Pesca dos Povos Tucanos. O uso de armadilhas no rio Tiquié

September 3, 2017 | Autor: Aloisio Cabalzar | Categoria: Indigenous Knowledge, Amazonian Ethnology, Northwest Amazon, Tukano
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PESOA DÍlS PÍlVÍlS TUOANÍIS 0 usodearmadilhas norioTiquie Nab a c idaor i oNe g ro n a,A ma zô ngira a , n dpea r te o íg e nriab,e i ri nehpae sca dor a. d ap o p u l a çéãi nd 0 p e i xéeo a l i m e nbto á si co d ad i e taj u, n to co m produtos derivados damandioca brava cultivada p0ressapopulaçã0. 0 peixe temsignificado relevante nacosmologia indígena, emespecial pelas peixe' referências àsorigens comuns da'gente d emo , te msi d ore g i strapdoor e d ah u m a n i d aco pelos estudos antropológicos. A pesca é praticada, povos indígenas dorioNegro, demuitas formas, in c l u s icvoem0 u sod ea rma d i l heaas,l g u ndsesses instrumentos depesca sãootemadeste texto. Aloisio Cabalzar Instituto Socioambiental (conhecedor Ilomingos Prado Marques tucano) Flávio C.T.deLima Museu de Zoologia,UniversidadeEstadualde Campinas (conhecedor Guilherme Pimentel Tenório tuiuca) (agente lucasAlves Bastos indígena demanejo ambiental, tucano) Associação das TribosIndígenas doAlto RioTiquié (Atriart) (agente Roberval Pedrosa indígena demanejo ambiental, tucano) Associação das Comunidades Indígenas doMédio RìoTiquié (Acimet) (conhecedor Tarcísio Borges Barreto tucano)

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regiãodo alto rio Negro se estendepor Brasil, Colômbiae Venezuela.Nos dois últimos estão as nascentes,cabeceirase o curso inicial dos principais rios que formam o rio Negro. No BrasiÌ, eles ganham volume e largura e tornam-se navegáveis, até confluírem para o canal principal do Negro, formando a maior bacia de 'águas pretas' do mundo essaságuastêm coloraçãoescura por conter certos compostosgeradosna decomposição do húmus florestal.Essa bacia, no noroesteda Amazônia,drena vasta área de floresta tropical úmida. O alto rio Negro é uma das regiõesde maior volume de chuvasdo Brasil, com médias entre 2,9 mil e 3,6 mil mm por ano, segundodados(de 1976)do ProjetoRadam Brasil. Essaárea apresentasériaslimitaçõesecológcas,com solos e águasácidos, pobres em nutrientes e de baixa produtividade,ou seja,pequena geraçãode matéria orgânicadevido à reduzida presençade micro-organismos. As principais formações florestais são florestas de terra firme, igapós(florestasinundáveis)e caatingasamazônicas (ou campinaranas).Essascaatingasocupam extensas áreas,mas têm solosácidose mal drenados,que restringem a prática da agricultura. Essaregião abriga, desde tempos pré-históricos,populaçõesindíçnas que vivem basicamented,eagricultura, pesca,coletade frutos e insetose caça.Hoje, no lado brasileiro do alto e do médio rio Negro, existem cerca de 700 povoaçõesindíçnas, com mais de 20 mil habitantes, sem incluir os residentesnas cidadesda região.Em

queÍazem Entre ospeixes migrações norioïquiéestão jupiaba (A),Moenkhausìa Iepidura(B),suru bim(C) (D) e aracu-três-pintas

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1.997, o governo federal efetivou a demarcaçãode cinco terras indígenascontínuasna região,somandomais de 106 mil km2. Essesfatores- a antiguidadeda ocupaçào e sériasÌimitaçõesecológicas- levaramos povosque habitam essa região, segundo vários estudiosos,a longo processode adaptação,durante o qual encontraramformas eficazese sofisticadasde manejo da terra e de florestas,capoeiras,peixes e animais de caça. Dentro dessaperspectiva,este texto enfocaaspectos do sistema de pesca de povos da região, orientado em observações permanentesdos ciclosde vida, das plantas (de igapóse da beira de rios) e dos peixes (em especial quanto à migração e à reprodução), e em referências como o nível dos rios, o calendário astronômicoe outras. Serão apresentadasinformaçõessobre os povos da família linguística Tukano Oriental do rio Tiquié, um dos mais povoadosda área.

