Pesquisa em recepção – Relatos da II Jornada Gaúcha

Share Embed


Descrição do Produto

Organizadoras Liliane Dutra Brignol Viviane Borelli

Pesquisa em Recepção Relatos da segunda jornada gaúcha

Santa Maria FACOS - UFSM 2015

©Copyright FACOS - UFSM, 2015 Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610/98. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização por escrito da editora. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Créditos da ficha (Universidade Federal de Santa Maria)

Número de ISBN 978-85-8384-013-8

FACOS - UFSM

Cidade Universitária - Prédio 21 Camobi, Santa Maria - RS - Brasil Fone/fax: 55 3220 8491 CEP 97 105-900

S

. U . M .Á . R . I . O

5 Apresentação

53

cultura hip hop e resistência em busca de transformações sociais em santa maria (rs) Amanda Rosieli Fiúza e Silva Jonária França Sandra Rubia da Silva

7 Uma metodologia de pesquisa das mediações na comunicação Maria Immacolata Vassallo de Lopes

62 “Eles podem ser malucos, mas são profissionais!” um estudo de recepção sobre o grupo black sabbath no

17 Recepção, ‘corpo-significante’ em circulação

programa fantástico Antonio Fausto Neto

25 Desafios na construção de pesquisas de recepção em mídias digitais em perspectiva transmetodológica

Fábio Cruz

71

recepção audiovisual: as significações sobre a américa latina na catalunha a partir da série presidentes de latinoamérica

Jiani Adriana Bonin

Rafael Foletto

30 Jovem brasileiro e consumo midiático em tempos de convergência: 77

panorama preliminar

a etnografia virtual nos estudos de recepção: uma discussão metodológica

Nilda Jacks Mariângela Toaldo Daniela Schmitz Dulce Mazer Laura Wottrich Sarah Moralejo da Costa

Laura Hastenpflug Wottrich

85

consumo de modelos midiáticos de mulher: um estudo com mulheres transgêneras

37 Recepção midiática e migração: a perspectiva dos usos sociais da

Fernanda Scherer

mídia na investigação sobre o brasil imaginado por migrantes transnacionais Liliane Dutra Brignol

93

diálogo entre produção e recepção em teen wolf Sarah Moralejo da Costa

44 Jornalismo e cultura da convergência: uma análise exploratória da relação entre a revista tpm e seus leitores em ambientes digitais

99

martín-barbero, certeau e os estudos culturais: notas sobre o cotidiano

Marlon Santa Maria Dias Viviane Borelli

Márcia de Castro Borges

apresentação

E

m outubro de 2012, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisadores da Comunicação de universidades gaúchas reuniam-se pela primeira vez em um evento dedicado exclusivamente à troca de experiências em pesquisas vinculadas à perspectiva dos estudos de recepção. O encontro pioneiro foi uma promoção conjunta dos grupos de pesquisa “Mídia, Cultura e Cidadania”, do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos); “Recepção e Cultura Midiática”, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da UFRGS, “Mídia, Recepção e Consumo Cultural”, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); e “Mídia e Identidades”, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Em reflexões aprofundadas sobre uma abordagem de pesquisa especialmente importante no contexto gaúcho, fomos desafiados a assumir a continuação do evento, a partir da proposta de sua segunda edição, realizada no mês de julho de 2014, agora no centro do Estado, na UFSM. Assim, o evento científico, organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFSM, teve o objetivo de dar continuidade a uma rede de pesquisa que possui uma longa trajetória no Rio Grande do Sul, de modo a proporcionar o diálogo entre pesquisadores da área por meio do intercâmbio das pesquisas em recepção desenvolvidas nos programas de Pós-Graduação em Comunicação sediados em universidades do estado. A II Jornada Gaúcha de Pesquisadores da Recepção teve apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (Fapergs). Como eixo articulador, durante dois dias, foi proposta uma aproximação aos desafios teórico-metodológicos dos estudos de recepção, em diversas abordagens. Já na conferência de abertura, Maria Immacolata Vassalo de Lopes, professora da USP que tem sua trajetória de pesquisa confundida com a própria consolidação dos estudos de recepção no Brasil, discutiu o tema “A recepção transmidiática e os desafios da pesquisa em rede”, com um relato a partir das experiências do Centro de Estudos de Telenovela da USP e da rede de pesquisa internacional OBITEL (Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva) e da rede de pesquisa OBITEL-Brasil. Duas mesas temáticas reuniram a colaboração de pesquisadores convidados de três instituições diferentes do país. Jiani Bonin e Antonio Fausto Neto, da Unisinos, refletiram sobre “Abordagens teórico-metodológicas para os estudos da recepção”. As questões em torno da juventude em pesquisas de recepção e consumo cultu-

ral foram o centro do debate proposto por Nilda Jacks, da UFRGS, e Rose de Melo Rocha, da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM – SP). Ao total, o evento contou com 94 participantes, de dez instituições gaúchas, além de oito instituições de outros estados, o que demonstra que as reflexões propostas romperam até mesmo o objetivo inicial de integração regional, chamando a atenção de pesquisadores de outras partes do país. Foram 54 trabalhos inscritos em seis grupos de trabalho, que analisaram questões em torno da pesquisa de recepção em jornalismo; convergência e recepção na web; usos, apropriações e consumo; recepção e gênero; ficção televisiva e cinema; e práticas culturais e identidades. Para a seleção dos trabalhos, publicados nos anais do evento, foi organizada uma comissão técnico-científica formada por 14 pesquisadores da área da Comunicação. Inserida neste contexto de reflexão e debate, nasce a ideia deste livro, que reúne artigos selecionados entre aqueles que foram apresentados no evento, além de um conjunto de textos inéditos dos pesquisadores convidados como palestrantes e conferencistas da II Jornada Gaúcha de Pesquisadores da Recepção. Nossa proposta é de sistematização de parte do debate suscitador gerado durante os dias de evento, de modo a ampliar a circulação das discussões sobre os desafios da pesquisa de recepção, enquanto perspectiva teórica e metodológica que vem reconfigurando a compreensão da comunicação enquanto um processo complexo e de múltiplas imbricações. O primeiro capítulo é uma contribuição de Maria Immacolata Vassalo de Lopes, em que discute premissas teóricas e metodológicas da perspectiva das mediações a partir de reflexões sobre uma pesquisa realizada por seu grupo de investigação. No artigo, a autora expõe um percurso de exploração metodológica na pesquisa de recepção de telenovela, de modo a propor a construção de uma concepção multidisciplinar e multimetodológica em seu projeto de pesquisa. O texto dialoga com as reflexões feitas na conferência de abertura da Jornada, em que ampliou o debate com reflexões sobre os estudos de recepção no contexto da cultura da convergência, foco de seus trabalhos atuais. Os três artigos seguintes concentram-se em torno do debate gerado pelas mesas temáticas da Jornada. Escrito especialmente para o evento, o artigo de Antonio Fausto Neto aborda a problemática da recepção a partir das implicações acionadas por um estágio avançado dos processos de midiatização da sociedade. O pesquisador parte de uma recuperação dos conceitos de circulação e recepção na pesquisa da área para aprofundar aspectos sobre novas articulações entre estas instâncias do processo comunicacional. Entre as questões que levan-

5

ta, propõe pensar sobre a importância de se voltar a atenção para as dinâmicas da circulação, em um cenário de intensificação da técnica como mecanismo de interposição entre produção e recepção no qual se tornam mais complexos os processos de produção de sentidos. Jiani Bonin também desenvolve um percurso atento sobre novas configurações da problemática da recepção por meio do levantamento de um conjunto de elementos de transformação no ambiente comunicacional sob o impacto dos processos de digitalização. Seu texto apresenta alguns dos desafios do campo e propõe a perspectiva transmetodológica, na articulação criativa e aprofundada do que define como métodos mestiços, como uma possibilidade produtiva para o enfrentamento de limites e obstáculos epistemológicos das pesquisas em recepção. No quarto artigo apresentado nesta coletânea, Nilda Jacks e integrantes de seu grupo de pesquisa trazem inquietantes reflexões a partir da pesquisa em desenvolvimento pela Rede Brasil Conectado, coordenada pela pesquisadora, e que conta com investigadores nos 26 estados brasileiros e o Distrito Federal. O consumo midiático de jovens em tempos de convergência é o centro da problematização proposta pelo artigo, que se concentra na apresentação de parte da pesquisa exploratória realizada no contexto brasileiro, com a combinação de procedimentos como questionários sobre consumo cultural e midiático e análise de perfis de jovens no Facebook. Os demais artigos deste livro buscam recuperar um panorama das temáticas discutidas nos grupos de trabalho da II Jornada Gaúcha de Pesquisadores da Recepção. São nove textos de pesquisadores que vem construindo suas próprias trajetórias na interlocução com questões importantes para o campo da pesquisa em recepção. São reunidos aqui resultados de investigações, discussões teóricas, assim como relatos de estágios de pesquisa em desenvolvimento tanto em programas de pós-graduação em Comunicação no contexto gaúcho como em demais cursos de universidades da região. Assim, há reflexões sobre questões metodológicas acionadas pelas especificidades da análise da recepção, abordagens teóricas e conceitos articuladores dos estudos, como a perspectiva dos usos sociais das mídias, reflexões sobre as lógicas da produção dos receptores considerados fãs de produtos midiáticos, análises da relação entre a esfera da produção midiática com os receptores em ambientes digitais, além de outras intersecções possíveis desenhadas a partir das propostas dos textos que seguem. A publicação deste ebook significa um esforço de sistematização de inquietações comuns aos participantes da II Jornada Gaúcha

de Pesquisadores da Recepção. É deste modo que pensamos a leitura do conjunto de artigos reunidos aqui. Ao final, estamos todos imbuídos de pensar o cenário atual da pesquisa em recepção, suas transformações e a implicação concreta desta perspectiva em nossas pesquisas. O que significa estudar a recepção hoje, quem é o sujeito receptor, quais são as temáticas mobilizadoras desta abordagem de estudos? Não são questões facilmente respondidas, mas a elas dedicamos o nosso fazer. É também sobre elas que tensionamos as possíveis contribuições da leitura desta publicação.

Santa Maria, março de 2015. As organizadoras

6

Uma metodologia de pesquisa das mediações

111

na comunicação

Maria Immacolata Vassallo de Lopes I USP

Lugares de onde se partiu Pretendemos neste texto resumir a estratégia metodológica utilizada no projeto de pesquisa intitulado Recepção de Telenovela - Uma Exploração Metodológica (LOPES, 2002)1. Concebido a partir de uma insatisfação com os estudos de comunicação e suas relações com as demais ciências sociais e humanas, esse projeto foi elaborado com o propósito de fazer uma exploração multimetodológica da teoria latino-americana das mediações, o que pode ser visto como uma resposta construtiva àquela insatisfação. O projeto partiu de quatro propostas, que são verdadeiros desafios, e que foram articuladas num estudo de recepção de telenovela. A primeira é a de constituir-se como projeto multidisciplinar. Como esta assunção não é de mero caráter retórico ou “honorífico”, na feliz expressão de Kaplan, tal proposta exigiu que uma grande parte dos três anos que tivemos para realizar o projeto fosse dedicada à organização da equipe e à definição de uma base teórica e metodológica integrada e multidisciplinar. Se, por um lado, a identificação teórica do projeto já está dada a partir do próprio título, uma vez que a pesquisa de recepção é realizada dentro do marco teórico das mediações de Jesús Martín-Barbero (1987), por outro lado, a identificação metodológica, como o próprio título também indica, propõe um trabalho de exploração metodológica. Daí que a segunda proposta do projeto consistiu na construção de uma estratégia multimetodológica dentro de um estudo de recepção. A centralidade que esta busca metodológica das mediações assumiu no projeto traduziu-se através de uma permanente reflexão sobre a natureza dos métodos, exercitando o que chamaríamos de trabalho de combinação convergente de métodos. Pesquisas como esta, que fazem uso concreto de um desenho multimetodológico visando a integração de métodos de orientações diversas, são parte de um movimento contemporâneo crítico da compartimentação disciplinar que caracterizou a construção histórica das ciências sociais e humanas e que propõe medidas concretas para a sua reestruturação disciplinar (WALLERSTEIN et al., 1996). Entendemos esse movimento como sendo de abertura e convergência disciplinares2.

7

Uma prévia do texto foi apresentada na mesa Abordagens teórico-metodológicas para os estudos da recepção, da II Jornada Gaúcha de Pesquisadores da Recepção.

1

Nota das editoras: Maria Immacolata Vassallo de Lopes, pesquisadora pioneira nos estudos em recepção no contexto brasileiro, foi a responsável pela conferência de abertura da II Jornada Gaúcha de Pesquisadores da Recepção. No evento, abordou o tema “A recepção transmidiática e os desafios da pesquisa em rede”, apresentando um panorama sobre a tradição da pesquisa latino-americana de recepção e refletindo sobre o impacto da cultura da convergência na redefinição do contexto da recepção hoje. Também apresentou a trajetória das pesquisas do OBITEL (Observatório Ibero-americano de Ficção Televisiva) no Brasil. Para a pesquisadora, os problemas metodológicos e epistemológicos estão centrados no trabalho do pesquisador de recepção e nas construções metodológicas de cada pesquisa. É a partir deste horizonte que colabora nesta publicação, com um texto inédito em que discute as premissas teóricas e metodológicas da perspectiva das mediações a partir de reflexões em torno de uma pesquisa já concluída por seu grupo de investigação.

2

Os desafios concretos do desenho multimetodológico postos pelo presente projeto estão na base de um texto em que discutimos os desafios dos paradigmas da globalização e da complexidade para os estudos de comunicação. Ver Lopes (2001)

A terceira proposta, que também constituiu um desafio, foi realizar o que chamamos de estudo “compreensivo” de recepção no campo da comunicação. Como dissemos, o atual estado da pesquisa de comunicação levou-nos a enfatizar a contribuição distintiva da teoria latino-americana das mediações aos estudos atuais de recepção. Essa contribuição está justamente na tentativa de romper com abordagens teóricas fragmentadoras e simplificadoras da comunicação, firmando a recepção como perspectiva teórica integradora dos processos de produção, do produto e da audiência. A recepção passa a ser vista como momento privilegiado da produção de sentido, refutando a concepção reprodutivista e firmando que “mais do que de meios, a comunicação se faz hoje questão de mediações, isto é de cultura” (MARTÍN-BARBERO, 1989, p. 19). O resultado é um desenho complexo de investigação que envolve a estrutura e a dinâmica da produção das mensagens; os usos e apropriações dessas mensagens e a sua composição textual. Esta marca vai além da proposta de “análise qualitativa da audiência + análise de conteúdo” que caracteriza atualmente a tendência internacional dos estudos de recepção (JENSEN, 1990). O principal desafio que atravessa hoje os estudos latino-americanos de recepção está na tradução metodológica da teoria das mediações em projetos de investigação empírica. No presente projeto, elegemos quatro mediações: cotidiano familiar, subjetividade, gênero e videotécnica – e assumimos a tarefa de torná-las observáveis e documentá-las empiricamente. O objetivo principal é mostrar como essas mediações, cada uma com sua especificidade, convergem no processo de recepção, tomado como locus de construção de sentido e não de sua mera reprodução. E, finalmente, a quarta proposta foi a eleição da telenovela como objeto de um estudo de recepção. Aqui nos deparamos tanto com as renovações trazidas pela corrente dos chamados estudos culturais, quanto da sociologia da comunicação aos fenômenos da comunicação. Tomando o gênero do melodrama como matriz cultural de significação, a telenovela é entendida como um constructo que ativa na audiência uma competência cultural e técnica em função da construção de um repertório comum, que passa a ser um repertório compartilhado de representações identitárias, seja sobre a realidade social, seja sobre o próprio indivíduo. É importante sublinhar, de saída, que esse repertório entre a produção e a audiência foi construído ao longo de 35 anos de telenovela no Brasil e, mais precisamente, de assistência diária às telenovelas da Rede Globo. Deste ponto de vista, a telenovela constituir-se-ia num representante conspícuo da tardia modernidade brasileira, tese que colocamos sob a forma de uma de nossas hipóteses teóricas. Num plano mais concreto, a recepção da telenovela traduz-se numa experiência cultural e de comunicação que enseja uma pesquisa que possa combinar contexto e leitura da recepção.

O que se pretendeu alcançar As quatro propostas ou premissas expostas foram traduzidas nos seguintes objetivos gerais: 1)Investigar os processos e as práticas de recepção de uma mesma telenovela, A Indomada, por parte de um grupo de quatro famílias: uma família de favela, uma de periferia, uma de classe média e uma de classe média alta. A pesquisa recortou quatro mediações: cotidiano familiar, subjetividade, gênero e videotécnica; 2)Criar e explorar uma estratégia multimetodológica, inspirada na perspectiva teórica das mediações, que possa contribuir para o avanço da pesquisa de recepção em comunicação.

A perspectiva teórica das mediações Os estudos de recepção A adesão à perspectiva teórica das mediações se deu fundamentalmente porque ela constitui uma renovação dentro da tradição dos estudos de recepção, mantendo com esta tanto pontos de permanência como pontos de ruptura. Isto ficou claro através do percurso bibliográfico que foi fonte dos seminários teóricos e metodológicos que realizamos na etapa inicial do projeto, quando revisitamos as seguintes correntes teóricas: pesquisa dos efeitos, pesquisa dos usos e gratificações, estudos de crítica literária, estudos culturais e estudos de recepção. As tradições dos Estudos de Recepção Percorrendo os quadros de referência da pesquisa cujo interesse é o nexo entre os meios de comunicação e as audiências, notamos certo consenso entre autores em reconhecer como principais as seguintes correntes: pesquisa dos efeitos, pesquisa dos usos e gratificações, estudos de crítica literária, estudos culturais e estudos de recepção. Estes últimos constituem o quadro mais recente e emergem como ponto de algumas confluências das demais tradições, ao mesmo tempo que com elas mantêm controvérsias e diferenças críticas. Além do mais, essas abordagens diferenciam-se quanto aos pressupostos teóricos, escolhas metodológicas e concepção de recepção e, ainda, derivam de diferentes campos disciplinares. Com isso, queremos sublinhar que os atuais estudos de recepção na América Latina, especificamente os que se filiam à perspectiva teórica das mediações, são herdeiros dessa longa tradição, ela mesma feita de lutas, e com ela mantêm rupturas e continuidades. Concordamos com Curran (1998) que, num debate recente com Morley (1998),

8

critica o pretenso caráter homogeneizador envolvido no rótulo dos atuais “estudos de recepção”, uma vez que eles apresentam tendências diferenciadas. Além disso, aquele autor alerta para a falta de visão histórica nestes estudos que, segundo ele, não inventaram a roda, tendo que ser entendidos dentro de um processo mais propriamente de renovação do que de inovação dos estudos de comunicação.

(GONZÁLEZ, 1991), o da recepção ativa no Chile (FUENZALIDA, 1987) e o de crianças e televisão no México (OROZCO, 1992), entre outros. O traço central e comum a todos esses projetos é proceder a uma experimentação metodológica, através da qual tenta-se avançar nos procedimentos propriamente técnicos da investigação empírica no sentido de torná-los mais compatíveis com a complexidade da teoria das mediações. Outra característica geral é o desenho globalizador do processo de investigação, envolvendo a estrutura e a dinâmica da produção das mensagens, os usos e apropriações desses textos e a composição textual. Esta marca vai além da proposta de “análise qualitativa da audiência + análise de conteúdo” (JENSEN, 1990) que vem caracterizando a tendência internacional. No Brasil, onde não identificamos experiências similares em projetos de desenho globalizador e multidisciplinares, a presente pesquisa de recepção de telenovela surge como tentativa de superar a insatisfação com o estado da pesquisa de recepção em nosso país.

A moderna tradição latino-americana dos Estudos de Recepção Os estudos de recepção na América Latina são muito recentes. Sua emergência se dá no início dos nos 80, no bojo de um forte movimento teórico crítico que procurava fazer uma reflexão alternativa sobre a comunicação e a cultura de massas através da perspectiva gramsciana, reflexão alternativa às análises funcionalistas, semióticas e frankfurtianas predominantes até então. É sobretudo dentro da temática das culturas populares que uma teoria complexa e multifacetada da recepção começou a ser desenvolvida, tendo como eixos básicos de reflexão o deslocamento dos meios às mediações (MARTÍN-BARBERO, 1987) e os processos de hibridização cultural (GARCIA CANCLINI, 1990). É central hoje a presença da perspectiva teórica das mediações e das hibridizações na pesquisa de recepção em toda a América Latina. Identificamos nas pesquisas de recepção no Brasil do início dos 80 uma espécie de “teorização atrasada” em relação à reflexão “avançada” que se fazia através da teoria das mediações. Eram teorizações “atrasadas” porque marcadas por um forte esquema dualista: ou se privilegiava exclusivamente os modos de reelaboração/resistência/ refuncionalização dos conteúdos culturais das classes populares ou se tomava esses conteúdos como completamente moldados pela ação ideológica das classes dominantes, via meios de comunicação de massa. Porém, em pouco mais de cinco anos, esse quadro foi superado com a incorporação da perspectiva das mediações às pesquisas brasileiras de recepção. Contudo, o que parece persistir aqui é uma inadequação metodológica nas pesquisas empíricas face à construção de uma problemática teórica complexa sobre os processos de recepção. Os desenhos metodológicos, tanto de observação e de coleta como de análise dos dados, continuam no geral acanhados e podem ser resumidos na falta de uma estratégia multimetodológica, cuja complexidade corresponda ao do objeto e à sua teorização. Em consequência, a análise acaba resultando exterior ao modelo teórico e, por vezes, até forçada a corresponder a ele. O que contrasta bastante em relação a esse quadro brasileiro da pesquisa de recepção é a formação em diversos países latino-americanos de equipes de pesquisa que trabalharam em projetos integrados e multidisciplinares. É o caso dos projetos sobre telenovela na Colômbia (MARTÍN-BARBERO e MUNHOZ, 1992) e no México

As tendências locais e internacionais A atual tendência internacional da pesquisa de recepção parece contrastar com a perspectiva latino-americana no sentido de ter autonomizado em excesso a esfera cultural e “desestruturalizado” a análise. Ou seja, se por um lado as diversas tradições teórico-metodológicas estão hoje convergindo para um “estado dinâmico de coexistência” (JENSEN, 1990), por outro, isso não tem levado necessariamente à construção de um quadro teórico interpretativo mais complexo que permita dar sentido propriamente teórico ao extraordinário conjunto de evidências empíricas acumuladas sobre a relação entre meios e audiências. Nas pesquisas internacionais, continua a prevalecer um insatisfatório nível descritivo, como apontam Lull (1992) e Silverstone (1996) e uma perigosa tendência à indulgência e a uma abstenção de crítica (MURDOCK, 1990). Assim, produz-se múltiplas versões do que parece ser um mesmo texto sobre resistência, prazer e estratégias de consumo. Se, por um lado, as descrições etnográficas têm sido extremamente úteis em demonstrar que os receptores não são uns “dopados culturais”, mas sim pessoas que extraem sentidos específicos de textos, gêneros e meios, a simples reiteração da comprovação dessa hipótese central não garante o avanço teórico desses estudos. Nota-se claramente nas pesquisas empíricas o risco de se produzir uma verdade formal e estéril sobre a complexidade e as contradições entre meios e audiências. Ficando dentro do quadro das tradições teóricas, o que parece não estar sendo suficientemente retido nas pesquisas empíricas qualitativas é a crítica cultural e política tal como proposta através do trabalho etnográfico crítico pela corrente inicial dos estudos culturais

9

(Hoggart, Thompson e Williams). A insuficiência da crítica parece derivar de uma renovada ambiência funcionalista nessas pesquisas, denominada corretamente por Mauro Wolf (1987) de “neo-lazarsfeldismo”, pois o que fundamentalmente os estudos culturais propõem é que as práticas de recepção sejam articuladas com as relações de poder. A recepção, por conseguinte, não é um processo redutível ao psicológico e ao cotidiano, apesar de ancorar-se nessas esferas, mas é profundamente cultural e político. Isto é, os processos de recepção devem ser vistos como parte integrante das práticas culturais que articulam processos tanto subjetivos como objetivos, tanto micro (ambiente imediato controlado pelo sujeito) como macro (estrutura social que escapa a esse controle). A recepção é então um contexto complexo, multidimensional, em que as pessoas vivem o seu cotidiano. Ao mesmo tempo, ao viverem este cotidiano, as pessoas se inscrevem em relações de poder estruturais e históricas, as quais extrapolam as suas práticas cotidianas. Este é o conjunto de pressupostos teóricos que informam uma teoria compreensiva dos estudos de recepção. E essa é, a nosso ver, a contribuição distintiva da teoria latino-americana das mediações. A produção e reprodução social do sentido envolvida nos processo culturais não é somente uma questão de significação, mas também, e principalmente, uma questão de poder.

diano de vida das pessoas que, ao realizar-se através dessa práticas, traduz-se em múltiplas mediações. A estratégia da investigação não parte da análise do espaço da produção e da recepção para depois procurar entender suas imbricações (como propõe Jensen). Parte sim das mediações, isto é, dos lugares de onde provêm os fatores que “delimitam e configuram a materialidade social e a expressividade cultural da televisão” (MARTÍN- BARBERO, 1987, p. 233). Esta perspectiva teórica inspirou uma estratégia metodológica específica para o estudo de recepção da telenovela. Investigar a telenovela exige pensar tanto o espaço da produção como o tempo do consumo, ambos articulados pela cotidianidade (usos/consumo/práticas) e pela especificidade dos dispositivos tecnológicos e discursivos (gêneros) do meio televisão. A perspectiva teórico-metodológica das mediações leva-nos a firmar as seguintes premissas. A mediação no processo de recepção de telenovela deve ser entendida como processo estruturante que configura e reconfigura tanto a interação dos membros da audiência com os meios, como a criação por parte deles do sentido dessa interação. A necessidade de decupagem desse conceito para torná-lo metodologicamente manejável nos levou a firmar os seguintes princípios: 1. A relação receptores - televisão é necessariamente mediada. Essa relação nunca é direta e unilateral como costuma ser abordada por outras metodologias, mas é uma relação multilateral e multidimensional e que se realiza através de múltiplas mediações (OROZCO, 1991). 2. A recepção é um processo e não um momento, isto é, ela antecede e prossegue ao ato de ver televisão. Assim, o sentido primeiro apropriado pelo receptor é por este levado a outros “cenários” em que costumeiramente atua (grupos de participação). Imaginamos, então, que a mensagem de telenovela é reapropriada várias vezes e que, portanto, os espaços de circulação da telenovela devem ser metodologicamente incorporados na pesquisa. 3. O significado televisivo é “negociado” pelos receptores. Assumimos então que não há garantia que os significados propostos por uma telenovela sejam apropriados da mesma maneira. Pode-se afirmar então que os sentidos e os significados últimos de uma telenovela são produto de diversas mediações. Por um lado, isto significa que o processo de comunicação não se conclui com a sua transmissão, senão que propriamente aí se inicia. Por outro lado, isto não implica a ausência de uma intencionalidade global política e econômica concreta que se inscreve no discurso social hegemônico. É precisamente esta intencionalidade que faz com que a realidade signifique “algo” e impede que qualquer significado seja transparente (VERÓN,

Uma metodologia das mediações Premissas metodológicas A recepção é, antes de mais nada, uma perspectiva de investigação e não uma área de pesquisa sobre mais um dos componentes do processo de comunicação, neste caso, o público. Trata-se de uma tentativa de superação dos impasses a que tem nos levado a investigação fragmentadora e, portanto, redutora do processo de comunicação em áreas autônomas de análise: da produção, da mensagem, do meio e da audiência. Destacamos aqui a perspectiva integradora e compreensiva do estudo da recepção, uma vez que todo o processo de comunicação é articulado a partir das mediações. Como diz Martín-Barbero (1992, p. 20): As mediações são esse ‘lugar’ de onde é possível compreender a interação entre o espaço da produção e o da recepção: o que se produz na televisão não responde unicamente a requerimentos do sistema industrial e a estratagemas comerciais mas também a exigências que vêm da trama cultural e dos modos de ver.

Através dessa concepção, pode-se pensar a mediação como uma espécie de estrutura incrustada nas práticas sociais e no coti-

10

1971). Estas afirmativas nos levam a uma questão metodológica fundamental – a das relações causais – o que nos exigirá indagar acerca da causação de intensidade diversa que deve estabelecer-se na relação entre as múltiplas mediações.

Quadro 1: Caracterização Analítica das Mediações

Uma estratégia multidisciplinar das mediações O estudo das mediações na recepção de telenovela exigiu a construção de uma metodologia multidisciplinar para assegurar a recepção da telenovela, pensando tanto o espaço da produção como o tempo do consumo, articulados a partir de quatro lugares de mediação: 1) o cotidiano familiar (onde ocorrem os usos, consumo e práticas relacionados com a telenovela); 2) a subjetividade (que reelabora os conteúdos simbólicos da telenovela no sujeito); 3) o gênero ficcional (como estratégia de comunicação e de reconhecimento cultural); e 4) a mediação videotécnica (da televisão enquanto modo de produção e dispositivos técnicos de teledramaturgia). A construção dessas mediações não foi aleatória, mas decorreu das exigências metodológicas de integração das diversas dimensões do processo de comunicação e de abordagem multidisciplinar presentes na teoria das mediações. Uma das premissas básicas dessa teoria é que se supere o estado de segmentação a que foi reduzido o processo de comunicação, através da leitura de matriz lasswelliana que a pesquisa de comunicação institucionalizou. Por isso, a relação de “mão única” é deslocada por uma malha de interações recíprocas entre a “produção”, o “produto” e a “recepção”. Essa malha de interações não é algo que foi descoberto no momento da análise, após o trabalho de campo, mas está imbricada no próprio plano metodológico (design) da pesquisa, onde, por exemplo, resolvemos fazer “entrevistas de gênero” junto ao receptor, que foram integradas na análise do corpus gravado da telenovela, que é o material básico da mediação de gênero. E assim fizemos sucessivamente, combinando instrumentos técnicos que forneceram material de análise para as diversas mediações. Porém, a despeito dessa combinação, o plano da pesquisa revelou que cada mediação tinha sua incidência marcada num locus determinado, ou melhor, num espaço-tempo do processo de comunicação, integrando e ao mesmo tempo marcando a especificidade de cada mediação. Vale lembrar que um dos objetivos desta metodologia é tentar delimitar a especificidade de cada mediação envolvida, e que é a razão de sua existência.

Nível

Fonte

Lugar

Discurso

Estrutural

Posição de Classe

Contexto social

Sistema linguístico

Institucional

Família

Recepção

Pragmática

Individual

Subjetividade

Recepção

Pragmática

Videotécnica

Gênero ficcional Teledramaturgia

Produto Produção

Semântica Sintaxe

I) Para construir essa caracterização, partimos de Martín-Barbero, que afirma que a mediação é o lugar de onde se outorga sentido ao processo de comunicação e esse lugar, para ele, é a cultura. Através dessa aparente simples frase, o autor propôs o seu famoso deslocamento dos meios às mediações. Deixando de lado os mal-entendidos que isso provocou, vemos nessa proposta um duplo mérito. O primeiro é o de ter exposto o determinismo mediático ou o mediacentrismo a que os estudos de comunicação estavam confinados, o que não quer dizer que o meio (medium) não tenha importância, antes pelo contrário, a cultura como perspectiva de análise permite perceber os meios em sua real e multifacetada importância. O segundo mérito é o de ter descentralizado e pluralizado teoricamente a análise da comunicação, inserindo-a na ordem das práticas culturais. Vemos um enorme grau de potencialidade teórica na proposta desse autor, na medida em que ela converge para as pistas renovadoras abertas por Gramsci (1978) para o entendimento da cultura como campo de lutas (teoria da hegemonia), por Bourdieu (1983) com a tradução de elementos de estrutura para o nível das práticas socioculturais (teoria do habitus) e por Giddens (1989) com a introdução da estratificação do self na ação reflexiva (teoria da estruturação). Todas essas pistas se movem no sentido do pensamento complexo e transdisciplinar, não-reducionista e não-doutrinário (MORIN, 1986; WALLERSTEIN, 1996). O que resulta importante entender é que, do ponto de vista metodológico não há relações diretas entre os componentes do processo de pesquisa da comunicação – receptor, meio, mensagem, emissor, mas toda relação entre eles é mediada, inclusive o meio é mediação. Além disso, as mediações só ganham sentido ao serem relacionadas entre si dentro de um determinado contexto, independente do campo específico sobre o qual se esteja trabalhando.

O quadro 1 mostra graficamente esta concepção.

II) A concepção de mediação permite pensá-la como uma espécie de estrutura incrustada nas práticas sociais (cotidiano) das pessoas e que, ao realizar-se através dessas práticas, traduz-se em

11

3

Orozco parte da necessidade de tornar a conceituação de Barbero mais concreta e, para isso, vem trabalhando numa tipologia de mediações que se encontra em construção (veja-se as distintas publicações), a qual, como toda proposta, exige burilamento na definição e na delimitação de cada uma das mediações propostas. É certo que isso só se consegue através de sua utilização crítica em pesquisas empíricas. Na sua mais atual reelaboração, o autor propõe o seguinte conjunto de mediações: 1) individuais: “são as que provêm de nossa individualidade como sujeitos cognoscentes e comunicativos... são esquemas mentais mediante os quais as pessoas percebem, prestam atenção, assimilam, processam, avaliam, memorizam ou inclusive se expressam”; 2) institucionais: a produção de significados também resulta da participação do indivíduo nas diversas instituições: família, escola, empresa, grupos de amigos, vizinhança, etc.; 3) massmediáticas (no caso da TV é chamada de videotécnica): distintas tecnologias, linguagens e gêneros de cada meio; 4) situacionais: dizem respeito à situação, espaços e modos da recepção; 5) de referência: “características que se situam em um contexto ou ambiente determinado: a idade, o gênero, a etnia, a raça ou a classe social ... e dessa forma de estar se interactua com os meios de comunicação” (OROZCO, 1997). Nota: na presente tipologia, Orozco distribui o conteúdo da antiga mediação individual em duas – individual e de referência. Como ferramenta metodológica, essa tipologia nos foi muito útil, tendo servido como ponto de partida para a construção metodológica específica da presente pesquisa.

4

Também nesse sentido, ver: Caletti (1992) e Herrán (1994).

5

Em comentário metodológico à sua análise ideológica da imprensa que se tornou clássica, Verón resumidamente diz que há dois momentos na investigação em que a intervenção do que chama de “informação externa” ao material de investigação é fundamental, sendo que o primeiro é o momento de fixação dos critérios de seleção do corpus. Diz ele: “esses critérios são externos ao método e dependem da teoria sociológica do investigador: se este maneja um modelo de classes, provavelmente considerará significativo selecionar os subconjuntos de seu

1.POSIÇÃO SOCIAL DE CLASSE

múltiplas mediações. A fim de operacionalizar o conceito de mediação, fizemos uma releitura da tipologia proposta por Orozco (1991, 1996, 1997), chamada por ele de modelo da mediação múltipla3. Essa reelaboração foi pensada no sentido de contribuir para uma maior adequação metodológica à concepção de Martín-Barbero e, principalmente, no sentido de seu ajustamento aos requisitos concretos de nosso objeto de pesquisa, o que em outros termos significa torná-la conceitualmente clara e metodologicamente manejável. É o que tentamos expressar no quadro acima.

1) Mediação de nível estrutural (contextual) que se realiza através de diferentes habitus e estilos de vida. Lugar básico de produção e reprodução de distinção social (BOURDIEU,1988) e, portanto, da diversidade dos sentidos. 2) O seu uso na presente pesquisa não se dá como recurso de “determinação em última instância”, mas como tentativa de complexificar o tratamento dado à situação de classe nas atuais pesquisas de recepção, nas quais aparece nivelada a outras categorias como gênero, idade, etnia, ou confundida com estrato socioeconômico. Em outros termos, é tratada como mais uma mediação, não lhe sendo conferido o devido destaque como categoria explicativa de análise (LOPES, 1995). Portanto, tratamos de firmar uma posição epistemológica distintiva do presente estudo em relação ao modelo das múltiplas mediações de Orozco, incorporando ao modelo teórico das mediações uma mediação estrutural como uma dimensão de mediação onde se realiza o caráter social global do processo de construção do sentido na sociedade. Assim, consideramos que a produção de sentido é mediada e, portanto, se realiza através de muitas mediações. Porém, há de se entender que elas têm importância diversa (conforme o fenômeno em foco) e possuem pesos relativos no jogo da construção dos sentidos4. 3) O conceito de classe social aparece na presente pesquisa como diferença social que se expressa em habitus, que é produto de condicionamentos sociais associados à posição correspondente. O habitus faz corresponder um conjunto de bens e propriedades unidos entre eles por uma afinidade de estilo. Tentamos trabalhar a posição social etnograficamente no cotidiano familiar, mostrando que, apesar das lógicas das diferenças não se esgotarem na diferença social das classes, essa diferença articula as outras. Partindo dessa concepção, utilizamos o critério de classe social para organizar a nossa amostra5. Esta foi organizada através da categoria de posição de classe, segundo a qual as famílias em estudo aparecem dispostas num certo continuum sócio-espacial: família favelada (família 1), família de periferia (família 2), família de bairro de classe média (família 3) e família de condomínio fechado de classe média alta (família 4). Temos aí uma estratificação dentro das classes populares e uma dentro das classes médias.

III) Na base da armação dessa tipologia, está a tentativa de escapar do risco de tratar metodologicamente as mediações como se fossem mais uma versão atualizada da análise funcionalista da comunicação. Esta, por não explicitar os princípios ordenadores ou articuladores da análise, nem demonstrar que todo objeto é constituído por uma malha de categorias de importância empírica e teórica diversa, passava a pulverizá-lo numa infinidade de variáveis despojadas de qualquer significado social concreto e, com mais razão, de qualquer pertinência teórica. Tratamos então de evitar esse simplismo metodológico. No quadro, as mediações aparecem articuladas e designadas por: Nível: indica o plano da dimensão ou inserção estrutural da mediação. Na presente pesquisa, os níveis com que trabalhamos são: estrutural, institucional, individual e técnico. Fonte: indica a mediação tomada através de sua concretização em objetos “observáveis”. Elegemos como fontes de mediação: a posição social de classe, a família, a subjetividade, o gênero ficcional e o formato. Lembramos aqui que, para serem manejadas metodologicamente, as mediações foram submetidas a um processo de decupagem em categorias ou indicadores empíricos. Lugar: sem desconhecer que o processo de comunicação é eminentemente relacional, nele foram identificados loci de mediação que são: o contexto global, a recepção, o produto e a produção. Vale lembrar aqui que assumimos a recepção como uma perspectiva de análise que vem renovando os estudos de comunicação no sentido de propor uma (re)integração dos elementos do processo de comunicação.

2.COTIDIANO FAMILIAR

Discurso: indica qual o âmbito de discurso em que a mediação se insere. Esses âmbitos são: a sintaxe (relações dos signos entre si), a semântica (relações dos signos com o que representam) e a pragmática (relações dos signos com seus usuários).

1) A importância crescente do cotidiano familiar fica demonstrada nos recentes estudos de recepção de televisão (Morley, Silverstone, Lull). 2) As teses do consumo como capital cultural distintivo de Bourdieu são refinadas ao se tomar a família como mediação entre a estrutura de classe e o indivíduo. Lugar primeiro também de construção de habitus e do gosto.

Algumas observações sobre as mediações escolhidas para este estudo de recepção

12

3) Participante da construção do repertório compartilhado. 4) Uma das mediações de nível técnico e que atua no nível sintático do produto. Resta concluir nesta exposição do Quadro 1 que as mediações escolhidas no presente estudo tem por CENÁRIO o espaço familiar e a chamada COMUNIDADE DE INTERPRETAÇÃO só poderia ser a família, como instituição de socialização básica e também fonte de expressão de outras comunidades de interpretação interiorizadas por seus membros (escola, igreja, clubes, etc.).

3) A dinâmica familiar é de importância fundamental para entender as diferentes apropriações/construções de sentido sobre a telenovela. 4) O espaço/tempo das rotinas e práticas cotidianas são o cenário imediato onde se dá a situação de assistência da telenovela. Ainda, os espaços de circulação da telenovela são constituídos principalmente por relações transfamiliares. 5) A renovação conceitual de cotidiano como micro-espaço complexo e não apenas de reprodução e alienação. É constituído por indicadores concretos das desigualdades e do arranjo cultural híbrido, que é o modo de vida em países de modernidade tardia como o nosso. 6) A mediação institucional é captada no interior da família (cultura familiar) e também em suas conexões com outras instituições das quais seus membros participam (escola, igreja, trabalho). A forma de cobrir essas conexões não foi a de acompanhar as pessoas nesses cenários, mas de captá-las através das internalizações de seus valores expressas no cotidiano familiar.

Articulação das mediações A estratégia metodológica para articular as mediações selecionadas segue mais ou menos o seguinte esquema: Cotidiano e Subjetividade: mediações localizadas na recepção e reapropriadas no Gênero e na Videotécnica. Mediação de nível pragmático. Gênero: mediação localizada no produto e reapropriada no Cotidiano, Subjetividade e Videotécnica. Mediação de nível semântico. Videotécnica: mediação localizada na produção e reapropriada no Gênero, Cotidiano e Subjetividade. Mediação de nível sintático.

3.SUBJETIVIDADE 1) Mediação pouco trabalhada na recepção, a despeito das referências feita ao “sujeito”. 2) Capta os processos de construção de identidades e sensibilidades que operam na interação indivíduo-pequena tela. 3) Permite individualizar as relações entre as histórias de vida de cada membro da família na sua relação com a telenovela. 4) Mediação que atua dentro das práticas sociais como organizadora cognoscitiva (interpretativa) da atividade intencionada (“agency”, para Giddens, 1989) do indivíduo.

O protocolo metodológico das mediações Uma estratégia multimetodológica que correspondesse à abordagem multidisciplinar das mediações levou-nos a combinar várias modalidades de técnicas de pesquisa de modo que cada uma das mediações pudesse ser explorada, ou melhor saturada por dados empíricos de variada angulação. Sabemos que os dados colhidos são uma construção do investigador que os constrói com instrumentos teóricos e conceituais tanto quanto através dos instrumentos técnicos que escolhe. A conformação técnica dos dados é uma questão epistemológica dentro da pesquisa e ela foi tratada como tal (BOURDIEU, 1975). A pluralidade de nossos instrumentos técnicos pode ser entendida por analogia às variações de enquadramentos e angulações realizadas pelas câmeras na produção de uma imagem, conotando-lhe múltiplos sentidos. Por exemplo, fizemos entrevistas individuais e também grupais, temáticas (focalizando cada mediação) e também histórias de vida. É claro que houve redundância de dados, mas percebemos que o sentido de um mesmo dado ia se completando de acordo com o instrumento utilizado. É privilégio da pesquisa qualitativa promover a convergência de técnicas (inclusive quantitativas) no trabalho de campo e no tratamento dos dados, o que, no nosso caso, permitiu-nos fazer uma verdadeira exploração metodológica para a pesquisa de recepção. O resultado está sintetizado no Quadro 2.

4.GÊNERO FICCIONAL 1) A telenovela, tomada como narrativa de matriz popular, portanto cultural, de produção/reconhecimento de sentidos. 2) Dispositivo ativador de competência cultural e produtor de repertório compartilhado entre produção e recepção. 3) A telenovela brasileira: modelo de narrativa híbrida que transgride fronteiras de gênero. 4) Uma das duas submediações pertencentes à mediação técnica e que atua no nível semântico do produto. 5. VIDEOTÉCNICA 1) Telenovela como produto televisivo submetido a condições específicas de produção: organizativas e técnicas. 2) O reconhecimento de dispositivos videotécnicos na recepção.

13

5

corpus tomando em conta relações entre variáveis de classe social e algum dos processos de comunicação (emissão, transmissão ou recepção)” (VERÓN, 1971, p. 188).

O protocolo metodológico apresentado acima foi organizado com a intenção de desenvolver estratégias que permitissem a aproximação à recepção da telenovela vista como experiência cultural das pessoas, além de, como já dissemos, partirmos de uma crítica às insuficiências metodológicas quando se busca compreender as formas de apropriação do discurso da telenovela. Ele mostra, fundamentalmente, que a armação metodológica da pesquisa foi equacionada a partir das mediações que operam na recepção de uma telenovela e aponta o desenho metodológico em dois momentos da pesquisa: a coleta dos dados e o tratamento dos dados. O momento da coleta dos dados se deu através do trabalho de campo realizado com quatro famílias e sobre o corpus de uma telenovela. Nas famílias exploraram-se as quatro mediações: o cotidiano familiar, a subjetividade, o gênero ficcional e a videotécnica. Os critérios teóricos de seleção das mediações e das famílias já foram previamente discutidos. O trabalho de campo com as quatro famílias combinou um conjunto de dez técnicas, sendo uma quantitativa: 1) o questionário do consumo (QC) e nove técnicas qualitativas: 2) observação etnográfica (OE), entrevistas individuais semi-estruturadas: ( 3) do cotidiano (EC); 4) da subjetividade (ES), 5) do gênero (EG) , 6) da videotécnica (EV) e 7) da produção (EP); as entrevistas individuais não-estruturadas: 8) a história de vida (HV) e 9) a história de vida cultural (HC) e entrevista coletiva não-estruturada: 10) o grupo de discussão (GD). O corpus da pesquisa foi constituída pela gravação completa em vídeo da telenovela A Indomada e dele foi extraído um corpus menor formado por sequências escolhidas pelas famílias e que constituiu a telenovela reeditada: TVN(R). Esta foi estrategicamente usada no grupo de discussão. O trabalho de campo estendeu-se por oito meses (maio a dezembro de 1997) enquanto a telenovela estava no ar, a qual foi sistematicamente assistida junto com as famílias. O trabalho de campo também recolheu a sinopse e o clipping (matérias dos mídia sobre a telenovela). O segundo momento da pesquisa, o tratamento dos dados, foi desenvolvido através das seguintes etapas: 1) a transcrição dos dados constantes em todos os instrumentos de coleta; 2) a tabulação desses dados, por cada uma das mediações, através do programa de computador WinMax 97 (software para pesquisa qualitativa de Udo Kuckartz, Alemanha), que foi utilizado na análise de todas as mediações, à exceção da videotécnica. Esta foi trabalhada através das técnicas de decupagem e de digitalização; 3) a análise específica de cada mediação: o cotidiano familiar produziu estudos de caso; à subjetividade foi aplicada a análise hermenêutica; à narrativa da telenovela, a análise de gênero e à videotécnica, a análise de fluxo. Cada uma das mediações foi trabalhada a nível descritivo e interpretativo.

