendido através desta orientação, consiste e m levar a criança a situar melhor os seus direitos e deveres e m relação ao adulto através de u m a história concreta que lhe apresenta situações de facto que evocam a sua dependência objectiva, ou o tempo e m que se tornará «pai do pai». Podemos aproveitar a ocasião para reunir e reavaliar algumas das obras que abordam o m e s m o tema, entre outras O pequeno polegar (reescrito n u m a óptica diferente e m 1973 por F . R u y Vidal), Viagem ao centro da Terra, A ilha misteriosa, Osfilhosdo capitão Grant, Dois anos de férias, Os garotos de Timpelbach de Kaestner, etc.

MATEM-SE TODOS OS VELHOS

U m jovem rei, mal aconselhado, ordena que se condenem à morte todos os velhos. O s súbditos, aterrorizados, hesitam. Alguns obedecem. Outros, mais numerosos, escondem os velhos pais. Passam alguns meses e o rei, sob a influência do m e s m o conselheiro, confisca todas as terras cultiváveis. Pretende alugá-las, por elevado preço, a q u e m as queira cultivar. Existe, de facto, u m a lei muito antiga que lhe permite esta confiscação, pois ele descende e m linha directa do espírito das águas, venerado pelo povo. O s súbditos, desconcertados, interrogam-se. Se obedecerem, ficarão arruinados e morrerão de fome. Se recusarem, serão exterminados. Felizmente, os velhos que não foram mortos encontram a solução. O rei tem certamente o direito de reivindicar todas as terras cultiváveis por descender do espírito das águas; m a s , neste caso, deve ser capaz de andar sobre as ondas, c o m o ele. Este conto — q u e pode transmitir-se oralmente, através do teatro, do cinema, etc. — é muito popular e m várias civilizações africanas

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Marc Soriano

(por exemplo, a versão do Niger, recolhida por Andrée Clair: Eau ficelée etficellede fumée) e pode ser ilustrada c o m estampas tradicionais se for apresentado c o m o texto. H á , no entanto, interesse e m estimular crianças e artistas a conceber novas imagens e também (através do «conto sem fim» ou do «romance e m colaboração») a imaginar novas soluções. Trata-se, na verdade, de vários problemas cruciais, entre outros, a atitude a ter perante ordens contrárias aos direitos do h o m e m e também ao lugar que devem ocupar os velhos e os deficientes n u m a sociedade. A nossa, e m vez de utilizar a competência e a sabedoria dos indivíduos idosos, considera-os «bocas inúteis», reduz-lhes os rendimentos, encerra-os e m «morredoiros». Ora, acontece que a maior parte das crianças sente u m a grande ternura pelas pessoas idosas. O problema posto obriga a u m a reflexão sobre o equilíbrio de toda a sociedade.

COMO FAZER MELHOR?

Trata-se de u m concurso entre estabelecimentos escolares ou entre classes que reúnem crianças da m e s m a idade, concurso apoiado pela imprensa escrita, a rádio e a televisão e que focaria o seguinte problema: c o m o melhorar o m u n d o , e, e m primeiro lugar, o dos estudos? É u m problema de u m a melhor participação das crianças na gestão, na disciplina e na própria elaboração dos estudos; dos «extractos» de textos ou das leituras seguidas; maneira de apresentar a história relações entre professores e meio familiar, etc. Esta orientação é a única que se limita ao meio escolar. Compreende-se facilmente porquê. Esta maneira de pôr e m causa o «meio» educativo ou social só é possível se não perturbar o processo educativo, o que exige que seja continuamente organizada e dominada por u m profissional da «dinâmica de grupos» e, portanto, pelo menos e m princípio, por u m professor. Esta orientação interessa mais especialmente à idade da latência, da pré-puberdade e da adolescência. N ã o escondemos que não pode ser aplicada e m nenhum país sem adaptações. N o entanto, é possível apresentá-la sob u m aspecto mais restrito que a torna aceitável e m toda a parte. O u , então, distanciá-la no tempo. Por exemplo, transformando-a e m reconstituição da cruzada das crianças (fim da idade média). Quais eram os objectivos deste grande feito? Seriam justos? Tinham alguma possibilidade de sucesso? M e s m o limitada aos problemas de organização escolar, este empreendimento parece rentável, na medida e m que se esforça por despertar o espírito crítico — e cívico •— dos jovens.

PÉRFIDA COMO AS ONDAS

U m príncipe teme as mulheres e a sua «perfídia». N o entanto, deixa-se convencer por insistência dos seus súbditos e pela doçura de u m a jovem muito bela que, para o desposar, abandona a sua profissão. 214

O livro para crianças e os direitos do h o m e m

M a s , depois do casamento, o seu h u m o r inquieto desperta. Experimenta-a, exige dela u m a obediência absoluta e chega a separá-la dos filhos. Aqui, de acordo c o m a fórmula escolhida, o tema termina c o m u m happy end ou c o m u m a catástrofe. O debate inicia-se sobre o que poderia ou deveria fazer a jovem. Obedecer? E m caso afirmativo, até que limite? Direitos da mulher? Das crianças? Este tema, adaptado à idade do conto, e também à da pré-puberdade e da adolescência, pode utilizar técnicas abertas (conto sem fim) ou fechadas (romance, novela, peça de teatro, folhetim, filme, etc.). Transforma-se, sem grande dificuldade, no ponto de partida de «dossiers» sobre os direitos da mulher (os já adquiridos e os que falta conquistar), sobre as diferenças anatómicas, fisiológicas, psicológicas, sociológicas (estudo antropológico da distribuição dos «papéis» na sociedade). T a m b é m pode ser utilizado c o m o pretexto para u m a reavaliação crítica do reportório divertido ou erudito (contos populares e m que a mulher tem todos os defeitos, misoginia mais camuflada de Griselda e da literatura «erudita», etc.).

Impasses, erros de pontaria, acções eficazes

Interrompo aqui esta enumeração de assuntos propostos unicamente a título indicativo. Permitiu-me expor concretamente u m certo número de orientações, positivas e negativas, respeitantes ao papel que pode, ou não pode, desempenhar o livro para crianças, na nossa época, para u m aprofundamento da tomada de consciência dos direitos do h o m e m . Para clarificar a minha exposição, terminarei recordando as orientações essenciais destas análises e insistindo nos impasses e erros que convém evitar para que a acção seja eficaz. Duas ilusões simétricas e igualmente desastrosas nos espreitam: excesso ou falta de confiança n o livro para difusão dos direitos. N o s dois casos se esquece que o direito é a expressão de u m a relação de forças. A influência do livro é mediata. Só existe se o livro obtiver u m a atitude activa por parte do leitor. Só a este preço a «tomada de consciência» se pode tornar u m a força material. O livro é u m meio de expressão e de difusão do pensamento entre outros. Depois de Gutenberg e durante séculos coexistiu c o m outros media, c o m o , por exemplo, o circuito de via oral, o da transmissão de estampas, etc. O sucesso da rádio, da televisão e dos outros mass media não faz mais, e m suma, do que restabelecer esta coexistência ou, mais exactamente, torná-la evidente. Pode opor-se ao livro: compete-nos a nós provocar a colaboração do livro c o m os outros mass media. N u m m u n d o dominado pela imagem, não temos interesse e m apresentar o livro c o m o u m a realidade distinta dos outros «lazeres», enquanto somos cada vez mais induzidos a compreender que a cultura é u m todo. Multiplicar os esforços para a «defesa do livro» (jornada, semana ou ano do livro, associação para defesa do livro para a juventude, etc.), é admitir implicitamente que o livro é «culpável» ou que, e m todo o caso, está condenado. 215

Marc Soriano

É muito mais útil estudar cientificamente as causas que afastam do livro os leitores potenciais (preços demasiado elevados, insuficiência da rede de bibliotecas, pedagogia da aprendizagem da leitura, etc.). Seria também extremamente rentável criar sistematicamente u m reportório destinado a toda a primeira infância e à idade da pré-leitura e, para tal, estudar os centros de interesse e as elaborações psíquicas destes grupos etários fundamentais, por exemplo, como se elabora aquilo que Lacan designa por «ordem do simbólico» e c o m o evolui o que Winnicot chama «objecto transicional», pedaço de tecido ou peça de roupa impregnada de odor da m ã e e que acompanha a criança nos «rituais» do adormecimento, u m a vez que o livro parece ser, no estado actual dos nossos conhecimentos, o sucessor desse «objecto». Erro imperdoável seria limitar a inculca dos valores «humanistas» à idade da leitura corrente e do livro propriamente dito. C o m efeito, os principais preconceitos e flagelos ideológicos (racismo, antifeminismo, belicismo, passividade, desprezo pelos direitos do outro) estão já solidamente enraizados na consciência e sobretudo no inconsciente da criança dos oito aos doze anos. O verdadeiro combate deve, pois, travar-se ao nível dos grupos etários dos 2-3 anos, e 3-6 anos, isto é, deve estabelecer-se por u m circuito oral, m i m a d o , representado, carregado de imagens, intervindo o texto unicamente para consolidar aquisições anteriores. Trata-se de pôr e m causa a noção tradicional de autor, evolução que, na nossa época, se inicia na prática. Alguns sectores da literatura para a juventude, singularmente a corrente enciclopédica, m a s tamb é m as ficções ligadas aos problemas da actualidade, substituem o autor por u m a equipa redactorial que inclui o «criador», o ilustrador, o autor do diálogo, das maquetas, etc., escolhidos, por vezes, pela sua competência, m a s , na maior parte das vezes, de m o d o arbitrário ou na perspectiva de simples rentabilidade. É necessário atribuir ao autor o seu estatuto de criador (ou o contrário) e rodeá-lo de u m a equipa redactorial que inclua sistematicamente os «beneficiários» e os peritos e m matéria de educação, isto é, as crianças e os educadores. A s seis orientações precedentes esforçam-se todas, mais ou menos, por suscitar a participação dos interessados, m a s não é por desejo de inovar a todo o custo n e m por pretenderem u m a m o d a que se imponha, a dos jogos. Esta tendência que os mass media exploram de m a neira por vezes demagógica é, na verdade, bastante saudável. D e u m a maneira ainda confusa e, por vezes, desadaptada, os homens, as mulheres, as crianças exigem a palavra. Estimular esta criatividade do público é a única atitude rentável, pois permite utilizar a única energia que, neste c a m p o , é realmente eficaz, a dos interessados. C o m o tivemos ocasião de observar, estas seis orientações p õ e m no m e s m o plano criação individual e adaptação ou nova leitura de obras antigas. O que não significa que se minimiza o papel dos escritores, n e m que se pretende que a elaboração de novas obras não é desejável; não devemos concluir que tudo deve ser recriado inteiramente; seria u m trabalho gigantesco, capaz de desmoralizar os mais corajosos. U m a obra verdadeiramente nova é sempre o fim de u m a tradição e, ao 216

O livro para crianças e os direitos do h o m e m

m e s m o tempo, o começo de outra. É também por esta razão que este tipo de obra não pode e não deve ser conduzida «do exterior», m a s surgir no momento exacto entre os peritos, os artistas e os educadores que se ocupam habitualmente das crianças, o que não exclui, de m o d o nenhum, as evoluções e as revoluções, u m a vez que as críticas mais pertinentes contra a pedagogia provêm actualmente dos próprios educadores. A s orientações sugeridas, baseadas na criatividade e na emulação, e também na reavaliação do património existente, são simultaneamente as menos despropositadas, pois estão ligadas de perto aos dados mais recentes das ciências humanas e as mais fáceis de aplicar. É verdade que exigem que sejam revistas muitas estereotipias e preconceitos, o que pode demorar algum tempo. A prova do tempo será, de resto, decisiva. Se esta reflexão estiver correcta, as tendências analisadas não deixarão de se precisar, de se reforçar e de impor soluções do m e s m o género.

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Elementos para u m "dossier"

Fins e meios de u m a educação contínua

A Unesco e o desenvolvimento da educação dos adultos

Durante os últimos dez ou quinze anos, a edu- sociedades a um ritmo que se acelera constancação dos adultos sofreu, num certo número temente, sem dedicar à educação dos adultos de países, industrializados ou em desenvolvi- uma atenção profunda e contínua e sem a dotar mento, um impulso considerável e notáveis dos recursos humanos e materiais necessários» transformações que respondem a uma exigên- recomendou à UNESCO que pensasse na oporcia social e individual directamente ligada aos tunidade de empreender uma acção normativa fenómenos económicos, tecnológicos, políticos respeitante ao desenvolvimento da educação e culturais do nosso tempo. dos adultos. Como as opiniões expressas pela Conferência de Tóquio foram partilhadas pelos Contudo, podemos considerar que, a desprocedeu-se peito do reconhecimento formal da necessidade, órgãos de decisão da UNESCO, à elaboração de um projecto de recomendaou até da urgência, de uma expansão substancial da educação dos adultos, que constitui ção aos Estados membros, cujo texto deu oriuma das condições da aplicação efectiva do gem a uma ampla consulta e cuja versão final conceito da educação permanente, a multipli- foi adoptada por unanimidade pela Conferência cação das ocasiões oferecidas aos adultos para Geral durante a décima nona sessão realizada em Nairobi, em Outubro-Novembro de 1976. se educarem, assim como a adaptação dos conteúdos e dos métodos utilizados às necessidades Esta recomendação constitui o primeiro inse às aspirações dos adultos, e às particularida- trumento normativo internacional na matéria des da sua aprendizagem, continuam, em numee a sua importância não deve, portanto, ser rosos casos, a encontrar dificuldades tanto a subestimada. Não se trata, na ocorrência, de nível dos que tomam as decisões como ao dos uma declaração solene, mas de um conjunto potenciais «aprendizes». de disposições cuja aplicação é proposta pelos Embora as três conferências internacionais Estados membros da Organização aos governos sobre a educação dos adultos convocadas pela respectivos. UNESCO (Elseneur, I960; Montreal, 1949 De resto, no próprio corpo do instrumento e Tóquio, 1972) tenham, todas elas, marcado a Conferência Geral recomenda aos Estados uma etapa na evolução do pensamento no membros que actuem: domínio em questão, a última destas assem«... adoptando sob a forma de lei nacional bleias, largamente representativa, tanto do ou outra, e de acordo com a prática constituponto de vista geográfico como cultural, depoiscional de cada Estado, medidas destinadas a de ter recordado «que os países, seja qual for aplicar os princípios formulados na ... recoo estádio de evolução em que se encontrem, mendação; não poderão atingir os objectivos de desenvol- ... levando a recomendação ao conhecimento vimento pretendidos nem assumir as mutações tanto das autoridades, serviços ou organismos de toda a natureza que intervêm em todas as responsáveis da educação dos adultos, como de 220

A Unesco e o desenvolvimento da educação dos adultos

diversas organizações exercendo uma actividade cer todas as formas de desenvolvimento da educativa em prol dos adultos, e de organiza- personalidade. ções sindicais, associações, empresas e outras Os processos educativos em que estão empepartes interessadas; nhados, durante a vida, sob qualquer forma, as crianças, os jovens e os adultos de qualquer ... apresentando, em data e sob forma a determinar, relatórios respeitantes à conti- idade, devem ser considerados como um todo.» nuação dada por eles à ... recomendação.» A recomendação compreende ainda nove Apresentamos, em seguida, o texto integral capítulos sobre os objectivos e a estratégia; das definições da educação dos adultos e da o conteúdo da educação dos adultos; a formaeducação permanente tais como figuram no ção e o estatuto das pessoas que intervêm em capítulo I da recomendação: matéria de educação dos adultos; as relações «A expressão 'educação dos adultos' designa entre a educação dos adultos e a educação dos jovens; as relações entre a educação dos adultos o conjunto dos processos organizados da edue o trabalho; a gestão, a administração, a cação, independentemente do conteúdo, do coordenação e o financiamento da educação nivel e do método, quer sejam formais ou não dos adultos; a cooperação internacional. formais, quer prolonguem ou substituam a eduAfim de facilitar a aplicação desta recomencação inicial dispensada nos estabelecimentos para 1977escolares e universitários e sob forma de apren- dação, o programa da UNESCO dizagem profissional, graças aos quais pessoas -1978 prevê que «... seja concedido auxílio às autoridades e instituições nacionais, em especonsideradas adultas pela sociedade de que cial às dos países em desenvolvimento, que queifazem parte, desenvolvem as suas aptidões, ram documentarse e proceder a consultas, enriquecem os seus conhecimentos, melhoram estudos e investigações destinados a aplicar, as suas qualificações técnicas ou profissionais ou dão-lhes uma nova orientação e evoluem as nas condições particulares que lhes são próprias, as disposições da recomendação citada». suas atitudes ou o seu comportamento na dupla O Secretariado da UNESCO prestará igualperspectiva de um desenvolvimento integral do mente auxílio ... «às organizações não goverhomem e de participação num desenvolvimento namentais nacionais ou internacionais que, socioeconómico e cultural equilibrado e inde- nos seus domínios de competência respectivos, pendente. se proponham estudar os meios de traduzir, A educação dos adultos não pode, porém, de facto, certas disposições desta mesma recomendação ou de precisar a maneira como ser considerada unicamente em si própria; se poderia aplicar a um grupo determinado da trata-se de um subconjunto integrado num população adulta». projecto global de educação permanente. A expressão 'educação permanente' designa, Para sublinhar o alcance do instrumento normativo internacional que acaba de ser adoptado, por seu lado, um projecto global tendente a reestruturar o sistema educativo existente e apareceu útil à redacção apresentar aos leitores desenvolver todas as possibilidades formativas as grandes linhas da análise efectuada pelo Secretariado da UNESCO da acção realizada para além do sistema educativo. desde 1949, dos desenvolvimentos, e até perNesse projecto, o homem é agente da sua turbações surgidas desde então e do que falta própria educação pela interacção permanente empreender com o fim de assegurar à educação entre as suas acções e a sua reflexão. dos adultos o estatuto e os recursos que tantas A educação, em vez de se limitar ao período vezes lhe são ainda regateados, bem como o de escolaridade, deve alargar-se às dimensões justo lugar que deve ocupar a partir de agora da existência vivida, estender-se a todas as num sistema educativo moderno em que o ensino formal e a educação dos adultos — especompetências e a todos os domínios do saber, poder adquirirse por diversos meios e favore- cíficos mas complementares— deverão inte221

