Perspectivas vertiginosas. O primitivo de Lionello Venturi e o Renascimento Global

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Perspectivas vertiginosas - O primitivo de Liojello Venturi e o Renascimento Global - Fernanda Marinho

Perspectivas vertiginosas - O primitivo de Liojello Venturi e o Renascimento Global Fernanda Marinho

Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP

Resumo: À luz dos atuais debates relativos aos trânsitos das linguagens artísticas e trocas culturais na história da arte, têm-se considerado o Renascimento menos e transformações. A ideia corrente de Renascimento Global pretende ser aqui abordada então original proposta conferida em

publicada pela primeira vez em

1926. Numa Itália abalada pelo pós-guerra, a construção da arte nacional estabeleciase como um dos principais programas a serem combatidos pela militância antifascista, da qual Venturi fazia parte. É, portanto, a partir do prisma da expansão das fronteiras culturais que se pretende aqui a abordagem de seu livro. Palavras-chave: Global Abstract: Renaissance is thought more in respect of its external assimilations and transformations

, published in 1926. Moreover, after the First World War, the proposal of a nationalist art was one of the main target of anti-fascist criticism, contribution to the art history debate. Keywords: Art Historiography – Primitivism – Lionello Venturi – Global Renaissance

Em 1926 Lionello Venturi publicou

, um livro que defendia, grosso

cronologia evolutiva que os concebia em detrimento do aprimoramento da técnica clássica, Venturi apreende a espiritualidade primitiva como um estímulo à reformulação das diretrizes da crítica de arte. Propõe-se nesta comunicação uma breve análise de sua obra, relacionando-a com a corrente noção de Renascimento Global, considerando em ambas um similar aspecto 455

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vertiginoso oriundo da reordenação dos paradigmas artísticos em prol de um novo mapa cultural. O livro é dividido em duas partes: a primeira dedica-se à fundamentação teórica do que o autor entende por primitivo; e a segunda à análise da decadência do gosto primitivo na arte clássica e sua sobrevivência durante o Ottocento primitivismo não restrito a um determinado grupo de artistas ou a um período histórico, um primitivismo que não diz respeito apenas à arte medieval nem sequer a um juízo de valor pejorativo, mas a uma qualidade artística universal que pode ser encontrada da Antiguidade à arte contemporânea, que está menos atrelada às determinações culturais e mais a um caráter intrínseco da arte. Mais do que um estilo, mas uma unidade artística que não se mede com o controle técnico, nem com sua relação com a natureza. Trata-se de um gosto cultural, cuja presença ou ausência teria determinado as fortunas ou desfortunas da história da arte. Entre os antigos, Venturi indica o gosto primitivo na inspiração artística não delimitada à natureza, como a preferência de Sócrates pelas “representações dos estados de ânimo às representações das coisas físicas”, que enfatiza a primazia do ilusionismo psicológico ao ilusionismo físico, da representação da alma à representação da natureza. O caráter místico da arte, portanto, consiste na principal sensibilidade da crítica venturiana que encontra na estética medieval o seu embasamento. O autor enaltece, assim, a comunicação direta entre a obra medieval e o observador, dada através da perfeita combinação entre a individualidade do artista1 e a universalidade absoluta2 da sua linguagem. Mesmo se suas palavras adquirem por vezes a tonalidade da oratória religiosa ao tratar da inspiração divina como principal elevação artística, é importante considerarmos sensibilidade artística necessária à crítica de arte. Giulio Carlo Argan escreveu no Prefácio: “Parece que reabilitar o conceito de criação, incontestavelmente conectado à ideia de revelação e divino, fosse uma contradição a uma cultura que se pretendia laica. Mas é verdade o contrário, porque o propósito

de criação divina à ideia de criação humana, histórica”.3

A arte medieval, portanto, teria inaugurado, na concepção de Venturi, uma linguagem artística nova que, se desconectada do seu pressuposto religioso, alcançaria um nível universal. A partir do Trecento, o autor assinala o declínio desta universalidade devido ao 1

VENTURI, Lionello.