Quadro 2: Protocolo Multimetodológico das Mediações

Mediações

Cotidiano familiar

Subjetividade

Gênero ficcional

Videotécnica

Coleta dos dados 1.Trabalho de campo: 4 famílias Téc. Quantitativa

QC

QC

QC

Téc. Qualitativa

OE - EC

ES

EG

EV

HV

HV

HV

EP

HC

HC

HC

GD

GD

GD

GD

TVN (R)

TVN (R)

TVN (R)

TVN (R)

Sinopse

Sinopse

Clipping

Clipping

Todos

Todos

Todos

Winmax

Winmax

Decupagem Digitalização

An. Mediações Subjetivas

Análise de Gênero

Análise de fluxo

2. Corpus:TVN grav.completa

Tratamento dos Dados 1.Transcrição instrumentos

Todos

Winmax 2.Tabulação por mediação Categorização

2.Análise

Estudos de caso

Legenda: QC: Questionário do Consumo HV: História de Vida OE: Observação Etnográfica EP: Entrevista da Produção EC: Entrevista do Cotidiano HC: História de Vida Cultural ES: Entrevista da Subjetividade GD: Grupo de Discussão EG: Entrevista do Gênero TVN(R): Telenovela Reeditada EV: Entrevista da Videotécnica

14

Conclusões

Referências ALASUUTARI, Pertti. Qualitative method and cultural studies. London: Sage, 1995.

Ao cabo de um processo bastante longo como foi o deste projeto, desde a sua concepção até o relatório final, nossa primeira impressão foi a riqueza e a diversidade das mediações envolvidas, do que resultou uma análise multifacetada. Aqui, porém, apenas listamos os principais resultados da construção metodológica que foi objeto deste texto. 1. O objetivo central de nossa pesquisa buscava responder à insatisfação com a operacionalização metodológica da perspectiva teórica das mediações. A proposta em fazer uma “exploração metodológica” na recepção da telenovela mobilizou esforços, tanto no sentido de uma concepção multidisciplinar e multimetodológica do projeto, como de sua aplicação. Por isso, tentamos fundamentar e explicitar as decisões e opções tomadas ao longo de cada fase da pesquisa e, sobretudo, fizemos um relato minucioso sobre o emprego de cada técnica e uma reflexão detida sobre a experiência de campo e o tratamento dos dados. Podemos daí afirmar que nosso primeiro resultado é termos feito uma proposta metodológica concreta para a pesquisa de recepção. Ajustá-la, adaptá-la, modificá-la, é o que agora se espera através de novas experiências de pesquisa. Conforme verificamos, até agora são muito poucas as pesquisas sobre as mediações no país e, a nosso ver, muito se deve à complexidade dessa perspectiva teórica. Temos, portanto, a expectativa de podermos contribuir com nossa proposta metodológica para alavancar mais pesquisas nessa orientação. 2. Um segundo resultado foi o de termos mostrado como operam as mediações no processo de recepção de telenovela. Operar é o termo, porque mediações são dispositivos embutidos em práticas: práticas domésticas, cotidianas, subjetivas; práticas narrativas, práticas profissionais, técnicas. Neste sentido, ficamos bem próximos à concepção de estruturação de Giddens (1989). 3. A pesquisa qualitativa não pode ambicionar à generalização de seus resultados. Ela se presta mais a ser laboratório de experiências que posteriormente podem ser reproduzidas. É o que temos em mente para uma próxima pesquisa de recepção, em que a combinação de técnicas qualitativas e do uso de programa de computação possa ser testada numa amostra maior.

BOURDIEU, Pierre et al. El oficio de sociólogo. México: Siglo XXI, 1975. _____. Pierre Bourdieu (org. Renato Ortiz). São Paulo: Ática, 1983. _____. La distinción. Madrid: Taurus, 1988. CALETTI, Sergio. La recepción ya no alcanza. In: LUNA CORTÉS, Carlos (coord.). Generación de conocimientos y formación de comunicadores. México: Coneicc/Felafacs, 1992. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994. CURRAN, James. El nuevo revisionismo en los estudios de comunicación: una revaluación. In: CURRAN, James, MORLEY, David e WALKERDINE, Valerie (comp.) Estudios culturales y comunicación. Barcelona: Paidós, 1998. FUENZALIDA, Valerio. La influencia cultural de la televisión. Dialogos de la comunicación, 17. Lima: Felafacs, 1987. GARCIA CANCLINI, Néstor. Culturas Híbridas. México: Grijalbo, 1990. _____. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1987. GONZÁLEZ, Jorge. La telenovela en família. Estudios sobre las culturas Contemporaneas. Vol. IV, nº 11. México: Un. Colima, 1991. _____. Metodologia y sociologia reflexivas. Estudios sobre las culturas contemporaneas, vol.V, nº 5, México: Un. Colima, 1993. GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1978. HERRÁN, Claudia. Un salto no dado: de las mediaciones al senti-

15

do. In: OROZCO, Guillermo (comp.). Televidencia: perspectivas para el análisis de los procesos de recepción televisiva. Cuadernos del PROIICOM 6. México: Un. Iberoamericana, 1994.

MURDOCK, Graham. La investigación crítica y las audiencias activas. Estudios sobre las culturas contemporaneas, vol. IV, nº 10, México: Un. Colima, 1990.

JENSEN, Klaus B; ROSENGREEN, Karl. Five traditions in search of the audience. European Journal of Communication, vol.5, 2-3, 1990.

OROZCO, Guillermo. Televisión y audiencias. Un enfoque qualitativo. Madrid: Ed. de la Torre, 1996.

LOPES, Maria Immacolata V. Estratégias metodológicas da pesquisa de Recepção. Intercom: Revista Brasileira de Comunicação, Vol.XVI, 2, 1993. _____. Recepção dos meios, classes, poder e estrutura. Comunicação & Sociedade, nº 23, S.B.Campo: IMS, 1995.

_____. Recepción televisiva. Tres aproximaciones y una razón para su estudio. Cuadernos del PROIICOM, n º2, México: Un. Iberoamericana, 1991. _____. (org.). Hablan los televidentes. Estudios de recepción en vários paises. Cuadernos del PROIICOM, nº 4, México: Un.Iberoamericana, 1992.

_____. Por um paradigma transdisciplinar para o campo da comunicação. In: Dowbor, Ladislau et al. Desafios da Comunicação. Petrópolis: Vozes, 2001.

_____. La investigación en comunicación desde la perspectiva qualitativa. México: IMDEC, 1997.

_____. et al. Vivendo com a telenovela. Recepção, mediações e ficcionalidade. São Paulo: Summus, 2002. LULL, James. La estructuración de las audiencias masivas. Dialogos de la Comunicación, 32, 1992.

POIRIER, Jean et al. Histórias de vida. Teoria e prática. Oeiras: Celta, 1995. SILVERSTONE, Roger. Televisión y vida cotidiana. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. De los medios a las mediaciones. Barcelona: Gustavo Gili, 1987.

THIOLLENT, Michel. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. São Paulo: Polis, 1980.

_____. Comunicación y cultura: unas relaciones complejas. Telos, nº 19, Madrid: Fundesco. 1989.

VERÓN, Eliseo. Ideologia y comunicación de masas. La semantización de la violencia política. In: VERÓN, Eliseo (comp.). Lenguaje y comunicación social. Buenos Aires: Nueva Visión, 1971.

_____. Experiencia audiovisual y desorden cultural. In: MARTÍN-BARBERO, Jesús e LÓPEZ, Fabio (eds.). Cultura, medios y sociedad. Bogotá: Ces/Un. Nacional, 1998.

WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. Lisboa: Ed. Presença, 1987. WALLERSTEIN, Immanuel et al. Para abrir as ciências sociais. Lisboa: Europa-América, 1996.

_____; MUNHOZ, Sonia (coord.). Televisión y melodrama. Bogotá: Tercer Mundo, 1992. MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Lisboa: Europa-América, 1986. MORLEY, David. Populismo, revisionismo y los “nuevos” estudios de Audiencia. In: CURRAN, James, MORLEY, David e WALDERDINE, Valerie (compl). Estudios culturales y comunicación. Barcelona: Paidós, 1998.

16

Recepção, ‘corpo-significante’ em circulação

Antonio Fausto Neto I UNISINOS

222

Nota Introdutória O tema que vamos refletir no contexto desta jornada destaca como seu ângulo principal a problemática da recepção, articulada a um determinado estágio do desenvolvimento da sociedade em vias de midiatização. Associa-se a presente discussão o conceito de circulação que, por longos períodos, teve problemas com os holofotes iluminadores das teorias e modelos da comunicação. Vários destes transformaram a circulação em uma “zona morta” e/ou em “ponto cego” (LUHMANN, 2000) – do processo da comunicação. Esta restrição talvez tenha a ver com o reconhecimento tardio – e problemático – da recepção como uma noção subordinada, por muitos anos, a modelos que a conceberam a partir da centralidade que teve a produção como um conceito hegemônico, para explicar o processo de comunicação. Apenas esta questão já nos pareceria interessante para ser transformada em objeto de uma discussão que, esperamos, venha ser feita nos ambientes acadêmicos de estudos e de pesquisa da comunicação midiática. Tais conceitos para serem examinados no estágio atual da “sociedade em vias de midiatização” trafegaram, segundo certas circunstâncias, nos percursos da jovem história da comunicação midiática. Não há tempo para nos ocuparmos de relato mais analítico sobre a natureza destes percursos. Mas alguma coisa deve ser dita sobre eles para que se entenda a importância que têm as mutações que sofrem e os efeitos de seus processos sobre a materialização e exteriorização de sentidos, no atual estágio da sociedade em vias de midiatização. Para fins didáticos e convergentes com as expectativas formuladas pelo tema desta exposição, e para que possamos explorar algumas hipóteses sobre os conteúdos a serem expostos, se faz necessário situar também, ainda que em linhas gerais, como os modelos desta área têm manejado, ao longo de um período histórico mais amplo, estes conceitos – circulação e recepção. Não vamos, como foi sublinhado, enveredar por uma pesquisa aprofundada sobre estes trajetos, mas chamar atenção sobre alguns aspectos a fim de que possamos situar alguns desafios sobre o estudo da recepção, no período atual da midiatização.

17

Uma prévia do texto foi apresentada na mesa Abordagens teórico-metodológicas para os estudos da recepção, da II Jornada Gaúcha de Pesquisadores da Recepção.

cia emissional a ser entregue, com adornos adicionais, ao universo da recepção. Neste modelo, emissor e receptor são compreendidos como entidades que são vistas como equivalentes, considerando-se a identificação entre os mesmos, sustentados por supostas garantias de uma falsa atividade simetrizante. No âmago deste modelo, que estruturava a comunicação como ato de transferência, ignorava-se a existência de outros conceitos que ali habitariam, como circulação e mediação. Os mesmos eram ignorados através de processos de naturalização: a circulação, apenas como uma “zona transporte” na qual a mensagem se deslocaria de um polo a outro sem apresentar nenhuma referência da sua existência em termos de manifestações ou algum tipo de singularidade. A mediação entendida pela presença da linguagem, mas sendo à mesma atribuída uma atividade instrumental a serviço das intenções e motivações dos atores em produção. Os envios e reenvios da comunicação face a face elaborados por operações de linguagens, nas suas mais diversas formas, foram desconhecidos enquanto complexas dimensões constituintes do trabalho de produção de sentidos. É pelo fato da linguagem não se constituir apenas em instrumento, mas agenciar uma atividade enunciativa entre sujeitos – situados em condições de produção e recepção de mensagens – que os sentidos elaborados na relação comunicativa não seguem circuitos e fluxos lineares e são, por natureza, indeterminados e imprevistos. A problemática da indeterminação dos efeitos já se situaria aí neste tipo de enquadre. Ou seja, nenhuma comunicação humana é “direta”, por oposição a mediada (VERÓN, 2013, p. 146). Ela é mediada pelas formas de linguagens que se instalam no território da circulação segundo trabalho que possibilita exteriorização de sentidos, e cujas materialidades são distintas de um polo a outro, em termos de sentidos. Foram muitas consequências desta concepção do ato comunicacional, que serviram de referências para orientar proposições e pesquisas de várias disciplinas das ciências humanas e sociais, além da comunicação. Possivelmente, a afirmação que segue condensa, exemplarmente, os fundamentos e alcances do paradigma linear e determinístico: “é a partir do ponto de vista do ator e de suas intenções que se deve ter um discurso sobre a totalidade da circulação (...)” (VERÓN, 2004, p. 84). Ou seja, é a partir de um determinado lugar de fala e de seus fundamentos que a linguagem é acionada e a circulação é compreendida como um âmbito no qual se pavimenta, como resultado, a questão dos sentidos.

Linearismo ou indeterminações?

1

LASSWELL, Harold. The structure and function of communications in society. In: The communications of ideas. Bryson (org.). Nova Iorque: Editora Harper, 1948.

Grosso modo, o modelo que inspirou por longos anos – e ainda mantém suas “patas” nos espaços mentais e cognitivos de muitos pesquisadores – trata de englobar problemáticas distintas – a de atores em situação de produção e de recepção –, seja na esfera interpessoal, ou no âmbito social-midiático – como segundo articulação inspirada em dimensões causalistas e lineares. Sua compreensão sobre o comunicacional enfatiza a lógica de transportabilidade, no sentido de situar a performance de um determinado polo – emissão – como instância produtora e dinamizadora de mensagem a ser desferida na direção de um segundo polo – recepção. Segundo o mesmo modelo, a instância que engendra tal “ato transmissional” formula também convicções sobre a sua atividade. Considera que os resultados do que é por ela transferido gerarão os efeitos previstos pela órbita emissional na instância da recepção. Ou seja, sustenta-se na argumentação causalista, segundo a qual se manifestaria uma relação de causa e efeito entre o ato de E e o seu resultado sobre R. Resulta admitir que, apesar da dinâmica entre estes polos constituir um elevado grau de assimetria, este problema foi histórico-social e comunicacionalmente naturalizado. Sua ênfase destacava o funcionamento de uma “mecânica unilateral” por um dos polos imbuído de específicas competências, as de monitorar, segundo feedbacks determinados, a ratificação do que previam suas ações, em termos de intencionalidade e motivação. Possivelmente, poder-se-ia dizer que, já neste modelo, se anteciparia um certo corolário (o de que uma mensagem em transmissão produziria apenas efeitos previstos por seu emissor) sobre a questão dos efeitos, cujas proposições somente foram desmentidas muito tempo depois. Tal concepção não leva em conta lógicas, operações e elaborações que seriam realizadas da parte do outro polo, na medida em que este seria considerado apenas como uma estrutura recipiente... E, nestas circunstâncias, somente poderia se manifestar a partir dos efeitos de uma atividade discursiva, reunindo enquadres e lógicas da atividade emissional. Nesta concepção e noutras primas-irmãs, não se leva em conta nenhuma admissibilidade de qualquer noção de processos de intercambialidade de sentidos. Devemos, porém, levar em conta que este modelo é complexificado, em seguida, no sentido de produzir a transferência do ato informacional, segundo dupla ação. Trata-se do modelo que prevê o “fluxo da comunicação em dois tempos”. Mas a lógica de sua trajetória conserva elementos essenciais das características do paradigma lassweliano - quem diz o que, através de qual canal, a quem e com quais efeitos1. Preserva a lógica linear, determinista e causalista do modelo canônico, ou seja: mesmo com a presença de um elo intermediário, este está a serviço da retificação de uma encomenda que lhe foi confiada pela instân-

Um ligeiro balanço Ao longo de muitos anos, os equipamentos científicos das ciências sociais e humanas que investigaram as problemáticas afins

18

à produção de sentidos desconheceram ou foram indiferentes ao que aconteceria do lado da recepção. A despeito da importância que teve a problemática dos “ruídos”, das “dissonâncias cognitivas” e do “efeito boomerang”, manifestados em mensagens geradas em circuitos causalista-linear, a problemática da recepção levou muitos anos para ser reconhecida como objeto de investigações sistemáticas. Seja porque as disciplinas emergentes não estavam preocupadas com este tipo de objeto, seja também porque não reuniam instrumentos analíticos consistentes para enfrentar a compreensão de novos objetos, distintos e problemáticos, em relação a temas por elas eleitos. Podemos mesmo dizer que, quando o aparecimento da “escola americana” que examinou os mass communications, nas suas diferentes questões, o fez não em função da complexidade das problemáticas por eles suscitadas (como a da recepção). No lugar desta questão, metas mais específicas se apresentavam como as que visavam expandir e mesmo convalidar seus protocolos de investigação, enquanto modelos e “receitas” que seriam depois exportados para servirem de referências inspiradoras da pesquisa da comunicação, que se fez entre os anos 40 e final dos anos 60, no cenário acadêmico internacional. Neste contexto das investigações formuladas pelos chamados “pais fundadores”, cujos relatórios foram traduzidos em muitas línguas, não se deu importância mais substantiva àquilo que seriam os primeiros intentos de se examinar a questão dos efeitos para além da perspectiva causalista. É o caso de uma espécie de primeiro estudo etnográfico sobre os efeitos da emissão radiofônica “A Guerra dos Mundos” – a invasão da terra pelos marcianos, que examina esta manifestação e suas repercussões, segundo instrumental analítico para além dos umbrais metodológicos da vertente apenas dos mass communication (CANTRILL, 1940). Este primeiro sopro de diferença metodológica somente vai ser situado no âmbito da literatura mais analítica sobre a comunicação midiática muitas décadas depois. Muitas vertentes se voltaram para estudar este enigmático lugar – a recepção – que recebeu muitas nomeações. De um modo rápido, fazendo uma brevíssima passagem sobre alguns momentos e seus respectivos enquadres conceituais construídos. Pela mão de lógicas e formulações funcionalistas, problemáticas dos efeitos sobre audiências aparecem associadas aos estudos pioneiros sobre comportamento de eleitores diante de decisões em processos eleitorais, muitas delas semantizadas por ações midiáticas; ao poder dos mass medias em agendar decisões de eleitores, a partir de sua exposição a coberturas jornalísticas; as correlações entre violência e emissões sobre a temática segundo a disseminação fílmica na TV. Num contexto um pouco distante dos esquemas funcionalistas, focava-se o receptor na sua relação com o nicho midiático, valorizando o papel

das diferentes práticas sociais como instâncias de mediação. Dentre elas, aquelas de ordem técnica de cuja interposição entre as ações entre produtos e receptores resultam as possibilidades de se entender, por exemplo, as relações entre os sistemas midiáticos e seu entorno – o mundo dos indivíduos. Disciplinas das ciências sociais passam a se ocupar com a emergência da técnica e, ao mesmo tempo, com o aparecimento de coletivos – as massas, multidões, públicos, aglomerações, coletivos – particularmente as relações destes últimos com dispositivos técnicos em ascensão, os meios de comunicação. As formulações disciplinares para captar o funcionamento das multidões, especialmente suas reações face à técnica, valorizaram largamente a importância de disciplinas e instrumentais analíticos voltados ao estudo dos efeitos das técnicas coletivas de difusão sobre os atores desprovidos de defesa, em termos de equipamentos psicossociais para enfrentar a potência destas técnicas sobre a produção dos comportamentos. É o tempo em que aparecem estudos sobre as massas, no sentido de desvelar o mundo das “audiências estatísticas”, das “multidões organizadas”, ou “multidões solitárias” em busca do conhecimento do que se passaria no âmbito da “alma coletiva”. São os tempos que emergem grandes disciplinas psicossociais (FREUD, 2013; LE BON, 2008; TARDE, 2005) que visam, como projeto, compreender os efeitos da técnica sobre o mundo mental dos indivíduos. A exceção destes grandes investigadores da mente, e de alguns ensaios de inspiração filosófica, a ciência social vigente não tinha como projeto a questão das afetações da técnica sobre os indivíduos. Salvo quando eram acionadas pelas preocupações sistêmicas, no sentido de responder a indagações mais amplas, de caráter causalista, sobre que tipos de efeitos têm sobre o comportamento dos indivíduos e da organização social a atividade da ação sócio-técnica-organizada, isto é, a ação dos mass medias? Esta indagação de ordem sistêmico-estratégica gera o tempo áureo das pesquisas sociais aplicadas, segundo ações administrativas e institucionais, no bojo das quais têm origem os primeiros centros de pesquisa em comunicação. E no seio deles, os primeiros estudos sobre a recepção que aparece nomeada como uma categoria muito difusa. O foco dos estudos se volta para coletivos difusos, como a “multidão solitária”, e somente muitos anos após retoma-se a singularidade dos indivíduos. A tese de que os mesmos se encontrariam em uma situação de total nudez psicológica face às técnicas de massa é recusada por outros processos observacionais que tratam de mostrar o funcionamento de outras operações significando outras relações deles com as mídias. As multidões “abandonam” suas atividades mecânicas ou contemplativas, hipnotizadas pelos efeitos das técnicas de massa, engendrando outro tipo de relação, instituindo circuitos interpretativos mediante saberes que são desenhados, segundo outras lógicas

19

de caráter não linear. São operações que mostram processos outros através dos quais as mensagens são apropriadas e que remetem às dimensões inventivas de outros esquemas simbólicos (CERTEAU, 2006). Estas manifestações chamam atenção para a existência de novas relações entre agentes de produção e de recepção de mensagens. Dos estudos sobre esta nova dinâmica, emite-se o ponto de vista segundo o qual “entre produção e recepção, o sentido não é calculável uma vez que os processos de comunicação são sistemas distantes a noção de equilíbrio, circunstância que não possibilita a realização da ‘pragmática do ator’ que se forjaria em torno das noções dentre outras, da intenção” (VERÓN, 2004). A recepção, que em certo momento aparece como um déficit às pretensões do modelo linear, passa a mostrar indícios de um “desajuste” relacionado com o modo acionalista de produção de sentido. Suas práticas ensejam níveis de desarticulações às lógicas dos esquemas de produção, assim como marcas do funcionamento de uma outra atividade que se engendra a partir de racionalidades que se fundam para além da órbita emissional.

Novas Articulações Mesmo que ainda em um contexto no qual a “maquinaria midiática” tem uma centralidade, observa-se a importância crescente de operações realizadas no âmbito da recepção, que apontam para registros de apropriações da oferta midiática, em divergência com os postulados emissionais. As divergências entre os dois polos são elevadas ao status das pesquisas que centram seus olhares, desta feita, para a existência de articulações entre os dois polos, mas que não se instituem em torno de lógicas de convergências. O conceito de “contrato de leitura” assume a mirada sobre os efeitos. A questão é buscar a construção de pactos em torno dos quais produtores e receptores pudessem articular suas “políticas de sentidos” em torno do funcionamento de suas lógicas e suas diferenças interpretativas. Já não estamos mais no cenário da comunicação linear, mas nas paisagens nas quais a produção comunicacional se faz em meio a complexos processos de negociação que levam em conta diferenças e indeterminações. A comunicação é muito menos uma convergência de estratégias e muito mais intercambialidade fundada na complexidade de cruzamentos de múltiplas gramáticas, postulados, operações, etc. de sentidos. Trata-se de um cenário que aponta para o processo comunicacional estruturado em torno de estratégias diversas, em detrimento de regras que unificariam as possibilidades de produção de sentidos. Num contexto macro, pode-se dizer que se trata de uma atividade sígnica fomentada por instâncias institucio-

20

nais e individuais que fazem entrelaçar as marcas de suas diferenças, articulando a ação comunicacional sob a égide de imprevisto de sentidos. São também operações semióticas de várias ordens, atravessadas por várias matérias significantes e onde se trava a produção e discursividades sociais em suas diversidades.

Uma nova arquitetura O avanço dos processos de midiatização sobre a organização e o funcionamento social aponta desafios para o mundo interno dos sistemas que auto-organizam sua atividade de exposição e de ofertas de sentidos, mas igualmente para os coletivos que são por tais processos transformados e recortados; também para o ofício da pesquisa, especialmente para os instrumentais que se voltam para o estudo destas transformações. Sobre este último registro, convém lembrar que instrumentos e categorias dos quais nos valíamos para o trabalho de compreensão dos processos de recepção – as chamadas variáveis e indicadores objetivos – não mais dariam conta de determinados problemas sobre aspectos interacionais, os quais somente poderiam ser explicados e interpretados de certo modo predicativo. Projetavam-se noções sobre alguns coletivos que eram prefigurados através de construções estatísticas ou por cruzamentos de variáveis. Acontece que no âmbito dos estudos midiáticos – como, por exemplo, os que envolvem a televisão – alguns destes instrumentos se tornaram mais precários em virtude da emergência de fenômenos mais complexos e que transcendem as condições de exposição e consumo sobre os meios, conforme se davam no contexto da “sociedade dos meios”. Pesquisas sobre o consumo televisivo, realizadas no passado recente, sublinhavam também limites nos seus resultados apresentados. Dentre outras coisas, tentavam definir o consumo da TV através da escuta do grupo familiar, como um todo. Mas um dos impasses foi o reconhecimento de que não se pode homogeneizar padrões de consumo, em termos universais, na medida em que este explicaria e se efetuaria, em termos de operações que são realizadas, em termos singulares, pelos próprios atores sociais. Significa dizer que o consumo seria explicado e decidido segundo a experiência do indivíduo. Como bem acentua Verón: “existem muito menos coisas hoje em comum que possamos medir e das quais possamos formular uma teoria (...) as lógicas do vínculo social já não estão donde havíamos acostumados a ir buscá-la” (VERÓN, 2013, p. 276). Nota-se nesta afirmação uma crítica elegante a tradição da pesquisa causalista-linear, bem como um lembrete por onde a complexidade da recepção pode ser examinada, de um outro lugar.

intensificam, mas se expandem também entre tais universos, fazendo desaparecer noções como intervalo, distância e fazendo despontar aparentes contiguidades entre eles. Mas esta reconfiguração enseja, ao mesmo tempo, articulações e desarticulações, uma vez que a dinâmica provocada pela circulação faz com que tanto sistemas sociais – onde estariam instituições produtoras – e os sistemas individuais – onde se encontram instalados os receptores – se movam distanciados da noção de equilíbrio, situando-os, portanto, em um contexto de indeterminações. A circulação seria uma instância de produção de diferenças, ao invés de convergência de sentidos. As situações que envolveriam produtores e receptores os colocaria, estruturalmente, em posição de divergência. Isso resultaria do fato de que as gramáticas sobre as quais se fundariam suas mensagens a serem intercambiadas seriam engendradas em lógicas, sistemas de codificação e de postulados distintos, e geradores de derivações (TRAVERSA, 2014). Suas mensagens se contatariam em zonas nas quais se dariam interpenetrações destas lógicas e postulados, e destes processos resultariam novos tipos de mensagens que conservariam, de um lado, as singularidades dos seus respectivos processos enunciativos. Mas, é certo também que estas realidades seriam atravessadas por marcas outras que chamariam atenção para heterogeneidades significantes, trazendo registros de outras enunciações que se encontrariam segundo de complexas e dinâmicas intercambialidades discursivas. Ou seja, resultariam discursos que – não obstante terem sido enunciados, segundo condições de produção dos sistemas a que pertencem – seriam afetados largamente pela complexidade do trabalho da circulação, e tomariam novas formas, particularmente, na “zona de interpenetração” (FAUSTO NETO, 2012).

A circulação desponta De alguma forma, o reconhecimento desta hipótese acima formulada reconhece algumas questões como: a) as relações produção e recepção se fariam por parte de operações individuais, mas no contexto de uma atividade complexa circulatória, fazendo trabalhar estas duas dimensões, segundo lógicas distintas; b) reconhecer as tentativas por parte da instância produtiva de fazer regulações no sentido da recepção se manter fiel ao acesso e aos contatos com os produtos midiáticos; c) prenúncios que apontam a emergência de uma nova ambiência na qual tais divergências entre produção e recepção se multiplicariam; e d) necessidade de novos instrumentos que possam descrever, segundo outros olhares, tal dinâmica envolta em novas complexidades. Sabe-se que a intensificação de transformação de tecnologias em meios se expande sobre a ambiência, afetando a sua organização e o funcionamento de suas práticas, fazendo com que a vida e as interações dos indivíduos se estruturem em torno de relações sócio-técnicas. Complexificam-se os processos de produção/recepção, em termos de operações de sentidos. Operações técnicas-discursivas que até então estavam na órbita do campo midiático e dos seus peritos se disseminam para outros campos, cujas práticas produtivas tomam lógicas e operações midiáticas, como condição de produção para a construção de novos processos enunciativos. Velhos modelos de irradiação de mensagem e de feedbacks entre emissor-receptor dão lugar a complexos feedbacks que se manifestam de modo amplo, potencializados pelas dinâmicas de processos e fluxos de mensagens, afastando-se de postulados lineares. A circulação, até então situada como uma “zona de passagem”- ou geradora de um desajuste intransponível entre produção/recepção - estrutura-se em torno de uma outra pavimentação dando mostras visíveis de nova dinâmica de enunciações e muitas de suas marcas já podem ser descritas. A intensidade de operações técnicas enseja produção e fluxos de um maior número de mensagens tornando a sociedade mais complexa e menos homogênea. Desponta uma nova atividade circulatória que acentua a descontinuidade entre lógicas de produção (dos sistemas sociais) e de recepção (constituída por atores individuais), ensejando acoplamentos entre elas, mas que se realizam cada vez mais segundo postulados de divergência e não de convergência. Dinâmicas interacionais que outrora eram fundadas nas estruturas dos campos sociais, como grandes referências de inteligibilidades, são hoje dinamizadas por processualidades tecno-discursivas que se desdobram em bifurcações, deslocando a centralidade do protagonismo até então atribuído apenas ao âmbito das instituições sociais. Os processos complexificantes de interposição da técnica entre produtores e receptores se

A internet redesenha a recepção? Este processo aludido de intensificação da técnica como mecanismo de interposição entre produção e recepção, mas também como instância articuladora de novas interações, tem na internet seu principal dispositivo de organização de materialidades pelo qual sentidos são exteriorizados. Numa definição preliminar, se poderia dizer que a internet estaria produzindo uma transformação profunda na relação entre os atores individuais com os fenômenos midiáticos. Segundo ainda Verón, a internet enseja mudanças profundas nos modos de acesso que os atores fazem na produção discursiva, momento este que também incide no trabalho da circulação (VERÓN, 2013). Distante de ser considerada um meio, a internet seria um dispositivo que a partir de suas lógicas e outras, procedentes de práticas sociais diversas, ofereceria aos indivíduos novas condições de acesso ao conheci-

21

mento, aos dados e as suas relações - uns com os outros Enquanto uma ‘rede de acesso’, a internet instituiria uma nova dinâmica da circulação, na medida em que os dois polos da comunicação – produção e recepção – se constituiriam segundo novas relações, gerando uma nova paisagem interacional, o que em nossos escritos nomeamos como “zona de contato”. Como consequência, temos o esmaecimento/desaparecimento de fronteiras entre as clássicas posições de produção/ recepção, na medida em que qualquer um poderia se deslocar das fronteiras de espaços (público e/ou privado, ou vice versa), para coproduzir atos de enunciação. Não significa que tal acesso eludiria as procedências dos “lugares de falas” dos atores desta nova atividade enunciativa, e nem o apagamento de seus vínculos – institucionais ou pessoais – com os sistemas (social e individual) a que pertencem. Seu trabalho enunciativo traria consigo as lógicas e marcas de sua vinculação, mas revelaria também a complexidade de uma nova materialidade discursiva. A defesa do ponto de vista segundo o qual a internet não é um meio específico, apoia-se no argumento segundo o qual todas as matérias significantes e técnicas que precederam, são espécies de condição de produção para sua existência. Outro argumento lembra ainda que a internet, para além de suas próprias lógicas tecno-comunicacionais, é um efeito engendramentos que são realizadas na sua corporeidade pelas práticas sociais diversas, quando dela se apropriam. Além disso, enquanto dispositivo, a internet não pode restringir, a partir de uma única lógica, o acesso sobre ela, de todas as práticas sociais que dela se apropriam. Nestas condições, ela é convertida em um espaço no qual se travariam embates, lutas e disputas de sentido. A isso se soma um elemento essencial, um possível traço narrativo da internet: trata-se de uma produção discursiva que faz aparecer a noção de um novo coletivo, que se chamaria de internautas, mas cuja atividade enunciativa não deixaria de fora marcas enunciativas de uma inscrição de caráter individual (VERÓN, 2013). Ou seja, a internet desponta como um cenário e um dispositivo que faz emergir uma nova atividade interacional produção recepção.

status da recepção? De alguma forma, muitas práticas mostram que há graus de simetrias em um cenário no qual se organizam as condições de acesso dos indivíduos ao mundo da rede. Registros mostram performances que indicam uma gama de relações entre os indivíduos e a internet, distintos dos protocolos interacionais da “sociedade dos meios”. Há novas lógicas que não inibem trabalho de receptores de então, hoje convertidos em atores, realizando outras trajetórias, ao navegar pela internet (VERÓN, 2013). Há, contudo, outros problemas que não podem ser naturalizados na dinâmica de acesso e funcionamento das redes. Mas aqui procuramos falar, sobretudo, dos efeitos de um novo processo de circulação, principalmente, o deslocamento do então receptor deste lugar no qual esteve mergulhado, e que em outro momento, desvencilha-se deste para um outro estágio em que formula estratégias de apropriação da oferta midiática, segundo suas próprias lógicas e postulados. Desta feita, o receptor independe de muitas autorizações para jogar o jogo e, principalmente, para nele ter acesso. Um dos efeitos da midiatização é talvez o fato de que todas as ocorrências que nela ocorram, ou sejam por ela provocadas – inclusive suas causas –, terão suas marcas se manifestando na própria superfície da sua ambiência. São resultantes destes novos processos de circulação que vão gerar novas condições para novas possibilidades de exteriorização de sentidos. Neste contexto, o receptor não mais se dilui na massa e nem se abjeta nas multidões, mas se especifica enquanto um corpo, o “corpo-significante” enquanto instância de produção, mas também de circulação de signos. Um comentário final, ainda que de modo breve, sobre novos cenários de pesquisas sobre a recepção. Historicamente, produzimos inquietações iniciais sobre as potencialidades irruptivas das massas e das multidões e nos movemos entre conceitos, a fim de buscar um fio interpretativo para descrever suas características e dinâmica, tendo chegado a algumas noções que ficaram alcunhadas nas narrativas das ciências sociais. A título de exemplo, dentre elas, as noções de alma coletiva, multidões solitária, etc. Instrumentos quantitativos ensejaram recortes visando dar contornos mais precisos sobre a fisionomia e a corporeidade das massas, ao designá-las por outros coletivos, como “audiência”, “audiências organizadas” ou, então, como “audiências construídas”. Outros desenhos desenvolveram tipologias para explicar a constituição das massas, situando-as como “públicos”. E, em consonância com tais nomeações, chega-se ao conceito de receptor para atribuí-lo um significado abrangente, retirando sua especificidade de qualquer construção mais específica e singular. Mais do que uma entidade e uma categoria, o receptor existe, segundo dimensões biológica, simbólica e cultural. Sua vida está constituída pelo entrelaçamento de muitas dinâmicas, dentre elas, suas relações com as instituições e sistemas e, de modo específico, as instituições midiáticas.

Concluindo: receptor, um ‘corpo-significante’ Em tempos atuais, se afirma com frequência que a internet se apresenta como a referência principal dos processos de midiatização em desenvolvimento. Para tanto, gostaríamos de chamar atenção para algo sobre as condições de acesso à internet, por parte dos atores individuais, e da perspectiva de suas próprias práticas. Este aspecto se destaca de tal modo que se constituiria um elemento a diferenciar as condições de acesso dos indivíduos nos velhos e novos meios. Condições de igualdade de acesso poderiam transformar o

22

Suas ações são diluídas na captação de estratégias segundo olhares que se voltaram, possivelmente, mais para observações pré-construídas pelas teorias e menos por pistas que emanariam de suas próprias atividades. Vários dos seus passos têm sido rastreados e é justamente a captação de marcas de atividades que passam, por exemplo, pelo “corpo significante”, que transformam o receptor em uma espécie de um novo ator. Trata-se do ator, aquele que produz sentido no âmbito de processos e estratégias que envolvem lógicas conflitantes, as dos sistemas sociais e dos sistemas sócio-individuais, que é constituído pelo mundo dos indivíduos, mas que também nele se especifica. Por longo tempo esteve situado em uma posição “prisioneira”, seja das lógicas midiáticas ou então das lógicas dos processos analíticos das ciências. Tanto umas como outras o instalava como um efeito da manifestação acional de outros atores ou, ainda, como refém da oferta midiática. É o fato da comunicação se produzir na dinâmica de um funcionamento social , equidistante de processos de equilíbrios, que faz emergir as lógicas dos atores sócio-individuais, em divergências com as lógicas dos sistemas sócio-institucionais. Complexidade crescente, em termos individuais, alimenta os processos sociais e, particularmente, a relação dos indivíduos com as ofertas que se engendram na esfera da produção tecno-simbólica, de caráter social. Coloca-se, portanto, um novo desenho de cenário, como desafio à pesquisa. De um lado, muitas técnicas foram adotadas para se estudar a natureza e o funcionamento discursivo dos sistemas institucionais – como é o caso do sistema midiático. Mas, por outro lado, palavras que foram proferidas pelo mundo dos indivíduos, algumas delas foram apreendidas por protocolos de pesquisas definidas pelos sistemas acadêmicos, restando ainda, muito delas – dos receptores – serem ainda observadas. Chegou-se, por exemplo, a resultados como o reconhecimento de heterogeneidades entre um sistema e outro. Porém, o que está por ser feito é explicar as relações entre estas duas dimensões. Cada vez mais são enunciados discursos pelos quais os atores sociais constroem, sejam aqueles que mantêm níveis de ressonâncias com algumas gramáticas midiáticas, mas que deles se despregam, ao impor suas lógicas e operações da sua biografia como condições de produção. Os relatos que se fizeram no Brasil, no âmbito das manifestações de ruas, no ano passado, e outros que foram enunciados no contexto de grandes acontecimentos - como os se enunciaram sobre a superfície física do tapume da boate Kiss - trazem marcas de um trabalho enunciativo feito pelos atores sócio-individuais, que reúne muitas complexidades, em suas gramáticas, para serem capturados pelos processos analíticos. Nas primeiras, os manifestantes produzem o acontecimento segundo certas metodologias que contrariam as lógicas de captação e de apuração dos mesmos, por parte do sis-

tema midiático. Este é levado à deriva, manifestando os sintomas e os infortúnios do desamparo a que foi submetido na medida em que ficou sem meios para apreender/apurar o objeto. Nos relatos do tapume, ocorre o deslocamento dos atores para um determinado protagonismo; tornam-se produtores/receptores de um circuito de mensagens no qual viraram fonte e mantiveram seus vínculos com as próprias lógicas sobre as quais se edificou o tapume, enquanto um signo de celebração de muitos sentidos, dentre eles, o luto social. Concluímos com uma hipótese, quem sabe a provocar futuros estudos: o receptor é mais do que uma categoria, é um corpo-significante.

23

Referências BRAGA, José Luiz; et al (org.). 10 perguntas para a produção de conhecimento em comunicação. São Leopoldo/RS: Editora Unisinos, 2013.

LUHMANN, Niklas. Introdução a teoria dos sistemas. Petrópolis: Vozes, 2000. TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. São Paulo : Martins Fontes, 2005.

BLOOM, Harold. Um mapa da desleitura. Rio de janeiro: Imago Editora, 1995.

TRAVERSA, Oscar. Inflexiones del Discurso. Cambios y rupturas em las trayectorias del sentido. Buenos Aires. Santiago Arcos ed.: 2014

CANTRIL, Henri. The invasion from Mars. Princenton University Press. 1940.

VERÓN, Eliseo; LEVASSEUR, M. Etnographie d’une exposition. L´espace, le corps et le sens. Paris: Centre Culturel Georges Pompidou, 1989.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 2006.

VERÓN, Eliseo. La semiosis social. Barcelona: Gedisa, 1996.

CULIOLI, Antoine. Escritos. 1. Ed. Buenos Aires: Santiago Arcos editor, 2010.

_____. Esto no es um libro. Barcelona: Gedisa, 1999.

DAYAN, Daniel (org.). Em busca del publico. Barcelona: Editorial Gedisa, 1997.

_____. El cuerpo de las imagénes. Buenos Aires: Norma, 2001. _____. Los públicos entre producción y recepción: Problemas para una teoria del reconhecimiento. Porto: Cursos Arrábida, 2001.

DAYAN, Daniel; KATZ, Elihu. La television cérémonielle. Paris: Presses Universitaires de France, 1996.

VERON, Eliseo. Fragmentos de um tecido. São Leopoldo. Unisinos: 2004

FAUSTO NETO, Antonio. A circulação além das bordas. In: Mediatizacion, sociedad y sentido. Diálogos Brasil y Argentina. UNR. Rosário: 2010.

VERÓN, Eliseo; BOUTAUD, Jean-Jacques. Semiotique Ouverte. Paris: Hermes, 2007.

FAUSTO NETO, Antonio. Narratividades jornalísticas no ambiente da circulação. In: PICCININ, Fabiana; SOSTER, Demétrio de Azeredo (Orgs.). Narrativas comunicacionais complexificadas. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2012.

VERÓN, Eliseo. Do contrato de leitura às mutações na comunicação. In: MARQUES DE MELO, José, et al. A diáspora comunicacional que se fez na Escola Latino Americana. São Paulo: UNESCO/ Universidade metodista de São Paulo: 2008.

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

_____. Semiosis Social 2. Momentos, Ideas, Interpretantes. Buenos Aires: Paidos, 2013.

FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. Porto Alegre: L&PM, 2013.

WINKIN, Yves (org.). La nueva comunicación. Barcelona: Kairós, 1994.

LASSWELL, Harold. The structure and function of communications in society. In: The communications of ideas. Bryson (org.). Nova Iorque: Editora Harper, 1948. LE BON, Gustave. Psicologia das multidões. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

24

Desafios na construção de pesquisas de recepção em mídias

333

digitais em perspectiva transmetodológica

Jiani Adriana Bonin l UNISINOS

As transformações contemporâneas que estamos vivenciando no âmbito comunicacional-midiático suscitam reflexão e demandam labor para resituar a problemática da recepção de modo a dar conta das novas configurações que assume. Essa necessidade de redesenhar a problemática implica repensá-la tanto em termos das bases teóricas com as quais trabalhamos para entendê-la, quanto das orientações metodológicas que norteiam a construção de nossas pesquisas. Situar possibilidades, questões e desafios metodológicos relativos a essa empreitada é o que procuro fazer nesse texto1. Na concretização dessa proposta, inicio sinalizando alguns elementos relativos às transformações que se afiguram no ambiente comunicacional contemporâneo que afetam a chamada recepção, para então considerar possibilidades produtivas, aspectos e desafios que se colocam na construção da pesquisa voltada às apropriações das mídias digitais do âmbito propriamente metodológico. Uma prévia do texto foi apresentada na mesa Abordagens teórico-metodológicas para os estudos da recepção, da II Jornada Gaúcha de Pesquisadores da Recepção.

O contexto da digitalização e os desafios à problemática da recepção Vivenciamos contemporaneamente transformações nos processos de midiatização que desafiam a pesquisa comunicacional a problematizar de forma renovada o âmbito tradicionalmente designado de recepção. Recuperando alguns nuances históricos desse processo, assistimos, no século XX, à estruturação/expansão do campo das mídias, à sua penetração, acoplamento e ação nos diversos campos e dimensões da vida social. Esse processo acarretou mudanças no funcionamento de campos e instituições; nos modos de vida de sujeitos, coletivos e grupos sociais, afinadas com lógicas e significações midiáticas; na produção social de sentidos, que foi adquirindo a marca das matrizes, dos modelos e da racionalidade de produção de sentido das mídias. Configuraram-se culturas midiatizadas e, contemporaneamente, multimidiatizadas (MALDONADO 2002, 2008; VERÓN, 1997, 2014; MATA, 1999). Especificamente no âmbito da recepção, foram progressivamente se constituindo modos de existência marcados pela ação das mídias – que se inseriu na textura da experiência cotidiana (SILVERSTONE, 2005) – ou ethos midiatizados (SODRÉ, 2006). Os sujeitos passaram a desenvolver, também,

25

1

Esse texto é uma versão reformulada de questões desenvolvidas em Bonin (2013a, 2014a e 2014b).