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grar-se na noção mais ampla e indefinidamente reunião muito mais representativa no plano mundial. Fizeram-se representar cinquenta e aberta que é a educação permanente1. u m países e quarenta e seis organizações internacionais enviaram observadores. O tema foi: « A educação dos adultos n u m m u n d o e m História transformação». Tinha-se tornado evidente que a vida iria passar a ser u m a longa e O s Estados fundadores da U N E S C O declaconstante adaptação a u m contexto material raram no Acto constitutivo que « u m a vez e social e m rápida evolução; o domínio desta que a dignidade do h o m e m exige a difusão da evolução afirmava-se, então, c o m o u m elecultura e a educação de todos tendo e m vista a mento essencial da política de toda a nação justiça, a liberdade e a paz, existem, para desejosa de se adaptar às transformações e todas as nações, deveres sagrados a cumprir de melhorar a qualidade de vida. Retomando n u m espírito de assistência mútua». A eduos termos d o relatório final, «a educação cação dos adultos entra, pois, desde a sua ori(dos adultos) deverá, pois, ser reconhecida g e m , nas responsabilidades da U N E S C O . por todos os povos c o m o u m elemento norTrês conferências internacionais sobre a edumal, por todos os governos c o m o u m elecação dos adultos marcaram etapas decisivas mento necessário do sistema de ensino de na evolução das concepções relativas aos seus qualquer país». fins e aplicações. A segunda guerra mundial e as suas sequeEntre as propostas de estratégia construlas dominavam ainda todas as preocupações tiva, distinguimos a ajuda dos países ricos aos e mais de metade dos vinte e cinco países parmais pobres, a prioridade dada à alfabetização, ticipantes na Conferência de Elseneur (1949) o acesso das mulheres a todos os tipos de eram da Europa Ocidental. Esta conferência educação, a preparação para a participação exprimiu a ideia de que a educação dos adulcívica, a valoiização da acção das organizatos deveria deixar de ser « u m empreendimento ções voluntárias, a formação sistemática dos marginal ao serviço dos interesses pessoais professores de todos os níveis para a prática de u m a minoria relativa»; c o m u m objectivo da educação dos adultos, a definição progresde reconstrução, a população de muitos países siva da profissão de educador de adultos e a tinha necessidade de u m a educação compenextensão das atribuições das escolas e das sadora; manifestou-se, durante os debates, universidades à educação dos adultos. Assisu m a enorme necessidade de justiça social e timos essencialmente à afirmação da tese de compreensão internacional; os debates segundo a qual a educação dos adultos deve dedicaram pouca importância às ideias relaser considerada como parte integrante do tivas à formação técnica ou profissional e aos conjunto do sistema de educação. programas de alfabetização; m a s a educação A evolução, desde Montreal, tende a recodos adultos passou a ter c o m o tarefa «satisnhecer c o m o principal vocação da educação fazer as necessidades e as aspirações do adulto dos adultos ajudar a compreender, dominar e, na sua diversidade». se possível, orientar a transformação. Graças ao impulso desta conferência, a cooperação internacional adquiriu u m a extensão sem precedentes; organizaram-se muitas 1. A s contribuições de Lucille Mair, Yusuf O . Kasreuniões regionais, assim c o m o programas sam, V . S. Mathur e Hilary Perraton, que leremos experimentais, e m particular programas de mais adiante, foram primeiramente apresentadas educação de base. A s organizações voluntána Conferência sobre a educação dos adultos e o desenvolvimento organizado pelo Conselho Interrias tomaram consciência do seu papel e desennacional para a educação dos adultos e m colavolveram a sua acção sobre o plano internaboração c o m as autoridades tanzanianas (Dar es cional. Salaam, 21-26 de Junho de 1976). Publicamo-las com a amável autorização dos organizadores. A Conferência de Montreal (1960) foi u m a 222

A Unesco e o desenvolvimento da educação dos adultos

Centenas de milhões de homens libertaram-se do sistema colonial e obtiveram a independência; para eles, pôs-se, c o m u m a acuidade e u m a urgência sempre crescentes, o problema da alfabetização, do desenvolvimento rural, da formação dos quadros de todas as ordens. Era inevitável que a sua tendência principal consistisse e m reproduzir os m o delos escolares herdados da época colonial; no entanto, vimos surgir progressivamente acções reconhecendo a importância do aspecto funcional da educação dos adultos. Esta orientação beneficiou, e m 1965, e m Teerão, n o Congresso Mundial dos Ministros da Educação sobre a eliminação do analfabetismo, de u m impulso vigoroso. Embora a alfabetização funcional tenha sofrido críticas na medida e m que se lhe atribuía a intenção de se subordinar o adulto aos mecanismos económicos e à produção, desprezando o elemento de participação e de empenhamento social e cultural, a tendência para orientar a alfabetização e m particular, e a educação dos adultos e m geral, de m o d o a responderem às necessidades do desenvolvimento económico, favorecendo o progresso social, a participação na vida colectiva, b e m c o m o a transformação da sociedade e o desenvolvimento da cultura, afirma-se cada vez mais. Ninguém duvida, n e m nos países industralizados, n e m nos países e m desenvolvimento, da existência de u m a relação íntima entre o progresso social e económico e o nível de instrução; torna-se evidente que u m a participação mais intensa n o movimento dos conhecimentos, u m esforço mais sistemático para unir a teoria à prática facilitam a solução dos problemas provocados pela mutação rápida dos modos de produção, o desemprego e a migração da mão-de-obra; assim, assistim o s à organização de formações durante o emprego, ao desenvolvimento dos cursos nocturnos, do ensino por correspondência, das legislações sobre o número de horas de que os trabalhadores poderão dispor durante o tempo de trabalho c o m ofimde obter u m a formação. A educação dos adultos começa, pois, a tornar-se u m a realidade.

Paralelamente, o aparecimento e o desenvolvimento do conceito de educação permanente conduzem, incluindo a educação dos adultos nos objectivos de planos nacionais de desenvolvimento, à procura de u m a coerência c o m a educação escolar. Sob este aspecto, a educação dos adultos não surge unicamente c o m o u m substituto do ensino escolar, m a s c o m o u m elemento intrínseco de todo o sistema educativo e que, sob diversas formas, se destina a todos, obrigando, na fase inicial da educação, a u m a preparação para aquisições ulteriores de conhecimentos, habilidades e comportamentos, e a ser concebida nesta perspectiva. A s universidades criam departamentos especializados tanto na prática da educação dos adultos e formação do pessoal de que necessita, c o m o nas investigações que c o m elas se relacionam. A s organizações de educação popular, os sindicatos, os movimentos de juventude, os movimentos femininos, na sua diversidade e autonomia, multiplicam as acções não só no plano nacional c o m o internacional. O s meios audiovisuais, a imprensa, a televisão e sobretudo a rádio tornam-se meios de cultura e de formação. Organizam-se intercâmbios internacionais de ideias e experiências. Porém, nas vésperas da Conferência de Tóquio, somos ainda obrigados a verificar que, apesar da generalização das intervenções governamentais, a participação continua a ser modesta, submetida às flutuações orçamentais, por assim dizer, marginal. C o m raras excepções, das quais algumas são notáveis, nos países e m desenvolvimento, os esforços realizados continuaram a destinar-se essencialmente a u m a élite já privilegiada pelo sistema escolar: finalmente, raros são os países e m que foi possível estabelecer u m a política estruturada, coerente e interdepartamental de promoção da educação dos adultos. A Conferência de Tóquio 1 (1972) beneficiou da participação de noventa e dois Estados membros, de três Estados não membros, de cinco organizações intergovernamentais e de 1. Ver o dossier de Perspectives, vol. II, n.° 3, 1972, p. 350-393 ( N D L R ) . 223

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trinta e sete organizações internacionais não governamentais Os debates que tiveram lugar na Conferência de Tóquio salientaram que a educação dos adultos podia ser considerada c o m o : U m instrumento de tomada de consciência, de socialização e de transformação social; ela tende a criar u m a sociedade consciente dos valores de solidariedade; é mobilizadora, todos os homens p o d e m e devem auto-educar-se e educar os outros; U m instrumento de desenvolvimento do h o m e m total, considerado na globalidade das suas funções de trabalho, de lazer, de vida cívica, de vida familiar; ele tende para o aperfeiçoamento das qualidades físicas, morais e intelectuais; U m instrumento de preparação para a actividade produtiva e para a preparação na gestão da empresa; U m instrumento de luta contra as alienações económicas e culturais e elaboração de u m a cultura nacional libertadora e autêntica. A Conferência de Tóquio, dispondo das conclusões das conferências intergovernamentais sobre as políticas culturais (Veneza, 1970; Helsínquia, 1972), considerou também que a educação dos adultos abrangia simultaneamente a educação permanente e o desenvolvimento cultural e que contribuía para as transformar nos dois aspectos indivisíveis de u m m e s m o processo.

Objectivos e estratégia

O s objectivos que parece desejável e possível atribuir à educação dos adultos não diferem profundamente daqueles c o m que todo o empreendimento educativo digno deste n o m e se deveria ocupar. Assim, os objectivos consignados por C o n dorcet à instrução poderiam também tê-lo sido à educação dos adultos: «Proporcionar a todos os indivíduos da espécie h u m a n a os meios de poder satisfazer as suas necessidades de assegurar a todos eles a facilidade de aperfeiçar a sua indústria, de se tornar apto para 224

as funções sociais e m que tem o direito de intervir, de desenvolver todos os talentos que recebeu da natureza, e de, assim, estabelecer entre os cidadãos u m a igualdade de facto e tornar real a igualdade política reconhecida pela lei: deve ser este o principal objectivo de u m a instrução nacional; e, sob este ponto de vista, ela é, para o poder público, u m dever de justiça»1. M a s , precisamente porque se destina a adultos que se encontram perante os grandes problemas do m u n d o e m que vivem, a edução dos adultos, mais do que qualquer outro empreendimento educativo, deve ser concebida c o m o u m a contribuição para a compreensão e solução destes problemas. E m primeiro lugar, o da mundialização do nosso destino. É errado pensar que as distâncias serão abolidas devido unicamente ao desenvolvimento dos meios de transporte e de comunicação. Além disso, o internacionalismo das aspirações e dos valores a que acedem certos grupos e colectividades, não impede que se aprofunde, segundo a lógica do sistema actual das relações internacionais, o fosso económico e cultural que separa os países pobres dos países ricos. E necessário que a compreensão e a aceitação da diversidade dos costumes e das culturas se tornem acessíveis ao maior número de pessoas e conduzam, tanto quanto possível, a u m a solidariedade activa a favor dos mais desprovidos. A educação dos adultos é muitas vezes evocada e m relação c o m a utilização dos tempos livres. Ora, o problema dos tempos livres apresenta-se hoje e m dia tanto aos países industrializados c o m o aos países e m desenvolvimento. Para estes, trata-se muitas vezes de tempos livres forçados, devido ao subemprego. N o s países industrializados, os tempos livres desenvolveram-se c o m o u m a realidade e c o m o u m a necessidade. A necessidade de

1.

A . C . C O N D O R C E T , Rapport et projet de décret sur

Vorganisation générale de l'instruction publique, apresentados à Assembleia Nacional, e m n o m e do Comité de Instrução Pública, a 20 e 21 de Abril de 1972.

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tempos livres é expressa por algumas pessoas c o m o u m a necessidade de evasão da vida «activa» e por outras como u m a necessidade de encontrar, para além do trabalho e das diversas obrigações, a possibilidade de se exprimir mais livremente. Porém, a concentração do tempo de lazer (fins de semana, férias pagas...) cria u m a superpopulação nas zonas próprias para os tempos livres. Muitas formas de lazer alimentam ou favorecem a passividade dos indivíduos e a exploração comercial sistemática dos tempos livres contraria muitas vezes os objectivos da educação. Trata-se de atribuir a sua verdadeira dimensão aos tempos livres: período privilegiado para fazer a experiência da autonomia, para dar livre curso às intuições criadoras, para exprimir outras solidariedades, além das que se enraízam no meio do trabalho. M a s existem duas características do m u n d o contemporâneo que atribuem à educação dos adultos funções de u m a importância singular: e m primeiro lugar, a explosão dos conhecimentos, a evolução rápida das ciências e a transformação acelerada das técnicas, e tamb é m dos valores, obrigam permanentemente os indivíduos não só a renovar os seus conhecimentos, c o m o a considerá-los provisórios e transformável o m u n d o que os rodeia; por outro lado, ao m e s m o tempo que vive n u m universo cada vez mais mundializado e global, o indivíduo sente-se cada vez mais fragmentado pela dispersão das suas responsabiidades e das suas diversas tarefas, pelas contradições que comportam, pelo isolamento e m que o encerram a divisão estanque entre os grupos, a falta de tempo, a incapacidade de ter u m a visão de conjunto dos acontecimentos. À educação dos adultos cabe a tarefa de os ajudar a compensar e a superar estas limitações, e a realizar a unidade da sua própria personalidade. À luz destes raros exemplos, é evidente que, se pretendemos transformar a educação dos adultos n u m instrumento de solução para os problemas colectivos, é necessário que toda a sociedade aceite empenhar-se no processo educativo. Trata-se, juntamente c o m a asso-

ciação dos adultos e m formação à determinação dos objectivos e dos conteúdos das acções e m que são chamados a participar, de u m elemento essencial de toda a estratégia da educação dos adultos. M a s , existe u m a estratégia única, ou há lugar para variantes? N ã o podemos certamente abstrair-nos do nível e do tipo de desenvolvimento, das particularidades próprias dos diversos grupos que constituem as sociedades, n e m da importância e dos resultados dos sistemas educativos. A natureza e a intensidade dos problemas cuja compreensão e solução a educação dos adultos deve procurar facilitar variam, de facto, profundamente quando se trata de u m país de desenvolvimento industrial avançado, de u m a sociedade e m vias de industrialização, ou de u m a sociedade rural tradicional. Além disso, as sociedades industriais não apresentam fisionomias homogéneas: na maior parte dos casos coabitam técnicas de produção que vão desde a produção rural tradicional à electrónica, passando pelo artesanato e a produção e m cadeia. A cada situação correspondem necessidades e hierarquias de urgências diferentes, que a educação do adultos deve esforçar-se por acompanhar tão intimamente quanto possível. Se tivermos e m conta os elementos que acab e m de ser expostos, é evidente que não existe u m a , m a s várias estratégias de educação de adultos. Sob este ponto de vista, seria inútil opor u m a estratégia dando prioridade às preocupações económicas a u m a estratégia baseada e m preocupações culturais. É evidente que, seja qual for o contexto e m que seja obrigada a desenvolver-se, a educação dos adultos, deveria fixar c o m o objectivo principal suscitar nos adultos, aspirações, atitudes e comportamentos independentes, que lhe permitam c o m preender e dominar a transformação e participar no desenvolvimento e na mutação da sociedade. T a m b é m é evidente que este objectivo não pode adaptar-se a estruturas educativas desligadas da vida, n e m a conteúdos estreitamente especializados. 225

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Estruturas É necessário que a educação dos adultos seja dotada de estruturas maleáveis e descentralizadas, m a s coordenadas e b e m integradas no sistema educativo no seu conjunto. Para tal, é conveniente recorrer, tanto quanto possível, a todos os organismos e instituições capazes de contribuir para o esforço de educação dos adultos: e m particular, as escolas e as universidades, os movimentos de educação popular, os organismos sindicais, cooperativos, femininos, religiosos, culturais e desportivos, as organizações de juventude e de divulgação científica, os meios de informação de massa, as bibliotecas e museus, as empresas e todas as pessoas competentes ou capazes de o vir a ser. O contributo destes diversos intervenientes pode traduzir-se pela organização e a aplicação de programas; pode consistir, de m a neira mais limitada, e m fornecer educadores ou animadores, material, conselhos de método ou ainda locais e equipamentos. Quanto mais numerosos e variados forem os intervenientes, mais se fará sentir a necessidade de criar, a diversos níveis, estruturas de concentração reunindo os representantes das autoridades públicas e dos organismos e instituições abrangidas pela educação dos adultos. Essas estruturas poderiam ser chamadas a assegurar a concertação e a indispensável harmonização nos planos conceptual e operacional, assim c o m o a suscitar novas actividades, e m particular as que se apresentem c o m o necessárias a u m desenvolvimento a longo termo dos programas de educação. A política de educação dos adultos não pode, c o m efeito, limitar-se à mobilização dos recursos educativos existentes, ou à criação, e m função das necessidades sentidas c o m o mais urgentes, de novas instituições encarregadas de responder directamente a estas necessidades. O desenvolvimento a longo termo da educação dos adultos pressupõe a realização de u m certo número de investimentos. Trata-se, e m particular, de aprofundar os problemas pedagógicos, sociológicos, económicos, finan-

