PERTO DO CORAÇÃO SELBAJE DA CRÍTICA FRONTERIZA

June 29, 2017 | Autor: Edgar Cézar Nolasco | Categoria: Estudos Fronteiriços
Share Embed


Descrição do Produto

Perto do coração selbaje da crítica fronteriza

Perto do coração selbaje da crítica fronteriza

EDGAR CÉZAR NOLASCO

Copyright © do autor Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida ou arquivada, desde que levados em conta os direitos do autor. _____________________________________________________________

Edgar Cézar Nolasco Perto do coração selbaje da crítica fronteriza. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013. 170 p. ISBN 978-85-7993-174-1 1. Pesquisa. 2. Colonialismo. 3. Teoria Pós-colonial. 4. Crítica fronteiriça. 5. Crítica biográfica. 6. Artes. 7. Autor. I. Título. CDD-410 _____________________________________________________________ Capa: Marcos Antônio Bessa-Oliveira

Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito & Valdemir Miotello Conselho Científico: Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Nair F. Gurgel do Amaral (UNIR/Brasil) Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil).

Pedro & João Editores Rua Tadão Kamikado, 296 Parque Belvedere www.pedroejoaoeditores.com.br 13568-878 – São Carlos – SP 2013

Para o Marcos, meu interlocutor de assuntos pós-coloniais.

O pensamento crítico de fronteira é a resposta epistémica do subalterno ao projeto eurocêntrico da modernidade. Ao invés de rejeitarem a modernidade para se recolherem num absolutismo fundamentalista, as epistemologias de fronteira subsumem/redefinem a retórica emancipatória da modernidade a partir das cosmologias e epistemologias do subalterno, localizadas no lado oprimido e explorado da diferença colonial, rumo a uma luta de libertação descolonial, em prol de um mundo capaz de superar a modernidade eurocentrada. Aquilo que o pensamento de fronteira produz é uma redefinição/subsunção da cidadania e da democracia, dos direitos humanos, da humanidade e das relações econômicas para lá das definições impostas pela modernidade europeia. O pensamento de fronteira não é um fundamentalismo antimoderno. É uma resposta transmoderna descolonial do subalterno perante a modernidade eurocêntrica. (Ramón Grosfoguel. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais, p. 480-481)

Sumário INTRODUÇÃO SELBAJE & FRONTERIZA 11 CAPÍTULO I CRÍTICA SUBALTERNISTA AO SUL 19 1 – Um lugar ao Sul 21 2 – Políticas da crítica 26

CAPÍTULO II CRÍTICA FORA DO EIXO: onde fica o resto do mundo? 41 1 – As vidas na fronteira 56

CAPÍTULO III PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM DA CRÍTICA FRONTERIZA 63 1- Entre bárbara e selvagem: a crítica fronteriza 69 2 – As incertezas das margens 74

CAPÍTULO IV PAISAGENS DA CRÍTICA PERIFÉRICA 85 1 – Paisagens periféricas 96

CAPÍTULO V A RAZÃO PÓS-SUBALTERNA DA CRÍTICA LATINA 109 1 – Hospitaleira, hospitalidade, hostilidade 120 2 – Paisagens borracheras e sensibilidades biográficas 126

CAPÍTULO VI MEMÓRIAS SUBALTERNAS LATINAS: ensaio biográfico 131 1 – A memória da fronteira 143

REFERÊNCIAS 161

9

INTRODUÇÃO SELBAJE & FRONTERIZA1 Pensamento descolonial significa também o fazer descolonial, já que a distinção moderna entre teoria e prática não se aplica quando você entra no campo do pensamento da fronteira e nos projetos descoloniais. (Walter Mignolo. Desobediência epistêmica, p. 290-291)

As palavras “selbaje” e “fronteriza” eu as colhi da fronteirasul, lugar onde o sol se põe por sobre a fronteira e que, a seu modo, me leva ao encontro de meu próprio bios familiar, histórico e cultural. Tais palavras, entre outras não entendidas por mim, foram pronunciadas por paraguaios, bolivianos, brasiguaios, “bugres”, indígenas, sul-mato-grossenses, pantaneiros, galponeiros e andariegos; mas também as sorvi das páginas poéticas de Diegues e de Serejo, além, claro, das páginas críticas de Mignolo e das páginas 1

O texto que resultou neste livro foi apresentado ao PROGRAMA AVANÇADO DE CULTURA CONTEMPORÂNEA (PACC/UFRJ) como RELATÓRIO FINAL do estágio de pós-doutoramento, vinculado ao projeto de pesquisa intitulado “Paisagens transculturais na fronteira sem lei (MS/PARAGUAI/BOLÍVIA)”, executado no ano letivo de 2012, sob a supervisão do Prof. Dr. Denílson Lopes. Agradeço aos professores Ilana Strozenberg, Liv Sovik e Heloisa Buarque de Hollanda, bem como aos professores visitantes, com quem tive a oportunidade de apresentar e debater minhas ideias acerca do projeto apresentado. Agradecimento especial vai para Rosângela Gomes, amiga indispensável do PACC.

poético-críticas de Anzaldúa, entre outros os quais aparecem mencionados ao longo do livro. Eu mesmo descobri, para minha surpresa, que tais palavras não me eram estranhas desde minha infância vivida na fronteira com o Paraguai, ali à beira do rio Dourados. Minha memória cultural está atravesada pelas conversas dos ervateiros e campeiros da região. De toda essa herança e errância cultural e histórica, sobrevive, em minhas sensibilidades biográficas, o canto melancólico do urutau como mimetizador de uma paisagem local que não se deixa emoldurar pelas palavras. A fronteira-sul de onde erijo meu discurso crítico, por simbolizar, ocidentalmente, o lugar em que o sol se põe, e metaforicamente espelhar a condição de crepúsculo oscilante sanguinolento, demanda a ascensão de uma epistemologia fronteriza específica que dê conta de refletir acerca desse lugar subalterno por excelência, rechaçando, por conseguinte, quaisquer discursos críticos de natureza dualista, acadêmica e disciplinar, isto é, modernos. Tal epistemologia outra labora a exumação das histórias, memórias e discursos subalternos, permitindo, por conseguinte, a ascensão dos restos2 por fora do discurso centralizador da crítica moderna que imperou nos trópicos com sua boa intenção messiânica e salvífica. Douglas Diegues, em Uma flor na solapa da miséria (2007), ao conceituar seu “portunhol salbaje” inconceituável, contorna parte da paisagem biográfica e do lugar geoistórico e territorial da fronteiraSul de onde erijo minha crítica, cuja proposta essencial visa correr por fora de uma repetição crítica moderna que, desde que fronteira aqui é fronteira, não fez e não faz outra coisa senão repetir a 2

Faço aqui uma alusão ao livro O mundo pós-americano, de Fareed Zakaria, apesar de não concordar plenamente com as ideias do autor. (Se quisermos entender o que significa a “ascensão do resto”, temos de compreender por quanto tempo esse resto ficou adormecido. A dominação intelectual e material do Ocidente não é nem recente nem um fenômeno efêmero. Vivemos num mundo ocidental há meio milênio. Apesar da ascensão de outras nações e continentes, as sombras do Ocidente se estenderão e seu legado se aprofundará por muitas décadas vindouras, talvez mais do que isso. (FAREED. O mundo pós-americano, p. 63)

12

exaustão uma prática teórico-crítica dos centros hegemônicos, tanto do país quanto eurocêntricos e norte-americanos nas mesmas proporções, que aqui soa (ou deveria) como caduca e fora do lugar. A Academia periférica, por excelência, é o arquivo guardião dessa sapientia moderna ultrapassada, hegemônica, acadêmica e disciplinar. De modo que articular, hoje, um discurso crítico fronterizo é, em sua essência, refletir contra o pseudodiscurso crítico propagado e defendido dentro dela. Em resumo, a Academia periférica, ressalvadas as diferenças, não sofre de um mal de arquivo radical. Logo, por fazer parte de uma Universidade que beira a zona de fronteira, busquei situar-me e pontuar o meu discurso crítico como forma de, assim, convocar o discurso acadêmico moderno para uma conversa crítica3 consciente de seu lugar de origem e situação geoistórico cultural. “U portunhol salbaje, afirma Diegues, es la língua falada em la frontera du Brasil com u Paraguai por la gente simples que increiblemente sobrevive de teimosia, brisa, amor al imposible, mandioca, vento y carne de vaca”. Se, por um lado, não faço parte dessa gente simples que incrivelmente vive de teimosia, por outro lado, tenho a consciência de que pelo fato de ter nascido na fronteira e ter vivido ali durante toda a infância ouvindo um entrecruzares de linguagens e de gentes saídas dos dois lados da fronteira, adestrei meu ouvido e procurei a sobrevida (Derrida) de uma consciência de um intelectual da fronteira que me permitisse aproximar (-me) mais de perto da “herida abierta” (Anzaldúa) do sujeito fronterizo e falar, não sobre ele, mas a partir dele. A teimosia crítica do intelectual fronterizo deve ser aquela de uma desobediência epistêmica constante. Apenas uma epistemologia salbaje e fronteriza tem o poder de rechaçar o discurso moderno colonial que avançou e se perpetuou, por meio da academia sobretudo, nos lugares subalternos, impondo, por conseguinte, sua lição castradora de Sistema Colonial Moderno que não fez outra coisa senão repetir um modelo de pensar, digamos “estético”, que chegou ao seu auge com 3

Conversa crítica aqui no sentido empregado por Walter Mignolo em Projetos globais/ histórias locais.

13

a globalização econômica do século XX e hoje entra em declínio (?) devido a insurgência de epistemologias outras que, sabiamente, não ignoram o passado histórico por saberem que outros passados foram previamente ignorados pela História Moderna do Ocidente. A cor sanguinolenta do crepúsculo oscilante, advinda da fronteira salbaje e fronteriza, metaforiza, de forma especular, a “ferida colonial” representada pelos sujeitos-fronteiras cuja vida sangra devido ao descaso do poder estatal, bem como por conta do poder do discurso hegemônico que, a revelia do bios do lugar, decide a melhor forma de compreendê-los e inseri-los na história. Em contrapartida, ou talvez por isso mesmo, a cor matizada do crepúsculo subalterno da fronteira proponha redesenhar, contornando na relação diferencial, as bordas imperiais dos valores modernos que migraram para a exterioridade visando reforçar sua interioridade. Erige-se, assim, uma poética transfronteriza, marcada por uma cultura salbaje que brota de todos os lados da fronteira, sobretudo de seu lado epistemológico. “El portunhol salbaje es uma música diferente, feita de ruídos, rimas nunca bistas, amor, água, sangue, árboles, piedras, sol, ventos, fuego, esperma”, conclui Diegues. Parece-me que somente uma crítica salbaje, assentada em uma epistemologia fronteriza, nos permite, por exemplo, ver a semelhança na diferença de “belleza salbaje bersus belleza civilizada/ belleza di dentro bersus belleza de fora” (Diegues), como forma de ver a “belleza invisible” que repousa do lado de fora do olhar imperial moderno cristalizado na cultura humana. Também o poeta Joca Reiners Terron, com o seu Transportuñol borracho, ajudou-me a pontuar o lugar impreciso e borracho que especifica a zona fronteriza de onde articulo meu discurso crítico. Entre bárbara e selbaje, a fronteira-sul borda suas linhas da ordem do real e do imaginário, pontilhando, ora do lado de dentro, ora do de fora, sua força e sua resistência, e sempre impondo, ao seu modo, seu discurso fronterizo como resultado possível de uma epistemologia gerada nessa zona que quase sempre beira o esquecimento por parte do saber moderno, acadêmico e disciplinar. Embarcando no contrabando liricotráfico poético de

14

Terron, se, por um lado, podemos nos perguntar “como saber adonde se ubica la frontera si non sei onde empieza el dia y si acaba el sueño?”, por outro lado, e tendo por base o lócus fronterizo Sul aqui priorizado, entendo que parecer ser mais fácil contornar as bordas limítrofes da fronteira em questão, do que se valer de sua epistemologia fronteriza para compreendê-la de-dentro de suas especificidades culturais. Tal epistemologia escapa à reflexão racional posta em prática pelo discurso acadêmico e disciplinar, assim como pelos discursos modernos vindos dos grandes centros do país e de fora. Sem querer fazer uma apologia rasteira do local, do periférico, do fronteiriço ou marginal, o fato é que essa zona borrachera produz modos de viver e de pensar específicos do lugar. Entre a fronteira, a poesia e o infinito, borda-se “esa broma que llamamos vida” de fronteira, cujo papel é transculturar, embriagada pela lucidez do abandono, o discurso colonial que teima em se agarrar a um corpo que o rechaça. Mantive o cuidado, por todo o livro, de não parecer que poderia estar reforçando uma certa dualidade, quando, na verdade, era ela que mais estava sendo discutida. Diferentemente de uma leitura crítica anticolonialista que não fez outra coisa senão reforçar o “sistema binário”, quando trabalhei a relação entre, por exemplo, centro x periferia, eixo x fora do eixo, civilizado x bárbaro, Norte x Sul, entre outras oposições, tomei-as não mais como “entidades”, mas como “divisão conceitual do mundo” (Mignolo), mesmo que a configuração do mundo tenha mudado sensivelmente. Para um discurso crítico que se situa nas fronteiras dos saberes críticos conceituais dos centros como o que postulo aqui, saber que tal articulação periférica deve passar por fora de qualquer dualidade crítica redutora é tão importante quanto reconhecer que o surgimento e a articulação de uma crítica pós-colonial na fronteira passa pelas “sensibilidades locales” (Mignolo) ou sensibilidades biográficas de todos os envolvidos na ação. Foi por priorizar isso que procurei agregar, ao recorte epistemológico pós-colonial, uma abordagem da crítica biográfica brasileira (Souza), bem como não descartar a importância de uma delimitação territorial: a fronteiraSul, de onde erijo meu discurso, tem de fazer toda a diferença na 15

articulação epistemológica defendida. Justifica-se, assim, uma certa repetição, por todo o livro, quando o assunto for sobre meu lócus de enunciação. Ressalvadas as diferenças, essa prioridade em torno de um lócus territorial e epistemológico ilustra o lugar que o Brasil ocupa dentro das discussões pós-coloniais feitas na América Latina, assim como o caminho, às vezes solitário, que a crítica brasileira tem de trilhar, mesmo com sua capacidade crítica ímpar de dialogar com as críticas vindas de fora. Foi no bojo dessa discussão que a teoria pós-ocidental de Walter Mignolo me ajudou a pensar a respeito de nossa crítica de fronteira. Se, por um lado, o Brasil, ou vem a reboque, ou fica de fora da discussão proposta pelo autor de Histórias locais/Projetos Globais, por outro lado, essa teoria crítica pós-ocidental me permitiu compreender melhor um certo subalternismo interno que teima em subsistir na crítica brasileira, assim como um colonialismo crítico forte entre a crítica brasileira e as de fora, como as pensadas em espanhol. Enfim, toda a discussão póscolonial, ou pós-ocidental, acerca da América Latina, serviu, em minha discussão, para refletir criticamente sobre uma epistemologia “fronteriza” que me desse uma compreensão mais de perto do lugar de onde vivo, trabalho e penso. Aqui não posso inserir uma perspectiva de uma crítica feita nos grandes centros do país, apesar de ser tentado a, assim como quero entender que tal perspectiva não pode ter a pretensão de que sua discussão alcance minha realidade outra, desse país que ainda se faz na bifurcação entre a cidade e o campo, o cerrado e o sertão, os centros e as fronteiras desconhecidas. Em parte por conta de sua vasta extensão territorial. Discuti sobre isso por todo o livro. Sinceramente, diferente do que pensam Castro-Gómez e outros, quando afirmam que as teorias pós-coloniais têm seu lugar “natural” na América Latina, não entendo que tais teorias tenham seu lugar “natural” no Brasil, precisamente porque, aqui, todas as demais teorias têm seu lugar natural exatamente por não o ter/ser. O que temos, na verdade, é uma prática “leviana” de transculturar teorias importadas com a mesma facilidade de também reproduzi-las a exaustão. É nesse sentido, crítico por excelência, que vejo que os estudos pós-ocidentais podem nos ajudar a pensar melhor as 16

questões internas da cultura e das produções culturais por fora de uma visada “estética”moderna que, apesar de tudo, ainda prepondera, grosso modo, nas leituras críticas feitas no Brasil. Não por acaso, a crítica busca, segundo Castro-Gómez, não julgar nem legislar, mas sugerir a ideia de que detrás de todos os fragmentos que nos constituem, detrás de todas as representações que vêm configurando nossa personalidade histórica, não existe uma moral, nem uma verdade que garantisse o sentido desses fragmentos e dessas representações. Ao sul da fronteira-Sul, temos vindo construindo a verdade sobre nós mesmos, gente fronteriza, atravessada por uma condição interna de homem-fronteira, que simplesmente não autoriza que o outro, o de fora do lócus fronterizo, fale por essa gente que construiu seu estado de sobrevida sobre o fio instável da fronteira-Sul. O discurso de uma epistemologia fronteriza é a travessia que reúne os povos, as culturas, os lugares, as línguas numa relação que barra a diferença colonial.

17

CAPÍTULO I CRÍTICA SUBALTERNISTA AO SUL4 Outra [escola de Tlon declara], que a história do universo ─ e nela nossas vidas e o pormenor mais tênue de nossas vidas ─ é a escritura que produz um deus subalterno para entender-se com um demônio. BORGES. Ficções, p. 10.

4

Uma primeira versão deste texto saiu nos CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: subalternidade, p. 51-65.

1 – Um lugar ao Sul Para discutir sobre um traço subalternista que teima em resistir na crítica brasileira vou me valer, neste início, de três passagens, ou melhor, situações, que tratam de posicionalidades, localizações, espacialidades, lugares. As duas primeiras passagens, apesar de se situarem em lugares completamente opostos, têm o sul como motivo da discussão. A terceira, com certeza mais ainda ao Sul do Equador5, endossa a paisagem su(l)balternista, acrescida da diferença que se encontra no bios de minha situacionalidade no mundo e no momento em que me proponho a refletir neste ensaio. A primeira passagem encontra-se no livro Subalternidad y representación, de John Beverley, no momento em que o autor discute a invenção da ideia de subalterno para Gramsci: A invenção de Antonio Gramsci da ideia de subalterno como uma categoria político-cultural estava profundamente conectada/relacionada com sua intenção de conceituar (forjar conceitos para) o “Sul” – a região católica e agrária da Itália na qual a classe trabalhadora rural se manteve como a classe social mais importante. Cabe dizer também que o “Sul” é uma parte da Europa que se assemelha ao mundo pós-colonial (o próprio Gramsci era de Sardenha, o que também o converte em um intelectual pós6 colonial).”

Ao discutir a invenção gramsciana, na qual a ideia de subalternidade está diretamente inter-relacionada ao Sul enquanto 5

Faço aqui uma alusão direta ao título da música “Não existe pecado ao Sul do Equador”, composta por Chico Buarque e Ruy Guerra, cujo refrão é “Não existe pecado do lado de baixo do equador”. 6

La invención de Antonio Gramsci de la Idea de subalterno como una categoria politico-cultural estaba profundamente conectada com su intento de conceptualizar el “Sur” ─ la región católica y agraria de italia donde el campesinato se mantuvo como la más importante clase social. Cabe decir también que el “Sur” es uma parte de Europa que se asemeja al mundo postcolonial (Gramsci mismo era de Cerdeña, lo que lo convierte em um intelectual “postcolonial’ también)” (BEVERLEY. Subalternidad y representación, p.23-24)[Tradução de Marta Francisco de Oliveira]

uma parte da Europa, Beverley também nos mostra que a própria conceituação do que seja subalterno demanda uma delimitação territorial específica, como podemos perceber nesta passagem: Uma lacuna no saber (conhecimento) que subverte ou derrota a presunção de conhecê-lo. (o subalterno). Mas o subalterno não é uma categoria ontológica; designa uma particularidade subordinada, num mundo no qual as relações de poder estão espacializadas. Isto implica que o subalterno possui um referente espacial, uma forma de territorialidade: Sul da Ásia, América Latina, ‘nas Américas’, ‘num 7 contexto norte-americano.’

Particularidade, referente espacial, forma de territorialidade, América do Sul, América Latina, um lugar ao Sul do Equador chamado Brasil, um lócus subalterno específico. Apontar um lugar, delimitar um espaço para o subalterno é o começo de uma estratégia crítica que visa, ao invés de antes procurar representar o subalterno como um sujeito social concreto, discutir a problematização do subalterno nos discursos disciplinários e nas práticas dentro da academia.8 Diferentemente da linha do Equador que não passa de uma linha imaginária, apesar de ela dividir o hemisfério em Norte e Sul, e muito mais diferente ainda do saber acadêmico que só vê o subalterno como uma categoria (do) impossível, o subalterno demanda uma referencialidade espacial específica. A segunda passagem é trabalhada exaustivamente por Hugo Achugar em Planetas sem boca, mais precisamente no capítulo intitulado “Nosso Norte é o Sul”, e se trata de uma passagem de autoria do artista plástico uruguaio Joaquim Torres García (18741949): 7

[O subalterno é] una laguna-en-el-saber que subvierte o derrota la presunción de conocerlo. Pero el subalterno no es una categoria ontológica; designa una particularidad subordinada, y en un mundo donde las relaciones de poder están espacializadas ello implica que tiene un referente espacial, una forma de territorialidad: Asia del Sur, América Latina, "en las Américas", "en un contexto norteamericano. (BEVERLEY. Subalternidad y representación, p.24) [Trad. de Marta Francisco de Oliveira] 8

Ver BEVERLEY. Subalternidad y representación, p.23.

22

Uma grande Escola de Arte deveria ser levantada aqui, em nosso país. Eu digo isso sem hesitar: aqui em nosso país. E tenho minhas razões para afirmar isso. Digo Escola do Sul; porque, na verdade, nosso norte é o Sul. Não deve haver norte, para nós, mas por oposição a nosso Sul. Por isso, agora colocamos o mapa ao contrário ─ e então já temos uma justa ideia de nossa posição ─ e não como querem no resto do mundo. A ponta da América, a partir de agora, prolongando-se, aponta insistentemente ao Sul, nosso norte. Igualmente nossa bússola: inclina-se de forma irremissível sempre para o Sul, em direção a nosso pólo. Os barcos, quando vão embora daqui, descem, não sobem, como antes, para ir em direção ao norte. Porque o norte agora está embaixo. E o leste, em relação ao nosso Sul, fica à nossa esquerda. Esta retificação era necessária; por isso, agora, sabemos onde estamos.9

O mapa ao contrário foi acrescentado ao texto da conferência, intitulada “A Escola do Sul”, só no ano seguinte (1936) por Torres García. De acordo com a importante leitura feita por Achugar, “a tradicional representação geográfica implicava não só uma violência na representação artística, mas, também, uma forte afirmação da localização do sujeito emissor, que de fato questiona a localização tradicional do emissor e da produção de representações estéticoideológicas do universo e, em particular, da América.”10 Ressalvadas as diferenças epocais existentes desde a publicação do mapa “de pontacabeça”, e excetuando o radicalismo da inversão cartográfica, entendo que a proposta de Torres García, envolta a questões como posicionalidade e direcionalidade, Norte e Sul, serve-me para pensar, por exemplo, sobre as condições subalternas nas quais se representam as produções críticas latino-americanas, a exemplo da pensada em língua portuguesa, como a brasileira. Para Achugar, a proposta radical de Torres García “assinala a arbitrariedade e a carga ideológica das representações que são produzidas a partir do hemisfério norte”; logo existe nela “todo um programa de política da representação que tenta 9

Apud ACHUGAR. Planetas sem boca, p.291.

10

ACHUGAR. Planetas sem boca, p.289.

23

desmontar o poder tradicional da representação artística produzida a partir do Norte”, e que tal consciência de posicionalidade, como consequência do movimento do mapa, “aparece também em relação à identidade e à representação.”11 Vejamos a representação cartográfica do mapa:

Figura 1 – Ilustração de Joaquim Torres García para o ensaio “La Escuela del Sur”, 12 1936.

Desde a publicação do mapa de ponta-cabeça, em 1936, não se passou quase um centenário em vão. De modo que não precisamos ser tão radicais como outrora demandava o contexto histórico-cultural do artista plástico uruguaio Torres García. Se àquela época ele já dizia que tínhamos “uma justa ideia de nossa posição”, e não mais como queriam no resto do mundo,13 então, agora, que já sabemos onde estamos, resta-nos inquirir de que modo a crítica, no caso a brasileira, se representa para si e aos olhos do outro (crítica europeia, critica norte-americana e crítica latino-americana) suas especificidades crítico-culturais, por fora de um traço subalternista que resiste no 11

ACHUGAR. Planetas sem boca, p 289-293.

12

Disponível em: http://www.torresgarcia.org.uy/categoria_42_1.html. Acesso em: 04 de março de 2011. 13

Apud ACHUGAR. Planetas sem boca, p.291.

24

centro de sua articulação. Se o motivo para a sobrevida de tal subalternidade crítica não é mais a posicionalidade do Brasil ao Sul do Equador ─ e isso em parte graças à dimensão global que a língua espanhola permite à crítica pensada nessa língua ─ com certeza o fato cultural de a nação intelectual brasileira pensar em língua portuguesa reforça a diferença do atraso no cômputo geral da articulação crítica feita na América Latina e, principalmente, na dos Estados Unidos. Avançando em minha discussão, o problema maior que vejo reside menos no modo de a crítica de fora ver a crítica brasileira e mais no modo como esta vê a si mesma em diálogo crítico com aquela(s). Na verdade, a crítica de dentro articula-se de uma forma a endossar o olhar subalternista despendido pela crítica hegemônica de fora do país. Por conseguinte, aquela crítica parece ter se acostumado a um velho ranço de olhar para a crítica de fora, ou que está à sua volta, como que a fazer uma eterna referência e reverência históricas. Grosso modo, o ofício da tradução quase sempre traz contribuições culturais e linguísticas que não são aferidas em pouco tempo. No Brasil, cada vez mais, pratica-se a tarefa de se traduzir obras que tratam diretamente da América Latina (inclusive tal prática é recorrente dentro de várias editoras brasileiras). Tais trabalhos críticos traduzidos, por sua vez, são exaustivamente relidos e reescritos, dentro das universidades brasileiras e até fora delas, para se refletir a cultura brasileira e seus problemas. Essa tarefa editorial de tradução é feita com muito valor e seriedade crítica, em todos os sentidos. Todavia, isso não quer dizer que esse referencial serve feito uma luva para se pensar nossos problemas internos. E se não bastasse, e aí, de meu ponto de vista crítico, reside o pior, tais obras traduzidas tratam, quando tratam, muito indiretamente da cultura brasileira e suas produções culturais, como a literatura, por exemplo. Há leituras e leituras críticas, é bom que se diga, no âmbito da crítica brasileira. Mas a ninguém é permitido não ver que a boa crítica brasileira está quase em sua totalidade assentada nos novíssimos conceitos e reflexões articulados fora, e de forma excessivamente crítica no país. O olhar do império, ou melhor, do Norte, no campo da crítica brasileira, continua a determinar a posição para a qual esta deve mirar. Nesse campo minado da representação crítica, há, sem sombra de dúvida, vencedor

25

e vencido. O que não há, de meu ponto de vista, é uma posição culpada e outra inocente, pois ambas são culpadas. O que estou dizendo com isso é que o saber subalterno gera a subalternidade da mesma forma que o saber acadêmico não faz outra coisa do que produzir a exaustão a subalternidade. Enquanto na posicionalidade da paisagem do Sul, descrita por Torres García, os barcos, por exemplo, que resolvem partir descem em direção ao Norte, já que este se encontra embaixo e, consequentemente, o Leste, em relação ao Sul, está à esquerda, estando o sol, por sua vez, em posição de declínio para este lado, meu lócus geohistórico encontra-se ao Sul do país, mais precisamente a Oeste, lugar onde o Sol se põe por sobre a zona híbrida da transfronteiridade que me situa nesse lugar que um dia, aliás, pertencera, inclusive, a outro país. A meio caminho desse lugar onde, por um lado, as fronteiras se bifurcam (ubicam) e, por outro, a vastidão espacial perde-se de vista, tornando tudo, ao mesmo tempo, híbrido e árido, pântano e deserto, situa-se a terceira passagem, ou margem, antes mencionada. Nela, a rubrica de meu bios, a marca de uma herança, uma história familiar que se escreve à minha revelia, contribuem para instaurar a diferença que se acresce nessa terceira passagem elencada que, somada às outras duas, me situa em meio a essas raízes culturais e labirintos espaciais que marcam o lócus ao Sul do Equador chamado Brasil,14 para onde convirjo, a partir de agora, meu olhar sobre a crítica brasileira.

2 – Políticas da crítica Lo que busca la crítica no es juzgar ni legislar (no juega a ser “tribunal de la razón”) sino sugerir la idea de que detrás de todos los fragmentos que nos constituyen, detrás de todas las representaciones que han venido configurando nuestra personalidad histórica, no existe uma moral ni una verdad que 14

Faço aqui uma referência direta ao livro As raízes e o labirinto da América Latina, de autoria do crítico brasileiro Silviano Santiago.

26

garantice el sentido de esos fragmentos y de esas representaciones. CASTRO-GÓMEZ.

Começo com um dos textos mais celebrados da história da crítica brasileira. Trata-se de “Notícia da atual literatura brasileira - Instinto de nacionalidade”, de Manchado de Assis, publicado originalmente em O Novo Mundo, em 24/03/1873 (Nova Iorque). Logo no parágrafo inicial, afirmava o escritor brasileiro: Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro. [...] Interrogando a vida brasileira e a natureza americana, prosadores e poetas acharão ali farto manancial de inspiração e irão dando fisionomia própria ao pensamento 15 nacional.

Avançando a discussão inicial e ao mesmo tempo inscrevendo-se, Machado de Assis reconhecia: Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no 16 espaço.

Ressalvadas todas as diferenças que de fato existem entre o que o escritor propunha naquele contexto e o que proponho discutir aqui, e reconhecendo que houve, inclusive, uma consolidação da crítica brasileira, quero entender que o traço subalterno inscrito na crítica brasileira passa pela discussão feita tanto por Machado de Assis, no texto do “Instinto de nacionalidade”, quanto nos modos como a crítica subsequente dialogou com o texto machadiano.

15

MACHADO DE ASSIS. Instinto de nacionalidade, p. 28.

16

MACHADO DE ASSIS. Instinto de nacionalidade, 30.

27

Mesmo que não tenha se vestido apenas com as cores locais do país, não há dúvida de que Machado de Assis seja o escritor brasileiro que mais contribuiu para a consolidação do instinto de nacionalidade cultural brasileiro. Sobretudo na medida em que sua literatura formou e proporcionou a compreensão da “fisionomia própria ao [do] pensamento nacional”. Se o escritor não tinha, por assim dizer, uma cor local no sangue, tinha um “espírito local” por excelência. Na verdade, o instinto de nacionalidade de Machado se opunha tão somente à mentalidade provinciana “que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto local”. Agregado ao instinto do escritor brasileiro, sobressaia-se “o geral [real] desejo de criar uma literatura mais independente”. Antes de chegar ao ponto que mais me interessa da discussão, vejamos o significado da palavra “instinto” de acordo com o Dicionário Houaiss da língua portuguesa: 1impulso interior que faz um animal executar inconscientemente atos adequados às necessidades de sobrevivência própria, da sua espécie ou da sua prole 2 impulso natural, independente da razão, que faz o indivíduo agir com uma finalidade específica 3 faculdade de pressentir, de perceber, independentemente da razão; intuição 4 tendência natural; inclinação; dom

Assim, movidos pelo desejo de executar “[in]conscientemente atos adequados às necessidades de sobrevivência própria”, ou melhor, de criar uma literatura mais independente, que tanto aqueles escritores que enalteceram a cor local, como aqueles que a rechaçaram, como fez Machado (em parte), contribuíram para a formação de uma nacionalidade literária brasileira. Nessa direção, o estudioso machadiano Roberto Schwarz observou que o escritor propõe uma dialética entre o local e o universal, o que, paradoxalmente, “o levava a dispensar os apoios do pitoresco e do exotismo”, para concluir que em sua hipótese a brasilidade de Machado não reside em seu extraordinário trabalho de notação local, de que naturalmente depende, nem é anulada pelo discurso universalista, que é um estrato importante de sua literatura. Estas duas dimensões, que são dados palpáveis, compõem-se (com mais outras) em fórmulas e formas que as relativizam, de que são a matéria dissonante, e que, elas sim,

28

traduzem o “sentimento íntimo de seu tempo e país” a que Machado 17 se refere.

Se o escritor realista consegue resolver a notação localista da qual dependia e que era intrínseca à sua produção literária, traduzindo, por conseguinte, o que era da ordem do interno e do externo, do próprio e do alheio, do local e do não-local, é porque ele, ao invés de se travestir apenas com as cores do local, também cumpre à risca o que ele mesmo exigia dos demais escritores de sua época e se vale do “sentimento íntimo”, o que o tornava homem [intelectual] de seu tempo e de seu pais. Não por acaso Schwarz já observara que, em o “Instinto de nacionalidade”, o escritor “pensava em seu próprio programa de trabalho, que pouco depois resultaria nas primeiras obras-primas da literatura brasileira em formação”.18 Programa de trabalho é correlato a projeto intelectual crítico. Sobra dessa discussão crítica exatamente aquela visada que vai se deter tão somente na exaltação das cores locais do país. A visão do paraíso retratada de dentro satisfazia, em pano de fundo, o olhar do colonizador, do outro, do de fora. A aferição da paisagem cultural retratada aqui passava pela aprovação do olhar estrangeiro, como uma prática natural por parte do colonizado nos trópicos. Daí poder dizer que, por mais contraditório que possa parecer, quanto mais a questão era pensada de-dentro, mais se buscava seu respaldo fora. Chego, assim, ao ponto que me interessa da discussão, porque infiro que foi tal prática que levou à inscrição de um traço subalternista que, histórico e culturalmente, persiste, se não na tradição literária brasileira, muito certamente ainda no bojo da tradição crítica. Como também nos mostra Machado de Assis, o que está diretamente por trás da discussão crítica lançada em o “Instinto de nacionalidade” é a vontade de uma literatura que tenha sua identidade nacional própria. Todavia, para que tal instinto de fato se cumprisse, era preciso, no caso de um país colonizado como o Brasil, 17

SCHWARZ. Duas notas sobre Machado de Assis, p.171-172.

18

SCHWARZ. A nota específica.

29

que se superasse, antes, ou aquela adesão incondicional à literatura modelo da metrópole, ou aquela recusa xenófoba do que era de fora. Com os dois pés do lado de cá do Atlântico, mas com o olhar do lado de lá, Machado de Assis soube traduzir a diferença colonial e sua obra é uma prova, como já disse. Por outro lado, quem não o soube, continuou a reiterar a diferença alheia no alheio, ou melhor, no próprio, pensando que assim melhor valorizava o que era específico do país (da ordem da afetividade ou, como quisera Machado, do sentimento íntimo). Essa supervalorização do que era de fora também contribuiu, a seu modo, para reforçar o sutil traço subalternista que alicerça a crítica feita do lado de cá do Atlântico, ao sul do Equador, mais precisamente no lugar chamado Brasil. Sem meras coincidências, Machado se ressentia da falta de uma crítica doutrinária, ampla, elevada, uma crítica que corrigisse ou animasse a invenção literária: “a falta de uma crítica assim é um dos males de que padece a nossa literatura”, concluía ele em “Instinto de nacionalidade”. Entendo que, em parte, a crítica subsequente corrigiu o que a literatura nacional deixava a desejar no plano das relações literárias e até mesmo do sentimento íntimo, enfim, de sua formação nacional. Na crítica brasileira, o auge daquela crítica defendida por Machado encontra endosso em Antonio Candido, sobretudo com o seu Formação da literatura brasileira (1957). Numa dialética entre o local e o universal, Candido reconhecia, por exemplo, que, “comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não outra, que nos exprime.”19 Esse diapasão crítico, inaugurado por Machado e seguido depois por Candido, se, por um lado, ficou preso entre uma genialidade universal e um essencialismo nacional (em o “Instinto de nacionalidade”, Machado afirmava: “Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês.”), por outro lado, escavou o lugar crítico para a discussão em torno das ideias fora do lugar importadas nos

19

CANDIDO. Formação da literatura brasileira, p.10.