2

Refiro-me a pesquisas por mim coordenadas, orientadas e acompanhadas no âmbito do PPGCC da Unisinos, na linha de pesquisas Cultura, cidadania e tecnologias da comunicação, vinculadas ao grupo de Pesquisa Processocom.

3

Vale lembrar que este é um dos legados que vertentes e propostas teóricas que avançaram para pensar os processos de recepção midiática nos deixaram. Temos, para citar algumas dessas propostas, aquelas desenvolvidas por pesquisadores dos chamados Estudos Culturais Britânicos, como também na Perspectiva Latino-americana da recepção construídas por pesquisadores da América Latina que, ao pensar as produções de sentido, as apropriações midiáticas dos sujeitos, buscaram situá-los cultural, contextual e historicamente. Para uma recuperação histórica de algumas dessas vertentes, ver Mattelart (1999) e Mattelart e Neveu (2004).

competências midiáticas no curso de suas trajetórias de vínculos com os meios (MARTÍN-BARBERO, 1997; LOPES, 2002). Mais recentemente, entre finais do século XX e início do século XXI, estamos vivenciando transformações potencializadas e concretizadas pelo processo de midiatização digital e por fenômenos como a convergência e a mobilidade. Esses fenômenos estão reordenando práticas e modos de produção, produtos e formas de vinculação das mídias massivas com seus públicos e deles entre si. Entre as mudanças que se afiguram, dissemina-se progressivamente o domínio de recursos e de práticas de produção tecnológica de comunicação e inauguram-se novas formas de participação, compartilhamento e geração de produtos culturais digitalizados por sujeitos produtores diversos. Redefinem-se os modos como os sujeitos participam dos processos e produtos midiáticos das grandes mídias quando elas se incorporam aos cenários digitais – o que leva a redesenhos de processos produtivos, de formas de vínculos com os públicos, de lugar-papel dos sujeitos nos processos, etc. Criam-se possibilidades, experimentações e concretizações de formas diversas de interação entre sujeitos e de produção simbólica compartilhada em novos desenhos de sociabilidades, constituídas em comunidades, redes, tribos, etc. (MALDONADO, 2013, CASTELLS, 1999, 2003; RECUERO, 2009; SÁ, 2001). Os sujeitos apresentam competências multimidiáticas desenvolvidas em suas trajetórias de relacionamento com as mídias. Paulatinamente reformulam-se também, no contexto digital, formas de exploração mercadológica, de vigilância e de controle (MATTELART, 2009). Corporações e empresas desenvolvem estratégias de exploração das produções de sujeitos e de grupos realizadas no mundo digital, assim como de aproveitamento mercadológico de espaços digitais para expansão de produtos desenhados para esses cenários. Redefinem-se, nesse cenário, as temporalidades sociais. As mídias massivas e digitais impulsionam processos de aceleração tecnocultural, de presentificação das experiências, ao mesmo tempo em que participam, com suas lógicas, de redesenhos em relação à construção/constituição de culturas de memória e de produção de esquecimentos. Encontramos, no ambiente digital, renovadas modalidades de produção de memória com possibilidades, recursos e linguagens multimídia. Agentes diferenciados têm chance de participar de processos de construção, de negociação e de disputas de sentidos dessas memórias. Emergem, ainda, formas organizativas de ativismo e de movimentos em rede, que expressam redefinições nos modos como se concretiza a ação social e a luta pela cidadania (SCHERER WARREN, 1999; CASTELLS, 2013).

Esses e outros aspectos apontam para a existência de uma realidade comunicacional complexa, multidimensional e de grande dinamismo em termos de velocidade das mudanças; realidade esta que traz desafios à pesquisa comunicacional, demandando a formulação de perspectivas teórico-metodológicas que respondam a essa complexidade. Uma linha produtiva para enfrentar esses desafios no campo metodológico encontra-se na perspectiva transmetodológica. Sinteticamente podemos dizer que essa perspectiva se define por articulação/entrelaçamento/confluência de métodos e procedimentos diversos que permitam inter-relacionar e potencializar a construção dos vários aspectos componentes das problemáticas comunicacionais (MALDONADO, 2013). Assinalo, na sequência, algumas possibilidades produtivas, elementos norteadores e desafios suscitados e demandados por pesquisas que temos desenvolvido, orientado e acompanhado nos últimos anos relativos à problemática das apropriações das mídias digitais inspirados nessa linha.

Possibilidades, questões e desafios metodológicos na construção investigativa As pesquisas de problemáticas vinculadas ao âmbito tradicionalmente chamado de recepção em mídias digitais que temos desenvolvido2 têm se voltado, grosso modo, a entender apropriações de ambientes digitais concretos realizadas por sujeitos, coletivos, comunidades, redes. Na construção arquitetural dessas pesquisas, um desafio está em articular devidamente o foco investigativo, definido pelo problema/objeto, aos processos de midiatização e, particularmente, de midiatização digital naqueles aspectos que são relevantes de serem considerados para a construção da problemática investigada. É importante lembrar que o particular se define também mediante seus vínculos com esses macroprocessos que lhes dão sentido, materialidade e concretude. Dada a relevância que os processos midiáticos adquiriram na constituição de nossas sociedades contemporâneas, como argumenta Maldonado (2011), eles afiguram-se para nós o contexto crucial de nossas problemáticas. E num cenário em que as mídias digitais ganham relevância nesses processos, pensar os contextos vinculados à midiatização digital é fundamental para o estabelecimento das relações de nossa problemática com a realidade em que se insere. Assim, perspectivar contextualizações que permitam reconstruir aspectos concretos da midiatização digital relativos ao âmbito específico in-

26

As apropriações, participações e produções midiáticas digitais dependem, também, das possibilidades efetivas de acesso dos sujeitos a essas mídias, assim como do domínio efetivo de competências tecnológicas e multimidiáticas para poder realizarem-se plenamente. (BONIN, 2013b, 2014a, 2014b; MALDONADO, 2000). Assim, vemos que o sentido das apropriações dos ambientes digitais, nas suas diversas possibilidades participativas/produtivas, também se define por aspectos vinculados àquilo que, em textos da cibercultura, é referido como o off line. E as relações entre essas dimensões não podem ser pensadas como vínculos entre âmbitos apartados, mas sim como realidades que se interpenetram. Lembremos que os sujeitos que se apropriam da internet são situados multicontextualmente, têm vinculações de gênero, a culturas regionais, institucionais etc. – dimensões estas também atravessadas e constituídas pelos processos de midiatização. Essa materialidade deve ser considerada para podermos entender devidamente as gramáticas de apropriação e produção comunicativa digital dos sujeitos/grupos investigados5. No âmbito das problematizações teóricas, tem sido importante em nossas pesquisas operar com os conceitos como construções a serem trabalhadas e aperfeiçoadas em estreita vinculação com as demandas dos fenômenos empíricos concretos, instigadas, alimentadas, suscitadas e confrontadas por eles. Seguimos, nesse sentido, os ensinamentos de Bachelard (1977) relativos à necessidade de profunda confluência e confrontação (contradança, diálogo) entre teoria e empiria. Por isso, nas perspectivas investigativas concretas, a construção teórica necessita, em seu caminhar progressivo rumo ao entendimento dos fenômenos estudados, estabelecer processos de confluência e de confrontação com elementos empíricos concretos para sua maturação. No nível de construção dos métodos e procedimentos investigativos reconhecemos, a partir da perspectiva transmetodológica, que distintos modelos, concepções, estratégias, desenhos e configurações de método devem ser considerados em termos de sua pertinência para a estruturação das pesquisas de recepção (MALDONADO, 2011). Trabalhar com a questão do movimento e do tempo não sincrônico é um expediente metodológico também necessário à pesquisa das apropriações midiáticas. Lembremos que os contextos que atravessam a problemática têm história e que também os sujeitos e suas apropriações só podem ser entendidos se levamos em conta suas trajetórias de vivências comunicacionais/midiáticas e socioculturais. No desenho metodológico de nossas pesquisas, as demandas de nosso objeto têm nos levado a investir em arranjos multi/transmetodológicos e na construção de métodos e procedimentos mestiços, orientados às problemáticas comunicacionais/midiáticas. Para

vestigado em suas vinculações com dimensões culturais, políticas, econômicas e/ou socioculturais relevantes para as problemáticas investigadas é um labor necessário. A dimensão institucional produtiva dos ambientes digitais investigados é outro elemento que não pode ser negligenciado. O lugar ocupado por instituições e agentes no campo comunicacional, suas posições, estratégias, interesses, são aspectos relevantes para entender a configuração de ferramentas e produtos digitais, as estratégias de constituição dos vínculos com os públicos, os poderes, os conflitos e, também, as apropriações que se realizam4. Outra dimensão a considerar é o caráter constitutivo e configurador que assumem os desenhos de recursos, linguagens e plataformas digitais materializado numa forma organizativa para a chamada atividade dos públicos, suas apropriações e produções. O equacionamento teórico da atividade produtiva dos sujeitos é outro desafio que se apresenta às nossas pesquisas. Nesse sentido, tenho acompanhado e participado de discussões relativas à mudança do estatuto do chamado receptor (alguns falam em duplo estatuto, de consumidor e de receptor) nos Gts voltados à problemática da recepção da Compós e da ALAIC. Entendo que a compreensão das apropriações requer pensar complexamente esses sujeitos. Eles são produtores, consumidores e/ou fãs, mas também são sujeitos situados e constituídos desde suas trajetórias socioculturais concretas, vinculadas a contextos micro e macrossociais. Assim, precisamos investir na construção de problemáticas que considerem a complexidade dessas dimensões envolvidas na sua inteligibilidade. É importante considerar que certos esforços de pesquisa que buscam pensar a atividade dos sujeitos nas mídias digitais, na tentativa de pensar as possibilidades e novidades que elas inauguram, simplificam a complexidade desse processo, ao assumir que a recepção agora produz conteúdos sem constrições, contradições, em processualidades onde estariam ausentes conflitos e poderes. Formulações dessa natureza reeditam a linearidade do processo comunicacional já concebida na trajetória do campo em perspectivas funcionalistas que dissolviam as complexidades, os poderes e as dissimetrias constitutivas dos processos comunicacionais/midiáticos (MATTELART, 1999). Em suas concretizações, os processos midiáticos digitais apresentam desenhos diferenciados de possibilidades participativas que é necessário levar em conta; eles são ordenados/configurados por lógicas e recursos distintos, materializados nas ferramentas digitais concretas, no desenho de funcionalidades, nos usos realizados por agentes e espaços institucionais, nos conteúdos propostos. A não problematização desses elementos leva ao risco de dissolver o papel configurador desses âmbitos nas produções e apropriações que investigamos.

27

4

A necessidade de considerar os contextos de produção midiática como parte configuradora da pesquisa de recepção está presente nas proposições de Martín-Barbero (1997).

5

E aqui continuamos a operar e a considerar produtivo o conceito de mediações em termos de pensar as múltiplas dimensões constitutivas e configuradoras dessas apropriações e produções, cuja inteligibilidade tem na tecnicidade um elemento configurador fundamental mas que especifica, se particulariza e se materializa diversamente em inter-relação com outras dimensões do real concreto (MARTÍN-BARBERO, 1997, 2002).

alimentar essas construções, o investimento em termos de pesquisa metodológica faz-se necessário. Visualizar métodos e procedimentos como teorias em ato, dominar seus pressupostos, entender como fabricam os objetos, repensá-los e reformulá-los para dar conta do foco comunicacional/midiático em nossas investigações são diretrizes orientadoras de nossos programas de investigação metodológica. Essa reflexão, aliada à consideração dos requerimentos das problemáticas e às especificidades do fenômeno empírico investigado, vislumbradas através das pesquisas exploratórias, permitem trabalhar na reinvenção criadora dos procedimentos. Alimenta, também, os esforços de articulação de métodos em arranjos que buscam superar limites e obstáculos epistemológicos contidos em cada um. Nesse sentido, temos trabalhado para pensar procedimentos metodológicos capazes de dar conta de demandas, pistas, constatações, fracassos e elementos suscitados pela pesquisa exploratória e que depois ganham consistência através de elaborações metodológicas. Fortalecemos, nesse processo, o reconhecimento da necessidade de que os métodos considerem as particularidades dos contextos, das culturas, das linguagens e das modalidades comunicativas dos sujeitos cuja recepção/produção midiática queremos entender. Entre outros tantos desafios metodológicos com os quais temos nos defrontado em nossas pesquisas está a delimitação dos cenários digitais de referência empírica para a investigação. Se por um lado precisamos realizar recortes que permitam viabilizar a realização das pesquisas, por outro é pertinente investir na construção de desenhos que considerem de algum modo os vínculos digitais e multimidiáticos que os constituem, ou, dito de outro modo, que não deixem de visualizar a marca de atravessamentos multimidiáticos que ali se manifestam. A dimensão tempo necessita, também, ser estrategicamente pensada em termos do seu significado para as problemáticas investigadas. O dinamismo dos fenômenos digitais, suas mudanças e reconfigurações têm que ser devidamente considerados no desenho estratégico das pesquisas empíricas. Por fim, é necessário investir na construção de protocolos de observação dos ambientes digitais que respondam efetivamente às demandas das problemáticas investigadas. Dimensões concretas de análise trabalhadas em afinidade com as perspectivas teóricas que sustentam a pesquisa e com a complexidade desses cenários, ambientes e produtos, precisam ser devidamente construídas. Esses desafios são parte da construção dos objetos empíricos e devem, portanto, merecer atenção epistemológica.

Referências BACHELARD, Gaston. Epistemologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. BOURDIEU, Pierre et al. A profissão de sociólogo. Preliminares epistemológicas. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. BONIN, Jiani Adriana. Revisitando os bastidores da pesquisa: práticas metodológicas na construção de um projeto de investigação. In: MALDONADO et al., Alberto Efendy (Orgs.). Metodologias da pesquisa em comunicação: olhares, trilhas e processos. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2011, p. 19-42. _____. A pesquisa exploratória na construção de investigações comunicacionais com foco na recepção. In BONIN, Jiani Adriana; ROSÁRIO, Nísia Martins do. (Orgs.). Processualidades metodológicas: configurações transformadoras em comunicação. Florianópolis: Insular, 2013a. p. 23-42. _____. Notas metodológicas relativas à pesquisa de recepção midiática. In: XXII Encontro Anual da COMPÓS, 2013, Salvador. Anais. Salvador: Compós, 2013b. p. 1-13. _____. II. Problemáticas metodológicas relativas à pesquisa de recepção/produção midiática. In: MALDONADO, Alberto Efendy (Org.). Panorâmica da investigação em comunicação no Brasil: processos receptivos, cidadania, dimensão digital. Salamanca: Comunicación Social Ediciones y Publicaciones, 2014a. p. 41-54. _____. Reflexiones metodológicas sobre la investigación de recepción mediática. In: XII Congresso da ALAIC, 2014, Lima. Anais. Lima: ALAIC, 2014b. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. _____. A galáxia da internet. Reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. _____. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. LOPES, Maria Immacolata V. Vivendo com a telenovela. Mediações, recepção, teleficcionalidade. São Paulo: Summus, 2002.

28

MALDONADO, Alberto Efendy Gómez de la Torre. Explorar a recepção sem dogmas, em multiperspectiva e com sistematicidade. Coletânea mídia e recepção/2000. São Leopoldo: UNISINOS/ COMPÓS, 2000.

RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2009. SÁ, Simone da Rocha. Utopias Comunais em Rede. Discutindo o conceito de comunidade virtual. In: X Congresso da COMPÓS, 2001, Brasília. Anais... Brasília: COMPÓS-UNb, 2001. p. 1-23.

_____. Produtos midiáticos, estratégias, recepção: a perspectiva transmetodológica. Ciberlegenda, Rio de Janeiro, n.9, p.1-23, 2002, Disponível em: http://www.uff.br/ciberlegenda/ojs/index.php/ revista/article/view/299. Acesso em: 12 de março de 2013.

SCHERER-WARREN, Ilse. Cidadania sem fronteiras. São Paulo: Hucitec, 1999.

______. Pesquisa em comunicação: trilhas históricas, contextualização, pesquisa empírica e pesquisa teórica. In: MALDONADO, Alberto Efendy (Org.). Metodologias de pesquisa em comunicação: olhares, trilhas e processos. Porto Alegre: Sulina, 2011.

SILVERSTONE, Roger. Por que estudar a mídia? São Paulo: Edições Loyola. 2005. SODRÉ, Muniz. Eticidade, campo comunicacional e midiatização. In. MORAES, Denis de (org.). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. p.19-32.

_____. Produtos midiáticos, estratégias, recepção: a perspectiva transmetodológica. Ciberlegenda, Rio de Janeiro, n.9, p.1-23, 2002, Disponível em: http://www.uff.br/ciberlegenda/ojs/index.php/ revista/article/view/299. Acesso em: 12 de março de 2013.

VERÓN, Eliseo. Esquema para el análisis de la mediatización. Diálogos de la comunicación, Lima, n.48, p.9-17, 1997. Disponível em . Acesso em: 18/07/2007.

______. A perspectiva transmetodológica na conjuntura de mudança civilizadora em inícios do século XXI. In: MALDONADO, Alberto Efendy; BONIN, Jiani Adriana; ROSÁRIO, Nísia Martins. (Orgs.). Perspectivas Metodológicas em Comunicação: novos desafios na prática investigativa. 2. ed. Salamanca: Editorial Comunicación Social, 2013, v. 1, p. 17-45.

_____. Teoria da midiatização: uma perspectiva semioantropológica e algumas de suas consequências. Matrizes, São Paulo, v. 8, n.1, p.1319, jan./jun. 2014.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. _____. Ofício de cartógrafo. México: Fondo de Cultura Econômica, 2002. MATA, María Cristina. De la cultura massiva a la cultura mediática. Diálogos de la comunicación, Lima, n. 56, p. 80-91, out. 1999. Disponível em . Acesso em: 01/09/2007. MATTELART, Armand e Michéle. História das Teorias da Comunicação. São Paulo: Loyola, 1999. MATTELART, Armand; NEVEU, Érik. Introdução aos Estudos Culturais. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. MATTELART, Armand. Un mundo vigilado. Barcelona: Paidós, 2009.

29

Jovem brasileiro e consumo midiático em tempos de convergência panorama preliminar1

444

Nilda Jacks l UFRGS

Mariângela Toaldo l UFRGS Daniela Schmitz l UFRGS Dulce Mazer l UFRGS

Laura Wottrich l UFRGS

Sarah Moralejo da Costa l UFRGS Sobre a pesquisa e a noção de juventude Para discutir sobre o consumo midiático em tempos de convergência e especialmente as práticas dos jovens brasileiros no site de rede social Facebook, traz-se resultados preliminares de uma pesquisa de âmbito nacional2. Neste artigo, serão apresentados os dados referentes ao estado mais populoso de cada região do país, a saber: Sul – Rio Grande do Sul; Sudeste – São Paulo; Centro-Oeste – Goiás; Nordeste – Bahia; Norte – Pará3. A primeira etapa da pesquisa combinou características e objetivos de um estudo piloto e de uma pesquisa exploratória4 e consistiu na execução de dois procedimentos. Primeiramente, um questionário aplicado presencialmente com 10 jovens universitários das classes populares, entre 18 e 24 anos, de cada estado; seguido da observação de uma semana do perfil do Facebook de outros 10 jovens, também por estado5. O questionário visava um amplo mapeamento do consumo cultural e midiático destes sujeitos, focando em grande medida nas plataformas digitais e nos processos de convergência midiática. Já na análise do Facebook, foram observadas as práticas, rituais, conteúdos disponibilizados e encaminhados, além do consumo midiático e cultural revelado pelos perfis selecionados. A concepção de juventude adotada na pesquisa parte de um espectro maior que considera a impossibilidade de associá-la a um conceito único, relacionado a um período temporal. Levam-se em conta algumas variáveis dos contextos histórico-culturais que contribuem para constituir a noção de juventude. Parte-se da concepção de que existe um momento na vida que dispõe de um crédito temporal, denominado por Margulis e Urresti (2008) como “moratória vital” ou “capital temporal”. Há também nos indivíduos uma condição física que lhes incluem automaticamente na esfera juvenil, que se reflete nos anseios, nas emoções, nas experiências, nos signos usados, na própria força corporal, energia e capacidade produtiva, em um sentimento de invulnerabilidade diante da vida. Por outro lado, questiona-se a possibilidade do indivíduo vivenciar de fato esses aspectos que o compõe na fase juvenil em função de condições socioculturais. Identificam-se “jovens não juvenis” (MARGULIS e URRESTI, 2008), que precisam dedicar seu tempo mais ao trabalho e a outras responsabilidades.

30

Uma prévia do texto foi apresentada na mesa Estudos de Recepção, jovens e consumo, da II Jornada Gaúcha de Pesquisadores da Recepção

1

Registra-se o agradecimento à participação dos acadêmicos Lucas Mello, Andréa Britto, Gabriela Habckost e Roberta Gehrke, Christiane Cirne Lima e Andressa Fantoni, os quais participaram da coleta, organização e análise dos dados.

2

A pesquisa é desenvolvida pela Rede Brasil Conectado, coordenada pela Prof.ª Dr.ª Nilda Jacks, e conta com pesquisadores nos 26 estados brasileiros mais o Distrito Federal.

3

Informações coletadas no site G1. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/08/ populacao-brasileira-ultrapassa-marca-de-200milhoes-diz-ibge.html. Acesso em 11/03/14.

4

Sobre os estudos piloto, Bailer, Tomitch, D’Ely (2011) os consideram “uma miniversão do estudo completo, que envolve a realização de todos os procedimentos previstos na metodologia de modo a possibilitar alteração/melhoria dos instrumentos na fase que antecede a investigação em si” (p. 130). Pode ser tomado, portanto,...

4

...como um teste, em pequena escala, do método, procedimentos e técnicas propostos para determinada pesquisa, que no caso em questão teve caráter parcial, uma vez que estava combinado com uma pesquisa exploratória. Essa genericamente pode ser definida como um estudo prévio que tem por finalidade ampliar as informações do pesquisador sobre o assunto de sua pesquisa, tendo em vista seu aprimoramento rumo à elaboração de um projeto de pesquisa (SANTAELLA, 2001), aqui referente ao da segunda fase desta pesquisa, já com informações sobre os contextos de cada estado. Uma discussão acerca desses dois procedimentos é empreendida em “Jovem e consumo midiático: dados preliminares do estudo piloto e da pesquisa exploratória” (JACKS et al, 2014).

VERSTONE, 2005; BARBOSA, 2006; BACCEGA (org.), 2008). Os primeiros seguem uma linha que enfoca o papel da mídia no consumo, enquanto os últimos tratam do consumo do que é produzido pela mídia, ou seja, seus produtos. O consumo midiático trata do que a mídia oferece: nos grandes meios – televisão, rádio, jornal, revista, internet, etc. – e nos produtos/conteúdos oferecidos por esses meios – novelas, filmes, notícias, informações, entretenimentos, moda, shows, publicidade, entre outros. Neste contexto, a oferta da mídia inclui também o próprio estímulo ao consumo, que se dá tanto através da oferta de bens, quanto de tendências, comportamentos, novidades, identidades, fantasias, desejos. Morley (1996, p. 194) cita como um exemplo do que significa consumir a mídia “o processo da prática de ver televisão enquanto atividade”. A mesma ideia pode-se aplicar à prática de acessar a internet, de ouvir rádio, de ler jornal entre outras tantas. Nesse sentido, em estudos sobre consumo midiático, interessa saber o que os indivíduos consomem da mídia – meios e produtos/ conteúdos –, a maneira com que se apropriam dela (do que consomem – como a utilizam) e o contexto em que se envolvem com ela (lugares, maneiras, rotinas etc.). Essa dimensão não envolve, porém, a análise de respostas dos receptores aos conteúdos de um programa específico, nem as consequências desse envolvimento com tal programa ou gênero, o que era realizado pelos estudos dos efeitos e, atualmente, em alguma medida, pelos estudos de recepção. A partir dessas reflexões, é possível entender os estudos sobre consumo midiático como da ordem da relação mais ampla com os meios de comunicação, sua presença no cotidiano pautando tempos, espaços, relações, percepções etc. O enfoque no consumo midiático torna-se o preâmbulo para conhecer outras formas de relação com os dispositivos digitais, uma vez que se dá simultaneamente e de forma entrecruzada a partir da convergência midiática. A investigação sobre o consumo midiático torna-se importante para compreensão das amplas transformações nas formas de consumo advindas da inserção e acesso a novas tecnologias, especialmente relativas aos jovens e no que se refere às classes populares. No Brasil, a preferência pela TV tem decaído entre os jovens, enquanto a opção pela internet é 25% maior em relação a outras faixas etárias (PESQUISA BRASILEIRA DE MÍDIA, 2014). A transição entre tecnologias midiáticas ou entre mídias diferentes utilizadas em rede por um ou mais usuários se torna mais do que uma mudança de telas à medida que a interação do usuário com o suporte transforma também seu comportamento e sua forma de consumo. A partir da digitalização dos meios e o desenvolvimento de interfaces, a relação com as telas passa a ser cada vez mais interativa.

Outras variáveis a observar sobre a concepção da condição juvenil nos indivíduos são: idade; geração na qual o indivíduo é socializado; gênero; condição familiar e instituições (MARGULIS e URRESTI, 2008). Cabe, ainda, considerar a alteração no ciclo de vida dos indivíduos estimulada pela reconfiguração de aspectos tradicionais da trajetória da juventude para o estágio adulto, em especial, a coresidência familiar e a alteração (adiamento) nos ritos de passagem (PAPPÁMIKAIL, 2012). Pode-se conceber, assim, uma juventude contemporânea que dispõe de uma “moratória vital” (MARGULIS e URRESTI, 2008) própria, mas que demonstra suas características socioculturais de forma transitória, em função de sua condição social ou de alterações no ciclo de vida dos indivíduos. Não sendo possível demarcar um conjunto fechado de práticas, anseios, movimentos, códigos da fase juvenil, entende-se que são definidos a partir das variáveis apontadas anteriormente6.

Para pensar o consumo midiático em tempos de convergência 5

Essa estratégia, em que cada procedimento é aplicado com grupos distintos de jovens, segue uma indicação de Guillermo Orozco Gomez, em palestra proferida no PPGCOM/UFRGS, em Porto Alegre, 17 de setembro de 2009. O pesquisador defende que, em se tratando do mesmo segmento, não se constitui um problema a investigação ser realizada com indivíduos diferentes, ao contrário, expande o âmbito de análise.

6

Ver mais a respeito das noções abordadas sobre o conceito de juventude em Jacks e Toaldo (2013)

7

As seis teorias, que também designa como modelos (CANCLINI, 1993), são resumidas por ele com as seguintes assertivas: “o consumo como o lugar de reprodução da força de trabalho e de expansão de capital”, “como o lugar onde as classes e os grupos competem pela apropriação do produto social”, “como lugar de diferenciação social e distinção simbólica entre os grupos”, “como sistema de integração e comunicação”, “como cenário de objetivação dos desejos”, “como processo ritual” (CANCLINI, 1993).

Para entender a relação dos jovens com os meios de comunicação no contexto da convergência, adota-se a noção de consumo midiático (TOALDO e JACKS, 2013), a qual deriva da contextualização esboçada por Canclini sobre consumo cultural, que parte de seis teorias7 consideradas mais significativas sobre o debate em torno do consumo. A partir dessas teorias/modelos, que abordam aspectos parciais do fenômeno, o autor propõe que o consumo cultural pode ser compreendido como “o conjunto de processos de apropriação e usos de produtos nos quais o valor simbólico prevalece sobre os valores de uso e de troca, ou onde ao menos estes últimos se configuram subordinados à dimensão simbólica” (CANCLINI, 1993, p. 34). Desse modo, alarga as perspectivas sobre o consumo para além das ideias de necessidades e instrumentalidade dos bens. São exemplos de consumo cultural: artes; conhecimento universitário; televisão, rádio, cinema; artesanatos; danças indígenas, etc. O consumo midiático, a partir das reflexões de Canclini, poderia ser considerado uma vertente do consumo cultural, ao se referir aos meios de comunicação em específico, nomeando-os e fazendo uma diferenciação a respeito da maior implicação econômica na produção cultural midiática. Nesse contexto, duas tendências são percebidas em grande parte dos estudos e autores: análises sobre consumo e mídia e sobre consumo midiático propriamente dito (CANCLINI, 1993; FEATHERSTONE, 1995; ROCHA, 1995; MORLEY, 1996; SIL-

31

Esse cenário de transformações não retrata somente questões de tecnologia, uma vez que a utilização de aparelhos, e seus recursos, passa pela vontade e pela atividade do usuário, mas também é condicionado por questões de classe e competência cultural, para citar apenas duas mediações (MARTÍN-BARBERO, 2003) implicadas no processo. O desenvolvimento tecnológico midiático, em particular, é influenciado diretamente pelos hábitos, sendo cotidiano e cada vez mais pessoal. O acesso às mais diversas tecnologias, porém, ainda é restrito a inúmeras variáveis, o que modifica os hábitos, que modificam as características e funcionalidade das mídias. Nesse sentido, não somente são afetados os produtores dos suportes midiáticos e seus consumidores, como também os produtores de produtos midiáticos e seus consumidores. Assim, os âmbitos da produção midiática e do consumo se encontram nas possibilidades tecnológicas de circulação do conteúdo, sobre as quais ambos são determinantes. No contexto de convergência midiática, apresentado por Jenkins (2009), a articulação da produção, buscando a variabilidade de conteúdos em múltiplas plataformas, conta com a capacidade de fruição do consumidor, se apropriando, organizando e replicando o conteúdo inclusive integrado à produção própria.

familiar: parte deles mantém computadores na sala, locais de circulação e permanência dos demais membros da família; enquanto outros mantêm os equipamentos em seus quartos, interferindo diretamente no consumo midiático compartilhado ou individual, respectivamente. Para acessar a internet, a casa dos jovens aparece em primeiro lugar, com exceção dos paraenses. Dezesseis jovens indicam a faculdade como o espaço principal de conexão (metade deles são paraenses) e 5 o fazem no trabalho. Como segundo principal espaço de uso, 17 jovens acessam a internet da faculdade. O trabalho aparece como terceira opção (8) e as lan houses em quarta (7 jovens, dos quais 5 são da região norte). A maioria dos jovens acessa internet por dispositivos móveis (30), mas as proporções variam conforme o estado/região: na Bahia metade acessa, no Rio Grande do Sul são 8 e em Goiás e Pará, 7 em cada estado. Em São Paulo, este número cai para 3. A conexão para dispositivo móvel mais utilizada é a 3G (13), seguida por wifi (3). Dois paraenses e um paulista afirmaram acessar nos dois modos. Sobre a quantidade de celulares, 42 jovens afirmaram possuir um aparelho, sete possuem dois telefones móveis. Somente um goiano declarou possuir 3 aparelhos. Dos entrevistados, 22 possuem aparelho comum; 16 possuem aparelho celular comum com internet; e 12 jovens são donos de smartphones. Quando o assunto é o uso concomitante de meios e/ou associação destes a alguma outra tarefa, como estudar ou telefonar, por exemplo, tem-se o seguinte panorama quando a pergunta versava sobre o consumo de televisão11. Apenas dois jovens indicaram não se dedicar a mais nada além da assistência12 e, entre os paulistas, chama a atenção que 7 não consomem o meio. Os demais jovens de todas as regiões dividem a atenção com outros meios de comunicação e tarefas, dentre os quais se sobressaem os gaúchos e os baianos, ao menos quanto ao número de atividades extras indicadas, média de 6 tarefas citadas por jovem nos dois estados. Na outra ponta, estão os goianos que indicaram consumir apenas mais um meio ou realizar apenas mais uma outra tarefa enquanto assistem à televisão. No geral dos estados, as atividades mais indicadas são as seguintes: acessar e-mails (21), usar redes sociais (20), telefonar (20), acessar sites em geral (15), estudar (15), ler jornal (14), ler livros (8), consumir revistas (8), ouvir música (7) e ouvir rádio (1). Não foi explorada a questão de quantas atividades distintas são realizadas ao mesmo tempo, mas o quadro revela que, entre a maioria, a atenção não é exclusivamente voltada à televisão. Estes dados também indicam uma preferência destes jovens por estar “em conexão” com outras pessoas, já que o e-mail, as redes sociais e o telefone ocupam as primeiras colocações. Isso reforça resultados de pesquisa que já indica-

Condições de acesso e práticas digitais O questionário que mapeou o consumo cultural e midiático foi aplicado junto a 10 jovens de cada estado mais o Distrito Federal pelas equipes locais. Como já se adiantou, aqui serão tradados apenas 508 jovens que moram nas capitais dos estados mais populosos de cada região brasileira9. Inicia-se com alguns dados que ajudam a demonstrar a situação socioeconômica destes sujeitos10, já que este é um dos aspectos condicionantes do tipo de juventude que se fala, segundo Margulis e Urresti (2008). Depois, o foco recai sobre o uso concomitante de meios e conclui-se com alguns dados acerca do uso do Facebook. A maioria dos computadores está instalada na sala de casa e no quarto dos jovens e quase um terço possui computadores individuais (15 jovens). Eles se concentram no PA (8) e em SP (5). A segunda maior concentração em todas as regiões é de jovens que possuem um computador para uso compartilhado: 13 pessoas. Oito jovens afirmaram possuir dois ou mais equipamentos individuais. Esses dados refletem a renda familiar dos jovens e parte de suas práticas de consumo. Também pode-se deduzir que há dois grupos principais quanto aos usos dos computadores e o compartilhamento

32

8

Nem todos os jovens responderam a todas as questões realizadas. Dessa forma, em alguns momentos da análise, o número total de respondentes poderá ser inferior a 50.

9

Rio Grande do Sul (Sul), São Paulo (SE), Bahia (NE), Goiás (CO), Pará (N).

10

Lembrando que todos estão no intervalo entre 18 e 24 anos e, embora se tenha buscado entrevistar o mesmo número de jovens quanto ao sexo, elas são a maioria, com 27 garotas. Sobre a renda, 18 jovens estão na faixa C1/C2 do Critério Brasil, com renda entre R$1.147,00 e R$1.858,00. Os demais estão ou um pouco acima, ou abaixo destes valores. SP e RS apresentaram as maiores rendas, enquanto o Pará as mais baixas.

11

A questão de múltipla escolha foi assim formulada: “Enquanto você assiste televisão, você: a) ouve rádio; b) ouve música; c) lê jornal; d) lê revista; e) lê livros; f) estuda; g) acessa redes sociais; h) acessa sites em geral; i) acessa e-mail; j) usa o computador; k) telefona; l) não faz nada; m) não usa o meio.

12

Um de SP e outro de GO.

13

As perguntas desta ordem eram de múltipla escolha, podendo indicar até quatro motivos, contudo, aqui tratar-se-á apenas do uso principal

14

Ainda não há como avaliar o número total de posts, pois a análise está em andamento, entretanto, é possível adiantar que não há homogeneidade numérica uma vez que depende muito do perfil de cada jovem. Os posts aqui analisados são produzidos pelos próprios jovens, compartilhados por eles ou ainda posts nos quais o jovem analisado foi marcado

15

Nos perfis que atingiram a média de postagem foram selecionados os posts iniciais, medianos e finais, nos abaixo da média foram analisados todos

16

As demais e seus respectivos números de posts são: atualizações de perfil (40), cotidiano (39), religião (34), datas comemorativas (33), esporte (24), fotografia (19), lembranças/ memórias (19), vida profissional (16), literatura (15), cinema (14), canal de comunicação (13), indiretas (9), opinião (9), animais (8), games (8), viagem (8), Aplicativos (5), reclamações (5), artes plásticas (3), sustentabilidade (3), teatro (3), gastronomia (2), astrologia (1) e “hoax” (1)

ram a relevância da assistência conectada: 43% dos brasileiros têm o hábito de ver televisão enquanto navegam na internet (IBOPE, 2012). Já quando se trata do uso do computador, este é bastante compartilhado com o consumo de música (26) e de rádio (16), o que não ocorre tanto em relação à televisão. Os gaúchos são os que mais apreciam essa combinação: dos 10 entrevistados, 7 citam o rádio e 9 a música em outros suportes. Para compreender mais sobre as práticas digitais e o consumo simultâneo de mídia, são elencados aqui os motivos de uso13 do correio eletrônico: 18 o fazem para manter contato com outras pessoas e 16 para assuntos de trabalho, o lazer vem em terceiro, com 9 citações. Catorze jovens dizem acessar o e-mail várias vezes ao dia e 10 se declaram “sempre conectados”. As redes sociais são utilizadas em grande medida para o lazer, 24 jovens citaram esse interesse; contatos é o segundo motivo mais citado, com 19 jovens. O momento do dia de maior conexão é à noite (15), mas a opção “sempre conectado”, ou acessa várias vezes ao dia, segue de perto (13 cada). Especificamente sobre o Facebook, pode-se destacar que 38 jovens acessam diariamente esta rede, sendo que os baianos se declararam os maiores usuários, já que a totalidade dos entrevistados assim se posicionou. Mas os paulistas e gaúchos estão muito próximos dessa realidade, com 9 jovens acessando diariamente em cada estado e em Goiás são 7. No Pará, somente 3 indicam o acesso diário. A opção “não acesso” foi marcada por um goiano e um gaúcho. O período do dia de maior acesso é à noite, contudo, 17 jovens declaram entrar no Facebook várias vezes ao dia e 11 estão sempre conectados. Os gaúchos se destacam nesta última modalidade, com 6 jovens e, entre os paraenses, nenhum jovem declarou estar sempre conectado. A principal finalidade do uso desta rede social é o lazer/entretenimento, ao menos para 36 jovens das 5 regiões. A informação é a segunda colocada (30) e o contato com amigos e familiares surge em terceiro (30). As pessoas com as quais se relacionam são, em primeiro lugar, amigos (44), familiares em segundo (35) e colegas de trabalho em terceiro (14), seguido de perto por colegas de aula (12). A seguir, adentramos às práticas e conteúdos de postagem no Facebook para compreender melhor como esta rede é utilizada pelos jovens.

Para essa primeira etapa considerou-se uma amostragem dos perfis por região do país. Assim, foram pré-categorizados os posts de pelo menos 50% dos estados que compõem cada região e analisada a média de posts de cada estado15. Essa pré-categorização teve como objetivo verificar as principais temáticas postadas pelos jovens, que nessa prévia totalizam 34 categorias, as quais serão utilizadas para analisar o total dos posts em busca dos supertemas que mobilizam esses jovens no uso do Facebook. Os supertemas para Klaus Jensen (1997) são os temas mais importantes para os sujeitos ao entrar em contato com algum referente midiático, no caso adaptado para pensar a participação dos jovens através das postagens em seus perfis. A seguir, apresentam-se as categorias temáticas que ocupam os dez primeiros lugares16 em relação às postagens dos jovens. “Relacionamentos” que trata do envolvimento dos jovens com pessoas de diferentes origens como sua família, amigos, colegas, incluindo também o âmbito amoroso. Estes posts incluem fotos que revelam e representam a vivência dos jovens sobre a temática, totalizando 207 entre os perfis analisados. O fato de esta categoria ocupar o primeiro lugar corrobora outro resultado encontrado na análise do questionário presencial, quando os jovens indicam dividir a assistência de televisão com atividades que permitam a conexão com outras pessoas. Em segundo lugar, identifica-se a categoria “Música”, com 125 postagens. Trata-se, aqui, dos mais variados âmbitos que a temática pode revelar: letra de música, links, cantores, lançamentos, compositores, bandas, etc. Esta destacada posição da música no número de postagens e compartilhamentos também está de acordo com resultados encontrados nos questionários, quando o uso do computador é, em grande medida, associado ao consumo de música. Um terceiro grupo de postagens foi nomeado como “filosofia ordinária” e é composto por 104 posts. A nomenclatura desta categoria tenta revelar a expressividade dos jovens em relação ao que pensam sobre a vida, suas experiências e vivências no cotidiano. Em sua maioria, são frases compartilhadas de perfis reconhecidos por publicarem conteúdo reflexivo, edificante ou até mesmo espiritual. A quarta categoria é sobre “humor”, o que envolve publicações de piadas, cartuns, charges etc. Aqui, tem-se 98 posts. Com 63 postagens, em quinto lugar, aparece a “Mídia”, referindo-se a tudo que diz respeito a esse universo: sobre revistas em quadrinhos e mangás, desenho animado e animé, celebridades (fofocas, paparazzi), telenovela, notícias (crítica, divulgação/circulação, comentário etc), seriados etc. O sexto grupo, com 52 posts, aborda a “vida estudantil”. Trata-se de postagens sobre cursos realizados ou de interesse dos jovens, links e notícias a respeito de temas que envolvem o âmbito acadêmico, etc. As categorias “política” e “problemas sociais” aparecem em sétimo lugar, com um total de 49 posts cada. O primeiro tema refere-se

A pesquisa exploratória no Facebook O corpus aqui analisado é resultante de posts14 coletados em 10 perfis (cinco masculinos e cinco femininos) de jovens entre 18 e 24 anos, preferencialmente universitários, das classes populares, no Facebook, durante uma semana.

33

tar “sempre conectado” e mesmo o uso do Facebook só é diário para três paraenses, quadro bem distinto dos demais estados. Contudo, essas dificuldades parecem estar mais relacionadas ao acesso, pois foram os jovens da região norte que indicaram possuir o maior número de computadores para uso pessoal. Sabe-se que nem todos os estados possuem a oferta de banda larga fixa, como no caso do Amapá (região Norte), estado que, segundo a Agência Nacional de Telecomunicação (ANATEL), ainda conta com um dos piores serviços de banda larga móvel de todo país, em contraponto com o Paraná (região Sul), que apresenta o melhor cenário nacional. Na banda larga fixa, o cenário entre os estados não é tão extremo, contudo, o Acre (também na região Norte) é o estado que apresenta deficiências em relação ao serviço19. Trabalha-se com a hipótese de que, mesmo diante dos dados de todos os estados que formam as cinco regiões do país, haverá confirmação de certas tendências no consumo midiático dos jovens, mesmo que pontuadas por idiossincrasias estaduais ou regionais e por restrições no tipo de acesso. Além disso, apesar do esforço em delimitar o grupo social estudado a fim de tornar exequível uma pesquisa comparativa de abrangência nacional, vê-se que as diversidades regionais são muitas a começar pela relação entre renda e posição social. A mesma renda de jovens em diferentes estados não implica em posições sociais semelhantes, tendo em vista os diferentes cenários socioeconômicos em que estão inseridos. Até aqui, os dados do estudo piloto evidenciam a relação entre posse das tecnologias e as transformações no consumo dos meios tradicionais, o uso dos meios para promover e cultivar relacionamentos, a predominância de práticas de consumo simultâneo de meios de comunicação e a importância da música na compreensão do consumo juvenil, que é atravessado pelas possibilidades estruturais de acesso, configurando as práticas dos jovens investigados. Questões que serão aprofundadas na próxima fase da pesquisa. Para concluir, quer-se apontar algumas considerações acerca dos aspectos metodológicos da pesquisa. Empreendeu-se na primeira etapa uma combinação entre um estudo piloto e uma pesquisa exploratória com o intuito de, ao mesmo tempo, testar o instrumento que será retomado na segunda fase e explorar dados sobre as realidades e grupos locais para implementar questões que contemplem as diferenças e características de cada contexto. Nesse sentido, o estudo piloto foi muito valioso para fornecer dados sobre a estrutura, sequência lógica e questões contidas no questionário que foi aplicado presencialmente junto aos jovens para levantar seu consumo midiático e as práticas desenvolvidas nas redes sociais. Percebeu-se também a importância do estudo piloto na

a postagens sobre manifestações, políticos, movimentos sociais etc. Já o segundo tema aborda comentários sobre violência, pobreza, corrupção, etc. A oitava categoria é sobre “eventos”, envolvendo atividades como festas, shows e demais programas que os jovens participam ou têm interesse em participar e/ou saber, divulgar, comentar a respeito. Foram encontrados 48 posts nessa pré-análise. Em nono lugar consta o tema “publicidade”. São 41 posts tratando de anúncios publicitários, promoções, preços de produtos/ serviços/eventos, relatos de compras, indicação de marca, fanpages comerciais etc. A décima categoria, com 40 posts, recebe a denominação provisória de “abobrinhas”17, que remete a postagens inclassificáveis ou enigmáticas, pois trata-se de mensagens que apenas as pessoas envolvidas no assunto/fato/acontecimento comentado entendem. Esses posts podem ser vistos como uma “piada interna”. Até aqui dá para apontar as temáticas que circundam basicamente três instâncias da experiência cotidiana dos jovens: a) vida pessoal, através das categorias “relacionamentos”, “filosofia ordinária”, “vida estudantil” e “abobrinhas”; b) vida social/ coletiva, através das categorias “eventos”, “política” e “problemas sociais” e c) experiência midiática que inclui a categoria “mídia” propriamente dita, somadas à “música”, “publicidade” e ao “humor” se tomarmos em conta que grande parte dos conteúdos vem pelos meios de comunicação. A próxima etapa será a análise de todos os posts que compõem o corpus a partir das categorias que emergiram da pré-categorização, as quais podem ser agregadas outras que não apareceram nessa fase. Será utilizado um recurso CAQDAS18 chamado NVIVO para proceder à análise em busca dos conteúdos relativos a cada temática.