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ceiros enfrentados pelos diferentes intervenientes. Trata-se de formar gestores, formadores e formadores de formadores, e de desenvolver a produção de material pedagógico. T a m b é m é necessário proceder à planificação e à avaliação das acções empreendidas, reunir documentação, coleccionar dados estatísticos, criar serviços de informação e de orientação educativas destinados aos adultos, redes de contacto destinadas aos formadores e organismos interessados. A acção educativa desenvolvida e m prol dos adultos pelos organismos não governamentais, e e m particular pelas associações e agrupamentos voluntários, deveria ser favorecida e beneficiar de u m apoio sistemático do Estado. C o m o fim de clarificar as obrigações respectivas dos diferentes parceiros, este apoio poderia assumir a forma de u m a ajuda técnica e/ou financeira, e ser concedida por meio de acordo ou convenção. M a s é essencial que os organismos que beneficiam de u m apoio do Estado possam conservar a autonomia de que necessitam para levar a b o m termo a sua tarefa educativa. E m n e n h u m caso deverá ser posta e m causa a sua liberdade de opinião. N a maior parte dos países a escola pode desempenhar, na expansão e na educação dos adultos, u m papel considerável. M a s este papel passa pela abertura dos estabelecimentos escolares para os problemas concretos da c o m u nidade e seu empenhamento na solução destes, pelo estabelecimento de contactos directos e regulares c o m as populações adultas e pela preparação dos professores para as particularidades das suas invenções nestes meios. O esforço a realizar pelos organismos de informação de massa, para que a sua vocação para contribuir para a educação dos adultos seja u m a realidade, não é fundamentalmente diferente. N ã o se trata, para eles, de entrar e m contacto c o m o público, de procurar a sua participação, de renunciar a u m m o d o de acção unilateral para que se instaure u m a dupla corrente de contacto entre emissor e receptor. A fim de atingir este resultado, conviria certamente estabelecer entre os responsáveis pelos mass media e m particular a rádio e a

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televisão, e a educação dos adultos, mecanism o s de concertação apropriados. Conteúdos O s conteúdos da educação dos adultos deveriam resultar directamente dos objectivos prosseguidos. Deveriam partilhar da sua diversidade. N e n h u m domínio parece, a priori, dever manter-se estranho à educação dos adultos. M a s o esforço deveria incontestavelmente exercer-se onde as necessidades provocadas pela mudança se revelam cada vez mais prementes, e deveria haver a preocupação essencial de evitar toda a abordagem demasiado limitada; a transformação exige respostas rápidas, mas as interrogações que suscita são destinadas a renovar-se, e é necessário ultrapassar as aparências. A formação deveria ter e m vista o aprofundamento dos conhecimentos-utensílios, e não a acumulação de conhecimentos c o m pretensões enciclopédicas, deveria ainda assegurar a manipulação mais facilitada e mais rigorosa dos diversos métodos, instrumentos e linguagens que permitem o desenvolvimento do sentido crítico e do espírito de análise e de síntese. A formação profissional deveria impedir as abordagens conjunturais restritas, procurar a polivalência e abrir-se aos problemas respeitantes ao ambiente económico e social do trabalho. A formação socioeconómica-política deveria preparar os cidadãos para u m a participação democrática na gestão, a todos os níveis, dos assuntos sociais, e torná-los capazes de desmascarar todas as práticas de doutrinação e de propaganda. N a medida e m que os meios de comunicação de massa se apoderam cada vez mais da informação, os animadores deveriam essencialmente procurar favorecer a selecção, a abordagem crítica e, se necessário, a correcção da informação. A formação destinada ao desenvolvimento cultural não deveria limitar-se à difusão de u m modelo constituído por certas categorias sociais, m a s deveria favorecer as formas de

expressão características de cada pessoa e de cada grupo, a partir das suas experiências de vida e dos seus valores específicos. D e u m m o d o geral, a recuperação e a reestruturação dos recursos e dos meios de que dispõem, para se realizar e exprimir, os grupos sociais desfavorecidos ou marginalizados deveriam ser considerados prioritários. Assim, apesar de u m a enorme multidão engrossar todos os anos a população urbana, a grande maioria dos habitantes dos países e m desenvolvimento continua a viver e m pequenas aldeias ou e m quintas isoladas; alguns continuam a ser nómadas; assistimos a u m empobrecimento constante da maior parte das zonas rurais, assim c o m o à sua destruturação social e cultural. Trata-se de ajudar estas zonas a reencontrar u m equilíbrio, evitando que tenham de enfrentar de m o d o d e m a siado brutal o choque c o m o m u n d o moderno, aproveitando o progresso técnico e social, de maneira que possam encontrar o domínio da sua transformação. Novas categorias de pessoas desfavorecidas — pessoas inadaptadas socialmente, imigrados, desempregados... — vieram progressivamente juntar-se às categorias já existentes: analfabetos, deficientes físicos e mentais. Importa estabelecer acções adaptadas às necessidades de todos estes grupos.

Métodos Sejam quais forem os conteúdos, o objectivo final da educação dos adultos — o reconhecimento, pelo adulto, c o m o apoio do meio, dos problemas que se lhe apresentam — deveria inspirar directamente os métodos aplicados. O objectivo prosseguido exclui toda a formação cujos princípios, conteúdos ou métodos sejam impostos. O objectivo prosseguido exclui igualmente todo o método estereotipado, todo o método que organize a dependência dos adultos e m formação, todo o m é todo que introduza u m corte entre estes adultos e o seu meio, ou a sua vida quotidiana. É necessário admitir que todo o adulto e m formação possui u m a soma de experiênZ27

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cias pessoais singulares, e se situa no cerne de u m a rede de inter-relações que conferem à sua situação u m carácter único. O problema da educação dos adultos consiste essencialmente e m tornar educativas estas experiências e esta situação. O que só é possível proporcionando ao adulto os meios de as aproveitar a título individual e colectivo. Assim, é conveniente não desprezar, e m proveito de u m a única fase — a fase da aplicação — as outras fases igualmente fundamentais que todo o programa de educação de adultos deveria incluir, e, e m particular, as fases de definição dos objectivos e de avaliação da formação dispensada. Entre as características de cada adulto e m formação figuram a natureza e a importância das sujeições que pesam sobre ele. Assim, importa procurar e adoptar os meios mais apropriados para inserir a educação na vida dos indivíduos, tendo e m conta o m o d o c o m o partilham o tempo entre tempo livre e tempo de trabalho. E m vez de adaptar o indivíduo aos horários de educação, são estes que devem adaptar-se às necessidades do indivíduo. Finalmente, deveria dedicar-se u m a especial atenção ao apoio pedagógico, assim c o m o aos equipamentos utilizados c o m o suporte das acções de educação dos adultos. O s adultos deveriam, tanto quanto possível, estar associados à escolha e, e m certos casos, à elaboração do material pedagógico a utilizar durante as acções e m que participam. N o que diz respeito aos equipamentos, conv é m utilizar, sempre que possível, as infra-estruturas existentes no domínio educativo, científico, cultural, desportivo, social e dos tempos livres. O emprego múltiplo dos equipamentos é u m factor de variação das actividades realizadas, de libertação dos diversos aspectos da vida, de luta contra a segregação entre grupos etários ou entre grupos sociais. M a s a educação dos adultos adapta-se aos locais mais quotidianos; a oficina, o campo, a via pública proporcionam, e m muitos casos, u m quadro tão satisfatório c o m o u m a sala de aula o u u m centro cultural. 228

Outros problemas

Para além dos objectivos, das estruturas, dos conteúdos e dos métodos que contribuem para a definir, outros problemas respeitantes à educação dos adultos mereceriam ser objecto de u m a regulamentação. Trata-se, e m particular, das relações entre educação dos adultos e educação dos jovens; das relações entre educação dos adultos e trabalho; da formação e do estatuto das pessoas que intervêm e m m a téria de educação de adultos; da cooperação internacional. N o que respeita às relações entre educação dos adultos e educação dos jovens, convém salientar dois fenómenos complementares: por u m lado a influência que exerce a posse de u m a educação prévia sobre as possibilidades de acesso e de participação frutuosa na educação dos adultos, por outro lado, as lições que as formações iniciais poderiam retirar da educação dos adultos e que militam a favor de u m a reformulação e de u m a reordenação da educação dos jovens, tanto nas estruturas c o m o nos métodos. N o que diz respeito às relações entre educação dos adultos e trabalho, é incontestável que constituem apenas u m aspecto particular dos problemas suscitados pelo desenvolvimento da educação dos adultos. M a s trata-se de u m aspecto que se presta a u m a regulamentação, e sobre o qual se efectuaram já reflexões profundas n u m certo número de países, e também nas organizações internacionais. Foi assim que a O I T adoptou, e m 1974, u m a convenção e u m a recomendação internacionais sobre as férias de educação pagas. C o n v é m , portanto, enunciar os grandes princípios susceptíveis de guiar a política a aplicar neste domínio. N o que respeita ao pessoal, convém salientar que existe u m a qualificação de educador de adultos, e que esta deve ser adquirida. O problema do pessoal deve, portanto, ser posto e m termos de mobilização de recursos, de preparação dos educadores de adultos para as responsabilidades que deverão assumir e de alternância entre estas responsabili-

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dades e outras actividades, profissionais ou não. O s problemas de educação dos adultos são, porém, suficientemente complexos para que seja progressivamente criado u m corpo de especialistas capazes de contribuir para a formação dos formadores e para reflexões mais fundamentais. Finalmente, a educação dos adultos não necessita apenas de educadores e de animadores, m a s também de planificadores, de administradores, de psicólogos, etc. N o que respeita à cooperação internacional, a sua utilidade no domínio da educação dos adultos não carece de confirmação. Assim, conviria reforçar esta cooperação, e m especial através de u m a consulta sobre problemas específicos de interesse c o m u m , fazendo beneficiar os países que assim o desejarem do contributo de competências externas, tendo e m vista a mobilização dos recursos humanos e materiais destinados à educação dos adultos, criando ou desenvolvendo as actividades dos centros e serviços próprios à sua inserção n u m sistema internacional de documentação, de recolha e de tratamento de dados comparáveis, e apoiando a acção desenvolvida pelas associações regionais e internacionais que se ocupam da educação dos adultos. M a s existe u m domínio e m que se exige

u m a acção particular: o preço dos equipamentos e do material educativo e, e m especial, das técnicas e programas audiovisuais, constitui u m sério obstáculo à sua difusão: conviria, portanto, que a comunidade internacional unisse os seus esforços para encontrar soluções racionais para este problema, e eliminar as regulamentações restritivas que estão na origem desta situação. Finalmente, interessa recordar que constitui tanto u m acto de justiça c o m o de b o m senso continuar a apoiar, de maneira eficaz, através de acções desenvolvidas tanto no plano bilateral c o m o por intermédio de organismos internacionais, os esforços educativos a favor dos adultos, empreendidos pelos países e m desenvolvimento e e m particular, por aqueles cuja proporção de adultos iletrados é mais elevada. Importa, porém, que a assistência externa não assuma a forma de u m a simples transferência das estruturas, programas, m é todos e técnicas próprias dos provedores de assistência; a assistência externa consiste e m suscitar e estimular o desenvolvimento endógeno nos países interessados pela criação de instituições apropriadas e de estruturas coerentes adaptadas às condições particulares destes países, assim c o m o pela formação de pessoal especializado.

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Lucille M a i r

A educação dos adultos, as mulheres e o desenvolvimento

A concepção d o desenvolvimento internacional que estava e m curso desde ofimda segunda guerra mundial revelou-se impraticável n o m u n d o e m plena mutação dos anos setenta. C o m efeito, esta concepção salientava explicitamente a noção de crescimento económico baseada na experiência das nações industrializadas n a economia de mercado. O tipo de desenvolvimento e a estratégia adoptados por estes países pareciam ter sido salutares e, na opinião dos promotores d o ï e do n Decénios do desenvolvimento, o m e s m o caminho deveria poder conduzir os países não industrializados ao sucesso. D e resto, durante os dois últimos decénios, certas regiões «subdesenvolvidas» da Ásia, de África, da América Latina e das Caraíbas registaram efectivamente, n o domínio económico, progressos cuja medida nos é dada por certos índices tais c o m o o rendimento por habitante, o rendimento nacional, a produção industrial e outros ainda; estes critérios estão de acordo c o m os princípios estabelecidos n o quadro das estratégias internacionais d o desenvolvimento. Raros são, n o entanto, os que clarificam de u m m o d o válido, a situação das camadas mais numerosas da população d o globo: a sua extrema miséria é, n o entanto, b e m conhecida e está b e m patente. O s grandes meios de informação permitem, n a verdade,

Lucille Mair (Jamaica). Representante permanente da Jamaica junto das Nações Unidas, Nova Iorque. 230

actualmente, que os privilegiados d o planeta conheçam melhor as condições de existência dos deserdados d o que as conheciam n o passado, ainda há vinte anos. A recíproca tamb é m é verdadeira. É , portanto, c o m o conhecimento de todos que a diferença entre os níveis de vida dos povos se acentua perigosamente de região para região. Possuindo provas concretas da incrível existência vivida pela grande maioria dos homens e das mulheres nos três continentes do hemisfério Sul, apesar dos dois decénios de «desenvolvimento», os responsáveis pela planificação nacional e internacional esforçam-se actualmente por modificar a orientação a fim de que o ser h u m a n o se torne o verdadeiro objectivo do desenvolvimento e se mantenha n o cerne de todas as novas formulações e d o conjunto das estratégias reexaminadas. M a s , não é fácil realizar esta tarefa : de facto, não p o d e m o s estar certos de que, nos domínios essenciais e m que se estabelecem decisões, o desejo de desenvolvimento esteja à altura da miséria h u m a n a . A este respeito, os processos que se desenvolvem n o seio da Organização das Nações Unidas são significativos. A necessidade de dispor rapidamente dos modelos de desenvolvimento que permitam responder efectivamente às aspirações fundamentais dos h o m e n s e das mulheres mostra-nos que se torna cada vez mais urgente a instauração de u m a nova ordem económica mundial definida e m diversas assembleias e órgãos das Nações Unidas. A comunidade internacional mobiliza, actualmente, muitas

A educação dos adultos, as mulheres e o desenvolvimento

energias e competencias para negociar o seu estabelecimento através de u m a rede de organismos regionais e internacionais fazendo ou não parte do sistema das Nações Unidas. M a s a crise mundial actual está tão inextricavelmente ligada à crise da energia e a outros fenómenos monetários e económicos particulares —recessão, inflação, desequilíbrios comerciais •— que estes problemas passaram para primeiro plano e que as negociações internacionais que se realizam e m Paris, Nairobi, N o v a Iorque e outros locais se debruçam essencialmente sobre os produtos de base, as barreiras comerciais, a dívida internacional, a indexação, as flutuações dos preços e a transferência das técnicas, problemas cujas incidências sobre u m a organização do m u n d o são fundamentais, devendo esta reorganização permitir a descoberta de novos recursos de desenvolvimento. N o entanto, é perfeitamente admissível que estas instâncias, cujos centros de interesse são inevitavelmente de ordem comercial e financeira, percam de vista as pessoas abrangidas pelas questões económicas e m discussão. A s decisões económicas e técnicas tomadas transformá-las-ão e m vítimas ou beneficiários, conforme sejam, ou não, ditadas por preocupações de ordem humana. O verdadeiro significado destas negociações é, na verdade, a existência presente e futura de milhões de homens, mulheres e crianças do m u n d o e m desenvolvimento. E tudo leva a crer actualmente que nos encontramos e m presença de u m a verdadeira crise de sensibilidade. Ninguém ignora, por exemplo, que a crise da energia abalou profundamente a segurança política e económica habitual das democracias industriais ocidentais. Salientando de m o d o espectacular a interdependência que caracteriza o m u n d o contemporâneo, esta crise teve igualmente o efeito de incitar certos países a libertarem-se das suas obrigações e m matéria de desenvolvimento internacional. O seu empenhamento, que sempre se tinha revelado imbuído de certas reservas, parece actualmente recuar e, no seio de algumas instâncias regionais e internacionais, a sua preocupação máxima parece consistir e m evitar u m novo abalo

da sua sociedade e da sua economia. Perante o resultado duvidoso da quarta e recente C N U C E D 1 , deveríamos marcar u m a pausa e interrogarmo-nos sobre o facto da tomada de consciência da dimensão humana do desenvolvimento ser ou não suficiente para se traduzir por decisões políticas. À medida que a dimensão h u m a n a da planificação do desenvolvimento assume mais importância, sucede o m e s m o c o m a dimensão política. N a verdade, a qualidade da vida determina os objectivos, m a s é o processo político que define os meios e regula o ritmo do desenvolvimento. Haverá sempre ocasião para efectuar, de maneira explícita, opções políticas, quer se trate de descobrir ou de adquirir os recursos necessários. E , nesta fase, a crise confunde-se c o m u m problema de soberania. Este problema põe-se simultaneamente no plano nacional e internacional. Diz respeito a todos os membros da comunidade internacional, incluindo aqueles cuja soberania se exerceu no passado muito para além das suas fronteiras e aqueles que acabam de a adquirir. A maior parte dos recursos necessários ao desenvolvimento está ainda nas m ã o s daqueles que n e m sempre sabem apreender a extensão das necessidades do m u n d o relativamente pouco desenvolvido. Estes recursos estão igualmente na posse, de m o d o inquietante, daqueles que ainda têm interesse na conservação do subdesenvolvimento. A libertação destes recursos é, porém, a condição sine qua non do desenvolvimento. Além disso, compete ainda às nações mais atingidas pelo problema do desenvolvimento — as que acabam de aceder à independência — assumir plenamente a sua soberania. A «síndrome de dependência», legado do colonialismo, é o corolário do subdesenvolvimento e o inimigo da soberania. É evidente que esta síndrome restringe a aptidão das nações e m desenvolvimento, c o m o maior grupo de Estados independentes, para porem e m causa nos seus próprios funda1. Conferência das Nações Unidas sobre o comércio e o desenvolvimento.