. Bologna: Zanichelli, 1926, pg. 64: “il suo valore soggettivo non fu più condizionato e

2

3 Prefazione della rivelazione e del divino, fosse in contraddizione con una cultura che si voleva laica. Ma era vero il contrario, perché il proposito

storica”.

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universal racionalmente demonstrável”.4 Tal conexão entre arte e ciência viria por estimular, consequentemente, uma percepção evolutiva e hierárquica da história da arte que concebia o tempo presente como superação das experiências passadas. Venturi relembra que para Boccaccio a arte de Giotto consistia de seu tempo quanto o seu patriotismo; que Petrarca encontrou em Simone Martini, seu contemporâneo, a perfeição divina da arte; que Filippo Villani, ao escrever a mais antiga vida dos pintores, destacou o papel da pintura italiana em detrimento ao da arte antiga e da ciência; que Cennino Cennini, no Libro dell’arte santos, mas também a Giotto; e que Leon Battista Alberti reivindicou a originalidade de sua um resultado de uma observação genial da realidade, mas é a consequência de premissas geométricas”,5 lamenta Venturi, sentindo o esmaecimento do gosto primitivo que em Leonardo da Vinci já não apresentaria mais nenhum vestígio: “Em tudo aquilo que ele exerceu como de Giotto”.6 Venturi, assim, lamentava os rumos da história da arte que teria substituído a inspiração divina pelo aprendizado da técnica, o misticismo pelo realismo, a representação da alma pelo estudo da perspectiva. O ápice de sua crítica, no entanto, é endereçada a Giorgio Vasari, condenando o seu amor desmedido a Michelangelo que o teria levado a subjugar toda a produção artística precedente como incubação da forma perfeita. Mesmo sem perceber que a sua adoração enaltecida aos primitivos possui similar intensidade da paixão de Vasari por Michelangelo, Venturi julga negativa a noção de perfeição absoluta promovida pelo renascentista e atribui ao legado vasariano dois principais prejuízos da crítica: “E, no entanto, depois de Vasari, os prejuízos da crítica de arte foram dois e não apenas um: o primeiro foi a natureza presa a um modelo, o segundo foi o modo com o qual a natureza foi racionalizada pelos antigos. Naturalismo e classicismo permaneceram desligados e confusos ao mesmo tempo: aspectos diversos de um mesmo erro”.7

4

5 VENTURI, Lionello. . Bologna: Zanichelli, 1926, pg. 92: “non è più il risultato di una osservazione geniale dela realtà, ma è la conseguenza di premesse geometriche”. 6

ma ci si alontanava sempre di più da Giotto”. 7

natura presa a modelo, il secondo fu il modo con cui la natura fu razionalizzata dagli antichi. Naturalismo e classicismo rimasero staccati e confusi nello stesso tempo: aspetti diversi di un medesimo errore”.

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dos seus “ilustríssimos” personagens. A narrativa histórica defendida por Venturi embasavase no gosto cultural e não nas escolhas individuais. Ao conceber a cultura mais a partir das suas permanências do que das suas rupturas, Venturi problematizava o Renascimento e o

“[...] abrir em direção ao Medievo para poder abrir ao extremo oposto, em direção ao moderno. Era necessária uma transformação metodológica, e esta consistia não mais em ajudar a história da arte com a história da crítica relativa, mas em assumir a história da crítica como o justo procedimento metodológico da história da arte que, portanto, não seria nada mais que a história da crítica de arte”.8

A “crítica relativa” que Argan opõe ao método de Venturi é, portanto, a escrita da história da arte limitada ao contexto de produção da obra, enquanto que a perspectiva venturiana do gosto sugere a ampliação da história da arte ao âmbito da cultura, considerando a obra de arte

do Tabernáculo de Linaiolli de Fra Angelico, conservada no Museo di San Marco de Florença:

cabelos, nos olhos, um pouco da luz do paraíso e que tenha concebido a vida como uma criança concebe

chiaroscuro e de relevo, e na proeminência dos joelhos, nas dobras em chiaroscuro, no relevo das carnes, 9