Conclusões provisórias Com a pesquisa em andamento, o estudo piloto e o exploratório parcialmente analisados aqui, apenas podemos apresentar alguns comentários gerais sobre os dados empíricos. É preciso enfatizar que esses resultados são muito preliminares, quantitativamente escassos e de regiões muito distintas em termos históricos, culturais, econômicos e populacionais, por isso não é de surpreender que alguns dados apresentem muitas discrepâncias, principalmente no que diz respeito às condições de acesso. A região Norte, por exemplo, distancia-se das demais na renda média familiar, pelo acesso à internet ser fora de casa (usam mais a faculdade) e pela maior frequência a lan houses. Como consequências dessas condições, nenhum jovem declarou es-

34

17

Gíria brasileira para assunto sem importância

18

Computer Assisted Qualitative Data Analisys

19

A Anatel mede, desde 2012, a qualidade da banda larga, fixa e móvel, com prestadoras com mais de 50 mil clientes, no país. De acordo com a última medição, em dezembro de 2013, na banda larga fixa, foram avaliadas as prestadoras de todos os estados, com exceção do Amapá, enquanto na banda larga móvel foram avaliadas as prestadoras do Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe. Os outros estados não foram avaliados porque a quantidade de medidores instalados não assegura a validade estatística da amostra. Disponível em: . Acesso em: 13 fev. 2014

preparação dos pesquisadores por ter proporcionado um protocolo de treinamento das várias equipes distribuídas em todo território nacional, as quais são muito heterogêneas tanto em relação à área de atuação e formação, quanto de experiência em pesquisa de campo. No caso da pesquisa exploratória, desenvolvida na plataforma do Facebook, foi fundamental para observar as práticas, rituais, conteúdos disponibilizados e encaminhados, além do consumo midiático e cultural revelado pelos perfis selecionados. Enfim, pesquisa exploratória e estudo piloto foram ainda muito úteis para mostrar a exequibilidade da pesquisa e as necessidades de ajustes no cronograma inicialmente estabelecido.

Referências ANATEL. Agência Nacional de Telecomunicações. Disponível em: . Acesso em: 13 fev. 2014. BAILER, Cyntia; TOMITCH, Lêda Maria Braga; D’ELY, Raquel Carolina Souza Ferraz. Planejamento como processo dinâmico: a importância do estudo piloto para uma pesquisa experimental em linguística aplicada. Revista Intercâmbio, v. XXIV: 129-146, 2011. São Paulo: LAEL/PUCSP. ISSN 2237-759x. BARBOSA, Lívia; CAMPBELL, Colin. (orgs). Cultura, Consumo e Identidade. Rio de Janeiro: FGV, 2006. BACCEGA, Maria Aparecida (Org.). Comunicação e culturas do consumo. São Paulo: Atlas, 2008. CANCLINI, Néstor García. El consumo cultural en México. México: Grijalbo, 1993. FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995. IBOPE Nielsen Online. Pesquisa Social TV, 2012. Acesso: 22 nov. 2014. Disponível em: http://www.ibope.com.br/pt-br/relacionamento/imprensa/releases/Paginas/No-Brasil-43-dos-internautas-assistem-a-TV-enquanto-navegam.aspx JACKS, Nilda; TOALDO, Mariângela. Juventude? De que juventudes estamos falando? In: Seminário Internacional Brasil e Portugal: Jovens, Subjetividades e Novos Horizontes, 2013, Rio de Janeiro, RJ. Anais, Rio de Janeiro: UFRJ, 2013. JACKS, Nilda et al. Jovem e consumo midiático: dados preliminares do estudo piloto e da pesquisa exploratória. In: XXIII Encontro da Compós, 2014, Belém/PA. JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2009. JENSEN, Klaus. La semiótica social de la comunicación de masas. Barcelona. Bosch, 1997 MARGULIS, Mario; URRESTI, Marcelo. La juventude es más que uma palabra. In: MARGULIS, Mario. (org.). La juventud es más que

35

uma palabra: ensaios sobre cultura y juventud. Buenos Aires: Biblos, 2008. p. 13-30. MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. MORLEY, David. Televisión, audiencias y studios culturales. Buenos Aires: Amorrortu editors, 1996. PAPPÁMIKAIL, Lia. Juventude(s), autonomia e sociologia: redefinindo conceitos transversais a partir do debate acerca das transições para a vida adulta. In: DAYRELL, J. et al (orgs.). Família, escola e juventude: olhares cruzados Brasil-Portugal. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, pp. 372-393. PESQUISA BRASILEIRA DE MÍDIA: Hábitos de consumo de mídia pela população brasileira. Brasília: SECOM, 2014. ROCHA, Everardo. A sociedade do sonho: comunicação, cultura e consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 1995. SANTAELLA, Lucia. Comunicação e pesquisa. São Paulo. Hacker, 2001. SILVERSTONE, Roger. Por que estudar a mídia? 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005. TOALDO, Mariângela; JACKS, Nilda. Consumo midiático: uma especificidade do consumo cultural, uma antessala para os estudos de recepção. In: Encontro Anual da Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Comunicação, 22, 2013, Salvador, BA. Anais, Salvador: UFBA, 2013.

36

Recepção midiática e migração a perspectiva dos usos sociais da mídia na investigação sobre o

Brasil imaginado por migrantes transnacionais

Liliane Dutra Brignol l UFSM

Este trabalho, apresentado na II Jornada de Pesquisadores de Estudos da Recepção, se situa no contexto de um projeto de pesquisa que tem o objetivo de investigar de que modo as representações midiáticas influenciam na recepção dos migrantes, de forma a participar na construção de imaginários em torno do Brasil como lugar para viver, estudar e trabalhar. Busca-se, desta forma, entender a relação entre as representações do Brasil experimentadas no país de nascimento, sobretudo através de usos sociais das mídias, e as renovadas depois da migração, em confronto com as experiências vividas no cotidiano dos migrantes. Historicamente, o Brasil foi um país receptor de migração, o que vem se reforçando na última década, com o incremento da chegada de migrantes de diferentes países e continentes, vindos, especialmente, dos países vizinhos da América do Sul, mas aparecem, também, de outros países da América Latina e, até mesmo, outros países em desenvolvimento ou desenvolvidos (COGO; BADET, 2013). Isso ratifica a tendência global de novos fluxos migratórios, que desfazem a polarização do movimento no sentido sul-norte, já que aumentam as redes migratórias em direção a países em desenvolvimento (movimentos sul-sul ou norte-sul). Neste contexto, compreender o imaginário de Brasil para migrantes transnacionais que escolheram o país como local para viver significa buscar entrelaçamentos entre identidades, representações e memórias. E isto se propõe fazer por meio de um estudo de recepção, entendido como perspectiva teórico-metodológica a pensar o processo de comunicação a partir de complexas relações de construção de sentidos dos sujeitos a partir das mídias. Parte-se, sobretudo, da vertente que busca compreender os usos sociais das mídias, tendo como base a perspectiva das medições de Martín-Barbero (2001; 2002a; 2002b), que fundamenta-se na necessidade de estudo das mídias a partir da relação entre inovações culturais e usos sociais. Com este entendimento, Martín-Barbero identifica os modos de uso das tecnologias como formas de resistência, em um deslocamento do olhar da técnica em si para seus modos de apropriação, principalmente pelas classes populares. Neste artigo, busca-se aprofundar a discussão desta perspectiva teórica, de modo a pensar em sua pertinência para o estudo das relações entre mídia e migrações contemporâneas.

37

555

Uma prévia do texto foi apresentada no GT Práticas Culturais e Identidades, da II Jornada Gaúcha de Pesquisadores da Recepção

prio para marcar o que fazem com os produtos, mas são penetrados e ressignificados desde as demandas e lógicas de quem está do outro lado do processo. “A uma produção racionalizada, expansionista, além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualificada de ‘consumo’: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível” (DE CERTEAU, 1994, p. 39). A diferença, segundo o autor, está no fato de que a produção dos consumidores não se faz notar com novos produtos, mas nas muitas maneiras de empregar os produtos a que têm acesso. Ainda com base em De Certeau, entendemos as apropriações como as muitas “maneiras de fazer” sugeridas pelo autor: “essas maneiras de fazer constituem as mil práticas pelas quais os usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural” (DE CERTEAU, 1994, p. 41). O conceito de apropriação implica em, ao considerar as relações de poder e os sentidos assimétricos presentes entre a produção e o consumo, compreender as táticas de ressignificação das tecnologias, por meio da construção de outros sentidos, que partem do que foi proposto pela produção, mas vão além deles, como sinaliza, a partir da contribuição do autor, a pesquisadora Jiani Bonin:

Aproximação à perspectiva dos usos sociais da mídia Para desenvolver o conceito de usos sociais, partimos do debate teórico proposto por Michel De Certeau (1994), ao pensar as práticas cotidianas do sujeito comum, que ele define como suas “múltiplas maneiras de fazer”. Para isso, o autor propõe as noções de táticas e estratégias ao trabalhar com as relações entre mundos formalizados, institucionalizados, organizados desde um lugar próprio, que pressupõem um poder instituído, e mundos não formalizados, da vida cotidiana, habitados pelo homem ordinário, que constrói seus modos particulares e criativos de agir a partir da ocupação do lugar do outro. Essa é a diferença fundamental entre estratégias e táticas, segundo De Certeau. As estratégias referem-se às ações que supõem a existência desse lugar próprio, características daqueles que tentam perpetuar o exercício de poder. Enquanto as táticas são identificadas como a “arte do fraco”, as ações que se organizam desde um lugar que não é específico ou próprio, mas a partir do espaço do outro. Elas possibilitam burlar um modo de consumo instituído e previsto desde a produção, de maneira a permitir uma “fabricação” astuciosa, silenciosa e quase invisível, que se faz notar nas maneiras alternativas de empregar os produtos oferecidos para o consumo. O que distingue táticas de estratégias, portanto, são os tipos de operações empreendidas: “as estratégias são capazes de produzir, mapear e impor, ao passo que as táticas só podem utilizar, manipular, alterar” (DE CERTEAU, 1994, p. 92). A partir desse movimento marcado pelos modos de fazer do sujeito comum, sempre pensado em sua capacidade de desviar, contornar a racionalidade dos dispositivos estabelecidos através de arranjos inventivos e transformadores, Michel de Certeau contribui no avanço da problemática dos usos e do consumo. Ele levanta a necessidade de voltar-se a atenção para a produção dos consumidores, inclusive dos consumidores dos meios de comunicação:

Nessa perspectiva, o consumidor está inscrito em relações de poder, mas não é um ator passivo. Também instaura uma outra produção, fabrica num espaço que é do outro, com os elementos que a ordem dominante lhe impõe. Esta fabricação não se faz notar em produtos próprios, mas na forma de empregar os produtos, na apropriação. Aqui, a cultura popular formula-se e expressa-se em artes de fazer a cultura comum, para usar a expressão de Certeau, ao relacionar-se com os produtos massivos, dentro das relações de força que aí se estabelecem, lança mão de táticas, uma arte de dar golpes, realizada no lugar do outro, pois não conta com um lugar próprio, dependente do tempo, por seu não lugar e vigilante para transformar acontecimentos em ocasiões (BONIN, 2003, p. 3).

Muitos trabalhos, geralmente notáveis, dedicam-se a estudar sejam as representações sejam os comportamentos de uma sociedade. Graças ao conhecimento desses objetos sociais, parece possível e necessário balizar o uso que deles fazem os grupos ou os indivíduos. Por exemplo, a análise das imagens difundidas pela televisão (representações) e dos tempos passados diante do aparelho (comportamento) deve ser completada pelo estudo daquilo que o consumidor cultural “fabrica” durante essas horas e com essas imagens (DE CERTEAU, 1994, p. 39).

Desse modo, compreendemos que o consumidor, o usuário, o homem comum, no nosso caso, o migrante, afasta-se da suposta passividade que lhe foi atribuída para empreender um movimento de táticas de resistência, de artes de fazer, sempre inventivas, através das quais se apropria dos objetos, dos códigos, do espaço e das tecnologias. Isso não nos leva a desconsiderar as relações de poder entre as instâncias de produção e consumo, mas exige a complexificação do entendimento das dinâmicas que atuam entre as duas esferas, cada vez mais imbricadas em suas lógicas. O cuidado em não sobrevalorizar o papel do consumidor ao analisar os múltiplos processos de consumo é lembrado por Mattelart (2000), ao criticar estudos baseados

Essa fabricação, como propõe, é definida como uma produção, uma poética, que atua a partir dos espaços dos sistemas de produção estabelecidos, que nunca deixam aos consumidores um lugar pró-

38

nas pesquisas de De Certeau que, diferentemente do que propunha o autor, passaram a quase desconsiderar as dimensões do poder. Tais proposições devem ser atualizadas hoje, em tempos de interação mediada por computador, em que as facilidades de acesso à esfera da produção levam a uma ressignificação do estatuto do “usuário” ou “consumidor” das tecnologias da comunicação. Esse sujeito, a partir de um pré-condicionamento imposto pelas possibilidades técnicas, diferentemente do que analisava De Certeau, pode não apenas produzir sentidos desviantes daquilo que é produzido para o consumo, mas sugerir novos produtos a partir de outra relação estabelecida com os lugares de querer e de poder próprios. Vale destacar a importância das propostas de Michel de Certeau para os estudos de recepção, especialmente para o estudo dos usos sociais dos meios de comunicação. Sua contribuição vai dialogar com as proposições dos Estudos Culturais latino-americanos, através das quais, desde os anos 1980, a visão de um receptor passivo é substituída pela compreensão da complexidade da relação entre produção e consumo dos meios de comunicação, processo sempre localizado e somente possível de ser compreendido quando inserido no âmbito da cultura e da vida cotidiana. Dessa forma, ancorados em um referencial teórico que privilegia o conceito de mediação, entendemos que os usos sociais das mídias são definidos por um conjunto de entornos que interage na construção dos significados atribuídos aos meios de comunicação e no modo como sujeito e tecnologia se relacionam. A diversidade de modos de usar as mídias, mesmo que limitada por imposições de ordem tecnológica e pelas questões de desigualdade econômica e social, é marcada também pela capacidade de produção de sentido de cada indivíduo, garantida através de suas identificações, competências e também de sua relação com as identidades, história, valores, hábitos e tradições. Entendemos, portanto, que é por meio das mediações, variáveis de acordo com o receptor, que se produz o sentido – não definido somente no momento da produção, mas estabelecido a partir do modo como vai sendo apropriado. É no deslocamento do interesse dos meios para o lugar onde é produzido o seu sentido que são pensadas as dinâmicas dos usos sociais dos meios de comunicação, complexos e, muitas vezes, imprevisíveis. Nesta lógica, percebe-se a possibilidade de que bens simbólicos e mensagens possam ser transformados em seus usos sociais, sempre múltiplos e mediados. Ao traçar um panorama sobre os estudos de recepção, Escosteguy e Jacks (2005) abordam os usos sociais dos meios como uma concepção proposta por Jesús Martín-Barbero, desenvolvida em decorrência da perspectiva das mediações, como busca de entendimento da relação entre receptores e meios. Segundo as autoras, a proposta

nasce da necessidade de entender a inserção das camadas populares latino-americanas em um processo acelerado de modernização, o que implica no aparecimento de identidade e sujeitos sociais novos, forjados, em especial, pelas tecnologias da comunicação. Para além desse entendimento das mediações, no resgate de alguns conceitos trabalhados por Jesús Martín-Barbero evidencia-se uma reformulação na proposta para pensar a comunicação. Trata-se não do abandono da construção teórico-metodológica de explorar as mediações entre as lógicas de produção e as de uso, mas um reequilíbrio da importância conferida à cultura da vida cotidiana e aos meios de comunicação. Como comenta Maria Immacolata Vassalo Lopes (2001), na apresentação à edição brasileira de Os exercícios do ver – Hegemonia audiovisual e ficção televisiva, textos posteriores do autor, incluindo a publicação em parceria com o psicólogo colombiano Germán Rey, mostram uma preocupação em elucidar as relações entre meios e mediações. Depois de propor uma mudança no foco dos estudos comunicacionais, com a valorização da riqueza da vida cotidiana na mediação dos sentidos atribuídos aos meios de comunicação, o autor propõe pensar nas mudanças na constituição das relações sociais a partir da apropriação de diferentes tecnologias. Martín-Barbero (2000) afirma que nunca negou a importância dos meios, enfatizando que eles influem conforme as expectativas e demandas geradas pelas pessoas. O autor comenta o seu primeiro movimento de ruptura com as teorias hegemônicas da comunicação através da análise da realidade cotidiana na América Latina: Comecei afirmando o lugar dos meios, nos estudos dos processos de comunicação, de uma forma que os meios não fossem o ator da comunicação, mas sim um dos atores, muito importantes, mas que estavam entrelaçados a outros atores também importantes. De algum modo, tivemos que mudar um pouco a noção de comunicação, para não falar unicamente da transmissão de informação. [...] Foi preciso mudar a noção da comunicação para poder mostrar um pouco da nossa realidade latino-americana, não só em meio à miséria social, mas também em meio à riqueza da vida (MARTÍN-BARBERO, 2000, p. 157).

A partir da reflexão sobre seu percurso teórico e a formulação de conceitos em sua obra, o autor garante que não abandonou suas proposições, mas incluiu elementos para a análise desse complexo fenômeno da comunicação, sobretudo desde a ruptura cultural vivida na contemporaneidade: Não dá para entender essa ruptura sem a presença dos meios, a presença da publicidade, sem a presença das novas tecnologias.

39

Apoiado em outros autores, Martín-Barbero nomeia de sociabilidade a trama de relações cotidianas tecidas pelos homens ao juntarem-se e através das quais organizam os processos primários de interpelação e constituição dos sujeitos e das identidades. É, segundo o pesquisador (2002b), o que constitui o sentido da comunicação como questão de fins e não apenas de meios. Esse contexto de transformações do âmbito da tecnicidade e das identidades exige repensar o mapa através do qual são estudadas as mediações comunicativas:

Para mim, o mais importante é compreender que, hoje em dia, não somente aparecem novos aparelhos – porque quando surge uma nova tecnologia como o computador, a Internet, videogames, satélite, tudo que está aparecendo – não são só aparelhos, são novas linguagens, novas formas de perceber, novas sensibilidades, novas formas de perceber o espaço, o tempo, a proximidade, as distâncias (MARTÍN-BARBERO, 2000, p. 157-8).

É a presença generalizada dos meios e seus usos sociais que fazem Martín-Barbero propor diferentes mediações para entendermos a comunicação. A novidade está nas mediações tecnológicas e culturais, a partir, inicialmente, do estudo da televisão, meio em que esteve voltada a atenção inicial do pensador. Em Os exercícios do ver, o autor pensa na TV através das hibridações entre a tecnicidade e a visualidade: “Nos marcos dessas duas categorias a televisão torna-se experiência comunicativa e cultural nos processos de ‘des-construção’ e re-construção’ das identidades coletivas, lugar onde se trava a estratégica batalha cultural do nosso tempo” (LOPES, 2001, p. 10). A tecnicidade e a visualidade são vistas como novos lugares metodológicos. Assim, a técnica é entendida como constitutiva da comunicação, como responsável por “novos modos de perceber, ver, ouvir, ler, aprender novas linguagens, novas formas de expressão, de textualidade e escritura” (LOPES, 2001, p. 11-2). A tecnologia perde seu sentido instrumental e a técnica passa a instituir um novo regime de visualidade que introduz alterações no estatuto epistemológico do saber. A experiência audiovisual e tecnológica propõe novos modos de relação com a realidade, incluindo nossas percepções do tempo e do espaço. A argumentação de Martín-Barbero faz pensar sobre a emergência de dispositivos responsáveis por alterações nos vínculos sociais. Hoje, sem abandonar as formas tradicionais de interação, lidamos cada vez mais com os outros através das mediações do mundo da técnica. Para além do modelo da comunicação tradicional, em que o ritual se mantém como dispositivo organizador, passamos a conviver ainda com modelos baseados na representação da mídia e na formação de redes de comunicação. Com a radicalização da sociabilidade midiática, através da ação de um conjunto de procedimentos técnico-midiáticos oferecendo novos nichos de interação, observamos uma complexificação dos regimes de sociabilidade, via meios tecnológicos que, através de suas diferentes possibilidades de usos, implodiram o panorama da vida social tradicional, instaurando o que se vem nomeando de uma nova sociabilidade – por um lado resultante de novas práticas, novas linguagens, e por outro marcada pelo resgate de tradições e costumes fundados na experiência da vida cotidiana.

Un nuevo mapa que dé cuenta de la complejidad en las relaciones constitutivas de la comunicación en la cultura pues los medios han pasado a constituir un espacio clave de condesación e intersección de la producción y el consumo cultural, al mismo tiempo que catalizan hoy algunas de las más intensas redes de poder (MARTÍN-BARBERO, 2002b, p. 226).

Este novo mapa proposto por Martín-Barbero (2002b) contempla as relações entre matrizes culturais e formatos industriais, por um lado, e lógicas de produção e competências de recepção e consumo, por outro. Relações estas mediadas por diferentes regimes de institucionalidade e diversas formas de sociabilidade, além de dinâmicas e complexas tecnicidades e ritualidades. Nesse contexto em que o protagonismo das tecnologias é cada vez maior, investigar como se efetuam os usos da internet no cotidiano de pessoas que convivem com diferentes espaços comunicacionais representa um desafio, pois deve levar em conta todas essas mediações implicadas nas relações entre sujeitos e tecnologias da comunicação. A busca de conceitos articulados pelo autor ajuda para que abandonemos uma perspectiva determinista, que vê na tecnologia a imposição de mudanças alheias às práticas culturais de cada grupo, ao mesmo tempo em que permite lançar questões sobre a reconfiguração das identidades e das culturas a partir dos usos das diferentes tecnologias. Em livro dedicado ao esforço de traçar uma cartografia da perspectiva latino-americana no campo da comunicação, no qual se posiciona duramente contra o que denomina uma tendência ao autismo tecnicista, Martín-Barbero (2002b) situa a necessidade de estudo das tecnologias a partir da relação entre inovações culturais e usos sociais. O autor chega a falar de tecnologia, no singular, e culturas, no plural, por acreditar que é da tecnologia que provêm um dos mais poderosos impulsos à homogeneização, constituída como uma imposição reducionista à tentativa de modernização com base tecnológica, sobretudo na realidade latino-americana, pois desconsidera a brecha, a não contemporaneidade existente entre as tecnologias e produtos culturais que se consomem e o lugar, o espaço social e cultural em que são consumidos.

40

-Barbero (2006) amplia, portanto, o debate ao enfatizar a necessidade de se buscar os cruzamentos entre competências e tecnologias. Em diálogo com o pesquisador, podemos pensar nos modos como as apropriações diversas e nem sempre previsíveis das tecnologias configuram novas formas de saber e maneiras renovadas de intervenção na realidade social:

Com este entendimento, o autor identifica os modos de uso das tecnologias como formas de resistência, em um deslocamento do olhar da técnica em si para seus modos de apropriação, principalmente pelas classes populares. Embora parta do pressuposto de uma inevitável subalternidade diante das lógicas impostas pela ordem tecnológica, pensada em sua dimensão política como uma forma de dominação – reflexão que não partilhamos totalmente por entendermos que também as tecnologias devam ser compreendidas em sua dimensão plural –, Martín-Barbero complexifica o entendimento das relações entre meios e sociedade, tecnologias e sujeitos. No que define como pensar as tecnologias através do popular, sua construção aproxima-se uma vez mais do que propõe De Certeau quanto à possibilidade de ação desde o lugar do outro. Martín-Barbero diz que esse movimento nada tem a ver com o fetichismo e a fascinação da técnica recorrentes em muitas pesquisas da área, pois parte da compreensão de que as tecnologias não são meras ferramentas dóceis e transparentes e não se deixam usar de qualquer modo, mas são a instância de realização de uma cultura e do domínio nas relações culturais: “Pero el rediseño es posible, si no como estrategia al menos como táctica, en el sentido que le da Michel de Certeau: el modo de lucha de aquél que no puede retirarse a su lugar y se ve obligado a luchar en el terreno del adversario” ( MARTÍN-BARBERO, 2002b, p. 189-190). Em sua proposta de “entre-ver meios e mediações”, portanto, Martín-Barbero amplia nossas perspectivas de estudo da comunicação, através da busca de equilíbrio no papel atribuído a ambos. No prefácio da quinta edição castelhana de Dos meios às mediações, dez anos depois de seu lançamento, o autor reconhece os meios de comunicação como espaços chave de “condensação e intersecção de múltiplas redes de poder e de produção cultural” e, ao mesmo tempo, alerta contra “o pensamento único que legitima a idéia de que a tecnologia é hoje ‘o grande mediador’ entre as pessoas e o mundo” (MARTÍN-BARBERO 2001, p. 20). Voltar a atenção para as mediações que atuam no processo de apropriação dos sujeitos em relação às tecnologias significa, na perspectiva de Martín-Barbero, empreender um deslocamento:

O lugar da cultura na sociedade muda quando a mediação tecnológica (J. Echeverría) da comunicação deixa de ser meramente instrumental para espessar-se, condensar-se e converter-se em estrutural: a tecnologia remete, hoje, não a alguns aparelhos, mas, sim, a novos modos de percepção e de linguagem, a novas sensibilidades e escritas (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 54).

Nessa perspectiva, a relação entre comunicação e cultura, o afastamento do determinismo tecnológico, a valorização do receptor e a preocupação com o processo de significação inserido nas práticas cotidianas são algumas das reflexões assumidas a partir dos Estudos Culturais latino-americanos, especialmente através da contribuição de Martín-Barbero, que colaboram para pensarmos os usos sociais das mídias relacionados com as experiências de migração. Mais do que o inicial deslocamento exigido pelo estudo das mediações na produção de sentidos atribuídos aos meios de comunicação, o percurso teórico exposto faz pensar sobre as novas formas de vida e sociabilidades construídas através de profundas transformações instauradas através dos usos das tecnologias da comunicação. A constatação de rupturas nas culturas, no modo como nos identificamos e na forma com que estamos juntos em sociedade a partir dos usos que efetuamos dos meios e das novas experiências que eles possibilitam, aliada à compreensão do papel das práticas culturais cotidianas nas relações que estabelecemos com as tecnologias, são importantes pontos a serem considerados ao pensarmos a comunicação na contemporaneidade.

Percursos de uma pesquisa sobre recepção midiática e migrações

Que nos lleva de las tecnologías en sí mismas a sus modos de acceso, de adquisición, de uso: desplazamiento de su incidencia en abstracto a los procesos de imposición y dependencia, de dominación pero también de resistencia, de resemantización y rediseño (MARTÍN-BARBERO, 2002a, p. 177).

O conceito de usos sociais, a partir de sua aproximação à ideia de mediação tecnológica, pode ser associado à compreensão das diferentes apropriações realizadas pelos sujeitos em relação às tecnologias da mídia. Para tanto, como percurso metodológico da pesquisa desenvolvida, busca-se combinar entrevistas em profundidade de relatos de história de vida e história de vida midiática com migrantes residentes no Brasil a partir do ano 2000.

A ideia de mediação tecnológica contribui para a reflexão a respeito das relações estabelecidas entre sujeitos e tecnologia. Martín-

41

de comunicação e o Brasil do Sul, do frio e da cultura gaúcha, a que muitos conhecem só depois de migrar. A aproximação aos relatos dos migrantes permite compreender o impacto das experiências com as mídias e os sentidos de seus produtos nas vivências cotidianas de cada sujeito, em um dinâmico processo de construção de projetos de migração e de sentidos para o Brasil como país para migrar. Juntamente com o contato a redes migratórias, formadas por parentes, amigos e conhecidos, os usos sociais das mídias integram o contexto vivido dos sujeitos e configuram experiências que vão sendo ressignificadas ao longo do processo de migração. Se não são decisivas na escolha do local para migrar, as mídias, através de suas múltiplas apropriações, engendram sentidos sobre a própria experiência de deslocamento, permitem o contato entre os migrantes e atuam, de maneira cada vez mais incisiva, no processo de significação sobre as identidades e culturas implicadas no processo migratório.

Ao todo, foram realizadas 14 entrevistas em profundidade: quatro foram com mulheres (uma nascida no Peru, uma em Guiné-Bissau, uma na Colômbia e uma na Alemanha), e dez com homens (um nascido no Uruguai, um na Hungria, três no Peru, um em Guiné-Bissau e quatro no Haiti). Suas idades variam de 23 a 62 anos. O tempo de residência desses migrantes no Brasil varia entre um e 13 anos, e residem em três cidades gaúchas: Santa Maria, Bento Gonçalves e Porto Alegre. Na pesquisa, os usos sociais das mídias foram investigados através do resgate feito pela memória dos migrantes durante as entrevistas. Nesse sentido, as entrevistas foram divididas em três eixos: “Trajetória de migração e Brasil”, momento em que os entrevistados puderam contar um pouco de sua história antes de migrar, como sobre seu cotidiano e a realidade de seu país de origem; “Mídias no país de nascimento”, eixo sobre a relação dos migrantes com os diferentes meios de comunicação e o tipo de informação sobre o Brasil a que tinham acesso; “Usos da Mídia e internet”, fase na qual as perguntas foram específicas sobre usos que os entrevistados fazem das diferentes mídias. Embora os dados qualitativos da pesquisa não cheguem a ser explorados no contexto deste artigo, é possível sinalizar que a recepção midiática, sobretudo televisiva, mostra-se nas entrevistas realizadas como conformadora de imaginários sociais sobre o Brasil como país de migração para os sujeitos entrevistados, principalmente no momento da construção dos projetos de migração (BRIGNOL, 2014). Os imaginários sobre o país vão sendo construídos a partir de uma memória com base em referências a telenovelas, telejornais, filmes, músicas e outros produtos midiáticos, assim como a partir de relatos de outros migrantes que compõem a rede de contato e apoio dos entrevistados. Como sentidos construídos sobre o Brasil nas narrativas migrantes, destacamos a permanência de um imaginário em torno do país tropical e das festas – construções ainda bastante presentes. A violência, assim como referências a elementos celebrativos, como as praias, o carnaval, o samba e o futebol, se mantém no imaginário dos entrevistados, sobretudo a partir de memórias da recepção de telenovelas e telejornais. Entretanto, o Brasil dos migrantes entrevistados não conjuga apenas construções dicotômicas entre o festivo e o violento. Ele aparece também como país que oferece oportunidade de crescimento e alternativa diante de situações de crise, seja de ordem natural ou econômica. As entrevistas sinalizam também para as diferenças entre o Brasil imaginado antes de migrar e o Brasil vivido no cotidiano dos sujeitos. Essas diferenças podem ser observadas, por exemplo, no distanciamento entre o Brasil tropical a que consumiam pelos meios

42

REFERÊNCIAS

MATTELART, Armand. As condições da renovação. In: MATTELART, Armand; NEVEU, E. Introdução aos estudos culturais. São Paulo: Parábola, 2004.

BONIN, Jiani. A identidade étnica como mediação na recepção de telenovela. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 26, 2003, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: Intercom, 2003. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2014. BRIGNOL, L. D. Recepção midiática na construção de imaginários do Brasil como país de migração. In: Revista Chasqui, nº 125, 2014. COGO, Denise; BADET, Maria de Souza (2013). Guia das Migrações Transnacionais e Diversidade Cultural para Comunicadores: Migrantes no Brasil. Bellaterra (Barcelona): Instituto de la Comunicación de la UAB - Instituto Humanitas Unisinos. v. 1. DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. ESCOSTEGUY, Ana Carolina; JACKS, Nilda. Comunicação e recepção. São Paulo: Hacker Editores, 2005. LOPES, Maria Immacolata Vassalo. Apresentação à edição brasileira. In: MARTÍN-BARBERO, Jesús; REY, Germán. Os exercícios do ver: hegemonia audiovisual e ficção televisiva. São Paulo: Editora Senac, 2001. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Comunicação e mediações culturais. Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, n.1, jan. 2000. ______. Dos meios às mediações: Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001. _______. Identidades: tradiciones y nuevas comunidades. Comunicação e Política, n.1. jan. 2002a. ______. Oficio de cartógrafo: travesías latinoamericanas de la comunicación en la cultura. Santiago de Chile: Fondo de Cultura Económica: 2002b. ______. Tecnicidades, identidades, alteridades: mudanças e opacidades da comunicação no novo século. In: MORAES, Denis (Org). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.

43

Jornalismo e cultura da convergência uma análise exploratória da relação entre a revista tpm e seus leitores em ambientes digitais

Marlon Santa Maria Dias l UFSM Viviane Borelli l UFSM

A popularização das novas tecnologias e das ferramentas digitais, o desenvolvimento da comunicação digital, a proliferação de redes de informações interconectadas e o abandono da concepção de um leitor passivo na recepção à concepção de um leitor em atividade tanto no consumo quanto na produção despertaram, nos anos recentes, a discussão sobre o “futuro do jornalismo”. A emergência das mídias digitais e a migração dos leitores para esses ambientes online resultam em especulações sobre a finitude próxima da mídia impressa. A questão que se instala nas redações jornalísticas, estende-se e ganha vida em fóruns de discussão, observatórios, congressos e salas de aula das escolas de comunicação é de que maneira pensar a produção de conteúdo para um leitor que não se fixa mais no produto impresso apenas, mas que circula pelos ambientes digitais. De que modo satisfazer e fidelizar esses leitores que “perambulam por várias mídias, migrando em seus contatos com os mesmos, e quebrando zonas clássicas de fidelização com vários deles” (FAUSTO NETO, 2009, p. 9). Os ambientes digitais emergiram como novos territórios e, hoje, é muito difícil encontrar organizações jornalísticas que não tenham sites ou portais de informações, perfis e páginas em sites de redes sociais ou ainda produção de material voltado exclusivamente para essas plataformas. Com isso, vemos que o jornalismo passa por um processo de transformações. Esse processo, no entanto, não é exclusivo do campo midiático, mas sim de toda a sociedade, em que práticas sociais sofrem constantes mudanças em decorrência da midiatização. O processo de midiatização da sociedade encontra-se em curso, ou seja, está incompleto (VERÓN, 1997), e se realiza quando dispositivos midiáticos empreendem operações técnicas e simbólicas que afetam os demais campos sociais, sua estrutura e seu funcionamento, podendo codeterminar suas ações. Essas injunções do campo midiático nos demais campos se devem não só à centralidade da mídia nas interações entre os campos, mas também – e sobretudo – a essa nova cultura que vivenciamos hoje, a midiática, que instaura novos protocolos de linguagem e redimensiona as práticas sociais (FAUSTO NETO, 2007). Assim, também percebemos, em decorrência da midiatização, mutações nos modos de se fazer jornalismo. Como afirma Fausto Neto (2009, p. 19), “o processo intenso e crescente da midiatização sobre a sociedade e suas práticas sociais, afeta de modo peculiar a cultura jornalística, seu ambiente produtivo, suas rotinas e a própria identidade dos seus atores”.

44

666

Uma prévia do texto foi apresentada no GT Convergência e Recepção na Web, da II Jornada Gaúcha de Pesquisadores da Recepção

Frente a este cenário e considerando a influência do processo de midiatização nas transformações do jornalismo contemporâneo, buscamos discutir neste artigo como o jornalismo de revista interage com seus leitores em diferentes ambientes digitais. Nossa escolha pelo produto revista se deve a particularidades do contrato que a revista estabelece com o leitor, lançando mão de algumas estratégias para garantir sua fidelização. Aliás, é o contato com o seu leitor que diferencia a revista dos outros meios (SCALZO, 2004). A segmentação, por exemplo, já se mostra como uma estratégia de delimitação de público. Desse modo, iniciamos com uma reflexão sobre a convergência cultural (JENKINS, 2009), que reconfigura as instâncias de produção e recepção dos produtos midiáticos. Em seguida, pensamos mais detidamente no jornalismo de revista e em seus leitores. Por fim, buscamos aplicar as reflexões empreendidas na primeira parte deste artigo em nosso objeto de estudo, a revista TPM. Para compreender como a revista interage com seus leitores, mapeamos, num primeiro momento, os ambientes digitais onde encontramos a revista e os elencamos, discorrendo sobre sua funcionalidade. Num segundo momento, pretendemos pensar quais são os espaços que a revista constrói para participação do seu leitor, quais as estratégias utilizadas para “chamar” esse leitor à participação, bem como a maneira como ocorre o diálogo entre essas duas instâncias do processo comunicacional.

do nada, como se não houvesse um histórico de produção de conteúdo semelhante em plataforma impressa. O que ocorre é a inovação de algo já existente, com a soma de novos recursos (audiovisuais, sonoros, interativos). Do mesmo modo, a revista impressa também se adapta ao cenário das novas mídias, mudando o seu layout, adaptando sua linguagem e apresentando uma versão remodelada. As reflexões de Bolter e Grusin (1999) se afastam de uma visão que apregoa a morte das velhas mídias e nos fazem pensar sobre o processo de transformação pelo qual as mídias passam. Assim, um novo paradigma emerge – o da convergência – em contraposição ao que era pregado pela revolução digital que presumia a substituição das antigas mídias pelas novas. O paradigma da revolução digital alegava que os novos meios de comunicação digital mudariam tudo. Após o estouro da bolha pontocom, a tendência foi imaginar que as novas mídias não haviam mudado nada. Com muitas outras coisas no atual ambiente de mídia, a verdade está no meio-termo. Cada vez mais, líderes da indústria midiática estão retornando a convergência como uma forma de encontrar sentido no momento de confusas transformações. A convergência é, nesse sentido, um conceito antigo assumindo novos significados (JENKINS, 2009, p. 32-33).

Surge então um conceito-chave para pensarmos essas mutações: a convergência das mídias, que é mais do que apenas uma mudança tecnológica. A convergência altera a relação entre tecnologias já existentes, as indústrias, os mercados, os gêneros e o público. A lógica pela qual a indústria midiática opera é alterada, assim como a lógica pela qual os consumidores processam tanto a notícia quanto o entretenimento. Assim, como Jenkins (2009, p. 43) sinaliza, “a convergência refere-se a um processo, não a um ponto final”. O autor constrói seu pensamento na via contrária à ideia de que a convergência poderia ser compreendida através da analogia com uma caixa preta – um aparelho que agregaria múltiplas funções. Em vez disso, a convergência representa uma transformação cultural, “à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos da mídia dispersos” (JENKINS, 2009, p. 29-30). Ou seja, a convergência ocorre nos consumidores e nas interações estabelecidas por eles. Esse cenário de transformações nos faz repensar o que é consumir mídia hoje.

Cultura da convergência e mutações no fazer jornalístico O advento das mídias digitais trouxe instabilidade ao mercado dos meios de comunicação. Os rumores anunciavam o fim das mídias tradicionais, que seriam substituídas pelas novas mídias digitais. Isso, no entanto, ainda não aconteceu – e é bem possível que não aconteça: jornais, revistas, emissoras de rádio e de televisão continuam a existir. Com um público menor? Talvez a resposta seja com um público menos estagnado. Hoje, a oferta de uma variedade de conteúdos em diferentes plataformas possibilita uma dispersão do consumidor de mídia. Os meios, obviamente, precisam se adaptar a essas mutações e pensar não só em diferentes formas de apresentação do conteúdo, mas também em novos modos de interação com o seu interlocutor. Percebemos, então, que ocorre a remediação (BOLTER; GRUSIN, 1999), processo em que uma nova mídia remodela uma mídia anterior ou vice-versa, quando uma velha mídia acaba recebendo um novo uso. Este processo é perceptível quando observamos uma revista online, por exemplo. Muito do que há nela são protocolos e códigos já presentes na mídia impressa. Ou seja, não é por ser online que a revista surge

Se os antigos consumidores eram tidos como passivos, os novos consumidores são ativos. Se os antigos consumidores eram previsíveis e ficavam onde mandavam que ficassem, os novos consumidores são migratórios, demonstrando uma declinante lealdade

45

Na esfera profissional, a emergência das mídias digitais e a convergência modificaram o perfil do jornalista, que precisa agora ser versátil na produção de conteúdo para diferentes plataformas e dominar os códigos específicos de cada uma delas. Isso implica, muitas vezes, na acumulação de trabalho, que agora segue outras lógicas, sedimentadas na velocidade da informação e na necessidade de interação. Nessa conjuntura, o jornalista “enfrenta questões relativas à precarização do trabalho, ameaças de demissões, além da queda da qualidade do seu produto e necessidade de formação de uma nova autoimagem para a identidade profissional” (AGNEZ, 2012, p. 40). Quanto à produção de conteúdo, a questão central refere-se aos modos de apresentação. Salaverría e Negredo (2008) utilizam o conceito de convergência de conteúdo para falar tanto sobre a apresentação dos conteúdos de mesma temática em diferentes suportes (multiplataforma) quanto sobre a mescla de linguagens advindas de diferentes suportes em uma mesma narrativa. Na primeira geração do jornalismo digital2, era comum os veículos disponibilizarem o conteúdo em diferentes suportes sem, no entanto, adaptá-lo ao meio. Essa prática de replicar conteúdos, chamada por Salaverría e Negredo de shovelware, desconsiderava as particularidades de cada meio. Com o avanço das práticas, os veículos perceberam que cada meio precisava de um conteúdo trabalhado especificamente para aquele suporte. Assim, chega-se à fase denominada reporpusing, quando há ajustes no conteúdo a ser veiculado considerando o suporte. Esta é então a característica da distribuição multiplataforma, em que “a produção da notícia é feita de acordo com um suporte: um texto para jornal, um vídeo para televisão e um infográfico multimídia para Internet” (SOUZA, MIELNICZUK, 2010, p. 36). A convergência fez com que as redações fossem remodeladas, obrigou os profissionais a se adequarem às novas ferramentas digitais e impulsionou uma mudança na apresentação dos conteúdos que circulam pelos ambientes digitais dos veículos midiáticos. Além disso, presenciamos nos anos recentes uma popularização das mídias sociais digitais. A presença massiva dos consumidores nesses ambientes fez com que as organizações de mídia migrassem também para esse território, desenvolvendo “estratégias de uso dessas ferramentas para pulverizar as informações produzidas pelo veículo, comunicar-se com os leitores, receber sugestões de pauta e até mesmo fazer coberturas jornalísticas inteiras, em tempo real e com colaboração de conteúdo” (SEIBT, 2012, p. 3). Por mídias sociais digitais entendemos esses sistemas que “possibilitam usos e apropriações que envolvem participação ativa do interagente através de comentários, recomendações, disseminação e compartilhamento de conteúdo próprio ou de terceiros” (CARVA-

a redes ou a meios de comunicação. Se os antigos consumidores eram indivíduos isolados, os novos consumidores são mais conectados socialmente. Se o trabalho de consumidores de mídia já foi silencioso e invisível, os novos consumidores são agora barulhentos e públicos (JENKINS, 2009, p. 47).

Ou seja, a figura daquele que consume tanto a notícia quanto o entretenimento se modifica. Emerge dessa convergência cultural a necessidade de participação e cooperação entre os atores sociais. E, como atenta Orozco Gómez (2010, p. 15-16), é preciso pensar de que maneira as velhas mídias vão se adaptando às novas circunstâncias – o que permanece da velha e o que a nova mídia introduz, como se modificam mutuamente e sobrevivem – para, então, compreender as mutações que ocorrem nas audiências, como elas se apropriam, produzem e fazem circular os conteúdos midiáticos. É preciso considerar, também, os dois lados da convergência: ao mesmo tempo em que ela possibilita a expansão dos conglomerados midiáticos, com seus conteúdos dispersos em diferentes plataformas, ela também representa um risco para as empresas que, ao deslocarem o seu público para um novo ambiente, podem perdê-lo (JENKINS, 2009, p. 47). Por isso, são necessárias estratégias que façam com que o público migre, mas continue fiel. Posto isto, atentamos a necessidade de se pensar o jornalismo contemporâneo inserido nessa “cultura da convergência” (JENKINS, 2009). Como vimos, esta não se refere apenas aos diversos conteúdos que podem ser encontrados num aparelho técnico, mas sim a processos de fluxo de informações e pessoas, que buscam novas experiências para se informar e se entreter, hoje possíveis devido aos processos de digitalização. O jornalismo impresso, foco deste trabalho, precisa se adaptar à instabilidade que a emergência do online provoca tanto nas redações quanto nos leitores. O jornal ou a revista precisam se apresentar de outro modo para atrair novos públicos, sem, é claro, perder o seu leitor já fidelizado. Essas mudanças impõem novos modos de ser e fazer o jornalismo impresso (SEIBT, 2012). No início da chamada era digital, as organizações jornalísticas perceberam a necessidade de utilizar as novas tecnologias para auxiliar na produção do material que iria circular no impresso. As possibilidades que essas tecnologias traziam qualificaram a instância produtiva, remodelando práticas de apuração, escrita e apresentação das matérias. No entanto, as redações ainda estavam divididas entre quem era do online e quem era do impresso. Desde 20061, percebemos uma nova mudança: a integração das redações. O objetivo dessa integração é enxergar o produto – seja jornal ou revista – como um todo, produzindo um material mais coeso e interligado.