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Lucille Mair

mentos, o princípio da economia mundial aberta que se esforçam actualmente por reformar, para exercerem a sua vontade soberana quando se trata de abordar, no plano nacional e internacional, o problema crucial da repartição dos recursos, e para conceber estruturas inteiramente novas tendo e m vista o desenvolvimento. A maior parte dos países e m desenvolvimento têm ainda progressos decisivos a realizar no domínio da abstracção. A história de muitos dos territórios da região das Caraíbas tornou-os estranhamente vulneráveis sob este aspecto. Foram criados, na origem, pelos países capitalistas da Europa Ocidental e m busca de plantações no N o v o M u n d o e que organizaram a exploração na base da monocultura orientada para a exportação, c o m u m a mão-de-obra utilizada à força. A independência política adquirida pelas antigas colónias britânicas nos últimos dez anos não serviu sequer para modificar, de imediato, e de maneira sensível, a dependência e a orientação para o exterior que lhes eram inerentes. Foi assim que, durante os anos sessenta, fizeram objecto de u m a aplicação sistemática dos modelos ocidentais de desenvolvimento, e m matéria de industrialização e de importação de capitais, por exemplo. Assistiram também ao aparecimento dos sinais clássicos da incapacidade destes modelos para melhorar a existência dos povos da região, atingindo o desemprego, e m particular, e m 1972, cerca de 25 por cento da população e m certos territórios. Para eliminar estas tendências é manifestamente indispensável romper c o m o passado. Seria capital, por exemplo, começar por proceder a u m a nova avaliação da agricultura, que foi o sector mais desprezado dos anos sessenta e cuja produção decresceu e m valor relativo e m toda a região das Caraíbas, e, e m certos locais, e m valor absoluto. A procura de novos meios e objectivos deve apoiar-se na capacidade dos Estados soberanos se libertarem de acordos económicos internacionais e m vigor, construindo a sua economia na base de u m a autonomia colectiva. A sobrevivência do complexo de dependência impede 232

ainda que certos países e m desenvolvimento enveredem resolutamente por esta via. R e ceiam também que, ao fazê-lo, os países desenvolvidos se sintam libertos das suas obrigações perante o m u n d o . Criar integralmente, ou quase, instituições regionais e internacionais capazes de mostrar que o Terceiro M u n d o começa a encontrar os seus próprios recursos constitui u m a tarefa árdua. À escala nacional a dificuldade não é menor. M a s , a este nível, é talvez mais fácil recensear os meios de acção : u m a população sensibilizada por u m a imagem positiva de si própria, e que a faz considerar-se simultaneamente c o m o instrumento e beneficiária do desenvolvimento, transmite o seu dinamismo a mecanismos eficazes de modificação. O processo de sensibilização é u m a função essencial do processo político que se traduz pelo exercício do poder e das responsabilidades, pela repartição dos recursos e pela tomada de decisões. O poder político que fornece o impulso necessário a esta sensibilização deve ser considerado por todos não c o m o u m a força independente, mas c o m o u m impulso colectivo tendente à concretização das aspirações do h o m e m . É necessário ter e m conta que a vontade política tem apenas u m a justificação, e que esta é de ordem moral. O problema que se põe é o seguinte: que faz u m a sociedade para comunicar ao povo as competências, a confiança e o dinamismo de que necessita para exercer os seus direitos políticos, apoderar-se dos seus recursos e transformá-los no interesse nacional? A função da educação torna-se essencial, considerando o termo educação na sua acepção mais ampla de processo educativo necessariamente comprometido. É evidente que, antes do acesso do Terceiro M u n d o à independência, o ensino nunca era neutro. Visava indubitavelmente, embora, por vezes, de m o d o subtil, o apoio ao regime colonial. O s novos Estados independentes herdaram, e m geral, estes objectivos, que aceitaram c o m o complemento dos modelos de desenvolvimento económico e m utilização.

A educação dos adultos, as mulheres e o desenvolvimento

A s incidências são múltiplas. A combinação de u m a rede de estruturas educativas de tipo clássico e de instituições de comunicação e de informação de carácter formal e não formal constitui aquilo que poderemos designar por «indústria do cérebro», u m dos mais subtis empreendimentos supranacionais de infiltração que, por n e m sempre ser c o m preendido c o m o tal, é talvez ainda mais influente. N ã o ignoramos a aptidão dessa «sociedade de submissão» (de que os sistemas escolares do Terceiro M u n d o são muitas vezes asfiliaislocais) para erigir e m verdade a contra-verdade. Contribuiu para reforçar o neo-colonialismo, o elitismo, o individualismo económico e os desequilíbrios socioeconómicos que daí resultam, para não falar do efeito desgastante sobre as culturas autóctones. Esta infra-estrutura educativa, tal c o m o os modelos de desenvolvimento que nela se apoiam, deve ser alterada, u m a vez que o seu carácter e a sua vocação essencialmente políticos tenham sido revelados e plenamente compreendidos. E o problema mais difícil de resolver nesta tarefa de reoganização da educação é, s e m dúvida, o dos adultos já condicionados, totalmente ou e m parte, para a aceitação de certos valores e certas ideias sobre a competência e a não-competência que são muitas vezes inadaptadas, ou até disfuncionais. Desaprender para reaprender é sempre u m processo c o m plexo. O que importa é a substituição pela procura do interesse c o m u m do direito incondicional do indivíduo agir no quadro de u m a economia de mercado onde reine a lei do maior lucro. O individualismo económico é o núcleo irredutível da doutrina liberal ocidental que se formou n u m a outra época, n u m outro local, e cuja validade para u m terço do m u n d o e m efervescência deve ser seriamente posta e m causa. Esta contestação deve ter origem essencialmente nessa massa de homens e mulheres que têm à sua disposição, segundo as normas ocidentais, poucas ou nenhumas realizações técnicas ou intelectuais, mas que, no entanto,

fornecerão o impulso e o material necessários à reconstrução nacional, remodelarão as estruturas educativas a fim de edificar u m sistema adaptado assente n u m afilosofiapertinente do desenvolvimento, através do qual serão, por sua vez, remodelados. A s formas institucionais devem, pois, facilitar a função múltipla de cidadão, de construtor, de produtor e de estudante que estes homens e mulheres terão de desempenhar. É essencial que esta reconstrução das instituições seja conduzida c o m a participação de todos. Todas as camadas da sociedade, incluindo as menos evoluídas, sabem c o m o desejam organizar a sua existência. A sua percepção pode ser limitada pelo meio e pelas possibilidades que lhes são oferecidas. Ignorar esta realidade poderia comprometer seriamente a obra de reconstrução, enquanto, por outro lado, tê-la e m conta e utilizá-la permitiria aumentar o volume dos recursos utilizáveis no processo de aprendizagem. Sob este aspecto, devemos tirar alguns ensinamentos do exame crítico que a U N E S C O acaba de fazer do seu programa experimental mundial de alfabetização. Salienta-se da avaliação mais recente efectuada pela Organização sobre os progressos realizados no domínio do ensino dispensado a adultos jovens n u m certo número de países e m desenvolvimento, que as formas autoritárias de ensino apresentam resultados menos satisfatórios de que as que reconhecem explicitamente a experiência e a intuição dos adultos c o m o ponto de partida válida para a aquisição dos conhecimentos. O mito do conservantismo obstinado do «povo», e m particular no campo, é profundo. Afirma-se, por vezes, que essas pessoas são reticentes a toda a inovação. M a s essa afirmação não tem e m conta que as massas miseráveis, tanto no meio rural c o m o no meio urbano, são cada vez mais sensíveis ao que é verdadeiramente a qualidade da vida, e que, por conseguinte, estão cada vez mais dispostas a participar n u m a experiência que lhes porporcione os meios de escapar à sua triste condição. Mais difícil de transpor do que o conser233

Lucille Mair

vantismo popular é, talvez, o obstáculo representado pelo imobilismo de urna burocracia que deveria, pelo contrario, pensar nas suas relações c o m a população e as instituições n u m a perspectiva evolutiva, admitir a prioridade de u m a sobre as outras, adquirir a m a leabilidade que permite o aparecimento de estruturas criadas pelas necessidades explicitas da comunidade e reconhecer o valor de muitas estruturas endógenas que constituem precisamente a finalidade de u m projecto desse tipo. O Terceiro M u n d o está cheio de formas culturais autênticas que são testemunho da imaginação de que os povos são capazes para superar as dificuldades quotidianas nos domínios da organização religiosa, agrícola, financeira ou doméstica. Preservar e favorecer o pleno desenvolvimento dos valores e sistemas tradicionais não significa retrocesso, m a s , pelo contrário, proceder de m o d o que as novas orientações do desenvolvimento sejam humanistas, racionais e verdadeiramente dinâmicas, apoiando-se no fundamento sólido de u m a aquisição antiga e familiar para se lançar n o inédito e n o desconhecido. Alguns factos fazem-nos já pensar que as mulheres reagem favoravelmente quando se encontram no seio de u m grupo no qual, para além de qualquer imposição e quadro rígido, vivem a experiência de relações de interacção e confrontação da sua experiência c o m as necessidades futuras, o que lhes permite ir ao encontro de soluções criadoras. Esta verificação é importante na perspectiva de toda a concepção alargada do desenvolvimento. N a verdade, é impossível orientarmo-nos para as políticas inovadoras indispensáveis neste fim de século sem ter e m conta o que este processo exigirá das mulheres, que constituem a maior parte da população adulta do m u n d o e m desenvolvimento e que foram sempre mantidas à margem desse desenvolvimento. A sua condição constitui simultaneamente u m a justificação e u m catalizador da transformação, pois algumas das provas mais flagrantes da incapacidade dos modelos ocidentais para resolver os problemas humanos 2

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dos anos sessenta e setenta dizem respeito às mulheres: este facto basta, só por si, para justificar u m a reavaliação e u m a reorientação destes modelos. Todos sabemos que muitas hipóteses de base emitidas pelos peritos do desenvolvimento marcaram a sua posição no que respeita às mulheres, pois as estereotipias de ocupações femininas e m que se baseavam não tinham, muitas vezes, qualquer relação c o m a realidade. A tendência para subestimar a contribuição real das mulheres para a economia nacional e m tão elevado número de países conduziu ao menosprezo das suas possibilidades de participação n u m a economia m o derna e, por conseguinte, poucos instrumentos do desenvolvimento foram orientados para elas. Este estado de coisas teve c o m o consequência, e m particular, o enfraquecimento da tese optimista do «carácter inevitável do progresso» que tinha sido amplamente espalhada entre os planificadores dos anos cinquenta. Foi o contrário que sucedeu c o m as mulheres, das quais a maior parte desempenha u m papel menos importante na economia actual do que nos sistemas económicos anteriores ao desenvolvimento. N a realidade, os projectos c o m u m forte coeficiente de capital, que vieram reforçar os programas de auto-assistência da América Latina e outras regiões e m desenvolvimento fizeram cair e m desuso as actividades femininas tradicionais sem oferecer às mulheres outras alternativas. O produto nacional bruto global de muitos destes países aumentou por vezes, é certo, m a s c o m prejuízo para importantes sectores da população, muito particularmente as mulheres. Actualmente, alguns dos indicadores mais graves de subdesenvolvimento e m matéria de educação, saúde e possibilidades económicas, aplicam-se principalmente às mulheres do m u n d o e m desenvolvimento. A incrível extensão dos fenómenos de mortalidade e de subnutrição infantil e m todo o Terceiro M u n d o diz-nos tanto sobre a condição das mulheres c o m o sobre a das crianças muito novas. A s mulheres representam a maior percentagem de analfabetos. A sua taxa de

A educação dos adultos, as mulheres e o desenvolvimento

desemprego de 23 ou 25 por cento encobre u m número ainda mais alarmante, ou seja, u m nível de desemprego feminino superior a 30 por cento, isto é, duas vezes mais elevado do que o do desemprego masculino. É ainda mais inquietante verificar que poucas estratégias do desenvolvimento, à escala nacional ou internacional, se aperceberam verdadeiramente do que representa este problema especificamente feminino no fenómeno do subdesenvolvimento. Talvez seja exacto afirm a r que este problema é compreendido no plano teórico, m a s esta tomada de consciência demora a traduzir-se e m factos. E falta ainda integrar a condição feminina e m toda a análise e avaliação das políticas do desenvolvimento. Até m e s m o a Organização das Nações Unidas, que contribuiu, mais do que qualquer outra, para revelar ao m u n d o a extensão inquietante do subdesenvolvimento das mulheres, só agora começa a tê-lo e m conta de maneira explícita no exame das estratégias internacionais do desenvolvimento. N o entanto, toda a concepção alargada do desenvolvimento e m que critérios qualitativos venham substituir os critérios quantitativos pressupõe, c o m o é evidente, que as mulheres lhe estejam associadas. É manifesto que as mulheres podem participar de m o d o activo no desenvolvimento, e m particular no domínio da educação dos adultos, e m que as mulheres representam u m a forte proporção tanto dos professores c o m o dos alunos — na região das Caraíbas

a maior parte dos educadores de adultos são mulheres. É , contudo, necessário demonstrá-lo mais u m a vez. E , neste contexto, merecem ser assinaladas manifestações recentes e significativas do papel que as mulheres desempen h a m na dinâmica do progresso nacional. N o s últimos vinte anos o m u n d o tem sido testemunha da notável mobilização de importantes contingentes de mulheres para os movimentos de libertação da África, da Ásia e da América Latina, e m particular do Vietnam, de Cuba, de Angola, de Moçambique e da Guiné-Bissau. Nestas guerras populares, e m que ninguém pode ser civil, as mulheres, compreendendo perfeitamente quais as forças políticas que estavam e m jogo, assumiram funções estratégicas nos domínios da educação, da comunicação e da informação e participaram na luta activa; familiarizaram-se rapidamente c o m algumas das novas técnicas indispensáveis a u m a vitória do povo e transmitiram-nas à medida que as iam adquirindo. Além disso, tiveram ocasião de alargar os seus horizontes de mulheres. Vieram, assim, reforçar os recursos disponíveis para esta tarefa difícil m a s excitante que representam não só a libertação c o m o a reconstrução nacionais. A mobilização deste dinamismo que possuem as mulheres no estado latente poderia abrir vastas possibilidades de acção, na perspectiva de u m alargamento dos conceitos e objectivos do desenvolvimento e certamente também da educação dos adultos.

2

35

Yusuf O . Kassam

Escolar, extra-escolar e justiça social

A natureza

A maior parte das noções e das práticas dominantes do ensino, e m geral, e as formas institucionais deste ensino, e m particular, são objecto de críticas cada vez mais vivas tanto nos países industrializados c o m o nos países e m desenvolvimento. O s ataques contra o ensino de tipo clássico assumem várias dimensões: na opinião dos seus adversários, a escola dispensa aos jovens conhecimentos e m grande parte inúteis e inadaptados às necessidades; favorece o espírito de rivalidade e prejudica a cooperação: conduz muitas pessoas a pôr no m e s m o plano educação e escolaridade; destrói o desejo de aprender das crianças e aliena-as da sociedade; está isolada da comunidade; sufoca a criatividade e o desenvolvimento do espírito de curiosidade: impõe muitos exames, etc. Estas críticas, cuja lista não está, de m o d o nenhum, completa, dizem essencialmente respeito aos aspectos pedagógicos do ensino escolar. M a s , entre as críticas formuladas, as que são, de longe, mais graves e mais importantes, referem-se aos papéis interdependentes que a escola desempenha ao perpetuar u m a hierarquia de poder e de privilégio na sociedade, mantendo a supremacia da élite dominante, estimulando a estratificação das classes e impondo u m a discriminação que contraria

as classes operárias e desfavorecidas, etc. N ã o há dúvidas de que o ensino de tipo clássico funciona c o m o u m instrumento muito elaborado que permite rejeitar a justiça social e perpetuar as desigualdades n o seio da sociedade. Talvez seja conveniente fazer u m a breve análise da natureza e da extensão das desigualdades sociais que resultam d o ensino escolar, afimde ver c o m o e e m que medida u m sistema de ensino de tipo não clássico, aplicado paralelamente a transformações igualitárias globais da sociedade, pode contribuir para assegurar a justiça social ou, por outras palavras, para remediar a diferenciação social criada pelo ensino escolar. Carnoy rejeita a interpretação «colonizada» e falaciosa do papel da escola, segundo a qual «nas sociedades e m que reina a injustiça, a iniquidade e o marasmo económico, a escola forneceu e continua a fornecer ao indivíduo e à colectividade o meio de se libertar». D e acordo c o m esta interpretação, o ensino de tipo clássico compensa as desigualdades e as insuficiências sociais, colocando, por meio de u m a selecção objectiva, os indivíduos inteligentes nos postos elevados da hierarquia social, política e económica 1 . Para analisar o papel da escola c o m o distribuidor dos papéis sociais, é necessário compreender os factores que determinam o acesso ao sistema hierárquico do ensino clássico e que influem sobre os resultados e o sucesso obtido e m seguida n o seio deste

Yusuf O. Kassam (República Unida de Tanzânia). Professor; Departamento da educação dos adultos da Universidade de Dar es Salaam.

1.

do ensino escolar

236

Martin C A R N O Y , Education as cultural imperialism, p . 2 e 3, N e w York, David M c K a y C°, Inc.; 1974.