30

trópicos.20 Com base no exposto, posso dizer que o traço crítico subalternista gerado por essa visada crítica dualista pode ser mais fácil de ser resolvida dentro da articulação crítica brasileira, sobretudo com o boom da discussão em torno da dependência cultural, enquanto aquela visada que explorou à exaustão (e tão somente) as cores locais do país produziu um traço subalternista insolúvel, uma vez que qualquer julgamento crítico aqui (no Sul) passava pela aferição do de fora (do Norte). Entre o nacional e o universal, entre o próprio e o alheio, o local e o global, se, por um lado, a crítica brasileira estrutura-se em torno de um problema crítico insolúvel, por outro, tem mostrado que pode resolver internamente sua subalternidade quando traduz e lê na diferença colonial as lições críticas importadas. Se estou, desde o início de minha reflexão, voltado para a oposição Norte/Sul não é porque quero privilegiar uma dualidade crítica ocidental existente, nem muito menos reforçar a ideia subalterna de que não há outro modo de discutir as ideias críticas e as produções culturais sem que se passe por tal visada crítica dualista. Muito pelo contrário, estou tão somente reiterando que, cada vez mais, qualquer discussão crítica deve passar, necessariamente, por sua posicionalidade, sem a qual estaria fadada a incorrer num gesto subalterno acrítico por excelência. Na verdade, é exatamente em torno dessa posicionalidade, que vem marcada pelo lócus cultural e linguístico, que mais vejo esboçar o traço subalternista que resiste e persiste na crítica brasileira. Grosso modo, posso dizer que nossa crítica continua a se alimentar de uma tradução crítica do outro e do texto do outro bem feita demais. Ao agir assim, toma ao pé da letra o que lhe interessa e o que não lhe interessa criticamente. Não por acaso, grande parte dos estudos críticos sobre a América Latina tem insistido na importância dos loci culturais como posicionamento de uma crítica cultural que seja capaz de aferir a América Latina de dentro dela mesma. Todavia, tais 20

Ver o ontológico ensaio “As ideias fora do lugar”, de Roberto Schwarz. In: Cultura e política.

31

estudos tornam-se um problema quando não são articulados de dentro da própria América Latina, pois são mais suscetíveis a reforçar uma certa subalternidade crítica interna. Quando esses estudos são, por sua vez, pensados dos Estados Unidos, como, aliás, acontece e vem acontecendo, então fica muito mais visível o diálogo subalterno que eles propõem frente às demais críticas elaboradas nos trópicos. Nesse particular, pelo fato de a crítica brasileira não ser pensada em espanhol, ela acaba ilustrando a diferença (no mal sentido da palavra) frente ao boom crítico que impera na e sobre a América Latina. Não saber ler, nem muito menos pensar em português, não impede o bom andamento da crítica elaborada no Sul. No Brasil, e do Brasil, há e continua existindo uma preocupação, mais do que um esforço, para se ler, compreender e discutir de igual para igual o que é pensado em espanhol hoje, pouco importando se tal reflexão parta dos países da América Latina ou dos Estados Unidos. Sobre isso, resta-nos saber se tal gesto crítico reforça aquele possível traço subalternista que teima em imperar na crítica brasileira, ou se, pelo contrário, ajuda a elaborar qualquer defasagem crítica. De tudo, o fato é que não é difícil constatar que a lição crítica, historicamente pensada e construída em português, continua ficando de fora da grande discussão crítica feita na e sobre a América Latina. No cômputo geral, os críticos brasileiros e suas respectivas obras mencionados dentro da discussão elaborada em espanhol, ou em inglês, aparecem apenas de forma alusiva, ou ilustrativa da discussão, tão somente como forma de lembrar que tal crítica hegemônica não desconhece que existe um país, cuja língua é a portuguesa. A propósito da importância do lócus de enunciação da crítica brasileira, bem como de qualquer crítica, e sem querer resolver qualquer dualidade existente (Norte X Sul), mas, antes, mostrar que é possível uma reflexão crítica que se articule por fora das dualidades imperantes, lembro que, não por acaso, a palavra “Ocidente” etimologicamente e culturalmente significa “o lugar onde se põe o sol”. Se o Brasil está situado mais abaixo do Sul do Equador, como disse no início, estou, por conseguinte, situado à margem da fronteira oscilante do estado de Mato Grosso do Sul (que faz fronteira com os países Bolívia e Paraguai), onde, literalmente, as 32

cores matizadas do crepúsculo, ao invés de afastarem as línguas, os povos e as culturas, antes os aproximam por sobre uma transfronteiridade sem limites, mas regida por leis específicas do lugar. Por falar em “Ocidente” e América Latina, por exemplo, não tem como não lembrar do termo “Pós-Ocidentalismo” tão bem empregado por Walter Mignolo como uma forma capaz de compreender historicamente a América Latina passando por dentro da construção de seu próprio argumento crítico. No ensaio “Postoccidentalismo: el argumento desde América Latina”, Mignolo esclarece que a noção de ocidentalismo e pós-ocidentalismo são, na verdade, “o lugar de enunciação construído ao longo da história da América Latina para articular as inconstantes (ou mutáveis) ordens mundiais (ou articular as mudanças constantes ocorridas nas ordens mundiais) e o movimento das relações coloniais”.21 Se a imagem do crepúsculo oscilante da fronteira, enquanto lócus de minha reflexão crítica, traz a ideia de um período, ou estágio em estado de declínio ou decadência, que antecede o fim de algo ─ ali onde as coisas terminam e cujo lugar não passa de um receptáculo do que é, ou vem, do outro, do de fora. Uma história, uma cultura, uma crítica que, ancestralmente, ao olhar imperial (euro e americanocêntrico) está condenada a receber passivamente o que é do outro. Não por acaso lembro aqui de “Funes, o memorioso”, de Borges, que afirmava: “Minha memória, senhor, é como despejadouro de lixos”22 ─ então posso dizer, na esteira de Homi Bhabha, que o lócus fronteiriço sulista tornou-se “o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente em um movimento não dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalente, (...).”23Em sucinto parêntese, observo que mesmo internamente, por mais que a 21

“el lugar de enunciación construido a lo largo de la historia de América Latina para articular los cambiantes órdenes mundiales y el movimiento de las relaciones coloniales”. MIGNOLO, 1988, s.p. 22

BORGES. Ficções, p.94.

23

BHABHA. O local da cultura, p.24.

33

crítica brasileira pensada nos grandes centros do país se esmere para por em prática uma reflexão crítica que encampe as diferenças culturais internas do país colossal, acaba deixando de fora, por exemplo, problemas cruciais dessa zona fronteiriça aqui em relevo, sobretudo quando pontuo que tal crítica não escuta as línguas que se produzem e se cruzam nesse lócus cultural como a guarani e o portunhol. Internamente também temos um trabalho crítico que a seu modo também reforça uma certa subalternidade, principalmente quando a crítica elaborada nos grandes centros intelectuais do país desconsidera as discussões críticas que vêm sendo feitas dentro das universidades públicas que se encontram fora daqueles grandes centros. Privilegiando uma política da crítica assentada num pósocidentalismo, numa transfronteiridade e numa especificidade local que, antes de mais nada, procura ter domínio de sua articulação teórica, crítica e política de seu campo de atuação frente aos demais que por aqui aportam, entendo que tal crítica começa a resolver sua subalternidade quando, sobretudo, põe sub judice tudo o que é aferido por uma crítica pensada de fora, geralmente alhures e em outra língua. Claro que isso não implica que as críticas tenham que se proteger umas das outras com barricadas e fossos. A discussão crítica, aqui, não passa por aí. Passa-se, antes de mais nada, pelo processo de tradução crítico-cultural de todas as teorias e conceitos que migram entre as línguas e as culturas nos dias atuais. Tal visada procura ler na diferença, propondo uma desconstrução de qualquer leitura dualista, cujo poder de decisão e de orientação sempre esteve preso ao centro, ou melhor, no Norte. Eduardo Mendieta, em “Modernidad, posmodernidad y poscolonialidad: una búsqueda esperanzadora del tiempo”, traz questões que estão no entorno das problematizadas aqui: Quem disse que a trajetória do sol da civilização começa no Oriente, segue em direção ao Ocidente e termina repousando no coração da Europa? E por que? As 'cartografias cognitivas geopolíticas' legitimam, e ao mesmo tempo desautorizam, não apenas certos pronunciamentos, como também o lócus de origem destes e de outros enunciados. Tanto o mapa do mundo como o mapa da história

34

se traça primordialmente segundo critérios arbitrários de ordem 24 temporal e cronotopológico.

Depois de perseguir “a busca esperançosa do tempo sem conclusões”, e reconhecendo-se como filho que é da modernidade, Eduardo Mendieta, ao final de seu ensaio, se pergunta sobre o que constitui a Europa, quando ela se originou e de onde se traçam suas fronteiras, para concluir que a Europa não tem sido menos ‘inventada’ do que a América. Essa discussão de Mendieta desemboca em “Nuestra América”, de José Martí, que a seu modo questionava “qual América e de quem?” Em seu caso pessoal, reconhece Mendieta que sua América “es la América del Inca Garcilaso, y la América de Bartolomé de las Casas, al igual que la América de Bolívar y Santander, pero también la de Douglas, Sojourner Truth, Pierce, James and Mead, al igual que DuBois, Gates, West y Hooks.”25. Parodiando Mendieta pelo avesso, já que em sua leitura crítica, como quase todos os demais críticos que têm se detido em estudos acerca da América Latina, simplesmente ignora a crítica pensada em Língua portuguesa sobre a América Latina, e sem querer reforçar qualquer tipo de subalternidade, nem muito menos de atraso cultural, reitero que Nossa América, ou melhor, nosso país é a América de Machado de Assis, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Paulo Coelho, entre outros. Por conseguinte, as imagens da América eleitas por esses intelectuais brasileiros com certeza são completamente diferentes das imagens que os Estados Unidos, ou os críticos que pensam a América Latina daquele lócus cultural, têm sobre nós. Pode e deve haver identificação entre a América de um e a do outro, como postula 24

“Quién dijo que la trayectoria del sol de la civilización va de Oriente a Occidente y termina reposando em el corazón de Europa? Y por qué?. Las ‘cartografias cognitivas geopolíticas’ legitiman, a la vez que desautorizan, no solo ciertos pronunciamientos, sino también el locus de estos y de otros enunciados. Tanto el mapa del mundo como el de la historia se traza primordialmente según critérios arbitrários de orden temporal y cronotopológico” MENDIETA, 1988, s.p. (Tradução de Marta Francisco de Oliveira) 25

MENDIETA, 1998, s.p.

35

Mendieta. Todavia, quando a discussão passa pelo lócus enunciativo das críticas nacionais, deve-se privilegiar suas especificidades. Quando não se tem o domínio de sua dimensão histórica, cultural e linguística, uma crítica periférica está mais fadada a exercer uma função subalterna no cômputo geral das comparações críticas. Às Vezes, como é o caso da crítica brasileira que insiste em fazer crer, quando a crítica nasce faltante de uma boa crítica, ela herda o direito de defender que a crítica do colonizador é sempre a melhor. Não é por acaso que a crítica envolta à teoria da dependência cultural foi levada a exaustão pelo melhor da crítica feita no país. Mas essa questão da dependência já é uma página virada da crítica brasileira. O que não está totalmente resolvido quando o assunto é crítica e cultura na América Latina é o papel e lugar que essa crítica relegou ao escritor brasileiro Machado de Assis. Refiro-me, especificamente, à boa crítica pensada em Língua espanhola. Mas o intelectual Machado de Assis e sua vasta obra, inclusive crítica, podem estar mesmo fora do que melhor ilustraria as discussões hoje acerca da América Latina. Como não seria o caso de nenhuma crítica contemporânea brasileira, cuja discussão passasse por diferenças e subalternidades, justifico, aqui, ter começado a discussão exatamente com o “Instinto de nacionalidade”. Em contrapartida, curioso é observar e constatar que, por mais que as temáticas abordadas, quando o assunto é América Latina, sejam globalização, mundialização, transnacionalização, translocalização, pós-ocidentalização, consumo e mercado, cultura imperialista, entre outras, um escritor como o brasileiro Paulo Coelho, mundialmente conhecido, não seja sequer mencionado. No caso desse escritor, a desculpa não pode mais ficar por conta da Língua portuguesa, como com certeza seria no caso de Machado de Assis. Nacionalidades intelectuais e culturais geram diferenças, mas não deveriam incentivar nenhum tipo de fundamentalismo, sobretudo quando a agenda for a da crítica na contemporaneidade. Olhando, agora, de dentro para fora, isto é, da crítica brasileira para a crítica de fora, percebemos, sem grande dificuldade, o quanto que ela prefere, às vezes, sobretudo quando o assunto é uma produção mercadológica e consumista como a do intelectual Paulo Coelho, reforçar sua subalternidade a ver como

36

uma obra transnacional como a coelhiana pode contribuir para resolver os vícios subalternos que persistem na crítica interna. Enquanto essa crítica periférica ficar na pauta do “não li e não gostei”, quando o assunto for produções culturais internas que não endossem o coro de uma tradição elitista, tradicional e ultrapassada, ela apenas contribui para que a crítica hegemônica, como a pensada em espanhol e sobre a América Latina, continue a desconhecer uma obra como a do escritor brasileiro que é publicada em várias línguas simultaneamente. Por mais contraditório que possa parecer, entendo que o reconhecimento da obra coelhiana está fadado a vir de fora para dentro, uma vez que sua recepção mundial obriga a crítica brasileira a reconsiderar a obra no bojo das discussões críticas na contemporaneidade. Se esse caso vier de fato a ocorrer, então teremos, como é de costume, o aval da crítica de fora mais uma vez exercendo seu poder frente a uma crítica subalternsita que não consegue avançar senão passando pela referência/reverência do e pelo que é do outro (no caso, da outra crítica). No importante ensaio antes mencionado, Walter Mignolo observava que a América Latina, estudada por fora da proposta pósocidental, deixa de ser o lugar onde se produzem teorias, para continuar sendo o lugar que se estuda: “la mirada desde el norte que convierte a América Latina en um área para ser estudada, más que um espacio donde se produce pensamiento crítico.”26 Embasado nessa aproximação feita por Mignolo entre Estados Unidos e América latina, Norte e Sul, mas pensando especificamente no Brasil/Sul e a crítica sobre a América Latina, e pouco importando se pensada da América do Sul ou do Norte, entendo que enquanto a crítica brasileira não desfizer essa imagem de dependência contínua que a crítica da América Latina tenta gerar sobre ela, sua subalternidade, por sua vez, nunca será completamente resolvida. Tal resolução, pelo menos em parte, dar-se-ia pela tradução crítica como a crítica brasileira deveria operar frente a qualquer crítica aqui aportada em outra língua. Ao invés de fechar-se num provincianismo chinfrim e 26

MIGNOLO, 1998, s.p.

37

localista, como fizeram outrora os da cor local, pôr em prática uma tradução conceitual de modo a rechaçar todos os conceitos que a priori não servem para pensar melhor, ou seja, de forma mais abalizada, as produções culturais locais e, por extensão, a própria cultura brasileira. Voltado o rosto para o Sul, para “Nuestra América, vejamos a forma como Mignolo conceitua seu pós-ocidentalismo, termo valioso, sobretudo quando nos propomos a olhar de dentro(Sul) para fora(Norte): "'Pós-ocidentalismo' é a palavra-chave que encontra sua razão (o porquê o termo, seu porquê) no 'ocidentalismo' dos acontecimentos e na discursividade do Atlântico (norte e sul), desde princípios do século XVI. Pós-ocidentalismo, repitamos (vale repetir), concebido como projeto crítico e superador do ocidentalismo, que foi o projeto pragmático das empresas colonizadoras nas Américas desde o século XVI, do (desde o) colonialismo hispânico ao norte-americano e ao 27 soviético".

A crítica subalternista e periférica do Sul (Brasil) pode até estar condenada à margem da crítica de línguas hegemônicas, assim como a América Latina sempre estará à margem do ocidente, mas a partir do momento que a crítica periférica tem consciência de seu lócus de enunciação no contexto global ela pode, e deve, dialogar de igual para igual com as demais críticas. Valho-me da ideia de “epistemologia fronteriza” de Mignolo, mesmo que meio pelo avesso da ideia, para reforçar que é detendo-se em sua episteme, ou condição de transfronteiridade, que a crítica pensada ao Sul (Brasil) pode inverter o modo imperialista como a crítica do centro a toma: se houver mais valorização dos signos internos, como a própria condição de fronteiridade aqui dentro, isso, por conseguinte, obriga a crítica de fora a fazer uma tradução conceitual dos conceitos internos 27

“‘posoccidentalismo’ es la palabra clave que encuentra su razón em el ‘occidentalismo’ de los acontecimientos y la discursividad del Atlântico (norte y sur), desde princípios del siglo XVI. Posoccidentalismo, repitamos, concebido como proyecto crítico y superador del occidentalismo, que fue el proyecto pragmático de las empresas colonizadoras em las Américas desde el siglo XVI, desde el colonialismo hispânico, al norteamericano y al soviético.” MIGNOLO, 1988, s.p. (Tradução de Marta Francisco de Oliveira)

38

que melhor traduziriam a crítica periférica, impedindo-a, por conseguinte, de achar que compreenderia melhor esta quando homogeneíza e relativiza os conceitos de cima(Norte) para baixo(Sul), ou de fora para dentro. Mabel Moraña, em seu importante ensaio “El boom del subalterno”, discutindo a cultura latino-americana, pergunta: Como redefinir as relações Norte/Sul e o lugar ideológico de onde se pensa e se constrói a América Latina como o espaço irrenunciável de uma alteridade sem a qual o "eu" que fala (que pode falar, como indicava Spivak) se descentraliza, se desestabiliza epistemológica e 28 politicamente?"

Uma resposta cabal às tantas perguntas feitas por Moraña não cabe nestas linhas conclusivas, mas gostaria de dizer que se estamos todos num mundo global contemporâneo, e de modo bastante visível na América Latina, trabalhando com conceitos descentrados, híbridos, escorregadios e de natureza inconceituáveis, é porque queremos, ao fim e ao cabo, entender melhor o próprio lócus que nos cerca. Olhar para fora pode ser uma desculpa feliz para se compreender melhor dentro, mas desde que tal olhar não retorne entortando as especificidades culturais, históricas, sociais e críticas que nos fazem ser do jeito que somos. Pois enquanto o olhar imperial do Norte embaralhar nosso modo singular de vermos a nós mesmos, aí estaremos tão somente repetindo uma imagem cega e improdutiva que apenas multiplica nossa cegueira subalterna. Por tudo isso, mais do que nunca nos pegamos numa situação que nos exige que façamos a crítica da crítica, sobretudo quando nos encontramos dentro da academia. Esse trabalho crítico deve começar pela crítica interna ou local, como forma de rever o modo como ela reproduz os conceitos que migram para o Sul(Brasil). Não observar o que de tais conceitos, geralmente criados para pensar a América 28

“Como redefinir las relaciones Norte/Sur y el lugar ideológico desde donde se piensa y se contruye América Latina como el espacio irrenunciable de uma otredad sin la cual el ‘yo’ que habla (que puede hablar, como indicaba Spivak) se descentra, se des-estabiliza epistemológica y politicamente?” MORAÑA, 1998. s.p.

39

Latina de fora dela, serve e o que não serve para que a crítica periférica se consolide como tal pode não passar de uma forma de reforçar a imagem que a crítica hegemônica (do Norte) tem da crítica do Sul. Nossa tradução não se reduz a um trabalho interlingual, nem muito menos intercultural; também deve ser entre conceitos que teimam em achar que podem traduzir nossas especificidades. O boom de uma crítica parece residir não nos dualismos, separação ou fundamentalismos, mas, antes, no desejo de pontuar suas especificidades como forma de contribuir com as demais especificidades críticas. Um começo produtivo para esse exercício crítico seria o de propor uma reflexão que se sustentasse por fora de qualquer visada crítica dualista. Nem tanto ao mar nem tanto à terra, nem tanto ao Norte nem tanto ao Sul, nem tanto ao centro nem tanto à periferia, porque as especificidades de ambos são no mínimo diferentes. Uma crítica periférica amalgama suas especificidades resultantes de sua língua, lócus, nação e cultura, como forma, inclusive, de se preservar de uma visada crítica de fora que, quase sempre, por não ter o domínio da língua subalterna, homogeneíza as diferenças, por meio de conceitos estereotipados e, o que é pior, descontextualizados.

40

CAPÍTULO II CRÍTICA FORA DO EIXO: onde fica o resto do mundo?29 Porque “o mundo inteiro” é uma ficção. A chamada “aldeia global” não existe. É apenas uma construção. Eu sempre desconfio de tudo o que é apresentado como sendo global, pois falta sentido a esse conceito. É um mundinho este nosso. Meu ponto de partida são os valores. Estes podem até se tornar mundiais, mas o ponto de partida é local. Milton Santos In: HISSA (org.) Conversações: de artes e de ciências, p. 170.

29

Uma primeira versão deste texto saiu nos CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: cultura local, 28-41.

No Brasil, tudo o que acontece fora dos grandes centros, como Rio – São Paulo e outros poucos centros, está fora do eixo, ou seja, fora de onde os acontecimentos naturalmente deveriam acontecer. Da moda à dança, passando pela música, literatura, artes plásticas e a política, tudo acontece no centro das grandes cidades do país. O poder da imprensa brasileira, da mídia de um modo geral, e o valor da crítica intelectual, que não por acaso está presa ou ao mundo massmidiático ou às grandes universidades públicas, estão vinculados aos centros hegemônicos produtores e detentores do saber que, a princípio, deve espraiar-se por todas as regiões excêntricas do país colossal. Sem coincidências, um caso pessoal ilustra o que se disse acima. Em agosto de 2010, o evento Invisibilidades III, promovido bienalmente pelo Itaú Cultural (São Paulo), convidou o grupo de pesquisa que coordeno (NECC/UFMS) para discutir sobre parte da pesquisa que desenvolvíamos naquele momento.30 Nossa sessão, que inclusive abria os trabalhos do evento, para minha surpresa intitulava-se “Fora do eixo – A produção de ficção e crítica literária no Brasil que você não conhece”. Quero, aqui, deter-me, mesmo que de forma rápida, no título da mesa que a seu modo contemplava muito bem o trabalho nela proposto. O grupo de pesquisadores saia da UFMS/Campo Grande, logo fora do eixo, para falar para aquele (o outro) do centro (São Paulo). Em comum, ambos tinham apenas o Brasil, já que mesmo aquela produção feita fora do eixo era brasileira(?), conforme explicava o título da mesa de abertura do evento denominado de Invisibilidades. Todavia interessa-me mais “o Brasil que você não conhece”, que também pode ser lido no título da sessão, posto que, em pano de fundo, é para esse mundo fora do eixo que meu olhar se voltará, ao mesmo tempo em que é a partir 30

Como a temática era Ficção Científica, os pós-graduandos que desenvolviam pesquisa sobre o assunto naquele momento e que foram, consequentemente, convidados: Arnaldo MontÀlvão, Alice Feldens e Quelciane Marucci. Informação completa, ver:http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2841&cd_materia=1389

desse lócus periférico e fronteiriço que minha discussão estará assentada. Adiantando-me na discussão, posso dizer que se o centro não conhece o Brasil fora do eixo não é porque ele não quer, mas, sim, porque ele não pode. O problema, e aí reside toda minha proposta crítica deste livro, é que o discurso crítico do centro teima em achar que pode falar pelo e por quem se encontra fora do eixo. O modo como, quase sempre, quem está à margem toma o que é dito pelo centro resulta noutro problema da mesma questão crítica. Para fazer jus ao título do evento, uma invisibilidade dupla se esboça: a primeira dá-se quando a crítica do centro acredita que seu discurso hegemônico encampa as especificidades das culturas locais periféricas. Já a segunda invisibilidade acontece quando a crítica pensada nos grandes centros do país é tomada pelas margens como capaz de dar conta de compreender problemas específicos das produções e das culturas periféricas. Grosso modo, posso dizer que as universidades descentralizadas desse país colossal estão facultadas a repetir endossando a lição crítica que os grandes centros geram de forma homogenia; logo, pensando nas diferenças, ou melhor, nas especificidades, lição acrítica por excelência. Nesse caso, a crítica pensada fora do eixo às vezes não faz outra coisa senão reforçar sua invisibilidade, sobretudo quando toma a lição crítica pensada no contexto dos centros avançados do país como único meio para se compreender as representações culturais das margens. Que a crítica pensada no centro aspire à totalidade, podemos até entender com uma certa facilidade, posto que as relações hierárquicas são históricas; agora que a crítica fora do eixo continue a receber passivamente os conceitos elaborados no centro é algo inaceitável, uma vez que tal gesto não faz outra coisa senão reforçar sua subalternidade. Mas vou por parte. Eixo, fora do eixo, centro e periferia, local e global, Norte e Sul, Brasil, Estados Unidos e América Latina, sob o fio dessa dualidade ancora-se a discussão proposta neste ensaio, mesmo quando se tem, de antemão, a convicção de que tal dualidade só levaria qualquer reflexão crítica feita na contemporaneidade ao cansaço. Mas como rechaçar tal dualidade, quando as diferenças persistem nas discussões críticas? A saída está na proposição de uma nova 44

episteme, um novo pensamento crítico que proponha, desde o início, descolonizar a crítica tradicional do centro, bem como aquela figura do intelectual que, por pensar do/no centro, acha-se no direito de pensar por aquele que se encontra fora do eixo. Claro que estou aqui assentado na importante discussão proposta por Walter Mignolo, no livro Histórias locais/Projetos globais, sobretudo quando discute a diferença colonial e propõe o pensamento liminar: “somente se pode transcender a diferença colonial da perspectiva da subalternidade, da descolonização e, portanto, de um novo terreno epistemológico que o pensamento liminar está descortinando.”31 A discussão que estou propondo, inicialmente entre eixo e fora do eixo, delimita-se ao Brasil, especificamente no tocante a uma descolonização crítica e as implicações nela arroladas. Todavia tal relação interna encontra desdobramentos perfeitos nas relações externas como crítica latino-americana (pensada dos Estados Unidos e quase sempre em inglês) e crítica latina (a realizada na América latina em espanhol). Justifico, assim, que me valerei às vezes destes casos tão bem discutidos pelo crítico argentino, por todo seu livro, para aproximar-me daquela problematização interna (eixo x fora do eixo) da crítica brasileira. Como partilho da possibilidade de se pensar criticamente por fora de qualquer dualidade possível, valho-me das palavras de Mignolo que não por acaso encontram-se fechando seu livro Histórias locais/Projetos globais (que as últimas palavras do crítico sejam o começo das minhas): Dentro e fora, centro e periferia são metáforas dúplices que dizem mais sobre os loci da enunciação do que sobre a ontologia do mundo. Há e não há dentro e fora, centro e periferia. O que realmente existe é a fala de agentes que afirmam ou negam essas oposições dentro da colonialidade do poder, da subalternização do conhecimento e da diferença colonial. O último horizonte do pensamento liminar não está atuando apenas em direção a uma crítica de categorias coloniais; está atuando também no sentido de reverter a 31

MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.76.

45

subalternização dos saberes e a colonialidade do poder. Também indica uma nova maneira de pensar na qual as dicotomias podem ser substituídas pela complementaridade de termos obviamente contraditórios. O pensamento liminar poderia abrir as portas para uma outra língua, um outro pensamento, uma outra lógica, superando a longa história do mundo colonial/moderno, a colonialidade do poder, a subalternização dos saberes e a diferença 32 colonial.

O mais sedutor da passagem de Mignolo é que, se, por um lado, o crítico apresenta as dicotomias (como dentro e fora, por exemplo) como “metáforas”, por outro lado, e quase beirando um gesto denegativo, afirma que “há e não há dentro e fora”. É essa aparente contradição, por sua vez, que me permite, por exemplo, deter em nossas especificidades culturais, nosso lócus, nos problemas críticos internos, como estou propondo aqui. Em vista disso, e tendo em pauta a discussão acerca da relação eixo x fora do eixo, é que entendo que não basta a questão dos “loci de enunciação”, apesar de ela já fazer a diferença na perspectiva crítica; também é condição sine qua non que se leve em conta o local (territorialmente falando) de onde tal crítica (fora do eixo) é erigida. A discussão proposta por Mignolo também não escapa aos locais geoistóricos: “insisto que, quando digo local geoistórico, não estou falando apenas de um lugar geográfico específico, mas de um lugar geográfico com uma história local particular.”33 Em minha discussão, ao pontuar a importância da especificidade do lugar no bojo de qualquer reflexão crítica, acabo por mostrar que para a crítica fora do eixo, subalterna por excelência (aqui o equivalente ao pensamento liminar para Mignolo), são necessárias tanto a perspectiva subalterna quanto a perspectiva territorial. Entendo que, com isso, não estou discordando do pensamento liminar de Mignolo; apenas estou postulando que, se, por um lado, a crítica fora do eixo está condenada a apropriar-se das diferenças todas impostas pela crítica hegemônica do(s) centro(s), tornando-se por conseguinte “um mero objeto de estudo mais que 32

MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.454.

33

MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos globais, p.254.

46

um potencial epistêmico”, por outro lado, essa crítica descentralizada (fora do eixo) e, por conseguinte, conhecedora de seu lugar de situalidade no espaço propõe uma descentralização/descolonização crítica da crítica migrada do centro. Mais do que fazer a crítica da crítica, à crítica fora do eixo está facultado propor uma reflexão que emirja de seu próprio local geoistórico, como forma de não ficar apenas repetindo, ou lendo na diferença crítica/colonial, o que é da ordem de suas especificidades críticas e culturais. Quando se leva em conta os “loci de enunciação”, propostos por Mignolo, e o local geoistórico da crítica fora do eixo, corre-se menos risco, em todos os sentidos, de se reforçar qualquer binarismo crítico. A ideia de crítica fora do eixo empregada aqui tem em pano de fundo o campo móvel das fronteiras, das margens, da subalternidade e da periferia, por exemplo. Somando-se a isso o fato de que os vários termos empregados pela crítica contemporânea, como pós-ocidentalismo, pós-colonialidade, entre outros pós, são todos de natureza pós-crítica, denomino, a partir de agora, a crítica feita fora do eixo de crítica pós-crítica.34 Com base nisso, entendo que pensar pós-ocidentalmente é pensar pós-criticamente, isto é, articular uma reflexão crítica que tenha a periferia, o fora do eixo, como discussão, e que tal discussão se dê por fora do olhar hegemônico e imperial do centro. Se a crítica é uma reflexão nascida nos centros, entendo, por conseguinte, que somente uma crítica de natureza pós-crítica erigida da/na periferia pode ler na diferença as especificidades geoistóricas culturais de seu lócus de enunciação. No Ocidente, a periferia sempre foi pensada do/no centro. Nessa perspectiva central e centralizadora, a periferia sempre existiu em sua condição de subalternidade, mas, na verdade, nunca foi escutada pelo centro, uma vez que não lhe interessava escutar. O centro, ou centros hegemônicos de poder, de decisão e, por conseguinte, de julgamento crítico, sempre fez ouvidos moucos, teleguiando, por meio de seu olhar castrador, todo o resto, ou aquilo ou aqueles que 34

Não posso deixar de aludir ao título do belo livro de Eneida Maria de Souza intitulado Tempo de pós-crítica (2007).

47

simplesmente ficavam de fora de seu olhar compressor/hegemônico. A episteme proposta por uma crítica pós-crítica, ou fora do eixo, não propõe simplesmente inverter o olhar. Antes, e pelo contrário, uma de suas funções seria traduzir a lição crítica que chega do centro, ou de fora do país, interpretando de que forma os conceitos ainda ajudariam a pensar as especificidades periféricas, ao invés de tão somente aplicá-los, como se vê tão comumente num país colossal como o Brasil. Outra função, e concomitante àquela, seria a de pôr em articulação seu próprio papel enquanto crítica fora do eixo, como forma de marcar para o outro (ou outra crítica) e para ela mesma sua posicionalidade no mundo intelectual. Julgo ilustradora de nossa discussão, uma passagem de Ella Shohat a respeito das teorias póscoloniais, mas já acrescida do que Mignolo propõe a respeito do pósocidentalismo: O termo “pós-colonial” seria mais preciso, portanto, se articulado como “teoria pós-teoria Primeiro/Terceiro Mundos”, ou “pós-crítica anticolonial”, como um movimento para além de um mapeamento das relações de poder entre “colonizador/colonizado” e “centro/periferia” relativamente binarístico, fixo e estável. Tais rearticulações sugerem um discurso mais nuançado, que permite movimento, mobilidade e fluidez. Aqui, o prefixo “pós” faria sentido menos como “depois” que como seguindo, indo além e comentando um certo movimento intelectual ─ a crítica anticolonial terceiromundista ─ ao invés de para além de um certo ponto na história ─ o colonialismo; pois aqui “neocolonialismo” seria uma forma menos passiva de tratar a situação dos países neocolonizados, e uma 35 modalidade de engajamento politicamente mais ativa.

Embasado no que postula Mignolo, entendo que uma crítica que se encontra na condição de fora do eixo articula-se como uma pós-crítica por escapar de quaisquer dualismos, inclusive crítico. Tal desarticulação crítica propõe um discurso que, em seu próprio movimento, faz a crítica da crítica, num movimento de vórtice: ao mover-se, construindo-se como um discurso pós-crítico, também rediscute o movimento do discurso da crítica do centro que teima em 35

Apud MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.139.

48

se sobrepor (colando-se acriticamente) aos discursos críticos subalternos. A episteme crítica que formula uma crítica fora do eixo ou de pós encontra respaldo em uma articulação crítica subalternista, sobretudo quando esta visa “uma transformação teórica e epistemológica na academia”, como conclui Mignolo.36 Nessa direção, penso que um dos papéis da crítica fora do eixo é, ao invés de aceitar e replicar passivamente, desarticular o discurso crítico hegemônico formatado nas grandes academias dos grandes centros do país, que teima em achar que o que é pensado nos centros pode servir, em sua totalidade, para o que se produz nas periferias. Como nas periferias, nas margens da nação, nas universidades fora dos centros são produzidos outros saberes e outros conhecimentos, então nada mais necessário do que um outro (não novo) pensamento crítico para poder acompanhar tais produções descentralizadas. Uma crítica fora do eixo, ou pós-crítica, pode ser tomada como uma “razão subalterna” na medida em que ela é entendida como uma prática crítica que, ao rediscutir os conceitos impostos pela crítica do centro, desconstrói qualquer traço vinculado à velha crítica moderna (modernidade, ocidental, central). O que Walter Mignolo conceitua como “gnose liminar” ajuda-me na discussão que proponho: Assim, a gnose liminar é um anseio de ultrapassar a subalternidade e um elemento para a construção de formas subalternas de pensar. Dessa maneira, o “pós” em pós-colonial é significativamente diferente de outros “pós” em críticas culturais contemporâneas. Sugerirei posteriormente que há duas formas fundamentais de criticar a modernidade: uma a partir das histórias e legados coloniais (pós-colonialismo, pós-ocidentalismo e pós-orientalismo) e a outra, pós-moderna, a partir dos limites das narrativas hegemônicas da 37 história ocidental.

Na discussão proposta por Mignolo, “gnose liminar” e “pensamento liminar” são a mesma coisa. Na verdade, entendo que o pensamento gnosiológico do crítico vem se contrapor à 36

MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.139.

37

MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.140.