46

1

O New York Times foi o primeiro jornal a integrar suas redações, em 2006. No Brasil, O Globo foi o pioneiro, também em 2006

2

Mielniczuk (2003) divide o jornalismo digital em três gerações, sendo a primeira delas a fase da transposição de conteúdos dos suportes analógicos para o contexto digital

LHO; BARICHELLO, 2013, p. 136). Assim, as organizações jornalísticas utilizam as ferramentas das mídias sociais não só para disseminar mais facilmente os seus conteúdos pelas redes sociais, mas também para estabelecer contatos de interação com os seus leitores. Nesses ambientes de mídias sociais, no entanto, os interagentes não precisam do aval da instância produtiva para se manifestar, pois a lógica que rege essas mídias é outra, não linear como a das mídias tradicionais. As organizações, então, precisam repensar suas estratégias de contato com o seu público, que levem em conta essa mobilidade e facilidade de interação não só entre mídia-público, mas também entre público-público. Tendemos, assim, a concordar com a assertiva de Michel Maffesoli (2004, p. 23), que afirma: “as pessoas não querem só informação na mídia, mas também e fundamentalmente ver-se, ouvir-se participar, contar o próprio cotidiano para si mesmas e para aqueles com quem convivem. A informação serve de cimento social”. Nesta sociedade em rede, os interagentes desempenham um papel fundamental na reconfiguração social e são os pilares de uma cultura mais participativa, vigilante, coletiva e conectada. Até aqui, buscamos apresentar como a cultura da convergência modificou os modos de fazer jornalismo, bem como sinalizamos algumas mutações que atingiram as organizações jornalísticas nesta era digital. Há, nesse cenário de mudanças, um elemento que nos parece chave para entender os deslocamentos e reposicionamentos que a cultura da convergência impõe: o público, o consumidor, a audiência. A seguir, tentaremos explorar mais essa instância do processo de comunicação, tendo como foco o leitor de revistas. Para tanto, discutiremos as particularidades que caracterizam o leitor do jornalismo de revista e o contrato que se estabelece entre o veículo e o seu público.

nado; o segundo é o leitor físico, as pessoas que compram as revistas e as consomem. Nem sempre, é certo, esses dois leitores se encontram. Antes disso, o que ocorre é uma negociação em que o leitor real faz o movimento de se identificar com a proposta da revista ou repeli-la. Fátima Ali (2009), experiente editora de revistas, afirma que, se perguntado sobre o que gostaria de ver na revista, o leitor não saberia responder. Cabe ao editor compreendê-lo, “ir além dos desejos e necessidades expressos por ele e descobrir quais são seus ‘desejos latentes’” (ALI, 2009, p. 34). Essa ideia se relaciona ao de leitor idealizado pelas redações. O jornalismo de revista possui especificidades consequentes de seu formato e de sua proposta. Além de possuírem periodicidade diferente dos jornais diários e apostarem em textos mais interpretativos, as revistas estabelecem um elo afetivo “para que o leitor sinta a revista como “sua”, como parte de sua rotina, como uma necessidade, como algo a ser esperado e cujo consumo possa ser ritualizado” (BENETTI, 2013, p. 47). A revista difere-se dos outros veículos por fazer jornalismo “daquilo que ainda está em evidência nos noticiários, somando a estes pesquisas, documentação e riqueza textual” (VILAS BOAS, 1996, p. 9). Com isso, preenchem os vazios deixados pelos outros veículos que, regidos por outras lógicas e adeptos a diferentes códigos, tergiversam a interpretação dos fatos. Logo, a revista responde a uma função cultural de documentação histórica, que se relaciona a um universo mais amplo, a uma memória social. Além disso, a revista “amplia nosso conhecimento, nos ajuda a refletir sobre nós mesmo e, principalmente, nos dá referências para formarmos nossa opinião” (ALI, 2009, p. 18). Uma das características do jornalismo de revista é a segmentação. São vários os critérios para segmentar uma publicação – gênero (feminino/masculino), faixa etária, localização geográfica, classe social, temática são algumas das principais (SCALZO, 2004). A segmentação é uma forma de delimitar melhor o seu leitor, direcionando a produção de conteúdo para um público específico. O editor de revistas torna-se um especialista em grupos de consumidores, que deve possuir a competência de atrair para a sua publicação um público mais homogêneo, foco de determinados anunciantes (MIRA, 2001). Como afirma Scalzo (2004), é essa relação que a revista estabelece com o seu público que a diferencia de outros meios. A revista, para a autora, é “também um encontro entre um editor e um leitor, um contato que se estabelece, um fio invisível que une um grupo de pessoas e, nesse sentido, ajuda a construir a identidade, ou seja, cria identificações, dá sensação de pertencer a um determinado grupo” (SCALZO, 2004, p. 12).

O jornalismo de revista e o contrato com seus leitores

3

Há diferentes denominações para esse leitor ideal, a maioria delas provenientes dos estudos literários. Neste trabalho não nos aprofundaremos sobre as particularidades que diferenciam os termos

O jornalismo, como prática discursiva, necessita de um interlocutor para sua efetivação. Há sempre esse “outro” a quem se destina a matéria jornalística, que será informado e com quem os sentidos serão negociados. O jornalismo, assim, não pode lançar garrafas ao mar – como adverte Amaral (2004), que utiliza esta analogia para atentar a necessidade de se pensar para quem se escreve o texto jornalístico. Há, assim, dois leitores: um ideal (imaginário, imaginado, mo3 delo) e um real. O primeiro é o leitor projetado pela revista, aquele que é pensado dentro das redações e para quem o conteúdo é direcio-

47

Para que essa relação entre revista e leitor seja estabelecida, é necessário um contrato firmado entre as duas partes que dê ao leitor um sentido para ele estar consumindo determinada revista.

como e se a revista utiliza as ferramentas digitais para criar espaços de interação com seu público, como os leitores participam da criação da revista e se há diálogos entre revista e leitor5.

A revista, por sua natureza, tem um contrato implícito com o leitor, mais ou menos nos seguintes termos: “Prometo que se você ler esta revista, edição após edição, encontrará à sua disposição o que é importante para você e do seu interesse, vai saber o que quer saber, e até o que não sabia que precisava.” (ALI, 2009, p. 32).

Os leitores de TPM A revista TPM (Trip Para Mulheres) foi lançada em maio de 2001 pela Editora Trip. A distribuição da revista é nacional, com periodicidade mensal. No início, sua tiragem era de 80 mil exemplares; hoje, 36 mil. O primeiro editorial da revista conta que a ideia de criar a TPM surgiu quando uma pesquisa apontou que 25% dos leitores de Trip – revista da mesma editora voltada para o público masculino – eram mulheres. Considerada uma revista segmentada para o público feminino, a proposta de TPM é ir contra o que comumente se apresenta nas demais revistas do gênero: “Com conteúdo inovador, a TPM não acredita em fórmulas prontas e mostra mulheres contemporâneas vivendo em um mundo real sem perder o bom humor e o jogo de cintura”6. TPM é revista feminina com maior número de indicações ao Prêmio Esso de Jornalismo, mais importante premiação do jornalismo brasileiro, tendo vencido duas vezes. Junto com o lançamento da revista TPM, a Editora Trip lançou o site da revista, já pensando em ter um ambiente digital que pudesse agregar conteúdos convergentes ao da versão impressa. Desde 2005, o site está hospedado no portal UOL7. O site é o primeiro ambiente que analisamos no trabalho. Atualizado diariamente, o site vai além do conteúdo que a revista apresenta e tem a função não só de disponibilizar o conteúdo de TPM como também de agregar ícones que encaminham o leitor aos diferentes espaços digitais ocupados pela revista. O conteúdo do site está separado em reportagens, vídeos, ensaios, entrevistas e blogs. Os blogs são espaços mais personalizados e que, longe da impessoalidade do site, servem para aproximar mais o leitor, sendo uma via mais fácil de interação. Tanto o site quanto os blogs permitem comentários de leitor. Para comentar, você pode se cadastrar ou apenas marcar a opção “convidado” e enviar a sua mensagem. A revista, no entanto, incentiva o leitor a se cadastrar, apresentando, através de um link, as vantagens: “ao se cadastrar gratuitamente no site da Trip você tem direito a uma série de regalias dignas de um integrante da família virtual TPM”. O usuário cadastrado pode favoritar matérias preferidas, marcá-las para ler depois, receber newsletter e participar de promoções exclusivas. Essa estratégia de troca tenta atrair o leitor através das “regalias” e do sentimento de pertença à “família virtual TPM”.

Este contrato, aliás, não é único das revistas. O jornalismo, para ser reconhecido como tal (“isto é jornalismo”, “isto não é jornalismo”), se articula através de um contrato de comunicação sustentado por “valores e princípios historicamente construídos e reafirmados [...] pelos sujeitos envolvidos: jornalistas, fontes, leitores, empresários, pesquisadores” (BENETTI, 2013, p. 49). Charaudeau (2006) acredita que o contrato é o que permite que os interagentes reconheçam os códigos no ato comunicacional e, através dos efeitos de sentido, se efetive a relação. Para isso, o autor reconhece cinco elementos necessários para o contrato: quem diz (jornalista, revista); para quem (leitor); para que se diz (finalidade); o que se diz (conteúdo); em que condições (contexto, tempo de produção, tempo do leitor); como se diz (estratégias). Para Verón (2004), os produtos midiáticos possuem um contrato, mesmo que não seja formalizado e apenas implícito, que se situa no plano das modalidades de dizer. É o leitor que, frente aos múltiplos caminhos propostos, escolhe o percurso de leitura. Para o autor, os suportes midiáticos possuem dispositivos de enunciação, compostos por enunciador, destinatário e a relação entre ambos, proposta no e pelo discurso (VERÓN, 2004, p. 218). É através desse dispositivo – que na imprensa escrita o autor denomina contrato de leitura – que se percebem as especificidades do suporte. Contudo, percebemos que a revista (ou qualquer outro produto jornalístico) só se estabelece através da legitimação que lhe é delegada pelos leitores. Estes não apenas leem a revista, mas têm um poder de influência tanto no conteúdo quanto na abordagem do tema, sendo importantes na constituição do produto. O jornalismo de revista caracteriza-se pela segmentação e lida com um público mais delimitado. A questão que surge, então, é como manter fiel esse leitor que, com a mobilidade nos ambientes digitais, migra para diferentes plataformas e tem acesso a uma infinita gama de conteúdos? Pensando nessa questão, resolvemos fazer uma análise exploratória (GIL, 2008)4 da revista TPM. Durante os meses de março e abril de 2014, mapeamos o site e as três mídias sociais digitais mais utilizadas pela revista (Facebook, Instagram e Twitter), a fim de compreender

48

4

Para Gil (2008, p. 27), a principal finalidade das pesquisas exploratórias é desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias, tendo em vista a formulação de problemas e hipóteses pesquisáveis para estudos posteriores

5

Decidimos não omitir os nomes dos leitores por julgar que seus comentários encontram-se em perfis públicos e também por considerar que tratam-se de discursos produzidos na e para um Site de Rede Social (RECUERO, 2009)

6

Disponível em: http://www.tripeditora.com.br/ marcas-trip/. Acesso: 16 jun. 2014

7

www.revistatpm.com.br

8

tinyurl.com/revistatpm

9

www.youtube.com/revistatpm

10

http://revistatpm.tumblr.com/

11 https://twitter.com/revista_tpm 12 http://instagram.com/revistatpm 13 http://www.pinterest.com/revistatpm/ 14 https://plus.google.com/u/0/+RevistaTpm 15 https://www.facebook.com/revistatpm

lizar o leitor, despertando nele o sentimento de estar contribuindo com a construção da revista. Outra estratégia semelhante foi lançada na edição analisada. Pelo Instagram da revista, os seguidores foram convidados a postar um selfie (autorretrato), utilizando a hashtag #TRIPCOLABORATIVA1, respondendo à pergunta “Qual é a sua cor?” (figura 1). Trinta e sete fotos de leitoras foram publicadas em duas páginas da revista. A revista Trip também passou a realizar a campanha, também com a publicação das fotos na edição impressa. A revista, assim, desperta um pertencimento no leitor, que agora vê seu rosto nas páginas da revista. Além, é claro, de ser um incentivo à compra da edição impressa.

Ainda no site, encontramos uma seção na barra superior chamada “redes”. Ao clicar, o leitor é direcionado a uma página que traz o título “Me adiciona” e, abaixo, os ícones dos demais ambientes digitais em que podemos encontrar a revista. Atualmente, a revista é disponibilizada na íntegra em tablets e smartphones, além de conteúdos multimídia exclusivos e interativos, com material fotográfico, audiovisual e sonoro, agregando material que é veiculado também pela Trip FM (programas radiofônicos) e Trip TV (programa televisivo). A iniciativa de produzir conteúdo para esses suportes específicos sinaliza o caráter inovador da revista, bem como a preocupação de que os leitores continuem conectados à revista além do contato com a edição impressa. Além disso, a revista possui uma página no Google Books8 (não atualizado desde 2011); um canal no YouTube9, onde são postados vídeos da Casa Tpm, evento realizado pela revista para discussão de temas relacionados às mulheres; e um perfil no Tumblr10, não atualizado desde maio de 2013. A revista possui ainda perfis no Twitter11, Instagram12, Pinterest13, Google+14 e uma página no Facebook15. É nessas mídias sociais que percebemos uma interação mais frequente entre a revista e os leitores. Destas, as principais mídias utilizadas pela revista são o Twitter, o Facebook e o Instagram. Nas duas primeiras, é geralmente postado conteúdo de divulgação da revista, com links que encaminham para as matérias no site; enquanto o Instagram funciona como local de postagem de fotos relacionadas aos bastidores, capas e enquetes. No Twitter, é comum também a postagem de uma frase convidando o leitor a seguir a revista em outros ambientes digitais. Além disso, o perfil também compartilha (através de um retweet) tweets dos seguidores. Em geral, são comentários de caráter elogioso à publicação. Tanto no Twitter quanto no Instagram e no Facebook, a revista realiza enquetes e campanhas, que mobilizam os leitores a opinar sobre os temas destacados pela revista. Algumas enquetes são direcionadas para a publicação impressa, ou seja, a revista escolhe algumas respostas e publica na edição posterior. Na edição lançada durante o período de análise (nº141/abril), por exemplo, a revista fez a seguinte pergunta no Facebook: “O que você acha que deveria ser feito, pelo governo e pela sociedade, para acabar com o racismo?”. Dez comentários foram selecionados para publicação. Essa atitude ajuda a fide-

Figura 1: Enquete realizada pelo Instagram da revista TPM

Mesmo criando mecanismos e espaços de interação com o seu leitor, identificamos algumas falhas nessa relação revista-leitor, especialmente no que diz respeito ao diálogo que se estabelece entre essas duas instâncias. Como dissemos anteriormente, as mídias sociais digitais possibilitam uma interação muito mais rápida e direta entre os interlocutores. Assim, muitos leitores utilizam esse canal para se comunicar com a revista e, algumas vezes, para fazer críticas à publicação. Na figura 2, vemos uma postagem da revista no Instagram, a foto de uma reunião de pauta da equipe e, no texto, perguntando se os seguidores não teriam sugestões. Uma leitora queixa-se das repe-

49

tidas cartas que os assinantes recebem sobre a renovação automática. Segundo ela, “é ofensivo e desrespeitoso!”. Na figura 3, também vemos leitores reclamando, agora do serviço de distribuição da revista, que aparentemente sempre atrasa a entrega dos exemplares para assinantes. Em nenhum dos casos, a revista respondeu aos leitores.

Figura 2: Crítica de leitora à TPM.

Figura 3: Leitoras criticam sistema distribuição da revista.

50

No período analisado, identificamos apenas uma resposta pública da revista, no Twitter. Era uma crítica, no entanto, bastante leve e relacionada a um erro de digitação (a revista escreveu IPhome em vez de IPhone). O erro foi corrigido e eles responderam de modo descontraído (figura 4).

discute nesse ambiente digital. Cresce o número de matérias não só em sites jornalísticos, mas também em jornais, revistas e televisão sobre o que se dissemina nos sites de rede social. Ou seja, a rede de informações e pessoas interconectadas modifica o fluxo das notícias, que percorre agora caminhos inapreensíveis. Através da análise exploratória realizada nos ambientes digitais da revista TPM foi possível perceber que a revista investe em produção de conteúdo não só para a versão impressa, mas também para as mídias digitais, não fazendo apenas uma transposição do que se tem na edição impressa no online, mas sim conteúdos exclusivos e multimídia. A revista também demonstra estar atenta aos sites de redes sociais mais utilizados no momento e tenta se inserir nesses espaços, utilizando estratégias de contato com o leitor, com o objetivo de fidelizá-lo e fazê-lo consumir o material disponibilizado no site. Porém, a revista ainda parece falhar no sistema de resposta às críticas dos leitores. Ao deixar o leitor sem resposta, a revista não só o afasta como também deixa a impressão de que não se preocupa com ele. Esse silenciamento por parte da revista pode representar a quebra de um contrato de leitura que é construído num ambiente que proporciona distintas interações. Mesmo que os discursos tenham uma cadeia significante infinita, esse contato relacional entre revista e leitor parece se esvaziar num dado momento. Esse parece ser um grande desafio não só para as revistas mas para todas as mídias, pois, se há a oferta de possibilidades interacionais, elas devem ser concretizadas e não deixadas à deriva.

Figura 4: Resposta de TPM à leitora no Facebook

Considerações Finais

O jornalismo contemporâneo se depara com fenômenos que exigem dele constante adaptação e atualização. O conteúdo circula agora por diferentes plataformas midiáticas e o leitor não só quer participar ativamente da construção dos meios de comunicação como também demonstra um comportamento imprevisível. O fenômeno da midiatização facilitou o contato entre a revista e o leitor e agora, imersos em uma cultura da convergência, a mídia precisa criar novos modos de apresentação do seu contato, além de investir em novas formas de interação com o seu público. Assim, percebemos que o cenário que se configurou nos últimos anos possibilita o deslocamento do consumidor de mídia, agora interagente, que ocupa não só o lugar de receptor, mas também de fonte dos meios tradicionais, que acompanham o que acontece e se

51

Referências

Porto Alegre: Sulina, 2004.

AGNEZ, Luciane Fassarella. Convergência entre meio impresso e digital: reconfigurações nas rotinas jornalísticas da Tribuna do Norte e do Extra. In Texto (UFRGS. Online), v. 1, p. 38-53, 2012.

MIELNICZUK, Luciana. Jornalismo na web: Uma Contribuição para o Estudo do Formato da Notícia na Escrita Hipertextual. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Culturas Contemporâneas. Salvador: UFBA, 2003.

ALI, Fátima. A arte de editar revistas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009.

MIRA, Maria Celeste. O leitor e a banca de revistas: a segmentação da cultura no século XX. São Paulo: Olho d’Água/ Fapesp, 2001.

AMARAL, Márcia Franz. Lugares de Fala do leitor no Diário Gaúcho. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação. Porto Alegre: UFRGS, 2004.

OROZCO GÓMEZ, Guillermo. La investigación de las audiências “viejas y nuevas”. Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación, São Paulo: ALAIC, n.13, Ano 7, 2010.

BENETTI, Marcia. Revista e Jornalismo: conceitos e particularidades.In TAVARES, Frederico de Mello B.; SCHWAAB, Reges. (org.). A revista e seu jornalismo. Porto Alegre: Penso, 2013, p. 44-57

RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2009.

BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: Understanding New Media. Cambridge, EUA: MIT Press, 1999.

SALAVERRÍA, Ramón; NEGREDO, Samuel. Periodismo integrado – convergencia de medios y reorganización de redacciones. Barcelona: Sol 90, 2008.

CARVALHO, Luciana Menezes; BARICHELLO, Eugenia M. M. Rocha. Jornalismo institucional no Twitter: participação e inclusão do leitor como estratégia de legitimação do jornal Zero Hora. Animus (Santa Maria. Online), v. 12, p. 134-149, 2013. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006.

SCALZO, Marília. Jornalismo de revista. São Paulo: Contexto, 2004. SEIBT, Taís. Transposição de linguagens online para o jornal impresso: aspectos de convergência em tempos de redações integradas. In: XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Anais... Fortaleza, 2012.

FAUSTO NETO, Antonio. Fragmentos de uma “analítica” da midiatização. Revista Matrizes. São Paulo: ECA/USP, n. 1, ano 1, p. 89-105, 2007.

SOUZA, Maurício Dias; MIELNICZUK, Luciana. Aspectos da narrativa transmidiática no jornalismo da revista Época. Comunicação & Inovação, São Caetano do Sul. v.11, n.20, p. 35-42, jan-jun 2010.

_____. Olhares sobre a recepção através das bordas da circulação. In: XVIII Encontro da Compós - GT Recepção, Usos e Consumos Midiáticos. Anais... Belo Horizonte, 2009.

VERÓN, Eliseo. Esquema para el análisis de la mediatización. In: Revista Diálogos de la Comunicación, n.48, Lima: Felafacs, 1997. _____. Fragmentos de um tecido. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2004.

GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

VILAS BOAS, Sergio. O estilo magazine: o texto em revista. São Paulo: Summus, 1996.

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009. MAFFESOLI, Michel. A comunicação sem fim (teoria pós-moderna da comunicação). In: MARTINS, F. M.; SILVA, J. M. (orgs). A genealogia do Virtual: Comunicação, Cultura e Tecnologias do Imaginário.

52

Cultura Hip Hop e resistência Em busca de transformações sociais em Santa Maria (RS)

777

Amanda Rosieli Fiúza e Silva l UFSM Jonária França l UFSM

Sandra Rubia da Silva l UFSM

Cultura periférica: o surgimento do movimento hip hop e seu desenvolvimento no Brasil Este artigo trata da cultura periférica1 e a sua utilização como ferramenta de resistência sociopolítica, ou seja, a maneira estratégica como esta cultura é utilizada pelos membros da periferia, empregando-a como forma de comunicação para expressar as suas inquietações sociais. Além disso, apresentamos as maneiras pelas quais as expressões culturais são empregadas para contrapor e romper com os estereótipos criados pela mídia hegemônica, que na maioria das vezes mostra a comunidade periférica apenas pelo viés negativo, isto é, associada à criminalidade. Por fim, analisamos como a cultura hip hop tem sido apropriada como forma de resistência em Santa Maria, através do evento denominado Batalha dos Bombeiros. Todavia, primeiramente, para compreender as perspectivas que entrelaçam a cultura hip hop na atualidade e o aspecto sociopolítico desse movimento cultural é preciso fazer uma contextualização de seu surgimento para entender com base em que ideias essa cultura foi desenvolvida. A cultura hip hop, segundo Coutinho (2008), tem sua origem em um contexto conturbado. Surgiu em meados dos anos 60/70 nos Estados Unidos da América (EUA), em meio ao auge da Guerra Fria. O contexto local era de descontentamento devido às perturbações causadas pela guerra. Além disso, nessa época, as comunidades negras viviam impostas a leis severas, que eram aplicadas com o objetivo de manter um processo de segregação, fazendo com que os negros se mantivessem restritos aos seus subúrbios. A situação dos guetos, além da precariedade estrutural, era de insatisfação e clima tenso, um ambiente propício para revolta. Ainda, segundo Coutinho (2008), o processo de segregação racial ocasionado pelas leis rígidas aplicadas nas comunidades negras fez com que a população negra se unisse em prol de reivindicar seus direitos civis. Surgiam assim as associações comunitárias que tiveram importantes nomes em sua liderança, tais como Malcolm X e Martin Luther King. Os dois militantes tinham estratégias de ação diferenciadas, suas formas de atuação não eram as mesmas, todavia, tinham como consenso que era muito importante para os negros desenvolverem sua capacidade de organização política. O assassinato de Luther King, em 1968, acabou por impulsionar várias manifestações raciais nos EUA.

53

Uma prévia do texto foi apresentada no GT Usos, Apropriações e Consumo, da II Jornada Gaúcha de Pesquisadores da Recepção

1

Em alguns momentos da escrita, neste artigo, tomamos a liberdade de nomear a cultura hip hop – habitualmente referenciada dessa forma nos trabalhos e pesquisas acadêmicas – como cultura periférica num ato intencional para fazer com que possivelmente ao ler o termo “cultura periférica” o leitor possa imaginar o âmbito de origem dessa cultura, ou seja, comunidades periféricas. Dessa forma, sempre que o leitor encontrar o termo “cultura periférica” saberá que estou falando sobre a cultura hip hop

2

Gueto negro e caribenho localizado na região norte da cidade de Nova York

3

O termo MC’S é a sigla para designar os Mestres de Cerimônias

4

Canecão, na época, era uma das principais casas de espetáculo de música pop do Rio de Janeiro

bases musicais do funky, porém, o som era mais pesado, sendo composto apenas por alguns instrumentos, bateria e scratch, e a voz. O grafite surge, inicialmente, como forma de demarcar território pelos guetos, depois passou a ser utilizado para chamar atenção, na forma de letras garrafais, para reforçar o pertencimento ao gueto, pois só quem era do local entendia as escritas. Posteriormente, essa técnica é aprimorada e passa, através de desenhos confeccionados com tinta ou spray, a expressar a realidade das ruas, ou seja, as dificuldades e opressões sofridas pelos jovens de periferia/guetos/comunidades. Pode-se dizer que a rua foi o componente responsável por interligar todos os elementos da cultura hip hop, pois foi nesse espaço, carregado de significações e inspirações, que os elementos se desenvolveram e se fortaleceram cada vez mais. Coutinho (2008) afirma que as expressões culturais relacionadas a vivências comuns acabaram por reunir os jovens dessas diferentes manifestações culturais, grafiteiros, breakers, rappers, para realizarem eventos em conjunto. O autor menciona a figura de Afrika Bambataa, DJ do Bronx2, como o responsável por organizar a grande maioria desses eventos, ganhando destaque nas festas que produzia. Em 1968, Bambataa cunhou o termo hip hop para nomear esses encontros nos quais reunia djs, MC’S3 e dançarinos de break. Assim surge o movimento hip hop com todos os seus elementos de expressão. A trajetória do movimento hip hop no Brasil teve algumas peculiaridades devido ao contexto histórico do país que vivia em regime ditatorial. Para entender a construção desse movimento é necessário contextualizar brevemente o desenvolvimento do funk carioca. De acordo com Herschmann (2005), o funk carioca se iniciou por volta dos anos 70 com os “bailes da pesada”. Nessa época o soul já era conhecido internacionalmente e o “modismo” da discoteca havia se espalhado por vários países. Esses bailes da pesada aconteciam no Canecão4, porém, por pouco tempo, já que tiveram que migrar para Zona Norte, devido ao interesse do Canecão pela MPB. Algumas adaptações foram feitas para que essas festas pudessem se afirmar na Zona Norte, as equipes organizadoras das festas tiveram que comprar equipamentos de sons. Dessa forma, os espaços nessas festas eram organizados com várias caixas de som empilhadas. Essas equipes consideradas as pioneiras na organização dos bailes de subúrbio possuíam nomes que remetiam a canções do Soul, exemplo disso é Soul Grand Prix e a Revolução da Mente, que faz clara referência à canção Revolution of Mind do cantor James Brown. Em meados dos anos 70, os bailes começam a sofrer transformações musicais, tendo a Soul Grand Prix como principal responsável por introduzir a nova fase do funk na cidade do Rio de Janeiro. Essa equipe também começou a utilizar equipamentos de mídia, tais

Nessa época, ocorreu grande disseminação dos movimentos e partidos políticos negros. O movimento Black Power surge com a proposta de empoderamento e fortalecimento da identidade negra, enfatizando o direito da população negra de atuarem por meio de suas próprias instituições políticas, assegurando, assim, os rumos das suas comunidades. O partido político Black Panthers também surgiu nessa época, porém, foi fortemente repreendido pela polícia, que à base da truculência conseguiu extinguir a atuação do partido. A polícia só não conseguiu destruir as ideologias partidárias, pois o movimento hip hop acabou se apropriando do legado de ideias deixadas pelos Black Panthers. Dessa forma, o movimento hip hop surge nas décadas de 60/70 nos guetos americanos em meio ao cenário local tumultuado, a forte repressão policial, configurando como outra forma de organização dos negros, com viés político, porém, sem constituir um partido. Mesmo assim, o movimento tem muita influência das ideias do Black Power e do Black Panthers, pois possui o viés sociopolítico. Assim, os jovens encontraram nas expressões culturais, inicialmente na música, um modo de fugir da dura realidade que vinham enfrentando. Além do contexto ideológico do surgimento da cultura hip hop, é preciso atentar para suas bases musicais. Segundo Herschmann (2005), na década de 60, os negros americanos que lutavam pelos direitos civis utilizaram do soul como fundo musical para suas lutas. Já na passagem da década de 60 para 70, o funk ou funky começa a ser visto de forma diferente, se antes era carregado por conotações negativas, acaba se transformando em algo positivo, até mesmo sendo associado ao “orgulho negro”. Dessa forma, o funky consegue ser visto como um estilo musical capaz de produzir música “revolucionária”, sendo compreendido por alguns como uma vertente da música negra, devido ao mercado musical ainda ter forte presença do soul. Ainda, conforme Herschmann (2005), nesse período, nos guetos surgiam algumas novidades sonoras impulsionadas por DJs como o Jamaicano Kool-Kerc e seu discípulo Grand Master Flash que passaram a utilizar em suas festas algumas técnicas de mixagem, possibilitadas por aparelhagens tecnológicas, tais como scratch, mixadores, sound systems e os repentes eletrônicos, posteriormente conhecidas como raps. Simultaneamente, nessas festas começaram a se desenvolver algumas manifestações artísticas, tais como a dança, as grafitagens, feitas com tintas ou spray em muros e trens de metrô - além da utilização de roupas diferenciadas pelos frequentadores, configurando um estilo de vestir-se dos membros. Surgiam, assim, os elementos da cultura hip hop. A dança é conhecida como break, em que os dançarinos, inicialmente, faziam movimentos parecidos com uma luta e semelhantes aos dos robôs. A música do hip hop era composta pelas

54

como slides, filmes, pôsteres, com o intuito de “despertar” os frequentadores para a beleza negra, ou seja, a identidade negra. Porém, devido ao regime de ditadura e a forte presença da discoteca tanto na Zona Norte como na Zona Sul, impossibilitaram o desenvolvimento de qualquer movimento étnico (HERSCHMANN, 2005). Assim, conforme Herschmann (2005), após passar a fase da discotecagem nos anos 80, outros estilos ganham espaço nos bailes, todavia, a Zona Norte permanece fiel à música “negra norte-americana”. No decorrer da década, grande parte das produções norte-americanas, elementos hip hop e os novos funkys, eram introduzidos nos bailes, porém, nada era mencionado ou associado ao movimento hip hop. Pode-se dizer que o funk foi responsável por introduzir e tornar conhecidos alguns elementos do hip hop norte-americano nos bailes, todavia, não eram intitulados como membros da cultura hip hop, eram admitidas semelhanças com essa cultura, mas também e, principalmente, algumas diferenças, tais como o som mais pesado e arrastado. A partir de Herschmann (2005) pode-se entender que se no Rio de Janeiro o funk já era algo quase consolidado, é na noite paulistana que o movimento hip hop encontra um terreno propício para seu desenvolvimento. Nos populares bailes periféricos e salões, inicialmente, com produções mais norte-americanas do que brasileiras. A nacionalização do funk trouxe também o distanciamento, à medida que se tornava mais brasileiro afastava-se das referências do hip hop norte-americano. Assim, no Rio de Janeiro, o estilo musical mais dançante e direcionado para entreter o público toma conta dos bailes, já em São Paulo o estilo “politizado” conquistou os espaços e foi se associando ao movimento negro. Assim se desenvolve no Brasil a cultura hip hop associada às causas do movimento negro e com forte caráter reivindicatório. Segundo Coutinho (2008), a dança (break) foi a primeira expressão da cultura hip hop a despontar no Brasil, porém, essa expressão cultural se desenvolveu sobre fundo musical importado. Não por muito tempo, pois devido às músicas inglesas serem incompreensíveis, os b.boys perceberam a necessidade de começar a compor suas próprias rimas. O empecilho foi a falta de instrumentos adequados para compor o fundo musical, mas a improvisação conseguiu suprir essa necessidade e o “bater de latinhas” tornou-se a composição de base do primeiro rap brasileiro, denominado como “rap tagarela”. Coutinho (2008) aponta a criação, em 1988, do Movimento Hip Hop Organizado como o inaugurador de uma nova fase da cultura hip hop. Visto que este grupo foi um grande difusor dessa cultura, pois além de se preocuparem com a linguagem de suas músicas, também tinham como importante conhecer e estudar a ideologia, conteúdo histórico e a visão de mundo desse movimento. A biografia de

Malcolm X e o filme Black Panthers foram considerados primordiais na formação dos membros desse grupo. Nesse sentido, o autor considera “São Paulo como o centro irradiador da cultura hip hop no Brasil” (COUTINHO, 2008, p. 219). O contexto histórico de surgimento nos EUA e desenvolvimento no Brasil da cultura hip hop sugere um ambiente de intensa repressão devido ao contexto da guerra nos EUA e ao regime ditatorial em que o Brasil se encontrava na época. Dessa forma, se pode dizer que a cultura hip hop foi um importante mecanismo de transformação da realidade caótica em que os países estavam vivendo, especialmente, para os jovens das comunidades periféricas. Nesses ambientes, as expressões culturais foram desenvolvidas de acordo com as vivências e experiências dos jovens, sendo usadas como forma de expressão para reivindicar os direitos que lhes eram negados, deste modo, transformar a realidade massacrante a que estavam submetidos. Devido aos cenários dos países em que a cultura hip hop se proliferava, notou-se que a forte repressão policial, tanto no Brasil quanto na América do Norte, dificultou o desenvolvimento dessa cultura. Assim sendo, a repressão policial e a associação da cultura a marginalidade foram e, ainda são, mecanismos utilizados para neutralizar as formas de atuação dos membros da cultura hip hop. Todavia, esses mecanismos de controle social podem ser considerados dicotômicos, pois se são barreiras criadas pelo sistema para que o movimento hip hop não se fortaleça, ao mesmo tempo, acabam contribuindo com a resistência dos membros da cultura hip hop, isto é, que eles se unam em prol de vencer essas barreiras e mostrar sua forma de resistência a esses mecanismos.

Mídia e representações da comunidade periférica Afinal, de que periferias estão falando?! Muito se fala em periferia como lugar de criminalidade, através de discursos construídos a base da generalização, criou-se a estigmatização desse local. Pouco se atenta para os aspectos positivos desse espaço, como as produções artísticas, as relações interpessoais desse ambiente, a forma de comunicação que, muitas vezes, configura um falar próprio de cada comunidade, entre outras coisas que também compõem o espaço da periferia. É o que Paiva e Nóra destacam a “constatação da escassa visibilidade social, a não ser em termos negativos, das populações socialmente periféricas” (PAIVA; NÓRA, 2008, p. 13). A mídia tende a mostrar apenas o aspecto negativo das comunidades periféricas, difundindo apenas uma realidade desse local.

55

Percebe-se que os meios de comunicação hegemônicos acabam se transformando em mecanismos que ajudam a manter a “ordem social”, as posições e os privilégios de determinados grupos da sociedade. Pode-se intuir também que, por ser uma cultura de contestação que visa à transformação social de determinados aspectos, a cultura hip hop é “desvalorizada” pela mídia hegemônica. Aliás, os discursos construídos por esses meios de comunicação, geralmente, associam os membros da cultura hip hop à criminalidade, às drogas, à violência, às infrações da lei, entre outros delitos. Herschmann e Galvão (2008) afirmam que “no discurso midiatizado predomina o tom de condenação à atitude rapper e dos fãs do hip hop” (HERSCHMANN; GALVÃO, 2008, p. 202). A mídia hegemônica costuma estigmatizar a cultura hip hop, todavia, não entende que em ambientes como a comunidade periférica, essa cultura pode ser um caminho de fuga da criminalidade para muitos jovens. Araújo e Coutinho (2008) corroboram dizendo que “a cultura hip hop costuma ser assimilada como uma fala histórica essencialmente crítica por uma juventude com tão escassas vias de fuga” (ARAÚJO; COUTINHO, 2008, p. 211). As representações sociais da comunidade periférica feitas pela mídia hegemônica são, na sua maioria, estigmatizadoras. Nesse sentido, é notável a influência da mídia na construção do imaginário social e dos estereótipos. Entretanto, é importante entender como as expressões da cultura periférica auxiliam para desmistificar essas representações que mostram a periferia apenas pelo viés negativo, ou seja, da criminalidade.

Os meios de comunicação têm papel importante na função de informar a população. Nesse sentido, a mídia atua como uma instituição “educadora” que auxilia na construção de conhecimentos e contribui na formação de opinião da população. Através das construções discursivas, por meio de recortes da realidade, os meios de comunicação hegemônicos auxiliam na concepção do imaginário social e na formação cultural das pessoas, porém, muitas vezes atuam como disseminadoras de estereótipos preconceituosos. Herschmann (2008) aborda que, os jovens da periferia, no discurso midiático, aparecem, frequentemente, relacionados à criminalidade, e é a partir dessas representações que o “status de realidade social” é construído, ou seja, que se cria a ideia do real. Então, a mídia, através apenas do recorte negativo da comunidade periférica, acaba contribuindo com a generalização da imagem dos jovens da periferia. Todavia, deve-se considerar também que os meios de comunicação dominantes são constituídos pelos grupos hegemônicos e que operam dentro das regras do mercado capitalista. Sendo assim, eles visam manter as posições sociais e as estruturas de poder como estão. Logo, os discursos são regidos pela premissa do lucro e da forte concorrência, os conteúdos exteriorizam a integração à lógica mercantilista. Portanto, é perceptível que a valorização se dá pelo que reverte em lucro, assim sendo, as representações do consumismo, riqueza, desejo do novo, a moda, as novas tendências, constituem os principais conteúdos nos meios de comunicação dominante. Magnani (2003), ao falar sobre as consequências da influência dos meios de comunicação em nossa sociedade, argumenta que “a influência dos meios de comunicação de massas é tal que sob o impacto de suas mensagens não fica pedra sobre pedra, e o que resta não escapa à contaminação exercida pelos valores da ideologia dominante” (MAGNANI, 2003, p.26). Essas representações fragmentadas da comunidade periférica que adquirem o “status de realidade social”, em ambientes fora do contexto de origem, são responsáveis, também, por “engessar” um estereótipo dos jovens na sociedade. Além disso, as reproduções midiáticas, alicerçadas na lógica do capitalismo, contribuem para “moldurar” as práticas sociais e por difundir um ideal de vida, onde o consumismo é tido como algo a ser valorizado. Nesse sentido, Herschmann (2005) faz uma reflexão sobre as atuais práticas sociais dos jovens e as maneiras que eles agem na sociedade:

Cultura de representação (in)ter-relações de poder e resistência As condições precárias de vida, aliadas as representações midiáticas feitas da comunidade periférica, a falta de valorização da sua cultura, acaba levando os moradores a buscar formas de lutar contra essa opressão e falta de visibilidade social. Assim, surge, “as rotas de comunicação alternativa” termo utilizado por Coutinho (2008), para se referir às estratégias de expressão que os moradores das periferias articularam para fugir dos mecanismos de repressão social.

Os conflitos e as práticas sociais que os envolvem são cada vez mais interpretados como indícios que confirmam o estereótipo que se tem, não só dos jovens, mas também dos indivíduos das sociedades atuais: de que vivem apenas para a prática ‘irracional do consumo’ e são desprovidos de qualquer interesse pela política ou coletivo (HERSCHMANN, 2005, p. 53).

Ao contrário do que se costuma imaginar, se não ouvimos a fala política dos habitantes das favelas – e mesmo dos moradores de rua – não é porque eles estejam anestesiados, passivos ou não tenham nada a dizer: é porque sua voz é calada, abafada, distorcida (COUTINHO, 2008, p. 65).

56

Neste sentido, partimos dos pressupostos teóricos de Santos (2006), que nos diz que a cultura é um espaço de poder, abordando sobre a diversidade cultural, as relações de poder interculturais, assim como as existentes na sociedade e a importância da cultura como forma de expressão. Sendo assim, consideramos que todas as formas de expressão denotam posições sociais, culturais, ideológicas dos sujeitos envolvidos e estão interligadas a determinado contexto social. Antes de falar em cultura de resistência é necessário contextualizar brevemente a sociedade em que vivemos pelo viés da composição étnica. O Brasil é um país multicultural em que a imigração juntamente com a globalização possibilitou a hibridização de culturas e identidades. Dessa forma, vivemos em uma sociedade heterogênea composta por diversos grupos étnicos raciais. É a partir desse contexto que as representações sociais e todas as formas de expressões culturais devem ser valorizadas. Todavia, percebo forte valorização de culturas das classes médias, o que posso denominar a partir do termo de Gramsci (2007) como “consenso cultural”. A partir dessa perspectiva, consideramos que, através da forma de atuação das instituições políticas, agindo com descaso em relação às “fissuras sociais” que ainda assolam as comunidades periféricas, o Estado impõe condições precárias de vida aos moradores da periferia. O constante abandono só agrava mais as desigualdades sociais, ao passo que não são desenvolvidas políticas públicas que assegurem o desenvolvimento das periferias e o melhoramento das condições de vida da população desses locais.

e tratamento dado aos moradores da periferia. Nesse sentido, Herschmann (2005) complementa “regime democrático que, mesmo reinstalado desde a década de 80, não conseguiu concretizar efetivamente a cidadania nem oferecer melhores condições de vida” (HERSCHMANN, 2005, p. 38). Neste sentido, as expressões da cultura hip hop são desenvolvidas a partir das percepções que os membros da cultura têm da sociedade. Então, são formas de agir sobre a realidade vivenciada, sendo importantes ferramentas de denúncia e transformação social. Verdadeiras crônicas da vida social, as letras de rap representam o cotidiano dos moradores das favelas e subúrbios a partir de uma perspectiva muito diferente daquela difundida na grande mídia, em que o preconceito e a mistificação são traços marcantes. [...] o hip hop trata de desconstruir o mito da sociedade democrática, da liberdade e igualdade de condições que o capitalismo tenta vender e mostrar que vivemos em uma sociedade dotada de sentidos e finalidades diferentes para cada uma das classes (COUTINHO; ARAÚJO, 2008, p. 223).

Nesse cenário de relações conflituosas, entre privilegiados e desfavorecidos, que a cultura periférica atua como forma de representação social e reivindicação sociopolítica, intervindo, através das expressões culturais, por melhores condições sociais. Todavia, para se conseguir que os elementos da cultura hip hop, utilizados em caráter reivindicatório, surtam resultados de transformação, é preciso reconhecer os mecanismos de opressão contra os quais os membros da comunidade lutam, ou seja, quais são seus “inimigos” dentro do sistema. Segundo Coutinho (2008), é preciso “reconhecer a maneira como se dão os processos de dominação em nossa sociedade, particularmente nos espaços populares” (COUTINHO, 2008, p. 62). É perceptível a existência de muitos mecanismos utilizados para manter a “ordem social”. Todavia, tenho a consciência da existência de outros fatores que influenciam na construção e manutenção da estrutura social. Os processos de opressão social se dão de múltiplas formas e por diversas entidades as quais são organizadas para reduzir “a participação popular a âmbitos estreitos, assim como bloqueia o horizonte democrático, blindando a política de forma a que não envolva transformações substantivas na vida social” (FONTES, 2008, p. 146). Primeiramente, referencio a grande mídia como uma das estruturas utilizadas para manter as posições sociais, a partir do momento em que nem todos têm acesso às produções de conteúdo, os meios de comunicação dominantes acabam criando um ideário de sociedade baseada na lógica do consumismo. Por último, e não menos importante, os órgãos políticos são ineficazes em suas atuações, mantendo e

Vivemos numa sociedade que tem uma classe dominante, cujos interesses prevalecem. Se fôssemos relativizar os critérios culturais existentes no interior da sociedade acabaríamos por justificar as relações de dominação e o exercício tradicional do poder: eles também seriam relativos (SANTOS, 2006, p. 20).