POVOSdO fiO TiqUié comcercade374km, dos quais 321 correndono Brasil, o rio Tiquié tem suasnascentesem território colombiano.E habitadopor cercade 4 mil pessoas,de vários grupos indígenas das famílias linguísticas Tukano Oriental e Maku. Destacam-seos tucanos, desanas,tuiucas, hupdas e miriti-tapuias. A língua dos tucanos,grupo de maior população,é usada como língua franca em toda a bacia do Tiquié. A ênfase ribeirinha dos povos do grupo Tukano Oriental faz desserio a principal referência espacial, como via de deslocamentoe comunicacãoreeional. Mo-

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radoresde diferentestrechosdo rio mantêm antigasrelaçõesde troca. Contribuem para isso a maior produção da pesca no baixo curso do rio, onde há extensosigapós e muitos lagos, e a maior produção de farinha e outros derivadosda mandioca brava nos trechosmédio e alto, com mais terras cultiváveis.Relaçõesmatrimoniais reforçam as trocas:em geral,os casamentosdevem ser feitos entre cônjugesde diferentes grupos linguístrcos. Os povos do grupo Tukano Oriental, agricultores e pescadores,exploramrecursosmais concentrados.Já os povosMaku ocupam áreasentre os rios da região e vrvem mais de caçae coleta,mas nas últimas décadastêm praticado mais a pesca,substituindo parcelas dos tucanos que migraram para as cidadesou outrasregiões.

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CICIOanual e pesGa Riosdeágua pretaapresentam baixíssimoconteúdomineral e reduzida produção biológica primária (como mostraram Michael Goulding e outrosem 1988),se comparadasaosrios de águas barrentas. As matas de igapó, que sofrem inundações periódicas,são as áreas mais produtivas dessesnos, e os peixes as procuram em busca de frutos, flores, insetos e outros alimentos ali disponíveis.Vários estudiosos, entre eÌes Goulding e Chernela, destacaram a inter-relação entre ciclo de vida dos peixes, árvoresfrutíferas das beiras de rios e igapós e o regime de cheias e vazantes. Sabendo dessemovimento dos peixes, as populações indígenas colocam alguns tipos de armadilhas nos canaisdosigapósouigarapésparacapturá_1os.>>>

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No baixo rio Tiquié, sãotípicas as planíciesde inundação, com matas de igapó e iagos formadosnas cheias em antigos meandros do rio. No trecho médio, os igapós dividem asmargenscom florestasde terra firme (estasem margens mais altas).No alto Tiquié, predominam margens abruptas e áreas de corredeirase cachoeiras,que servem de obstáculoà dispersãode muitas espéciesde peixes,como Pari-Cachoeira, Pedra Curta, cachoeira Comprida e principalmente a cachoeiraCaruru. O nível do rio Tiquié sofre variaçõesextremas, acompanhando as intensaschuvas característicasda região.As estaçõessão curtas e poucomarcadas,e os'conhecedoresindígenas'as identificam com base em referênciasastronômicas e ecológicas.O ciclo biológicodos peixes está estreitamente associadoàs flutuaçõesno nível da água e a ouÍos ciclos do calendárioanual. Ao longo do rio, sãodiferentes a amplitude para reprodução. dasmigraçõesdasespéciese as agregaçòes São fenômenosque acontecempoucasvezesno ano, mas bons indicadores de produção da pescanos outros peíodos. tucanos,o ano começana'enchenParaos conhecedores te de jararaca' (afrapoerl, em sua língua),no início de novembro, quando a constelaçãode mesmo nome (que correspondeparcialmenteà do Escorpião)se põe no horizonte oeste no começoda noite. Chuvas e cheiasrepentinas do rio se alternam com períodosde estiagemcurtos(de poucos dias a um mês) entre novembro e abril. E como uma primavera,tempo de reproduçãode peixes,insetose anfíbios, de floraçãoe frutificaçãode vegetais,e de rituais que celebram essafase do ciclo anual. Nessa épocaocorreo ajuntamento(wai turiratia wese)e a desova(wai turise)de peixescomoos que os tucanoschamam de yuktt botea(aracu-de-paq Leporinusklausewitzì), botea niti p eritiga (aracu-três-pintas, Lep orinus friderici), Leporinusagassizi)e akoboteaniti maritiga (aracu-riscado, roa (arímatideos como Cyphocharaxmultìlineatus, Cyphocharqxspifuruse Curimatellaalburna).Os picos de desova dessasespéciesacontecemno final desseperíodo,quando chove muito e o nível do rio sobe, mantendo-secheio de maio a juÌho. Os pescadorestucanose tuiucas conhecemlocais e horeprodutivas. rários onde essespeixesfazem as agregações As espéciessobem o rio nos dias em que o volume deste aumentade modograduale constante,apóspesadaschuvas na parte alta da bacia (seo volume para de subir, a agregação é interrompida).Após a reprodução,os cardumesdescem gradualmentepara áreasde igapóno médio e no baixo rio Tiquié (essamigração temporária é chamada de wai barztseem tucano). Entre a metade e o final da estaçãode cheias,cardumes de peixe de muitas espéciesmigram rio acima (wai wamu' sabemos momentose a orse).Os'conhecedores'tucanos dem em que elas fazema migração,e com basenessesaber realizam seusesforçosde pesca. Se a estaçãode cheia é bem definida (quandoo rio permanece alto por período prolongadoa partir de abril), os