49

hermenêutica e à epistemologia, por serem estritamente acadêmicas. Também é nessa direção que se encaminha uma crítica pensada fora do eixo: torna-se um modo crítico capaz de construir “formas subalternas de pensar” que escapem ao modelo crítico imposto pelo centro, isto é, pela academia. Nessa direção, a crítica fora do eixo discute a construção de um “conhecimento” que, geralmente, encontra-se de fora da discussão da crítica articulada do/no centro. Geralmente também acontece o oposto: o trabalho crítico da crítica fora do eixo resume-se em repetir os conceitos e as lições decoradas (do centro), acreditando ser eles o “verdadeiro” e o “indiscutível” dentro de uma cultura acadêmica hegemônica, como a encontrada no país. Já sinalizei, mas vale a pena frisar, que não estou propondo separações dualistas e acríticas, quando pauto minha discussão entre “fora do eixo” e “eixo”, por exemplo. Minha leitura crítica, ao invés de simplesmente inverter o olhar binarista (da zona fora do eixo para o centro), visa descolonizar o ranço de uma epistemologia moderna demais que ainda repousa na articulação da crítica do centro quando o assunto é o resto da discussão crítica (o resto do país, o resto do mundo). O que ambos os olhares críticos precisam saber é que um crítico da margem, da periferia, logo que se encontra na condição de fora do eixo, não seria nunca o mesmo crítico que se encontra no centro, no eixo, pois “o primeiro está no local do objeto, não na do sujeito do estudo”.38 Como já dei a entender, minha leitura não visa inverter as posições, ou condições dos sujeitos críticos. Antes quero pensar que a crítica fora do eixo pode articular uma episteme crítica específica que, ao invés de rechaçar a crítica migrante do centro, barre sua pretensão de achar que pode representar o que é da ordem da especificidade exclusiva de uma crítica subalterna (das margens, fronteiras, limites, fora do eixo etc). Na sequência de sua discussão, por meio da qual mostra que gnose liminar e pensamento liminar são uma mesma coisa, Mignolo diz que essa reflexão liminar propõe um diálogo, por um lado, entre o 38

MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.35.

50

“debate sobre o universal/particular”, por outro, com a “noção de ‘insurreição dos saberes subjugados’” propostos por Foucault. Interessa-me, aqui, de modo particular tais saberes subjugados foucaultianos, por entender que eles ilustram mais de perto o saber subalterno gerado por uma crítica fora do eixo. De acordo com Foucault, os saberes subjugados deveriam ser compreendidos como algo que de certa forma é totalmente diferente, isto é, todo um sistema de conhecimento que foi desqualificado como inadequado para suas tarefas ou insuficientemente elaborados: saberes nativos, situados bem abaixo na hierarquia, abaixo do nível exigido de cognição de cientificidade. Também creio que é através da reemergência desses valores rebaixados, [...] que envolvem o que eu agora chamaria de saber popular embora estejam longe de ser o conhecimento geral do bom senso, mas, pelo contrário, um saber particular, local, regional, saber diferencial incapaz de unanimidade e que deve suas forças apenas à aspereza com a qual é combatido por tudo à sua volta ─ que é através do reaparecimento dessa saber, ou desses saberes locais populares, esses saberes desqualificados, que a 39 crítica realiza a sua função.

Um saber subalterno, essencialmente periférico e marginal de origem, sempre local, um “saber diferencial incapaz de unanimidade” e que deve suas forças à sua condição de produzir criticamente suas especificidades geoistórico culturais ─ assim pode ser nominado o saber produzido pelo pensamento crítico fora do eixo. Tal como Mignolo faz por todo seu livro, o filósofo francês, ao trabalhar a distinção entre saberes disciplinares e saberes subjugados, estava preocupado em “questionar a própria fundação do saber acadêmico/disciplinar e especializado”.40 Depois de nos lembrar que a genealogia propunha a “união de ‘saber erudito e memórias locais’”, Mignolo volta a citar Foucault, para quem o que a genealogia especificamente fazia era apoiar o direito à atenção dos saberes locais, descontínuos, desqualificados, ilegítimos, contra as pretensões de um corpo 39

Apud MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos globais, p.44. (grifos meus)

40

MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos globais, p.45.

51

unitário de teoria que pretendia filtrar hierarquias e ordená-las em nome de um saber verdadeiro e uma ideia arbitrária do que constitui 41 uma ciência e seus objetos.”

Sob o fio da navalha do dualismo, mas longe de uma condição de barricadas e fossos, a crítica fora do eixo volta-se para os saberes locais, subalternos por excelência, como forma, especificamente, de barrar as pretensões da crítica do centro enquanto um corpo unitário de crítica que pretenda filtrar hierarquias e ordená-las a seu belprazer em nome de um saber verdadeiro, centralizador, hegemônico e sumariamente excludente. Apesar de entender que Mignolo aproxima os saberes subjugados de Foucault de seus saberes subalternos, quero pensar que Mignolo avança a discussão foucaultiana: se, por um lado, Foucault apoia o direito à atenção dos saberes locais, há, contudo, o lugar para uma crítica centralizadora cujo papel e função realizar-se-iam a partir do momento em que essa crítica do centro encampasse os saberes subjugados; já Mignolo, por sua vez, ao propor sua discussão em torno dos saberes subalternos, o faz a partir da descentralização de uma crítica hegemônica embasada no “domínio da hermenêutica e da epistemologia enquanto palavraschave que controlam a conceitualização do saber.”42 É a condição de objeto de estudo, na qual se encontra a crítica fora do eixo, ou pós-crítica, que a convoca a construir formas subalternas de pensar. Também é por reconhecer que se encontra no lugar do objeto, ao invés da do sujeito que estuda, que o intelectual crítico fora do eixo propõe um diálogo entre centro x periferia, eixo x fora do eixo, Brasil x Estados Unidos, Brasil x América Latina, por exemplo, como forma de mostrar que, na verdade, ele não se encontra ad eternum nesse lugar que o determinaram como seu de origem. Em “Postoccidentalismo: el argumento desde América Latina” Walter Mignolo lamenta que a imagem subalterna da América Latina ─ ao que aqui estendo aos locais periféricos e 41

Apud MIGNOLO. Histórias locais/ projetos globais, p.45.

42

MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos globais, p.49.

52

subalternos, ex-cêntricos por excelência, sobretudo quando se tem um país colossal como o Brasil ─ ainda seja vigente na relação Norte e Sul, dentro e fora, e internamente como ilustra minha discussão em torno do fora do eixo x eixo. É lamentável, sobretudo, quando constatamos que o olhar crítico imperante e hegemônico ainda esteja assentado nessa perspectiva hierarquizante, cujo modo de olhar vesgo só consegue julgar o de fora tendo como parâmetro o que outrora fora pensado dentro. Leituras críticas contemporâneas têm, a seu modo, desfeito essa visada crítica universalizante, equivocada e preconceituosa, posto que ancorada numa hermenêutica e numa epistemologia acadêmica e disciplinar caducas demais. Entre tais leituras que vêm fazendo a diferença colonial, merece destaque o livro aqui exaustivamente citado Histórias locais/ Projetos globais (2003), de Walter Mignolo; o livro Teorias sin disciplina, organizado por Santiago Castro-Gómez y Eduardo Mendieta (1998) e o livro El giro decolonial (2007), de Santiago Castro-Gómez e Ramón Grosfoguel. Tais leituras fogem dos binarismos por não se prenderem mais a questões como particular e universal, nem muito menos à teoria da dependência cultural, tão exaustivamente estudada no Brasil e em toda a América Latina. No ensaio citado, ao mostrar a importância do “Pós-ocidentalismo” como trajetória do pensamento crítico na América Latina, Mignolo constata que uma dramática colonização intelectual ainda persiste: América Latina deja de ser el lugar donde se producen teorias, para continuar siendo el lugar que se estudia. [...]: la mirada desde el norte que convierte a América Latina en um área para ser estudiada, 43 más que um espacio donde se produce pensamiento crítico.

Tal problema, ressalvadas as diferenças, ocorre internamente no país (talvez ainda como um ranço da colonização), posto que compete à crítica do eixo (isto é, dos grandes centros massmidiáticos, das grandes universidades brasileiras que não por acaso recebem mais verbas públicas, redutos da intelligentsia brasileira) valer-se das periferias deste país continental com seus povos e línguas (como o 43

MIGNOLO. “Postoccidentalismo: el argumento desde América Latina”, s.p.

53

portunhol, o guarani, a linguagem do homem pantaneiro, só para citar os mais próximos de meu lócus cultural) para estudá-los, na maioria das vezes, como objeto, e quase sempre, aliás, e o que é mais daninho criticamente, como objeto exótico (herança romântica talvez), ou marginalizado, periférico, no mal sentido das palavras. Reconheço, todavia, que há uma boa intenção nessa crítica central(izadora), acadêmica e com sapientia demais, apesar de quase sempre falar sem conhecimento de causa (que contradição!), ou do lócus periférico com suas especificidades, o que dá no mesmo. Aliás, e para não perder o trocadilho, de boa intenção o inferno está cheio. O fato é que aquele crítico que julga do centro, não julga como aquele que está fora do centro, e vice-versa. Um dos motivos seria porque um não pode ocupar o lugar do outro. Articulo, por exemplo, minha reflexão, a partir da condição de fora do eixo em que estou situado dentro do país: uma zona territorial marcada pela transfronteiridade, banhada pelo pântano e pelo cerrado ao mesmo tempo, um centro (de região Centro-Oeste) sem centro, lugar limítrofe de lugares sem lei. De modo que uma zona fora do eixo somente pode produzir uma crítica fora do eixo que venha marcada por suas especificidades, sua espacialidade, sua condição geoistórico cultural. Insisto, na esteira de Mignolo, que, quando falo em crítica fora do eixo, falo em um lugar geográfico com uma história local particular: o estado de Mato Grosso do Sul e sua condição de fronteira com os países lindeiros Bolívia e Paraguai. Uma crítica erigida desse lócus e com essa consciência tem o papel político de contribuir para a restituição das histórias locais como produtoras de conhecimento que descentrem a crítica hegemônica que migrou e a epistemologia global imperante. Às vezes, parodiando Mignolo, é melhor as teorias e as críticas não migrarem para fora do eixo, ultrapassando fronteiras culturais acriticamente. Mais adiante volto a essa questão. Pensar criticamente sobre, ou a partir de uma condição de fora do eixo, que deve ser espacial e imaginária, ao mesmo tempo em que leva o crítico a propor uma nova epistemologia, também o ajuda a elaborar um pensamento crítico que, nas palavras de Mignolo, deriva das histórias locais. É nessa direção que entendo a 54

perspectiva pós-ocidentalista do crítico: ao invés de reproduzir as estruturas dos estudos de área, a epistemologia de uma crítica hegemônica, um discurso que visa uma totalidade, por ser acadêmico e disciplinar por excelência, tal perspectiva crítica ultracontemporânea propõe uma discussão crítica sem precedentes na história da crítica na América Latina. Quando Mignolo pontua as limitações das práticas disciplinarias, fica mais evidente o problema a ser enfrentado por uma crítica de natureza pós-ocidental, ou póscrítica: En la medida en que las prácticas académicas y científicas (ciencias sociales) se asientam en las regiones de gran desarrollo economico y tecnológico, las regiones de menor desarrollo economico y tecnológico no pueden competir o mantenerse al mismo nível em la producción de conocimientos. La tarea intelectual académica se divide entonces entre zonas donde se produce ‘conocimiento’ sobre 44 ciertas regiones y zonas em donde se produce ‘cultura’.

Se a zona do eixo não produz mais “conhecimento” sobre a zona fora do eixo (fronteiriça e marginal) como se pensava, então chegou a hora de se voltar para a compreensão do conhecimento e dos locais de cultura que emergem dessa zona atravessada por uma “epistemologia fronteriza” (Mignolo) específica: “la reorganización de la producción del conocimiento, desde uma perspectiva posoccidentalista, tendría que formularse em uma epistemologia fronteriza em la cual la reflexión (filosófica, literaria, ensayística), incorporada a las historias locales, encuentra su lugar em el conocimiento desincorporado de los diseños globales em ciencias sociales.”45 Uma epistemologia fronteiriça, uma crítica pós-crítica, ou uma crítica pós-ocidental, deve articular-se para além de quaisquer binarismos, se quiser constituir-se enquanto tal por fora de qualquer ranço de um pensamento hegemônico ocidental, de qualquer modernidade, de qualquer perspectiva acadêmica e disciplinar. É nessa direção que entendo que a “epistemologia fronteriza” 44

MIGNOLO. Teorías sin disciplina, s.p.

45

MIGNOLO. Teorías sin disciplina, s. p.

55

aproxima-se do “pensamento liminar” de Mignolo e que ambos ajudam-me a compreender melhor a forma como a crítica do eixo migra para as fronteiras, bem como o modo como a crítica dessa condição de fora do eixo “dialoga” com a hospedeira.

1 – As vidas na fronteira A crítica na fronteira, assim como a vida, é concebida e experimentada em e de perspectiva diferente46: por sua condição de fora do eixo, por seu lócus geoistórico cultural, por sua condição de transfronteiridade, está condenada a transculturar tudo o que recebe (hospeda) da crítica do centro, ou da de fora. Isso se dá, na verdade, com relação à crítica itinerante vinda do centro. Porque, na verdade, a vida na fronteira está mais para a condição de cultura na fronteira. Ambas, por conta da indissociabilidade entre línguas, povos e culturas, fundem-se quase que mutuamente. Com a crítica, todavia, reconheço que o processo dá-se um pouco diferente. Na prática acadêmica, a crítica da fronteira, isto é, subalterna e periférica, e que aqui a denomino de fora do eixo, está acostumada a receber acriticamente a crítica do eixo. Não estou dizendo que este seja o papel de uma crítica periférica. Aliás, a rubrica de subalterna sequer combina com esse trabalho acrítico passivo, no qual os conceitos, as lições arquitetadas nos centros hegemônicos, são simplesmente empregados nas discussões periféricas. Infelizmente, quando se trata de um país colossal como é o Brasil, onde as diferenças e os direitos (distribuição de valores, bolsas, projetos, condições de trabalho) variam ainda de acordo com as localizações das universidades públicas, e, claro, com as interferências políticas regionais, as diferenças entre centros e periferias, desenvolvimentos e atrasos, Norte e Sudeste (Sul) e Centro-Oeste ainda são gritantes. Nesse campo, o preconceito, por conta do desconhecimento de causa antes mencionado, é visível entre os discursos críticos do centro e os de 46

Ver MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos globais, p.340.

56

fora do eixo. Resta saber se os balbucios críticos dos discursos periféricos estão sendo escutados pela crítica dos centros desenvolvidos do país, ou se esta continua a fazer ouvidos moucos? Ou também se há alguma coisa para ser escutada, uma vez que a crítica fora do eixo foi simplesmente treinada para repetir como lição crítica incontestável o que aprendera com a crítica dos centros desenvolvidos? Na verdade, o que se percebe é que o exercício da repetição e da tradução, no mal sentido da palavra, foi levado à exaustão como a única forma de se adquirir o conhecimento crítico e, por conseguinte, de pô-lo em prática pelas academias periféricas. Estou aqui propositalmente pegando a relação eixo e fora do eixo dentro do país, mas, como já disse, entendo que a mesma relação pode, e deve, ser pensada entre países periféricos e Estados Unidos, América Latina e Brasil, por exemplo, e vice-versa. O diálogo crítico entre as críticas desses países não se dá de modo diferente. Homi Bhabha, em O local da cultura, ao trabalhar sobre a “teoria itinerante”, por meio da qual vejo que o espaço do povonação moderno nunca é simplesmente horizontal, adverte-nos de que “precisamos de um outro tempo de escrita que seja capaz de inscrever as interseções ambivalentes e quiasmáticas de tempo e lugar que constituem a problemática experiência ‘moderna’ da nação ocidental”.47 Todavia é o crítico argentino Walter Mignolo, em Histórias locais/ Projetos globais, que se detém em torno das “teorias itinerantes”. Assim, tendo por base o que propõe o crítico, sobretudo no capítulo “Os estudos subalternos são pós-modernos ou póscoloniais?”, vou discutir o modo como meu lócus geoistórico (o estado de Mato Grosso do Sul e sua condição de fronteira) hospeda e dialoga com a crítica itinerante vinda dos centros (internos e externos). O lugar geoistórico de onde articulo minha reflexão, o estado de Mato Grosso do Sul que fica ao Sul da região Centro-Oeste, mais precisamente na fronteira entre os países lindeiros Paraguai e Bolívia, 47

BHABHA. O local da cultura, p.201.

57

lugar mais comumente conhecido como lugar onde o sol de põe, tem produzido uma crítica acadêmica e midiática fora do eixo que, grosso modo, ao invés de procurar acompanhar o processo de transculturação continuum operacionalizado pela cultura local, não faz outra coisa senão autenticar a crítica vinda de fora. Se tal aceitação não fosse para compreender criticamente a cultura local e suas especificidades não veria tanto problema crítico; o problema é que tal gesto equivocado dá-se em torno da própria cultura do lócus em questão. A fronteira sem lei aqui em discussão, e que impõe os seus próprios limites, se, por um lado, pode representar simbolicamente a clareza (um processo transculturador arcaico e infinito do lugar), por ter o sol suspenso sobre ela, como que a demarcar os limites do sul-sul, por outro lado, enquanto lugar de fora do eixo, de periferia e de subalternidade, representa ‘el lado oscuro del renacimiento”.48 Um tom sombrio é detectável no modo como a crítica fora do eixo hospeda a crítica de fora, sobretudo porque aquela ainda não conseguiu se desvencilhar dos legados coloniais desta crítica que, por estarem marcados nas memórias locais e no melhor da reflexão do intelectual periférico, é reforçada como nova forma de colonização, e não como novo instrumento, para iluminar a inteligência de seus anfitriões ou revelar uma realidade que não poderia ter sido percebida sem o seu deslocamento para o lugar49 subalterno. Se a crítica do centro sofresse uma transculturação quando aqui chegasse, ela não exerceria esse papel iluminador e, por conseguinte, castrador, de achar que pode teleguiar a inteligência dos hospedeiros, nem muito menos visar revelar uma realidade que só seria vista como consequência de seu deslocamento do eixo para o fora do eixo. Tal crítica precisa ser, cada vez mais, posta sob suspeição por todos os anfitriões, e de modo especial pelos da academia, uma vez que compete a este tipo de intelectual não embarcar acriticamente nas epistemologias ancoradas numa tradição 48

Apud RODRíGUEZ. “Hegemonia y domínio: subalternidad, um significado flotante”, s.p. 49

Ver MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos globais, p.240.

58

do centro. Essa via de mão única que traduz o modo como a crítica subalterna recebe e hospeda a crítica do centro não permite que se discuta a relação, por exemplo, entre a produção do saber e o local geoistórico. Este, na verdade, que deveria ser o ponto de partida para uma articulação fora do eixo, acaba ficando completamente de fora do/no modo crítico hierárquico como vem acontecendo (do eixo para fora do eixo). As teorias, as críticas, todas viajam e em todas as direções. O problema reside quando elas não são transculturadas, como acontece e vem acontecendo com a crítica do centro e de fora que aporta nesse lado da fronteira-sul. E, por não sofrer uma transculturação, tal crítica não se torna um objeto de estudo. Antes, serve como meio estratégico, isto é, “epistemológico”, para estudar os objetos locais, inclusive a própria crítica fora do eixo e sua aferição enquanto tal. Zona de fronteira, “epistemologia fronteriza”, crítica migrante, pensamento liminar parece ser a saída para a discussão crítica aqui proposta. Não por acaso, fronteira, limite e liminar etimologicamente estão muito próximas. De acordo com o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, a palavra liminar significa aquilo “que constitui o começo, o início de alguma coisa, [...]; relativo a, situado em ou que constitui limite ou ponto de passagem; que antecede a passagem de um indivíduo a uma nova categoria ou posição social.” Estou, com isso, querendo contornar o desenho do lócus geoistórico no qual me situo, bem como o sujeito nele imbricado, visando pontuar um problema específico encontrado na crítica articulada desse lugar. Para tanto, recorro a Bhabha que, não por acaso, subintitula a Introdução de O local da cultura como “Vidas na fronteira”. Ali, desde a epígrafe que é de Heidegger, vejo a aproximação conceitual entre pensamento liminar e fronteira: “uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente”.50 Na sequência, Bhabha mostra que os limites epistemológicos dos discursos eurocêntricos são também as 50

Apud BHABHA. O local da cultura, p.19.

59

fronteiras discursivas dos sujeitos migrantes, isto é, subalternos. Aliás, a condição de ser ou estar migrante é a condição primeva de todo sujeito subalterno. É em torno dessa discussão, que o autor de O local da cultura reconhece que a fronteira se torna o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente em um movimento não dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalente, do além que venho traçando: ‘sempre, e sempre de modo diferente, a ponte acompanha os caminhos morosos ou apressados dos homens para lá e para cá, de modo que eles possam alcançar outras margens...A ponte reúne enquanto 51 passagem que atravessa.’

A definição dicionarizada de “liminar” e a fronteira enquanto lugar onde algo começa a fazer sentido captam a condição ambulante e ambivalente, fronteiriça e fora do lugar (do eixo), migrante de origem, na qual convive (sobrevive) todo e qualquer sujeito subalterno. Aprendo com o pensamento liminar de Mignolo que pelo fato de o crítico fora do eixo habitar e vivenciar na condição de liminalidade, ele pode captar e traduzir sua experiência por meio de sua reflexão crítica. Ou seja, vê-se com isso que é possível “teorizar da margem”, como diz Mignolo. Esse tipo de crítico, de intelectual, tem o domínio de toda uma “teorização civilizada” encontrada nos centros, mas, diferentemente dos críticos dos centros, tem também uma “teorização bárbara”: esta reflexão crítica fora do eixo acaba sendo para todos os mundos, inclusive (neste caso partindo de um resto específico: a fronteira-sul de Mato Grosso do Sul que convive perenemente aberta para toda a América Latina) para os outros restos do mundo (justifico aqui o subtítulo deste ensaio), porque transcultura suas especificidades com base em seu lócus geoistórico cultural e uma nova epistemologia que advém desse processo cultural transculturador. No bojo dessa discussão, entendo que só uma crítica selvagem pode acompanhar e compreender os passos do sujeito migrante subalterno dessa região marcada pela transfronteiridade, cujo destino é andar por sobre a 51

BHABHA. O local da cultura, p.24. (grifos do autor)

60

navalha ou condição de imensidão (espacialidade) que redesenha o mapa geoistórico do lugar. Mignolo emprega a palavra “margem” no sentido de “limiar e liminalidade, como dois lados ligados por uma ponte, como um local geográfico e epistemológico”.52 Como podemos apreender das passagens de Bhabha e de Mignolo, o sujeito subalterno reúne-se, encontra-se consigo mesmo no tempo presente da travessia, sua única condição. A fronteira pode ser o caminho que aponta para os dois lados. A condição para a sustentação de um discurso crítico fora do eixo depende de o intelectual saber, primeiro, inscrever-se com base em todas suas “sensibilidades’ pessoais/locais e, ao mesmo tempo, que seu discurso crítico subalterno ancora-se tanto no lócus territorial quanto no epistemológico. Ainda sobre a discussão, Mignolo explica que as margens “não são mais as linhas onde se encontram e dividem a civilização e a barbárie [“a ‘fronteira da civilização’ em fins do século 19 tornou-se a ‘margem’ do fim do século 20”), mas o local onde uma nova consciência, uma gnose liminar, emerge da repressão acarretada pela missão civilizadora”.53 Se no Brasil, e aqui pensando especificamente no bojo da crítica nacional, por um lado, os limites entre as margens e os centros, o eixo e o fora do eixo estão bem delimitados, por outro lado, o que não está bem especificado é o modo como a crítica articulada nos grandes centros do país dialoga com as críticas periféricas que vêm emergindo das bordas da nação. Talvez me reste lembrar, e aqui sempre na esteira do pensamento liminar do crítico, que as fronteiras internas do país não são mais “um espaço a ser conquistado” nem criticamente. As fronteiras, as margens, não são mais o lugar onde fica o resto do mundo. O resto do mundo não é mais aqui. Nenhuma fronteira neste século XXI pode mais ser estudada pelo outro, quer este seja de fora ou de dentro. Enquanto lugar que amalgama as histórias locais, as fronteiras produzem sua própria teoria e crítica específicas que escapam a qualquer ideia de universalidade. O resto do mundo da fronteira-sul 52

MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos globais, p.416.

53

MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos globais, p.404.

61

situa-se na mobilidade dos pássaros do poeta que voam “depois do último céu”,54reunindo-se na dispersão, num tempo presente continuum da história. As vidas na fronteira, assim como a crítica que se articula na encruzilhada da transfronteiridade, transformam-se, como transculturam-se as fronteiras. São as “sensibilidades”, isto é, as especificidades, que pontuam suas diferenças geoistórico culturais. Tais sensibilidades, ou especificidades, talvez por constituírem o campo do bios, não são intrínsecas à natureza; antes “formam-se e transformam-se, criam-se e perdem-se” no decorrer da vida.55 Quando, no início de minha reflexão, incluí a questão da territorialidade como essencial para a discussão que propunha, era porque tinha aprendido com Mignolo que as sensibilidades dos locais geoistóricos relacionam-se com um sentido de territorialidade, incluindo “a língua, o alimento, os odores, a paisagem, o clima e todos os signos básicos que ligam o corpo a um ou diversos lugares”.56 Uma crítica fora do eixo articula-se com base nessas sensibilidades que são inerentes ao seu lócus geoistórico. Na esteira do crítico, são essas sensibilidades que deveriam orientar qualquer reflexão crítica, quer esta seja feita do eixo, ou de fora do eixo. Antes de alçar vôo para fora do último céu, a crítica fora do eixo precisa reconhecer as marcas históricas colonizadas em seu próprio corpo.

54

Referência à pergunta do poeta Mahamoud Darwish “Para onde devem voar os pássaros depois do último céu?”. Ver Bhabha. O local da cultura, p.198. 55

MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos locais, p.264.

56

MIGNOLO. Histórias locais/ projetos globais, p.264.

62

CAPÍTULO III PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM DA CRÍTICA FRONTERIZA57 A “fronteira da civilização” em fins do século 19 tornou-se a “margem” do fim do século 20. Margens, ao contrário de “fronteiras”, não são mais as linhas onde se encontram e dividem a civilização e a barbárie, mas o local onde uma nova consciência, uma nova gnose liminar, emerge da repressão acarretada pela missão civilizadora. MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p. 404.

57

Uma primeira versão deste texto saiu nos CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: fronteiras culturais, p. 35-51.

Não foi apenas a fronteira da civilização que se tornou a margem do fim do século XX, como afirma Mignolo na passagem aposta como epígrafe e abertura deste ensaio. As teorias todas, a exemplo da velha teoria literária, passaram por um revisionismo crítico sem precedência na história da epistemologia ocidental. Os conceitos foram revisitados e rediscutidos, sobretudo com a finalidade de se verificar o que neles, ou deles, ainda servia para pensar as mudanças advindas com a chegada do século XXl. A perspectiva disciplinar chegou ao seu término, e isso graças à reflexão imposta pelo que era da ordem do trans-. A abordagem crítica que primava tão somente pela epistemologia assentada no valor estético entrou em colapso. Enfim, tudo o que era da ordem da homogeneidade e da totalidade foi veementemente rediscutido pelas novas abordagens epistemológicas que se cristalizaram nesta virada de século. Aprendemos com essas teorias subalternas que não há mais lugar para as reflexões dualistas, preconceituosas e sumariamente excludentes. (Lembro, apenas, a la Drummond, que no meio desse caminho crítico temos a globalização que impera no mundo.) Essas teorias, formuladas no centro ou fora do centro, mas sempre preocupadas com os países emergentes ou periféricos, nos permitem pensar hoje, de modo crítico, para além de qualquer visada dualista, mesmo quando ainda algumas separações se façam de modo discrepante, bem como seja um consenso crítico de que o mundo careça de democracia para todos. Ilustra o que estou querendo dizer, assim como aponta a direção a ser seguida por minha discussão crítica, uma nota de Mignolo aposta logo no início de seu livro Histórias locais/Projetos globais, que merece ser transcrita na íntegra: Disseram-me uma ou duas vezes que não deveria falar de Primeiro, Segundo e Terceiro Mundos porque tais entidades nunca existiram. Gostaria de salientar que não estou falando sobre a entidade, mas sobre a divisão conceitual do mundo, que, como tal, existiu e continua existindo, mesmo que a configuração do mundo já não seja a mesma que originou a classificação. Sinto-me obrigado a desculparme por introduzir esta nota, mas ao mesmo tempo não posso evitála. (MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p. 162)

Primeiro, Segundo e Terceiros mundos, centros e periferias, eixos e foras do eixo, fronteiras e não fronteiras se, por um lado, não interessam mais para a discussão crítica desta virada de século enquanto entidades, e não que tais entidades não tivessem existido, por outro lado, trazem no seu bojo a divisão conceitual delas no/do mundo que precisa, sim, ser discutida criticamente como forma, inclusive, de resolver parte das injustiças sociais, políticas e epistemológicas que ainda imperam no mundo global. Sob o fio da navalha do dualismo deve emergir uma nova epistemologia que consiga fazer compreender o outro em sua relação diferencial. A crítica também, não mais como entidade, mas como divisão conceitual do mundo, precisa ser enfrentada, nesta virada de século, posto que novos valores e, por extensão, novas epistemologias emergem das fronteiras que simplesmente não tem como serem aferidos por uma crítica articulada nos centros, ou melhor, como prefiro, nos grandes eixos dos países e suas megalópoles. Os descentramentos conceituais, a inserção da periferia, das margens, do subalterno, bem como a proposta de uma revisão teórico-crítica, foram feitos tendo por base o olhar de uma crítica sempre situada nos grandes eixos, ou centros desenvolvidos, quer se tratasse de uma crítica pensada dentro dos grandes centros universitários do Brasil, por exemplo, quer se tratasse de uma crítica articulada dos Estados Unidos. Tal trabalho preparou o caminho para, a partir deste século que se inicia, se começar a escutar a proposta crítica articulada pelas epistemologias fronteiriças assentadas em loci geoistóricos culturais subalternos específicos. Mais do que uma mera ilustração, o lócus a partir de onde articulo minha reflexão crítica aqui deve embasar o próprio diferencial epistemológico defendido: trata-se do Estado de Mato Grosso do Sul, situado ao sul da Região Centro-Oeste do país, que, por sua vez, faz fronteira com os países Bolívia e Paraguai. Do lado de cá da fronteira seca, terra, aliás, que um dia pertencera ao Paraguai, temos a cidade histórica de Corumbá, tendo do lado da Bolívia a cidade de Porto Quijaro. Descendo a linha real e imaginária da fronteira, encontramos ainda, entre outras cidades, Porto Murtinho (MS) e Puerto Carmelo Peralta (PY), Bela Vista (MS) e Bella Vista Norte (PY), Ponta Porã (MS) e Pedro Juan Caballero (PY),

66

Coronel Sapucaia (MS) e Capitan Bado (PY). Para além de uma demarcação territorial, uma fronteira é uma relação intersticial por excelência. Desses lugares intersticiais, uma fronteira não tem dentro nem fora, nem lado de cá nem de lá, confirmando, assim, sua natureza porosa. Uma fronteira, epistemológica e conceitualmente falando, trabalha contra qualquer ideia de moderno ou de pensamento dualista. A proposta de Boaventura de Sousa Santos, em torno do pensamento moderno ocidental como um pensamento abissal, ilustra nossa discussão acerca de uma epistemologia conceitual sobre fronteira. O pensamento dualista abissal consiste, segundo o autor, num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que estas “são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’”. (SANTOS, 2010, p. 31-32) Dessa perspectiva dual e moderna por excelência, o outro lado da linha torna-se simplesmente inexistente e é produzido como tal. “Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível”, afirma Santos. O pensamento abissal simplesmente não permite a copresença dos dois lados da linha da fronteira. Para além do lado de cá da linha, temos apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialética, como postula Santos. Do lado de cá da linha real (e imaginária) da fronteira reina o que é da ordem do legal ou do ilegal, da lei, de acordo com o direito oficial do Estado ou com o direito internacional. Pensando especificamente na zona de fronteira que caracteriza o locus aqui em debate, tal dicotomia, segundo Santos, “deixa de fora todo um território social onde ela seria impensável como princípio organizador, isto é, o território sem lei, fora da lei, o território do alegal, ou mesmo do legal e ilegal de acordo com direitos não oficialmente reconhecidos”. (SANTOS, 2010, p. 34) É esse território social fora da lei que encontramos na fronteira seca entre Mato Grosso do Sul (Brasil), Bolívia e Paraguai: sem-terras, nômades, andarilhos e andariegos, bugres e índios, sul-mato-grossenses, bolivianos e paraguaios, brasiguaios, que vivem ao deus-dará, atravessam e são atravessados pelos lugares fronteiriços em busca de melhores condições de vida. Se há um descaso do poder do Estado

67

para com tais cidadãos, no sentido de oportunizar reais condições para uma vida mais digna, há também, como se pode constatar com uma certa facilidade, uma disputa nem sempre velada entre tais sujeitos-fronteiras. A fronteira aqui em debate revela, de forma especular, tanto o lado de cá quanto o lado de lá de sua linha. Já por fora de uma visada dualista, reconheço que a condição na qual se encontra o homem-fronteira é sub-humana em todos os sentidos possíveis. Por mais real que o espaço fronteiriço seja, o estado não consegue atingir seu limite. A impressão que se tem é que o desenvolvimento, o que é da ordem do direito e da justiça, os acessos etc, só conseguem chegar até às terras dos latifundiários que se perdem em sua própria imensidão. O lado de cá da linha da fronteira não contempla o mundo fora da lei que grassa do outro lado encoberto por um crepúsculo sombrio, apesar de o sol se pôr sempre daquele lado real e imaginário. “O outro lado da linha compreende uma vasta gama de experiências desperdiçadas, tornadas invisíveis, tal como os seus autores, e sem uma localização territorial fixa.” (SANTOS, 2010, p. 34) Vivendo sob o fio da navalha da exclusão, resta ao homem subalterno invisível da fronteira, ou permanecer em sua condição (lugar) e sobreviver à ignorância do poder estatal, ou se embrenhar pelas rotas clandestinas dos traficantes e contrabandistas visando chegar na calada da noite aos centros urbanos, verdadeiras “zonas civilizadas”.58 Com base no exposto, o reconhecimento da persistência do pensamento abissal e a importância do pensamento pós-abissal propostos por Santos contribuem para a ideia que defendo aqui na medida em que ambos ajudam-nos a pensar numa epistemologia crítica contemporânea por fora da visada dualista que imperou até 58

“As zonas selvagens urbanas são as zonas do estado de natureza hobbesiano, zonas de guerra civil interna como em muitas megacidades em todo o Sul global. As zonas civilizadas são as zonas do contrato social e vivem sob a constante ameaça das zonas selvagens. Para se defenderem, transformam-se em castelos neofeudais, os enclaves fortificados que caracterizam as novas formas de segregação urbana (cidades privadas, condomínios fechados, gated communities.).” (SANTOS, 2010, p.45)

68

final do século XX. De acordo com Santos, o pensamento pós-abissal propõe uma ruptura radical com as formas modernas cristalizadas no pensamento ocidental, significando, assim, “pensar a partir da perspectiva do outro lado da linha, precisamente por o outro lado da linha ser o domínio do impensável na modernidade ocidental.” (SANTOS, 2010, p. 53). Ajuda-me a não incorrer numa abordagem crítica dualista situar nossa perspectiva epistemológica “na experiência social do outro lado da linha, isto é, do Sul global nãoimperial, concebido como a metáfora do sofrimento humano sistêmico e injusto provocado pelo capitalismo global e pelo colonialismo.” (SANTOS, 2010, p. 53). Ao Sul-Sul da região central do Brasil, outrora marcada pela marcha para o Oeste, onde perto do coração selvagem (da crítica fronteriza) contrapõe-se ao coração imperial hegemônico dos centros, vou encontrar uma crítica bárbara e selvagem que, para emergir da escuridão abissal, teve que aprender com a sua específica condição de Su(l)balterna. “O pensamento pós-abissal pode ser sumariado como um aprender com o Sul usando uma epistemologia do Sul” (p. 53), conclui Boaventura Santos.