A partir disso, a cultura de resistência é aquela que possui o forte caráter sociopolítico. A cultura de contestação social, constituída e consolidada em ambientes de enormes precariedades, ou seja, lugares que já possuem em sua essência o ato de resistir. Comunidades onde vivem indivíduos que são frequentemente excluídos da maioria dos segmentos da sociedade, seja de forma econômica, social, educacional e, até, cultural. Neste sentido, a cultura hip hop tem como principal característica o forte caráter sociopolítico, por meio das expressões culturais revelam a dura realidade das comunidades periféricas. Segundo Coutinho (2008), a cultura hip hop é uma forma de expressão que é utilizada para desmascarar o “mito da sociedade democrática”, a partir do momento que expõe as desigualdades sociais, as mazelas das comunidades periféricas, as diferenças de oportunidades

57

agravando as desigualdades sociais, um belo contraste de, como afirma Herschmann (2005), uma “sociedade tão heterogênea quanto desigual no acesso aos bens e recursos” (HERSCHMANN, 2005, p. 43). A partir do momento em que são diversos os mecanismos de opressão, é preciso também construir elementos diferenciados de expressão, ou seja, segundo Coutinho (2008), construir as “rotas de comunicação alternativa”. A cultura hip hop se utiliza de diferentes linguagens para se expressar. Por exemplo, a música, representada pelo rap utiliza a linguagem verbal, já a dança, conhecida como break, é a parte artística que utiliza da linguagem corporal para suas expressões e o grafite é a técnica artística que tem na linguagem visual sua forma de expressão, através de desenhos, grafites, onde os grafiteiros compõem verdadeiros painéis expressivos. Além disso, a cultura hip hop tem uma forte representação de identidade através do modo de se vestir despojado dos membros do movimento. Herschmann e Galvão (2008) afirmam que:

mecanismos de opressão social. O autor afirma que “a expressão oral das massas pode ser sufocada, esvaziada, induzida, mas não se pode impedir os homens e mulheres de conversarem, trocarem idéias, contestarem, resistirem nos barracos, botequins, becos e vielas” (COUTINHO, 2008, p. 64). O movimento hip hop traz nas suas expressões culturais as contestações sociais. A linguagem utilizada pelos rappers na construção dos seus raps5, elemento musical da cultura, é carregada de significações e reivindicações sociais. As letras das músicas falam de temas variados, denunciam as violências sofridas pelos moradores da periferia, até o descaso com a saúde, educação, moradia, ou seja, dos direitos básicos de todo cidadão. Os problemas sociais e do cotidiano são relatados através da realidade poética das rimas. Os jovens, através das expressões do movimento, trazem as demandas da comunidade em que vivem. Dessa forma, segundo Araújo e Coutinho (2008), “o rap se constitui como uma fala política e, em alguns casos, como uma música de rebeldia e protesto” (ARAÚJO; COUTINHO, 2008, p. 212). Essas músicas muitas vezes constituem suas próprias gírias e formas de expressão para dificultar a manipulação pelos mecanismos que detêm o poder.

A postura rapper, os gorros enterrados na cabeça, os ‘manos’, tatuagens, a agressividade juvenil, o discurso comunitário e coletivo, tudo é passível de ser traduzido simultaneamente como moda e ‘legítima ira social’ que canta e exige mudanças (GALVÃO; HERSCHMANN, 2008, p. 198).

O poder das elites, sua capacidade de determinar o sentido da realidade, de criar e impor significações, idéias, valores aos grupos subalternos, é contrabalanceado pela fala popular, com seus códigos estranhos à linguagem hegemônica, seus signos escorregadios, dificilmente assimiláveis e manipuláveis pelo discurso oficial – uma linguagem viva, que se refaz permanentemente no âmbito da comunicação comunitária (COUTINHO, 2008, p. 66).

A cultura hip hop encontra seu campo de atuação em um sistema socioeconômico excludente que tende a manter e agravar as desigualdades sociais. A atual conjuntura social é marcada por várias disparidades, ainda mais quando se compara partes centrais e periféricas das cidades. As comunidades periféricas são tratadas com descaso pelo poder público. É nessa relação conflituosa e desarmônica que o movimento hip hop surge como uma ferramenta de resistência sociopolítica e reivindicação social. Através das expressões culturais do movimento os jovens manifestam as inquietações sociais e a dura realidade da comunidade periférica.

A sociedade cria mecanismos que são utilizados para excluir os moradores da periferia de determinados espaços, como exemplo, alto preço dos ingressos de cinema, teatro, forma de ingresso nas instituições de ensino, alto preço das passagens de transporte urbano, que dificulta a locomoção desses moradores até o centro. Todavia, as comunidades periféricas dificilmente têm espaços para práticas de lazer e diversão. Assim sendo, os jovens precisam desconstruir o “confinamento” a que são condicionados pelos mecanismos de segregação/separação e ocupar os espaços centrais da cidade. Até mesmo as produções culturais tentam ser controladas pelas instituições que detêm o poder, é preciso que os membros da cultura hip hop ocupem espaços diferentes dos de sua origem e encontrem mecanismos para reverter essa constante repressão social.

O reconhecimento cada vez mais constante de inúmeras diferenças sociais, quando não reifica privilégios, está submetido a uma lógica de discriminações e preconceitos que não aponta na direção da negociação e da justiça como base da estrutura social. A argumentação mais corrente é que as fissuras sociais são profundas, e isso parece ser determinante na obstrução da possibilidade de uma interlocução e de um debate consistentes em torno de questões pertinentes (HERSCHMANN, 2005, p. 43).

5

O rap é a sigla de rhythm and poetry cuja tradução para português é ritmo e poesia

A linguagem pode ser considerada uma importante estratégia de resistência sociopolítica. Segundo Coutinho (2008), a linguagem oral é um dos únicos elementos que não podem ser silenciados pelos

Hoje em dia os centros de poder da sociedade se preocupam com a cultura, procuram defini-la, entendê-la, controlá-la, agir sobre seu

58

Nesse sentido, entendo que a cultura hip hop não pode ser desvinculada do seu âmbito de origem, todavia, precisa circular para ganhar força e se consolidar como forma de resistência sociopolítica. Além disso, as contestações sociais expressas por meio dos elementos da cultura hip hop são construídas a partir de várias forças atuantes, tais como a comparação das oportunidades dadas aos jovens da periferia e aos das regiões centrais, contraste entre zonas centrais e zonas periféricas, falta de eventos culturais voltados para a população pobre, escassez de postos de saúde, precariedades de infraestrutura das comunidades periféricas, entre outros fatores. Dessa forma, essas expressões artísticas não são construídas como algo isolado da totalidade. Segundo Souza (2012), ainda que surja e seja legitimado nas periferias, o movimento hip hop é a “representação” de vários contextos sociais. Sendo assim, considero que as práticas e relações sociais influenciam na construção do movimento. As desigualdades sociais presentes na periferia, a invisibilidade perante as camadas médias e da elite, a falta de incentivo para o desenvolvimento da cultura periférica contribuem para que os membros do movimento se fortaleçam em busca de melhorias e ampliem seus espaços de atuação, levando as expressões artísticas do movimento para outros âmbitos.

desenvolvimento. Há instituições públicas encarregadas disso; da mesma forma, a cultura é uma esfera de atuação econômica, com empresas diretamente voltadas para ela. Assim, as preocupações com a cultura são institucionalizadas, fazem parte da própria organização social. Expressam seus conflitos e interesses, e nelas os interesses dominantes da sociedade manifestam sua força (SANTOS, 2006, p. 82).

Dessa forma, a comunidade periférica a partir do momento que é extremamente excluída de quase todos os segmentos da sociedade, busca mecanismos para romper com essa exclusão, ou pelo menos, maneiras de expressar suas inquietações. Os membros do hip hop utilizam os elementos da cultura para expressarem as demandas da comunidade onde vivem, construir suas próprias representações da comunidade, diferente do viés da mídia hegemônica, e lutarem contra esses mecanismos de repressão e segregação. A música cantada pelos b.boys está relacionada cada vez mais intensamente às “culturas das favelas”: constitui-se em uma produção cultural capaz não só de espelhar uma realidade “dura” dessas localidades, mas que, também, de alguma forma, exprime a reivindicação da ampliação da cidadania ao segmento social que habita essas áreas urbanas e que durante muito tempo foi relegado a um segundo plano: um universo escondido ou ignorado por meio de uma segmentação compulsória da dinâmica urbana (GALVÃO; HERSCHMANN, 2008, p. 198).

Cutura hip-hop e resistência em Santa Maria Essa mobilidade da cultura hip hop é uma estratégia de resistência aos mecanismos utilizados para manter os jovens das comunidades somente no âmbito da periferia. A partir do momento que os moradores da comunidade rompem com os limites do bairro e passam a frequentar lugares que antes eram ocupados, na sua maioria, pela população de classe média e organizados de acordo com os interesses do comércio, eles reafirmam o direito de pertencer a esses espaços. Nesse sentido, os espaços centrais da cidade são utilizados como forma de fortificar o movimento e obter visibilidade social. Galvão e Herschmann afirmam que “o hip hop vem se impondo como novo discurso com conotações políticas para além dos “guetos” e faixas etárias” (2008, p. 198). Partindo de uma perspectiva mais geral, agora partiremos para um recorte direcionado para Santa Maria e a relação cultural na cidade. A agenda cultural da cidade não é direcionada para os jovens de baixa renda. Raramente, para não dizer nunca, se tem programações culturais organizadas pela gestão municipal que seja acessível a essa parcela da população. Para romper com esse paradigma cultural, em que só a cultura de elite é valorizada e programada, os jovens de diversos coletivos se esforçam para planejar ações culturais em espaços

As produções da cultura hip hop encontram inspiração nas comunidades onde vivem ou estão diretamente ligados os membros dessa cultura. Todavia, para configurar como forma de expressão sociopolítica e obterem visibilidade para suas causas é preciso sair da periferia e chegar às partes centrais da cidade. O “movimento” dos membros da cultura hip hop é um fator importante para que as demandas das comunidades cheguem até outras esferas da sociedade e rompa com esse “casulo” criado pelos mecanismos de opressão social. Nesse sentido, Souza (2012, p. 93) afirma: “é importante estar no bairro com os eventos e suas redes de sociabilidade. Mas é importante também estar fora dele e apresentá-lo à cidade”. Segundo Souza (2012), o rapper6 fica responsável por apresentar a comunidade para a sociedade, mas antes disso, é preciso mostrar suas produções para a comunidade que está sendo representada nos raps. Assim, o bairro torna-se o legitimador daquela música. Essa troca é constante, ou seja, o rapper está sempre mantendo relação com a comunidade, caso ocorra quebra dessa relação, as representações do rapper perdem legitimidade, já que não são aprovadas pela comunidade.

59

6

É o nome dado aos membros da cultura hip hop que compõe raps e rimas

7

O nome é Batalha, pois constitui em um duelo de rimas entre os MC’S, ou seja, em nada implica em violência física ou moral

8

Guilherme Junkes é o criador do site: www. vaiserrimando.com.br no qual ele contribui escrevendo algumas matérias, além disso, ele também se intitula como compositor de rimas

9

É o coletivo de Belo Horizonte que tem por finalidade difundir a cultura de rua. Além de organizar o Duelo de MC’S de BH, o coletivo também organiza o Duelo de MC’S Nacional, além de estar sempre organizado e participando de atividades culturais

10 Termo utilizado para indicar que não há necessidade de equipamentos de som

11 Coletivo organizado por jovens e trabalhadores

de Santa Maria que tem o intuito de denunciar e lutar contra a crescente precarização dos espaços públicos

públicos da cidade, estabelecendo, assim, atividades culturais acessíveis aos jovens de baixa renda. Em Santa Maria, Rio Grande do Sul, o movimento hip hop tem várias vertentes que atuam na cidade através de atividades dentro e fora da periferia. Um grupo bastante consolidado no movimento hip hop é o grupo CO-RAP, Coletivo de Resistência Artístico Periférica, responsável por organizar a Batalha dos Bombeiros e o Hip Hop na Pracinha, além de atuar em outras atividades socioculturais da cidade. Existem também os coletivos, Nova Beat, Rima Suprema, Estampa da Quebrada, Zona Norte, entres outros, que atuam em conjunto com outros coletivos sociais, organizando atividades culturais e eventos com caráter reivindicatório na cidade. Nesse sentido, além de agirem nas periferias nas quais são reconhecidos por sua atuação, trabalham em parceria com outros coletivos que fazem reivindicações pelas causas sociais, reforçando o caráter sociocultural do movimento hip hop. Desde 2012 ocorre na cidade a “Batalha dos Bombeiros”7. A Batalha é um acontecimento que é realizado, esporadicamente, em um espaço público, a Praça Menna Barreto, popularmente conhecida como Praça dos Bombeiros, da cidade de Santa Maria. A Batalha não é algo exclusivo da cidade de Santa Maria, já é uma atividade consolidada no cenário hip hop. De acordo com Guilherme Junkes8, uma das batalhas mais conhecidas e respeitadas do Brasil é o Duelo de MC’S de Belo Horizonte (BH), que ocorre semanalmente no espaço do Viaduto Santa Tereza. Essa batalha é organizada pelo coletivo Família de Rua9 e tem uma trajetória de quase seis anos na cidade. Além do tradicional duelo de MC’S, outras manifestações artísticas ocorrem no evento, através da música, dança e da arte, compondo um cenário típico do movimento hip hop. O Duelo de MC’S de BH, assim como é conhecido, é responsável por revelar vários artistas em âmbito nacional e também é uma atividade difusora da cultura de rua local. A Batalha dos Bombeiros tem uma dinâmica simples, tanto que o duelo de rimas é feito à capela10. No evento, vários rappers ou MC’s da cidade se enfrentam numa disputa de rimas improvisadas. O vencedor é o rapper que conseguir construir melhor suas rimas e cativar o público presente, que atua como juiz, escolhendo o vencedor de cada duelo. Em agosto de 2014, a batalha completou dois anos de existência, apesar de já ter ocorrido em outros locais da cidade, tais como Diretório Central de Estudantes (DCE) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Parque Itaimbé, mas tratavam-se de eventos isolados. Nesse sentido, essa investigação tratará a Batalha dos Bombeiros como um expoente do movimento hip hop na cidade, procurando explorar todas as nuances desse fenômeno que ainda foi pouco pesquisado.

Em 2013, uma das autores (Amanda Fiúza) teve a oportunidade de estar presente em quatro batalhas. A partir dessas experiências vivenciadas, pode-se afirmar que a Batalha dos Bombeiros é um território cheio de significações. Através das participações como frequentadora da Batalha, as quais proporcionaram experiências e conhecimentos, pode-se compreender melhor a essência da cultura hip hop e o modo como os membros que compõem a cena hip hop atuam. Através das rimas improvisadas os MC’s expressam suas demandas e também apresentam sua comunidade de origem ao público presente. Em Santa Maria, os espaços são organizados de forma a mostrar o aspecto de resistência sociopolítica da cultura hip hop, através da exposição de objetos, tais como o banner com a logo do coletivo CO-RAP11 e bandeiras com slogans de reivindicação, que identificavam os grupos e os embates sociais pelos quais lutam. Além disso, a Batalha proporciona que grupos de várias regiões da cidade dialoguem, formando novos arranjos sociais (MAGNANI, 2000) e redes de sociabilidade (HERCHMANN, 2005). No entanto, é notável a distinção que ainda existe entre os segmentos mais “elitizados” da sociedade e a população periférica, que a todo instante é vítima de preconceitos arraigados na sociedade. Parece que existe uma barreira “invisível” que tende a separar as periferias, e todas as coisas desse local, dos espaços centrais da cidade. Faz parecer que existe uma desintegração desses espaços e que não fazem parte da mesma sociedade. Deve ser por esse motivo que quando os grupos das periferias ocupam os espaços públicos notam-se olhares de estranhamento em sua direção. Como se os moradores da periferia estivessem invadindo lugares restritos a determinado segmento da população e que somente estes têm o direito de usufruir destes espaços. Neste sentido, no dia 15 de junho de 2014, ocorreu um evento organizado pelo Coletivo Resistência Urbana (CO-RAP). O evento foi nomeado como “Cidade Cultura... pra quem?”, sendo uma visível crítica à programação cultural da cidade e ao status da cidade de Santa Maria, pois esta é reconhecida como “Cidade Cultura”. Segundo a descrição do evento, o objetivo é promover a ocupação dos espaços públicos da cidade através da cultura de resistência. Além disso, denunciar a crescente precarização destes lugares. Nesta edição ocorreu a apresentação do documentário “Nos tempos de São Bento”, audiovisual que aborda sobre a história da cultura hip hop, além disso, apresentações de diversos rappers que compõem alguns dos coletivos da cidade, tais como Rima Suprema, Nova Beat, Zona Norte, CO-RAP, entres outros. É neste ambiente de descaso com as produções culturais voltadas para a população de baixa renda de Santa Maria que diversos coletivos sociais procuram suprir esses “falhas” deixadas pela Secretaria

60

de Cultura de Santa Maria. A Batalha dos Bombeiros, portanto, é um evento organizado com o intuito de ocupar espaço público da cidade, Praça Menna Barreto, para difundir e fortalecer a cultura hip hop, além de proporcionar ao público expressões culturais. Além da Batalha dos Bombeiros, também é organizado o “Hip Hop na Pracinha”, com objetivos semelhantes aos da Batalha dos Bombeiros, este evento é organizado para difundir e fortalecer a cultura hip hop, ocupando espaços públicos e ociosos da cidade.

Referências COUTINHO, E.G. A comunicação do oprimido: malandragem, marginalidade e contra-hegemonia. In: RAQUEL, Paiva; CRISTIANO, Henrique. (Orgs.). Comunidade e contra-hegemonia: rotas da comunicação alternativa. Rio de Janeiro: Mauad, 2008, p. 61-74. _____. Comunicação e contra-hegemonia: processos culturais e comunicacionais de contestação, pressão e resistência. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.

Considerações finais

GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. COUTINHO, C. N.; NOGUEIRA, M. A.; HENRIQUES, S. L. (Orgs.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 31-61.

Ao longo deste artigo, percorremos a história do surgimento da cultura hip-hop e sua apropriação no cenário brasileiro, buscando elucidar as formas pelas quais a cultura periférica utiliza-se do hip-hop como forma de resistência e contraposição aos discursos negativistas sobre a periferia. No contexto regional do Rio Grande do Sul, percebe-se que os jovens da periferia de Santa Maria utilizam a cultura periférica para fazer suas reivindicações sociais e obter visibilidade para suas causas. Uma estratégia bastante recorrente é ocupação de espaços públicos da cidade, ampliando seus âmbitos de atuação. A análise do caso de Santa Maria sugere que os atores sociais do movimento hip hop da cidade adquirem uma postura de enfrentamento ao se apropriarem de espaço público para realizar a Batalha dos Bombeiros. Existe uma transição de sair da periferia e ir até o centro da cidade, fazendo as questões periféricas serem visibilizadas, seja nas letras de suas rimas, seja na forma de sua atuação nesse espaço. A relação entre resistência sociopolítica, cultura hip hop de Santa Maria e Batalha dos Bombeiros precisa, portanto, ser entendida pela lógica da apropriação de espaço público da cidade. Nesse sentido, a Batalha dos Bombeiros surge como cenário de múltiplos significados, isto é, a praça onde são desenvolvidas práticas culturais que manifestam suas lutas sociais e reivindicam mudanças se transforma em espaço de articulações políticas, vivências e experiências, um legítimo espaço de resistência sociopolítica.

HERSCHMANN, M.; GALVÃO, T. Algumas considerações sobre a cultura hip hop no Brasil hoje. In: BORELLI, S. H.; FREIRE FILHO, J. (Orgs.). Culturas juvenis no século XXI. São Paulo: EDUC, 2008, p. 195-210. HERSCHMANN, M. O funk e o hip hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005. MAGNANI, J. G. C. Da periferia ao centro: trajetórias de pesquisa em antropologia urbana. São Paulo: Terceiro Nome, 2012. p. 249 – 279. _____. Quando o campo é a cidade: fazendo antropologia na metrópole. In: MAGNANI, José Guilherme Cantor; TORRES, Lilian de Lucca (Orgs.). Na metrópole: textos de antropologia urbana. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 15 -53. PAIVA, R.; NÓRA, G. Comunidade eb humanismo prático: a representação da periferia no Rio de Janeiro. In: RAQUEL, Paiva.; CRISTIANO, Henrique. (Orgs.). Comunidade e contra-hegemonia: rotas da comunicação alternativa. Rio de Janeiro: Mauad, 2008, p. 13-28. SALLES, E. Poesia revoltada. Rio de Janeiro: Aeoroplano, 2007. SANTOS, J. L. O que é cultura. Brasiliense: São Paulo, 2006. SOUZA, A. M. Globalizando localidades: relações de produção-consumo no movimento hip hop no Brasil e em Portugal. In: SOUZA, A. M.; RIAL, C. S.; SILVA, S. R. (Orgs.). Consumo e Cultura Material: perspectivas etnográficas. Florianópolis: UFSC, 2012, p.1 – 113.

61

“Eles podem ser malucos, mas são profissionais!” Um estudo de recepção sobre o grupo Black Sabbath no programa Fantástico

888

Fábio Cruz l UFPEL

Introdução Este trabalho apresentará um estudo de recepção a respeito de uma reportagem exibida no programa “Fantástico”, da Rede Globo de Televisão, sobre o grupo de rock inglês Black Sabbath. A pesquisa adotará como marcos teórico-metodológicos os pressupostos da cultura da mídia, de Douglas Kellner (2001), o fait divers (BARTHES, 1971), a perspectiva das mediações, de Jesús Martín-Barbero (1997), e as posições de decodificação (HALL, 2003). O corpus de análise abrangerá uma edição, captada no dia sete de julho de 2013, que versa sobre o lançamento do novo álbum da banda e a sua vinda ao Brasil no mesmo ano. Para tanto, inicialmente, abordaremos o papel da Rede Globo de Televisão na realidade brasileira. Neste sentido, para fins de contextualização, discutiremos aspectos como o surgimento da emissora, a sua influência na vida política do País e as suas produções de destaque. A partir destas, traçaremos um perfil do programa “Fantástico”, que consiste em um dos focos de interesse deste artigo. Logo após, averiguaremos de que forma a mídia produz significado na atualidade buscando identificar elementos que influenciam suas construções. Para isso, adotaremos os pressupostos teórico-metodológicos de Kellner (2001) e Roland Barthes (1971). Em um segundo momento, a perspectiva das mediações (MARTÍN-BARBERO, 1997) e as três posições de decodificação de Stuart Hall (2003) serão revistas com o objetivo de subsidiar o estudo de recepção proposto, o qual será realizado junto a um grupo de 131 declarados fãs e não fãs do grupo Black Sabbath através da técnica dos grupos de discussão. Seguindo uma postura crítica, histórica e dialética, salientamos que este trabalho não pretende generalizar resultados, mas, sim, detectar tendências e vislumbrar possibilidades em um determinado contexto com base em uma amostra de opiniões.

62

Uma prévia do texto foi apresentada no GT Recepção em Jornalismo, da II Jornada Gaúcha de Pesquisadores da Recepção

1

Por tratarmos de uma pesquisa qualitativa, julgamos pertinente afirmar que a quantidade de entrevistados não tem influência nos objetivos da investigação

2

Falecido em 6 de agosto de 2003

3

Como exemplos de referências sobre a atuação da Rede Globo durante o regime militar no Brasil temos Lins da Silva (1985), Mattelart (1989) e Simões (in BUCCI, 2000)

4

Noticiário mais assistido pelos brasileiros desde a década de 1970, o Jornal Nacional foi ao ar pela primeira vez no dia 1º de setembro de 1969, introduzindo o conceito de telejornal em rede

5

“(...) Após anos de silêncio e conivência ininterruptos, falou em ‘ditadura militar’ quando Tancredo Neves foi eleito presidente no Colégio Eleitoral (...)” (CRUZ, 2006, p. 26)

6

Gênero que mixa informação considerada jornalística com variedades como música, humor, esporte, espetáculos etc. Mostrando os apresentadores em pé, a revista eletrônica alterna momentos de seriedade com descontração (SOUZA, 2004)

7

Disponível em Acesso em: 28 out. 2013

8

Disponível em Acesso em: 28 out. 2013

9

Disponível em Acesso em: 28 out. 2013

10 Disponível em Acesso em: 28 out. 2013

11 Disponível em Acesso em: 28 out. 2013

Descortinando o objeto: a Rede Globo de Televisão e o programa “Fantástico”

“Fantástico”: o show da vida dos brasileiros nos domingos à noite

Bastaram alguns anos após 1965, período do surgimento da Rede Globo de Televisão, para que o seu fundador, o empresário Roberto Marinho2, visse a sua emissora conquistar milhares de telespectadores distribuídos por todas as camadas da sociedade e, assim, consolidar-se como a líder de audiência no País. Desde meados da década de 1970, o Brasil é conectado pela Rede Globo. “Superior técnica e economicamente às outras, (...) [a Globo] consiste em um lugar de identificação e embasamento cultural dos brasileiros” (CRUZ, 2006, p. 26). Promotora de laços sociais (WOLTON, 1996), a emissora fornece informação e entretenimento diários a uma sociedade marcada por “contrastes, conflitos e contradições violentas” (BUCCI, 2004, p. 222). Conflituoso e contraditório foi, também, o nascimento da Rede Globo, o qual contou com apoio financeiro do grupo estrangeiro Time Life – o que era proibido na época. No entanto, a emissora foi absolvida pelo governo militar de todas as acusações que sofreu. A partir daí, selou-se uma relação que perdurou até o fim do regime, em 1985. Neste período de 20 anos, portanto, a Globo ajudou a consolidar os militares no poder3 e isto se deu, principalmente, através dos seus noticiários televisivos. Nesse sentido, um dos grandes braços da emissora foi o “Jornal Nacional”4. Na prática, o que se via era um acobertamento de informações que, em maior ou menor grau, pudessem vir a prejudicar a imagem do governo junto à sociedade brasileira. Assim, manifestações variadas como greves e conflitos não habitavam a agenda da Rede Globo. No entanto, da mesma forma com que contribuiu para a solidificação do regime militar, com a redemocratização brasileira, em 1985, a emissora adere aos interesses da Nova República5. Com os ventos soprando novamente a favor da democracia no País, adaptar-se aos novos tempos era necessário. Destarte, percebemos que a Rede Globo sempre esteve – e está – presente na vida política dos brasileiros desde o seu surgimento. Porém, este não é o único ponto de destaque da emissora. Dentre outros diversos aspectos de relevância, podemos destacar a qualidade das suas telenovelas, as coberturas esportivas e a já mencionada supremacia técnica e econômica frente às empresas concorrentes. Além disso, outra produção que merece ser ressaltada é um programa surgido na década de 1970, que vai ao ar nas noites de domingo e que, a exemplo do “Jornal Nacional”, também é assistido por milhares de telespectadores.

No ar desde o dia 5 de agosto de 1973, o Fantástico consiste em uma “revista eletrônica6 de variedades”7 semanal que mistura informação jornalística e entretenimento com doses de espetáculo8. Apresentado por Tadeu Schmidt e Renata Vasconcellos, o programa tem cerca de duas horas e vinte e cinco minutos de duração. A produção, que inicialmente chamava-se “Fantástico – o show da vida”, começou apresentando shows de humor, teleteatros, musicais, jornalismo, documentários e reportagens internacionais, com um cardápio variado de temas. Só era pauta o que representasse um verdadeiro show, algo que trouxesse a noção de espetáculo embutida. [...] Em pouco tempo, a revista semanal ganhou projeção nacional e internacional, servindo de espelho para programas similares em países como Espanha e Itália.”9

Assim, o “Fantástico” se tornou um painel dinâmico e multifacetado de quase tudo o que é produzido numa emissora de televisão – jornalismo, prestação de serviços, humor, dramaturgia, documentários exclusivos, música, reportagens investigativas, denúncia, ciência –, além de um espaço para a experimentação de novas ideias e formatos.10

Mantendo essa vitoriosa fórmula que lhe rende altos índices de audiência, o “Fantástico” vem inovando na relação com o telespectador ao promover quadros como o “Bola cheia” e o “Bola murcha”, que permitem aos receptores enviarem vídeos com lances de futebol amadores para o programa. “Os melhores e os piores lances são exibidos. Durante o programa, um grupo de jurados famosos e, também, a audiência podem votar em quem é o Bola cheia e o Bola murcha do domingo”11. O consagrado formato do “Fantástico”, aliado às novidades promovidas citadas anteriormente, as quais permitem ao telespectador uma maior interação com o programa, situam essa produção da Rede Globo dentro da lógica cada vez mais atual das empresas de comunicação em tempos de globalização: a do maior índice de audiência possível, pois o que está em jogo, no final das contas, é o lucro. Neste sentido, lançaremos mão a seguir de um cabedal teórico-metodológico que permita refletir a respeito de questões como a que se impõe aqui e, também, que sustente um estudo de recepção conforme proposto no início deste trabalho.

63

em dois tipos básicos: causalidade e coincidência. Ambos apresentam subtipologias respectivas, direcionadas para a compreensão da excepcionalidade, condição do estabelecimento da noção de conflito. O fait divers de Causalidade revela dois subtipos: a causa perturbada, quando se desconhece, ou não é possível precisar a causa, e, ainda, quando uma pequena causa provoca um grande efeito; e a causa esperada, em que, quando a causa é normal, a ênfase desloca-se para os chamados personagens dramáticos como, por exemplo, crianças, mães e idosos (BARTHES, 1971). Na causa perturbada, ocorrem fatos excepcionais, espantosos, que implicam perturbação, conflito. Há um efeito (o conflito surge daí). No entanto, a causa é desconhecida, imprecisa, ou até mesmo ilógica, sem sentido. Há uma riqueza de desvios causais. Devido a certos estereótipos, espera-se uma causa e surge outra, mais pobre do que a esperada. Neste gênero de relação causal, há o espetáculo de uma decepção; paradoxalmente, quanto mais escondida, mais notada será essa causalidade. Barthes (1971) divide o fait divers de coincidência em dois subtipos: de repetição – quando a informação repetida leva a imaginar causas desconhecidas, que ocorrem em circunstâncias diferentes – e de antítese – quando se aproximam dois termos qualitativamente distantes. Essa prática do fait divers pela mídia reflete

Da cultura da mídia ao âmbito da recepção Em nível geral, o contexto atual dos meios de comunicação de massa sugere práticas que andem em compasso com a ideologia globalizante vigente. Assim, frequentemente, constatamos exemplos que demonstram ser a qualidade das informações inversamente proporcional aos índices de audiência. Em verdade, o que observamos é uma substituição do discurso noticioso por uma espécie de discurso publicitário12, que tem a pretensão de homogeneizar identidades, é estereotipado e mercadológico, a-histórico e sem aprofundamento. Por isso mesmo, é desprovido de elementos que levem os receptores à reflexão. Estudioso da comunicação, Kellner13 (2001) contempla em suas investigações as mais diversas produções midiáticas procurando elucidar tendências dominantes e de resistência, vislumbrar perspectivas históricas e também analisar a forma como os meios de comunicação agem com vistas a influenciar a identidade dos indivíduos. A partir da perspectiva do autor, contatamos que, hoje, os meios de comunicação massivos consistem em uma espécie de palco pelo qual desfilam informações sobre os mais variados agentes sociais ao redor do mundo. Neste sentido, procurando entender o porquê de a mídia produzir como produz na atualidade, Kellner (2001) lança mão de três categorias analíticas, a saber: horizonte social, campo discursivo e ação figural. O horizonte social contextualiza a época e o cenário em que se dá determinada produção midiática. O campo discursivo engloba os atores envolvidos no discurso dos veículos de comunicação de massa. Já a ação figural mostra o produto final de acordo com o horizonte social e o campo discursivo. Portanto, a partir de uma conjuntura específica e levando em conta os sujeitos envolvidos nesta, a mídia produz informação. Dentro destes desdobramentos, muitas vezes, percebemos a presença dos fait divers. Os “Casos do Dia”, mais conhecidos como fait divers, consistem em uma das principais categorias de Barthes14 voltadas para os meios de comunicação. Com uma abordagem estruturalista, ele lhe deu conceito, tipologia e subtipologia. Assim, estabeleceu a sua teorização. O fait divers é a informação sensacionalista. Atualmente, vivencia-se uma magnífica exploração dessa categoria na imprensa, quando esta é classificada como informação geral. Alguns exemplos desenvolvem-se durante vários dias, o que não quebra sua imanência constitutiva, porque implica, sempre, uma memória curta, efêmera. Para Ramos (1999), as relações que dizem respeito ao fait divers expressam conflito, atingem a emoção do receptor, independentemente de seu estilo jornalístico; são constituídas pelo excepcional, pelo grotesco, que valorizam o espetacular, e podem ser reduzidas

o capitalismo contemporâneo que, através dos seus significados e métodos, fornece elementos que tendem a relegar os indivíduos à passividade e à manipulação ao mesmo tempo que obscurecem a natureza e os efeitos do poder vigente. Fomentando uma memória curta e efêmera, o fait divers reflete e reforça algumas das premissas da era globalizante: as informações devem ser líquidas e, ao mesmo tempo, devem atingir o emocional das pessoas (CRUZ, 2012. p. 803).

Sendo assim, falar sobre pessoas pressupõe, também, estudar o âmbito da recepção, nosso próximo tópico. Não obstante, o fato de antes termos dado similar importância para circunstâncias que influenciam a produção dos discursos midiáticos é corroborado por Martín-Barbero15, o qual sustenta que um estudo de recepção não pode ser realizado de maneira isolada. Segundo o autor, Eu não poderia compreender o que faz o receptor, sem levar em conta a economia da produção, a maneira como a produção se organiza e se programa [...] eu não tenho nenhuma receita, mas ao menos sei o que não quero. E não gostaria que o estudo de recepção viesse a nos afastar dos problemas nucleares que ligam a recepção com as estruturas e as condições de produção (MARTÍN-BARBERO, 1995, p. 55).

64

12 Aqui, fazemos menção à ausência de um lead

jornalístico completo, ou seja, que apresente as informações básicas de uma notícia, a saber: “o quê?”, “quem?”, “quando?”, “onde?”, “como?” e “por quê?”

13 De origem norte-americana, Kellner é um verdadeiro articulador de teorias que “tem seu lugar de fala nos movimentos de contracultura dos anos de 1960, na recessão da primeira metade da década de 1970 e na implosão da Rússia a partir de 1980” (CRUZ, 2006, p. 64)

14 Semiólogo estruturalista francês. Responsável

pela teorização do fait divers. Faleceu em 26 de março de 1980

15 Teórico espanhol naturalizado colombiano. Considerado um dos grandes baluartes dos estudos sobre comunicação e cultura

“vem a ser uma entrevista coletiva [não estruturada] na qual o objetivo pressupõe o pesquisador sair de cena e deixar o grupo debater e refletir sobre suas próprias interpretações”. Ressaltamos, mais uma vez, que a escolha de 13 pessoas para o estudo de recepção não interfere nos objetivos de uma pesquisa de cunho qualitativo. Com base em anos de estudos, Orozco Gómez (2000, p. 86) reforça essa premissa ao afirmar que não é necessário entrevistar mais do que 25 receptores, pois, além desta quantidade, a obtenção de novas informações é “mínima”. Para o autor, um número entre 10 e 20 indivíduos pode ser suficiente para que se obtenha conhecimento. O que está em jogo aqui não é a contagem, mas, sim, como se desenvolve o processo crítico de recepção televisiva.

No que tange ao processo de recepção, Martín-Barbero (1997) atenta para os lugares de fala dos indivíduos. É importante averiguar sob quais condições as falas estão sendo constituídas. Estas “posições de enunciação” (HALL16, 1996) são individuais e baseiam-se em um contexto particular e, ao mesmo tempo, público. Referem-se às matrizes culturais que formam as identidades culturais das pessoas o que, ressaltamos, consiste em um processo sempre em construção, pois interage com o social. As matrizes culturais compreendem, portanto, as marcas incrustadas na experiência social dos sujeitos, que são ativadas nas interações sociais, embaralham-se com as novas experiências e os novos movimentos. São fazeres na vida do sujeito, seja estes individuais ou coletivos. Estas matrizes culturais atualizam-se no (des)encontro cultural da interação social – comunicacional e/ou midiatizada – e são também nestes encontros que se modificam, desterritorializam-se para reterritorializarem-se. As matrizes culturais se constituem por via das mediações sociais, e, ao mesmo tempo, são elas mesmas mediações para os fazeres sociais e na construção de novas identidades (MAZZARINO, 2008, p. 49).

16 Jamaicano ligado aos Estudos Culturais Britâni-

cos. É tido como um dos principais autores dessa linha teórica (ESCOSTEGUY, 2001). Faleceu em 10 de fevereiro de 2014

17 Estilo de música ligado ao rock cujo nome foi ins-

pirado, segundo Rey e Philipe (1984), no apelido dado por pesquisadores norte-americanos ao catalisador da reação atômica do Urânio. Os mesmos autores (1984, p. 3) definem o heavy metal a partir de uma indagação: “o que é heavy metal senão melodia fortemente marcada, com letras agressivas, enquanto instrumentos trabalham ao infinito costurando sobre uma linha melódica?”

18 Antes, porém, a banda teve outros dois nomes: “The Polka Tulk Blues Band” e, depois, “Earth Blues Band” (IOMMI, 2013)

Análises A proposta metodológica desta investigação consiste em dois momentos: em primeiro lugar, analisar, de forma panorâmica, a reportagem do “Fantástico” sobre a banda Black Sabbath, levando em conta os seus contextos de produção. Logo após, será realizado um estudo de recepção com uma amostra de 13 fãs e não fãs dos músicos ingleses. Entretanto, antes de partirmos para a primeira instância analítica, apresentaremos um breve perfil do grupo britânico.

A partir disso, Martín-Barbero (1997, p. 292) promove três lugares de mediação, a saber: “a cotidianidade familiar, a temporalidade social e a competência cultural”. Para o autor, com relação ao primeiro caso, na América Latina, as pessoas se reconhecem na televisão e, no Brasil, isso não é diferente. No entanto, para que esta situação possa ser entendida, é necessário estudarmos o cotidiano dessas famílias. O segundo caso aborda a ligação entre os tempos de produção e as rotinas cotidianas de recepção. Já o último aspecto, o qual será trabalhado nas análises, refere-se às mais variadas bagagens culturais dos componentes da esfera receptiva, o que corrobora um modo específico de ver/ler, interpretar e usar os produtos da cultura midiática. Sendo, portanto, ativo e dono de uma cultura particular, o receptor produzirá determinados códigos culturais: a reprodução, em que aceita tudo o que recebe, o que o constitui em uma espécie de cúmplice do pensar hegemônico; a negociação, quando aceita algumas partes daquilo a que está exposto e outras não; e a resistência, processo em que não há aceite de propostas de sentido oriundas da mídia, o que acarreta uma construção alternativa ou contraproposta (HALL, 2003). De posse desse arcabouço teórico e, conforme dito anteriormente, sustentados por uma linha de raciocínio crítica, histórica e dialética, partiremos para as análises do trabalho. Neste sentido, com relação ao âmbito da recepção, julgamos pertinente lançar mão da técnica dos grupos de discussão, o que, de acordo com Lopes et al. (2002, p. 57),

Os pais do heavy metal17 Considerada a banda pioneira do heavy metal, o Black Sabbath surgiu em Birmingham, Inglaterra, no final dos anos de 1960. Formado originalmente por Ozzy Osbourne (vocal), Tony Iommi (guitarra), Geezer Butler (baixo) e Bill Ward (bateria), o grupo iniciou a carreira sob o nome de “Earth”18 (OSBOURNE, 2010, p. 80-81). No entanto, influenciado por um filme – Black Sabbath – protagonizado pelo falecido ator inglês Boris Karloff, o baixista sugeriu o novo nome para os seus companheiros, o que foi aceito de imediato. A partir do lançamento do seu primeiro álbum, intitulado “Black Sabbath”, considerado “o primeiro disco de heavy metal do mundo” (DIMERY, 2007, p. 198), a banda rapidamente atingiu o sucesso. Suas letras abordavam temas considerados demoníacos, além de questões como “opressão, horror, [e] poder” (REY e PHILIPE, 1984, p. 25), o que cativava cada vez mais fãs para o grupo. Ao longo da década de 1970, o Black Sabbath lançou muitos discos de sucesso, como “Paranoid” (1970), “Master of Reality” (1971), “Volume 4” (1972), “Sabbath Bloody Sabbath” (1973) e “Sabotage”

65

(1975). No entanto, apesar do êxito, o abuso do uso de drogas e problemas de relacionamento entre os membros da banda resultaram na saída do vocalista Ozzy Osbourne, em 1979 (OSBOURNE, 2010, p. 193). Após esse episódio, o guitarrista Tony Iommi – único remanescente original do Black Sabbath a participar de todas as formações da banda – atravessou as décadas seguintes alternando músicos, assim como bons e maus momentos19. Um desses momentos considerados positivos é justamente o atual. Exatamente no dia 11 de novembro de 2011, o grupo anunciou a volta com a formação original para a gravação de um álbum de músicas inéditas e uma turnê. Apesar disso, problemas contratuais alegados fizeram com que o baterista Bill Ward desistisse da volta. No seu lugar, entra Tommy Clufetos, membro da banda solo de Ozzy Osbourne. Mas, para a gravação do álbum que viria a se chamar “13”, as baquetas ficaram a cargo de Brad Wilk, ex-músico do grupo norte-americano Rage Against the Machine, da década de 1990. Já para a turnê que se seguiu após o lançamento do disco, Clufetos retornou ao seu posto no Black Sabbath.

tiona: “Vê se isso é horário pra roqueiro! Será que deu certo?”. Logo a seguir, já mostrando imagens de Ozzy Osbourne e Geezer Butler, Pereira Júnior diz: “Eles podem ser malucos, mas são profissionais! Ozzy e o baixista Geezer Butler estavam acordados e de ótimo humor”. Perguntados sobre as letras soturnas, Geezer Butler diz que ainda faz sentido cantar sobre os mesmos temas de quando os integrantes da banda tinham 20 anos. Segundo o baixista, atualmente, faz mais sentido porque o mundo “está cada vez mais sombrio”. Ozzy emenda: “Eu confio no Geezer para me entregar grandes letras. Muitas vezes nem entendo nada. Eu só vou lá e canto. E funciona!”. Em seguida, o jornalista afirma que no novo disco do grupo, a voz de Ozzy Osbourne está “clara e forte”. O cantor explica: “Eu não fumo mais (...) Não uso mais drogas e bebo só de vez em quando”. Mas a declaração é contestada por Pereira Júnior: “Bom, mais ou menos. Porque no dia 15 de abril, Ozzy divulgou na internet: ‘No último ano e meio voltei a beber e usar drogas. Mas já faz 44 dias que estou sóbrio. Peço desculpas por meu comportamento alucinado naquele período’”. Logo após, o vocalista declara que foi sua esposa, Sharon Osbourne, quem o salvou do álcool e das drogas depois da sua saída do Black Sabbath. A seguir, mostrando imagens do programa, a reportagem fala do reality show “The Osbournes”, que foi estrelado por Ozzy Osbourne e sua família, e foi ao ar pelo canal MTV (Music Television). Questionado se alguém do grupo havia ficado com inveja, Geezer Butler respondeu: “Imagina. Nossa origem é tão pobre, em Birmingham, Inglaterra, que ver um de nós se dando muito bem é uma alegria!” Quando o assunto foi a saída de Bill Ward, a reportagem informou que Ozzy Osbourne havia dito que o baterista “tinha simplesmente esquecido como tocar as músicas”. No entanto, “para o Fantástico, o vocalista aliviou um pouco: ‘Eu só falei que ele não ia aguentar duas horas de show, porque é um esforço muito grande’”, esclareceu. Na continuação, o jornalista informou que, devido ao esforço, a turnê da banda faria “várias pausas de duas semanas, para o guitarrista Tony Iommi, autor das melodias mais pesadas do rock, se tratar de um câncer linfático”. Aproveitando a deixa, Pereira Júnior disse que a morte era um tema constante nas letras da banda. Como exemplo, citou uma música do álbum “13”, “End Of The Beginning – o fim do começo”. Questionado se o grupo estava “no fim do começo ou no começo do fim”, Geezer Butler respondeu: “No fim do fim”. Já para o vocalista, aquele momento não significava “(...) nem o fim do começo ou o começo do fim. É o começo do começo, ou o fim do fim”. Tal afirmação fez o baixista do Black Sabbath sorrir. Direcionando as atenções para o vocalista, Pereira Júnior sustenta: “Apesar de às vezes não falar coisa com coisa, Ozzy é uma

A fantástica reportagem do “Fantástico” E foi justamente sobre esse “momento positivo” que o “Fantástico” exibiu, no dia 7 de julho de 2013, uma matéria sobre a banda. Com o título “Ozzy Osbourne cumpre promessa e volta ao Brasil com Black Sabbath”20, a reportagem é introduzida pelos apresentadores Tadeu Schmidt e Zeca Camargo, que deixou o programa no mesmo ano. A fala de Tadeu Schmidt começa assim: “Agora, vamos falar de roqueiros veteranos que habitam um mundo de sombras, ruínas e barulho”. Na sequência, Zeca Camargo completa: “Uma das bandas mais adoradas de todos os tempos está de volta: o sinistro Black Sabbath”. Alternando imagens antigas e novas da banda21, a reportagem, que tem duração de cinco minutos e 26 segundos, inicia com um pequeno histórico do grupo: “No começo dos anos 1970, eles inventaram o rock pesado. São os deuses do heavy metal. Mas depois do sucesso, veio a separação. Os músicos da formação original do Black Sabbath passaram décadas sem se entender. Só que essa fase acabou”. Após a introdução, o repórter Álvaro Pereira Júnior aparece informando que a banda está reunida, após 35 anos, para gravar um disco de inéditas. Afirma, também, que a festa do lançamento será realizada em um templo judaico do século XIX da cidade de Nova York. E complementa indagando: “o que será que o Ozzy vai aprontar lá dentro?”. Na sequência, vem a resposta: “ Não aprontou nada! Foi só um encontro com fãs, super tranquilo! A entrevista para o Fantástico está marcada para o dia seguinte, às 11h da manhã”. E, mais uma vez, ques-

66

19 Sobre os chamados “bons momentos”, vale mencionar que, após a saída de Ozzy Osbourne, o Black Sabbath lançou discos de muito sucesso ao lado do novo vocalista na época, o norte-americano Ronnie James Dio, falecido em 2010

20 Disponível em Acesso em: 2 nov. 2013

21 O que foi a tônica de toda a reportagem

força criativa na banda”. Sobre o nome do novo disco, o cantor responde: “O ano é 2013. O disco ia ter 13 faixas. Nem pensei em outro nome”. Em seguida, em clima de descontração, é dito pela reportagem que o título da principal música – “God is Dead” – de “13” também é criação de Ozzy Osbourne. Informa o jornalista: “Ele (Ozzy Osbourne) diz que viu a frase no dentista, na capa da revista Time”. Mas Geezer Butler ironiza: “Essa revista saiu em 1966. Deve ser um dentista muito velho!” Finalizando a matéria, Pereira Júnior avisou que a banda viria ao Brasil em outubro e que Ozzy Osbourne tinha memórias do Brasil: “Quando eu toquei no Rock In Rio, em 1985, jogaram uma galinha viva no palco! Ela ficou lá, sentadinha”. A reportagem encerra dizendo que o cantor já havia comido um morcego em um show. Em seguida, uma declaração do vocalista: “Quando estive aí, prometi que, se um dia o Sabbath voltasse, a gente tocaria no Brasil. Vou cumprir, se Deus quiser. E ele não está morto!”, encerrou.

aprontar lá dentro?” – ou seja quando a classe roqueira é chamada de malandra quando o jornalista questiona se 11h “é horário pra roqueiro”. Seja quando o cantor e Geezer Butler são rotulados como malucos, seja quando Ozzy Osbourne é visto como um homem drogado, em que pese o elogio à sua voz feito por Pereira Júnior, ou quando também o vocalista não fala “coisa com coisa” e come morcegos. Não obstante, observamos, também, o uso do fait divers do tipo causalidade através do subtipo causa esperada em dois momentos: em primeiro lugar, quando a matéria aproveita a fala de Ozzy Osbourne a respeito do seu ex-companheiro de banda, o agora personagem dramático Bill Ward, afirmando que este está fora de forma e que, portanto, não aguentaria um show de duas horas porque isto denota um grande esforço. Além disso, a doença do guitarrista também é explorada transformando o músico igualmente em uma figura que provoca piedade.