Escolar, extra-escolar e justiça social

m e s m o sistema. N o s países e m que o ensino elementar é gratuito e aberto a todos toda a gente tem as mesmas possibilidades de lhe ter acesso. N o s outros países, assistimos ao aparecimento de u m a estrutura de disparidades b e m definida. E , quando passamos aos ensinos secundário e superior — quer o ensino elementar seja, ou não, aberto a todos e gratuito — torna-se evidente que as possibilidades não são as mesmas para todos. É evidente, além disso, que o acesso ao sistema de ensino pós-primário e os resultados que nele são obtidos pela criança, são, e m grande parte, função da classe social a que ela pertence. É assim que as crianças das classes operárias e desfavorecidas —devido a factores tais c o m o o meio geralmente pobre e m que vivem, o estatuto profissional e o nível de instrução pouco elevado dos pais, a m á alimentação e a insuficiência de cuidados sanitários, a ausência de livros de leitura e m casa— se encontram já e m desvantagem à partida e não obtêm, por conseguinte, bons resultados na escola. Assim, as crianças que conseguem aceder ao ensino superior pertencem às classes privilegiadas, e c o m o o ensino superior é a chave de u m rendimento elevado, do poder e dos privilégios, o sistema no seu conjunto reforça o statu quo das desigualdades sociais, económicas e políticas. Acontece, porém, que u m a ínfima proporção dos desfavorecidos consegue passar através da «peneira». Citando de novo Carnoy: «... nas sociedades capitalistas, a escola permite efectivamente que u m a pequena percentagem do proletariado urbano e u m a fracção ainda mais reduzida do proletariado rural melhore a sua condição; pode também suscitar a discordância e o aparecimento de u m pensamento original, capaz de constituir u m a força intelectual importante a favor de u m a reforma da sociedade. N o entanto, não se trata do objecto principal n e m das características funcionais dos sistemas escolares; trata-se de subprodutos da escola...»1. Diversos eufemismos — c o m o as capacidades intelectuais e as foram utilizados para dissimular selecção social profundamente

o mérito, aptidões — o papel de injusta da

escola. A medida das aptidões e da inteligência foi institucionalizada sob a forma de exames que se apresentam ostensivamente c o m o fazendo parte do processo de democratização e de justiça social. Ora, o conteúdo dos exames (e dos testes de determinação do quociente intelectual) está adaptado às norm a s e aos valores das classes já privilegiadas. N a maior parte dos países e m desenvolvimento de África, da Ásia e da América Latina, o papel do ensino escolar e m relação à justiça social assume u m a importância ainda mais determinante. N u m a situação caracterizada pela pobreza, por u m a taxa de analfabetismo elevada, pela ausência de u m ensino primário universal e por possibilidades muito limitadas e m matéria de ensino secundário e superior, a minoria que consegue «vencer» graças ao ensino de tipo clássico constitui u m a élite muito reduzida e muito privilegiada cujos rendimentos profissionais são várias vezes superiores ao rendimento por habitante do país. Por outras palavras, cava-se u m imenso fosso educativo e económico entre u m a pequena élite afortunada e a grande massa da população que praticamente não beneficiou das possibilidades do sistema escolar. Entretanto, outra disparidade surge entre as regiões urbanas relativamente privilegiadas e as regiões rurais e m que vive a maior parte da população. E m b o r a muitos dos países que acabam de aceder à independência tenham tentado instaurar u m a melhor justiça social e económica, « u m enorme fosso separa frequentemente a ideologia igualitária da dura realidade» 2.J Ninguém duvida de que, depois do acesso à independência, os países do Terceiro M u n d o desenvolveram o ensino de tipo escolar de u m a maneira impressionante, no que diz respeito tanto aos efectivos c o m o às possibilidades de acesso. N o entanto, muitos sinais mostram que a elevação da taxa média de escolarização não é sinónimo de melhor igual1.

Martin C A R N O Y , op. cit., p. 13.

2.

Philip FOSTER, «Access to schooling», e m D o n

Adams (dir. publ.), Education in national development, p. 13, London, Routledge and Regan Paul, 1971. 237

Yusuf O . Kassam

dade de oportunidades. Foi assim que Foster, baseando-se no estudo de u m certo número de países asiáticos e ao Sul do Sara concluiu que u m alargamento quantitativo espectacular das possibilidades de acesso à educação não conduz «a nenhuma modificação sensível da distribuição relativa das oportunidades entre os grupos regionais ou étnicos ou entre as categorias socioeconómicas das populações nacionais1. N u m outro estudo recente sobre u m grande número de países da Europa Ocidental, os Estados Unidos e alguns países africanos, A . Le Gall rejeita «a ideia demasiado simples de que a democratização dos ensinos secundário e superior está assegurada desde que se abram as portas ao maior número possível de alunos2.» Muitas críticas preconizaram a reforma radical do sistema escolar, enquanto outras propuseram a abolição completa deste sistema e o recurso a «soluções de substituição». Porém, torna-se cada vez mais evidente que o ensino não pode conduzir a nenhuma transformação a favor da justiça social se a sociedade n o seu conjunto se caracterizar essencialmente por u m a organização desigual e injusta das relações sociais na produção e n o poder político. C o m o afirmaram Chañan e Gilchrist, «a escola não é a origem dos males sociais, n e m o reflexofieldos males que decorrem da sociedade n o seu conjunto3.» Por conseguinte, é imperioso modificar a estrutura socioeconómica da sociedade antes de empreender a reforma do seu sistema educativo. Carnoy defende que «a solução de substituição não é a 'escola aberta' c o m o propôs Silbermann, n e m métodos de ensino ou programas que apresentem, de m o d o mais eficaz, conhecimentos colonizadores. Estas reformas são concebidas para acentuar a legitimação de u m a estrutura social piramidal e das relações hierárquicas na produção. O novo tipo de ensino deveria, pelo contrário, procurar criar ou reforçar u m a sociedade não hierárquica, na qual a propriedade não conferiria direitos sobre as pessoas e na qual — teoricamente — ninguém teria o direito de dominar o vizinho. N ã o seria u m a sociedade 'igualitária', no sentido de semelhança entre todos os m e m b r o s ; 238

as pessoas exerceriam actividades diferentes, m a s estas actividades não lhes confeririam poder sobre a vida do outro. Cada u m agiria por conta do outro, e m virtude de u m acordo comum4.» Que pode fazer

o ensino extra-escolar? E m substituição d o ensino escolar, propôs-se muitas vezes o ensino de tipo não clássico c o m o u m meio de atingir u m a maior justiça social. N o m o m e n t o e m que muitos países e m desenvolvimento estão seriamente empenhados nessa luta longa e difícil que pretende transformar o tipo de sociedade forjada pelos colonizadores e destruir os mitos sociais e económicos herdados da dominação imperialista ocidental, parece-nos útil examinar c o m o , e e m que medida, o ensino extra-escolar pode remediar a injustiça social que é perpetuada pelo ensino de tipo clássico. A E D U C A Ç Ã O D E MASSA N o s países e m desenvolvimento, e m que o ensino escolar serve u m a ínfima fracção da população, o reforço massivo do ensino extra-escolar pode oferecer toda u m a série de possibilidades a u m número muito maior de pessoas e contribuir, assim, para tapar o fosso que separa a massa da élite. O primeiro objectivo do ensino estra-escolar consiste e m «oferecer à massa dos agricultores, dos operários e dos pequenos empresários, assim c o m o àqueles que nunca entraram n u m a sala de aula — e que talvez nunca cheguem a entrar — u m a quantidade de técnicas e de conhecimentos úteis que poderão aplicar sem demora

1. Ibid., p. 22. 2.

A . L E G A L L , «Differentiation et démocratisation

au second degré et dans l'enseignement supérieur», em: A . L E G A L L e outros, Problèmes actuels de la

démocratisation des enseignements secondaire supérieur, p. 21, Paris, Unesco, 1973. 3.

G . C H A Ñ A N e L . GILCHRIST

What school is for,

p. 13, London Methuen and C°, Ltd., 1974. 4.

Martin C A R N O Y , op. cit., p. 366.

Escolar, extra-escolar e justiça social

ao seu próprio desenvolvimento e ao da sua nação 1 .» E m seguida, o ensino extra-escolar pode assegurar a educação permanente e substituir a escola ao fornecer a todos aqueles que terminam o ensino primário ou secundário, assim c o m o aos que abandonaram a escola a meio dos estudos, u m a formação que lhes permita encontrar u m emprego produtivo ou que os ajude a encontrar u m a actividade profissional independente. Finalmente, o ensino extra-escolar pode contribuir para aumentar as aptidões e a competência daqueles que já possuem u m emprego 2 . C o m o já foi dito, o ensino extra-escolar deveria destinar-se e m primeiro lugar à grande maioria daqueles que praticamente não beneficiaram do ensino escolar. Além disso, c o m o vimos no caso do ensino de tipo escolar, não é o desenvolvimento quantitativo global do ensino extra-escolar que pode necessariamente repartir mais equitativamente as oportunidades de acesso à educação. C o m o se afirm o u na III Conferência Internacional sobre a Educação dos Adultos (Tóquio, 1972), o aumento do número de participantes nos programas de educação de adultos «não conduz necessariamente à democratização, apesar de se ter reconhecido plenamente que a d e m o cratização se encontra favorecida pela difusão das técnicas de base, incluindo a alfabetização. O s que beneficiam da extensão da educação dos adultos são, muitas vezes, já privilegiados: aos que já têm alguma coisa, dá-se mais. E m muitos países, recusa-se o acesso à educação a grande número de adultos, ou, então, estes não utilizam as possibilidades que lhes são oferecidas. Assim, u m a extensão puramente quantitativa pode acentuar ainda, e não reduzir, as desigualdades sociais3.» E m vez de oferecer u m tipo de ensino «extra-muros» que, e m geral, só é dispensado nas zonas urbanas e se destina aos que já frequentaram a escola, deveria dar-se prioridade a u m a «educação de massa» concebida para melhorar as condições de vida da maioria da população. O s programas de educação de massa prevêem geralmente a alfabetização ou a alfabetização funcional, que permite que o indivíduo se liberte da explo-

ração, da manipulação e das outras injustiças sociais. Quando as pessoas não parecem nada interessadas nas possibilidades educativas que lhes são oferecidas, deveria competir ao ensino extra-escolar e à educação dos adultos e m penhá-las naquilo que Paulo Freire designa por «tomada de consciência crítica da sua realidade», e, para retomar a expressão de Nyerere, «sacudi-las para que não aceitem resignadamente o género de vida que conheceram durante séculos4». E m outros casos, quando todo u m conjunto de factores imped e m o operário, por exemplo, de utilizar as possibilidades que lhe são oferecidas e m matéria de educação, deveriam tomar-se medidas regulamentares, c o m o foi feito na República Unida da Tanzânia, para lhe permitir dedicar, no quadro do seu horário de trabalho, u m certo número de horas à sua educação. AS DISPARIDADES C I D A D E - C A M P O A s profundas disparidades de toda a espécie que existem entre a cidade e o c a m p o devem-se, e m grande parte, à natureza do ensino escolar e à estrutura do emprego. A o fazer incidir o essencial dos programas sobre a massa da população rural, o ensino extra-escolar contribui para atenuar estas profundas disparidades. A o ter e m vista o desenvolvimento rural, o ensino extra-escolar não deveria limitar-se à alfabetização e ao ensino profissional, agrícola ou outro. N o interesse da justiça social, a educação, o melhoramento da habitação, de saúde, da nutrição, da assistência infantil, da economia doméstica, assim 1. Philips H . C O O M B S , The World educational crisis,

p. 138, (A crise mundial da educação), N e w York Oxford, University Press 1968. 2.

Ver também James R . SHEFFIELD e Victor P. D I E -

J O M A O H Non-formal education in African development, N e w York African-American Institute, 1972. 3. U N E S C O Rapportfinalde III' Conférence international sur l'éducation des adultes, p. 13, Paris, UNESCO, 1972. 4. Julius K . N Y E R E R E ,

«Adult education year»,

Freedom and development, Dar es Salaam, Oxford University Press, 1973.

239

Yusuf O . Kassam

c o m o de outros domínios conexos que p o d e m contribuir imediatamente, e praticamente, para a elevação do nível de vida das populações rurais, devem fazer parte de todo o programa do ensino extra-escolar. O EMPREGO E O DIPLOMA

Todas estas tentativas que pretendem assegurar u m a maior justiça social através do reforço e da diversificação do ensino extra-escolar p o d e m ser frustrantes para o beneficiário quando se trata de obter u m emprego remunerado, pois os critérios e m matéria assentam principalmente nos títulos que sancionam os estudos de tipo clássico. Enquanto se atribuir esta importância ao diploma, o ensino extra-escolar não poderá igualar sensivelmente as oportunidades de acesso ao emprego. Além do mais, c o m o mostraram certos estudos, embora seja certo que aqueles que efectuarem estudos superiores p o d e m obter empregos melhor remunerados, os resultados profissionais e a produtividade não são necessariamente função do tipo mais ou menos clássico dos estudos seguidos1. Para certas qualificações exigidas pela indústria, a formação durante o tempo de emprego, por exemplo, é, no conjunto, muito mais eficaz e conduz a melhores resultados e a u m a maior produtividade. A SUPRESSÃO D O CARÁCTER HIERÁRQUICO D O ENSINO ESCOLAR

A o m e s m o tempo que se torna necessário reforçar o prestígio do ensino extra-escolar e reorientar, c o m o consequência, os critérios do emprego, urge modificar o carácter hierárquico e piramidal do ensino escolar. U m dos meios de impedir que o sistema escolar perpetue as desigualdades sociais consiste e m eliminar a sua estrutura hierárquica suprimindo a passagem «automática» de u m nível dado ao nível imediatamente superior. N a República Unida da Tanzânia, por exemplo, os diplomados d o ensino secundário já não acedem directamente à Universidade2: devem, 240

primeiramente, trabalhar durante u m certo número de anos, dar provas da sua competência n o trabalho e de outras aptidões e obter recomendações dos empresários e das secções do T A N U para que o seu pedido de admissão na Universidade seja tomado e m consideração. Trata-se de u m a reforma revolucionária que constitui u m a medida salutar tendente a reduzir a importância atribuída aos diplomas do ensino de tipo clássico. Por outras palavras, o facto de ser bem sucedido e m exames que sancionam estudos de tipo clássico já não é considerado o único critério de selecção para ingresso no ensino superior. A PARTICIPAÇÃO DA P O P U L A Ç Ã O N O PROCESSO EDUCATIVO

O ensino de tipo não clássico pode promover a justiça social ainda e m outros aspectos. O ensino escolar caracteriza-se geralmente pela sua rigidez no que respeita aos programas, aos métodos, à duração dos estudos e à sua distribuição no tempo, assim como por u m m o d o de aprendizagem essencialmente académico. Facto igualmente característico, os alunos não p o d e m ter qualquer actuação sobre o tipo de ensino que lhes é dispensado ou sobre a sua organização. O ensino extra-escolar, que é, e m princípio, mais diversificado e que deve adaptar-se c o m maleabilidade às necessidades, tal c o m o são determinadas pelos próprios interessados, pode, portanto, contribuir para assegurar u m a maior justiça social. O s alunos dos programas de ensino extra-escolar participam relativamente mais nas tomadas de decisão respeitantes ao processo educativo. Este processo está ligado ao princípio mais geral que consiste e m assegurar a justiça social atribuindo à população o poder de decidir dos problemas que lhe 1. 2.

Ver de Ivar B O R G , Education and jobs: The great training robbery, N e w York, Praeger, 1970. Esta medida foi tomada numa das resoluções, mais conhecidas pelo nome de «Resoluções de Musoma», que o Comité executivo nacional do T A N U adoptou em Musoma (República Unida da Tanzânia), em Novembro de 1974.

Escolar, extra-escolar e justiça social

dizem respeito; sob este aspecto, na óptica da análise histórica do colonialismo e do capitalismo, os principios directores enunciados pelo T A N U estipulam que «para aqueles que sofreram a sujeição e a opressão, a exploração e a humilhação do colonialismo e do capitalismo, 'desenvolvimento' é sinónimo de 'libertação'. Tudo o que lhes proporcione meios de desempenhar u m maior papel na tomada de decisões que os atinjam directamente e no m o d o de orientar a sua existencia, é u m acto de desenvolvimento, m e s m o quando não lhes assegura melhor saúde ou melhor alimentação1.» AS ESCOLAS PRIMARIAS, CENTROS D E E D U C A Ç Ã O D O S A D U L T O S

Para assegurar o melhor possível a justiça social, podemos também integrar, de u m a certa maneira e n u m a certa medida, o ensino extra-escolar no ensino escolar. Assim, os imensos recursos — professores, material educativo, equipamentos e locais — que são normalmente atribuídos ao ensino escolar e m benefício da minoria, podem também ser utilizados para permitir que as massas tirem proveito das possibilidades de ensino extraescolar. Para tal, é possível — foi o que sucedeu na República Unida da Tanzânia — fazer que todas as escolas primárias sejam simultaneamente centros de educação de adultos. « O princípio geral consiste e m fazer da escola primária o principal centro responsável pela organização da educação dos adultos. A escola tornar-se-á, então, u m centro educativo comunitário, e m que o ensino primário representa apenas u m a das funções. Assim concebida, a escola será cada vez mais u m centro de convergência para o conjunto das necessidades educativas da comunidade, e deixará de ser essa instituição, de certo m o d o isolada, destinada à educação das crianças2.» O director da escola primária está encarregado do conjunto das actividades do centro e m matéria de educação dos adultos: deve determinar as necessidades da colectividade, recrutar monitores competentes dirigindo-se aos diversos organismos que se

ocupam da educação dos adultos, assim c o m o pessoas competentes e b e m informadas que habitem na região e organizar os cursos necessários. Além disso, o ensino dos adultos e das outras pessoas que não frequentam a escola faz actualmente parte integrante das atribuições do professor. Para permitir que a escola primária leve a b o m termo os programas de educação dos adultos, concede-se-lhe u m pequeno subsídio suplementar para equipamento e material, m a s espera-se primeiramente que utilize ao máximo os recursos de que já dispõe. Para preparar os professores para esta nova tarefa, todos os estabelecimentos de ensino pedagógico do país inscreveram nos seus programas cursos sobre a metodologia da educação dos adultos. O u antes, todos os futuros professores são actualmente preparados para ensinar crianças e adultos, e os estágios práticos dão-lhes a possibilidade de se familiarizar tanto c o m o ensino primário c o m o c o m a educação de adultos.

os CENTROS D E E D U C A Ç Ã O COMUNITÁRIA

N a República Unida da Tanzânia, a utilização das escolas primárias c o m o centros de educação dos adultos venceu u m a nova etapa c o m a criação daquilo que designaremos por «centros de educação comunitária». Segundo o plano estabelecido pelo governo, trata-se de integrar o ensino escolar e o ensino extra-escolar, por u m lado, e de integrar mais estreitamente a escola primária na comunidade, por outro lado. Este novo plano inspira-se na experiência de aldeia de Ujamaa de Kwamsisi, na região de Tanga, onde u m projecto piloto consistindo na integração das actividades da escola primária nas da

1. T A N U , TANU guidelines 1971, Dar es Salaam, Government Printer, 1971. 2. United Republic of Tanzania, Tanzania second five year plan for economic and social development (1969-1974;, vol. ï, pp. 157 e 158, Dar es Salaam, Government Printer, 1969.