1- Entre bárbara e selvagem: a crítica fronteriza Etimologicamente, bárbaro e selvagem estão muito próximas. De acordo com o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, a primeira palavra significa, entre outras coisas, aquele que “pertencesse a outra raça ou civilização e falasse outra língua ...”, enquanto a palavra selvagem pode significar, entre outros, aquele “indivíduo não civilizado ou de civilização primitiva; nômade, bárbaro. [...] aquele que vive longe dos aglomerados urbanos.” O recorte que faço não é casual. O fato de o sujeito bárbaro e selvagem fazer uso de uma outra língua, encontrar-se numa condição de nômade, de andarilho, e de viver longe dos grandes centros do país, ilustram sobremaneira o sujeito subalterno da fronteira sem lei aqui privilegiada. Entendo que não há sequer a possibilidade de se pensar em uma reflexão dualista nessa discussão, tipo bárbaro não bárbaro, selvagem x

69

civilizado, uma vez que estou exatamente preocupado em mostrar a importância da demarcação do lócus geoistórico de uma crítica de natureza subalterna. Se não sou um sujeito diretamente envolvido na ação, como todos os que se encontram vivendo dentro do espaço intervalar da fronteira (a ex. dos brasiguaios), enquanto intelectual nascido, criado e que pensa da zona de fronteira posso erigir uma crítica fronteriza que, diferentemente daquela pensada dos/pelos centros do país, represente mais de perto a condição de ser e estar do homem dessa região transfronteiriça. Desde o título deste livro, Perto do coração selvagem da crítica fronteriza, já se tem sinalizado que uma crítica de natureza fronteriza constroi-se com base num lugar ex-cêntrico, isto é, fora do centro, à margem. Aliás, é essa condição que vai permitir que se estruture toda uma teoria específica dessa crítica. Em outro momento, denominei tal crítica de fora do eixo, por se apresentar por fora da crítica articulada nos grandes centros desenvolvidos do país e até da América Latina e Estados Unidos. Walter Mignolo, quando, em seu magistral livro Histórias locais/Projetos globais, discute sobre a teorização pós-ocidental/colonial (discussão essa, aliás, que atravessa todo o livro), compara-a a uma espécie de “teorização bárbara”. Desse modo, aqui vou me valer dessa teorização para articular minha reflexão a respeito do que estou chamando de crítica selvagem, fronteriza (fora da lei), tendo como ilustração a fronteira sem lei do estado de Mato Grosso do Sul com os países lindeiros Bolívia e Paraguai. Articular uma crítica selvagem, da fronteira ou da margem demanda, de início, que o crítico subalterno privilegie um “local filosófico”, o que quer dizer, na esteira de Mignolo, que “a localização é não apenas geográfica, mas histórica, política e epistemológica.” (MIGNOLO, 2003, p. 158). Um local epistemológico específico dessa crítica selvagem que, se, por um lado, opõe-se à crítica pensada nos grande eixos do país e do mundo, por outro lado, articula-se “a partir da situação na qual foram colocados” ou se encontram os sujeitos que vivem na condição de fronteira, como o brasiguaio, o ervateiro, o pantaneiro, o indígena etc. Mas apenas isso

70

não basta: é preciso que o crítico tenha uma “conciencia mestiza” (Anzaldúa), uma consciência de homem-fronteira, de “liminalidade” (Mignolo). Tal consciência crítica rubrica a condição de marginalização, de subalternização, de periferia do próprio crítico que se predispõe a pensar sobre o sujeito subalterno, mesmo quando o crítico articula sua reflexão de fora de um lócus “terceiromundista”. Por mais contraditório que possa parecer, a um crítico selvagem ou fora do eixo está predestinada a articulação de sua “teorização bárbara” sempre da condição de transfronteiridade. Essa consciência crítica põe em discussão os limites da civilização (ocidental e moderna) e, por conseguinte, a ascensão da teorização bárbara (Mignolo). Com base nessa consciência bárbara e selvagem, compete à crítica fronteriza desreprimir tudo o que foi imposto à revelia pela crítica moderna dos centros, recheada de intenção civilizadora, educadora e detentora de uma lição/missão salvífica. Da perspectiva da epistemologia crítica moderna, a fronteira era, de acordo com Mignolo, “a linha divisória entre a civilização e a barbárie” (p. 403). Não por acaso tivemos no Brasil a marcha para o Oeste que também visava a busca pela civilização, pela descoberta e pelo progresso. O problema é que junto com a boa intenção nacional vinha a peste da sapientia das regiões mais desenvolvidas do país. Acertadamente lembra-nos Mignolo que a “fronteira” também era epistemológica: “o local do primitivo e do bárbaro era a ‘terra vazia’, do ponto de vista da economia, e o ‘espaço vazio’ do pensamento, da teoria e da produção intelectual.” (MIGNOLO, 2003, p. 403) Nessa perspectiva dualista assentada entre a civilização e a barbárie, o centro e a periferia, o desenvolvimento e o atraso, o culto e o inculto, o letrado e o não-letrado, erigiu-se uma crítica nacional e moderna que simplesmente subjugou a “sensibilidade bárbara” por considerar que ela não contribuía com a teorização imposta. Por falar em “sensibilidade bárbara”, vejo, hoje, que o que ficou de fora da discussão crítica foi todo um bios cultural dos lugares e dos povos fronteiriços do país de dimensão continental. Aqui não tenho como não repetir a epígrafe deste texto: A “fronteira da civilização” em fins do século 19 tornou-se a “margem” do fim do século 20. Margens (Anzaldúa, 1987), ao

71

contrário de “fronteiras”, não são mais as linhas onde se encontram e dividem a civilização e a barbárie, mas o local onde uma nova consciência, uma gnose liminar, emerge da repressão acarretada pela missão civilizadora (MIGNOLO, 2003, p. 404).

Longe de uma visada dualista, margens/fronteiras, enquanto o local onde uma nova consciência emerge, demandam a delimitação de um local geográfico específico, assim como fez Anzaldúa em Borderlands ao pontuar a borda fronteiriça Estados Unidos – México. Se essa fronteira específica tratada por Anzaldúa, por todo seu livro, es una herida abierta onde o Terceiro Mundo se roça contra o Primeiro e sangra59, entendo que tal metáfora encobre todo tipo de fronteira e sua condição, inclusive epistemológica. Quando transportada essa imagem metafórica para a fronteira seca aqui em questão, encontro a ferida aberta que sangra em prol de todas as diferenças, os mandos e os desmandos, o abuso e o poder, inclusive do estado, a falta de lei, a injustiça, o mundo babélico das línguas e as intempéries, e ciclicamente a paisagem sangrenta contrapõe-se e é encoberta pelo crepúsculo oscilante da fronteira. Se a fronteira Sul da região Centro-Oeste do país não se resume mais a “um espaço a ser conquistado”, então chegou a hora de a crítica selvagem do lugar barrar toda e qualquer perspectiva acadêmica e disciplinar, quer esta seja gerada nos centros ou nas próprias universidades de fora do eixo, bem como destreinar-se do velho costume de simplesmente copiar e repetir acriticamente a lição advinda e imposta dos grandes centros ou de fora do país. A condição crítica na qual se encontra a crítica selvagem não é a de “ imagens convivais das zonas de contato”, nem muito menos aquela de “o bárbaro se curvando e entrando na civilização” (Mignolo); antes trata-se de uma questão de direito, de desreprimir tudo o que a história reprimiu em nome do que era bom para todos, não respeitando as diferenças específicas de cada um, sobretudo “a auto-apropriação de todas as boas qualidades negadas aos bárbaros”. (MIGNOLO, 2003, p. 410). A teorização 59

“The U.S.-Mexican border es una herida abierta where the Third World grates against the first and bleeds.” (ANZALDÚA. Borderlands: the nem mestiza= La frontera, p.25.) [ tradução livre]

72

bárbara da crítica selvagem, por encampar toda uma complexidade específica (geoistórica, racial, nômade, fronteiriça, andarilho etc), emerge, assim como o “pensamento liminar” de Mignolo, contra as condições de vida cotidiana “criadas pela globalização econômica e pelas novas faces da diferença colonial” (MIGNOLO, 2003, p. 410). De toda a discussão envolta a uma “teorização bárbara” feita por Mignolo sobressai-se, de meu ponto de vista, a ideia de “teorizar da margem” (p. 416). Logo, uma crítica selvagem, bárbara ou fronteriza propõe uma reflexão que, sem desconsiderar a reflexão crítica feita nos centros, parte da experiência do sujeito (crítico) imbricado e das especificidades locais geoculturais e epistemológicas. Não basta ao crítico selvagem ter apenas uma formação em “teorização civilizada”. É necessário que ele tenha a experiência bárbara daquele que “habita e vivencia” o “Terceiro Mundo” ou a terceira margem da fronteira. Grosso modo, o intelectual da fronteira tem uma formação da “teoria civilizada” e, talvez, exatamente por isso, não faz outra coisa senão repetir a exaustão a lição aprendida no centro civilizado, não compreendo, por sua vez, que o moderno, dependendo do lócus cultural, soa como o que há de mais ultrapassado sobre a terra. Como estamos numa discussão crítica que se dá para além dos dualismos, é escusado dizer que a reflexão bárbara não se restringe à sua condição de fronteiridade, sobretudo porque compete a ela deslocar e causar ruptura na “teorização civilizada”. Não é demais repetir Mignolo sobre isso: “a teorização do Terceiro Mundo é também para o Primeiro Mundo no sentido de que a teoria crítica é absorvida e incorporada num novo local geocultural e epistemológico.” (MIGNOLO, 2003, p. 417) A tríplice fronteira seca que ilustra minha discussão, situada entre o pântano e o cerrado, marcada pelo abandono e a expansão territorial, lugar sangrento na história local que se contrapõe à cor sanguinolenta do crepúsculo, onde sujeitos transitam numa aparente liberdade, se, por um lado, assemelha-se ao “porongo” ou “balaio cultural” (Serejo) enquanto receptáculos condenados a receber passivamente o saber, a cultura e a civilização dos grandes centros desenvolvidos, por outro lado, escavou para si o direito da escolha de poder pensar nas e a partir das margens, como forma de barrar os 73

discursos acadêmicos e disciplinares que ainda tentam se impor por meio do saber escolástico. Mais do que nunca, entra em cena o intelectual da zona de fronteira: sabe que precisa adotar para si, para ancorar sua reflexão crítica, o “pensamento liminar”, da fronteira, da margem, do injustiçado, do excluído, do subalterno, para provocar uma ruptura na epistemologia moderna que se cristalizou com a tradição. Uma crítica selvagem permite, na esteira do pensamento liminar de Mignolo, remapear as culturas e os discursos do conhecimento acadêmico em torno dos quais se mapeou o mundo e modelou o discurso hegemônico e imperial que predominou no mundo moderno. É pelo fato de o pensamento fronteiriço, que estrutura a crítica bárbara e selvagem, situar-se nas bordas e margens das histórias locais que sua perspectiva epistemológica tem de ser de natureza subalterna. Aliás, a condição de existência e de permanência de uma crítica selvagem nas margens globais é a articulação contínua de uma epistemología fronteriza.

2 – As incertezas das margens Mas precisamos abrir o espaço que a epistemologia roubou à gnosiologia e tomar como seu objetivo não Deus, mas as incertezas das margens. Nossos objetivos não são a salvação, mas a descolonização e a transformação da rigidez de fronteiras epistêmicas e territoriais estabelecidas e controladas pela colonialidade do poder, durante o processo de construção do sistema mundial colonial/moderno. (MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p. 35.)

Na tríplice fronteira (Brasil/ Bolívia/paraguai), onde as linhas se bifurcam, onde a “zona colonial” se impõe, onde o que é da ordem da lei e do fora da lei guerreiam entre si, onde a franja do Sul é barrada pelo pôr do sol sanguinolento que (re)torna, resta-me perguntar onde fica a terceira margem da fronteira sul que é seca e íngreme ao mesmo tempo? Tal qual os atravessadores, ou homemfronteira, que por ela passam e vivem, um saída estratégica talvez seja aquele sentido inverso proposto por Rosa logo no começo do conto “Sanga puytã”, quando afirma que “sul avante, senso inverso,

74

entramos a rodar as etapas da Retirada da Laguna (ROSA, 1985, p. 26). Pelo caminho do sentido inverso do instituído vou rediscutindo a epistemologia moderna, o que é da ordem do saber acadêmico e disciplinar, da colonialidade do saber etc. Seguindo o tom de registro de diário de viajante que encontro propositalmente no conto rosiano, conforme adentro os lugares fronteiriços que se desvelam, vou percebendo que a História vai se rarefazendo. Na travessia, encontro vários sujeitos que vivem a sua condição de atravessados, como, por exemplo, as paraguayitas bordando em ponto de nhanduti e o “povo fronteiro, misto, que, cá e lá, valha chamarmos brasilguaios, num aceno de poesias” (ROSA, 1985, p. 27). Na fronteira sem lei, o escritor brasileiro adverte-nos que os povos atravessadores estão sempre trazendo sua cultura, inteiriça. Em se tratando de países, povos e culturas fronteiriços, é bom lembrar que sempre há influxos e refluxos, assim como os lugares, o território do lado de cá, por exemplo, rebrasileira muita coisa alheia, também a fronteira move-se numa transfronteiridade sem fim. Na confluência das línguas marginalizadas da fronteira, no bilinguajamento e nunca no monolinguajamento, ocorre a impressão de um país estar recuando (Rosa) e, diferentemente do que pensam alguns, se, por um lado, tudo se passa num estilo convivente, por outro lado, há uma luta de poder sangrenta que vem assinalada desde o nome do lugar fronteiriço: “Sanga puytã”.60 A luta se trava entre os povos, as línguas, as culturas e o poder. É sintomático disso uma cena descrita por Rosa: “Em Dourados, uma mulher mostra seu filho, menino teso como um guaicuru: ─ “Paraguayo, no, Brasilerito! ...” (ROSA, 1985, p. 28). O desejo de poder inscrito na fala da mulher sinaliza o cuidado que devemos ter em toda negativa que ronda o sujeito subalterno e seu lócus da perspectiva do discurso moderno e colonizante. Tal qual a luta travada entre os sujeitos em sua condição 60

E espalham-se os puytãs ─ os ponchos de sarja escarlate ─ que transitam, contra horizontes e céus, como fúcsias enormes, amadurecendo um vaqueiro num cardeal, pingando de sangue o planalto, nas léguas instantâneas da paisagem, ou acendendo no verde do Pantanal tochas vagantes. (ROSA. Ave, palavra, p.27)

75

de fronteira, inclusive pela sobrevivência, a crítica selvagem ou de fronteira luta para que o lócus de enunciação crítica se desloque dos eixos para os foras do eixo, do Primeiro para o Terceiro Mundo, reivindicando a legitimidade da “localização filosófica” (Mignolo), da localização epistemológica específica da fronteira. Não por acaso Mignolo lembra-nos que Gloria Anzaldúa considerava as fronteiras como lugares onde cai a distinção entre o interior e o estrangeiro: “as próprias fronteiras tornam-se o lugar de reflexão e libertação de temores construídos pelos intelectuais nacionais sobre o que possa vir de fora”. (MIGNOLO, 2003, p. 353). Deve-se considerar também nessa discussão o que possa vir de dentro dos grandes centros desenvolvidos para as zonas periféricas, sobretudo quando se tem em discussão um país continental como o Brasil. Aqui a separação entre eixo e fora do eixo, centro e periferia, avanços e atrasos, lugares que geram saber e lugares que recebem o saber, distribuição injusta de direitos de toda espécie ainda é muito grande.61 Mas as fronteiras são mais do que a distinção entre o interior e o estrangeiro e mais do que o lugar de reflexão. De acordo com Anzaldúa: Fronteiras são organizadas para definir os lugares que são seguros e não seguros, para nos distinguir deles. Uma fronteira é uma área de divisão, uma faixa estreita ao longo de uma borda íngreme. Uma fronteira é um lugar vago e indeterminado criado pelo resíduo emocional de um limite não natural. Está em um constante estado de transição. O proibido e o não permitido são os habitantes. Los 62 atravesados vivem aqui: [...]

Na fronteira sul de Mato Grosso do Sul, de Puerto Quijaro (BO) e Pedro Juan Caballero (PY), os atravessados vivem: os sem-terras, os 61

Ver NOLASCO. Crítica fora do eixo: onde fica o resto do mundo? In: CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: cultura local, P.27-41 62

Borders are set up to define the places that are safe and unsafe, to distinguish us from them. A border is a dividing line, a narrow strip along a steep edge. A borderlands is a vague and undetermined place created by the emotional residue of an unnatural boundary. It is in a constant state of transition. The prohibited and forbidden are its inhabitants. Los atravesados live here: [...]. (ANZALDÚA, p.25) [tradução livre]

76

brasiguaios, os índios, os foras da lei, os brasileiros (brasileritos), os paraguaios (paraguaytos), os bolivianos (bolivianitos), os agricultores, os peões, o pantaneiro, o vaqueiro, o gaúcho e outros povos ─ todos, enfim, em sua condição de atravesados, atravessam e são atravessados pela sua condição de homem-fronteira. Essa condição de sujeito marginalizado, excluído e subalterno e sua luta pela sobrevivência também fazem parte das incertezas das margens. Como se lê na epigrafe aposta acima, resta-nos (e à crítica) trabalhar no sentido de articular uma epistemologia fronteriza (Mignolo, Anzaldúa) que dê conta de descolonizar e transformar essa vida rígida encontrada na fronteira-sul que mais se assemelha a uma eternidade. Talvez este seja o maior papel da crítica selvagem: o de partir as fronteiras, sobretudo, e principalmente, a epistemológica, para que as diferenças democráticas, de direito e de justiça pelo menos se amenizem nessas bordas belicosas onde os sujeitos subalternos ancoram seu bios. Walter Mignolo, em “Postoccidentalismo: el argumento desde América Latina”, afirma, sobre sua análise do livro Borderlands, de Anzaldúa, que ele não é apenas um momento teórico fundamental para a construção de categorias geoculturais não imperiais, mas indica uma direção possível para a superação do ocidentalismo. Anzaldúa mostra a necessidade de uma epistemologia fronteiriça, pós-colonial, que permita pensar e construir pensamentos a partir dos interstícios e que possa aceitar que os imigrantes, os refugiados, os homossexuais, etc., são categorias fora da lei com base em uma epistemologia monotemática que normaliza determinados espaços (nacionais, imperais), como espaços de contenção e marginalização. 63 (MIGNOLO, 1998, s.p.)

63

[Anzaldúa] muestra la necesidad de uma epistemologia fronteriza, posoccidental, que permita pensar y construir pensamiento a partir de los intersticios y que pueda aceptar que los inmigrantes, refugiados, los homosexuales, etc, son categorias fuera da lei desde uma epistemologia monotópica que normaliza determinados espacios (nacionales, imperiales), como espacios de contencíon y de marginación. (MIGNOLO, 1998, S.P.) [tradução livre]

77

A passagem do autor cai feito uma luva no contexto que atravessa a fronteira sul aqui em relevo. Sujeitos fora da lei encontram-se nas bordas da nação nacionalista e, por extensão, da crítica hegemônica do centro, à espera de uma episteme que emirja das margens como forma de, se não representá-los mais dignamente e democraticamente, escutá-los e reinseri-los na agenda da crítica pós-ocidental. Da perspectiva pós-ocidentalista defendida por Mignolo, a reorganização da produção do conhecimento deve ser formulada de uma “perspectiva fronteriza” por meio da qual a reflexão (filosófica, literária, ensaística), incorporada às histórias locais, encontra seu lugar no conhecimento desincorporado dos projetos globais em ciências sociais. Dessa forma, a crítica fronteriza articulada das histórias locais tem o poder de barrar aqueles discursos críticos acadêmicos e científicos articulados nos grandes centros mais desenvolvidos em todos os sentidos (econômico, tecnológico, etc). Não é demais reconhecer que o homem da fronteira sul, ou melhor, o homem-fronteira, a exemplo dos brasiguaios, do andariego do pântano e do cerrado, do vaqueiro andarilho, do pantaneiro, do refugiado, do deserdado, do forasteiro, do sem-terra, entre outros sujeitos atravessados da região fronteira, demanda uma nova epistemologia (ou epistemologia outra) crítica visando que seu lócus de movimentação (de não-lugar) seja compreendido em toda sua extensão e problematização. Com certeza, a compreensão mais abalizada desse sujeito transfronteiriço não passa nem pela crítica interna do centro do país, nem muito menos pela crítica vinda de fora, a exemplo daquela pensada na e sobre a América Latina. Também não estou dizendo com isso que uma crítica que emirja desse lócus seria a que melhor poderia abarcar a discussão crítica. Ao contrário, o que estou propondo é que qualquer discurso crítico que se formule sobre o assunto deva contemplar, necessariamente, as especificidades inerentes ao lócus cultural em questão, bem como ao sujeito nele imbricado. Diferentemente da epistemologia moderna, a epistemologia fronteriza, sem querer se pôr no lugar daquela, não se constrói visando uma “perspectiva universal de observação e um lócus privilegiado de enunciação” (MIGNOLO, 2003, p. 175), mas, sim, uma

78

perspectiva específica que, ao mesmo tempo em que ajuda a compreender melhor o lócus imbricado, ajuda também a compreender os demais loci, quer eles sejam dos centros ou das margens. “Epistemologia do Sul”, “epistemologia fronteriza” e “locus epistemológico” são sinônimos e fundamentam a discussão em torno da crítica selvagem. Em “O resgate da epistemologia”, João Arriscado Nunes aponta o significado do projeto de uma epistemologia do Sul. Segundo ele, uma epistemologia do Sul significa uma descontinuidade radical com o projeto moderno da epistemologia e uma reconstrução da reflexão sobre os saberes que, como veremos, torna reconhecíveis os limites das críticas da epistemologia tal como elas têm emergido num quadro ainda condicionado pela ciência moderna como referência para a crítica de todos os saberes. (NUNES, 2010, p. 263).

Na esteira de Boaventura de Sousa Santos, Nunes lembra-nos que a epistemologia do Sul situa-se do lado dos subalternos e dos oprimidos. Ou seja, tal articulação epistêmica leva em conta as diferenças, ou injustiças sociais nas quais tais sujeitos subalternos encontram-se envolvidos. Sujeitos vilipendiados, esquecidos da história e da episteme moderna, como todos aqueles homensfronteiras já mencionados, cuja biografia traz a insígnia da margem, do esquecimento e do perdão, ancoram e são ancorados pelo projeto de uma epistemologia da fronteira (pós-abissal, do sul), cujo projeto é indissociável de um contexto histórico em que emergem com particular visibilidade e vigor novos atores históricos no Sul global, sujeitos coletivos de outras formas de saber e de conhecimento que, a partir do cânone epistemológico ocidental, foram ignorados, silenciados, marginalizados, desqualificados ou simplesmente eliminados, vítimas de epistemicídios tantas vezes perpetrados em nome da razão, das luzes e do Progresso. (NUNES, 2010, p. 280)

“Vítimas do epistemicídios” parece ser a matáfora perfeita para traduzir o poder e a arrogância que repousam no discurso acadêmico e disciplinar que insiste em achar que ainda pode representar os 79

sujeitos subalternos. Não é demais frisar que o mesmo cuidado deve haver por parte do intelectual que, às vezes tomado pelas boas intenções, se arvora de um poder não menos castrador e propõe uma reflexão crítica que encampa o sujeito excluído mas não alcança seu lócus geoistórico. Isso se dá porque, na verdade, a episteme que sustenta o discurso crítico continua assentada numa visada moderna que traz, desde seu bojo, a herança de repetir teorias e críticas importadas pelos trópicos como forma de, assim, melhor discutir os sujeitos periféricos e suas respectivas produções culturais. Aqueles outros saberes e seus respectivos sujeitos emergidos da margem foram esquecidos em prol de uma epistemologia soberana da nação moderna que, sempre, ou ignorou tais loci periféricos de enunciação, ou simplesmente os olhou como uma paisagem exótica e desprovida de qualquer interesse para o mundo civilizado. Em contrapartida, os lugares subalternos, atravessados por suas especificidades como o bilinguajamento, a mistura de povos, o barbarismo e a selvageria, a condição de fora da lei, a sombra e o esquecimento, a festa e a alegria, naturalmente fizeram emergir seus saberes, sua nova epistemologia (do sul) que, por sua vez, barrou a epistemologia vinda de fora (dos centros, dos eixos) que acreditava que podia continuar teleguiando os passos dos sujeitos oprimidos pelos caminhos incertos das fronteiras sem bordas definidas e saberes estanques. O estado simbiótico no qual se estrutura a epistemologia da fronteira (Sul) barra qualquer ideia de dualidade discursiva que possa haver das margens para os centros. Já não posso dizer o mesmo sobre o inverso. A diferença epistemológica instaura-se exatamente no modo como o “lócus epistemológico” da fronteira articula seu discurso crítico. Por falar em simbiose, não é demais lembrar que o projeto de uma epistemologia do Sul (da fronteira) está envolvido criticamente com as epistemologias dominantes com todas as suas implicações. É nessa direção que entendemos que a epistemologia do Sul aparece como uma refundação radical da relação entre o epistemológico, o ontológico e o ético-político a partir, não de uma reflexão centrada na ciência, mas em práticas, experiências e saberes que definem os limites e as condições em que um dado modo de

80

conhecimento pode ser ‘traduzido’ ou apropriado em novas circunstâncias, sem a pretensão de se constituir em saber universal. (NUNES, 2010, p. 284)

Centrada nas práticas, nas experiências e nos saberes das margens subalternas, a epistemologia desses lugares descentrados, além de produzir seu próprio discurso crítico, traduz o conhecimento que chega dos centros hegemônicos (do país, do Norte). A especificidade da experiência dos sujeitos subalternos que funda seu “lócus epistemológico” leva a epistemologia da fronteira a barrar a intrínseca pretensão ao saber universal que move a epistemologia vinda de fora das margens. Nesse jogo epistemológico e de forças discursivas, parece que sobra à epistemologia da fronteira lembrar que o Universal foi, antes, a soma nunca aleatória das especificidades. O corolário de uma epistemologia fronteriza originase das especificidades do lócus geoistórico e cultural, traduz as epistemologias que migraram para as margens e visa ultrapassar todas as barreiras acadêmicas e disciplinares, separatistas e fundamentalistas que gravitam em torno do conhecimento e da cultura. Quem me ajuda a compreender melhor esse “pensamento de fronteira” é Ramón Grosfoguel em “Para descolonizar os estudos de economia e política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global”. Para Grosfoguel, o pensamento de fronteira “é, precisamente, uma resposta crítica aos fundamentalismos, sejam eles hegemônicos ou marginais. O que todos os fundamentalismos têm em comum (incluindo o eurocêntrico) é a premissa de que existe apenas uma única tradição epistémica a partir da qual pode alcançar-se a verdade e a Universalidade” (GROSFOGUEL, 2010, p. 457). O autor, ao mesmo tempo em que contrapõe a epistemologia da fronteira (Sul) à epistemologia canônica (moderna), elenca três aspectos que devem ser considerados por aquela epistemologia: na perspectiva epistêmica descolonial exige-se um cânone de pensamento mais amplo do que o cânone ocidental; ela não pode basear-se num universal abstrato; e, por último, “a descolonização do conhecimento exigiria levar a sério a perspectiva/cosmologias/visões de pensadores 81

críticos do Sul global, que pensam com e a partir de corpos e lugares étnico-raciais/sexuais subalternizados” (GROSFOGUEL, 2010, p. 457458). Na esteira do “pensamento crítico de fronteira”, trabalhado por Mignolo em Histórias locais/projetos globais, Grosfoguel acaba pontuando o papel e o lugar de uma epistemologia de fronteira: O pensamento crítico de fronteira é a resposta epistémica do subalterno ao projeto eurocêntrico da modernidade. Ao invés de rejeitarem a modernidade para se recolherem num absolutismo fundamentalista, as epistemologias de fronteira subsumem/redefinem a retórica emancipatória da modernidade a partir das cosmologias e epistemologias do subalterno, localizadas no lado oprimido e explorado da diferença colonial, rumo a uma luta de libertação descolonial, em prol de um mundo capaz de superar a modernidade eurocentrada. Aquilo que o pensamento de fronteira produz é uma redefinição/subsunção da cidadania e da democracia, dos direitos humanos, da humanidade e das relações econômicas para lá das definições impostas pela modernidade europeia. O pensamento de fronteira não é um fundamentalismo antimoderno. É uma resposta transmoderna descolonial do subalterno perante a modernidade eurocêntrica (GROSFOGUEL, 2010, p. 480-481).

A passagem sintetiza toda a discussão que propus até aqui, sobretudo quando reitera que a epistemologia do subalterno tem o papel e função de desarticular a episteme moderna que sempre grassou nos lugares periféricos. Não por acaso, uma das tarefas essencias da crítica fronteriza seria a de revisar as lições críticas que já se cristalizaram na cultura contemporânea, ao invés de, como faz quase sempre o discurso acadêmico e de perspectiva disciplinar, replicar tais conceitos.64 Na verdade, a leitura que Eneida Maria de Souza faz das “lições francesas” vai além do que seus representantes 64

“As lições de Jacques Derrida, de Roland Barthes, de François Lyotard, de Michel Foucault, de Freud e Lacan, para mencionar alguns entre tantos, podem ser hoje revisadas ─ e digo revisadas, pelo fato de já se constituírem como lições ─ por terem rompido os limites dos campos disciplinares, estabelecendo a cooperação entre arte, literatura e teoria, e por terem entendido que nessa relação, nomeada por David Carrol de paraestética, o processo não implica o fim da teoria ou da arte, mas a sua revitalização mútua: nem a idealização da estética, nem a supremacia da teoria.” (SOUZA, 2002, p.83-84)

82

propuseram, uma vez que eles simplesmente ignoraram a “diferença colonial”. Muito pelo contrário, o que se percebe hoje é que tal lição reforçou o projeto (euro)cêntrico e moderno. A melhor resposta epistêmica que o pensamento subalterno pode dar ao projeto moderno dos centros é compreender para melhor redefinir suas lições imperiais e conceitos hegemônicos. A luta da epistemologia fronteriza dá-se em todos os sentidos e direções, e de modo específico (político) na descolonização do discurso totalitário (do saber) que se agrega nos loci e corpus subalternos da cultura. Na condição de front, os sujeitos subalternos, que se encontram do lado oprimido e explorado da diferença colonial, como se lê na passagem, articulam seu discurso descolonial que os eleva, por conseguinte, a uma transfronteiridade. A ideia de transfronteiridade aqui é correlata à possibilidade de se pensar criticamente para além de qualquer dualidade, bem como a proposição de transcender a versão eurocêntrica da modernidade. (GROSFOGUEL). Transfronteiridade também equivale ao projeto denominado de transmodernidade proposto por Enrique Dussel e desenvolvido, recentemente, por Walter Mignolo e Ramón Grosfoguel. Grosso modo, reconheço que é consenso entre esses intelectuais que o projeto libertário transmoderno é o pensamento crítico que se erige da fronteira como forma de redefinir subsumindo o moderno visando alcançar, assim, um mundo transmoderno pluriversal (MIGNOLO, GROSFOGUEL). Ao final da passagem destacada acima, Grosfoguel conclui que o pensamento de fronteira “é uma resposta transmoderna descolonial do subalterno perante a modernidade eurocêntrica.” Walter Mignolo, por sua vez, também partilha das proposições do filósofo argentino Enrique Dussel, sobretudo quando se trata da discussão em torno do projeto da modernidade. Mignolo conclui que as teorias pós-coloniais estão construindo um “novo conceito de razão” e o faz com base em loci diferenciais de enunciação. Diferencial, para Mignolo, significa “um deslocamento do conceito e da prática das noções de conhecimento, ciência, teoria e compreensão articuladas no decorrer do período moderno” (MIGNOLO, 2003, p. 167). Deslocar os conceitos e as práticas pedagógicas do conhecimento emerge como papel fundamental de todo crítico, teórico ou educador que

83

não quer correr o risco de permanecer repassando um saber caduco e um conhecimento desatualizado ao outro. Tal ação identifica a razão pós-colonial ou pós-subalterna, uma vez que a reflexão crítica, por sua vez, ocupa o lócus diferencial de enunciação. E ocupar esse lugar é valer-se de uma epistemologia fronteriza, cujos lugares críticos, segundo Mignolo, não são “opostos dialéticos do lócus de enunciação criado pela modernidade”, mas constituem, por sua vez, “lugares de intervenções, interrupções da auto-invenção da modernidade” (MIGNOLO, 2003, p. 170). De acordo com Dussel, a transmodernidade “[...] é a co-realização daquilo que a modernidade não consegue realizar sozinha: ou seja, uma inclusão solidária [...] entre centro/periferia, homem/mulher, diferentes raças, grupos étnicos, classes, civilização/natureza, cultura ocidental/culturas do Terceiro Mundo etc” (Apud MIGNOLO, 2003, p. 169). A transfronteiridade, ou a razão transfronteiriça, supera essas abordagens dicotômicas que teimavam em resistir na discussão crítica contemporânea, e o faz porque reconhece seu lugar subalterno como primordial para ancorar seu lócus diferencial/epistemológico de enunciação crítica. Margeando as margens e não mais as fronteiras, afasto-me das visadas dicotômicas, como sugere a epígrafe, e me aproximo do coração selvagem da crítica fronteriza, para retomar o título deste trabalho, de onde emerge uma nova consciência (ANZALDÚA, MIGNOLO) crítica que precisa, mais do que revisar a história pregressa do homem, redirecionar as discussões epistemológicas que se impuseram nesta virada de século. Valho-me, por fim, de uma passagem de Bhabha usada por Mignolo, por entender que ela ilustra a trajetória a ser seguida pelo crítico neste século: “Guiado pela história subalterna das fronteiras/margens da modernidade ─ e não pelas falhas do logocentrismo ─ tentei, em pequena medida, revisar o conhecido, renomear o pós-moderno a partir da posição do póscolonial” (Apud MIGNOLO, 2003, p. 167).

84

CAPÍTULO IV PAISAGENS DA CRÍTICA PERIFÉRICA65 Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto. Borges. O fazedor, p. 168.

65

Uma primeira versão deste texto saiu nos CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: eixos periféricos. p. 39-54.

Lugares periféricos são sempre lugares específicos, mas nem todos os lugares são periféricos. Pensar a partir da periferia implica pensar a partir dos projetos globais que se cristalizam, de forma hegemônica, na cultura; significa, também, em transculturar tais projetos globais em projetos locais periféricos que façam sentido para a cultura periférica; significa, ainda, e sobretudo, em rearticular os saberes e os discursos todos de uma perspectiva da crítica subalterna. Uma reflexão crítica periférica, por sua natureza de fora do lugar e sua estratégia transdisciplinar, só pode se situar e, por conseguinte, ancorar seu discurso na margem do saber instituído e dos discursos acadêmico e disciplinar, como forma de barrar um pensamento totalizante vindo de fora. Walter Mignolo, antes de acreditar que existe ou não “dentro e fora”, reconhece que o “difícil é esquecer ou eliminar as dicotomias históricas que o discurso e a epistemologia colonial impuseram ao mundo, inventando diferenças coloniais”66. Na esteira do intelectual contemporâneo, o que a crítica deveria fazer é eliminar de seu vocabulário qualquer visada dicotômica, sobretudo porque o discurso colonial, moderno, não fez outra coisa senão povoar o mundo de dicotomias. A questão, em uma abordagem crítica, resume-se não em saber se de fato existiu “dentro e fora”, mas, sim, em saber como resolver esta “ferida aberta” (ANZALDÚA) que marcou para sempre as produções culturais humanas e o próprio saber no mundo. “Dentro e fora, centro e periferia são metáforas dúplices que dizem mais sobre os loci da enunciação do que sobre a ontologia do mundo. Há e não há dentro e fora, centro e periferia”67. O que deve haver é uma crítica periférica, subalterna por excelência, cujo pensamento liminar reverta a subalternização dos saberes e a colonialidade do poder, crítica que proponha um novo modo de pensar no qual as dicotomias sejam extintas em prol de uma outra episteme que se articule para além da diferença colonial moderna. Tal projeto crítico 66

MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.453.