Da produção

Da recepção

Anteriormente, sustentamos que a revista eletrônica “Fantástico” enquadra-se no horizonte social das empresas de comunicação em tempos de globalização: ora sérios, ora descontraídos, os discursos e as posturas dos apresentadores do programa devem buscar o maior índice possível de audiência porque, no final das contas, o que mais se almeja no atual cenário é o lucro. Partindo dessa constatação, na referida matéria temos, como atores do campo discursivo, os integrantes do Black Sabbath e questões como a volta do grupo, o lançamento do álbum “13” e a vinda ao Brasil para a realização de alguns shows. Além destas, velhos fantasmas como o uso de drogas e os desentendimentos entre os músicos da banda são – ou deveriam ser – apresentados como elementos complementares da reportagem. No que se refere à ação figural da reportagem, ou seja, como esses atores e suas práticas são mostrados pela mídia sob a égide do horizonte social apresentado, percebemos vários desvios de foco como, por exemplo, a ironia e a questão das drogas a partir do uso quase constante do fait divers através dos seus tipos e subtipos. Na chamada da matéria, os dois apresentadores lançam mão do fait divers de coincidência através do subtipo antítese ao ligar o grupo com um cenário nebuloso, barulhento e amedrontador. Já na reportagem de Pereira Júnior, a união de percursos distintos prossegue. Seja quando o repórter chama os integrantes do Black Sabbath de “deuses” do estilo heavy metal, seja quando Ozzy Osbourne é visto como o bagunceiro – “o que será que o Ozzy vai

Com relação ao âmbito da recepção, julgamos ser pertinente apresentar, em primeiro lugar, os receptores que assistiram à matéria e, posteriormente, participaram da discussão. De início, vale ressaltar um ponto que os une: o gosto pela música. Neste sentido, seis declararam-se fãs do grupo e sete afirmaram não serem fãs do Black Sabbath. Dos seis entrevistados que se dizem fãs da banda, temos os seguintes perfis: Fábio, 35 anos, possui nível superior completo, é cirurgião-dentista e católico; Emerson, 39 anos, possui especialização, é funcionário público, trabalha como analista de sistemas e se diz espiritualista; Leonardo, 39 anos, é formado em direito, exerce a profissão de promotor de justiça e se considera agnóstico; Sandro, 40 anos, nível superior completo, é arquiteto e ateu; Renan, 28 anos, é editor de vídeo, possui ensino superior incompleto e é ateu; e Rodrigo, 36 anos, tem mestrado, é engenheiro de computação e considera-se cristão, embora sem uma religião específica. Dos sete declarados não fãs da banda, os perfis são os seguintes: Roberto, 40 anos, nível superior completo, é formado em jornalismo e se diz um católico “afastado”; Diogo, 37 anos, possui nível superior completo, está desempregado e é católico; Iara, 62 anos, tem nível superior incompleto, é aposentada e católica; Elisa, 32 anos, é formada em jornalismo, trabalha com decoração de festas e é católica; Guilherme, 32 anos, tem mestrado, é professor universitário e católico; Marco Antonio, 43 anos, possui especialização, é bancário e esotérico; e Alexandre, 46 anos, tem nível superior completo, é juiz de direito e ateu.

67

Diogo considerou a matéria exibida “mero entretenimento, conforme a linha do programa”. Salientou, também, que a reportagem foi exaustiva e poderia ter sido mais curta. Reforçando a opinião mais preponderante, Iara criticou a entrevista.

Falando sobre a reportagem do “Fantástico”, do lado do grupo de fãs do Black Sabbath, Fábio, que também é guitarrista, afirma que a matéria enfoca “aspectos negativos da banda e ainda distorcendo informações, desrespeitando a história da banda e os seus integrantes”. Emerson confessa que, antes mesmo de assistir à reportagem, “tinha um sentimento de leve ojeriza em relação à matéria antes da mesma ser efetivamente veiculada, em virtude da linha jornalística das organizações Globo”. E complementa: “No entanto, para minha grata surpresa, a condução, bem como a relativa expertise do repórter, tornaram a exibição interessante e muito menos piegas e clichê do que supostamente eu poderia esperar, em se tratando de ‘Fantástico’ e Ozzy Osbourne conjuntamente envolvidos”. Endossando de certa forma o que foi colocado por Emerson, Leonardo, que também é baterista nas horas vagas, julgou a matéria interessante. Segundo ele, esta “agrada quem é fã como quem não conhece muito bem a banda”. Por outro lado, Sandro se assemelha mais ao posicionamento de Fábio ao discordar das duas opiniões anteriores. De acordo com ele,

[...] Foi muito fraca. Não informa. Quem não conhece o grupo, não entende nada. Se o grupo veio a se reunir depois de 35 anos, deveria ser feita uma entrevista mais inteligente, com mais conteúdo. O repórter começou não acreditando no profissionalismo do grupo, lembrou de drogas e fatos que nada acrescentam, nada informam. Hoje, o Ozzy está com 65 anos e merecia uma entrevista melhor.

Corroborando ainda mais a opinião de Iara, Elisa sustenta que, na matéria “sobre uma banda internacional e histórica”, não houve seriedade e, ao mesmo tempo, a reportagem foi irônica. Segundo ela, o resultado final denotou “um desrespeito ao telespectador, que é tratado como um idiota”. Guilherme segue engrossando a opinião que mais se sobressai. De acordo com o professor universitário, o conteúdo exibido consiste em “uma reportagem generalista para um público de massa e procura usar esta retórica do que é mais conhecido ou característico sobre a banda para se comunicar com os públicos”. Corroborando esta opinião, Marco Antonio considerou a matéria repleta de preconceitos. Neste sentido, “adjetivos em abundância devem ter incomodado os fãs da banda. [...] Como se trata de um programa de alta abrangência e formador de opinião, entendo que a notícia poderia ser dada de forma mais imparcial”. Alexandre resume a fala da maioria dos entrevistados ao declarar que “a matéria não informa quase que nada a respeito do assunto e apenas trata de divulgar o evento valendo-se de sensacionalismo”. Partindo dessas considerações, com exceção de Emerson e Leonardo, fãs da banda23, os demais entrevistados, tanto os apreciadores quanto os não apreciadores do grupo, contrapõem-se ao discurso do “Fantástico”, o que, segundo Hall (2003), consiste em uma leitura resistente, de oposição. A partir de suas competências culturais, esses constroem outras possibilidades (alternativas) como contraproposta. Ressaltamos, também, que a mediação religiosa pareceu não influenciar o posicionamento dos integrantes da pesquisa. Independente do credo ou da ausência deste, o fato de o Black Sabbath possuir a fama de satânico não teve relevância na opinião das pessoas24. Outro ponto que merece destaque é o de que, com exceção de Iara, Elisa, Guilherme e Marco Antonio, os demais entrevistados não assistem ao “Fantástico”. Aqueles que assistem, mesmo assim, fazem-no poucas vezes seja “porque eles [Fantástico] dão valor a matérias que

A matéria exibida pelo Fantástico foi a típica matéria feita por pessoal não qualificado para a mesma, com a habitual falta de informação, sensacionalismo e pouco caso com o público. Pelo menos com o público que teria real interesse por tal matéria. O público “rockeiro” é tratado geralmente com deboche, sempre ressaltando todos os estereótipos possíveis e ajudando a construir uma imagem completamente equivocada (vide o termo “metaleiros”, criado pela mesma emissora durante o Rock in Rio22, em 1985). O Black Sabbath tinha acabado de lançar um disco novo com três quartos da formação original, estava prestes a começar uma turnê pela América do Sul, incluindo quatro shows no Brasil, e praticamente nada disso foi abordado na entrevista.

Renan é outro fã da banda que concorda com os posicionamentos de Fábio e Sandro. Segundo o editor de vídeo, “como grande parte das matérias sobre o Rock and Roll/Heavy Metal na Rede Globo, o texto aborda os temas clichês do gênero, como drogas, morte e religião, deixando de lado o principal que é a música”. Rodrigo corrobora as opiniões de Fábio, Sandro e Renan e acrescenta: “[a matéria] parece ter sido feita por quem não gosta e está a fim de dar uma malhada nos caras”. Primeiro não fã confesso a se manifestar sobre a matéria, Roberto crê que a reportagem tem o “selo Globo de Qualidade”. É “superficial, tangencia a importância da banda para o rock and roll, aposta sem exagerar, me parece, nos clichês sobre ela (“ruínas”, “trevas” etc.)”. Resumindo, afirma que é “uma matéria com a tentativa de pegar o fã por cinco minutos sem perder de vista que o público médio do programa e sem intimidade com o tema troque de canal”.

68

22 Festival de música 23 Tais posturas foram motivo de surpresa da nossa parte

24

O mesmo vale para outras variáveis como idade, escolaridade e emprego, as quais parecem não ter influenciado as opiniões dos entrevistados a ponto de provocarem opiniões distintas entre eles

não tem nada de Fantástico”, como afirma Iara, ou “quando não tem outra opção”, no caso de Elisa. “De vez em quando [...] em alguns momentos próximos às 22h” ou “eventualmente”, embora agregue pouco e estar cheio de futilidades, são os argumentos de Guilherme e Marco Antonio respectivamente. Abordando, por fim, a possibilidade do uso de elementos sensacionalistas na matéria, novamente Emerson e Leonardo destoam do restante do grupo por não verem qualquer sinal de espetacularização na reportagem. No entanto, desta vez, eles recebem a concordância de Roberto, para quem “não há claramente elementos sensacionalistas na matéria”. Já para aqueles que visualizam elementos sensacionalistas, as opiniões são abundantes. Para Fábio, “em cada uma das respostas dos integrantes da banda já havia um comentário do repórter com conteúdo ridicularizando-os e dando uma visão própria como se fosse uma verdade absoluta como: ‘Ozzy respondeu isso, mas na verdade não é bem assim’”. E acrescenta: “Perguntas cretinas como: ‘É o fim do começo ou o começo do fim da banda’, num trocadilho infame ao nome de uma música do novo álbum, sabendo que o Tony Iommi está lutando contra um câncer linfático, foram extremamente agressivas”. “O jornalista poderia ter abordado temas da reunião da banda como o porquê de terem se reunido, quando decidiram etc.”. Esta é a opinião de Renan, que continua: “Mas não, decidiu apresentar para o telespectador o que o vocalista fez durante a sua ausência da banda, e abordando sua conhecida luta pelas drogas e o famoso reality show [...], assuntos sem total relevância [...]”. Ainda sobre a questão da recaída que Ozzy Osbourne teve com as drogas, Rodrigo compara: “quando um ator da Globo aparece falando que está se recuperando da dependência química, os caras dão todo apoio e nunca iriam mostrar que o cara teve uma recaída, colocam sempre com um ar de que se livrar da droga é muito difícil”. No entanto, no caso do vocalista, “parece que o Ozzy é um fracassado mentiroso que não consegue se livrar desse problema”. A insinuação de Pereira Júnior de que roqueiros dormem até tarde, outro ponto (ir) relevante da matéria é apontado por Diogo e Elisa como elementos sensacionalistas. Na mesma linha de raciocínio, Guilherme afirma: “Achei um tanto ‘inocente’ e despropositado o derrame de clichês de roqueiro como a coisa do atraso. É evidente que Ozzy e seus companheiros têm clara noção que precisam ir para a entrevista e responder ao repórter latino-americano [...]”. Alexandre também endossa o uso do sensacionalismo na reportagem. Para ele, esta “parte de aspectos curiosos e inusitados para desenvolver o tema. Aborda, por exemplo, a personalidade do baixista, o fato de o Ozzy ser sequelado, brigas e processos”, finaliza.

Considerações Finais É na mídia que, atualmente, encontramos a forma dominante de cultura. Através de um véu sedutor que combina o verbal com o visual, a cultura de parte considerável dos veículos tradicionais de comunicação consiste em divulgar determinados padrões, normas e regras, sugerir o que é bom e o que é ruim, o que é certo e o que é errado; fornecer símbolos, mitos e estereótipos através de representações que modelam uma visão de mundo (imaginário social) de acordo com a ideologia vigente. Sem generalizações, mas com base no material analisado, essa realidade constitui o horizonte social do “Fantástico”: apegado a interesses particulares, que respeitam determinados dogmas, e respirando o ar globalizante que permeia a realidade das empresas de comunicação, o programa dispensa, desta forma, específica modelagem às suas informações. Assim, em que pese o caráter informativo da matéria analisada, o “Fantástico”, através da matéria em destaque, acaba estabelecendo simbolicamente uma ideologia de mercado. Como resultado, na ação figural, o fait divers reina absoluto. Tal cenário é notado pela grande maioria dos entrevistados. De posse de suas competências culturais, fãs e não fãs da banda, os quais possuem idades, escolaridades, profissões e crenças diferentes, enxergam os desvios presentes na produção do “Fantástico” e opõem-se ao discurso da reportagem. Percebem o tom de deboche dos apresentadores e do repórter, o uso de clichês e estereótipos; observam a exploração de informações secundárias como a questão das drogas e as suas consequências nos integrantes da banda. Demonstrando uma postura de país atrasado ao tratar do Black Sabbath – a mesma que o entrevistado Sandro aponta da época da primeira edição do Rock in Rio –, o “Fantástico” informa sem informar. Ao invés de focar as atenções no novo disco e na turnê que passaria inclusive pelo Brasil, a tônica da matéria foi a do superficial baseada na emoção gratuita. Assim, a reportagem abusa da inteligência do receptor. “Informações” líquidas não informam. Se elas buscam somente a emoção de um maior número possível de receptores, no caso analisado, o que obtivemos foi indignação e o clamor dos entrevistados por construções alternativas. E o que seriam essas construções alternativas? Nada mais do que o veicular de informações básicas e com mais seriedade mesmo que o objeto analisado aqui seja uma revista eletrônica. Simples assim.

69

MATTELART, Armand e MATTELART, Michele. O carnaval das imagens. A ficção na TV. São Paulo: Brasiliense, 1989.

Referências BARTHES, Roland. Ensaios críticos. Lisboa: Edições 70, 1971.

MAZZARINO, Jane. Matrizes que se cruzam: interações entre movimento socioambiental e campo jornalístico. In Ambiente & Sociedade, v.XI, n. 1, 2008, p.49-66.

BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2004. CRUZ, Fábio Souza. A cultura da mídia no Rio Grande do Sul: o caso MST e Jornal do Almoço. Pelotas: EDUCAT, 2006.

OROZCO GÓMEZ, Guillermo. La investigación en comunicación desde la perspectiva cualitativa. Buenos Aires: Universidad Nacional de La Plata, 2000.

DIMERY, Robert. 1001 discos para ouvir antes de morrer. Rio de Janeiro: Sextante, 2007.

OSBOURNE, Ozzy. Eu sou Ozzy. São Paulo: Saraiva, 2010. RAMOS, Roberto. Anotações de sala de aula. Porto Alegre: PUCRS, 1999.

ESCOSTEGUY, Ana Carolina Damboriarena. Os estudos culturais. In HOHLFELDT, Antonio; MARTINO, Luiz C.; FRANÇA, Vera Veiga (orgs.) Teorias da comunicação: conceitos, escolas e tendências. Petrópolis: Vozes, 2001.

REY, Leopoldo; PHILIPE, Gilles. Livro negro do rock. O dicionário do heavy metal. São Paulo, Somtrês, 1984.

HALL, Stuart. Identidade cultural e diáspora. In Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, v.24, 1996, p.68-76.

SIMÕES, Inimá. Nunca fui santa (episódios de censura e autocensura). In BUCCI, Eugênio. A TV aos 50: criticando a televisão no seu cinqüentenário. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.

_____. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

SOUZA, José Carlos Aronchi de. Gêneros e formatos na televisão brasileira. São Paulo: Summus, 2004.

IOMMI, Tony. Minha jornada com o Black Sabbath. São Paulo: Planeta, 2013.

WOLTON, Dominique. Elogio do grande público. Uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996.

KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. São Paulo: EDUSC, 2001.

Sites consultados:

LINS DA SILVA, Carlos Eduardo. Muito além do Jardim Botânico. São Paulo: Summus, 1985.

http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2013/07/ozzy-osbourne-cumpre-promessa-e-volta-ao-brasil-com-black-sabbath.html

LOPES, Maria Immacolata Vassalo de; BORELLI, Silvia Helena Simões; RESENDE, Vera da Rocha. Vivendo com a telenovela: mediações, recepção, teleficcionalidade. São Paulo: Summus, 2002.

http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,G YN0-5273-247251,00.html

MARTÍN-BARBERO, Jesús. América latina e os anos recentes: o estudo da recepção em comunicação social. In SOUZA, Mauro Wilton de (org.) Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 1995.

https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/5955/1/LilianMota.pdf http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/Artigo3%20Everardo%20 Rocha%20e%20Bruna%20Aucar%20-%20pp%2043-60.pdf

_____. Dos Meios às Mediações: Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.

http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/12902/8607

70

Recepção audiovisual América Latina na Catalunha a partir da série Presidentes de Latinoamérica

as significações sobre a

999

Rafael Foletto l UNISINOS

Apontamentos iniciais A investigação que estamos realizando tem como objeto imediato da pesquisa o programa de televisão Presidentes de Latinoamérica, procura-se investigar a inter-relação de sujeitos comunicantes com esse material audiovisual, a partir das vivências, reflexões, pensamentos e percepções acionadas pela memória midiática e experiências vividas pelos informantes. Ainda busca-se atentar para as demais mediações presentes em seus relatos, visando compreender que sentidos produzem sobre o panorama latino-americano a partir dos vídeos. Desse modo, tem-se como principal objetivo da pesquisa investigar o conjunto de entrevistas Presidentes de Latinoamérica, analisando a inter-relação entre as mensagens construídas pelos vídeos e a produção de sentidos e apropriações realizadas por sujeitos comunicantes referentes à América Latina midiatizada. Sendo assim, no desenvolvimento da investigação, busca-se uma construção teórico-metodológica que possibilite colocar em perspectiva conceitos e abordagens que ficariam incompletos se ancorados em apenas um único ponto do processo comunicacional. E, da mesma forma, possibilitando a utilização de diferentes técnicas para a análise do problema-objeto de pesquisa. Ainda, segundo Maldonado (2006, p. 279), na pesquisa no âmbito das Ciências da Comunicação, “o empírico é imprescindível se considerarmos os sistemas, estruturas e campos midiáticos como um referente central dos problemas de conhecimento para a nossa área”. Desse modo, o presente texto traz considerações a partir da realização de um movimento de pesquisa exploratória, ocorrida durante o estágio de Doutorado Sanduíche no exterior na Universitat Autònoma de Barcelona1, aproximando-se de espaços significativos de discussão, problematização e reflexão da temática audiovisual, como universidades, centros culturais e cineclubes, aproveitando que a cidade de Barcelona apresenta como um das suas principais características a multiculturalidade, abrigando um grande número de migrantes oriundos de diversos países, sobretudo da América Latina, o que pode ser evidenciado em investigações como a de Brignol (2010).

71

Uma prévia do texto foi apresentada no GT Recepção em Jornalismo, da II Jornada Gaúcha de Pesquisadores da Recepção

1

Realizado entre julho de 2013 e março de 2014

Dessa forma, inicialmente, procurou-se mapear, explorar e aproximar-se desses espaços, para posteriormente eleger e definir aqueles que se apresentam mais significativos para os objetivos da pesquisa. Assim, em outro momento, após se observar de maneira mais aprofundada os espaços escolhidos, realizou-se a pesquisa com sujeitos, por meio de vídeo/conversas com os interlocutores distintos. Nessa atividade, buscam-se os sentidos produzidos, os usos e as apropriações realizadas pelos sujeitos, como também as mediações relevantes no processo de inter-relação com o conjunto audiovisual investigado. A vídeo/conversa, enquanto procedimento técnico metodológico, permite registrar apropriações a partir das interações de cada sujeito com os fragmentos audiovisuais. Igualmente, possibilita a observação de falas, gestos e sonoridades que constituem os fluxos de apreciações dos materiais simbólicos (MALDONADO, 2001). Nesse sentido, buscou-se problematizar o processo comunicacional de construção simbólica da América Latina, a partir do produto audiovisual e das falas, pensamentos, compreensões e visões de mundo dos interlocutores, no caso, sujeitos comunicantes residentes na região da Catalunha (Espanha), a partir da realização de vídeo-conversas, de modo a enriquecer a compreensão da problemática da investigação.

entrevistas, declarações e falas dos chefes de Estado da região, que apresentam as suas construções e visões sobre a época, as possibilidades de mudança e, inclusive, suas vidas privadas e trajetórias pessoais. O programa Presidentes de Latinoamérica traz entrevistas presenciais com doze Chefes de Estado da região3, apresentando relatos autobiográficos e algumas reflexões dos principais líderes da América Latina, expondo os pontos interessantes para compreender os sofrimentos, as conquistas e as esperanças dos habitantes da região (FILMUS, 2010). As entrevistas dos presidentes permitem não apenas conhecer as origens, lutas, sonhos e pensamentos dos homens e mulheres que chegaram ao governo em seus países, nos primórdios do século XXI, mas também o contexto contemporâneo da região. Cabe ressaltar que as entrevistas tiveram a condução de Daniel Filmus, ministro da Educação do governo de Néstor Kirchner e atual senador pela província de Buenos Aires. Filmus se integrou a equipe da Occidente Producciones para elaborar os roteiros de perguntas e para realizar o processo de pesquisas sobre a vida e a trajetória de cada um dos presidentes entrevistados e sobre a conjuntura de cada um dos países retratados. Igualmente outros elementos da série merecem destaque, como o argumento que entrelaça os diálogos face a face dos presidentes com outras vozes e o manejo das fotografias e imagens e do som, conferindo um tom emotivo às falas dos Chefes de Estado. Desse modo, Presidentes de Latinoamérica se mostra pertinente, sobretudo, por apresentar um panorama de mudanças no horizonte da região, servindo de referencial não apenas para compreender os avanços, conquistas e realizações dessas novas lideranças, mas também para entender as dificuldades e sofrimentos derivados desse processo. Enfim, a série se apresenta como um significativo registro dessa época de mudanças na América Latina, marcando, no panorama da região, uma trilha “de passagem de uma situação de subserviência neocolonial para uma fase de estruturação de instituições multinacionais latino-americanas, que formulam suas principais estratégias de vida democrática e de reconstrução de mercados” (MALDONADO, 2012, p. 10). Ainda observa-se nesse produto midiático um processo comunicacional complexo que imbrica características, elementos e linguagens do documentário, da televisão e do jornalismo. Igualmente, esses vídeos fazem circular e convergir os seus conteúdos para outros formatos, suportes e tecnologias, como a internet. E, também, movimentando-se para outros ambientes que não o midiático, gerando debates e interações no espaço público, bem como nas significações de sujeitos comunicantes (MATA et al., 2009), mediadas por suas memórias, história de vida midiática e visões de mundo. Compreen-

A dimensão do produto o programa Presidentes de Latinoamérica

2

Disponível no site: . Também pode ser encontrado através de buscas no Youtube

3

Os doze presidentes entrevistados na série foram: Álvaro Uribe Vélez, da Colômbia; Cristina Elisabet Fernández de Kirchner, da Argentina; Daniel Ortega, da Nicarágua; Evo Morales Ayma, da Bolívia; Fernando Armido Lugo Méndez, do Paraguai; Hugo Rafael Chávez Frías, da Venezuela; José ‘Pepe’ Mujica, do Uruguai; Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil; Michelle Bachelet, do Chile; Óscar Rafael de Jesús Arias Sánchez, da Costa Rica; Rafael Vicente Correa Delgado, do Equador; e Tabaré Ramón Vázquez Rosas, do Uruguai.

Motivada por um edital aberto pelo canal Encuentro, para o financiamento de projetos audiovisuais, a pequena produtora argentina Occidente Producciones propôs a realização de uma série de entrevistas com os novos presidentes da América Latina. Essa proposta acabou vencendo o edital e, para o desenvolvimento do projeto, além do financiamento do canal público, a produtora contou com o apoio do Sindicato de Trabajadores de la Propriedad Horizontal (SUTERH), Sindicato de Docentes Particulares (SADOP), Banco Credicoop, TELECOM, Fundación Sangari, Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI) e Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). A série de reportagens Presidentes de Latinoamérica tem no seu centro os presidentes de diversos países do continente. Exibida em televisões públicas e estatais de diversos países latino-americanos (incluindo o Brasil, através da TV Brasil e da NBR) no sistema comunicativo multiestatal TeleSUR e, disponível na internet2, o conjunto de quatorze vídeos, com aproximadamente uma hora cada, teve como objetivo compreender o cenário atual da América Latina, a partir das

72

de-se que desse modo é possível investigar a série audiovisual, abrangendo as várias dimensões do processo comunicativo, bem como as distintas mediações que perpassam esse processo. Sabe-se que a exploração da dimensão audiovisual no espaço latino-americano é significativa e possui uma riqueza histórica, técnica e estética que fomenta direta ou indiretamente as produções contemporâneas. Inclusive a estratégia dos realizadores de Presidentes de Latinoamérica de se nutrir e utilizar imagens e frames de outros vídeos, filmes e documentários denota essa memória social da produção audiovisual regional na construção das trajetórias midiáticas dos sujeitos comunicantes na América Latina. Enfim, busca-se a construção de uma problematização sobre a inter-relação da presença da dimensão audiovisual na construção da cultura midiática dos sujeitos, levando em consideração a permeabilidade, sofisticação e diversidade dos meios de comunicação latino-americanos. Compreende-se a dimensão audiovisual como um processo durante o qual se apresentam, interpretam-se, comparam-se, discutem-se e negociam-se significados sobre diversos aspectos da vida quotidiana e do mundo social (BUONANNO, 2006; GUTIÉRREZ ALEA, 1984; LORITE, 2010). Nesse sentido, interessa-se nas problematizações referentes a dimensão do produto por perspectivas teóricas e metodológicas que problematizam a temática audiovisual enquanto linguagem complexa, buscando compreender a dimensão audiovisual como um processo “durante el cual se presentan, se interpretan, se comparan, se discuten, se negocian significados sobre diversos aspectos de la vida cotidiana y del mundo social” (BUONANNO, 2006, p. 78-79), possibilitando investigar os contextos, características e significados que compõem um determinado produto midiático.

las mediaciones que son procesos que él sitúa en el punto de articulación entre las prácticas de comunicación y los movimientos sociales. Para él, la mediación es una instancia cultural a partir de la cual el público de los medios produce, al apropiárselos, el sentido del proceso de comunicación (OLLIVIER, 2008, p. 127).

Martín-Barbero (2008) pensa a cultura como âmbito estratégico para estudar os processos de comunicação. Desse modo, torna-se necessário compreender as práticas midiáticas no sentido de fomentadoras de relatos que produzem cenários de diferenças culturais, sociais e políticas inerentes à contemporaneidade, pois, através do incremento dos sistemas de informação e comunicação, aparece um novo olhar para problematizar os processos culturais. Tal concepção ficou conhecida como cultura midiática (MATA, 1999), apresentando-se como uma noção em constante transformação. As culturas, dessa forma, reclamam novas maneira de conceituação e análise, deixando de residirem entre fronteiras fixas e passando a serem constantemente construídas, difundidas e transformadas. Da mesma forma, preocupados com a questão da cultura, Armand e Michèle Mattelart (1989) buscam construir uma nova definição da noção de sujeitos, ancorados em uma ótica centrada na política e na cultura popular. Assim, esse processo de construção da visão dos indivíduos necessitaria surgir de um entendimento aprofundado dos grupos sociais e das comunidades que constituem a sociedade a qual o pesquisador lança a sua análise, pois, para os autores, as experiências pessoais se constituem em experiências sociais. Assim, a dimensão dos sujeitos é entendida como perspectiva teórica integradora do processo comunicacional e como o momento privilegiado da produção de sentido. Porém, Mattelart e Neveu (2004) enfatizam que também é necessário atentar para a questão da produção. Assim, a ideia é a de termos uma observação interdisciplinar, ampla da realidade que, derivando da abordagem trazida pelos autores, pode ser compreendida como um processo social em fluxo. Igualmente, para Lopes, Borelli e Resende (2002, p. 39), a pesquisa com sujeitos diz respeito a “uma tentativa de superação dos impasses a que tem nos levado a investigação fragmentadora e, portanto, redutora do processo de comunicação, em áreas autônomas de análise: da produção, da mensagem, do meio e da audiência”. Dessa forma, é imprescindível para um pesquisador desenvolver um olhar metodológico sensível, atento às polaridades, às competências, aos agires, aos sentidos, às lógicas, às visões de mundo dos indivíduos e grupos humanos. Trata-se de uma concepção que centra as suas análises na observação do papel dos meios no cotidiano dos sujeitos sociais, desenvolvendo principalmente estudos de recepção, mais especificamente da mídia e de programas televisivos de apelo popular.

A dimensão dos sujeitos inter-relações entre comunicação e cultura Problematizar a comunicação a partir da cultura – programa de pesquisa elaborado por Martín-Barbero (2008) – pressupõe não centralizar a observação nos meios em si, mas abrir a análise para as mediações. Em outros termos, significa deslocar os processos comunicativos para o denso e ambíguo espaço da experiência dos sujeitos, localizada em contextos sócio-históricos particulares. Em síntese, o desenvolvimento de uma teoria das mediações implicou em um distanciamento de concepções de comunicação midiocêntricas. Assim, Martín Barbero desea comprender cómo se constituye la cultura de masas. La aborda desde el punto de vista de los sujetos y de

73

Sendo assim, observa-se a pertinência de ampliar a problematização sobre a dimensão dos sujeitos, compreendendo as reconfigurações trazidas pelas tecnologias de comunicação, que inter-relacionam os róis de receptor e produtor, gerando novas formas de produção de sentido (FAUSTO NETO, 2010). Igualmente, demostrando a necessidade de compreender os atores sociais enquanto sujeitos comunicantes, pois “as novas formas de narrativa que a internet propõe revitalizam hoje um desejo não alcançado com os meios tradicionais: a formação de leitores críticos” (CORVI DRUETTA, 2009, p. 49). Desse modo, considerando as competências dos interlocutores enquanto leitores, colaboradores e fruidores, através de depoimentos, opiniões, relatos, vivências, manifestações e expressões. Para Mata et. al. (2009, p. 184), trata-se de “un particular agrupamiento social que se produce a partir de la interacción individual con un conjunto de interpelaciones mediáticas y que confiere rasgos identitarios según el modo en que ellas se experimentan”. Enfim, importa adentrar na dimensão dos sujeitos, ou seja, compreender o contexto que o permeia e o configura. Observando, então, as sociabilidades que se formam, os usos que se fazem dos meios e a diversidade de matrizes culturais. Torna-se necessário, desse modo, compreender o caráter múltiplo dos atores sociais, trazendo a necessidade de adoção de estratégias teóricas e metodológicas que permitem investigar o processo comunicacional desses sujeitos, em contato com um produto midiático, de forma ampla. Enfim, busca-se a partir da inter-relação dos sujeitos com o midiático ver processo gerado, por exemplo, pesquisar como um produto midiático desencadeia processos de significações sobre a América Latina nos relatos de sujeitos comunicantes. Compreendendo que esse processo é atravessado por outras vivências e mediações, aspectos estes que também precisam ser problematizados.

problema de pesquisa, bem como, auxiliando a fundamentar opções teóricas e metodológicas, a exemplo da definição do corpus de análise. Para tanto, utilizou-se como procedimento metodológico principal a vídeo/conversa. Acredita-se que essa processualidade se apresenta como relevante para a compreensão da produção de significações tanto individuais, sobretudo ao detalhar qualitativamente pensamentos, opiniões, sentimentos, emoções, atitudes em um ambiente de diálogo e debate sobre aspectos e elementos relativos ao produto investigado, bem como em relação aos objetivos da investigação. Ainda, a vídeo/conversa, enquanto procedimento técnico metodológico permite registrar apropriações a partir das interações de cada sujeito com os fragmentos audiovisuais. Igualmente, possibilita a observação de falas, gestos e sonoridades que constituem os fluxos de apreciações dos materiais simbólicos. Aproveitando o estágio de doutorado no exterior, na Universitat Autònoma de Barcelona, buscou-se o diálogo com interlocutores residentes na Catalunha. Para tanto, buscou-se a aproximação de diferentes espaços em Barcelona (universidades, cineclubes, associação de bairro, coletivos culturais, etc.) nos quais a temática audiovisual fosse tratada. Desse modo, chegou-se a três cenários propícios para a realização de atividades de pesquisa exploratória, a saber, Casa América, Centro Cultural do Brasil em Barcelona (CCBB) e Espai Avinyó. Após observação, visita e conversa com representantes desses três espaços, optou-se em focar no último, em virtude de oferecer cursos de língua catalã, frequentado por migrantes oriundos de diversos países. Em um segundo momento, selecionamos uma das escolas nas quais são ministradas as aulas de catalão, apresentamos sinteticamente a investigação para os estudantes e deixamos um contato para que os interessados em participar da pesquisa se manifestassem. Desse modo, tivemos três voluntários com quais realizamos uma vídeo/conversa individual: uma psicóloga uruguaia de 32 anos, um músico argentino de 40 anos e uma jornalista suíça de 31 anos. A atividade na exibição de um dos episódios de Presidentes de Latinoamérica, escolhido pelo interlocutor e, logo após, realizou-se um diálogo com o participante, debatendo as suas impressões sobre o conteúdo do vídeo, por meio de um roteiro composto de três questões abertas, a saber: o vídeo te dá elementos para pensar a América Latina? Quais são estes elementos? Que América Latina pode ser pensada a partir do vídeo? Do ponto de vista técnico, quais são as principais características estéticas que você apontaria como sintomáticas do vídeo, responsáveis por chamar a sua atenção? Se você fosse o diretor do filme, você faria algo diferente? O que seria eventualmente mantido, acrescentado, ou modificado? Parâmetros os quais serão problematizados na sequência.

Recepção audiovisual pesquisa exploratória com sujeitos comunicantes Com o objetivo de compreender as apropriações realizadas por uma diversidade de sujeitos em relação a América Latina midiatizada pela série de entrevistas Presidentes de Latinoamérica, torna-se necessário a realização de processualidades de pesquisa exploratórias do contexto investigado, que, segundo Bonin (2006, p. 35), “implica um movimento de aproximação à concretude do objeto empírico (fenômeno a ser investigado) buscando perceber seus contornos, suas especificidades, suas singularidades”. Tal dinâmica mostra-se pertinente ao trazer novos encaminhamentos, pistas, dados, à construção do

74

de forma contextualizada e analítica sobre o panorama do país e da América Latina, demostrando ter conhecimento sobre o cenário contemporâneo da região. Da mesma forma, a entrevistada suíça também destacou a fala da presidente argentina sobre o contexto atual da América Latina, enfatizando os esforços de aproximação entre os atuais governantes da região. Acredita-se que essa pesquisa exploratória de recepção audiovisual com a técnica do vídeo/conversa se apresentou como significativa para as processualidades metodológicas da investigação, ao colocar em perspectiva vozes, opiniões, problematizações e diálogos de uma diversidade de sujeitos comunicantes, discutindo elementos e aspectos do contexto latino-americano, inter-relacionados com o vídeo que assistiram, oferecendo, desse modo, diferentes ângulos, abordagens, discursos e significações sobre a temática problematizada.

Em geral, os interlocutores observaram que o episódio o qual assistiram não apresenta a realidade da região de forma ampla, pelo contrário, retrata a América Latina de forma homogênea e, com isso, perde a diversidade que caracteriza os povos latino-americanos. Nesse sentido, em relação ao episódio sobre o presidente do Uruguai José “Pepe” Mujica, a interlocutora uruguaia destacou que apareceram poucos “sujeitos que representem o país”. Para ela, seria necessário adicionar mais vozes, mais rostos de cidadãos, de pessoas comuns, falando sobre o momento do país, a gestão do presidente e o que mudou ou não em suas vidas. Ainda, para os dois informantes nascidos na América Latina, o vídeo, embora possua boa qualidade estética e de produção e montagem, ao utilizar planos externos, mostra imagens que são comuns em outros meios de comunicação na região, como os principais pontos turísticos de cada país, a exemplo da Praça de Maio na Argentina. Ainda, o informante argentino questiona a narrativa sonora utilizada para apresentar o episódio sobre a presidenta Cristina Fernández, “porque sempre que se fala em Argentina tem que se utilizar o tango?” Já a entrevistada de origem europeia destacou as imagens de arquivo utilizadas na construção do episódio, sobretudo as que apresentavam acontecimentos relacionados as ditaduras latino-americanas, período conflitivo da história regional que ela não tinha muitas referências. Os entrevistados compreenderam que a produção audiovisual se constitui como um interessante material para compreender as trajetórias pessoais e políticas dos presidentes entrevistados. Destacando o formato de depoimento pessoal, no qual pouco intervém a figura do entrevistador, deixando o entrevistado livre para apresentar os seus pensamentos, considerações e reflexões sobre o momento histórico da América Latina, as suas ações de governo e, inclusive, suas vidas privadas e o seu cotidiano enquanto Chefe de Estado. Contudo, a interlocutora uruguaia adicionaria mais tensões nas perguntas, como forma de ampliar a discussão sobre América Latina pretendida pelo vídeo, mas ressalta que compreende que, por se tratar de uma produção ligada a televisões públicas, pressupõe-se um tratamento mais amigável com os presidentes. Ela ainda faz a ressalva que, por outro lado, em geral os meios de comunicação da América Latina fazem duras críticas a esses governos, muitas vezes assumindo um papel de opositor dessas lideranças políticas. Assim, faz a observação que muitas vezes a população não fica bem informada sobre as ações dos governos, as mudanças que promovem e as dificuldades que enfrentam na gestão do país. Da mesma forma, o entrevistado argentino afirmou ter agradado a forma como a presidenta foi retratada, mostrando-a de maneira natural, fato que pode ser evidenciado por ela ter se apresentado tranquila na entrevista, falando bastante,

Conclusão Observa-se a necessidade de abordar a problemática midiática em seus principais momentos – produção, textos/discursos, leituras e culturas vividas – dedicando especial atenção às relações estabelecidas entre esses âmbitos e aos desdobramentos decorrentes deles. Sobretudo no que diz respeito a questão da recepção, entendida por Mattelart e Neveu (2004) como o momento privilegiado da produção de sentido. Desse modo, percebe-se que a experiência de participação no MIGRACOM – Observatório e Grupo de Pesquisa de Migração e Comunicação da UAB se apresentou como significativa na construção da tese, no sentido de experimentar metodologias e debater questões centrais para o campo da Comunicação, sobretudo, ao observar-se que as práticas metodológicas do grupo priorizam a ampla observação e análise do processo comunicacional, interpretando-o através de três pontos fundamentais, a saber, a produção dos discursos, a emissão ou as mensagens difundidas e a recepção (LORITE, 2010). Ainda, compreendo que as sociedades contemporâneas estão marcadas pela interculturalidade, tornando-se necessária uma problematização complexa das suas práticas e processos, buscando, para tanto, confluências metodológicas em termos de entrecruzamentos fecundos de lógicas, conteúdos e estruturações concretas. Sendo assim, compreende-se que a realização de diálogos com diversos interlocutores residentes em Barcelona possibilitou dimensionar e analisar as apropriações, usos, recusas e contextos de inter-relação com o conteúdo da produção audiovisual problematizada, no sentido de compreender que sentidos sobre a América Latina

75

constroem a partir do contato com o material visual, bem como através das suas vivências e trajetórias midiáticas e pessoais. Ainda, as reflexões apontam para a relevância do âmbito audiovisual na constituição da cultura e da cidadania latino-americana, de modo a proporcionar aos sujeitos uma informação que lhes permita dialogar, conversar, exigir e debater sobre o que lhes diz respeito. Compreendendo os desafios e as potencialidades de experiências que acontecem nesse contexto, igualmente, as relações que promovem com o público, bem como as formas de fruição e circulação das diversas produções audiovisuais.

LORITE, Nicolás. Televisión informativa y modelos de dinamización intercultural. In: Martínez Lilora, Maria (ed.). Migraciones, discursos e ideologías en una sociedad globalizada: claves para su mejor comprensión. San Fernando: Instituto Alicantino de Cultura Juan Gil-Albert, 2010, p. 19-42. MALDONADO, Alberto Efendy. Práxis teórico/metodológica na pesquisa em comunicação: fundamentos, trilhas e saberes. In: MALDONADO, A. Efendy; BONIN, Jiani Adriana; ROSÁRIO, Nísia Martins do. (org.). Metodologias de pesquisa em comunicação: olhares, trilhas e processos. Porto Alegre: Sulina, 2006, p. 271-294. _____. Teorias da Comunicação na América Latina: enfoques, encontros, apropriações da obra de Verón. Editora Unisinos, São Leopoldo, 2001.

Referências BONIN, Jiani. Nos bastidores da pesquisa: a instância metodológica experienciada nos fazeres e nas processualidades de construção de um projeto. In: MALDONADO, Alberto Efendy et al. Metodologias de Pesquisa em Comunicação: olhares, trilhas e processos. Porto Alegre: Editora Sulina, 2006, p. 21-40.

_____. América Latina, cidadania comunicativa e subjetividades em transformação: configurações transformadoras em uma época de passagem. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 25, 2012, Fortaleza. Anais... Fortaleza: Intercom, 2012.

BRIGNOL, Liliane Dutra. Migrações transnacionais e usos sociais da internet: identidades e cidadania na diáspora latino-americana. 2010. 404 f. Tese (Doutorado) - Unisinos, São Leopoldo, 2010.

MARTÍN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.

BUONANNO, Milly. El drama televisivo: identidad y contenidos sociales. Barcelona: Gedisa, 1999.

MATA, Maria Cristina. De la cultura masiva a la cultura midiática. In: Diálogos de la comunicación. Lima: FELAFACS, out. 1999, p. 8090.

CORVI DRUETTA, Delia. Internet, a aposta na diversidade. In: FRAGOSO, Suely; MALDONADO, Alberto Efendy. Internet na América Latina. São Leopoldo/Porto Alegre: Unisinos/sulina, 2009. p. 41-58.

MATA, María Cristina et al. Ciudadanía comunicativa: aproximaciones conceptuales y aportes metodológicos. In: PADILLA, Adrián e MALDONADO, Alberto Efendy. Metodologías transformadoras: tejiendo la Red em Comunicación, Educación, Ciudadanía e Integración em América Latina. Caracas: Fondo editorial CEPAT/UNESR, 2009.

FAUSTO NETO, Antonio. A circulação além das bordas. Paper. Apresentado no colóquio “Mediatización, sociedad y sentido”. Convênio Capes/Myncr. Agosto/2010. Universidade Nacional de Rosário, Argentina. FILMUS, Daniel. Presidentes: voces de América Latina. Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 2010.

MATTELART, Armand; MATTELART, Michèle. O carnaval das imagens: a ficção na TV. São Paulo: Brasiliense, 1989.

GUTIÉRREZ ALEA, Tomás. Dialética do Espectador. São Paulo: Summus Editorial, 1984.

MATTELART, Armand; NEVEU, Érik. Introdução aos estudos culturais. São Paulo: Parabola, 2004.

LOPES, Maria Immacolata Vassalo, BORELLI, Silvia Helena Simões; RESENDE, Vera da Rocha. Vivendo com a telenovela: mediações, recepção, teleficcionalidade. São Paulo: Summus, 2002.

OLLIVIER, Bruno. Medios y mediaciones. In: Revista Anthropos: Huellas del Conocimiento, nº 219, p. 121-131, 4/2008.