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TUCANA ATECN(lLÍlGIA - matapi, jequi pore cacuri dearmadìlhas Três exemplos ., ; pratiambiental a riqueza domanej0 ilustrar tátil podem povos poresses indígenas. cado (kasawu, para cônico, deformato 0stucanos), 0 matapi é eamarrad0, emformadefunilefundoestreit0 comentrada (paxiubinha, depalmeiras EÍeito com talas a mais simples. Eencaixada em c0mcipós. oupatauá), amarradas bacaba suave, emambienemigapós decorrenteza devaras, cercado dorio,coma eemrgarapés oucanais dospeixes tesdedesova jandiá, (aracu, traíra, dacorrente. 0speixes boca a favor jacundá, a0descer orio.Muito acará eoutros) entram mandi, quando 0speixes seajuntam. usado naspiracemas, para 0 casa, essa armadilha, aovoltar Depois demontar "nã0 pode pescadorfazjejum seassuscertas regras: esegue sorrir efalaralto,pegar muito barulho, lar,lazer 0uouvir pimenta verde, só funcionar m0t0r, comer chorando, criança quente frio,nã0 e,mesm0 com manicuera mOqueada, beber pode Senãofizer nofogo, nem deitar commulhe/'. esquentar "vaiveÍse Roberval Pedrosa, explica otucano assim,,c0m0 prati!" pega alguma coisa .(compripode tamanhos terdiÍerentes 0 jequi(bakawu) que em será do local dependendo mento e circunferência), fundo é Tem forma cilíndrica e 0 visadas. usado edasespécies para que voltado dentro lembra um funil Aabertura, fechado. permite d0peixe, masimpede suasaída. aentrada docilindro, palmeiras, cipó. amarradas com Eusado com talas de EÍeito granpeilre quando sobe orio.Jequis acorrente:0 entra contra muito eficazes ecorrentezas, emcachoeiras dessãousados quand0 nasmigrações. subir ascachoeiras, 0speixes tentam sãocapturadas atécentenas dePari eCaruru, Nas cachoeiras menores, comiscasn0inJequis dearacus emjulhoeagosto. (emgeral ensempre frutos), sã0usados emigarapés, terior é é confeccionado, emcercados devaras. caixados Quando restriçoes dedieta ecomportaseguir asmesmas necessário para omatapi. mento descritas (imirô,bemleve, peiparapegar porláIll serve 0 cacuri por porumorifício, atraído algum xespequenos. Estes entram (emgeral, que Íicaboiando dentro doapacupins) alimento ospeixes sãodesviados relho. Como temparedes circulares, Efeitocom estanãoserve desaída. e,assim, daentrada patauá com 0ubacaba. trançadas depaxiubinha, talinhas de decipó, aproveitado Nofundo é usado umtrançado cipó. algum cesto comum. perto ou dorio,amanado a umgalho Écolocado dabeira daarmadinamargem, ea0menos doisterços umpaufixado abeda aentrada Umgraveto mantém lhaficammergulhados. eumafaixadefolhadeburitioudeaçaí, domeio daarmadilha, (a junto queoscupins presa impede naslaterais, àsuperÍície, (em yoaAspiabas tucano, vaze entre astalas. isca Ílutuante) paracomer enâoconmikiaehc.) entram oscupins ra,wena, (nosowò,que entra 0peixe-cachono seguem sair, assim com0 para emigapós, émuito aspiabas. Usado também consumir - naépoca - aténosportos dasubida dascomunidades eficaz (julho eagosto). dospeixes