67

MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p. 454.

precisa defender uma forma de pensar nas e a partir das margens periféricas do mundo, visando transformar as demais epistemologias que migraram dos grandes centros ou de fora do país e rearticulá-las da perspectiva periférica. Sempre na esteira do que propõe Mignolo por todo seu livro, mesmo que às vezes correndo o risco de contradizê-lo, entendo que o intelectual deste século XXI, quer se encontre na condição de periférico ou não, deve antes de mais compreender que as periferias mundiais e globais geram seus loci de enunciação específicos que precisam ser encampados pelas discussões críticas contemporâneas, sobretudo por elas proporem uma outra reflexão em torno do “conhecimento e compreensão’ propostos pelo discurso acadêmico, além de lembrarem ao intelectual dos centros que tanto ele quanto o próprio conhecimento disciplinar precisam “aprender com” aqueles discursos e intelectuais periféricos “que vivem e refletem a partir dos legados coloniais e pós-coloniais.”68 Caso não aja assim, o intelectual do Brasil, ou melhor, da periferia-Sul dessa tríplice fronteira do Centro-Oeste brasileiro (Brasil, Paraguai, Bolívia) simplesmente continua a “estimular a macaqueação, a exportação de teorias, o colonialismo (cultural) interno, em vez de promover novas formas de crítica cultural de emancipação intelectual e política - de transformar os estudos coloniais e pós-coloniais em um campo de estudo em vez de um lócus de enunciação liminar e crítico”.69 Aproveito para dizer que meu lócus de enunciação geoistórico cultural e crítico situa-se na periferia da periferia do Brasil, da fronteira-Sul (Paraguai e Bolívia) e quiçá da América Latina. Resta-me saber disso, e do fato de que o estado de Mato Grosso do Sul traz, desde o nome, a insígnia da subalternização em sua rubrica tal qual um couro de boi marcado a ferro e fogo pelos latifundiários do lugar, para erigir uma crítica periférica (periférico aqui é análogo a contextualizada) que seja capaz, entre outras competências críticas, de ou recontextualizar as 68

MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.26.

69

MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.26.

88

críticas migrantes que chegam dos centros (internos ou externos), ou simplesmente rechaçá-las por reconhecer que elas não servem para pensar o lugar periférico que nem sempre é hospedeiro. (Mais à frente me deterei na questão da hospitalidade cultural sul-matogrossense). É a partir desse lugar fronteiriço, por excelência, que penso e busco uma crítica periférica, cujo projeto assenta-se em uma nova epistemologia como forma de barrar as marcas de uma epistemologia moderna que, ao migrar para as bordas, decalcou um sentido totalizante sobre as produções locais. Aliás, nessa direção, já está mais do que consolidada a ideia de que o Terceiro Mundo produz uma epistemologia periférica própria, e de modo especial por seus intelectuais internos que, por saberem negociar com a crítica migrante de fora, não medem esforços para entender de modo diferenciado sua história e cultura. Esse intelectual, diferentemente daquele que se encontra fora do lócus periférico, pensa sempre a partir de (MIGNOLO), enquanto o intelectual do centro ou de fora do país esta condenado a pensar sobre. Como poderia pensar aquele crítico que ainda privilegia uma epistemologia moderna, pensar a partir de não significa fechar-se em seu lócus geoistórico e nem muito menos priorizar o bios do sujeito subalterno e das produções culturais do lugar; antes, a proposta política da epistemologia periférica visa compreender e considerar em sua discussão o valor histórico-cultural da “diferença colonial”. O crítico periférico tem a possibilidade da escolha de poder pensar da periferia e, por conseguinte, de adotar uma outra articulação que não passe, necessariamente, por aquelas pensadas nos grandes centros avançados do país. Ao agir assim, o crítico periférico acaba por exumar e refundar “histórias esquecidas” que ficaram soterradas nas margens da História. Esse gesto crítico, assim como as histórias relembradas, traz, segundo Mignolo, “para o primeiro plano, ao mesmo tempo, uma nova dimensão epistemológica: uma epistemologia da, e a partir da, margem do sistema mundial colonial/moderno, ou, se quiserem, uma epistemologia da diferença

89

colonial que é paralela à epistemologia do mesmo”.70 Ao por em prática uma epistemologia periférica, o crítico subalterno acaba por inscrever sua própria experiência subalterna em sua articulação crítica, registra e torna público seu bios; enfim, ao crítico das margens periféricas parece estar facultado teorizar, sempre, a partir da situação na qual se encontra, incluindo aí o próprio papel do intelectual, das produções culturais e demais sujeitos atravessados (ANZALDÚA) pela condição subalterna. Não é demais reiterar que a localização periférica é geográfica, histórica, política e, sobretudo, epistemológica. É por valorizar esse lócus epistemológico que o crítico periférico contribui, por meio de sua crítica de natureza subalterna, para refundar na História o que foi reprimido (Mignolo) pelo discurso da razão moderna. Por toda sua discussão, Mignolo defende a possibilidade teórica de se poder pensar a partir da fronteira nos tempos atuais. Desse modo, pensar da fronteira ou, no caso, pensar da periferia, como estou propondo, equivale a poder pensar para além do conceito moderno de teoria; logo, pensar para além dos conceitos modernos é poder pensar a partir da própria epistemologia que emerge da periferia, essa fronteira anônima, silenciosa, sombria e esquecida pelo olhar imperial lançado dos centros hegemônicos do país e de fora.71 Na esteira da discussão de Mignolo acerca da pós-colonialidade, podemos dizer que se a epistemologia periférica não conseguir romper com a epistemologia moderna, ela se torna apenas uma outra versão, isto é, “uma teoria sobre uma assunto novo, mas não a constituição de um novo sujeito epistemológico que pensa a partir das e sobre as fronteiras”.72 A saída para a epistemologia periférica, para não narcotizar seu próprio lócus de enunciação desde o começo, está em propor e sustentar um 70

MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.83.

71

“O sentido de ‘periférico’ é análogo ao sentido de ‘subalterno’, se concebermos que o termo se refere a ‘culturas’ e línguas e não apenas a classes sociais e comunidades - isto é, tudo que se situa num espaço relacional será colocado ‘numa posição inferior’” (MIGNOLO, 2003, p.270). 72

MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.159.

90

lócus de enunciação “diferencial” a partir da periferia, como assegura Mignolo. Todavia deve-se tomar cuidado para não propor tal enunciação diferencial de dentro da epistemologia moderna, como às vezes tem acontecido com o discurso crítico nesta virada de século, quando o intelectual (o acadêmico sobretudo) se predispõe a estudar produções periféricas, marginais ou subalternas, mas amparado numa epistemologia acadêmica narcotizada e caduca que continua por não encampar um imaginário “diferencial” (diferencial aqui diferente de diferença). De acordo com Mignolo, “diferencial significa aqui um deslocamento do conceito e da prática das noções de conhecimento, ciência, teoria e compreensão articuladas no decorrer do período moderno”.73 Levando em conta o lócus geoistórico periférico de onde proponho minha reflexão crítica, diferencial também pode significar o modo como desloco (traduzo) as leituras críticas das quais me valho, como a do próprio Mignolo pensada em inglês e dos Estados Unidos sobre a América Latina, para pensar de forma diferencial a periferia em questão (neste caso, como já disse, trata-se da fronteira do estado de Mato Grosso do Sul com os países Paraguai e Bolívia). Na condição dúplice de subalternidade, isto é, de fronteira e de periferia, insisto que uma periferia é também um lugar específico, cuja história local é particular: Mato Grosso do Sul, Pedro Juan Caballero e Porto Quijaro, por exemplo, não são o México, nem São Paulo e nem Buenos Aires. O portunhol, o guarani, bem como as condições reais de vida na qual se encontram os brasiguaios, são únicos e indispensáveis para a compreensão da colonialidade do poder ali instaurada e da paisagem fronteriza e periférica que se desenha para o outro. Em se tratando do lócus aqui priorizado, o que se constata, num crescendo, é que falta ainda uma crítica consolidada que se predisponha a pensar esse lócus geoistórico a partir dele mesmo, com toda sua diversalidade (Mignolo) e problemas culturais. O que temos, na verdade, é uma crítica assentada em teorias acadêmicas importadas dos centros que 73

MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.167.

91

simplesmente se basta em tomar o lócus periférico e fronteiriço como um “campo de estudos”, ao invés de tomar tal lócus cultural periférico como um lugar capaz de produzir discussões históricas, culturais e políticas que acabam por explicá-lo dentro de um contexto mais geral. Constatando e ao mesmo tempo contradizendo o que disse a pouco, o intelectual periférico parece ainda não se sentir seguro, intelectualmente falando, para pensar a partir de seu próprio lócus geoistórico, sem correr o risco de cair em um “localismo” piegas e chinfrim. Cada vez mais, convenço-me de que quando se estuda um determinado lócus periférico, marginal e subalterno, é preciso que se defenda uma forma de se pensar a partir dessa zona periférica, como também das margens dos projetos globais, inclusive, e principalmente, das margens dos projetos críticos hegemônicos que migram para a periferia com sua leitura cristalizada, totalizante e até mesmo humanista demais sobre o outro periférico que simplesmente entrou na discussão crítica como um vasto campo/corpo exótico e estranho a ser explorado. A periferia está para o Terceiro Mundo, assim como o centro está para o Primeiro; a cabeça está para o Norte, assim como o resto do corpo está para o Sul. Mas tal dualidade enquanto “entidade” não existe mais e talvez nem tenha de fato existido. Até mesmo aquele mundo que proporcionou tal configuração e classificação não exista mais neste século, adverte-nos Mignolo em nota. Todavia enquanto “divisão conceitual do mundo”, tal diferença continua intervindo e servindo de base no modo de compreender os loci diferenciais que grassam no mundo. E é como um conceito, ou melhor, como uma categoria que devemos articular o sentido de periférico, uma vez que essa categoria geoistórica subalterna tem por função epistemológica “deslocar do Primeiro para o Terceiro Mundo o lócus da enunciação teórica, reivindicando a legitimidade da ‘localização filosófica’”74. Reivindicar direitos críticos e filosóficos não é reforçar um 74

MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p. 162.

92

pensamento dual, hierárquico e universal que imperou historicamente no Ocidente; é, antes de qualquer coisa, desencobrir (tirar a tarja imperial) a imagem/paisagem de atrasada, nativa, sombria, bárbara e selvagem, sem capacidade de pensar, sem sensibilidade, eternamente dependente, imposta e sustentada pela herança colonial. A fronteira-Sul e os trópicos eram sempre vistos como o resto do mundo, da civilização e do saber. A questão que se impõe aqui nessa discussão não é a de inverter os papeis e lugares, de modo a cair numa inversão de valores e de poder acrítica por excelência. Longe de defender o local com barricadas e fossos, como que condenado a mirar e defender o próprio umbigo, compete ao crítico periférico reivindicar a legitimidade dos valores (de toda natureza) que emergem desses lugares periféricos, não com o objetivo de simplesmente contrapor ou comparar tais valores, mas com certeza como proposta epistemológica (política) de compreender tais realidades com seus sujeitos e produções culturais humanas de uma forma da qual o centro jamais poderia compreender, e pelo simples fato de pertença. Tomar o conceito de periferia como uma categoria geoistórica (MIGNOLO) é assegurar o direito de que ela produz uma epistemologia, um conhecimento capaz de não apenas libertar os oprimidos sujeitos periféricos da condição na qual se encontram, como também daqueles sujeitos que se encontram presos na crença de uma epistemologia moderna colonial.75 Assegura Mignolo que “a emancipação como libertação significa não só o reconhecimento dos subalternos, mas também a erradicação da estrutura de poder que mantém a hegemonia e a subalternidade”.76 Na verdade, e sempre na esteira do que postula o autor de Histórias locais/Projetos globais, quero entender que a periferia, enquanto uma categoria geoistórica, produz uma outra epistemologia, o que aqui equivale ao “um outro pensamento” 75

Ver RIVERA CUSICANQUI. Oprimidos pero no vencidos.

76

MIGNOLO. Histórias locais/projetos globais, p.178.

93

(Khatibi) explorado por Walter Mignolo. Na leitura de Mignolo, “um outro pensamento” é condição para a consolidação do “pensamento liminar” defendido e sustentado pelo crítico argentino por todo seu livro. Em meu caso, ambos os pensamentos contribuem para o que aqui chamo de “pensamento periférico”: um pensamento que se localiza na fronteira do poder dos discursos hegemônicos e modernos, cuja preocupação inicial parte de suas próprias histórias locais e suas particulares relações de poder. O pensamento periférico visa superar a epistemologia monotópica do pensamento territorial (MIGNOLO), exatamente por se inscrever na fronteira da razão ocidental. Entre-lugar, liminar, lindeiro, transfronteiriço parecem pontuar o lócus de um pensamento periférico, apesar de ele situar-se mesmo em sua específica zona de fronteira porosa e quase incontornável por ordem de seu imaginário periférico. Enquanto uma “irredutível diferença epistemológica”, a periferia (o pensamento periférico) situa-se na condição de travessia dos sujeitos atravesados (ANZALDÚA), que vivem à margem do sistema moderno, como os brasiguaios, os indígenas, os paraguaios, os bolivianos, os sul-matogrossenses e migrantes da tríplice fronteira-Sul do Centro-Oeste brasileiro; a periferia também é a travessia para o global, já que o global passa pelo periférico, sem a ele se colar. A fronteira-Sul, mais uma vez, na zona fronteriza aqui em destaque continua sendo o limite. Contraditória, se, por um lado, ela significa a travessia infinita, por outro, ela também barra, como que sinalizando que só pode ser narrada a partir de um pensamento periférico que emirja de-dentro dela mesma, isto é, “um tipo de pensamento que se mova ao longo da diversidade do próprio processo histórico”77. O pensamento crítico periférico deve, mais do que ouvir, escutar o balbucio (ACHUGAR) da periferia e seus sujeitos Oprimidos pero no vencidos (RIVERA CUSICANQUI) em toda sua diversidade cultural e linguística. Se a periferia se move em silêncio, como se move o dia com o por do sol sobre a fronteira sanguinolenta, o mundo historicamente vinha se movendo ao redor e em direção à fronteira-sul e daqueles sujeitos 77

MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.105.

94

fronteiriços que por escolha, falta de opção ou força do destino resolveram permanecer no lugar. O pensamento periférico se desenha como o lugar da diferença colonial por excelência: “uma maneira de pensar que não é inspirada em suas próprias limitações e não pretende dominar e humilhar; uma maneira de pensar que é universalmente marginal, fragmentária e aberta; e, como tal, uma maneira de pensar que, por ser universalmente marginal e fragmentária, não é etnocida”.78 Pontuei, até aqui, como essenciais para se pensar a periferia, e tendo como base de minha discussão a fronteira sem lei do estado de Mato Grosso do Sul e seus países lindeiros Paraguai e Bolívia, expressões como “a partir de”, “diferencial”, “categoria geoistórica”, “diferença colonial”, “epistemologia periférica”, “perspectiva subalterna”, “histórias locais” entre outras. Sinto que comecei este ensaio pelo final. Mas tal inversão se deu pela necessidade de chamar a atenção para a existência ou não do que se entende por “periferia”. Walter Mignolo chega ao último parágrafo de Histórias locais/ Projetos globais afirmando que “há e não há dentro e fora, centro e periferia”.79 Sem ir à desforra ou cair na esparrela da discussão que descambaria para uma visada dicotômica, resta à crítica periférica eliminar as dicotomias de seu vocabulário crítico. Todavia, por mais contraditório que possa parecer, assumindo e posicionando-me enquanto intelectual periférico, reitero que não apenas existe periferia como existe periferia da periferia. O lócus da tríplice fronteira (Mato Grosso do Sul x Paraguai x Bolívia) por mim priorizado nesta discussão é um exemplo. Como intelectual da periferia (com relação ao meu próprio país e ao mundo), da fronteira por excelência, pouco me interessa saber que a última descoberta dos centros de pesquisa metropolitanos é que não existe dentro e fora. Interessa-me muito mais saber que ─ enquanto intelectual da margem (da periferia, fora do eixo), e talvez nem tanto sofisticado e 78

MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.104.

79

MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.454.

95

“desenvolvido” intelectualmente a ponto de afirmar categoricamente que não exista dentro e fora ─ a condição de colonizado intelectualmente (somos mais colonizados porque somos periféricos, ou somos mais periféricos porque somos colonizados?) pelos centros metropolitanos do país e de fora nos leva a repetir “proposições dominantes originárias de uma intelligentsia acadêmica de vanguarda” (MIGNOLO) para, num gesto de razão subalterna, buscar a inversão dessa doxa crítica triunfante, imperializante, dominante e quase sempre moralizante esteticamente. Na sequência, deterei-me em conceitos como paisagens periféricas, transculturação e hospitalidade, entre outros, visando contornar mais de perto o que passo a denominar de periferia de periferia, tendo como lócus geoistórico a tríplice fronteira-Sul que impõe sua própria lei a quem nela vive (os atravesados) ou que por ela passa.

1 – Paisagens periféricas Sorvi, com os olhos indagadores, essas paisagens campeiras em seus mínimos detalhes e delas me tornei escravo submisso e voluntário. SEREJO. Balaio de bugre, p. 8.

Para contornar as bordas das paisagens periféricas que se desenham na fronteira-Sul aqui em relevo é necessário, de início, que se leve em conta tanto a localização geoistórica do lugar quanto as sensibilidades biográficas dos envolvidos, como as produções artístico-culturais, os sujeitos atravesados e, não menos importante, meu posicionamento enquanto intelectual diretamente envolvido na reflexão crítica. Walter Mignolo, ao deter-se na questão da localização, diz que as sensibilidades dos locais geoistóricos relacionam-se com um sentido de territorialidade e inclui ─ além da língua, do alimento, dos odores, do clima ─ a paisagem (que aqui nos interessa de modo especial), e que são esses signos todos que amarram, por sua vez, o corpo a um ou diversos lugares.80 Interessa80

C.f. MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.264.

96

me sobremaneira a discussão do crítico acerca das sensibilidades dos locais, porque quero entender que a aproximação delas com a paisagem permite-nos compreender a própria paisagem de um lugar específico por fora de qualquer olhar universalizante (imperial), contemplando-a em sua especificidade e sem correr o risco de ser bairrista ou provinciano. Mais específico, que próprio; reconhecendose periférico, sem mais aquela ânsia ou desejo moderno de universal(izar) as histórias locais. Mais adiante volto à discussão proposta pelo autor de Histórias locais/ Projetos globais. Na verdade, quem afirma que há “periferias da periferia” é o crítico uruguaio Hugo Achugar, em seu livro Planetas sem boca. Da leitura de Achugar, interessa-me, sobretudo, a aproximação e, por conseguinte, o “retrato” que ele faz entre a “nossa” periferia e a paisagem geoistórica da América Latina. Isso, por sua vez, só é possível porque, na leitura do crítico, fica-nos claro que só se pensa a América Latina a partir da América Latina. Assumindo todos os problemas que a discussão implica, Achugar vai mais longe e defende a ideia de que “pensar a partir da América Latina era pensar a partir da periferia”.81 Por conseguinte, ao me propor pensar a partir da periferia, descubro, para minha surpresa, que há periferias dentro da periferia e que pensá-las, por sua vez, demanda uma perspectiva crítica ainda mais específica, como forma de abarcar suas especificidades e suas sensibilidades biográficas no mundo heterogêneo que caracteriza o que se denomina por América Latina. Nessa discussão, o Brasil parece sempre levar desvantagem, uma vez que aparece como uma periferia à parte dentro da periferia. Não por acaso, Mignolo comenta que “o Brasil fica incluído na América Latina não por causa da língua [...], mas por pertencer ao continente!”82 Na verdade, o que se percebe é que o lócus periférico chamado Brasil fica de fora das discussões críticas sobre a América Latina por conta do desconhecimento da língua, reforçando, assim, uma 81

ACHUGAR. Planetas sem boca, p.90.

82

MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.186.

97

subalternização crítica da própria América Latina que, no cômputo de seu ajuizado crítico, reforça uma exclusão periférica interna no mal sentido da palavra. Aliás, nesse tocante, mesmo na leitura acurada de Mignolo, os problemas (ou não problemas) culturais, sociais e políticos brasileiros, bem como suas produções artístico-culturais, ficam de fora da discussão proposta, como que a nos lembrar da exclusão sumária da periferia de língua portuguesa latina. Todavia, quando trago para o centro da discussão o lócus periférico e fronterizo do qual faço parte, o problema toma proporções quase insolúveis. Aqui e daqui, temos que administrar a exclusão que a crítica dos centros desenvolvidos do país opera quando entende que pode pensar (e falar) o que seria o melhor para as várias e diferentes periferias do país colossal. Por conseguinte, também temos que resolver um problema de colonização (crítica) interno às periferias nacionais: a subserviente repetição crítica nesses locais periféricos das lições aprendidas nos centros. A solução não parece estar em rechaçar as lições migrantes, mas, pelo contrário, em saber pontuar o lócus de onde se erige a crítica periférica. De base desse conhecimento, que é de ordem geoistórica e epistemológica, o crítico periférico pode traduzir sem culpa as lições totalizantes que teimam em se hospedar em casa (localização) alheia. Daí a importância de reiterar que penso a partir de um lócus periférico e fronterizo ─ a fronteira-sul sem lei de Mato Grosso do Sul/Paraguai/Bolívia) ─ cujos problemas e especificidades o fazem ser do jeito que é. Mais adiante, algumas “paisagens”, que traduzem as sensibilidades biográficas e que captam a alma fantasmática desse lugar periférico, serão apresentadas. De acordo com Achugar, uma paisagem “supõe um posicionamento e um lugar específico a partir de onde se fala e a partir de onde se lê”.83 De modo diferente do que postula o crítico, quero agregar em tal paisagem uma rubrica pós-colonial, por entender que somente assim ela pode contemplar uma epistemologia diferente daquela que foi realizada na e sobre a 83

ACHUGAR. Planetas sem boca, p.60.

98

América Latina. Entendo que uma paisagem conceitual pós-colonial não renega a memória nem desconsidera a tradição que repousam nas produções artístico-culturais, nem mesmo na história ou na cultura periférica; antes tem a preocupação estético-epistemológica de assegurar que outras formas de paisagens possam sair de seu mundo oprimido e sombrio e se apresentarem em alto-relevo na cultura. A esse novo modo epistemológico que, para Mignolo entre outros, já foi chamado de pós-colonial/pós-ocidental, aqui estou denominando-o de pensamento periférico. Seguindo o autor de Planetas sem boca, o lugar que aqui vislumbro e que se denomina de fronteira sem lei do Sul de Mato Grosso do Sul nem sempre é concreto e quase sempre é imaginário. Às vezes um se sobrepõe ao outro, dependendo do meu interesse crítico, ou de forma inconsciente mesmo. Mas é sem sombra de dúvida um lugar de fronteira, da margem, do “subúrbio do mundo” (PIGLIA), um lugar perdido na vastidão do espaço territorial que desenha a região Centro-Oeste do país, onde pântano e cerrado se revezam sem se hibridizar, um lugar deslocado e afastado dos centros desenvolvidos do país segundo esses mesmos centros, fora do eixo por excelência. Nasci nesse lugar territorial onde o sol se põe por sobre a fronteira e as leis próprias do mando e do desmando são urdidas em silêncio, e hoje me resta escolher uma forma epistemológica para pensá-lo com mais propriedade/especificidade. É o que busco fazer aqui. Na esteira da discussão de Achugar, mas pensando no lócus aqui priorizado, lembro que na periferia, enquanto “lugar de carência”, vivem sujeitos periféricos que “balbuciam” sua própria voz. Podem não ser escutados pelos centros do saber e do poder, mas o importante é que “falam”. Não quero entender que é apenas o centro que fala pela periferia, não que isso não seja quase a regra. O planeta (de Lacan) é babélico, de modo que sempre há alguém falando por outro. O problema reside quando um quer falar, impor sua fala, seu discurso sobre o outro. Nessa direção, no centro ou na periferia, sempre vamos encontrar um falando pelo outro. Aí parece residir o problema político mais comum da contemporaneidade.

99

Porque enquanto os doutores da academia das belas letras, ou dos centros desenvolvidos, ficaram pensando que a periferia não produzia linguagem, nem saber, nem discurso, e que nem boca tinha, instauraram-se poderes dentro das periferias que guerreiam entre si. Em nossa discussão, a periferia se desenha como um “lugar de carência” menos por falta de representação do que pela exclusão sumária por parte do poder político do estado, do poder econômico e dos discursos acadêmico e disciplinar. Nessa linha de discussão, posso inverter a afirmação de Gayatri Spivak de que o sujeito subalterno é aquela que não fala, pois se fala já não o é 84, e querer compreender que sua lógica talvez sirva mais para o contexto cultural indiano do que para o contexto periférico da tríplice fronteira aqui em destaque. Também talvez os sujeitos da fronteira devam ser tomados menos como subalternos e mais como periféricos mesmos (não que a aproximação entre periférico e subalterno não seja possível) e, como tais, esses sujeitos não apenas falam como articulam discórdias e brigas pelo poder (e pela terra) entre eles. O lugar periférico e fronterizo aqui priorizado apresenta-se como um “lugar de carência”, mas também como um lugar de imposição de leis próprias, de contrabando de mercadorias e vidas alheias, lugar onde os corpos simplesmente desaparecem, lugar por onde os andariegos cruzam dentro do silêncio da noite fronteriza, onde é travada uma guerra sangrenta pela terra de ninguém (?). Nesse lugar, a periferia, assim como a fronteira, é mais do que uma metáfora. Ela é tão real, quanto mais excludente tornam-se os sujeitos internos a ela mesma na experiência/vivência do dia a dia interminável de lutas, perdas e ganhos.

84

Ver SPIVAK. Pode o subalterno falar?

100

Figura 2 - Boneco de fazendeiro brasileiro enforcado simboliza tensão com semterra no Paraguai Fonte: UOL Notícias, 06/2012

A imagem/paisagem (Figura 2) capta o lado sombrio dos filhos sem terra da meia- noite, onde uma luta armada literalmente é travada em prol da sobrevivência e dos direitos. Retrata a persona do brasiguaio Tranquilo Fávero enforcado no meio do acampamento (Santa Lucia, região de Ñacunday, leste do Paraguai) pelos sem terra. O nome próprio “Favero” inscrito/assinado no peito do boneco traduz a fronteira belicosa entre o “rei da soja” e os sem terra, como também não deixa de aludir a uma dura realidade sangrenta que quase sempre tem ficado de fora das discussões acerca das fronteiras periféricas na América Latina. Nesse último 15 de junho (2012), seis policiais e 11 sem-terras morreram em confronto durante uma reintegração de posse em Curuguaty (a 250 quilômetros de Assunção). Entre brasiguaios85 e sem terra, o fato é que onze

85

“Os brasiguaios ou brasilguaios são brasileiros (e seus descendentes) estabelecidos em território da República do Paraguai, em áreas fronteiriças com o Brasil, principalmente nas regiões chamadas Canindeyú e Alto Paraná, no sudeste do Paraguai. Estimados em 350.000, são, em sua maioria, agricultores de origem

101

campesinos morreram em uma fazenda próxima à fronteira com o Brasil, denunciando a situação emblemática de uma fronteira enigmática e sem lei sobre a qual, não por acaso, o poder do estado e a democracia parecem ter dado as costas. A questão emblemática que se impõe nesse lócus periférico, em particular, é de ordem política e de poder.86 Aliás, nesse sentido, parece-me que toda a problemática que envolve as periferias, sejam elas urbanas ou não, é de ordem política e de poder; e não se trata de uma questão de “diplomacia”, como pensam alguns, mas de democracia.87 Por falar em poder (e em democracia), não é apenas o poder do 44 e do 38 que impõe respeito na zona de fronteira; o poder da língua (s) chega a ser mais devastador e entristecedor, porque ele vai minando o espaço da outra língua por dentro, invadindo seu lugar, fazendo do poder alheio seu poder. Além do problema racial encontrado na zona de fronteira, já que a maioria dos brasiguaios tem pele clara e feições europeias, enquanto a maior parte dos paraguaios é de origem hispano-guarani, e da presença dos estrangeiros (brasiguaios) provocar sentimentos nacionalistas e até xenófobos entre os sem terra paraguaios, a preocupação maior dos paraguaios reside, alemã, italiana ou eslava e falantes do idioma português. O nome origina-se na junção das palavras “brasileiro” e paraguaio” (Brasiguaios. Wikipédia). 86

“Onze campesinos sem terra foram assassinados na sexta-feira passada em uma fazenda próxima á fronteira com o Brasil, onde está aumentando a tensão em paralelo às reivindicações e ações diretas pela reforma agrária. O enfrentamento entre policiais e lavradores deixou sete agentes mortos, entre eles os chefes do Grupo de Operações Especiais, uma espécie de BOPE paraguaio, só que sua tarefa não é reprimir favelados como no Rio de Janeiro, mas os peões rurais que, depois que Lugo chegou ao governo, em 2008, aumentaram seu nível de organização e decisão de luta, depois de décadas de submissão diante do jugo da ditadura de Alfredo Stroessner” (Marin Almada. “Latifundiários brasiguaios querem derrubar Lugo”. In: Carta Maior) 87

“‘Diplomacia você pode usar com pessoas cultas...só que... você sabe o dito popular que diz: a mulher do malandro obedece só com pau...tamos lidando com pessoas de tamanha ignorância que com diplomacia você não soluciona’” disse o maior produtor de soja do Paraguai, nascido em Santa Catarina (Apud ALMADA. “Latifundiários brasiguaios querem derrubar Lugo”. In: Carta maior).

102

segundo ampla reportagem publicado no The New York Times, no enfraquecimento de sua identidade, posto que os estrangeiros, que para ali migraram, como os brasiguaios, mantêm sua própria língua, usam sua própria moeda, hasteiam sua própria bandeira e são donos das terras mais produtivas do lugar. Também se queixam de que seus filhos terão como segunda língua o português, ao invés do guarani. “Temos que proteger nossa identidade ou estaremos perdidos como nação nessa onda de globalização e Mercosul”, afirmou o diretor de escola local Adílio Ramirez López.88 O que me intriga na discussão é perceber que uma língua subalterna como a portuguesa num contexto global, quando empregada num contexto mais periférico, torna-se, por sua vez, uma língua de caráter hegemônico. No contexto aqui em relevo, a língua portuguesa “estrangeira” impõe-se pelo uso, pelo valor de troca e circulação da moeda, pelo poder patriótico da bandeira nacional, pela terra conquistada, pela cor da pele do invasor. Corroboram, nessa discussão, as proposições feitas por Walter Mignolo sobre o “bilinguajamento” em Histórias locais/ Projetos globais. Não por acaso, o autor entende por bilinguajamento o deslocamento das línguas hegemônicas e imperiais e sua recolocação dentro da perspectiva das línguas ameríndias. Ressalvadas todas as diferenças que possa haver, quero entender que, no tocante ao lócus fronterizo aqui em destaque, a língua portuguesa se impõe como uma língua detentora de um poder mais colonial. Por outro lado, postulo que o amor pelas e entre as línguas periféricas da fronteira-Sul trabalham no sentido de manter viva na fronteira uma “língua” que não respeita as diferenças, pois já se articula numa relação diferencial, como o “portunhol”, linguagem específica da fronteira e falada por quase todos os sujeitos atravesados (ANZALDÚA), independentemente de sua língua pátria. Aliás, nesse tocante, e ressalvadas as diferenças nacionalistas, tornase inoperante falar em língua pátria. A zona de fronteira, se não rompe, embaralha esses traços nacionalistas e patrióticos, como que a nos lembrar de que uma fronteira, além de não ter lados definidos, 88

C.f “Brasiguaios”, In: Wikipédia

103

borra as próprias diferenças culturais locais. Na esteira de Anzaldúa, em Borderlands, viver na fronteira é correlato a um viver-entrelínguas. Nessa direção, o portunhol, enquanto uma língua de fronteira, de fraturas e de fissuras, capta, supera e traduz não apenas as relações diferenciais, mas o medo, a dor, a vergonha, a humilhação, a perda, a discórdia, a alegria dos povos imbricados a situação/condição de transfronteiridade. Enquanto um estilo de vida entre línguas, o espanhol amalgama o que é da ordem do ético, do estético, do político, do social e do cultural no tocante às condições de vida nas quais se encontram os sujeitos da periferia que se desenha ao Sul da fronteira do Centro-Oeste brasileiro. Uma língua liminar, como a do portunhol, tem o poder de, de forma especular, ressignificar e representar a fronteira enquanto um lugar periférico (ou não) capaz de reflexão e libertação tanto dos temores nascidos no lugar quanto os vindos de fora. O portunhol, como língua periférica, se, por um lado, condensa as condições de vida dos sujeitos oprimidos e excluídos, por outro lado, assinala o receio que o poder (intelectual) do discurso dos centros hegemônicos tem por não conhecê-la. Ressalvadas as diferenças contextuais e culturais, vale a pena transcrever uma passagem de Anzaldúa que traduz uma condição interlingual/intercultural encontrada na fronteira-Sul: “Aí, na encruzilhada das culturas, as línguas se revitalizam e mutuamente se fecundam. Morrem e nascem. No momento, essa língua infante, essa língua bastarda, o espanhol mexicano, não é aprovada por sociedade alguma”.89 Em vista do exposto sobre a língua e os sujeitos atravesados da fronteira-Sul, mais duas observações sobre a “paisagem do enforcado” (imagem) se fazem necessárias. Com relação à primeira, posso dizer que a paisagem estacada no meio da terra “sem lei” e a ser conquistada traz inscrita as sensibilidades dos sujeitos locais, com seus bios e seus desejos de morte, além de sinalizar um “sentido de territorialidade” (MIGNOLO) ímpar que inclui, entre outros traços localistas, a própria paisagem desolada do lugar e dos sujeitos 89

Apud MIGNOLO. Histórias locais/Projetos globais, p.344.

104

envoltos à situação. Compete a uma paisagem biográfica do local (periférico) amalgamar a política e as sensibilidades do local geoistórico, além de emoldurar em seu próprio corpo as perdas e desejos dos sujeitos imbricados a condição de fronteiridade. É exatamente por isso que uma paisagem, qualquer paisagem, apresenta-se sempre como um local de reflexão teórica por excelência. A paisagem-Sul, que encampa o pôr do sol na fronteira, além de apresentar-se como cindida desde seu infans, redesenha uma vida em trânsito para o sujeito-fronteira que nela vive ou atravessa. A outra observação sobre a “paisagem do enforcado” diz respeito ao fato de que a paisagem traz a inscrição de “um lugar, ao invés de “um não-lugar”, sinalizando, por sua vez, os traços diferenciais entre centro e periferia, eixo e fora do eixo etc, apontando, por conseguinte, as especificidades dos lugares periféricos ou não. A paisagem do enforcado, diferentemente de outras paisagens, traz inscrita em seu corpo-texto uma história singular, uma memória dos envolvidos e do lugar, uma tradição, bem como a marca das perdas e ganhos, da vida e da morte, a cor matizada do sangue escorrido pela terra ou do crepúsculo oscilante da fronteira-Sul. Quando se tem a preocupação crítica de contornar a borda imaginária e real de uma paisagem deve-se considerar, como postula Achugar, “o peso que memórias, tradições e inércias tem na configuração de uma paisagem que tem a ver, também, com a identidade”.90 Assim, o signo-paisagem do enforcado também contribui para desvelar a problemática questão identitária do lugar periférico da fronteira-Sul de Mato Grosso do Sul (Paraguai e Bolívia) e dos sujeitos nele imbricados. Douglas Diegues, poeta da fronteira-Sul, apesar de ter nascido no Rio de janeiro, em Uma flor na solapa da miséria (2007) capta e traduz en portuñol uma conceituação para o “portunhol salvaje” falado na fronteira: U portunhol salbaje es la língua falada em la frontera du Brasil com u Paraguai por la gente simples que increiblemente sobrevive de 90

ACHUGAR. Planetas sem boca, p. 96.