Adentremos, portanto, na sua vertigem nos remontando não tanto às suas críticas às consideradas desventuras da perspectiva classicista, mas principalmente à metodologia da sua perspectiva alternativa. Ao introduzir o conceito de gosto, como vimos, Venturi alargou artísticos a partir da ideia de contingência e elaborando uma história da arte mais relacionada Vinculado ao conceito de gosto, o conceito de primitivo deixava de ser apenas uma categoria artística, elevando-se à qualidade de uma categoria retórica. E assim, como o conceito de clássico se eternizou para além do contexto histórico antigo, elevando-se a uma qualidade estética, Venturi propõe o seu primitivismo enquanto a antítese clássica, cujos paradigmas são ulteriores à natureza e remontam a uma espiritualidade 8

Prefazione, Argan, p. XXV. “[...] aprire verso il Medioevo per potere aprire, allo estremo oposto, verso il moderno. Era necessaria una

9 VENTURI, Lionello. colori, nei lineamenti del volto, nei capelli, negli occhi, un poco della luce del paradiso, e abbia concepito la vita come un bambino concepisce appunto la felicita. Poi per ossequio alla sua imagine adorata ha voluto farla ricca, e vi ha aggiunto attorno e dietro

dedicata alla pietà religiosa”.

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artística ulterior à religião. O gosto primitivo tratar-se-ia, portanto, de uma sensibilidade artística

Compreenderemos melhor a vertigem de sua perspectiva se remontarmos ao contexto da escrita de seu livro. A Itália de então enfrentava um perigoso sentimento de nacionalismo oriundo das primeiras formulações do fascismo italiano, ainda revestidas pelo tom de recuperação da Primeira Guerra no clima de reestabelecimento do governo. O próprio Venturi, em 1925, um ano antes da publicação de

, havia aderido ao Manifesto degli intellettuali

del fascismo, atitude que atualmente consiste numa das principais ambiguidades em torno da negarem a assinatura ao

, perdendo a sua cátedra.10

Mas ainda antes da decisão de ruptura extrema, vale mencionarmos que em 1915, entre duas cátedras concedidas, uma em Turim e outra em Pisa, Venturi opta pela primeira. Tal decisão criticada por muitos de seus colegas, demonstrava uma Turim pouco promissora aos jovens em comparação à proximidade de Pisa com Florença e Roma, estas sim consideradas centros de produtividade. Vale recorremos a algumas cartas recentemente analisadas por Antonello Venturi guerra e la politica italiana, 1910-1932”. Roberto Longhi, por exemplo, em 1915, depois de abandonar Turim em direção a Roma, havia escrito a Lionello sobre a sua decisão:

estão os generais aposentados? Ainda não sentiu a tentação de preferir o Museu Zoológico à Pinacoteca? uma anta ao Ramsés do Museu Egípcio?”.11

A referência de Longhi a Gozzano, poeta turinense da corrente literária crepuscular e a importante museu egípcio da cidade, demonstram a sua opinião contrária à escolha de Venturi. No entanto, Venturi num texto daquele ano, demonstrava que a decisão por Turim consistia numa escolha que ia além da dinâmica interna italiana, pois almejava um mapeamento cultural é conhecido na Itália”, concluindo que “a cultura artística italiana, mesmo se muito melhor que há cerca vinte anos atrás, há um caráter de provincialismo que sugere admirar passivamente ou desprezar arrogantemente toda a produção estrangeira”.12 Numa outra carta, tal mapeamento

10

la politica italiana, 1910-1932” dedica-se à análise desta ambiguidade. 11

Roberto Longhi a Lionello Venturi. s.d mas fevereiro-março 1915. Archivio Lionello Venturi. “Ricordi Guido Gozzano? Ecco

tentazione di preferire il Museo Zoologico alla Pinacoteca? il tapiro al Ramesse del Museo Egizio?”. 12

L. Venturi,

venti anni or sono, ha un carattere di provincialità, che le suggerisce di ammirare supinamente o dispregiare boriosamente, a volta a volta, tutta la produzione straniera”.