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peixes sobem em maior número. Do contrário, as migrações são pouco intensas e a abundância de peixe nos outros meses do ano também é menor. Em anos mais produtivos, a migração é tão grande que os peixes são capturadosfacilmente diante das comunidades,com uma armadilha leve e portátil (o imirQ, mas também com puçás,redes diversase até mosquiteiro de filó. O conhecimentodetalhado da ecologiadas espéciesde peixes e da geografia ribeirinha orienta a colocaçãodessas armadilhas. Algumas se aplicam apenasa certos eventos do ciclo anual e a locais determinados(cachoeiras,igapósou canais estreitos dos rios, por exemplo). Alguns tipos são dispostosa favor da comentezae outros contra esta. Muitas são feitasde modo que os peixesentrem, mas não consigamsair. Na migraçãorio acima, cachoeirase corredeirassão os principais obstáculosdos cardumes.A maioria pode ser transpostapor alguns canais,dependendodo nível do rio, Apenas a cachoeiraCaruru, mais alta e já no alto Tiquié, impede a passagemda grande maioria das espécies.No esforço de ultrapassaras cachoeiras,os peixessão capturados com diversasarmadilhas. Em muitas ocasiões,os tucanos usam cercados,geralmente feitos de paus e varas fixados no fundo do rio ou nas pedras das cachoeiras,com aberturasnas quais são encaixadasas armadilhas.Estastêm váriosnomes- jequi, cacuri, caiá,matapi e outros- e sãomontadascom talasde diferentes plantas,amarradasem geral com cipós.Algumas armadilhas são fixas, outras podem ser colocadase retiradas de acordo com as condiçõesdo rio, como matapi, jeqti e imirõ (ver 'A tecnologiatucana'). As armadilhas,ao mesmo tempo em que são soluções tecnológicasde pescados povostucanos,representam,no plano das concepções, formasde mediar as relaçõesentre 'gente' e 'gente peixe'. Por isso, são benzidas ao serem construídas,e os indígenas projetam nessesaparelhosaspectos importantesdessasrelações.Nas palavras do tucano Vicente Azevedo, "a gente peixe tem coraçào,como nós". Gente peixe, completa,"significagente como nós", Mas este é assuntopara outro artigo. lll

paraleitura Sugestões

Roberval Pedrosa, tucano, encaixando matapi nocercado em próximo (A);Domingos igapó à comunidade deSena deMucura para Marques, tucano, finalizando a confecção dejequi ser perto (B)e colocado nacachoeira Cururu, desuacomunidade Tarcísio Baneto, tucan0, c0locand0 inirõnabeirado rio,perto (C) dacomunidade deSãoDomingos

CABALZAR, A.(org.)Peixe e gentenoaltorioTiquìé. Conhecimentos indígenas, iüiologia, etnologia. SãoPaulo, Instituto Socioambiental, 2005. 'Tukanoan CHERNELA, J. Íishing', emNational Geographic Research & Exploratìon, p.440, v.10(4), 1994. G0ULDING, lVl.e outros. RioNegro. Richlifein poorwaÍer. Haia,SPBAcademic Publishing, l988. K0CH-GRUNBERG, I. Dosafros entrelosÌndígenas. Bogotá, EdiÌorial Universidad Nacional,1995. '0 RlBElR0, B.e I-ANA, L. ciclodospeixes dorioTiquié', en Ciência Hoje, especial p.18,1991. Amazônia,

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