105

teimosia, brisa, amor al imposible, mandioca, vento y carne de vaca. Es la lengua de las putas que de noite vendem seus sexos em la linha de la fronteira. Brota como flor de la bosta de las vakas. Es uma lengua bizarra, transfronteriza, rupestre, feia, bella, diferente. Pero tiene una graça salvaje que impacta. Es la lengua de mis abuelos. Porque ellos sempre falaram em portunhol salbaje comigo. Us poetas de vanguarda primitibos, ancestrales de los poetas contemporâneos de vanguarda primitiba, non conociam u lenguage poético, justamente porque ellos solo conociam um lenguaje, el lenguaje poético. Com los habitantes de las fronteras du Brasil com u Paraguai acontece mais ou menos la misma coisa. Ellos solo conocen u lenguaje poético, porque ellos no conocen, no conocen, outro lenguaje. El portunhol salbaje es una música diferente, feita de ruídos, rimas nunca bistas, amor, água, sangre, árboles, piedras, sol, 91 ventos, fuego, esperma.

A imagem que se forma na passagem poética de Diegues também corrobora a construção da paisagem periférica que traduz o lócus geoistórico denominado de fronteira-Sul do Centro-Oeste brasileiro. Na verdade, quero entender o “portunhol salbaje” como a inscrição de uma epistemologia periférica, na medida em que a consciência dessa outra língua está, de alguma forma, arraigada no domínio do conhecimento do povo da zona de fronteira. A língua da fronteira é fruto de uma consciência salbaje, fronteriza, que, por sua vez, permite a inscrição de uma epistemologia específica da condição de transfronteiridade na qual se encontram os sujeitos atravesados. Sua condição natural de se reproduzir e de sobreviver, meio ao deusdará como flor que brota de bosta de vaca, e o fato de ser falada tanto por gente simples como pelas putas andariegas da linha real e imaginária da fronteira não deixam de sinalizar a estratégia de uma língua subalterna que, por sua condição de transfronteriza, luta para sobreviver (DERRIDA) em meio a vida e a morte, ou até mesmo para além da vida ou da morte, aliás, condição de qualquer língua periférica. Como já disse antes, há uma guerra silenciosa muito mais daninha e perniciosa entre as línguas articuladas na tríplice fronteira, uma vez que é nelas que o poder, ou melhor, os poderes se agregam. 91

DIEGUES. Uma flor na solapa da miséria (em portuñol), p.3.

106

A língua selvagem da fronteira tem a sua específica herança cultural e familiar, sua história subalterna, que, se, por um lado, permite o diálogo com a tradição moderna, por outro, inaugura uma episteme periférica cujos postulados críticos ancoram-se a partir das diferenças coloniais. Quando o poeta constata que os habitantes das fronteiras do Brasil com o Paraguai (e aqui acrescentaria a fronteira com a Bolívia) só conhecem a linguagem poética como única linguagem, ele não deixa de pontuar a consciência dilacerada do sujeito da fronteira e sua condição como sujeito oprimido pero no vencido. O “portunhol salbaje” contribui para a fundação da paisagem periférica da fronteira-Sul porque, enquanto uma música diferente, feita de ruídos, rimas nunca vistas, amor, água, sangue, árvores, pedras, sol, ventos, fogo e esperma, (DIEGUES), ajuda a contornar o corpo identitário da cultura local da zona de fronteira. Assim como o homem que se propôs a tarefa de desenhar o mundo, como se lê na epígrafe de Borges aposta neste texto, e que antes de morrer descobre que aquele paciente labirinto de linhas traçava a imagem de seu rosto, o portunhol salbaje, por ser uma “lengua bizarra, transfronteriza, rupestre, feia, bella, diferente”, espelha a herida abierta (ANZALDÚA) que sangra do corpo do sujeito subalterno e contorna em alto-relevo a paisagem que dá a todos do lugar “um sentido de territorialidade” (MIGNOLO)

107

CAPÍTULO V A RAZÃO PÓS-SUBALTERNA DA CRÍTICA LATINA92 A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza: estes dois conceitos perdem o contorno exato de seu significado, perdem seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que o trabalho de contaminação dos latino-americanos se afirma, se mostra mais e mais eficaz. (...) A América Latina institui seu lugar no mapa da civilização ocidental graças ao movimento de desvio da norma, ativo e destruidor, que transfigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus exportavam para o Novo Mundo. (...) Sua geografia deve ser uma geografia de assimilação e de agressividade, de aprendizagem e de reação, de falsa obediência. Silviano Santiago. Uma literatura nos trópicos, p. 16.

92

Uma primeira versão deste texto saiu nos CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: pós-colonialidade, p. 9-22.

A razão política de uma crítica subalterna como a da América Latina resume-se, grosso modo, na descolonização intelectual, na descolonização dos saberes, da pesquisa, das teorias, das produções culturais e da própria crítica. Agora, pensando em termos de Brasil, já passou da hora de a crítica subalterna brasileira entender que as teorias críticas vindas de fora, como as dos Estados Unidos e as da Europa, se, por um lado, ajudam-nos a compreender nossos problemas internos, por outro, elas não são uma “revelação” nem muito menos uma tábua de salvação (de apoio incondicional) para o crítico periférico brasileiro. Aqui, considerando a vasta extensão territorial de meu país, com todas as suas diferenças e diversalidades, e sem desconsiderar as injustiças sociais e descasos por parte do estado-nação, mais a condição exigida pela própria perspectiva subalterna na qual ancoro minha discussão, volto-me para o lócus geoistórico no qual me encontro como pesquisador: a fronteira-Sul do estado de Mato Grosso do Sul, com os países lindeiros Bolívia e Paraguai. Pontuado o lugar de onde erijo minha reflexão, destaco os conceitos que considero basilares para uma discussão acerca do que se entende por crítica de fronteira, periférica, subalterna ou latina. Trata-se dos conceitos de “razão subalterna” e de “opção descolonial”, ambos de Walter Mignolo. O primeiro me permite articular uma prática crítica que desbarate a razão imperial moderna e, por conseguinte, ateste a importância de a crítica latina estar assentada na “razão pós-colonial” (MIGNOLO) como forma de compreender melhor o lócus geoistórico América Latina de-dentro dele mesmo. Não por acaso, em sua vasta e acurada discussão, Mignolo afirma que “o pós-ocidentalismo dá uma melhor ideia do discurso crítico da América Latina sobre o colonialismo”93. Essa prática crítica subalterna me permite propor formas subalternas de pensar o lócus imbricado na discussão e, por conseguinte, ir desfazendo e ultrapassando a subalternidade interna inerente. Daí, em parte, a explicação para a rubrica “razão pós-subalterna” que se encontra no título deste ensaio. 93

MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos globais, p. 138.

O conceito de “Opção descolonial”, por sua vez, corrobora o de “razão subalterna” na medida em que pode ser tomado como uma desobediência epistêmica (Mignolo) frente ao projeto moderno e seus conceitos eurocentrados, permitindo à crítica descolonial, não “deslegitimar as ideias críticas europeias ou as ideias pós-coloniais fundamentadas em Lacan, Foucault e Derrida”94, pensar descolonialmente e agir politicamente de forma a não permanecer dentro da razão moderna com sua política imperial de identidades. A prática crítica encontrada na razão subalterna reforça a distinção entre teoria e prática do fazer descolonial crítico articulado pelo pensamento descolonial. Na verdade, é essa prática crítica de um fazer descolonial, encontrada também na razão subalterna, que vai permitir à crítica latina fundar uma epistemologia desvinculada da epistemologia moderna presa aos conceitos ocidentais e à prática de acumulação de conhecimento. Walter Mignolo já assinalou que a transformação fundamental que ocorreu no espaço intelectual deu-se graças à configuração do pensamento crítico subalterno, quer seja devido à prática opositiva na esfera pública, quer seja pela mudança teórica e epistemológica na academia.95 Tais mudanças teóricas e epistemológicas no âmbito da academia, especificamente quando em academias periféricas como as brasileiras, parecem ser mais lentas e duradouras do que se pode pensar. No caso específico do Brasil, que tem uma tendência crítica consolidada “para receber e avaliar teorias ‘estrangeiras’”96, conforme constatou Mignolo, se, por um lado, tal crítica parece estar aberta a receber, avaliar e traduzir as novas práticas (teóricas, críticas e estéticas) que vão surgindo de fora para dentro sem nenhum apego à tradição interna; por outro, existe um

94

MIGNOLO. Desobediência epistêmica, p. 288.

95

Cf MIGNOLO. Histórias locais /Projetos globais, p. 139.

96

MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos globais, p. 16.

112

ranço subalternista, cultural e histórico, que obriga (instiga) essa mesma crítica a defender a tradição moderna aqui hospedada.97 Voltando-me para o lócus cultural fronteiriço e periférico no qual me situo e, por conseguinte, erijo minha reflexão crítica, quero pensar que a razão subalterna, “como um conjunto diverso de práticas teóricas emergindo dos e respondendo aos legados coloniais na interseção da história euro-americana moderna”98, permite-me articular uma reflexão para além de qualquer perspectiva disciplinar e moderna, para além de qualquer estética imperializante, para além de qualquer teoria que se arvore dona de um lócus de enunciação próprio e para além daquela perspectiva epistemológica racional, ocidental e moderna que teleguiou toda a discussão acerca do valor estético e do conhecimento no Ocidente e fora dele. Pensando da margem ou zona fora dos centros, do país e do mundo, mais especificamente da Universidade periférica, entendo que a prática reflexiva subalterna exerce o poder de barrar o “colonialismo interno” que se agregou e se cristalizou na instituição e na produção do saber por meio de uma reflexão acrítica que levou a exaustão a prática da repetição de teorias vindas de fora, como se essa fosse a única forma de salvação para todos os envolvidos, inclusive das produções humanas que eram postas sub judice. No campo da crítica, a razão pós-subalterna vem barrar o colonialismo interno crítico que se cristalizou nas discussões e propor o ultrapassamento de qualquer pensamento dicotômico. Dicotômico, aqui, é sinônimo de moderno. É nessa direção que entendo quando o autor de Histórias locais/ Projetos globais mostra a interferência direta da razão subalterna na distribuição geopolítica do conhecimento (aqui estou pensando na crítica) que pode ser explicada pelas heranças coloniais e as histórias críticas locais. É por estar embasada nas heranças coloniais e nas histórias (críticas) locais que a prática teórico-crítica da razão subalterna (ela mesma se apresenta como uma prática teórica) 97

Ver nosso texto Crítica subalternista ao sul.

98

MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos locais, p. 139.

113

propõe uma descolonização/dessubalternização crítica do colonialismo crítico interno que teima em imperar nas periferias. De acordo com Mignolo A razão subalterna é aquilo que surge como resposta à necessidade de repensar e reconceitualizar as histórias narradas e a conceitualização apresentada para dividir o mundo entre regiões e povos cristãos e pagãos, civilizados e bárbaros, modernos e prémodernos e desenvolvidos e subdesenvolvidos, todos eles projetos 99 globais mapeando a diferença colonial.

Os discursos críticos subalternos que se encontram na fronteira do saber e do discurso hegemônicos devem reconceitualizar os conceitos migrados para as margens por meio, quase sempre, de uma crítica erigida nos grandes centros do país e do mundo e levada para as margens ainda com a missão de esclarecer os lugares fronteiriços e seus respectivos indivíduos. Reconceitualizar, aqui, pela razão da crítica subalterna implica essa crítica pôr em articulação uma epistemologia outra que a seu modo vai tomando conhecimento e minando por dentro a conceitualização cristalizada encontrada pelo caminho, isto é, a epistemologia moderna. Na esteira da discussão proposta por Mignolo, a prática de uma crítica de razão subalterna não deve se prender a uma discussão acerca das “teorias póscoloniais” (como tão comumente acontece nas discussões acadêmicas em que, grosso modo, ensinar é repetir teorias), mas, antes, no próprio fazer da “teorização pós-colonial”: “um processo de pensamento que os que vivem sob a dominação colonial precisam empreender para negociar suas vidas e sua condição subalterna.”100 A crítica periférica como a nossa, situada nessa zona fronteriza sem lei, ao por em prática seu fazer de uma teorização pós-colonial, busca romper, ou barrar a dominação imposta por meio do colonialismo interno da crítica dos grandes eixos do país ou até mesmo da vinda de fora. Tal gesto crítico proposto pela crítica subalterna busca a libertação em todas as esferas da vida, tanto do bios quanto das 99

MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos globais, p. 143.

100

MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos globais, p. 146.

114

memórias dos sujeitos e produções humanas envolvidos na condição de subalternidade. Quando a crítica subalterna barra o colonialismo interno imposto pela crítica dos centros ou de fora, ela escava uma fenda no discurso crítico periférico de modo que as heranças coloniais da zona de fronteira (Sul) venham à luz e não sejam mais ignoradas. Vejamos um exemplo ilustrativo da discussão crítica: na fronteira-sul aqui em relevo, mas até mesmo fora desse lócus (em se tratando de Brasil), os indígenas não se encontram na mesma condição subalterna que os paraguaios, os bolivianos, os brasiguaios, os árabes e os japoneses. Não que cada raça não se encontre em condição subalternizada no contexto cultural local, mas a posição do indígena sequer é aferida pelo estado. Essas relações diferenciais entre povos, línguas e culturas só podem ser resolvidas da perspectiva de uma teorização pós-colonial, quando o próprio crítico, mais os sujeitos e os objetos, encontram-se envoltos à ação do fazer da razão subalterna. Não por acaso, Mignolo vai pontuar como essencial para a formação da razão subalterna e da teorização pósocidental “a inscrição da experiência colonial/subalterna do crítico em suas práticas teóricas”.101 A experiência, ou a posição, na qual se encontra o crítico subalterno, ao mesmo tempo em que desenha o contorno de seu bios, também permite a inscrição da teorização pósocidental como uma “teorização bárbara” (selvagem, periférica, fronteriza): Uma prática teórica daqueles que se opõem ao conceito racional e asséptico de teoria e conhecimento, teorizando, precisamente, a partir da situação na qual foram colocados, sejam eles judeus, muçulmanos, ameríndios, africanos ou outros povos do “Terceiro 102 Mundo” como os hispânicos nos Estados Unidos de hoje.”

Também o artista subalterno não foge à regra: produz a partir da condição na qual se encontra, quer tenha consciência disso ou não. A consciência subalterna fala por sua obra. Tomo como exemplo ilustrativo da discussão os Bugres esculpidos por Conceição dos 101

MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos globais, p.156.

102

MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos locais, p. 157.

115

Bugres, em um cenário artístico esteticamente moderno, branco e preconceituoso, onde o indígena nunca teve vez à voz e veto, o que só autentica o discurso autoritário (imperializante) do mando e do desmando dos latifundiários e do poder do estado. Os Bugres, por si só, têm o poder de exumar a história toda de um povo subalterno dentro da história ocidental da humanidade. Logo, neste caso em particular, compete à teorização pós-subalterna reinserir a “produção bugresca” na história local (e mundial) e, por conseguinte, desreprimir (Mignolo), tirar a tarja imposta pela estética da razão moderna, com seu desejo arcaico de civilizar o outro, de pensar teoricamente pelo bárbaro. A teorização pós-subalterna, por pensar da fronteira e sob a perspectiva da subalternidade (Mignolo), radicaliza com o conceito moderno de teoria e suas formas abstratas e universalizantes. A estética moderna é a abstração por excelência. De nada adiantaria eu pensar esteticamente os Bugres esculpidos pela indígena e artista popular Conceição dos Bugres se eu não visse ali a constituição de um novo sujeito epistemológico cuja insígnia fronteiras subalternas se desenha nos vincos de seu corpo totêmico. Essa minha prática auto-reflexiva e crítica na academia deve priorizar as sensibilidades biográficas e a experiência de ambos (sujeitos e produção cultural), mesmo quando a herança colonial seja um fato histórico e não pessoal (não sou indígena), posto que somente quando me predisponho pensar criticamente a partir da experiência (consciência para a artista Conceição dos Bugres) do subalterno é que me encontro na condição de compreender a sua condição (situação) indígena como uma forma de subalternidade. Por priorizar, diferentemente da razão moderna, as sensibilidades biográficas e a localização, a teorização pós-ocidental/colonial, ou melhor, a razão subalterna “revela uma mudança de terreno em relação à própria fundação da razão moderna como prática cognitiva, política e teórica.”103 Advinda da prática da razão pós-subalterna, a epistemologia fronteriza subverte a razão moderna com seus

103

MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos globais, p. 161.

116

conceitos binários, excludentes, totalizantes e sumariamente estetizantes.

Figura 3 – Imagem da escultura do “Bugre da Conceição” – Acervo pessoal do autor.

O conceito “opção descolonial” corrobora tudo o que se disse até aqui sobre a razão pós-subalterna porque, enquanto ação epistêmica, permite (significa) aprender a desaprender os conceitos fundamentados na razão ocidental e na ideia de acumulação de conhecimento (MIGNOLO). O pensamento descolonial emergiu da exterioridade, das fronteiras, das margens e das periferias dos centros hegemônicos universais e ocidentais. Detendo-me especificamente no lócus geoistórico sul-latino de onde proponho minha reflexão crítica, resta-me perguntar onde sobrevive o pensamento descolonial nessa zona fronteriza atravessada pelo discurso estatal, pela briga por terra e pela guerra silenciosa imposta pelas línguas portunhol, guarani, espanhol e português? Mais uma vez, posso dizer que os Bugres de Conceição dos Bugres amalgamam as memórias descoloniais de um povo que ainda reivindica seu direito na sociedade. Compete à crítica que opta pela opção

117

descolonial exumar essas memórias e histórias esquecidas e reinserilas no debate contemporâneo, respeitando seus lugares e corpos nos quais elas vivem, bem como também não querer tirá-las de sua condição de exterioridade e querer analisá-las à luz da razão universal (interioridade do pensamento ocidental). Em “Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política”, Walter Mignolo, ao tratar da questão da “identidade em política”, ao invés de “política de identidade”, confirma que “a opção descolonial revela a identidade escondida sob a pretensão de teorias democráticas universais ao mesmo tempo que constrói identidades racializadas que foram erigidas pela hegemonia das categorias de pensamento, histórias e experiências do ocidente.”104 Exumar memórias, reinventar histórias locais e revelar identidades escondidas embasam a prática da crítica de razão subalterna e a episteme de opção descolonial. Mas o que significa e implica pensar uma crítica de ordem (opção) descolonial? De acordo com Mignolo, “significa pensar a partir da exterioridade e em uma posição epistêmica subalterna vis-à-vis à hegemonia que cria, constrói, erige um exterior a fim de assegurar sua interioridade”105, e “implica pensar a partir das línguas e das categorias de pensamento não incluídas nos fundamentos dos pensamentos ocidentais.”106 Ou seja, uma crítica subalterna articulase de uma perspectiva geopolítica da margem, fronteiriça, periférica, exterior, levando em conta uma epistemologia específica desse lócus geoistóricocultural. A desobediência epistêmica posta em prática tanto pela razão pós-subalterna quanto pela opção descolonial dá-se não porque elas ignoram os conceitos modernos e as categorias que estão na base do pensamento ocidental, mas porque elas se 104

MIGNOLO. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política, p. 297. 105

MIGNOLO. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política, p. 304. 106

MIGNOLO. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política, p. 305.

118

predispuseram a des-aprender a lição canônica (tradição moderna) e aprender como se fosse pela primeira vez. Não por acaso, em “Para des-inventar América Latina”, Mignolo vai responder que pensar descolonialmente nos leva a argumentar a favor da opção descolonial que afirma seu direito de existência para coexistir com as opções já existentes.107 Quer seja de forma conflitiva, quer seja de forma solidária, o diálogo proposto entre a opção descolonial e a colonial deve priorizar a exumação das histórias locais do mundo que foram interrompidas pela história local da Europa. O projeto universal/colonial homogeneizou as diferenças culturais locais, interiorizando as exterioridades. Mais uma vez, a história velada que entrevemos no sinal da boca cerrada e dos olhos vazados dos Bugres de Conceição sinaliza o processo de desmontagem e, por conseguinte, de des-aprendizagem da crítica de razão póssubalterna, sobretudo porque a escolha/opção dos Bugres (da produção cultural e dos sujeitos envolvidos) já vem inscrita em seus corpos como condição de subalternidade. Já ao final (Posfacio) de La idea de América Latina, depois de discutir sobre os conceitos de “ferida aberta” e “opção descolonial” como operadores fundacionais para a conceituação de América Latina, Mignolo pontua o lugar de onde se pensar criticamente a opção de negação colonial: A opção descolonial é pensada não mais a partir da Grécia, e sim a partir do momento em que as histórias locais do mundo foram interrompidas pela história local da Europa, que apresenta a si mesma como projeto universal. A criação da ideia de América ‘Latina’ foi parte deste processo expansivo universal (por exemplo, uma América Latina e não uma América Cristã e Hispânica, como foi o ideal de colonização castelhana). Hoje, esta ideia está em processo de ‘desmontagem’ precisamente porque aqueles que foram negados – e àqueles que, no melhor dos casos, foi dada a opção de se integrar à colonialidade – hoje dizem: ‘Não, obrigado, mas não; minha opção 108 é descolonial.’. 107

MIGNOLO. Para des-inventar América Latina, p. 198.

108

MIGNOLO. La idea de América Latina, p. 216-217. (“La opción decolonial piensa no ya a partir de Grecia, sino a partir del momento em que las historias locales del mundo fueron interrumpidas por la historia local de Europa,que se presenta a si

119

Se até aqui me detive basicamente nos conceitos de “razão subalterna” e de “opção descolonial”, visando pontuá-los como base teórica acerca de uma discussão voltada para o que se denomina de crítica subalterna (latina), de agora em diante volto-me especificamente para uma problematização, também de ordem crítica e cultural, envolta ao meu lócus da fronteira-Sul no qual me situo: o estado de Mato Grosso do Sul e seus países lindeiros Paraguai e Bolívia. Assim, considerando, então, a específica condição fundacional de fronteira que se encontra na origem da cultura local em relevo, darei especial atenção aos conceitos de “hospitalidade” e de “transculturação”, por entender que ambos fazem parte do processo, culturalmente falando, de construção da epistemologia fronteriza que especifica e diferencia o lócus em questão.

1 – Hospitaleira, hospitalidade, hostilidade Todo aquele que chega não é recebido como hospede caso não se beneficie do direito à hospitalidade ou do direito de asilo etc. Sem esse direito, ele só pode se introduzir ‘em minha casa’, ‘na casa’ do hospedeiro (host), como parasita, hóspede abusivo, ilegítimo, clandestino, passível de expulsão ou detenção. (DERRIDA. Da hospitalidade)

Na tríplice fronteira-Sul do Oeste brasileiro, não são apenas as teorias itinerantes (BHABHA, MIGNOLO) vindas dos grandes centros do país e do mundo (Norte) que se hospedam em casa alheia, permanecendo no lugar por meio de um gesto repetitivo e monotópico que soa como a uma eternidade (por vir). As vidas na fronteira (MIGNOLO) dos andariegos, dos brasiguaios, dos bolivianos, misma como proyecto universal. La creación de la Idea de América ‘Latina’ fue parte de esse proceso expansivo universal (por ejemplo, uma América Latina em vez de Cristiana e Hispánica, como fue el ideal de la colonización castellana). Hoy esa idea está em proceso de ‘desmontaje’ precisamente porque quienes fueron negados - y a quienes, em el mejor de los casos, se les dio la opción de integrarse em la colonialidad – hoy dicem: ‘No, gracias, pero no; mi opción es decolonial’” (MIGNOLO. 2005, p. 261-217)

120

dos paraguaios, dos foragidos, clandestinos e contrabandistas, dos sul-mato-grossenses, enfim, do homem-fronteira, das línguas (como, por exemplo, portuñol e guarani, além das línguas indígenas), da própria condição de cultura local de fronteira encontram-se em estado/trânsito de hospedagem permanente. Tais sujeitos, produções culturais (antes meros objetos passíveis de análise) e línguas, quando chegam e batem à porta da estalagem (ou Galpão) em busca de hospedagem (exceto as teorias itinerantes que quase sempre não são transculturadas)109, trazendo na bagagem a diferença colonial, deparam-se com os legados coloniais incrustados nas paredes da Academia, nas memórias dos intelectuais do lugar e na prática repetitiva disciplinar que barra toda espécie de diferença colonial. Quando isso ocorre, a crítica hospedeira, assentada nos legados coloniais, na exaltação ao moderno (universal) e na mera repetição conceitual, acolhe o que veio de fora, geralmente aquele que atravessou a fronteira, apenas como uma nova forma de colonização para autenticar e iluminar a sua própria inteligência, a inteligência dos anfitriões (MIGNOLO). Às vezes também o gesto de hospedagem da crítica anfitriã proporciona um sentido contrário: permite que a crítica, os sujeitos e as produções, todos, enfim, vindos do outro lado da fronteira-Sul, revelem uma realidade outra que não poderia ter sido percebida sem o seu deslocamento de origem e aceitação para hospedar em lugar alheio. Se, no primeiro caso, temos o reforço de uma epistemologia moderna, no segundo, diferentemente, vamos ter a postulação de uma epistemologia fronteriza. Nesse sentido, não é por acaso que Mignolo vai afirmar que “é a partir da diferença colonial que as epistemologias estão emergindo.”110 Em ambos os casos de hospedagem, ocorre um processo de transculturação, mas com uma diferença essencial: 109

(“Hoje em dia, uma reflexão sobre a hospitalidade pressupõe, entre outras coisas, a possibilidade de uma delimitação rigorosa das soleiras ou fronteiras: entre o familiar e o não-familiar, entre o estrangeiro e o não-estrangeiro, entre o cidadão e o não-cidadão.” DERRIDA. Da hospitalidade, p. 43.) 110

MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos locais, p.241.

121

enquanto no primeiro, as teorias vindas de fora sofrem transculturação e tornam-se meros objetos (da ordem da repetição), no segundo, as teorias, talvez antes de um verdadeiro processo de hospedagem, sofrem trans/culturação, abrindo-se para a reinscrição de uma epistemologia outra. Nos dois casos, é a fronteira epistemológica que permite a presença da diferença colonial e, por conseguinte, uma viagem (discussão) crítica mais saudável e duradoura. Enquanto as “teorias itinerantes viajavam do norte para o sul” (MIGNOLO), as teorias subalternas podem viajar em todas as direções, atravessar todas as fronteiras, assim como fazem os pássaros do poeta palestino Mahmoud Darwish: “para onde devem voar os pássaros depois do último céu.”111 Pensando especificamente no lócus fronteiriço-Sul aqui em questão, reconheço que se há uma prática reincidente à repetição, ao invés de alçar voo crítico que atinja o outro lado da fronteira, lugar onde o sol se põe e o último céu se desenha, é porque a crítica local parece estar condenada a reclinar seu olhar para o Norte, como forma de reverenciar os legados teórico-críticos que hoje podem soar como estéreis para se pensar zonas fronterizas como a que encontro na tríplice fronteira sem lei do Sul da região Centro-Oeste brasileira. Mas é exatamente por se caracterizar como um lócus geoistórico marcado pela transfronteiridade, aberto a todas as direções e limites, que vou encontrar nele uma saída, ou perspectiva epistemológica, que propõe a encenação de uma epistemologia outra que a seu modo barre qualquer traço, ou ranço subalternista com relação à crítica e à cultura periféricas do Sul. Dessa vez, ilustra minha discussão uma passagem poética (mais uma “paisagem periférica”) de Manoel de Barros, na qual ele descreve a sobrevivência de uma arraia durante a estiagem no pantanal: Quando as águas encurtam nos brejos, a arraia escolhe uma terra propícia, pousa sobre ela como um disco, abre com as suas asas uma cama, faz chão úbere por baixo - e se enterra. (...) Com pouco, por baixo de suas abas, lateja um agroval de vermes, cascudos, girinos e 111

Apud BHABHA. O local da cultura, p.198.

122

tantas espécies de insetos e parasitas, que procuram o sítio como um ventre. Ali, por debaixo da arraia, se instaura uma química de brejo. Um útero vegetal, insetal, natural. A troca de linfas, de reima, de rúmen que ali se instaura é como um grande tumor que lateja. Faz-se debaixo da arraia a miniatura de um brejo. A vida que germinava no brejo transfere-se para o grande ventre preparado pela matrona arraia. Penso na troca de favores que se estabelece; no mutualismo; no amparo que as espécies se dão. Nas descargas de ajudas; no equilíbrio que ali se completa entre rascunhos de vida dos seres minúsculos. (...) E ao cabo de três meses de trocas e infusões - a chuva começa a descer. E a arraia vai levantar-se. Seu corpo deu sangue e bebeu. (...) De novo ela caminha para os brejos refertos. Girinos pretos de rabinhos e olhos de feto fugiram do grande útero, e agora já fervem nas águas das chuvas. (...) É a pura inauguração de um outro universo. Que vai corromper, irromper, irrigar e recompor 112 a natureza.

A condição de sobrevivência da arraia ilustra, metaforicamente, a cultura local da fronteira-Sul na medida em que ela, ao mesmo tempo, exerce o papel de anfitriã e de hospede: se, por baixo de seu corpo distendido e paralisado funda-se um mundo em miniatura que se abre para a hospedagem/transferência de corpos estranhos e migrantes vindos fora, também a hospedeira vai se alimentar da troca de favores que o gesto transferencial estabelece. Num gesto de mutualismo biológico e cultural, num mutualismo da ordem do bios (sobrevivência), a anfitriã hospeda, ampara o estrangeiro e, nas mesmíssimas proporções, é hospedada e amparada por ele. O grande útero cultural, por permitir a troca de favores e de infusões, visando sua própria sobrevivência e a do estrangeiro, inaugura um mundo outro, o da diversalidade (MIGNOLO), onde a convivialidade e a hospitalidade são postas em prática, independente de beirarem a hostilidade. Não é por acaso que, em Da hospitalidade, Derrida vai falar em hostipitalidade (hospitalidade + hostilidade).113 A condição de fronteira na qual se situa o lócus geoistórico cultural aqui denominado de fronteira sem 112

BARROS. Livro de pré-coisas, p. 21-23.

113

DERRIDA. Da hospitalidade, p. 41.

123

lei (Mato Grosso do Sul/Paraguai/Bolívia) condena o lugar a se abrir, ou estar eternamente aberto, desde seu infans, para uma hospitalidade incondicional (DERRIDA), ou seria hostipitalidade incondicional. Talvez para fazer jus ao território da fronteira marcado pela falta de lei, pela prática do contrabando, onde os entreveros acontecem com muita frequência, lugar por onde os foragidos e forasteiros atravessam em plena luz do sol, ou na calada da noite, onde ocorre uma luta sangrenta pela terra, onde se encontra com muita facilidade cemitérios clandestinos, mas também onde trabalhadores vivem, apesar do descaso do estado, com certa dignidade, ali, nesse lugar propício à hospitalidade incondicional, logo avesso ao direito e à política, não há lugar para a hospitalidade condicional. De acordo com Derrida, a hospitalidade incondicional, pura ou de visita, “consiste em deixar advir o visitante, o que chega inesperadamente sem lhe pedir contas, sem lhe exigir o passaporte”.114 Essa atmosfera de um visitante sem convite (hospitalidade condicional) e sem documento ilustra, metaforicamente, o corredor de passagens e de transeuntes que migram, travessam (ANZALDÚA) de um lado para o outro a aparente fronteira sem lei do Sul do Oeste brasileiro. (Aparente aqui porque a zona de fronteira faz e impõe sua própria lei a todos que por ela cruzam.). Não é por acaso que Derrida constata que a hospitalidade incondicional “vale para a passagem das fronteiras de um pais”.115 A fronteira sinaliza o lugar, ou espaço, por onde todos migram: os povos, as línguas, as produções culturais, as culturas enfim. Aliás, nesse particular, é visível o quanto as produções culturais dessa zona de transfronteiridade sempre estiveram voltadas para um diálogo cultural imposto pela própria condição de fronteira (Mato Grosso do Sul/Paraguai/Bolívia), diferentemente da crítica acadêmica e disciplinar que sempre esteve voltada para os grandes centros do país e do mundo. Grosso modo, a crítica local em questão não soube escutar o balbucio fundacional imposto pelas produções culturais da 114

DERRIDA &ROUDINESCO. De que amanhã..., p.77.

115

DERRIDA & ROUDINESCO. De que amanhã..., p.77.

124

fronteira, como se essa condição de transfronteiridade (epistemologia fronteriza) não marcasse, para o bem ou para o mal, seus corpos, permitindo a elas a especificidade inerente a cada lócus geoistórico cultural. Nessa zona de transfronteiridade infinita, onde reina a hospitalidade incondicional, aliás, segundo Derrida, sem essa hospitalidade pura “não existe conceito de hospitalidade”, ali onde o anfitrião supõe permanecer “senhor em minha casa e ali onde controlo minha casa, meu território, minha língua”116, não há controle real a não ser o dos latifundiários que cercam suas terras com barricadas e fossos contra, por exemplo, os indígenas que foram expulsos de sua própria casa. O povo indígena endossa o coro dos descontentes, esquecidos e injustiçados indivíduos da fronteira-Sul, sobre os quais só se pode falar com base num discurso da hostipitalidade (DERRIDA), porque até no campo da hospitalidade condicional, regida pela lei e pela política (do estado), o direito desse sujeito-fronteira é vilipendiado. A zona de fronteira aqui em debate, talvez por sua condição mesma de liminaridade, encontra-se aberta para uma prática de hospitalidade que é, ao mesmo tempo, hospitaleira117 e hostil. E, por conseguinte, por estar geoistoricamente aberta para todos os convidados (hospitalidade incondicional) e visitantes (hospitalidade condicional) desencadeia um processo de transculturação infinita.

116

DERRIDA & ROUDINESNCO. De que amanhã.., p.77.

117

Hospitaleira, no contexto, tem um sentido pejorativo. Em se tratando da cultura brasileira, é comum vermos letras de hinos e de músicas exaltarem a hospitaleira condição do brasileiro receber o outro. O termo dialoga com o de “cordialidade” de Sérgio Buarque de Holanda. Na região de fronteira aqui em destaque, o anfitrião recebe o hóspede pela porta dos fundos, ou diretamente no galpão. Em ambos os casos, temos o olhar vigilante, desconfiado daquele que recebe o outro em sua casa. Uma hospitalidade vigiada e subjugada pela condição de estranho, vindo de fora.

125

2 – Paisagens borracheras e sensibilidades biográficas Lo mio es lo contrabando, lo lirikotráfico; como saber adonde si ubica la frontera si non sei onde empieza el dia y si acaba el sueño?; como conocer onde empieza el portugués y termina el castellano, si lo único que sei és que el portuñol és infinito, assim como la borrachera? Lo mio és la poesia y el infinito, esa broma que llamamos vida. Joca Reiners Terron. Transportuñol 118 borracho

As incertezas das margens, dos pântanos, das florestas, dos limites, das paisagens, das línguas, dos transeuntes, dos contrabandistas, dos migrantes, enfim, das vidas na fronteira, assinalam a condição trans- de todos no presente e no espaço, ao mesmo tempo em que os especificam por meio “das sensibilidades dos locais geoistóricos” (MIGNOLO). As produções culturais, as paisagens e as imagens borracheras, desse lócus transfronteiriço, agressivamente (e de-dentro) propõem uma descolonização do saber acadêmico e disciplinar, do valor estético monotópico, bem como dos conceitos imperiais migrantes que chegam dos centros e de fora e se agregam aos corpos das produções e aos lugares reforçando a colonização. Homi Bhabha também, ao discutir a condição das “vidas na fronteira”, endossa a ideia de que “nossa existência hoje é marcada por uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de viver nas fronnteiras do ‘presente’, para as quais não parece haver nome próprio além do atual e controvertido deslizamento do prefixo ‘pós’”.119 O que Bhabha pensa e denomina de pós-colonialismo, Walter Mignolo pensa e denomina de pós-ocidentalismo, aqui estou querendo pensar em trans-fronteira. Enquanto a epistemologia 118

O que eu faço é contrabando, o liricotráfico (tráfico lírico); como saber onde se encontra a fronteira se não sei onde começa o dia e se acaba o sonho?; como conhecer onde começa o português e termina o castelhano, se o único que sei é que o portunhol é infinito, assim como a embriaguez? o que faço é a poesia e o infinito, essa brincadeira que chamamos vida. (transportunhol embriagado) 119

BHABHA. O local da cultura, p. 9.