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Yusuf O . Kassam

aldeia forneceu resultados animadores. E m Kwamsisi, o ensino de tipo tradicional e académico é substituído por u m a preparação prática e pertinente para a vida da aldeia. O s próprios alunos são associados à preparação e à execução das actividades de auto-assistência da aldeia, e os camponeses, que seguem na escola primária diversos cursos que lhe são especialmente destinados, podem igualmente formular a sua opinião sobre o conteúdo do ensino dispensado aos filhos. N u m a primeira fase, prevê-se a construção de 32 centros de educação comunitária das aldeias Ujamaa e e m quatro regiões diferentes. Dois destes centros estão a ser terminados no distrito de D o d o m a . Além das sete classes do primário, o centro de educação comunitária contém igualmente oficinas de marcenaria, de pedreiro, de canalizador, latoaria e artesanato. T a m b é m se dispensa formação e m agricultura, indústria familiar, pequena indústria e economia doméstica. U m dispensário, u m centro de assistência infantil, u m a biblioteca e u m recinto para projecção defilmese outras actividades culturais farão parte integrante do centro de educação comunitária. O s diversos serviços educativos e outros serviços sociais serão postos à disposição dos alunos inscritos na escola primária, dos adolescentes e dos adultos de toda a comunidade. O abastecimento dos serviços educativos será feito c o m u m a grande maleabilidade, de m o d o a enfrentar as necessidades e os problemas particulares de cada aldeia.

ORGANISMOS DE COORDENAÇÃO E m muitos países, o ensino extra-escolar comporta toda u m a série de programas diferentes a cargo de u m a gama muito diversificada de organismos e instituições —governamentais e não governamentais— e de organismos voluntários. Para aumentar ao máximo o seu impacto e a sua eficácia e m matéria de educação de massa, é necessário criar u m a espécie de estrutura para mobilizar e coordenar os seus esforços e os seus recur242

sos. N a República Unida da Tanzânia foi criado, para este efeito, u m conjunto complexo de comités a todos os níveis administrativos dependente do Ministério da Educação Nacional. A nível nacional, o Comité nacional para a educação dos adultos, que é u m subcomité do Conselho nacional consultivo sobre a educação, inclui membros dos seguintes organismos : T A N U , N U T A (União nacional dos operários do Tanganica); U W T (Organização das mulheres da Tanzânia); T A P A (Associação dos pais do Tanganica); T Y L (Liga dos jovens do T A N U ) ; C U T (União cooperativa do Tanganica); Instituto da educação dos adultos assim c o m o outros ministérios e organizações que se ocupam da educação dos adultos, e organismos voluntários. O s comités que se ocupam da educação dos adultos à escala da região, do distrito e da circunscrição, são subcomités dos comités de desenvolvimento às escalas correspondentes. O comité regional para a educação dos adultos tem por presidente o secretário regional do T A N U , e por secretário o coordenador regional para a educação dos adultos. O comité é composto por altos funcionários dos principais ministérios que se ocupam da educação dos adultos — agricultura, saúde, cooperativas, etc. — de representantes da U W T , da N U T A , da T A P A , assim como das associações de missionários e de outras associações voluntárias. T a m b é m o Comité de distrito para a educação dos adultos tem como presidente o secretário de distrito do T A N U , e como secretário o responsável pela educação dos adultos no distrito. O comité para a educação dos adultos à escala da circunscrição, que é presidido pelo presidente da secção do T A N U , reúne os directores dos estabelecimentos de ensino escolar das escolas primárias, das escolas secundárias, dos centros de ensino pedagógico, etc., assim como os directores das outras instituições que porventura existam na circunscrição, como os campos de serviço nacional, as prisões, as fábricas, etc. Finalmente, todas as escolas, colégios e outros estabelecimentos devem ter os seus próprios comités de educação dos adultos até ao nível dos comités de classe.

V. S. Mathur

Educação dos trabalhadores e organizações populares rurais

Para avaliar correctamente o lugar que a educação dos trabalhadores, e m particular, e o ensino e m geral ocupam no desenvolvimento rural dos países e m desenvolvimento, é necessário ter e m conta o contexto socioeconómico rural, assim c o m o os objectivos a atingir, e admitir a necessidade de estimular a criação de estabelecimentos e de organismos que este desenvolvimento exige. É , portanto, essencial examinar a acção já empreendida no domínio do desenvolvimento económico e avaliar os resultados obtidos, a fim de distinguir os problemas que constituem u m obstáculo ao progresso, ou até m e s m o de sugerir possíveis orientações. O s educadores poderiam, assim, esclarecer-se sobre o papel que o ensino é capaz de desempenhar no desenvolvimento. E m todos os países e m desenvolvimento, a imensa maioria dos trabalhadores vive e trabalha no campo e é o campo que fornece a maior parte dos recursos nacionais, de tal m o d o que toda a reforma económica operada neste sector terá necessariamente u m a considerável incidência sobre a evolução económica e social do conjunto do país.

V. S. Mathur (índia). Secretário regional asiático da Confederação internacional dos sindicatos livres.

Miséria e desenvolvimento dos meios rurais

Qual é a situação económica e social nos países e m desenvolvimento? A miséria e as extremas carências e m que a maior parte do proletariado rural e do proletariado urbano vive e trabalha são demasiado conhecidas para que se torne necessário evocá-las. N ã o há certamente nada de mais surpreendente do que os gráficos dos organismos das Nações Unidas respeitantes à miséria, ao desemprego, ao subemprego, à subalimentação, às elevadas taxas de doença e mortalidade, ao analbafetismo, à mediocridade do habitat e do ambiente, para só citar alguns. A despeito dos sérios esforços que os governos têm feito nos dois últimos decénios para incentivar o desenvolvimento económico e social e apesar da prioridade que concedem actualmente à difusão do ensino, os resultados obtidos estão longe de ser satisfatórios. O s dirigentes do m u n d o inteiro têm sublinhado que a paz e a estabilidade internacionais dependem da justiça social e que, se ignorarmos os imperativos da nossa época e continuarmos a tolerar e a favorecer a injustiça, pagaremos muito caro esta ignorância sob a forma de estagnação económica e social e de instabilidade política. D e qualquer m o d o , ainda não conseguimos, até agora, resolver estes problemas. Mais u m a vez se verifica que urge proceder a u m reexame profundo das políticas económicas, sociais e educativas.

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O s países e m desenvolvimento, embora difir a m uns dos outros sob muitos aspectos, apresentam vários traços comuns. E m geral, a miséria e o desemprego são mais agudos no campo. D e m o d o quase permanente, os desempregados desamparados afluem do campo às cidades, onde acentuam a miséria e o desemprego e agravam ainda mais as condições sociais já lamentáveis. Parece haver u m a ligação não só entre a miséria e o desemprego, c o m o também entre as suas manifestações nas cidades e nos campos, pois o êxodo rural complica ainda mais os problemas urbanos. É , portanto, evidente que, para obter resultados tangíveis deveremos começar por concentrar os nossos esforços sobre os problem a s da miséria e do desemprego nos meios rurais. A imensa maioria dos habitantes do campo trabalha na agricultura, nas agro-indústrias de transformação ou outras, ou no comércio ligado à agricultura. A lentidão dos progressos realizados no sector agrícola pode atribuir-se a u m regime rural retrógrado e a técnicas ultrapassadas, embora, ultimamente, os governos se tenham mostrado muito activos sob este aspecto. C o m efeito, assistimos a u m a vaga de reformas agrárias nos diferentes países do m u n d o e m desenvolvimento. Quanto à tecnologia, melhoramentos sensíveis deram origem à revolução verde —justamente assim qualificada — que abre imensas perspectivas. N o entanto, apesar do caminho percorrido nestes dois domínios que são a reforma agrária e a tecnologia, a situação do proletariado rural não melhorou de m o d o nenhum. Quanto ao progresso das técnicas agrícolas, podemos afirmar que esta revolução verde tornou possíveis três fenómenos apreciáveis: o aumento, muito necessário, da produção agrícola e das ofertas de emprego nas zonas rurais e u m a repartição mais equitativa dos rendimentos. Porém, ainda nada de substancial foi realizado na matéria. A revolução verde (melhoramento das variedades de sementes, melhor utilização de adubos e outros factores de produção, desenvolvimento da irrigação e culturas mais inten244

sivas) contribuiu certamente para aumentar a produção agrícola, m a s os recursos da técnica ainda não foram todos explorados. O s peritos pretendem que a tecnologia é neutra, m a s estes métodos, tal c o m o os créditos, são acessíveis sobretudo aos agricultores ricos. Sendo assim, a disparidade dos rendimentos acentuou-se, o que agravou a condição do proletariado rural. C o m o os agricultores abastados têm sempre tendência para aumentar as suas explorações, utilizando, para as cultivar, máquinas e utensílios aperfeiçoados, as possibilidades de emprego no campo diminuíram mais ainda. O s esforços feitos para transformar a estrutura económica e social, nas zonas rurais, unicamente através da legislação, não obtiveram u m sucesso total. Além disso, existe menos interesse pelo simples desenvolvimento económico e mais pela transformação social que, e m especial, tem por corolário u m a maior participação do povo no desenvolvimento económico e social. Trata-se de u m motivo de regozijo mas não nos devemos deter nesta via sem ter e m conta as incidências lógicas que esta transformação pode ter: para que a participação seja efectiva, realista e construtiva, deve passar pelo canal das organizações populares. E , mais u m a vez, se pretendemos assegurar ao povo u m a parte justa das vantagens do crescimento, necessitamos de u m mecanismo que permita fazê-lo. A era tecnológica moderna pretende que os sindicatos e as organizações populares sejam os únicos instrumentos eficazes de u m a justiça distributiva. Foi precisamente nesta óptica que a Organização regional asiática da Confederação internacional dos sindicatos livres decidiu favorecer a criação de organismos para o proletariado rural. N o quadro do projecto aplicado e m Khazipur, e m Uttar Pradesh, na índia, foi criada u m a organização popular rural que tem essencialmente dois objectivos: fazer pressão e desenvolver. C o m efeito, por u m lado, esta organização procura exercer as pressões necessárias para fazer adoptar reformas agrárias e outras medidas socioeconómicas progressistas, procurando, e m se-

Educação dos trabalhadores e organizações populares rurais

guida, que elas sejam efectivamente aplicadas e, por outro lado, desempenha u m papel muito activo e m matéria de desenvolvimento cooperativo e fornece, assim, instrumentos de produção agrícola, meios de irrigação ou outros serviços secundários a pequenos agricultores marginais para melhorar a eficácia e a produtividade da agricultura. A organização ocupa-se igualmente da criação de empregos para as pessoas desprovidas de terras, de fornecer u m a formação aos artífices, de lhes proporcionar matérias-primas e de lhes oferecer outras formas de auxílio que os colocarão e m condições de exercer, de m o d o rentável, os respectivos ofícios. Além disso, encarrega-se de u m certo número de actividades económicas tendentes a melhorar os magros recursos das famílias rurais desfavorecidas por meio de projectos de criação de gado ou de aves de capoeira ou ainda da produção de leite. M a s , e m qualquer dos casos, trata-se sobretudo de ajudar as populações pobres das regiões rurais a avaliar melhor os seus problemas e as medidas a tomar para os resolver e também de lhes ensinar a defender e fazer valer os seus interesses unindo os seus esforços. É necessário que possam reencontrar a confiança e m si próprias e acreditar na virtude de u m a acção c o m u m para introduzir as modificações desejáveis para a vida rural. O factor essencial, n u m empreendimento deste tipo, é, portanto, a educação sob as suas diferentes form a s , consistindo o objectivo pretendido e m preparar o proletariado rural para realizar as transformações sociais desejadas — tarefa que está muito longe de ser fácil.

Educação dos trabalhadores

A educação dos trabalhadores adquire u m sentido diferente segundo os países. N a A m é rica do Norte é quase sinónimo de formação sindical: na Europa, parece ter u m sentido mais amplo e incluir ainda a educação geral dos trabalhadores adultos, assim c o m o a formação profissional. Contudo, salientam-se

sempre os problemas dos trabalhadores e as instituições mais importantes sob este aspecto são muitas vezes as organizações de trabalhadores ou as que foram criadas por sua iniciativa o u c o m a sua colaboração. É evidente que participar n o funcionamento de u m a organização é já u m a forma de educação. Além disso, a organização de trabalhadores que, mais do que qualquer outra, compreende as necessidades dos seus membros e goza da sua confiança, está muitas vezes mais instrumentada para lhes organizar programas de estudos. N o entanto, as suas actividades são muitas vezes refreadas pela falta de recursos, sobretudo financeiros. Pode ser extremamente útil coordenar as acções desenvolvidas e m matéria de educação pelas organizações populares rurais e pela colectividade. São três os principais aspectos da educação que interessam à organização. C o m o é evidente, esta ocupa-se da educação geral dos seus membros que é assegurada, no essencial, pelos estabelecimentos encarregados da educação dos adultos. Compete-lhe ainda, muitas vezes, ajudar os seus aderentes a enriquecer os conhecimentos de que necessitam para exercer as responsabilidades e a profissão correspondente aos seus objectivos e à sua função económica. Finalmente, a organização deve, por u m lado, ajudar os seus membros a compreender melhor os seus objectivos e o seu papel e, por outro lado, guindá-los à altura de participar eficazmente no seu funcionamento aos diferentes níveis hierárquicos. São as organizações interessadas que p o d e m preparar melhor os seus membros para dirigir os sindicatos e as organizações de trabalhadores rurais e participar de maneira consciente e reflectida no seu funcionamento, m a s há lugar, no entanto, para u m a ampla colaboração c o m outros organismos e m matéria de educação geral dos adultos e de formação profissional. Por exemplo, as escolas rurais p o d e m ser utilmente requisitadas. Torna-se imediatamente rentável investir na educação geral dos adultos, pois esta determina u m a abordagem mais construtiva da produção e da produtividade e u m a participação profunda nos esforços de desenvolvimento; m a s

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é conveniente não esquecer a educação das crianças. E m todos os países se tem realizado urna obra apreciável e m matéria de cultura, de educação e de formação por ministérios diferentes do da educação, por exemplo o ministério da saúde ou da agricultura, sem esquecer a rádio, a televisão e os outros meios de informação. Se todos os recursos consagrados à educação, à informação e à cultura fossem reunidos e as actividades abrangidas por estes domínios fossem eficazmente coordenadas e integradas, poder-se-ia, talvez, fazer muito mais e obter resultados nitidamente melhores. C o m o as organizações populares têm u m papel capital a desempenhar na evolução económica e social, é necessário tê-lo plenamente e m conta e m tudo o que se relaciona c o m a educação. D e facto, a educação deve conduzir o h o m e m a dotar-se de bons instrumentos de progresso e de transformação, É necessário associar mais estreitamente o indivíduo ao processo de formação para facilitar a aprendizagem dos adultos e para favorecer o desenvolvimento da personalidade. É possível que todos os tipos de ensino — escolar, extra-escolar e não tradicional — devam ser utilizados de acordo c o m as necessidades; para os adultos, c o m o é evidente, insistir-se-á na formação extra-escolar e não tradicional. A estrutura da educação não pode ser tributária do tempo, n e m da idade, n e m

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do espaço, n e m de qualquer outra condição de admissão e, por conseguinte, o ensino deveria ser dispensado e m momentos propícios aos beneficiários que seriam livres de começar, de interromper e de retomar os cursos quando julgassem conveniente. A idade não deveria constituir u m obstáculo à formação; os adultos têm u m a experiência da vida que, e m certa medida, lhes permite compreender os problemas que lhes interessam a si próprios e à sociedade no seu conjunto. Importa oferecer-lhes a possibilidade de completar os seus conhecimentos sem exigir previamente a apresentação de u m diploma. É necessário avaliar melhor o papel que o ensino e, e m particular, a educação dos adultos p o d e m desempenhar nas transformações socioeconómicas dos países e m desenvolvimento. O que supõe que a educação deixe de ser u m a acumulação de conhecimentos passivos e prepare para a acção ajudando os seus beneficiários a dotar-se de meios suficientemente poderosos para proteger e defender os seus interesses e a participar de m o d o construtivo no desenvolvimento das respectivas sociedades. A s organizações populares rurais são indispensáveis se pretendemos que o desenvolvimento económico e a educação divulguem a esperança e o gosto do progresso nos campos contribuindo assim, eficazmente, para a construção de u m futuro melhor.