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também acredito que a animada e povoada Turim possa ser um ambiente preferível à morta Pisa. Você estaria perto de Florença, mas assim estará perto de Paris, uma cidade viva de vida sempre nova e universal”.13 Vimos que primitivismo venturiano origina-se enquanto antítese ao legado vasariano do o naturalismo e do classicismo e aos debates oitocentistas em torno do classicismo e romantismo. No entanto, a chave de leitura da sua obra apresenta-se apenas nos Corolários necessários à renovação da crítica, existe um procedimento positivo: a promoção do impressionismo. O franco centrismo dava à sua obra o tom da abertura cultural almejada. Era necessária a sensibilização estética promovida pelos impressionistas franceses na reestruturação da história da arte italiana e na elaboração da sua modernidade. problematizava o passado italiano em prol do futuro europeu. Ao desassociar o primitivismo

passado viria por estimular a partir dessa nova leitura uma sensibilidade artística moderna. A relação entre os primitivos e os modernos apresentam-se mais estreitas quando associa, por exemplo, Giotto a Cezanne. “E nada melhor que o confronto de uma paisagem de Cézanne com uma paisagem de Giotto possa nos dar a exata impressão da comum tendência em determinar a construção das massas e o seu volume, em o efeito tridimensional por pura intuição sem seguir nenhuma regra de perspectiva. E pensar que até hoje uma rocha ou uma árvore de Giotto são considerados imperfeitos! ninguém depois de Giotto alcançou a sua perfeição sintética; e se depois dos erros do barroco, do neoclassicismo, do romantismo, um artista puro, Cézanne, reencontrou a via de Giotto, todos podem deduzir do confronto quanto caminhou Giotto e, por outro lado, quanto foi breve, sobretudo devido à miséria dos tempos, o passo de Cézanne”.14

No entanto, a relação do Impressionismo com a sua ideia de modernidade aparece ainda pouco evidenciado na publicação de 1926. Para melhor compreendermos tal relação devemos nos remontar a publicações posteriores, como

, de 1936,

e considerar todo o seu envolvimento cultural na cidade de Turim, como por exemplo, a sua estreita ligação com Riccardo Gualino e a formação do grupo Sei pittori di Torino. Por agora, basta assinalarmos como a modernização da cultura italiana almejada por Venturi partia

13

ambiente preferibile alla morta Pisa. Avresti vicina Firenze, ma così hai vicina Parigi, la città viva di vita sempre nuova e universale”. 14

VENTURI, Lionello.

. Bologna: Zanichelli, 1926, pg. 323 e 324: “E nulla meglio del confronto di un paesaggio

masse e il loro volume, a cercare il fenomeno sintetico senza nessuna preoccupazione della somiglianza con la natura, a ottenere Giotto sono considerati imperfetti! nessuno dopo Giotto è giunto alla sua perfezione sintética; e se dopo gli errori del barocco, del quanto cammino avesse compiuto Giotto e quanto breve sia stato invece, soprattutto per la miséria dei tempi, il passo di Cézanne”.

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Venturi a moderna capital da arte, a anti-Roma”.15 Tratava-se da renovação da própria história a partir de estímulos externos a ela. A universalidade e liberdade artísticas conferidas com Venturi. E o que seria, portanto, o que hoje estamos tratando por Renascimento Global, se não

e estranhas à própria cultura a possibilidade da reescrita e redescoberta da história. Neste contexto, vale lembrarmos também de alguns dos discípulos de Venturi, como Eugenio Battisti que propunha uma outra perspectiva da história da arte reconsiderando a cultura quinhentista a partir dos debates trazidos pela arte conceitual; ou mesmo Giulio Carlo Argan, que com o para Argan, antirrenascimento para Battisti, primitivo para Venturi. Chegamos portanto, a um ponto que parece termos de lidar com tais legados ao tratamos do Renascimento num âmbito global. A ampliação das fronteiras experimentadas a partir do início do século XX, oriunda das primeiras reações do pós-guerra, nos demanda reestabelecer um novo norte magnético à crítica artística.

politica italiana, 1910-1932”. Anais do congresso Giornata di studi Lionello Venturi a Torino (15 novembro 2012). Riccordo di Arnaldo Momigliano. Bologna: il Mulino, 1989. VENTURI, Lionello. . Bologna: Zanichelli, 1926. VENTURI, Lionello. . In: “Nuova antologia”, fasc. 1036, 16 marzo 1915.

15

Riccordo di Arnaldo Momigliano. Bologna: il Mulino, 1989, p. 13.

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