126

subalterna para pensar tais denominações pode ser a mesma, o recorte geoistórico cultural se diferencia: a discussão proposta pelo crítico indo-britânico, apesar de estar voltada para o Terceiro Mundo (Índia) e a diáspora de seus intelectuais, não encampa a história da colonização da América Latina que embasa toda a discussão do crítico argentino. Bhabha, talvez por uma questão de língua (inglesa) e de dependência cultural, assenta sua discussão, em grande parte, no estruturalismo e pós-estruturalismo franceses (sobretudo em Derrida e Lacan), enquanto Mignolo vai se afastar deles por entender que tais tendências não levaram em conta a diferença colonial. Sem querer tomar partido crítico, quero entender que a proposição crítica defendida por Mignolo sobre a América Latina, apesar de ser pensada dos Estados Unidos (o mesmo acontece, em parte, com Bhabha), ajuda-nos a nos aproximar e, por conseguinte, a entender melhor os problemas da colonização e, ao mesmo tempo, buscar estratégias críticas capazes de nos fazer compreender a América Latina e suas fronteiras internas por fora da reflexão eurocêntrica que se cristalizou nos trópicos. Logo, a discussão em torno do Trans-, aqui proposta, e que não tem mais a ver com “disciplina”, mas com “cultura”, permite pontuar as “diferenças culturais” da fronteira e reinseri-las em uma discussão crítica de maior abrangência. Assim como Mignolo aproximou magistralmente Bhabha de pensadores latinos, gostaria aqui de aproximá-los, especificamente quando Bhabha fala de “fronteira” e de “diferenças culturais”, por entender que tal discussão conceitual esclarece a condição de transculturação que diferencia a cultura local da fronteira-sul na qual me encontro situado. Ao discutir sobre a migração pós-colonial, sobre o movimento diaspórico e sobre os deslocamentos dos campesinos, Bhabha vai afirmar que a fronteira se torna o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente em um movimento não dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalente, do além que venho traçando: ‘Sempre, e sempre de modo diferente, a ponte acompanha os caminhos morosos ou apressados dos homens para lá e para cá, de modo que

127

eles possam alcançar outras margens...A ponte reúne enquanto 120 passagem que atravessa.’

A perspectiva de uma fronteira borrachera, ambulante e ambivalente destacada por Bhabha ilustra a “epistemologia fronteriza” proposta por Mignolo e encontra representação similar no movimento aberto para dentro e para fora ao mesmo tempo da fronteira porosa e sem lei que se desenha como um corredor de passagens que interliga os países vizinhos (Brasil/Paraguai/Bolívia). Nesse lugar poroso e instável, no qual a fronteira enquanto uma travessia que reúne na dispersão de todos os atravesados (ANZALDÚA), as “diferenças culturais” (BHABHA) encontram-se na “semiose colonial”121 e desencadeiam um processo transculturador infinito que demanda uma epistemologia outra ─ posto que emergem línguas sumariamente excluídas como o portunhol e o guarani (ver epígrafe), povos marginalizados como os brasiguaios, bolivianos, paraguaios, sem terra, andarilhos, indígenas, histórias locais condenadas a pertencer ao resto do mundo ─, assinalada pelas sensibilidades biográficas impostas pela condição de trans-fronteiridade. Há uma imagem poética, do poeta palestino Mahmoud Darwish, que traduz a condição desconfortável e perene do homem, e do intelectual, que vivem na fronteira: “O mundo nos encurrala, pressionando-nos em direção à última passagem, e nós dilaceramos nossas pernas para atravessá-la. Para onde iremos além das últimas fronteiras, para onde voarão os pássaros além do último céu?”122 Aqui, no Sul, a fronteira é o limite. Resta-nos propor um trabalho crítico que descolonize as fronteiras epistêmicas impostas pelo sistema colonial moderno. Para Bhabha: 120

BHABHA. O local da cultura, p.24. (grifos do autor)

121

“Eu me interesso muito mais em refletir criticamente sobre a colonialidade e em pensar a partir da vivência dela do que em identificar traços distintivos nacionais (ou subcontinentais, isto é, ‘latino-americanos’). Essa é a principal razão pela qual prefiro o termo semiose colonial a transculturação, que, segundo a primeira definição de Ortiz, conserva as sombras de ‘mestizaje.’” (MIGNOLO, 2003, p. 38) 122

Apud SAID. Israel está mais seguro?, p.7.

128

O trabalho fronteiriço exige um encontro com ‘o novo’ que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria um ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O ‘passado-presente’ 123 torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver.

Já o autor de Histórias locais/ Projetos globais propõe como saída para a reflexão crítica feita das margens “a descolonização e a transformação da rigidez de fronteiras epistêmicas e territoriais estabelecidas e controladas pela colonialidade do poder, durante o processo de construção do sistema colonial/moderno.”124 Ambas as passagens, enquanto uma prática crítica pós-subalterna (para retomar o título deste ensaio), sinalizam que o processo transculturador, demandado pela cultura fronteiriça e suas histórias locais híbridas situadas entre lá e cá, cria um entre-lugar (SANTIAGO) cultural povoado de sensibilidades biográficas, de afetos e de memórias subalternas que transitam entre o local e o global sem culpa.125

123

BHABHA. O local da cultura, p. 27.

124

MIGNOLO. Histórias locais/ Projetos globais, p. 35.

125

Ver LOPES. Do entre-lugar ao transcultural.

129

CAPÍTULO VI MEMÓRIAS SUBALTERNAS LATINAS: ensaio biográfico126 Vejo o tempo passar, década por década, sinto o avanço, inexorável, do envelhecimento, as falhas da mente cansada e gasta, mas não se me apaga da memória essa paisagem crioula, que ficou engastada em meus olhos e no coração. (SEREJO. Balaio de bugre. p. 28) A catequização dos Boróros [...] Mais tarde, quando os pacificadores vieram com gestos bons e atitudes generosas os boróros, ainda inquietos e desconfiados, por intermedio da Rosa, - india bonita que ficou na História, aceitaram o tratado de paz. Foi assim que os boróros, aqueles indios que ainda choram as selvas da minha terra perderam-se nos rigores da Civilização! (MATOS. Areôtorare, p. 73)

126

Uma primeira versão deste texto saiu nos CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: memória cultural

Nasci na fronteira-Sul, do antigo Mato Grosso, mas precisamente na parte da fronteira seca que faz fronteira com Pedro Juan Caballero (PY), por onde um dia passaram carretas e mais carretas de boi abarrotadas de raído, rumo ao país vizinho Argentina, e por onde continua passando, desde sempre e cada vez mais, contrabando de toda espécie: desde trabalhadores desempregados, para prestarem mão-de-obra escrava nos grandes centros do país, como São Paulo, além de todo tipo de droga e armas, até bugigangas e quinquilharias que são negociadas a 1,99 no mercado clandestino que se alastrou por todas as esquinas das capitais brasileiras, fazendo a diferença do mercado interno bruto. Cresci nesse lócus geoistórico fronterizo por excelência, lugar onde o sol se põe por sobre a fronteira, denominada de seca e sem lei, e onde o poder do 38 e do 44 geralmente sinaliza quem manda e quem obedece. Se, por um lado, a fronteira é considerada como terra de ninguém, sem lei, por outro, ela também serve de limites territoriais dos latifúndios do lugar, além de sustentar uma guerra silenciosa entre brasiguaios e sem terra pela posse da terra. Emblematicamente, a fronteira, de modo simbiótico, representa a condição de vida de todos os sujeitos que nela vivem, assim como as línguas e as produções artístico-culturais dos sujeitos envolvidos. No meu caso, àquela época, eu era um menino-fronteira, mas eu não podia saber. A fronteira fazia parte de meu imaginário como a um arquivo que não sofre de seu próprio mal (Derrida). Depois, quando tive que articular meu pensamento de modo sistematizado, entendi que meu reconhecimento do lócus de onde eu erigia minha reflexão era a condição (intelectual) que me sobrava, quer eu pensasse da Sorbonne, ou de uma escolinha primária dos arrabaldes de Dourados, assim como não era menos importante que eu tomasse a fronteira (qualquer fronteira, apesar de aqui estar voltado para a minha) como geopolítica e epistemológica. Enfim, quando falo de fronteira aqui, falo de um modo epistemológico fronterizo (MIGNOLO) de pensar a partir dos restos (lugares outros) do mundo ocidental. Posiciono-me e penso da fronteira, não dos centros globalizados das cidades e do mundo, essa é a condição de minha herança familiar, histórica e cultural. Se a palavra “ocidente” etimologicamente e culturalmente

significa “o lugar onde se põe o sol” (Teorias sin disciplina), então o lugar fronterizo no qual me situo só autentica minha condição de viver na borda do fora (do mundo ocidental). A condição de sujeitofronteira permite a ele reconhecer pelo menos duas experiências de vivências: a de “viver-entre-línguas” (Anzaldúa, Mignolo) e a de viverentre-fronteiras. Na primeira, o sujeito fronterizo fala, ouve, ou escuta o trânsito contínuo dos dialetos e das línguas, como o portunhol e o guarani, além de línguas indígenas que são pronunciadas de-dentro das situações de subalternidades locais. Na segunda, o sujeito atravessado pela situação vê, percebe, sente pelo olhar, pelo paladar, a condição de estranho do outro, do andariego da fronteira. Tais traços de homem-fronteira encontram-se na convivialidade, na hospitalidade, no jeito esquisito de o outro abordar as coisas e as pessoas do lugar onde chega. Demorei muito para des-aprender (Mignolo) isso, mas eu já sentia desde tempos imemoriais. A diferença colonial do homem que vive na fronteira é que ele sente a fronteira no próprio corpo. De modo que ela está incrustada em seu corpo, em sua língua, em seu pensamento, em seu modo de produzir conhecimento. É a soma de tudo isso que vai resultar em uma epistemologia específica dos lugares subalternos. Com base num lócus geoistórico específico, mesmo que nosso olhar oscile entre um lado e outro da fronteira-Sul, e muitas vezes se pegue mirando por cima dela, tentando alcançar a luz oscilante do crepúsculo, ou o último céu dos pássaros do poeta, é em busca e a partir de uma epistemologia de natureza fronteriza que ancoro toda minha leitura. Passei toda minha infância entre o campo e a cidade. Entre esse ir e vir do atravessamento da fronteira, que reúne na dispersão, ouvia histórias locais que povoariam minha memória para sempre. Entreveros e mais entreveros em torno da disputa por terras tinham seu desfecho fatal do outro lado sombrio da fronteira. Histórias de forasteiros e foragidos, que, a seu modo, lembravam as histórias de Martin Fierro e Silvino Jacques, atravessavam a fronteira para o lado de cá e, aqui chegando, tinham ou um desfecho trágico, ou caíam no deboche dos sertanejos, vaqueiros, pantaneiros que, a seu modo, tornavam as histórias migrantes intermináveis como as histórias das 134

mil e uma noites. Taperas abandonadas, por conta de disputas por terras ou meras perseguições de famílias valentes, eram da noite para o dia invadidas por foragidos da lei, que chegavam quase sempre na calada da noite, ou invasores de toda espécie. Carretas de boi eram abandonadas nas sedes das fazendas, ou no meio do campo mesmo, metaforizando uma história familiar em ruínas, cheiro de abandono e morte. A tradição e a sua carcaça de lei. Era comum avistar um homem vindo de longe pela beirada das estradas de bicicleta. Com certeza era um paraguaio trazendo nas costas a sua maior arma, a viola. Mais tarde fui encontrar a reprodução daquela imagem tão familiar retratada no conto Sanga Puytã, de Rosa. Aliás, o lugarejo denominado de Sanga Puytã, e que por ali passara um dia um dos maiores escritores da alma brasileira, era o lugar por onde eu passei por toda minha infância e que me dava acesso ao estrangeiro. Para o homem da fronteira, o estranho é sempre o que há de mais familiar, o outro lado. Também as cruzes fincadas nas beiras das estradas, os campos santos abandonados no meio das plantações dos latifundiários do lugar, se, por um lado, faziam com que o corpo sobrevivesse à própria morte, por outro, encarregavam-se de lembrar que há histórias e mais histórias que podem ser exumadas no presente. Memórias exumadas poderia ser outro título para este trabalho. Essas paisagens do lugar por mim vividas, e que, de alguma forma, hospedaram-me e foram hospedadas por mim enquanto sujeito do lugar, sinalizam traços de memórias esquecidas da zona de fronteira que demandam uma exumação delas por meio de uma perspectiva crítica subalterna ancorada nos postulados de uma abordagem pós-ocidental (Mignolo). Tais paisagens fronterizas são relevantes em minha discussão porque quero entender que elas, a seu modo, lembram histórias locais e memórias locais subalternas que caíram no esquecimento por conta ou de memórias estatais ou de memórias itinerantes vindas dos grandes centros, ou até devido a importação de teorias e críticas sobre memória que quase sempre, para não dizer sempre, não levou em consideração as especificidades geoistóricas e geopolíticas das memórias subalternas. Aliás, não é demais lembrar que lugares fronterizos também produzem memórias 135

outras e cuja epistemologia fronteriza para compreendê-las advém de seu próprio lócus ex-cêntrico. Avançando minha discussão, reconheço que memórias cristalizadas nos centros hegemônicos do saber migraram para o Sul, por meio das repetições acríticas dos discursos acadêmico e disciplinar, encobrindo as histórias e memórias dos lugares periféricos. Essas memórias, além de não trazerem a marca da condição de fronteira inscrita em seus corpos, chegando na fronteira não fizeram outra coisa senão tomar as histórias e memórias periféricas como meros objetos, ao invés de tomá-las como produtoras de saber e de histórias vividas. Ao agirem assim, essas memórias vindas dos centros hospedaram-se em casa alheia, fazendo dela sua casa, e, ao ignorarem as histórias (memórias) das memórias anfitriãs, acabaram tão somente por reforçar sua própria memória totalizante e sumariamente excludente. Na fronteira pode haver hospitalidade forçada, mas não há transculturação memorialística de mão única. A fronteira-Sul, enquanto um arquivo vivo e aberto, vela paisagens subalternas e biográficas do lugar, como as mencionadas acima, que precisam ser exumadas pela crítica biográfica pós-colonial latina. Todavia, tais símbolos resultantes na paisagem subalterna não devem ser tomados como “imagens nacionais espectrais”127 de uma cultura moderna do nacionalismo, como a estudada por Anderson em Comunidades imaginadas. Imagens espectrais, sim, mas antes de serem representantes do coro dos contentes do nacionalismo e do moderno, esses símbolos paisagísticos do lugar de fronteira devem compor o quadro das sensibilidades e das biografias do lugar de onde se encontram. Anderson em parte tem razão quando afirma que uma nação é limitada quando, por mais que agregue um bilhão de habitantes, “possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais existem outras nações”. Não tem razão apenas quando, embasado na cultura do moderno (nacionalismo), deixa de fora de sua leitura que, assim como existem outras nações, também existem outras epistemologias críticas para lê-las. Se o “imaginário moderno” 127

ANDERSON. Comunidades imaginadas, p. 35.

136

se importava com “a morte e a imortalidade”, a ponto de o autor de Comunidades imaginadas propor “uma avaliação das raízes culturais do nacionalismo pela morte”128, o imaginário das paisagens subalternas volta-se para uma “anamnese autobiográfica” (Derrida) dos lugares e dos símbolos desses lugares, com suas sensibilidades biográficas e memórias geoistóricas. Restam dos símbolos e das memórias subalternas apenas “belas impressões” como “memórias da morte” (Derrida) por vir. Enquanto o imaginário moderno mantinha estreita relação com o imaginário religioso, talvez como forma de preservar a ausência do morto como presença e, assim, cultuar as histórias e as memórias, o imaginário subalterno, por sua vez, trabalha no sentido, primeiro, de exumar as memórias menores soterradas e esquecidas em prol de uma grande memória nacional, para depois, num momento a posteriori, destruir toda e qualquer memória possível de ser arquivada (Derrida). As memórias subalternas sofrem de um mal de arquivo radical. Elas trabalham no sentido de apagar qualquer traço, qualquer símbolo, que teima em resistir ao tempo e representá-las ao outro. Voltando ao autor de Comunidades imaginadas mais uma vez, ao invés de pensar em “a biografia das nações”129, quero pensar em a biografia das memórias subalternas. Todas as histórias locais e todas as sensibilidades biográficas vividas pela consciência das memórias subalternas, se, por um lado, trabalham em prol de uma amnésia específica para sobreviverem às imposições de uma memória moderna impositiva, por outro lado, cultuam uma sobrevivência manifesta, mas reprimida em seu lócus geoistórico cultural específico que, a qualquer momento, faz irromper outras vidas, outras memórias, outras narrativas particulares. Com isso, estou dizendo que as narrativas não nascem apenas dos esquecimentos arquivados na consciência subalterna, como também das memórias outras enterradas vivas. Sempre-vivas, sempre-mortas, as memórias 128

ANDERSON. Comunidades imaginadas, p. 36.

129

ANDERSON. A biografia das nações, p. 278-280.

137

subalternas exumam sua sobrevida (Derrida). Apesar de não dependerem das memórias modernas, já que estas não as salvariam de sua condição, as memórias subalternas vivem em estado de infans permanente, até o momento em que uma perspectiva subalterna as reinsira na discussão histórica do presente por meio de uma epistemologia outra. É por isso que as histórias locais, bem como a identidade possível das memórias subalternas, só podem ser narradas/inventadas da perspectiva de uma epistemologia outra e nunca da epistemologia moderna. Por falar em identidade possível das memórias subalternas, não tem como não se reportar à discussão de Mignolo acerca da “identidade em política”, como oposição a “política de identidade”. Para ele, “as identidades construídas pelos discursos europeus modernos eram raciais (isto é, a matriz racial colonial) e patriarcais. [...] A identidade em política, em suma, é a única maneira de pensar descolonialmente (o que significa pensar politicamente em termos e projetos de descolonização). Todas as outras formas de pensar (ou seja, que interferem com a organização do conhecimento e da compreensão) e de agir politicamente, ou seja, formas que não são descoloniais, significam permanecer na razão imperial; ou seja, dentro da política imperial de identidades.”130 Mais do que servir para pensar a identidade das memórias subalternas, a afirmação do autor em torno da identidade em política serve para pensar descolonialmente as memórias subalternas, isto é, por fora de toda e qualquer visada colonial, imperial e moderna. Aliás, talvez não seja demais lembrar que as reminiscências, as impressões e as sensibilidades das memórias subalternas latinas não encontram sequer ressonância nas origens das memórias eurocêntricas. Em se tratando de memórias subalternas, quer me parecer, uma vez mais, que a opção descolonial proposta por Mignolo ajuda-nos a entender a condição colonial na qual se encontram tais memórias quando tomadas pela perspectiva da epistemologia moderna. Se a opção descolonial é de ordem epistêmica como forma de, assim, se desvincular “dos fundamentos genuínos dos conceitos ocidentais e 130

MIGNOLO. Desobediência epistêmica, p. 289-290.

138

da acumulação do conhecimento”131, entendo que as memórias subalternas afastam-se definitivamente do campo das memórias modernas por não exercitarem a prática epistemológica da acumulação de saberes histórico-memorialísticos. Nessa direção, também quero entender que, enquanto as memórias modernas ocidentais ficaram presas à acumulação, conservação e capitalização de memórias nacionais, como as grandes narrativas literárias modernas a la Proust (em busca de um tempo perdido, homogêneo e vazio), as memórias subalternas, por sua vez, voltaram-se para a geopolítica de um conhecimento outro, esmerando-se para aprender a desaprender as memórias coloniais que aportaram nos trópicos latinos. Logo, memórias subalternas, ou descoloniais, significam também um fazer descolonial que toma a memória como uma prática que se erige da vida, da condição, das línguas e das histórias dos sujeitos que se encontram numa exterioridade (da modernidade ocidental) latina. Com base ainda no que diz Mignolo, mas tomando como exemplo o lócus de onde penso, trabalho e escrevo, a memória descolonial sobrevive nas vidas, mentes e corpos dos indígenas da fronteira-Sul, dos brasiguaios, bolivianos, paraguaios, sul-matogrossenses da fronteira sem lei. De acordo com Mignolo, “as memórias gravadas em seus corpos por gerações e a marginalização sócio-política a qual foram sujeitos por instituições imperiais diretas [...] alimentaram uma mudança na geo-e na política de Estado de conhecimento.”132Nesse sentido a fronteira-Sul e o homem-fronteira, que nela sobrevive, anarquivizam histórias e memórias que ainda não foram abalizadas pelo saber proveniente dos discursos acadêmico e disciplinar. (Em sucinto parêntese, já que mencionei Proust, o grande escritor moderno, quero dizer que não é mera coincidência o fato de eu também ter revivido um pedaço de minha infância, passada na fronteira, por meio de uma experiência que a seu modo convocou o passado. Claro que o que ativaram minhas reminiscências, aqui nessa banda dos trópicos, não foram nem as madalenas, nem o chá 131

MIGNOLO. Desobediência epistêmica, p. 290.

132

MIGNOLO. Desobediência epistêmica, p. 291.

139

“inglês”. Trata-se da sopa paraguaia, um bolo típico da fronteira, e um chá da região feito a base de erva-mate e açúcar queimadas. Confesso que não busquei essa parte de meu passado. Mas, dia desses, estando eu envolto ao assunto da memória e do tempo, uma vez que a consciência de que “o tempo passa” e “as vezes a vida volta” ofusca os nossos desejos, de repente senti aquele cheiro e aquele gosto que me reportavam a um período específico de minha vida passada na casa de campo da fronteira-Sul. Aquela sensação de prazer, misturada à alegria, veio e passou. Quase sempre ela volta. Às vezes com mais intensidade, outras vezes com bem menos. Mas ela está guardada em mim, sei disso. Meu espírito guarda uma verdade que não é da ordem da razão. “Espírito é o que enfim resulta/ De corpo, alma, feitos: cantar”, na voz de Gal e letra de Caetano.) As memórias subalternas não nascem, nem morrem; elas sobrevivem. Daí elas se encontrarem numa condição de des-conhecimento permanente no presente futuro. É a tarja imperial, a campa moderna, que precisam ser retiradas de cima do corpo enterrado vivo para que as memórias sejam des-encobertas, revelando ao outro suas histórias locais esquecidas. Diferentemente do que postula o autor de Comunidades imaginadas, quando afirma que o que ocorre com as pessoas modernas ocorre também com as nações, apesar de haver uma diferença central entre as narrativas pessoais e as nacionais, especificamente porque enquanto para as pessoas a história tem um começo e um fim, para as narrativas nacionais não há uma data de nascimento, penso que, quando se trata de memórias e sujeitos subalternos, as histórias locais e as narrativas, além de terem um começo dentro do sistema colonial moderno, suplementam-se por meio das sensibilidades dos locais geoistóricos e das especificidades culturais dos sujeitos envolvidos na condição de subalternidade. A origem das memórias subalternas latinas remonta ao século XVI. Resgatá-las, atribuir a elas um sentido e puxar o fio desvelador de suas histórias locais é correlato a desbaratar o discurso hegemônico e castrador do sistema colonial moderno que imperou no ocidente e fora dele.

140

Para exumar as memórias subalternas é preciso abrir o arquivo do período colonial moderno. Daí a importância de voltar ao começo. Na verdade, começos, pois se a origem das memórias subalternas dáse com a estruturação do sistema colonial moderno, a palavra arquivo, por sua vez, traz desde sua origem grega (“Arkhê”) a ideia de começo. Segundo Derrida, em Mal de arquivo, a palavra arquivo designa ao mesmo tempo o começo e o comando, ali onde as coisas começam (Derrida). Se, por um lado, a memória colonial comandava as demais memórias, vindo, inclusive, a hospedar-se em casa-arquivo das anfitriãs com o único objetivo de angariar mais poder em torno de sua história moderna da memória, consignando (in-corpo-rando) aparentemente as memórias e histórias subalternas em um grande e único corpus, por outro, as memórias subalternas, enquanto sofredoras de um mal de arquivo e de falta de memória radical, propuseram-se à tarefa de destruir toda e qualquer ideia de arquivo. Se o arquivo não está para a memória nem para a anamnese, como postula Derrida, então se pode perguntar se o arquivo das memórias subalternas “tem lugar em lugar da falta originária e estrutural da chamada memória”? Também me parece que não, já que as memórias subalternas sobrevivem dentro de um arquivo também ignorado pelas memórias vindas de fora. As memórias vindas dos grandes centros, do ocidente, modernas por excelência, consignam e amalgamam as memórias menores em seu arquivo, exercendo, assim, compulsão à repetição por meio de sua pulsão de morte que não faz outra coisa senão destruir as memórias anfitriãs. Destruir aqui é correlato a um arquivamento sem precedente na história do ocidente, uma vez que tal arquivamento leva a um esquecimento letal das memórias subalternas. Uma epistemologia moderna, como a encontrada na leitura que sustenta a discussão proposta por Derrida em Mal de arquivo, assentada na história grega, simplesmente não atinge o arquivo que contempla as memórias latinas. Apenas uma epistemologia outra, que aprendeu a escutar o balbucio das memórias enterradas vivas e das histórias locais, por se erigir também de uma zona de fronteira, pode abrir o arquivo das memórias mal contadas pelo outro. Se as memórias subalternas, por um lado, não sofrem da falta de arquivo, sofrem, por outro, do mal

141

de arquivo radical. Mais do que saber disso, compete ao estudioso dessas pós-memórias subalternas visar abrir o arquivo oprimido para que tais memórias saiam de seu letárgico esquecimento e ocupem seu lugar de direito na cultura do presente. Em situação tão desconfortável quanto ao arquivo que sofre de seu próprio mal, sobra ao intelectual tomado pelo mal (antes apenas historiador) “procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde, mesmo se há bastante, alguma coisa nele se anarquiva. É dirigir-se a ele com um desejo compulsivo, repetitivo e nostálgico, um desejo irreprimível de retorno à origem, uma dor da pátria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno ao lugar mais arcaico do começo absoluto.”133 Dentro do arquivo das histórias oprimidas da fronteira, anarquivaram-se memórias subalternas dos indígenas, brasiguaios, andariegos, paraguaios e bolivianos, impressões de vida desses sujeitos da fronteira e suas sensibilidades biográficas. As memórias e as histórias desses sujeitos subalternos da fronteira com certeza não começaram com a abertura do arkheîon grego, mas sem dúvida começaram com aquelas histórias e memórias locais (latinas) que foram sequestradas pelas histórias/memórias que sustentaram todo o sistema colonial moderno, pelo menos desde o século XVI. Afinal, se, como queria Said, “todas as famílias inventam seus pais e filhos, dão a cada um deles uma história, um caráter, um destino e até mesmo uma linguagem”134, então posso concluir que todas as famílias, todos os povos, todos os lugares, todas as fronteiras, inventam suas memórias de vida, suas memórias de morte, suas memórias de sobrevida. As memórias da fronteira sobrevivem à sua própria condição. De seus restos, constroem um sentido possível para o que estou chamando de fronteira e de memórias e histórias subalternas.

133

DERRIDA. Mal de arquivo, p. 118.

134

SAID. Fora do lugar, p. 19.

142

1 – A memória da fronteira Quando o crepúsculo derramou sua cor envermelhada por sobre a fronteira-Sul, anunciando a chegada da escuridão profunda da noite atravessada por suas histórias e memórias locais construídas na borda do instável, houve um entrevero embaçado pela poeira do lugar que resultou em um facão e um violão depostos em cruz no meio do caminho que se bifurcava, além de um filete de sangue que escorria por fora dos limites do dentro e do fora.

“A Memória de Shakespeare” representa a tradição eurocêntrica herdada pela América Latina e, por conseguinte, autentica a visada colonial que imperou nos trópicos. Como todo leitor da América Latina e do mundo do século XX, fui leitor contumaz de Jorge Luis Borges. Talvez tenha sido também devido a essa recepção não menos herdada que agora me volto para um aprender a desaprender (Mignolo) dessa tradição moderna colonial latina, tendo por ilustração da discussão o referido conto borgesiano. O fazer descolonial em torno de uma memória outra se justifica quando se percebe que a memória colonial hospedada no Sul simplesmente não contempla as memórias outras, como as ameríndias ou da fronteira, que continuam “arquivadas” nas mentes dos sujeitos subalternos. A memória subalterna, assim como as histórias locais da fronteira-Sul, precisam ser tomadas, cada vez mais, como uma “produção do conhecimento teórico”, crítico e epistemológico. Como nasci na fronteira, logo nasci entre línguas (na família se ouvia falar em guarani com a mesma naturalidade com que o português.). Todo o conhecimento e, por conseguinte, meu arquivo memorial vêm do fato histórico de eu ter/estar nascido numa condição/língua de fronteira. Minha língua, como minha memória de fronteira, é diversa. Essa era a memória que tenho guardada quando lembro, por exemplo, dos rodeios acontecidos na sede de meu avô que, não por acaso, fora casado com uma figura de Corrientes. Entre segredos e cochichos familiares, eles se falavam em guarani. Shakespeare não foi meu destino. Antes, foram os Contos crioulos de Hélio Serejo, Sarobá

143

e Areôtorare de Lobivar Matos e Décima gaucha do bandoleiro Silvino Jacques, além de Lendas Indígenas como as do Urutau e da Mani. Têm Histórias acerca da Guerra do Paraguai, causos narrados em portunhol e em guarani. Também não posso negar os clássicos como os contos policiais de Borges e a História de Martín Fierro. A diferença é que aquelas obras antes mencionadas jamais fizeram parte de qualquer cânone, ou melhor, sequer foram lidas dentro da Academia. (Todas aquelas obras que eram declinadas no grego e no latim eram exaustivamente cobradas, enquanto as voltadas para as culturas inca, maia e asteca foram sumariamente ignoradas. Fomos ilustrados sem conhecer o que sequer estava do outro lado da fronteira de nós mesmos.) Cheguei a elas só-depois também de a “Memória de Shakespeare” ter povoado minha consciência. Na América Latina, a “Memória de Shakespeare” não foi oferecida a nenhum latino; antes foi imposta pela missão civilizadora do colonizador. Os bárbaros herdaram a Memória alheia e não tiveram escolha senão torná-la própria, como forma de alcançar algum degrau no domínio do conhecimento ocidental. Diferentemente do que se lê no conto, a “Memória de Shakespeare” não encobre nenhuma metáfora: ela é a imposição total e absoluta de tudo que regeu o sistema colonial moderno no ocidente e fora dele, com relação à memória de fronteira. Se Daniel Thorpe, aquele que tinha herdado a “Memória de Shakespeare”, tem, pelo menos no início, duas memórias, a sua e a do Shakespeare que parcialmente era, ou melhor, se duas memórias o possuíam, mesmo havendo uma zona em que elas se confundiam, o mesmo dá-se completamente diferente quando nos voltamos para o modo como a memória da tradição hospeda-se na fronteira. Neste caso, a memória anfitriã serve apenas para reforçar a universalidade da memória da tradição, uma vez que esta memória não põe em prática nem a hospitalidade nem a convivialidade (Mignolo). Sua viagem em direção aos trópicos não gera transculturação nem na memória itinerante, nem na memória que a recebe, uma vez que o que ocorre com tal gesto é a abertura de um arquivo ancestralmente aberto para a exterioridade, como forma de simplesmente ignorar as memórias subalternas e suas respectivas histórias locais. Somente 144

quando se predispõe a olhar as memórias subalternas de seu próprio lócus geoistórico é que conceitos como os de hospitalidade e de transculturação, por exemplo, começam a fazer sentido dentro de uma perspectiva descolonializante.135 Fronteira, nesse contexto, é a própria epistemologia, enquanto a opção descolonial é o fazer crítico capaz de barrar a visada moderna das memórias vindas de longe. Diferentemente também do que ocorre na mente do herdeiro da “Memória de Shakespeare”, em que há uma zona onde as memórias se confundem, o que separa, ou melhor, afasta historicamente a memória da fronteira da memória da tradição moderna é que aquela, além de sobreviver a partir de seu lócus geoistórico e cultural, traz, desde sua gênese, a diferença colonial inscrita para sempre em seu corpo-arquivo. O inglês Daniel Torpe, antes de passar a “Memória de Shakespeare” para o narrador do conto, logo enquanto possuidor dela, tinha escrito uma “biografia romanceada que mereceu o destaque da crítica e algum sucesso comercial nos Estados Unidos e nas colônias”. O sucesso mercadológico da biografia romanceada é fácil de ser compreendido: nos Estados Unidos, a língua inglesa não seria um problema, muito pelo contrário. Duas línguas hegemônicas e quase iguais se completam na cultura mercadológica e colonial. Já com relação às colônias, deve-se o reconhecimento do sucesso, talvez menos por conta das línguas que, com certeza, as colônias, por serem colônias, repetem a língua do colonizador, do que pelo fato de as colônias estarem condenadas a receber passivamente as produções culturais dos centros hegemônicos. Quero pensar aqui a colônia América Latina, para dizer o seguinte: enquanto a América Latina foi sendo preparada para receber e ler a biografia romanceada de Shakespeare, pensada em língua imperial, e, por extensão, do intelectual dos centros desenvolvidos como o especialista em Shakespeare Torpe, uma biografia romanceada da Tradição, a América Latina, por sua vez, não teve tempo nem preparo para produzir sua própria biografia. Talvez o gênero “biografia 135

Ver meu texto “A razão pós-subalterna da crítica latina”.