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Aprender a viver melhor

mente, o ensino magistral era a regra e resMas, o que é a educação dos adultos? É pondia às necessidades da maior parte das muito simplesmente aprender tudo o que nos sociedades. É evidente que ainda hoje aprenpossa ajudar a compreender o meio em que vivemos e o modo como podemos modificar e demos certamente mais, e m geral, e m família e no nosso ambiente imediato do que na utilizar este meio para o nosso bem-estar. A educação não se limita ao que se passa na sala escola. M a s n e m esta educação tradicional, extra-escolar, n e m a nova educação escolar de aula. nos proporcionam o que exigimos à educação : Julius Nyerere, 1969 os meios de nos adaptarmos a u m m u n d o e m mutação, aproveitando as suas vantagens e melhorando-o. Esta crise da educação A razão de ser do ensino à distância — utiestá na origem de muitos esforços tendentes lização conjunta de textos impressos, da a encontrar outros meios para além do ensino rádio e do ensino magistral— é evidente: magistral onde esbarramos c o m a penúria os que desejam beneficiar da educação são mundial de professores. A s tentativas efecmais numerosos do que todos aqueles que tuadas para resolver os problemas da eduos nossos professores esperam ensinar nas cação através da radiodifusão, desde Salvasalas de aula tradicionais. Se a educação é dor a Samoa, desde a índia ao Peru, enconnecessária ao desenvolvimento — c o m o sutram-se entre as mais importantes. M a s , cede — se os que desejam tanto a educação c o m o sublinhava u m estudo recente, «os c o m o o desenvolvimento são cada vez mais seus efeitos foram muito limitados e m relanumerosos — c o m o sucede— é necessário ção à extensão dos problemas enfrentados»1. que encontremos outros meios de ajudar as A radiodifusão apresenta a vantagem evipessoas a aprender. O ensino à distância é dente de poder penetrar verdadeiramente e m u m destes meios: pode melhorar a instrução toda a parte. Se dispusermos de receptores que as crianças recebem na aula. M a s desem(e se pudermos consertá-los quando se avapenha u m papel provavelmente mais imporriam), as emissões p o d e m ser ouvidas e m tante na educação dos adultos, e m particular qualquer aldeia de África. M a s é muito difícomo Nyerere aponta na citação apresencil aprender unicamente através da escuta de tada. emissões ou da leitura de textos impressos. Proponho-me examinar aqui os esforços Estamos, portanto, n u m impasse: não podedesenvolvidos para promover o desenvolvim o s ter professores e m todas as aldeias; mento ligando o ensino magistral à rádio e aos textos impressos. Tentarei resumir o que já foi realizado para orientar a acção futura 1. R . N W A N K W O I , «Educational uses of broadcase para salientar os problemas ainda não ting», e m : S. W . H E A D (dir. publ.), Broadcasting resolvidos. in Africa, p. 303, Philadelphia, Temple UniverÉ fácil expor o problema. Ainda recentesity Press, 1974. 247

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podemos ter rádio e textos impressos, m a s não é essa a melhor maneira de aprender sozinho. A solução consistirá e m combinar a radiodifusão e o estudo colectivo? Projectos executados e m África nos últimos dez anos provaram que se trata de u m a técnica importante, até m e s m o determinante, para a educação e o desenvolvimento dos adultos — falo sobretudo de África, pois a minha experiência e a do International Extension College provêm essencialmente desse continente, mas penso que se encontrariam exemplos comparáveis na Ásia ou na América Latina. O estudo colectivo proporciona aos indivíduos a possibilidade de participar no processo de ensino e na acção que daí decorre. Nyerere escreveu e m 1968: «Devemos fazer parte da sociedade que transformamos; devem o s trabalhar a partir do interior e m vez de descer do nosso pedestal, c o m o os antigos deuses, que faziam qualquer coisa e desapareciam. U m país, u m a aldeia, u m a comunidade não p o d e m ser desenvolvidos, p o d e m apenas desenvolver-se eles próprios... Se pretendemos promover u m desenvolvimento real, devemos procurar a participação da população. A s pessoas instruídas podem assumir o comando deste desenvolvimento — e devem fazê-lo. M a s só poderão transformar a sociedade se trabalharem a partir do interior1.» Muitos projectos radiofónicos fazem-nos pensar nesses deuses: vindos do éter, pretendem modificar a vida das aldeias sob o impulso da metrópole. M a s , se u m projecto de educação combinar o ensino à distância —utilizando a rádio e textos impressos— e a acção colectiva no seio da comunidade, permitirá integrar u m a informação útil da origem externa nas forças latentes da comunidade. Experimentaram-se várias fórmulas, que diferem pelo estilo das emissões e pelo tipo dos textos impressos. Pela minha parte, considero que o contacto directo c o m o professor é o elemento mais importante e mais difícil de introduzir c o m sucesso. C o m o é evidente, a elaboração dos cursos radiodifundidos e impressos não é fácil, m a s nada é mais delicado de manejar d o que o elemento h u m a n o . U m b o m grupo

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aprende o u realiza qualquer acção m e s m o quando falha u m a emissão, enquanto o melhor programa radiodifundido do m u n d o só é útil na medida e m que é ouvido e trabalhado. Estes projectos mistos repartem-se por quatro categorias: os grupos de estudo c o m o as tribunas radiofónicas rurais do G a n a ou os grupos criados por organismos c o m o o I N A D E S (Instituto Nacional Africano de Desenvolvimento Económico e Social) na África Ocidental, ou o Agriservice da Etiópia; os programas destinados a apoiar organismos sociais o u políticos existentes; as campanhas intensivas de curta duração, c o m o as que foram lançadas na República Unida da Tanzânia a partir de 1970; e os programas destinados a alargar a audiência da escola. Examinemos cada u m a destas categorias para, e m seguida, podermos tirar certas conclusões gerais. Grupos rurais 2

A ideia partiu do Canadá. Grupos de agricultores vítimas da depressão dos anos trinta formaram-se para seguir programas radiofónicos rurais e agir concertadamente após estes programas. Destas reuniões nasceu u m a acção cooperativa, especialmente e m matéria de comercialização. Esta ideia foi introduzida na índia, no G a n a e e m outros países, e as tribunas radiofónicas continuam a ser u m aspecto importante da educação rural nos diversos países de África. Consagram-se emissões radiofónicas ao melhoramento da agricultura o u da comercialização; são escutadas por grupos de agricultores que estudam e m conjunto a maneira de tirar partido do que aprenderam, aplicando o que decidirem. O I N A D E S , cuja sede é e m Abidjan, adoptou u m a abordagem u m pouco diferente. Apresenta u m número limitado de emissões, 1.

2.

J. K . N Y E R E R E , Freedom and development, p . 25,

Dar es Salaam, Oxford University Press, 1973. T . D O D D S , Multi-media approcaches to rural education, Cambridge, International Extension College, 1972.

Aprender a viver melhor

preferindo fornecer cursos de agricultura impressos, concebidos para o estudo colectivo. «Estes cursos apresentam-se sob a forma de u m a série de brochuras, contendo cada u m a delas matéria de três ou quatro lições. São explicados de maneira simples e directa» c o m a ajuda de u m vocabulário que não ultrapassa 600 palavras1, sendo os termos técnicos definidos por palavras deste vocabulário de base. Para o estudo destes cursos, o I N A D E S estimula a formação de grupos, se possível na base de unidades sociais existentes — aldeias, famílias ou grupos etários. Desde o início que os grupos são acompanhados por u m agente de divulgação, que trabalha c o m eles servindo-se do material disponível para explorar colectivamente u m terreno. Está prevista a informação retroactiva: os grupos de agricultores completam e m conjunto u m questionário à medida que avançam no estudo de u m a brochura e enviam-no para a sede do I N A D E S onde as respostas são examinadas e comentadas. Assim, as tribunas radiofónicas rurais e os grupos do I N A D E S salientam a discussão e a acção colectivas, estimuladas pelo material recebido do exterior. O s grupos devem ser estáveis e, embora se possam apoiar e m instituições sociais existentes, são criados, e m geral, tendo e m vista o ensino rural. Auxílio às instituições existentes

T a m b é m podemos utilizar os métodos de ensino à distância para ajudar as instituições existentes. Assim, no Botswana, o ministério e m causa pediu que o Botswana Extension College elaborasse u m programa destinado aos comités de desenvolvimento das aldeias; n u m país tão grande c o m o o Botswana não teria sido possível reunir todos os membros destes comités para que seguissem u m a formação e, assim, os métodos de ensino à distância pareceram particularmente apropriados. O programa destinava-se a fornecer informações mais completas sobre o papel dos comités, as suas relações com a colectividade e c o m os poderes públicos e o seu campo de acção (um capítulo do manual preparado pelo College para os comités intitula-se « C o m o

obter fundos»). O s meios utilizados compunham-se de u m manual, de u m a série de emissões radiodifundidas e de «notas» destinadas aos membros dos comités reunidos para ouvir as emissões. Estas deveriam seguir-se de u m a discussão susceptível de permitir u m a actuação mais eficaz dos comités. Neste caso, utilizaram-se a rádio e os textos impressos para apoiar o trabalho de organizações políticas já existentes. A estrutura dos comités forneceu u m modelo para o estudo e a acção colectivas. Se este modelo fosse permanente, o programa estender-se-ia por u m período limitado : a experiência aproximar-se-ia, então, mais das campanhas tanzanianas do que dos grupos rurais acima descritos. Campanhas de estudo E m 1970, a República Unida da Tanzânia lançou u m a campanha nacional de educação dos adultos sobre os objectivos e o desenvolvimento das eleições, utilizando para este efeito u m a série de emissões radiofónicas, textos impressos e grupos de escuta organizados. Três anos depois, «foi lançada u m a campanha muito mais importante de escuta colectiva sob o n o m e de Mtu ni Afya (literalmente «o h o m e m é a saúde»). Abrangeu cerca de dois milhões de cidadãos. Pela primeira vez, não se tratava de u m a campanha de informação cívica ou económica: tinha por tema a educação sanitária. Está confirm a d o que ela incidiu espectacularmente sobre certos hábitos sanitários de u m grande número de pessoas2.» O programa previsto para u m período limitado visava a formação de 75 000 animadores e deveria permitir não só aumentar os conhecimentos sobre a saúde, c o m o ainda melhorar as práticas sanitárias: nas duas primeiras semanas, realizaram-se 1200 acções colectivas contra o paludismo e, depois da campanha, foi assinalada a construção de centenas de milhares de latrinas. 1. 2.

Ibid., p . 22. B . L . H A L L e T . D O D D S , Voices for developmen : the Tanzania national radio study campaigns, p . 9, Cambridge International Extension College, 1974.

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O método da campanha de escuta radiofónica — de grande envergadura, intensiva, na qual participam muitos organismos públicos diferentes e que mobiliza a atenção da população para u m único problema durante u m tempo limitado— também foi adoptada no Botswana. Organizada pela universidade e m 1973, a campanha relativa ao plano de desenvolvimento nacional para 1973-1978 é actualmente seguida por u m a campanha sobre as pastagens tribais orientada por diversos organismos públicos. Trata-se de informar o público sobre as modificações introduzidas no regime rural tradicional e de dar a conhecer aos poderes públicos a maneira c o m o a nova política é acolhida e deve ser executada aos níveis local e nacional. A campanha tem u m duplo objectivo: conduzir a u m a acção ao nível local e permitir decisões políticas ao nível d o distrito e do país, tendo e m conta as reacções dos grupos de estudo. T a m b é m é considerada c o m o o ponto de partida para u m programa, de longo alcance desta vez, de educação rural sobre os temas da utilização e da beneficiação das terras.

A escola alargada

E m toda a África, são muitos os que desejam prosseguir os estudos para além do nível primário, m a s que não o p o d e m fazer: tentou-se, sob diversas formas e por diversas ocasiões, responder a esta aspiração. N a ilha Maurícia, o sector privado interveio e criaram-se «colégios cogumelos» e m toda a ilha, oferecendo possibilidades de educação — e m geral, m e díocres — paralelamente ao sistema nacional. A s «brigadas» do Botswana e as «escolas politécnicas camponesas» d o Quénia representam tentativas para dispensar u m ensino secundário de tipo diferente, correspondente às necessidades da sociedade. E m toda a África são muitos os que tentam efectuar estudos secundários por correspondência; m a s são muitas vezes enganados por directores de estabelecimentos comerciais sem escrúpulos. O s estabelecimentos públicos de ensino por correspondência multiplicam-se : 250

fornecem, de maneira mais ou menos correcta e honesta, meios de realizar estudos secundários. Foi assim que a organização de cursos por correspondência destinados àqueles que não p o d e m frequentar a escola constitui a principal actividade d o serviço dos cursos por correspondência d o Ministério da Educação da Zâmbia. Trata-se de u m a via difícil e solitária, e tentou-se, por vezes, a criação de centros de estudos ligados às escolas, afimde ajudar os que se instruem por correspondência. O ensino por correspondência e pela rádio continua a ser o elemento principal, mas os alunos podem receber conselhos, estímulos e ajuda e m caso de dificuldade de u m professor mais encarregado de os aconselhar do que de os ensinar. Criaram-se centros de estudo deste tipo no Botswana e na Suazilândia; os projectos tendentes a organizá-los no quadro de u m a operação mais ambiciosa, na ilha Maurícia, está unicamente à espera de financiamento. Esta fórmula parece muito modesta, sobretudo e m comparação c o m a extensão dos programas de educação pela rádio da República Unida da Tanzânia, por exemplo. M a s pode desempenhar u m papel mais importante do que parece, se considerarmos que permite que u m a escola se ocupe tanto das crianças não escolarizadas c o m o dos privilegiados que a frequentam; por outro lado, pode ser útil mostrar que grupos de alunos que recebem do exterior u m a grande parte da sua educação possam, no entanto, beneficiar dos recursos disponíveis n o seio da colectividade.

Que aprendemos?

Acabamos de passar rapidamente e m revista u m sector vasto e complexo da educação; trata-se de inserir n u m contexto apropriado o que aprendemos sobre o ensino directo nos projectos multi-media ou de ensino à distância, pois, c o m o mencionei, todas as espécies de projectos de educação, é possível formular certas conclusões gerais c o m o ponto de partida para outras experiências deste tipo. Referem-se, e m particular, aos quatro aspee.

Aprender a viver melhor

tos que se seguem: o diálogo, a informação retroactiva, o desenvolvimento e as modalidades práticas. Desde Sócrates a Freire todos os educadores têm pensado que o diálogo está no cerne da educação. E u m a das necessidades que enfrentamos é a necessidade de conciliar as economias de escala, que podemos obter por meio da produção centralizada do material pedagógico, c o m o diálogo, que é indispensável se pretendemos que a educação seja libertadora e não «bancária», como diz Freire: « N a concepção bancária da educação, o saber é u m d o m que aqueles que se consideram instruídos concedem àqueles que julgam ignorantes1.» Para que o desenvolvimento seja útil e eficaz, são necessários dois tipos de conhecimentos: os conhecimentos técnicos (melhores métodos de cultura, saúde, planeamento familiar, etc.) fornecidos pelos nossos tecnólogos e pelos nossos cientistas, e também o conhecimento das condições locais, dos homens de determinada região, que o c o m u m dos mortais possui. Os nossos problemas afectivos atingem u m a tal extensão que os nossos raros tecnólogos não p o d e m encarregar-se da educação no plano nacional. Quanto à tarefa que consiste e m adaptar as suas soluções a u m a situação dada, c o m todas as suas particularidades, deve ser da competência de todos os que vivem essa situação. É aqui que a abordagem do estudo colectivo adquire todo o seu sentido. Determinado serviço de u m ministério poderia muito simplesmente produzir programas radiofónicos o u brochuras, por exemplo, sobre os melhores métodos de cultura, e assegurar-lhes u m a ampla difusão. M a s este m o d o de agir impõe às aldeias u m a solução sem ter e m conta as diferenças locais e reduz os camponeses ao estado de objectos. Pelo contrário, se utilizarmos o m e s m o material c o m o ponto de partida para u m estudo colectivo, os que esperam tirar partido da informação p o d e m estudá-la, ver c o m o ela se aplica à sua situação e desempenhar u m papel activo no desenvolvimento que procuram. Além disso, o estudo colectivo parece constituir u m meio melhor de modificar as atitudes

— e não de aprender factos novos — do que o ensino didáctico2. E m todo o caso, abstraindo destas considerações morais e teóricas, é u m a fórmula mais eficaz. C o m o talvez prov e m as latrinas construídas n a República Unida da Tanzânia, e m 1973, após o Mtu ni Afya; de assinalar ainda que a eficácia dos comités de desenvolvimento de aldeia que, no Botswana, se seguiram ao nosso programa, tem aumentado e que a sua acção de desenvolvimento se intensifica. A combinação do ensino directo c o m material impresso e radiodifundido b e m concebido e cuja produção está centralizada permite difundir a informação mais rapidamente e mais amplamente (e provavelmente c o m m e nos despesa) do que unicamente através dos métodos tradicionais do ensino directo. O diálogo permite ainda ter e m conta conhecimentos locais e tornar o ensino mais eficaz. A informação retroactiva decorre naturalmente do diálogo. U m grupo de estudo e m que u m único m e m b r o seja alfabetizado pode fornecer esta informação retroactiva aos elaboradores do programa. A informação retroactiva exerce, pelo menos, três funções. E m primeiro lugar, permite que os grupos de estudo participem n o programa — por exemplo, os problemas apresentados por estes grupos p o d e m ser utilizados e m emissões radiodifundidas. E m segundo lugar, permite que os que planificam o programa o modifiq u e m durante a sua utilização ou prevejam a fase seguinte e m função das necessidades locais. Assim, n o Botswana, quisemos conhecer os tipos de projectos de desenvolvimento desejados pelas aldeias, a fim de conceber ulteriormente programas mais específicos correspondendo a estas necessidades. N a ilha Maurícia, a informação retroactiva respeitante a u m programa de planeamento familiar intitulado A minha vida amanhã forneceu dados susceptíveis de formar a base

1. P . FREIRE, Pedagogy of the oppressed, p. 58,

N e w York, Herder, 1972. 2.

E . M . ROGERS, F. L . SHOEMAKER;

Communica-

tion of innovations, pp. 288 e segs., N e w York, Free Press, 1971.