145

romanceada” seja o gênero certo para a América Latina escrever a sua própria biografia, que ainda se encontra faltante na biblioteca latina, mas desde que se volte para as suas memórias subalternas e rechace as memórias alheias que se acostumaram a hospedar nos trópicos, achando que ditariam as regras de um bom modelo memorialístico para todo o sempre. As memórias subalternas, como as ameríndias que já se encontravam por aqui, barram o costume tradicional das memórias hospedeiras encobrirem as memórias subalternas por acharem que elas, assim, teriam alguma sobrevivência à luz da memória da tradição. Não bastaram cem anos de solidão, nem muito tempo na escuridão do esquecimento, para que as memórias subalternas emergissem com luz própria, isto é, com uma epistemologia outra específica capaz de dar conta de suas especificidades voltadas para a lembrança e o esquecimento, as histórias locais e as fronteiras que, por estarem abertas para dentro e para fora ao mesmo tempo, trataram de fazer o sentido inverso quando o assunto é memórias latinas. As produções culturais latinas não fizeram outra coisa senão escrever a biografia romanceada da América Latina, como se pode ver com o próprio Borges e seu conto magistral “A memória de Shakespeare”. O problema que se constata é que, se, no plano da produção cultural, tal ajuste foi feito a contento, o mesmo demora um pouco mais para ser percebido pela crítica latina. Esta tem boa intenção e bastante esforço, mas demora muito para se desvencilhar de um modelo teórico-crítico sobre a Memória. As memórias itinerantes ainda têm poder de decisão quando se trata de exumar memórias latinas que ficaram enterradas na escuridão atribuída ao mundo bárbaro e selvagem pelo olhar imperial de fora. Talvez seja a hora de eu mesmo reconhecer e confessar que estou escrevendo a minha própria biografia romanceada. “Aceito a memória de Shakespeare”, disse o narrador alemão do conto, para pressentir em seguida que “a memória já entrou em sua consciência, mas é preciso descobri-la. Surgirá nos sonhos, na vigília, ao virar as folhas de um livro ou ao dobrar uma esquina. O senhor não se impaciente, não invente lembranças. O acaso pode favorecê-lo ou atrasá-lo, segundo seu misterioso modo. À medida que eu vá esquecendo, o senhor 146

recordará”. Em protesto, eu não aceito a memória de Shakespeare, apesar de reconhecer que ela se infiltrou nas memórias latinas há muitos anos, pelo menos desde o século 19. Mas, apesar dessa constatação, mesmo muito antes, mais precisamente desde o século 16, as memórias latinas não mantiveram sua consciência subalterna invadida pela memória da tradição. E é exatamente por isso que elas são latinas, por terem uma consciência de base subalterna. A consciência de uma história outra dá às memórias latinas a oportunidade de se refundirem dentro da história global que grassa no mundo e, por conseguinte, a articulação de uma epistemologia específica para pensá-las desde dentro. A recepção latina, da qual faço parte, talvez por estar viciada ao que é da memória da tradição moderna, quer seja no estado de sonho ou de vigília, hospeda a memória alheia em sua condição, até mesmo quando vira as folhas de um livro como o de Borges que contém o conto “A memória de Borges”. A presença da memória da tradição é tão forte que, mais do que se deparar com ela ao dobrar uma esquina qualquer, mesmo quando se atravessa a fronteira-sul tem-se a sensação de que a memória do bardo inglês chegou até ali, nesse lugar inexistente no mapa da memória brilhante da tradição ocidental. Nesse caso em particular, a literatura latino-americana é a única culpada. Para o bem ou para o mal, ela não fez outra coisa senão hospedar e nos fazer buscar/lembrar o tempo perdido de uma memória que não fazia sentido algum nos trópicos. A literatura latina propiciou que se recordasse infinitamente a memória do centro na periferia, não deixando que se trabalhasse nos trópicos o exercício do esquecimento. Em contrapartida, as histórias latinas e suas respectivas memórias subalternas, como as ameríndias, se predispuseram a sofrer de um mal de arquivo radical, propiciando, assim, que suas memórias enterradas vivas ressurgissem dentro de um futuro presente que se desenha no século 21. Ainda tendo por base a consciência subalterna, quero advertir, na esteira da reflexão descolonial proposta por Mignolo, que as memórias subalternas latinas não podem ser construídas das ruínas e memórias da civilização ocidental moderna. Lembra-nos o crítico que uma civilização que comemora e preza a vida “dificilmente pode ser 147

construída a partir das ruínas da civilização ocidental”. Nesse tocante, aliás, lembro, por extensão, que muito menos a crítica moderna assentada na reflexão eurocêntrica ou norte-americana daria conta de encampar as discussões específicas propostas pelas memórias subalternas latinas. A crítica moderna, detentora de uma memória universal e homogenia, se, por um lado, pôs em prática sua estratégia cheia de boa promessa e intenção, reforçando, assim, seu caráter messiânico e até salvífico, por outro lado e ao mesmo tempo, ao levar às últimas consequências o exercício da “diferença” (Derrida) nos trópicos latinos, reforçou um binarismo às avessas não privilegiando, por conseguinte, as relações diferenciais, inclusive da ordem do discurso. Ilustra minha discussão, quando se percebe que a exaltação da cópia, em detrimento ao modelo nos trópicos, veio apenas para reforçar uma diferença da ordem do moderno que se sobrepunha nas discussões críticas acerca do próprio e do alheio, do desenvolvido e do subdesenvolvido, do modelo e da cópia. Mais uma vez, tinha-se aí a diferença da cópia latina alcançada por meio da prática da repetição que sempre imperou nos trópicos. Repetição crítica assentada na diferença diferida; logo bem feita demais, mas que, se, por um lado, levou a exaustão a prática da absorção e da transformação pela crítica brasileira (e latina), por outro lado, reforçava uma exclusão dos povos ameríndios, das histórias locais e das memórias subalternas que não eram contemplados pelos modelos itinerantes dos modos de pensar vindos dos grandes centros civilizados do mundo ocidental. Ainda na direção da civilização que comemora e preza a vida e suas histórias e memórias subalternas, lembra-nos Mignolo que a opção descolonial concede à concepção da reprodução da vida que vem de damnés (Fanon), de Os condenados da terra, cujas vidas dos sujeitos subalternos foram declaradas dispensáveis, cuja dignidade foi humilhada, cujos corpos foram usados como força de trabalho. Adverte-nos Mignolo que “reprodução de vida aqui é um conceito que emerge dos afros escravizados e dos indígenas na formação de uma economia capitalista, e que se estende à reprodução da morte através da expansão imperial do ocidente e do crescimento da economia capitalista” (MIGNOLO). Tal passagem é digna de um 148

retrato da atual condição na qual se encontra o povo indígena no estado de Mato Grosso do Sul e sua luta histórica pela terra. O caso que acontece na fazenda Buriti, em Sidrolândia, mais uma vez vem ilustrar e exumar a história de um povo subalterno que, infelizmente, não tem memória devido ao apagamento radical que seu arquivo sofre por parte do abuso de poder que tal sujeito subalterno está condenado a padecer na região de fronteira-sul. Reprodução de vida e reprodução de morte aqui travam uma batalha pela sobrevivência e pelo direito à posse da terra. Na verdade, o que fica cada vez mais evidente é que não se pode nem falar em história indígena, posto que a construção de sua história e, por extensão, sua constituição identitária, passam pela posse da terra. O índio Elvis Terrena, acampado no campus da UFMS (6/6/2013), juntamente com cerca de 500 participantes da marcha de indígenas, trabalhadores rurais sem terra e quilombolas, disse ao repórter Luciano Nascimento da Agência Brasil: “viemos aqui para gritar o nome de Oziel que foi morto por culpa da demora na demarcação das terras indígenas. Aquela terra tem uma história. Ela é dos nossos antepassados e foi reconhecida pela FUNAI, só falta o governo homologar [isso”]. De acordo com ele ainda, “em todo o estado, 298 índios foram mortos, nos últimos anos em razão dos conflitos pela posse da terra” (Agência Brasil, 6/6/2013).136 Essa discussão crítica de perspectiva descolonial, acerca de uma questão que acontece ao meu lado, alimenta a ideia e o imaginário crítico de um mundo no qual muitos outros mundos podem co-existir, como quer Mignolo. Parece não haver dúvida que a saída epistemológica para a nossa crítica de fronteira é a desobediência epistêmica, inclusive como forma de 136

“Os manifestantes aguardam [acampados na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul] o resultado da reunião de representantes dos índios terenas com os ministros da Justiça, José Eduardo Cardozo e da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho sobre a situação das terras indígenas em Sidrolândia (MS), onde ocorreu o conflito que resultou na morte do índio Oziel Gabriel e onde, na última terça-feira (4), o índio Josiel Gabriel Alves foi baleado durante tentativa de ocupação de uma fazenda da região.” (Luciano Nascimento, repórter de Agência Brasil, 6/6/2013)

149

endossar o coro dos sujeitos (indígenas) condenados em sua própria casa, cuja saída parece ser a de lutar e pagar com a própria vida, e que acabam por nos ensinar a “aprender a desaprender” o estranho que habita o que há de mais familiar. A reprodução da vida de que fala Mignolo vem das longas memórias ameríndias, incluindo os povos maia, asteca e inca. Advém daí a força pela sobrevivência imposta pela nação indígena, acompanhada por todas as mudanças, inclusive na política, ocorridas na América Latina. É na re-articulação que a nação indígena, por exemplo, impõe que, nos dias atuais, sobretudo com relação ao discurso acadêmico moderno, uma epistemologia outra se faça presente como condição sine qua non para dar conta de contemplar tais mudanças de ordem social e política. É nesse sentido que a opção descolonial, proposta pelo crítico, “revela a identidade escondida sob a pretensão de teorias democráticas universais ao mesmo tempo que constrói identidades racializadas que foram erigidas pela hegemonia das categorias de pensamento, histórias e experiências do ocidente (mais uma vez, fundamentos gregos e latinos de razão moderna/imperial)” (MIGNOLO, 2007, p. 297). Teorias e críticas universais velam uma memória tutora na periferia que não faz outra coisa senão encobrir as memórias subalternas que gravitam em torno do discurso crítico moderno e hegemônico preponderante nos trópicos, sendo este reforçado constantemente por conta de uma epistemologia migrada dos grandes centros do país e do mundo. Entendo que somente por meio de uma epistemologia latina, que valoriza a reprodução da vida, autenticada por meio da consciência subalterna do sujeito, sua experiência e suas sensibilidades biográficas, é possível a rearticulação de uma discussão crítica que passe por fora dos postulados teóricos “memorialísticos” universais do ocidente, que não fez outra coisa senão armazenar um discurso e um saber hegemônicos considerados bons para o resto do mundo. Nesse tocante, não é demais lembrar que as Academias da periferia exerceram o papel, grosso modo, de um arquivo tutor responsável em consignar, armazenar e repassar a memória do saber migrada para a periferia com o único objetivo de ser autenticada e lembrada para sempre dentro da história do 150

ocidente a custo do apagamento total e letal das memórias anfitriãs dos lugares periféricos. Questões acerca das memórias subalternas, sejam elas ameríndias ou não, só fazem sentido quando pensadas da perspectiva da opção descolonial, conforme a entende Mignolo. Já passou da hora de dar um basta ao discurso crítico atual que ainda pensa estar fazendo justiça ao sujeito subalterno quando traz sua discussão ainda assentada nos postulados estruturalistas, ou mesmo pós-estruturalistas franceses, que, grosso modo, não fizeram outra coisa senão olhar para o seu próprio umbigo. O problema aí reside porque tal crítica não pensou a partir da exterioridade; muito pelo contrário, pensou da interioridade para a interioridade, resultando, por conseguinte, num discurso da ordem do discurso, da história, da filosofia e da teoria literária que reforçou uma colonização discursiva, teórica e crítica como um modelo de análise do objeto subalterno. É essa memória do saber moderno, reforçada ainda pelo discurso literário, com bem ilustra o conto “A memória de Shakespeare”, que deve ser rechaçada pelo pensamento descolonial que emerge dos lugares ex-cêntricos. Ainda na esteira da reflexão descolonial praticada pelo crítico argentino, entendo que o discurso hegemônico hospedado nos trópicos construiu uma exterioridade “discursiva”, mas tão somente para reforçar e assegurar sua interioridade. Talvez seja hora de dizer que enquanto se puser em prática a velha prática teórico-discursiva de se tomar o “outro” como objeto se estará tão somente repetindo a lição hegemônica e castradora que serviu tão bem para os centros eurocêntricos e norte-americanos do saber se autenticarem como a cabeça pensante (Norte). Ilustrada a discussão que vinha fazendo com uma questão ameríndia que simplesmente não foi contemplada pela memória da tradição moderna nos trópicos latinos, volto ao conto “A memória de Shakespeare”. Continua o narrador do conto e herdeiro inconteste da memória alheia a pontuar o valor, ou valores, da referida memória, bem como sua alegria e satisfação por tê-la herdada: “De Quincey afirma que o cérebro do homem é um palimpsesto. Cada nova escrita encobre a escrita anterior e é encoberta pela seguinte, mas a todopoderosa memória pode exumar qualquer impressão, por mais momentânea que tenha sido, se lhe derem o suficiente estímulo”. 151

Antes de qualquer coisa, quero reiterar que não me espanta o modo como o narrador alemão recebe e absorve a memória eurocêntrica; nem mesmo quando se trata de um escritor cosmopolita como Borges, apesar de ser latino. Por outro lado, quando nos voltamos para uma leitura crítica que privilegia a fundação de uma memória subalterna latina, cuja fundação passa por sua interioridade histórica e cultural, vejo esboçar-se aí toda a diferença no diálogo entre a memória moderna da tradição (Shakespeare) e a memórias dos lugares periféricos, como a América Latina. Quero concordar com o escritor inglês helenista, de que o cérebro humano é um palimpsesto e de que logo toda memória (e escrita) encobre a anterior e é encoberta pela seguinte. Mas quero entender também que tal processo não é tão simples, como se poderia pensar. A prática de fazer encobrir, numa visada freudiana, pode significar tentar fazer desaparecer da consciência algo insuportável e doloroso que está na origem do sintoma (da realização de um desejo). Pensando nos lugares periféricos, entendo que, por conta da colonização imperial do pensamento moderno, as memórias subalternas foram encobertas pelas modernas, isto é, não tiveram representação na cultura. E apesar de tal prática ter sido levada a exaustão pela crítica moderna, vê-se, num crescendo, que tais memórias subalternas resistiram a esse apagamento moderno contínuo que não fez outra coisa senão raspar os “restos” encontrados na cultura periférica como forma de autenticar-se enquanto moderno e ocidental. Se toda anedota (como parece ter afirmado Freud), no fundo, encobre uma verdade, então podemos constatar hoje que a anedota do pensamento moderno ocidental de apagar modernamente as demais memórias ex-cêntricas tornou-se a própria anedota, já que estas memórias ressurgem por meio de uma prática pós-ocidental e reescrevem sua própria história/memória. Ilustra a discussão que proponho uma passagem da socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui (1993): “A restauração da ordem cósmica (que é rejeitada na perspectiva de uma concepção progressista do tempo histórico, exceto quando tomada como ‘voltar atrás a roda do tempo’) poderia ser compreendida através do conceito de nayrapacha. Nayrapacha significa passado, mas não qualquer visão do passado. Significa

152

especificamente ‘passado-como-futuro’, isto é, uma renovação do tempo-passado. Um passado especial que poderia mudar ou renovar o futuro, que poderia reverter a situação vivida. Não é essa a concepção e aspiração atualmente partilhada por muitos movimentos sociais indígenas em todo o mundo, que estão teorizando a importância da cultura de seus antepassados para e no mundo moderno?... Walter Benjamin, confrontando a realidade catastrófica do nazismo escreveu: ‘Nem mesmo os mortos estarão protegidos do inimigo se o inimigo vencer.’ Essa concepção de história, uma história escondida, mas que sobrevive nas fissuras do mundo ocidental, poderia iluminar também o entendimento de pacha. Assim seria possível atravessar a brecha linguística que continua a confundir a ação histórica e a interpretação das rebeliões indígenas, no passado como no presente” (Apud MIGNOLO, 2003, p. 240). O estudo crítico das memórias outras, da perspectiva da subalternidade, permite reverter a situação vivida dos sujeitos subalternos e, por conseguinte, seu lugar dentro da discussão crítica contemporânea. Permite, por conseguinte, teorizar a importância da cultura, das memórias e das sensibilidades dos sujeitos subalternos para e no mundo moderno, revertendo, inclusive, seu posicionamento dentro desse projeto. Quero entender a todopoderosa memória capaz de exumar qualquer impressão, desde que lhe deem o suficiente estímulo, como toda e qualquer memória que tenha uma história e um sujeito antepassados, e não apenas aquela memória da tradição proposta por Borges. Nessa concepção não há memória vencedora, mas memórias que sobreviveram como as subalternas dentro das fissuras e do esquecimento da memória/história ocidental, preservando, assim, sua história escondida, silenciada, enterrada viva, mas não apagada. Nesse sentido, as memórias subalternas aprenderam a desaprender, ou seja, aprenderam a desencobrir o encoberto pela memória da tradição. Mais uma vez, vale a pena repetir: Shakespeare não foi seu destino. Os povos ameríndios da fronteira-latina não foram protegidos das análises dos discursos críticos que, ao pensarem que os entendiam em sua história assentada noutra concepção de passado, antes os arrolaram num discurso crítico moderno

153

(eurocêntrico, estruturalista e pós-estruturalista por excelência) de uma perspectiva temporal ocidental e histórica que simplesmente enterrou viva a concepção de história, de discurso e de memória desse sujeito ameríndio que ainda sobrevive, em estado agônico perene, às margens do discurso castrador e hegemônico que se sobrepôs nos lugares latinos por meio da repetição acrítica que grassou nos discursos acadêmico e disciplinar nos trópicos latinos. Como vimos na passagem anterior do conto de Borges, basta que lhe dê o “suficiente estímulo” para que a todo-poderosa memória possa exumar qualquer impressão. O que quero mostrar, com a sequência da passagem, é que de onde advém tal suficiente estímulo, para a memória moderna de Shakespeare, pode não ser do mesmo lugar quando se trata de memória subalterna. Mas vejamos a passagem: “A julgar por seu testamento [de Shakespeare], não havia um único livro, nem sequer a Bíblia, na casa de Shakespeare, mas ninguém ignora as obras que frequentou. Chaucer, Gower, Spenser, Christopher Marlowe, a Crônica de Holinshed, o Montaigne de Florio, o Plutarco do North. Eu possuía de maneira latente a memória de Shakespeare; a leitura, quer dizer, a releitura desses velhos volumes seria o estímulo que procurava” (p. 448), afirma o narrador e herdeiro da memória alheia. Foi essa tradição literária e memorialística que se cristalizou no pensamento cultural da América Latina, sem sombra de dúvida reforçada por obras modernas latinas, como a do velho escritor argentino, que não fizeram outra coisa senão reler e reescrever aquelas obras aqui nos trópicos. Todavia não podemos dizer que a memória subalterna latina demanda do mesmo “estímulo” para ser exumada em seu lócus geoistórico cultural. O estímulo dessa, com certeza, passa mais pelas histórias locais ameríndias, fronterizas, somadas às memórias dos povos inca, maia e asteca. Se há tal aproximação entre tais memórias, penso que a memória subalterna possui de maneira latente, isto é, política, a memória de Shakespeare, ao mesmo tempo em que tem uma consciência manifesta (cultural) de sua condição de subalternizada. Nesse jogo, interessa mais a história manifesta narrada pelo sujeito subalterno, já que sua história latente encontra-se minada pela presença fantasmática da memória do colonizador. Ocorre aqui uma 154

inversão de valores e de poderes entre sujeitos: a verdadeira memória, bem como a verdadeira história, incluindo aí seu discurso, só podem ser vividos (narrados) pelo sujeito subalterno, uma vez que no plano da história latente a história desse sujeito já foi bem contada até demais, tornando-se, por conseguinte, uma verdade absoluta no pensamento ocidental. Na sequência, volto a reler o conto “A memória de Shakespeare”: “A ninguém é dado abarcar em um único instante a plenitude de seu passado. Nem a Shakespeare, que eu saiba, nem a mim, que fui seu parcial herdeiro, ofereceram esse dom. A memória do homem não é uma soma; é uma desordem de possibilidades indefinidas. (...) Tal como a nossa, a memória de Shakespeare incluía zonas, grandes zonas de sombra repelidas voluntariamente por ele. Não sem algum escândalo lembrei que Bem Jonson fazia-lhe recitar hexâmetros latinos e gregos e que o ouvido, o incomparável ouvido de Shakespeare, costumava errar uma quantidade deles, em meio às risadas dos colegas.” (p. 449) Fica-me bem claro, na passagem, que o narrador borgesiano está pensando em um passado comulativo ocidental moderno por meio do qual o sujeito-narrador acredita poder abarcar toda sua história e memória pregressas. Se nem ao narrador da tradição moderna, como o postulado por Borges, é dado tal poder de totalidade, quando se trata de uma memória de caráter totalizante, o que se esperar desse sujeito e, por extensão, dessa memória, quando lembramos que muitas outras memórias subalternas ficaram de fora desse arquivo moderno? Nem a memória subalterna é uma soma aleatória; fazem parte de sua desordem única suas sensibilidades biográficas e locais, suas zonas obscuras e sombrias, que foram obscurecidas pelo clarão luminoso das memórias vindas dos centros, ou melhor, suas zonas fronterizas que foram sumariamente esquecidas pelas memórias modernas, por entenderem que assim elas melhor autenticavam sua presença na cultura das memórias anfitriãs. Se no projeto moderno as memórias subalternas herdaram a prática de repetir nos trópicos uma memória declinada nos moldes gregos e latinos, por outro lado e ao mesmo tempo, sua condição de periférica fez com que esta memória treinasse o ouvido para rememorar sua canção balbuciada por entre 155

as fissuras de um colonialismo memorialístico global. Rememorar aqui é mais do que aprender a desaprender (Mignolo): aprende-se a desaprender a lição (modelo) da memória moderna imperial e, ao mesmo tempo, por meio de um fazer/lembrar/esquecer, funda a epistemologia de uma memória específica da zona fronteriza. Quero entender que da parte do sujeito da memória subalterna, não há nenhum motivo para “risadas”, já que seu ouvido fora por demais treinado para repetir a exaustão a memória alheia, a ponto de quase se esquecer de lembrar-se de suas específicas memórias. Mais uma vez, ocorre uma reversão de valores: se involuntariamente o sujeito de uma memória subalterna estava condenado a lembrar da memória moderna da tradição, por outro lado, voluntariamente punha em prática o exercício do não-esquecimento de sua memória/história. A primeira prática autentica uma memória da ordem da ficção, enquanto a segunda reforça uma memória voltada para o lócus geoistórico cultural de um sujeito subalterno com uma história local específica. (Explicando melhor: Com o embate proposto entre a memória subalterna e a memória moderna constatou-se que, se, por um lado, aquela memória está condenada a lembrar involuntariamente dessa memória, e isso devido a um ranço hegemônico e castrador imposto no ocidente do interior para o exterior, como forma de reforçar e autenticar tão somente sua interioridade; por outro lado, a memória subalterna faz questão de lembrar-se voluntariamente de sua própria história/memória para mantê-la viva dentro dos escombros, restos e esquecimentos aleatoriamente empurrados para a margem da civilização ocidental moderna, que nunca se esquece de nada (?)) Depois de uns trinta dias, quando a memória do morto já o animava e a obra encontrava-se renovada para ele, o herdeiro da memória de Shakespeare compreendeu “que as três faculdades da alma humana, memória, entendimento e vontade, não são uma ficção escolástica. A memória de Shakespeare não podia revelar-me outra coisa que as circunstâncias de Shakespeare. É evidente que estas não constituem a singularidade do poeta; o que importa é a obra que executou com esse material inconsistente.” (p. 450). Pensando nos “direitos epistêmicos” (Mignolo) que embasam o 156

pensamento descolonial, a passagem supracitada me faz lembrar (e ao mesmo tempo contrapor-se a ela) que há comunidades no mundo que foram privadas de suas “almas” e, por conseguinte, de sua memória. A “linha epistêmica” de base do pensamento descolonial tem nos mostrado que os privilégios do homem branco, na América do Sul, fundamentados na história e nas memórias de pessoas de ascendência europeia estão, neste início de século, sendo revelados e discutidos, por serem tomados pela crítica acerca das memórias subalternas como inaceitáveis (Mignolo). Tal prática crítica descolonial vem contrapor-se, inclusive, a uma política do esquecimento acerca das histórias/memórias locais latinas que imperou nos trópicos. Como forma de retirar as memórias locais de um estado letárgico e sombrio de esquecimento, sobretudo do olhar imperial e castrador da memória da tradição ocidental e moderna, as memórias subalternas da América Latina revelam-nos, entre outras questões, as circunstâncias sociais, políticas e culturais nas quais elas se encontravam dentro da história do pensamento ocidental. E, diferentemente do que postula Hermann Soergel na passagem, tais circunstâncias constituem, sim, parte significativa da singularidade do que se entende conceitualmente por América Latina neste século XXI. As memórias subalternas da América Latina, entendidas como reveladoras de suas circunstâncias e como um “material inconsistente”, ou até mesmo como um “instrumento”, contribuem para uma refundação de uma conceituação outra de América Latina (obra), já que sua identidade cultural e sua “identidade em política” estariam baseadas em suas próprias histórias/memórias locais. Os “direitos epistêmicos” de natureza pós-colonial mostram-nos que está ocorrendo, especificamente nos lugares periféricos, um ato de desobediência epistêmica que afeta o estado, a economia e a educação, permitindo, por conseguinte, uma re-invenção da memória subalterna latina nos trópicos. Nesse tocante, é no mínimo curioso perceber e constatar que a literatura latina nos ajudou pouco, para não dizer quase nada, posto que internamente/textualmente ela ainda faz questão de reforçar um modelo memorialístico eurocêntrico e americano. Por outro lado, quero acreditar que um discurso de intelectuais ameríndios, bem

157

como uma literatura ensaístico-ficcional que emerge daí, têm provocado de-dentro desse lócus periférico, rechaçando, assim, esses velhos modelos estéticos, memorialísticos, literários e, principalmente, críticos, de base moderna. Sob o fio da navalha da epistemologia fronteiriça pós-colonial, as memórias subalternas latinas lutam por sua própria sobrevivência, já que “todas as coisas querem perseverar em seu ser” (Borges), e, por conseguinte, sabem, temem e lutam com o espectro da memória hospedeira, vinda do outro lado do atlântico, que nunca as deixa, assombrando-as mesmo que de forma fantasmática. A condição crítica de hostipitalidade (Derrida) das memórias subalternas é uma forma consciente (não gentílica) de dizer obrigada, mas não aceitamos mais a memória de Shakespeare. P.S. 2015 – Apesar das inumeráveis memórias outras que me visitaram nesses últimos meses, especialmente enquanto pensava neste texto, não deixei de ser eu nem muito menos de ter por certo que sabia contornar as especificidades de minhas memórias locais fronterizas, vividas por mim na infância, independentemente de me lembrar delas ou não. Na vigília sou o professor da disciplina Memória e Narrativa na Universidade; mais do que manusear, leio muito as memórias fabricadas de Borges, leio o que me cai nas mãos sobre crítica biográfica pós-colonial, além de redigir pequenos ensaios como este. Se na aurora não sei quem sou, no crepúsculo tenho domínio das rédeas da fronteira onde me situo, assim como do meu imaginário: vi um homem cego sentado num bolicho da fronteira de Dourados com Pedro Juan Caballero e não tive como não ver nele a figura do velho Borges. Perguntei a alguns atravessadores da fronteira o motivo de continuarem a atravessá-la desde quando me conheço por gente, ao que me responderam em portunhol, misturado com guarani, que tal condição de atravessadores era a condição suspensa na qual estavam ancoradas suas vidas. Paro por aqui, mas sei que me continuarão a surpreender as autênticas memórias dos subalternos campesinos, dos andariegos da fronteira, dos vaqueiros do pantanal, das putas de Sanga puytã, a memória cultural guardada nos Bugres de Conceição, na poética ervateira de

158

Serejo e nos poemas crioulos de Lobivar, assim como o canto desesperado do urutau tem o poder de me reclinar para um passado vivido por mim que, sem nostalgia, permite minha inscrição como sujeito da fronteira-sul da qual eternamente farei parte, mesmo depois de minha morte.

8 de setembro de 2013

159

REFERÊNCIAS

ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca. Trad. de Lyslei Nascimento. Belo horizonte: Editora UFMG, 2006. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Trad. de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La frontera: the new mestiza. São Francisco: Aunt Lute Books, 2007. Assis, Machado de. Machado de Assis: crítica, notícia da atual literatura brasileira. São Paulo: Agir, 1959. p. 28-34: Instinto de nacionalidade. BARROS, Manoel de. Livro de pré-coisas. Rio de Janeiro: Record, 2003. BENITEZ, Roberto. Torres-Garcia e o estilo do exílio. In: Revista Arte hoje, ano 1, n.11, maio, 1978. p. 36-39. BEVERLEY, John. Subalternidad y representación. Trad. de Marlene Beiza y Sergio Villalobos-Ruminott. Madrid: iberoamericana, 2004. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. BORGES, Jorge Luis. A memória de Shakespeare. In: Obras completas III, volume 3. São Paulo: Globo, 2000. p. 444-451. BORGES, Jorge Luis. O fazedor. Trad. de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: Estudos culturais. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, vol. 1, n. 1, jan/ jun. 2009. CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: Literatura comparada. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, vol. 2, n. 2, jul/dez. 2009. CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: Crítica contemporânea. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, vol. 2, n. 3, jan./jun. 2010 CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: Crítica biográfica. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, vol. 2, n. 4, jul./dez. 2010

CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: Subalternidade. Campo Grande, Ms: Ed. UFMS, vol. 3, n. 5, jan./jun. 2011. CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: Cultura local. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, vol.3, n. 6, jul/dez. 2011. CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: Fronteiras culturais. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, vol. 4, n. 7, jan./jun. 2012. CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: Eixos periféricos. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, vol. 4, n. 8, jul./dez. 2012. CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: Pós-colonialidade. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, vol. 5, n.9, jan./jun. 2013. CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: Memória cultural. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, vol. 5, n. 10, jul./dez. 2013. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Editora Itatiaia, 1997. CASTRO-GÓMEZ, Santiago y GROSFOGUEL, Ramón (editores) El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudos Sociales Contemporáneos y Pontifícia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007. CASTRO-GÓMEZ, Santiago y GROSFOGUEL, Ramón. “Prólogo: Giro decolonial, teoria crítica y pensamiento heterárquico”. In: CASTROGÓMEZ y GROSFOGUEL, Ramón (editores) El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudos Sociales Contemporáneos y Pontifícia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007. p. 9-23. CASTRO-GÓMEZ, Santiago y MENDIETA, Eduardo (Editores) Teorías sin disciplina: (latinoamericanismo, poscolonialidad y globalización en debates) http://ensayo.rom.uga.edu/critica/teoria/castro/ s.p. CASTRO-GÓMEZ, Santiago. “Decolonizar la universidad: la hybris del punto cero y el diálogo de saberes” In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago y GROSFOGUEL, Ramón (editores) El giro decolonial: reflexiones para

164

una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudos Sociales Contemporáneos y Pontifícia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007. p. 79-91 CASTRO-GÓMEZ, Santiago. “Latinoamericanismo, modernidad, globalización: prolegómenos a uma crítica poscolonial de la razón”. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago y MENDIETA, Eduardo (editores) Teorías sin disciplina: (latinoamericanismo, poscolonialidad y globalización en debates) http://ensayo.rom.uga.edu/critica/teoria/castro/ s.p. CASTRO-GÓMEZ, Santiago. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago y MENDIETA, Eduardo (editores) Teorias sin disciplina (latinoamericanismo, poscolonialidad y globalización en debate). México: Miguel Ángel Porria, 1998. “Latinoamericanismo, modernidad, globalización: prolegómenos a una crítica poscolonial de la razón”, s.p. DERRIDA, Jacques & DUFOURMANTELLE Anne. Da hospitalidade. Trad. de Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003. DERRIDA, Jacques & ROUDINENSCO, Elisabeth. De que amanhã...diálogo. Trad. de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. de Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. DIEGUES, Douglas. Uma flor na solapa da miséria. (Em portuñol) Asunción: Yiyi Jambo, 2007. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 50. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. GROSFOGUEL, Ramón. In: SANTOS, Boaventura de Sousa, MENESES, Maria Paula (org.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010 p. 455-491: Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global.

165

LANDER, Edgardo (org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. LOPES, Denílson. Do entre-lugar transcultural. In: LOPES. No coração do mundo: paisagens transculturais. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. p. 21-46. MENDIETA, Eduardo. In CASTRO-GÓMEZ, Santiago y MENDIETA, Eduardo (editores) Teorias sin disciplina (latinoamericanismo, poscolonialidad y globalización en debate). México: Miguel Ángel Porria, 1998. “Modernidad, posmodernidad y poscolonialidad: uma búsqueda esperanzadora del tiempo”, s. p. MIGNOLO, Walter D. “El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura: um manifiesto”. In: CASTRO-GÓMEZ, Silviano y GROSFOGUEL, Ramón (editores) El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudos Sociales Contemporáneos y Pontifícia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007 p. 25-46 MIGNOLO, Walter D. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago y MENDIETA, Eduardo (editores) Teorias sin disciplina (latinoamericanismo, poscolonialidad y globalización en debate). México: Miguel Ángel Porria, 1998. “Postoccidentalismo: el argumento desde América Latina”, s. p. MIGNOLO, Walter D. Prefacio a la edición castellana: “Um paradigma outro”: colonialidad global, pensamiento fronterizo y cosmopolitismo crítico. In: MIGNOLO, Walter D. Historias locales/ Deseños globales: colonialidad, conocimientos subalternos y pensamiento fronterizo. Tradicción de Juanmari Madariaga, Cristina Veja Solís. Madrid: Ediciones Akal. S. A., 2003. p. 19-60. MIGNOLO, Walter. Para des-inventar América Latina. In: OSSANDÓN, J Y VODANOVIC, Lucía. Disturbios culturales: conversaciones. Santiago do Chile: Universidad Diego Portales, 2012. p.195-210

166

MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF. Dossiê Literatura, língua e identidade, nº 34, p. 287-324, 2008. MIGNOLO, Walter. Histórias locais|Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Trad. de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. MIGNOLO, Walter. La Idea de América Latina: la herida colonial y opción decolonial. Trad. de Silvia jawerbaum y Julieta Barba. Barcelona: Gedisa Editorial, 2005. MIGNOLO. Walter D. “Postoccidentalismo: el argumento desde América Latina. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago y MENDIETA, Eduardo (Editores) Teorías sin disciplina: (latinoamericanismo, poscolonialidad y globalización en debates) http://ensayo.rom.uga.edu/critica/teoria/castro/ s.p. MORAÑA, Mabel. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago y MENDIETA, Eduardo (editores) Teorias sin disciplina (latinoamericanismo, poscolonialidad y globalización en debate). México: Miguel Ángel Porria, 1998. “El boom del subalterno”, s.p. NOLASCO, Edgar Cézar. babeLocal: lugares das miúdas culturas. Campo Grande, MS: Life Editora, 2010. NOLASCO, Edgar Cézar. “Crítica subalternista ao sul”. In: Cadernos de Estudos Culturais: subalternidade. v 3. n. 5. jan/jun. Campo Grande, MS: Editora UFMS, 2011. _____. “Crítica fora do eixo: onde fica o resto do mundo?”In: Cadernos de Estudos Culturais: cultura local. v. 3. n. 6. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, jul.-dez., 2011. (p. 27-41). _____. “Perto do coração selvagem da crítica fronteriza.”. In: Cadernos de Estudos Culturais: fronteiras culturais. v. 4. n. 7. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, jan.-jun.. 2012. (p. 35-51). _____. “Paisagens da crítica periférica”. In: Cadernos de Estudos Culturais: eixos periféricos. v. 4. n. 8. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, jul.-dez., 2012. (p. 39-54).

167

_____. “Razão pós-subalterna da crítica latina”. In: Cadernos de Estudos Culturais: Pós-colonialidade. Volume 5. Número 9. Jan./Jun.. Editora UFMS, 2013, p. 9-22. NOLASCO, Edgar Cézar. “Memórias subalternas latinas: ensaio biográfico”. In: Cadernos de estudos culturais: Memória cultural. V. 5. N. 10. Jul./Dez. Campo Grande, MS: Editora UFMS, 2013, p. 65-88. (No prelo) NUNES, João Arriscado. In: SANTOS, Boaventura de Sousa, MENESES, Maria Paula (org.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010 p. 261-290: O resgate da epistemologia PIGLIA, Ricardo. Tres propuestas para el próximo milenio (y cinco dificultades). Buenos Aires: Fondo de cultura económica, S.A., 2001. PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Trad. de Mário Quintana. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1982. RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Oprimidos pero no vencidos: luchas del campesinado aymara y qhechwa 1900-1980. La Paz: Hisbol – CSUTCB, 1984. RODRIGUEZ, Ileana. “Hegemonia y domínio: subalternidad, un significado flotante”. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago y MENDIETA, Eduardo (editores) Teorías sin disciplina: (latinoamericanismo, poscolonialidad y globalización en debates) http://ensayo.rom.uga.edu/critica/teoria/castro/ s.p. ROSA, João Guimarães. Ave, palavra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. SAID, Edward. Israel está mais seguro? In: Margens/Márgenes: Revista de Cultura, n.1, julho 2002. Belo Horizonte/ Buenos Aires/ Mar del Plata/ Salvador. p. 6-11. SANTIAGO, Silviano. As raízes e o labirinto da América Latina. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. 2.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 9-26.

168

SANTOS, Boaventura de Sousa, MENESES, Maria Paula (org.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. SANTOS, Boaventura de Sousa. In: SANTOS, Boaventura de Sousa, MENESES, Maria Paula (org.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 31-83: Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. SANTOS, Milton. “O mundo não existe” In: HISSA, Cássio Eduardo Viana. (org.). Conversações: de artes e de ciências. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011 p. 169-176 SCHWARZ, Roberto. A nota específica. Folha de S. Paulo, 22 de março de 1998, Mais, p. 9 (ensaio). SCHWARZ, Roberto. Cultura e política. São Paulo: Paz e terra, 2005. p. 59-83: As ideias fora do lugar’ SCHWARZ, Roberto. Que horas são? São Paulo: Companhia das letras, 1987. p. 165-178: Duas notas sobre Machado de Assis SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte; Editora UFMG, 2002. SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica: ensaios. São Paulo: Linear B; Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2007 SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar? Trad. de Sandra Regina G. de Almeida, Marcus Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. TERRÓN, Joca Reiners. Transportuñol borracho: 15 joyitas bêbadas de la poesia universal contrabandeadas al portuñol salbaje. Assunción: Yiyi Jambo, 2008. ZAKARIA, Fareed. O mundo pós-americano. Trad. de Pedro Maia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

169

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.