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Hilary Perraton

de u m a acção e m sectores inteiramente novos da educação relativa ao planeamento familiar. A informação retroactiva pode desempenhar u m papel mais modesto m a s igualmente essencial: permitir que os organizadores melhorem o que fazem. E m terceiro lugar, podemos utilizar a informação retroactiva para alterar as decisões e as acções políticas. Foi o que se passou nò Botswana depois do programa sobre as pastagens tribais. Por razões de ecologia, de economia e de justiça social, revelou-se necessário modificar o regime rural das terras tribais do Botswana—que representam m e tade da superfície total. A s terras, que sempre foram tratadas e exploradas colectivamente, dividir-se-ão, no futuro, e m três categorias: os terrenos comunais a explorar pela colectividade e onde não existirão domínios separados por vedações; as explorações comerciais que são objecto de u m contrato de arrendamento; e os terrenos reservados para u m a exploração ulterior. N o quadro do programa de informação do público que precede estas alterações, o governo do Botswana criou u m projecto de estudo colectivo cujos objectivos, definidos n u m documento oficial, são os seguintes: « . . . O programa de informação do público tem por objectivo principal dar a conhecer a política seguida. M a s tem ainda mais três objectivos : estimular a troca de opiniões entre o público, informar os conselhos rurais, os conselhos de distrito e o governo central sobre a maneira c o m o a população considera a aplicação da política local, e iniciar o longo processo que consiste e m ajudar os indivíduos a aprender c o m o p o d e m beneficiar da política seguida, por exemplo, formando grupos ou sindicatos de pequenos criadores de gado...» Depois de ter recolhido a opinião d o público, o governo tomará medidas para dar seguimento às opiniões expressas. Se necessário, reverá a política definida no presente documento e submeterá ao parlamento as modificações resultantes da consulta à população1. A informação retroactiva não serve, pois, 252

unicamente para guiar os educadores, orienta a política relativa a u m problema chave. A sua incidência será sentida a dois níveis: ao nível nacional, sobre o conjunto da política e, ao nível do distrito, sobre a repartição das terras entre as três categorias, e sobre as regras relativas ao regime rural. C o m o a execução do programa teve início e m Junho de 1976, é ainda demasiado cedo para avaliar a eficácia desta informação retroactiva política. M a s , u m programa piloto executado e m Dezembro de 1975 indicou que os grupos de estudo salientavam exactamente os sectores nevrálgicos nos quais se determinava o futuro da política adoptada e nos quais os poderes públicos não tinham ainda reconhecido a sua linha de conduta — as deslocações entre distritos, a repartição das forragens e a sua incidência quando os movimentos de gado foram mais limitados, as modalidades da criação de sindicatos de criadores de gado, etc. Assim, u m a das funções dos grupos de estudo n o ensino directo consiste e m fornecer u m a informação retroactiva; a experiência prova que este papel cria u m sentimento de utilidade nos participantes, permitindo que os educadores e os responsáveis políticos tenham conhecimento de dados muito importantes. Alterar a vida individual ou familiar é o objectivo da maior parte dos programas de educação e m causa. D e acordo c o m os resultados do I N A D E S , das tribunas radiofónicas rurais e das campanhas tanzanianas, as discussões de grupo conduzem a alterações práticas. M a s é ainda u m domínio delicado: devemos agora aprofundar os meios de transformar u m grupo de estudo colectivo n u m grupo que procura efectivamente melhorar o seu próprio ambiente: é o que passarei a examinar, determinando o que devemos ainda aprender. Descobrimos progressivamente, através da experiência, as modalidades práticas destes projectos. B e m entendido, é impossível enun1. Government paper n.° 2 of 1975, National policy on tribal grazing land, p . 18, Gaborone, G o vernment Printer, 1957.

Aprender a viver melhor

ciar regras gerais para a hora de difusão das emissões, o estilo do material pedagógico a empregar, a criação de grupos mistos ou não e muitos outros problemas que devem ser resolvidos e m cada caso particular. M a s a experiência mostra geralmente que a formação de animadores é u m elemento determinante que, e m muitos países, suscita talvez mais problemas do que na República Unida da Tanzânia, onde o professor da escola primária já é aceite como encarregado também da educação dos adultos. E m outros países, os animadores de grupos — e e m especial os professores— adaptaram-se dificilmente a u m papel onde não se trata de fornecer informações m a s de estimular a discussão. Mais u m a vez se podem aplicar as primeiras conclusões retiradas da experiência do Botswana: no programa piloto relativo às pastagens, que foi executado e m Dezembro de 1975, as animadoras obtiveram melhores resultados do que os animadores, as mães de família foram melhor sucedidas do que os professores, e os animadores recrutados após u m a reunião de aldeia (kgotla) realizaram melhor trabalho do que os que tinham sido nomeados por u m divulgador depois de u m a visita ao domicílio do candidato, ao seu local de trabalho, ao clube ou à organização a que pertencia1. Conclusão provisória, m a s que se impõe: é necessário recrutar e formar os animadores tendo rigorosamente e m conta os valores da sociedade e m que trabalham. N ã o basta que estes animadores saibam como dirigir u m grupo de adultos — embora se trate já de u m a tarefa considerável; devem também, idealmente, ser aceites c o m o animadores e inovadores pela sua própria sociedade. Podemos, portanto, elaborar agora, para os projectos de educação tridireccional, u m a primeira série de princípios decorrentes principalmente da prática e justificados pelo sucesso. Resumamo-los: O s projectos de ensino à distância que exigem o estudo colectivo são eficazes. O s projectos devem ser concebidos de tal m o d o que se instaure u m diálogo no seio dos grupos.

A informação retroactiva é u m elemento importante, que tem pelo menos três funções: obrigar o aluno a participar no projecto, instruir o educador a fim de aumentar a sua eficácia e fornecer u m a informação para as decisões políticas. O estudo colectivo deve ser concebido — pelo menos para a educação extra-escolar— de tal m o d o que o grupo passe do ensino à acção. É essencial escolher o animador adequado. O s animadores de grupo devem receber u m a formação; o seu papel é diferente do de u m professor do ensino primário tradicional.

Problemas

A experiência adquirida permite-nos determinar as principais dificuldades encontradas na execução de numerosos projectos e para os quais possuímos ainda poucas soluções eficazes. Enumero-as resumidamente, considerando que estão identificadas, embora não superadas. Programas longos ou curtos: pretendemos campanhas de curta duração, modeladas pelo grupo de escuta tanzaniano, ou programas de longo alcance, c o m as tribunas radiofónicas rurais? A resposta depende muitas vezes da natureza do programa de estudos. M a s , frequentemente, a análise dos objectivos do programa não indica qual é a melhor solução, n e m qual é a melhor combinação das duas fórmulas. É sempre difícil assegurar a informação retroactiva, particularmente quando se trata de u m a operação de grande envergadura. Se provém de u m grande número de grupos, o organismo responsável corre o risco de ficar submerso. U m a amostra seria suficiente? Para os educadores talvez, m a s não fornece a resposta individual que pode desejar u m grupo de estudo ou u m a aldeia. A acção deve acompanhar o ensino na 1.

Evaluation Unit Botswana Extension College, ínterim evaluation report to grazing committee, Gaborone, BEC, 1976.

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Hilary Perraton

maior parte dos casos. M a s , levar u m grupo de pessoas a ouvir rádio e m conjunto ou a estudar é muito diferente de empreender u m a acção perdurável. Para resolver problemas deste tipo, é necessário que nos preocupem o s mais c o m a natureza das organizações sociais — dos grupos de alunos e da sua situação — do que c o m a produção do material. É do lado dos alunos e não dos professores que se situam os problemas difíceis e importantes. O s centros de estudos por correspondência p o d e m parecer muito longe dos grupos de estudo colectivo sobre os quais nos debruçám o s ; na realidade, são os mesmos indivíduos que são abrangidos. O especialista do desenvolvimento comunitário que trabalhou n o Botswana Extension College sobre o programa de desenvolvimento das aldeias verificou que, nas reuniões de aldeia, não cessava de responder a perguntas sobre os programas de exames. Existem dois problemas: e m primeiro lugar, poderão estes grupos ser igualmente ligados, de u m a o u outra maneira à educação extra-escolar? E m segundo lugar, poderemos fazer alguma coisa c o m ofimde assegurar que estes centros sejam mais do que escolas de terceira categoria para aqueles que não têm a sorte de aceder aos estabelecimentos de primeira (ou de segunda) categoria? O s agentes de divulgação desempenham e m muitos projectos de educação extra-escolar u m papel importante m a s que entra, por vezes, e m conflito c o m as suas atribuições tradicionais. O agente de divulgação agrícola surge muitas vezes c o m o detentor da chave dos problemas agrícolas. M a s , quando novas informações chegam por outros meios — textos impressos e rádio — o seu papel de informador ou de guia apaga-se e m proveito de u m a função de animador. Esta evolução, que pode ser desejável, é ainda difícil para o agente de divulgação. A s estruturas sociais existentes, institucionais ou não, são, e m geral, mais importantes para a população do que os grupos de estudo ou as tribunas radiofónicas rurais. Q u e eu saiba, ainda ninguém encontrou m a -

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neira de incorporar u m sistema de ensino nestas estruturas, a fim de se adaptarem melhor ao ritmo e às necessidades da existência quotidiana. Finalmente, estas diversas fórmulas contribuem apenas c o m alguns elementos de resposta parcial aos grandes problemas de educação. Muitos educadores expõem demoradamente as insuficiências do ensino secundário tradicional, m a s é muito mais difícil saber o que o deve substituir ou completar, para responder simultaneamente às necessidades dos alunos que terminam nesta fase os seus estudos a tempo integral, às dos que os prosseguem ... e às das sociedade. Talvez se chegue a u m a solução parcial combinando judiciosamente o material pedagógico cuja produção está centralizada e o estudo colectivo. Talvez mais importante ainda é o facto de não nos encontrarmos — muito longe disso — no ponto e m que a maior parte dos indivíduos pode definir e exprimir as suas próprias necessidades de educação (nem m e s m o naquele e m que contribuir para este processo é considerado o papel central dos responsáveis pela educação dos adultos), actividade cuja necessidade Paulo Freire apontou e m D a r es Salaam 1 . T a m b é m neste caso, a solução parcial poderia consistir e m incorporar o ensino directo n u m sistema de ensino à distância e de informação retroactiva, para conhecer m e lhor as necessidades humanas fundamentais e m matéria de educação. São estes os dados do problema. É por tudo isto que a combinação dos diferentes media ao serviço do ensino pode constituir u m processo h u m a n o de contribuir para a educação e para o desenvolvimento. N u m m u n d o que carece de recursos educativos, ela pode ser de u m a importância capital se aliar a compreensão e o conhecimento que o h o m e m da rua tem da sua própria vida à informação que a tecnologia nos proporciona actualmente sobre as potencialidades humanas.

1. P. F R E I R E , «Research methods», Studies in adult

education, n.° 7, pp. 9 e segs., Dar es Salaam, Institute of Adult Education, 1973.

Gottfried Schneider

A educação dos adultos na República Democrática

Alemã

Formação contínua, estudos ininterruptos, educação permanente. Estas reivindicações, e outras do m e s m o género, são actualmente formuladas e m muitos países e e m muitas línguas. N ã o se trata de estribilhos deformados, correspondem a u m a necessidade urgente da nossa época. Necessitamos de u m a qualificação mais desenvolvida, de conhecimentos, de capacidades e de técnicas novas para resolver os problemas que actualmente surgem e m todas as esferas da vida social. O problema é o m e s m o , ou quase, e m muitos países, m a s a solução apresenta diferenças muito nítidas e depende do tipo de sociedade considerada. N a República Democrática Alemã, a educação dos adultos baseia-se na posição central que o h o m e m ocupa na sociedade socialista, e n o desenvolvimento contínuo das suas características, dos seus talentos, das suas aptidões e das suas qualidades morais. Sendo assim, importa atribuir cada vez mais responsabilidades aos indivíduos, fazendo c o m que participem mais activamente na administração e na organização do Estado, assim c o m o e m todos os processos sociais. O progresso técnico e científico está intimamente ligado à formação, à educação e ao desenvolvimento do h o m e m . N a República

Gottfried Schneider (Republica Democrática Alemã). Director adjunto do Instituto Central de Formação Profissional da República Democrática Alemã. Professor de pedagogia na Universidade técnica de Dresde.

Democrática Alemã, o seu papel transform a r e cada vez mais no problema central da revolução técnica e científica. Assim, a educação dos adultos procura formar espíritos socialistas possuidores de u m a educação universal. C o m o consequência, o objectivo e o conteúdo da educação dos adultos caracterizam-se pelos seguintes aspectos principais: Educação socialista muito completa e de nível elevado, baseada n u m sólido conhecimento do marxismo-leninismo, ensino da matemática moderna, das ciências naturais e das línguas; Formação profissional e técnica apoiada na ciência moderna; Desenvolvimento e consolidação constantes da consciência socialista1. A educação dos adultos na República D e mocrática Alemã está, portanto, de acordo c o m os objectivos fixados pela U N E S C O na III Conferência Internacional sobre a educação dos adultos, que se realizou e m Tóquio e m 1972 e onde se afirmou que a educação dos adultos «é u m instrumento de consciencialização, de transformação e de socialização... É o instrumento do desenvolvimento do h o m e m integral, total, considerado na globalidade das suas funções de trabalho e de lazer, na sua participação na vida cívica, na vida familiar, na vida cultural; é o reconhe1.

Ver «Grundsätze für die Aus-und Weiterbildung der Werktätigen», Aus der Tätigkeit der Volkskammer und ihrer Auschüsse, n.° 19, 1970, p . 58.

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Gottfried Shcneider

cimento e a descoberta das suas qualidades físicas, morais, intelectuais e espirituais». É por isso que, no quadro da educação dos adultos, toda a medida da qualificação se centra no conjunto da personalidade h u m a n a . Assim, a unidade do ensino geral e do ensino especializado, do ensino profissional técnico e da educação ideológica, e a interacção da teoria e da prática são princípios fundamentais de toda a medida da qualificação.

A educação dos adultos no sistema de ensino

N a República Democrática Alemã, a educação dos adultos faz parte integrante do sistema de ensino. Sob este aspecto, está perfeitamente de acordo c o m o princípio apresentado na II Conferência Internacional sobre a Educação dos Adultos, que se realizou e m Montreal e m 1970, e segundo o qual «a educação dos adultos faz parte integrante de todo o sistema nacional de educação, estando-lhe organicamente ligada». N o sistema de educação dos adultos, todos aqueles que já exercem u m a profissão, todos os trabalhadores, têm a possibilidade de melhorar os seus conhecimentos e as suas qualificações, no emprego ou durante o tempo livre. N a República Democrática Alemã, a educação dos adultos apresenta-se sob as seguintes formas 1 : Formação e aperfeiçoamento dos operários especializados, dos operários qualificados, dos chefes de equipa e dos contramestres2 nos locais ordenados para esse efeito pelas fábricas, cooperativas de produção agrícola o u explorações agrícolas reunidas; Consolidação e aprofundamento do ensino geral por meio de cursos nocturnos, e m clubes e e m centros culturais; Possibilidade de adquirir os títulos que conduzem a estudos universitários ou técnicos oferecida aos melhores operários qualificados, agricultores que trabalhem e m cooperativas, chefes de equipa e contramestres;

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os responsáveis pedagógicos das fábricas cooperam estreitamente neste domínio c o m os dos cursos nocturnos, das escolas profissionais, das universidades e dos estabelecimentos de ensino técnico; Difusão e divulgação das últimas descobertas no domínio das ciências sociais, naturais e tecnológicas, sobretudo por intermédio de organizações sociais (por exemplo, U R A N I A , Câmara de tecnologia, associações científicas); Formação complementar dos diplomados das escolas técnicas e das universidades, assim c o m o dos quadros subalternos nos locais especiais das fábricas, das academias do sector industrial, das escolas técnicas, das universidades e das escolas das organizações sociais; Formação complementar dos gestores e m institutos de gestão socialista da economia, das escolas de partido e de sindicatos; Possibilidade, para os professores e outras pessoas que trabalhem no domínio da educação dos adultos, de adquirir qualificações e m locais especiais das empresas e indústrias, nas escolas técnicas, escolares superiores e universidades. O s cidadãos da República Democrática Alemã tiram plenamente partido destas possibilidades. Cerca de 90 por cento dos diplomados pela universidade e escolas superiores, de 88 por cento dos diplomados pelas escolas técnicas, de quase 75 por cento dos contramestres e de 68 por cento dos operários qualificados que exercem u m ofício, adquiriram a sua formação no país depois de 1946. O sucesso do sistema integrado de educação socialista deve-se, e m grande parte, à educação dos adultos. Para nos convencermos, basta que tomemos conhecimento dos seguintes números: E m 1974, cerca de 800000 pessoas trabalhando na indústria, incluindo a construção civil, frequentaram cursos de preparação para u m diploma.

1. Ver o diagrama da pág. 258. 2. Vigilantes que receberam u m a formação especial.

L'éducation des adultes en République démocratique allemande

Educação dos adultos nos estabelecimentos de ensino

Universidade,

(Assistência

escola superior,

às aulas ou

Academias de operários de

escola técnica

curso por

fábrica.

superior

correspondência).

públicos e sociais

Academias de aldeia. Associações científicas (por exemplo U R A N I A

e a Câmara

de Tecnologia). Academia d o sector industrial. Institutos de gestão socialista da economia.

Escola de técnicos ou d e engenheiros

Cursos nocturnos. Academia da formação

(Assistência às

permanente.

aulas o u curso

Tele-ensino.

por

Academia dos pais.

correspondência)

S

•o 3

Academia das mulheres. Partidos e organizações sociais.

II) O

—. CA CP T> CD

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-o

O "O

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Formação profissional (em

Formação

geral 2 anos)

Formação profissional depois d o Abitur1 (3 anos)

w

_13 19. Estabelecimento de ensino

_I2

secundário complementar

11

(Abitur)

profissional

li 17

10 16

(3 anos)

Ji ! 13

~ñ 11 10 Estabelecimento secundário de ensino politécnico geral c o m 1 0 classes

Educação ^

Possibilidades de frequentar

r

estabelecimentos de educação permanente

pré-escolar

Infantil -*-

Passagem da vida profissional

1

4

T

Ingresso na vida profissional

à formação permanente

_6_

2 Creche

1

Titulo que proporciona o acesso à Universidade.

Fio. 1. Estrutura do sistema socialista integrado úe educação n a República Democrática Alemã.

^57 VII-7

258

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