76

A etnografia virtual nos estudos de recepção uma discussão metodológica

10 10 10

Laura Hastenpflug Wottrich l UFRGS

Introdução O artigo objetiva refletir sobre a perspectiva da etnografia virtual1, em especial, tecer um panorama de como o método foi trabalhado nos estudos de recepção brasileiros produzidos entre 2000-2009. Insere-se em projeto mais amplo2, que realizou mapeamento das teses e dissertações produzidas no âmbito dos Programas de Pós-graduação em Comunicação brasileiros no período. Objetiva-se mapear quais autores e conceitos são mobilizados por essas pesquisas, a fim de compor um panorama de utilização da etnografia virtual na década. Por outra via, através desse mapeamento, discutir a utilização desse procedimento metodológico a partir de autores que o problematizam, a fim de explorar: 1) as vinculações teóricas, 2) as terminologias utilizadas, 3) as formas de construção, análise e interpretação de dados e 4) os limites e potencialidades do método para o desenvolvimento da área da recepção. A proposta justifica-se pela investida cada vez mais intensa dos estudos de recepção no entendimento das práticas de receptores na web, o que exige articulações metodológicas distintas, adequadas aos contextos de investigação. Por outra via, paira uma imprecisão conceitual significativa sobre a etnografia virtual. Ora chamada de etnografia virtual, ora de netnografia, ora de webnografia, o método é observado de distintas formas, dependendo do campo em que se está situado. Deseja-se aqui tecer algumas considerações que sejam proveitosas aos estudos de recepção em específico.

A etnografia nos estudos de recepção Ao pousar os olhos sobre os estudos de recepção produzidos a partir da década de 90 até os dias atuais, vê-se que um dos pontos de agendamento do campo para as pesquisas futuras é o amadurecimento teórico-metodológico (JACKS et al., 2011). Em um momento de ampla discussão sobre os contornos do que se pode chamar de “recepção”, frente às transformações nas formas de se estar com a mídia, ainda se pode afirmar que um dos traços constitutivos do campo está na construção de conhecimento através da

77

Uma prévia do texto foi apresentada no GT Convergência e Recepção na Web, da II Jornada Gaúcha de Pesquisadores da Recepção

1

Neste texto, elege-se o termo “etnografia virtual” (HINE, 2004) para nomear a aplicação da etnografia à investigação de ambientes digitais. Este termo é escolhido porque sua formulação teórica carrega questões caras ao entendimento do método, o que será explicitado mais adiante

2

Projeto “Estudos de recepção na América Latina: aspectos propositivos”, coordenado pela Prof. Dra. Nilda Jacks

pesquisa empírica. Por uma perspectiva sociocultural, ou seja, que privilegia a análise da recepção a partir das práticas sociais e culturais, isso abrange o exame da vida cotidiana dos receptores em sua vivência com a mídia. Problematizar metodologias que deem conta desse processo cotidiano de interação com a mídia é fundamental para o fortalecimento do campo, o que é o caso da etnografia. Se o debate sobre o método foi fomentado ainda no início do século XX pela antropologia, na recepção a discussão é mais recente, observada em 1983 com o estudo pioneiro de Ondina Fachel Leal “Leitura Social da Novela das Oito”. Quando se pensa na etnografia inserida na web, a discussão é ainda mais recente. A análise empreendida indica que o método foi utilizado em apenas seis casos por dissertações na área da recepção nos anos 2000. Mais do que uma transposição do método ao ambiente virtual, a discussão sobre a etnografia no contexto online leva a problematização de questões caras ao fazer antropológico, como a construção da autoridade etnográfica, a importância da observação e a delimitação do campo de pesquisa. Devido a isso, o emprego do método não foi inicialmente bem aceito pelos antropólogos de veio mais tradicional (AMARAL, 2010). Há, de fato, muitas dissonâncias entre uma perspectiva etnográfica tradicional e o que é empregado na etnografia virtual. Assim, antes de observar como a etnografia virtual foi empregada nas pesquisas de recepção, torna-se necessário resgatar alguns aspectos constitutivos da etnografia.

grafia de maneira mais ampla. Isso porque o método tem passado por uma revisão de suas premissas, que certamente pairam sob muitas das indefinições e desestabilizações de sua aplicação em estudos na web. Clifford (2011) comenta sobre a alteração no estatuto de um dos pontos basilares do ofício do etnógrafo: a autoridade etnográfica. É ela que reveste o pesquisador de legitimidade no percurso da pesquisa, e tornou-se essencial a essa disciplina de viés qualitativo e que assume a subjetividade como característica fundante. O autor aborda que a etnografia institui-se em um modelo monológico, para então chegar, no fim do século XX, aos modelos dialógico e polifônico3. O primeiro modelo, chamado de experiencial, começa com Malinowski e ganha força entre as décadas de 1920 e 1950. O etnógrafo torna-se um intérprete da vida nativa e sua autoridade baseia-se na vivência, no “estar lá” junto aos grupos pesquisados durante um período de tempo extenso, em que, com o método da observação participante, torna-se um membro da cultura nativa através do domínio de seu repertório cultural. Nos anos 70, Geertz apresenta a antropologia hermenêutica, chamada de modelo interpretativo por Clifford (2011). Nele, ressalta-se a capacidade interpretativa dos textos culturais através de uma “descrição densa”. Essas duas perspectivas enquadram-se em um modelo monológico, ao passo que apresentam a cultura como uma totalidade homogênea, sem ambiguidades e diversidades de significação. Permanece aqui um monopólio do olhar do pesquisador, que subtrai do texto etnográfico as relações dialógicas do trabalho de campo. A partir dessa crítica ao modelo monológico, há um crescente reconhecimento da etnografia não como participação ou interpretação de uma realidade externa, mas como “uma negociação construtiva envolvendo pelo menos dois – e muitas vezes mais – sujeitos conscientes e politicamente significativos” (CLIFFORD, 2011, p. 41). Surgem, então, os modelos dialógico e polifônico, em que os sujeitos pesquisados não são apenas informantes, mas construtores do relato através das relações intersubjetivas no campo. A contribuição desses modelos está em observar o campo como um espaço discursivo, construído por diversas vozes, em que os sujeitos possuem importante protagonismo na configuração do relato etnográfico. A etnografia passa, assim, por um processo de rediscussão de suas premissas, também para adequar-se a um contexto em que os recursos humanos e materiais para longas incursões em campo tornam-se escassos, e que o universo nativo pode ser não mais os Nuer ou Balineses, mas os integrantes de uma comunidade online. A emergência da etnografia virtual torna-se, nesse contexto, uma resposta a esses novos cenários de pesquisa, em especial com a emergência das tecnologias de informação e comunicação, que implicam na configuração de novas sociabilidades e identidades.

Da etnografia tradicional à virtual

3

Segundo o autor, esses modelos não seguem uma ordem linear de sucessão, mas coexistem na prática etnográfica

A etnografia é a forma basilar de construção de conhecimento na antropologia. Para esse campo, mais do que um método, torna-se um modo de olhar específico ao fazer antropológico, o edifício a partir do qual se constitui a formação do antropólogo (ROCHA, ECKERT, 2008). Desse modo, pode ser entendida como um “método-pensamento” (ANDRADE, 2010). Na comunicação, tornou-se conhecida especialmente pelas mãos da etnografia interpretativa de Clifford Geertz, tornando-se um método de pesquisa qualitativa empírica, que apresenta questões específicas (TRAVANCAS, 2011). Observa-se que o mesmo ocorre com a etnografia virtual: a herança geertziana matricia, em grande medida, os pressupostos para a problematização do método e sua transposição ao ambiente digital. Antes de partir para a discussão específica sobre a etnografia virtual, torna-se necessário pontuar algumas discussões sobre a etno-

78

utilizado para denominar estudos que situam a discussão em termos metódicos e teóricos. Como anteriormente dito, as instâncias se entrelaçam e não é possível realizar delimitações tão estanques entre elas. Assim, uma instância técnica jamais prescindirá de uma discussão epistemológica: o que pode acontecer, em alguns casos, é essa instância não ser anunciada. Entende-se que a etnografia virtual pode ser tomada em sua instância técnica para análise dos ambientes virtuais, desde que 1) sejam feitos tensionamentos com as bases epistemológicas e teóricas que a sustentam e que 2) sejam problematizadas as necessárias adaptações da técnica para o estudo em ambientes digitais. A importância de ter esse debate no horizonte se ressalta ao esmiuçar as teorizações acerca do método. Sobre o primeiro item acima apontado, vê-se que muitos dos problemas apontados no uso da etnografia virtual decorrem de sua vinculação aos pressupostos da etnografia tradicional (especialmente ao modelo monológico). Ao basearem-se nesses pressupostos, a experiência etnográfica em ambientes online soa deslocada e insuficiente para dar conta dos requisitos necessários à aplicação do método. Nessa perspectiva, a autoridade etnográfica está alicerçada na presencialidade, na experiência concreta. Contudo, ao observar as discussões mais recentes, vê-se que há um movimento de debate dos pressupostos tradicionais da etnografia, os quais ressoam na utilização do método. Exemplar é a questão da observação participante, elemento fundante da autoridade etnográfica. O método

A etnografia virtual A heterogeneidade do debate acerca da etnografia virtual é perceptível a partir das denominações utilizadas por diferentes autores para classificá-la. Fala-se em netnografia (SÁ, 2002; BRAGA, 2006; MONTARDO, PASSERINO, 2006, KOZINETS, 1997), etnografia virtual (HINE, 2004, 2012; FLICK, 2009) além de etnografia digital, webnografia e ciberantropologia4. A netnografia é um neologismo (net + etnografia) criado em meados dos anos 90 para definir as pesquisas de cunho etnográfico no ambiente online. A popularização do termo por Kozinets deu-se vinculada a pesquisas de cunho mercadológico, o que acarretou a severas críticas a respeito da confiabilidade das investigações, na medida em que os pressupostos que legitimam a etnografia enquanto método eram muitas vezes preteridos em prol da realização de observações esparsas no ambiente virtual (AMARAL, 2010). Para aprofundar o debate acerca dos termos, torna-se necessário discutir as instâncias metodológicas em que estão alicerçados. Subjacentes à utilização de uma ou outra denominação, estão suas vinculações epistemológicas, teóricas, metódicas e técnicas. Adota-se a perspectiva de Lopes (1990), para quem toda a pesquisa engaja essas instâncias. Cada uma delas interage com as demais, ou seja, não é possível considerar uma instância isoladamente. Como já discutido, a etnografia é a forma basilar de construção de conhecimento na antropologia. Assim, é considerada essencialmente em sua instância epistemológica e teórica, embora tenha também implicações metódicas e técnicas. A etnografia virtual tem como insumo a etnografia tradicional. Contudo, é muitas vezes utilizada como técnica de pesquisa, desvinculada das discussões epistemológicas e teóricas. Muitos dos debates acerca da legitimidade de sua aplicação assentam-se nessa questão. Os críticos mais severos afirmam que não é possível nomear por etnografia uma técnica que não assume os pressupostos tradicionais da antropologia. Por outro viés, pesquisadores alegam que é sim possível utilizar a etnografia como técnica no estudo dos ambientes digitais, desde que isso implique em certa vigilância epistemológica para não prescindir dos critérios que validam seu emprego nas pesquisas acadêmicas. Não há consenso sobre a questão. Há autores que falam da etnografia como técnica (BRAGA, 2006; MONTARDO E PASSERINO, 2006; KOZINETS, 1997), como método (SÁ, 2002; FLICK, 2009; FRAGOSO, RECUERO, AMARAL, 2011) e também a partir de sua discussão teórica (HINE, 2004). Ao observar esses autores, pode-se inferir que há certa tendência em cunhar de netnografia os estudos situados na instância técnica, enquanto o termo etnografia virtual é

[...] serve como uma fórmula para o contínuo vaivém entre o “interior” e o “exterior” dos acontecimentos: de um lado, captando o sentido de ocorrências e gestos específicos pela empatia; de outro, dá um passo atrás, para situar esses significados em contextos mais amplos. Acontecimentos singulares, assim, adquirem uma significação mais profunda ou mais geral, regras estruturais, e assim por diante (CLIFFORD, 1998, p. 32).

O autor prossegue, comentando que o método pode ser entendido na dialética entre experiência e interpretação. Contudo, essa autoridade baseada na experiência tem sido contestada, na medida em que evoca uma “concretude da percepção” que é, na verdade, subjetivamente construída. “Estar lá”, observar, não resulta diretamente em uma pesquisa mais crível. Hine (2004) comenta que essa primazia da presencialidade na etnografia parte de uma concepção em que a produção etnográfica é vista como uma narração textual verdadeira, quando é sempre construída. A etnografia em ambientes virtuais possibilita aos pesquisadores explorar espaços sociais sem deslocamento físico, o que não significa alterar a posição do etnógrafo em campo: “Com ou sem deslocamento

79

4

Para um aprofundamento acerca desses termos, ver Fragoso, Recuero e Amaral (2011)

5

As referências encontram-se no final do texto

6

Cf Escosteguy e Jacks (2005), privilegia as relações sociais e culturais na análise da interação entre receptores e meios

7

Cf Escosteguy e Jacks (2005), adota a perspectiva da análise do discurso, em suas múltiplas vertentes, para o estudo da recepção

físico, a relação entre o etnógrafo, o leitor e os sujeitos da investigação se mantém no texto etnográfico”. Dessa forma, “Quem faz a etnografia mantem uma posição singular para explorar o campo, baseada em sua experiência e capacidade de interação” (HINE, 2004, p. 61). Isso não significa, contudo, descartar o contato físico na realização da etnografia virtual. Esse movimento dependerá dos objetivos e problemática de pesquisa. Em certos casos, forçar um encontro offline poderá enfraquecer a autenticidade da experiência nos termos em que é vivida pelos informantes de pesquisa (HINE, 2004). Como realizar um encontro offline junto a comunidades ou grupos que nunca tiveram intenção de fazê-lo? Não seria forçar a lógica de funcionamento do grupo? Comumente, a presencialidade na etnografia virtual é vista como uma confirmação das identidades dos informantes, daquilo que eles expõe no ambiente online. Aqui subjaz uma noção de que há uma identidade que é representada na interação com o pesquisador e outra, que é vivida offline. Contudo, como esclarece Hine, o informante, na etnografia tradicional ou virtual, é sempre uma figura parcial, não uma identidade total a ser desvelada. Nesse sentido, o mais benéfico seria investigar como esses informantes negociam essas identidades e como a tecnologia se relaciona com esse processo. Outro elemento importante é a constituição do campo de pesquisa. Os objetos estudados são usualmente interpretados em termos espaciais. A expressão “ir a campo” desvela um pouco desse sentido: o etnógrafo realiza uma incursão a certo local a fim de investigar a constituição cultural de determinado grupo/comunidade. Contudo, como aponta Hine, isso acarreta por vezes em uma tendência a observar o campo como uma unidade cultural relacionada ao espaço físico, descartando as incoerências e idiossincrasias na descrição etnográfica. Isso também leva a uma visão de cultura necessariamente relacionada ao local, quando, na verdade, “Se a cultura e a comunidade não são produtos diretos de um lugar físico, então a etnografia tampouco tem porque sê-lo”. (HINE, 2004, p. 81). Assim, a autora defende que o campo, na etnografia virtual, deve ser tomado muito mais como um espaço de relações do que como um lugar. Por último, entre os pressupostos da etnografia tradicional importantes para a constituição da etnografia virtual está a reflexividade. Considera-se primordial o pesquisador sustentar uma postura reflexiva em todas as etapas da pesquisa etnográfica, ainda mais tendo em vista a complexidade dos fenômenos digitais. Segundo Hine (2004, s/p), esses [...] existem em múltiplos espaços, são fragmentados e costumam ser temporalmente complexos. Não podemos esperar ter

uma vivência de um fenômeno assim apenas ‘estando presentes ali’ porque não sabemos automaticamente onde é ‘ali’ nem como ‘estar presentes‘. Mas podemos ajudar a entender os fenômenos digitais tentando adquirir nossa própria experiência autêntica desses fenômenos como etnógrafos inseridos, incorporados, e refletindo constantemente sobre o que sabemos e como sabemos.

Sem a reflexividade, incorre-se no risco de observar os ambientes virtuais sem problematizar como a subjetividade do pesquisador, suas competências tecnológicas e sua inserção no meio se relacionam com sua compreensão das práticas culturais analisadas. Ela é um recurso imprescindível aos pesquisadores que optam pela realização de estudos focados somente nas interações online, sem a dimensão da presencialidade. Esses são alguns dos tensionamentos teóricos necessários para transposição da etnografia ao estudo em ambientes digitais. Muito mais poderia ser dito, considerando a riqueza da tradição etnográfica. Vê-se que, ao oxigenar o uso da etnografia virtual com esses debates, muitas das críticas realizadas à aplicação do método são passíveis de problematização. Na próxima seção, os estudos de recepção serão analisados com base nesses questionamentos.

A etnografia virtual nas pesquisas de recepção nos anos 2000 Na década em análise, seis estudos5 valeram-se da etnografia como método/técnica em pesquisas no ambiente digital. Foram todas dissertações de mestrado, cinco de abordagem sociocultural6 e uma de abordagem sociodiscursiva7. Inicialmente, se realizará uma breve apresentação dos trabalhos, com foco nos objetivos apresentados. As pesquisas versam sobre temas diversos, com destaque à temática das identidades, escolha de três investigações. As demais têm por temática norteadora as relações de gênero, a crítica à mídia e o consumo juvenil de fãs. Sites e redes sociais foram especialmente eleitos como locus de pesquisa. Scoss (2003) investiga o papel dos meios de comunicação na configuração do imaginário juvenil, através de um estudo de recepção no site Portal Malhação, relativo à soap opera de mesmo nome veiculada na Rede Globo. Brignol (2004) também tem por locus de investigação um site, a Página do Gaúcho, em que estuda a configuração da identidade regional gaúcha. A dissertação de Linke (2005), única de veio sociodiscursivo, elegeu o site Observatório de Imprensa como objeto, a fim de observar a dinâmica de interação entre leitores e site.

80

Castellano (2009), por sua vez, investiga o consumo de cultura trash, especialmente as motivações e práticas sociais dos fãs de filmes do segmento, através de comunidades da rede social Orkut. Comunidades de discussão instaladas nessa rede também foram investigadas por Gomide (2006), a fim de apreender as representações sociais das identidades lésbicas construídas pela telenovela Senhora do Destino através dos diálogos travados no espaço. Bello (2009) também elegeu essa rede social como objeto, em que investiga a configuração das identidades e a relação entre identidade e subjetividade. É importante observar de que forma as autoras enunciam a utilização da etnografia em suas pesquisas. Há menções à etnografia virtual (SCOSS, 2003), netnografia (CASTELLANO, 2009; BELLO, 2009) e abordagem etnográfica (BRIGNOL, 2004). Há ainda casos em que o método/técnica não é diretamente explicitado (LINKE, 2005; GOMIDE, 2006). Ao olhar o conjunto das pesquisas, vê-se que não há preocupação em especificar a etnografia em sua instância metódica ou técnica. A única a fazê-lo é Bello (2009), que denomina por método netnográfico. Brignol (2006) posiciona-se de forma mais ampla, considerando a etnografia como uma perspectiva, uma abordagem que conjuga diversas técnicas de pesquisa. Nesse sentido, observa-se que as etnografias são realizadas principalmente através de observação participante e realização de entrevistas. Em alguns casos, há a triangulação da etnografia com outras técnicas, como observação, histórias de vida, rotinas produtivas e análise de conteúdo (BRIGNOL, 2006) e somente análise de conteúdo (GOMIDE, 2004). Em outros, contudo, os procedimentos basilares à utilização da etnografia não são sequer explicitados, o que impede uma análise mais detalhada da questão e reforça as fragilidades metodológicas que acompanham as teses e dissertações na área de recepção (JACKS, MENESES, PIEDRAS, 2008). Isso se torna mais perceptível ao destrinchar que autores são trazidos pelos trabalhos para refletir sobre o método. Vê-se que o resgate teórico para problematização metodológica é pouco realizado. Aparece em Scoss (2003), Brignol (2004) e também em Castellano (2009) e Bello (2009), mas de forma bem mais tangencial. A boa nova está nos autores mobilizados: há incorporação de recentes discussões brasileiras, sinal de que os debates teóricos realizados no campo têm ressonância nas pesquisas na pós-graduação. Adriana Amaral e Simone Pereira de Sá são as autoras brasileiras citadas. Para além das fronteiras nacionais, há também menções a Kozinets, David Morley e Clifford Geertz. Considera-se a discussão teórica realizada pela maior parte dos trabalhos insuficiente para dar conta das adaptações requeridas pelo método. Ao não realizar esse debate, as pesquisas acabam por

prescindir de elementos que são fundamentais à experiência etnográfica no meio digital, como o papel da reflexividade, a problematização acerca da presencialidade e a configuração do campo de pesquisa. A maior parte das pesquisas analisadas não reflete sobre a inserção do pesquisador em campo e sobre as implicações de sua posição na interpretação dos dados coletados. Há casos em que as pesquisadoras adotam a abordagem da internet como cultura (LINKE, 2005; GOMIDE, 2006; BELLO, 2009), focando a análise somente nas interações realizadas no ambiente digital. O interesse está em observar fenômenos culturais localizados, restritos à experiência online. Nessas pesquisas, as autoras optam por realizar uma observação não participante, ou seja, elas não se inserem enquanto sujeitos no campo de pesquisa. Essa escolha, contudo, não é problematizada à luz dos objetivos e problema de pesquisa, dentro de uma perspectiva reflexiva. Scoss (2003), Brignol (2004) e Castellano (2009) investigam o meio digital como um elemento da cultura, integrado, assim, com a dimensão offline. Nesse sentido, tomam a internet como um artefato cultural, privilegiando a intersecção da tecnologia na vida cotidiana. Castellano (2009) pesquisou as interações em comunidades do Orkut dedicadas à cultura trash e realiza observação participante em sessões de cinema dedicadas a esse gênero. Brignol (2004) investigou a constituição das identidades regionais através da Página do Gaúcho, realizando também histórias de vida presencialmente. Observa-se que as pesquisas que tomaram a internet como artefato cultural tendem a forjar uma arquitetura metodológica mais pertinente à abordagem etnográfica. Isso não significa, contudo, demérito às investigações que se restringem ao ambiente digital. Contudo, para que essas pesquisas mantenham autenticidade da perspectiva etnográfica, seria necessário assumir alguns pressupostos do método, como a reflexividade, seguindo as recomendações de Hine (2012).

Considerações finais

Neste texto, buscou-se aventar algumas questões relativas à etnografia virtual, a partir do diálogo com os pressupostos da etnografia tradicional e da análise da produção acadêmica da área da recepção nos anos 2000. Não foi objetivo esgotar a temática, mas traçar certo panorama sobre como a etnografia virtual é constituída e de que forma os pesquisadores da área de recepção a assimilam em suas investigações. Sobre a etnografia virtual, considera-se um método promissor ao entendimento das práticas de sujeitos inseridos no ambien-

81

te digital. Embora não haja consenso em relação às terminologias e classificações, vê-se que as discussões são promitentes, ao passo que apresentam uma diversidade de autores com reflexões teóricas consistentes a respeito do tema. Contudo, os avanços teóricos tardam, muitas vezes, a ressoar no desenvolvimento metodológico (HINE, 2004), o que leva a certo descompasso entre a formulação do método e a sua aplicação. A etnografia virtual é muitas vezes utilizada tendo como horizonte os pressupostos de um modelo monológico de etnografia, o que gera uma sensação de inadequação do método. Afinal, como adaptar a etnografia virtual a uma perspectiva em que a experiência, a presencialidade é condição sine qua non à legitimidade da pesquisa? Em que o campo é tomado como um lugar fisicamente delimitado, e não são consideradas as heterogeneidades, idiossincrasias inerentes à pesquisa? Quando avaliada a partir desse viés teórico, a etnografia virtual ganha a pecha de rasa e insatisfatória. Nisso consiste a importância em fomentar debates teóricos que auxiliem na arquitetura do método, de forma a oxigená-lo a partir das discussões mais recentes da antropologia e também aproximá-lo das perspectivas teóricas que norteiam os estudos ciberculturais. Isso é essencial ao pensar nos estudos de recepção, que além da implicação teórica do método, precisam dar conta das relações entre estudos culturais e ciberculturais, nem sempre harmônicas. Como aponta Knewitz (2009, p. 8):

meados dos anos 2000, se reforça a configuração de um cenário ainda incipiente de pesquisa. De outra forma, avanços já são perceptíveis, como a incorporação de autores brasileiros nas discussões. Para avançar, nesse cenário, são fundamentais que prossigam as explorações teóricas acerca do método, e sobretudo que se materializem investidas empíricas que deem conta de tensioná-lo com a realidade para problematizá-lo. Nessa empreitada, os estudos de recepção, área empírica por natureza, assume um papel fundamental.

Os estudos de recepção baseiam-se em dois pressupostos. Primeiro, o de que a audiência é sempre ativa; segundo, o de que o conteúdo dos meios é polissêmico – o que tem sido entendido como sua abertura a diferentes interpretações” (GOMES, 2005, p.75). A internet não só endossa esses pressupostos como os conduz a uma condição extrema: nela, a audiência, mais do que ativa, é interativa; e a polissemia do conteúdo é consideravelmente ampliada com o surgimento do hipertexto. Assim, fica mais uma vez evidente que estudar o consumo cultural nas novas mídias é um procedimento ambíguo, de continuidade e ruptura.

Para a autora, a etnografia virtual é um exemplo prático da atuação conjunta dessas duas linhas teóricas. Assim, fomentar o diálogo entre estudos culturais e cibercultura é um caminho para o fortalecimento do método. Ao observar os seis estudos de recepção produzidos entre 2000 e 2009, vê-se que o emprego do método é ainda frágil. De fato, a incipiência metodológica não é um problema localizado, mas um fato que acompanha os estudos de recepção brasileiros em sua trajetória (JACKS, MENESES, PIEDRAS, 2008). Relacionando esse contexto aos estudos empíricos de internet, que ganharam força apenas em

82

Referências AMARAL, Adriana. Etnografia e pesquisa em cibercultura: limites e insuficiências metodológicas. REVISTA USP, São Paulo, n.86, p. 122135, junho/agosto 2010.

JACKS, Nilda, MENEZES, Daiane e PIEDRAS, Elisa. Meios e Audiências. A emergência dos estudos de recepção no Brasil. Porto Alegre. Sulina, 2008

ANDRADE, Danúbia. Etnografia da Mídia: um método-pensamento para a análise de recepção. Revista Fronteiras – Estudos Midiáticos. Unisinos, set-dez, 2010. P. 193 – 199.

JACKS, Nilda et alli. Pesquisa sobre audiências midiáticas no Brasil: primórdios, consolidação e novos desafios. IN JACKS, Nilda (coord.). Análisis de recepción en América Latina: un recuento histórico con perspectivas al futuro. Quito. CIESPAL, 2011.

BRAGA, Adriana. Técnica etnográfica aplicada à comunicação online: uma discussão metodológica. UNIrevista ‐ Vol. 1, n°3: (julho 2006). Disponível em: http://www.unirevista.unisinos.br/_pdf/UNIrev_Braga.PDF. Acesso em 01/02/2014.

LEAL, Ondina Fachel. A leitura social da novela das oito. Petrópolis: Vozes, 1986. LOPES, Maria Immacolata V. Pesquisa em Comunicação: formulação deu modelo metodológico. São Paulo: Edições Loyola, 1990.

_____. Etnografia segundo Christine Hine: abordagem naturalista para ambientes digitais (entrevista). E-compós, Brasília, v. 15, n.3, set/ dez 2012.

MONTARDO, Sandra, PASSERINO, Liliana. Estudo dos blogs a partir da netnografia: possibilidades e limitações. In Revista Novas Tecnologias na Educação, v.4 n.2, CINTED‐UFRGS, Dez.2006.Disponível em Acesso em 15/01/2014.

CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnográfica. In: A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2011.

ROCHA, Ana Luiza C; ECKERT, Cornelia. Etnografia: saberes e práticas. In: PINTO, Céli Regina J; GUAZZELLI, César Augusto B. Ciências Humanas: pesquisa e método. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2008.

FLICK, Uwe. Pesquisa qualitativa online: a utilização da internet. In: FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2009. FRAGOSO; Suely; RECUERO, Raquel; AMARAL, Adriana. Métodos de pesquisa para internet. Porto Alegre: Sulina, 2011.

SÁ, Simone Pereira. Netnografias nas redes digitais. In: PRADO, José Aidar (Org). Crítica das práticas midiáticas: da sociedade de massa às ciberculturas. São Paulo: Hacker, 2002.

HINE, Christine. Etnografia Virtual. Barcelona, Espana: UOC, 2004.

TRAVANCAS, Isabel. Fazendo etnografia no mundo da comunicação. In: DUARTE, Jorge; BARROS, Antonio (Orgs). Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. São Paulo: Atlas, 2011. Corpus SCOSS, D. M. Navegar é preciso: Pesquisa de recepção virtual através do estudo de caso do portal da Malhação. São Paulo: USP, 2003. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação), Universidade de São Paulo, 2003.

KNEWITZ, Anna Paula. Estudos culturais e cibercultura: um entrelaçamento necessário para pensar a recepção na web. Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “Recepção, Usos e Consumo Midiáticos”, do XVIII Encontro da Compós, na PUC-MG, Belo Horizonte, MG, em junho de 2009. Anais... Disponível em: file:///C:/Users/Laura/Downloads/RECEPCAO_NA_WEB%20(1).pdf. Acesso em 15 fev 2014. KOZINETS, R. On Netnography: Inicial Reflections on Consumer Research Investigations of Cyberculture. (1997). Disponível em Acesso em 18 fev 2014.

BRIGNOL, L. D. Identidade cultural gaúcha nos usos sociais da internet: Um estudo de caso sobre a Página do Gaúcho. São Leopoldo:

83

UNISINOS, 2004. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação), Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2004. GOMIDE, Sílvia Del Valle. Representações das identidades lésbicas na telenovela Senhora do Destino. Brasília: UnB, 2006. Dissertação (Mestrado em Comunicação), Universidade de Brasília, 2006. CASTELLANO, M. Reciclando o “lixo cultural”: Uma análise sobre o consumo trash entre os jovens. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. Dissertação (Mestrado em Comunicação), Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009. BELLO, C. D. Cibercultura e subjetividade: Uma investigação sobre a identidade em plataformas virtuais de hiperespetacularização do eu. São Paulo: PUCSP, 2009. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009. LINKE, S. C. De olho na mídia, com a boca no mundo: Contribuição de um site de metajornalismo para o debate crítico sobre a mídia na internet. Belo Horizonte: UFMG, 2005. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social), Universidade Federal de Minas Gerais, 2005.

84

Consumo de modelos midiáticos de mulher um estudo com mulheres transgêneras

11 11 11

Fernanda Scherer l UFSM

Introdução A mídia perpassa, atualmente, desde os modos de organização até a socialização dos sujeitos. Portanto, os meios de comunicação já não podem ser observados como aparatos técnicos, pois, de acordo com Gomes (2004, p. 13), se integraram ao cotidiano como uma instituição social, uma “parte orgânica da sociedade e cultura contemporâneas”, passando a constituir as práticas sociais. Nesse contexto, sob o viés dos Estudos Culturais, reitera-se a possibilidade de investigar a cultura contemporânea a partir das abordagens que problematizam a inserção dos meios de comunicação nesta cultura, bem como através da reconfiguração cultural que os meios acabam por gerar. Assim, ao adotar a perspectiva que considera o gênero como um elemento cultural, entende-se que as suas questões podem ser estudadas através do consumo das representações das masculinidades e feminilidades veiculadas pelos meios. Ressalta-se, desse modo, a possibilidade de estudos que aproximam as duas temáticas: gênero e comunicação. O enfoque deste trabalho1 no gênero decorre da percepção de que ele tem fundamental importância na constituição do âmbito social, já que é uma das estruturas que regem as atuações dos homens e das mulheres. Porém, apesar de sua importância na construção dos seres sociais, as questões de gênero são ainda silenciadas, por vezes até naturalizadas, uma vez que estão ancoradas de forma profunda nos discursos. Nesse sentido, como exemplo, percebe-se que é comum os sujeitos se questionarem sobre os motivos de uma pessoa transgênera querer se vestir de mulher, mas não se questiona o fato de uma mulher heteronormativa2 querer se vestir da mesma forma. São consideradas transgêneras(os) as pessoas que têm ou tiveram experiência de desconforto, questionamento e ruptura com o sexo e/ou o gênero que lhes foram atribuídos ao nascer e, por isso, alteraram as disposições3 que foram impostas para aquelas de preferência, podendo optar ou não por transformações anatômicas, que redesignam o corpo físico. A transgeneridade foi escolhida porque, enquanto as pessoas não-transgêneras vivem “sob a ilusão de estar apenas seguindo o curso natural das coisas” (SHAPIRO apud KULICK, 2008, p. 27), as mulheres transgêneras se esforçam, de forma mais consciente,

85

Uma prévia do texto foi apresentada no GT Recepção e Gênero, da II Jornada Gaúcha de Pesquisadores da Recepção

1

Este artigo é um recorte do trabalho de conclusão de curso de Comunicação Social, defendido em 2013 na UFSM, com o título Disposições de Gênero e Mídia: um Estudo com Mulheres Transgêneras. Foi orientado pela Profª Drª. Veneza Mayora Ronsini e co-orientado pela Ma. Sandra Depexe

2

Norma que define a heterossexualidade como a única possibilidade legítima de viver o sexo e o gênero. Se justifica pela complementaridade dos corpos sexuados, distribui os corpos no espaço social de acordo com a diferença sexual e patologiza as vivências não-binárias

3

Segundo Pierre Bourdieu (2008), são as formas de agir, pensar, sentir, compreender, classificar e avaliar, que juntas definem as maneiras de cada indivíduo perceber o mundo social

para se adequar às concepções legitimadas do feminino, já que foram socializadas na infância como homens. Dessa forma, entende-se a transgeneridade como um ponto privilegiado de observação dos modos como o gênero é socialmente construído. Posto isso, a pergunta que impulsiona este trabalho é: em que medida as mulheres transgêneras apropriam-se representações de gênero ofertadas pela mídia para conformar as suas disposições? Para tal fim, a partir de estudo de caso, visa-se identificar quem são as mulheres que as transgêneras tomam como modelo para se construírem como mulher, bem como abordar suas concepções sobre a beleza4. Para estudar o consumo das representações midiáticas do feminino, buscou-se embasamento teórico na perspectiva de Canclini (1997) acerca do consumo, bem como no conceito de representações sociais, do qual Moscovici (2000) é o principal representante. Para questionar a naturalização das feminilidades e masculinidades, é utilizada a teoria da performatividade, desenvolvida por Butler (1990).

ram transexuais, sendo que esta é a única que realizou a cirurgia de redesignação sexual. Bianca define-se como travesti. A entrevista aplicada permitiu investigar as dimensões da experiência com os meios, através do consumo de televisão, rádio, revista, jornal, livro, internet, cinema, teatro e demais espetáculos culturais, assim como pesquisar as concepções sobre a beleza. A pluralidade de meios foi escolhida com o intuito de apreender a presença e a importância dos diversos produtos midiáticos no cotidiano dessas mulheres, pressupondo-se que, cada um, a partir das interpretações e desdobramentos pessoais, pode auxiliar na construção das perspectivas acerca do feminino.

Embasamento Teórico Representações Sociais O debate acerca das representações sociais merece atenção, pois estas servem como referência para a atuação social dos indivíduos. Neste trabalho, os discursos são assumidos enquanto representação. Tomando como base os estudos realizados por Serge Moscovici (2000), considera-se que as representações estruturam e dão forma à consciência coletiva. As representações sociais possuem duas funções principais. A primeira é definir a forma como uma mensagem deve ser interpretada, possibilitando que um grupo de pessoas entre em acordo sobre o significado de uma representação. Assim, a sua finalidade fundamental é possibilitar a comunicação, tornando-a não-problemática. Como exemplo, é possível citar que, a partir do contato com certas representações, aprende-se que a terra é redonda, associa-se o comunismo à cor vermelha, os homens à racionalidade e as mulheres à emoção. Dito de outra maneira, as representações constroem convenções, que predeterminam a realidade compartilhada. Somente com as convenções a vida social pode existir, já que gera consenso entre os membros de uma sociedade. A segunda função das representações sociais é a prescrição, ou seja, elas antecipam às pessoas uma estrutura, uma tradição, que atua como determinante das formas de pensar. Desde a primeira infância, as crianças já encontram respostas prontas, seja “nos gestos de sua mãe ou de seu médico, nas histórias em quadrinho cômicas que ela lerá, nos textos escolares, [...] sem falar nos jornais que ela lerá, dos discursos políticos que ela vai ter que ouvir” (MOSCOVICI, 2000, p. 37). Outro aspecto que pode ser ressaltado, diz respeito ao seu papel na transformação do não-familiar em familiar. Compreende-se que

Metodologia

4

O trabalho de conclusão de curso abordou as categorias empíricas amor/família, trabalho e beleza. Contudo, para fins de recorte, somente a beleza será problematizada neste trabalho

5

O trabalho de conclusão de curso abordou as categorias empíricas amor/família, trabalho e beleza. Contudo, para fins de recorte, somente a beleza será problematizada neste trabalho

Metodologicamente, este trabalho caracteriza-se como um estudo de caso, que é considerado eficiente para investigações de natureza qualitativa (YIN, 2010, p. 39). Como instrumentos de coleta de dados, foram utilizadas a entrevista em profundidade e a história de vida. A etapa empírica desenvolveu-se entre os meses de agosto e outubro de 2013, nas cidades de Santa Maria/RS e Porto Alegre/RS. A amostra da pesquisa é composta por quatro mulheres transgêneras adultas, com idade entre 30 e 43 anos. A divisão etária foi feita conforme a classificação do IBGE. A classificação social, utilizada empiricamente, foi realizada segundo a metodologia de Quadros e Antunes (2001)5. Amanda, Aline, Bianca e Bárbara foram as mulheres entrevistadas. Seus nomes verdadeiros foram alterados para nomes fictícios, os quais visam indicar a classe à qual elas pertencem através da primeira letra. Dessa maneira, Amanda e Aline são representantes da classe média alta, enquanto Bianca e Bárbara representam a classe média baixa. Essa escolha visa facilitar a visualização e análise das falas, conforme a posição na estrutura social. Amanda atua na assessoria de um órgão público municipal, Aline trabalha na gestão das gerências de uma rede de lojas. Ambas concluíram o ensino superior e residem na cidade de Porto Alegre/ RS. Bianca, que já foi garota de programa, trabalha atualmente como serviços gerais, enquanto Bárbara como modelo e cabeleireira. Bianca concluiu o ensino fundamental e Bárbara o ensino médio. Vivem na cidade de Santa Maria/RS. Bárbara, Amanda e Aline se conside-

86

as pessoas tomam o que é familiar como padrão de referência, de modo que as avaliações e percepções se desenvolvem em relação ao que é habitual, uma vez que há uma sensação de segurança. A fim de se familiarizar com o novo, ou seja, dar ao que é estranho uma feição familiar, um mecanismo possível é a redução e o enquadramento das novas ideias em categorias e imagens já aceitas e constituídas como parte do repertório e da realidade comum, o que indica um caráter conservador das representações sociais. Merecem destaque os meios de comunicação como difusores das representações sociais, pois se considera que os discursos que são proferidos através dos produtos midiáticos auxiliam a disseminar a realidade compartilhada. Isso ocorre porque se constituem como uma das fontes através das quais os indivíduos recebem as representações do mundo e, a partir de sua inserção no contexto social (GOMES, 2004, p. 225), constroem suas realidades. Na presente pesquisa, a reflexão se volta para a relação das mulheres transgêneras com as representações de gênero que são veiculadas na mídia, ou seja, para as representações do feminino construídas por essas mulheres. Dessa forma, não há o intuito de analisar as representações midiáticas em si mesmas, mas o consumo e as apropriações destas representações, as quais são entendidas também como formas de representar.

somente pelos grandes agentes econômicos. Os movimentos de consumidores e suas demandas demonstram que existem outros fatores que intervêm nos processos de consumo, o qual é categorizado pelo autor como: 1) reprodução da força de trabalho e expansão do capital; 2) cenário de disputas pela apropriação dos bens produzidos; 3) diferenciação social e distinção simbólica entre as classes; 4) sistema de integração e de comunicação entre as classes; 5) manifestação dos desejos individuais e grupais; 6) processo ritual que consiste em dar sentido à ordem social (CANCLINI apud RONSINI, 2007, p. 41).

Para efeito de recorte do objeto, optou-se por concentrar a atenção nos postulados diferenciação social e distinção, integração e comunicação (itens 3 e 4). Desse modo, através do que o autor propõe, assume-se que o que é consumido distingue e integra os indivíduos. Distingue porque os lugares habitados, desde escolas a restaurantes, os livros lidos e os meios através dos quais as pessoas se informam, por exemplo, variam conforme as classes e essa variação de produtos e serviços consumidos não decorre da necessidade, mas da escassez de oferta, que limita o acesso. Consumir torna-se um modo de distinção. Ao mesmo tempo, o consumo integra e comunica, porque indivíduos de uma mesma classe compartilhariam os mesmos sentidos atribuídos aos bens que são por eles consumidos. Compreende-se, desta maneira, que consumir significa participar de um cenário social e, por isso, é uma atividade que não pode ser individual. Ou seja, o consumo pode ser definido como fator de construção de pertencimento, porque integra os indivíduos que pertencem a uma mesma classe. Contudo, nota-se que o consumo pode ser pensado para além das relações de classe social. Isso ocorre porque diferentes práticas de consumo podem demarcar distinções entre grupos que ocupam as mesmas posições na estrutura social. Do mesmo modo, o consumo pode integrar um grupo que é unido por outras semelhanças que não as relativas ao nível social. Assim, sugere-se que ambas, distinção e integração, podem ser utilizadas com a finalidade de se pensar o gênero.

Teoria sociocultural do consumo Dentre as perspectivas teóricas utilizadas nas investigações em Comunicação, estão os Estudos Culturais, os quais rompem com concepções behavioristas e passam a considerar a inserção cultural e social do receptor, uma vez que é a partir desta inserção que os sujeitos interpretam o mundo. Dito de outra forma, os Estudos Culturais compreendem que as mensagens são decodificadas de acordo com estímulos políticos, sociais e culturais diferentes, ultrapassando o foco nos meios de comunicação. Assim, a diversidade de contextos sociais é proporcional às diferentes possibilidades de leitura (GOMES, 2004, p. 232). Canclini é um dos autores filiados aos Estudos Culturais, a partir da corrente Consumo Cultural, que estuda os significados que estão contidos nas práticas de consumo, abandonando a ideia de que este é um ato irracional. A corrente visa construir uma teoria sociocultural do consumo para, a partir dela, “investigar os processos de comunicação e recepção dos bens simbólicos” (JACKS, 1996, p. 44), entendendo que há criatividade e interação na relação dos indivíduos com os meios. Dessa forma, considera-se que os estudos marxistas superestimaram a capacidade das empresas, pois o consumo não é definido

Gênero feminino e a relação com a beleza Com o intuito de problematizar o caráter social do gênero, considera-se importante a caracterização da categoria “mulher”. Por pressupor um determinado agenciamento da vida, uma forma de vigilância específica do corpo e da sexualidade, essa pode ser considerada uma categoria política (BENTO, 2008, p. 24). Pertencer à esfera política significa que, a respeito do gênero, há regras e procedimentos que autorizam os indivíduos a agirem de determinadas maneiras, assim

87

6

Ainda que este trabalho não adote integralmente o pós-estruturalismo, a teoria da performatividade é aqui considerada adequada para se explorar a transgeneridade

como definem o que é inteligível, portanto real. Considerar o feminino uma categoria política é afirmar que, ao serem nela enquadradas, as pessoas serão orientadas para ocupar um lugar na organização social. Ser mulher é, ao mesmo tempo, uma categoria histórica e cultural, pois como explica Butler (2004, p. 25), seus significados estão sempre subordinados a limites geopolíticos e restrições que são fabricadas e cultivadas de formas diversas, nas diferentes culturas, em diferentes épocas. Ser considerada categoria cultural significa que “os conteúdos da divisão dos géneros variam consoante a cultura” (LIPOVETSKY, 2000, p. 193). Ou seja, “feminino” é uma classificação que pode determinar diferentes comportamentos em diferentes locais do mundo. Ser categoria histórica presume que as formas de agir e de perceber o mundo social das mulheres do século XVI, eram diferentes dos comportamentos e pensamentos da mulheres que habitam o século XXI. Além disso, autoras como Yanagisako e Collier (1987, p. 39) contestam a organização cultural de gênero advinda da diferença biológica, baseada nos órgãos responsáveis pela reprodução humana, afirmando que as partes do corpo só ganham sentido a partir de compreensões socialmente construídas. Isto ocorre porque não há fato, caracterizado como biológico ou material, que seja pré-cultural, ou seja, que tenha significado cultural em si mesmo. Dito com outras palavras, as consequências e os significados das relações sexuais, da gravidez, do nascimento e da menstruação, para exemplificar alguns, são construídos socialmente, em todas as sociedades. A partir deste ponto de vista, as autoras rejeitam a existência de um sistema de gênero, cuja base são as diferenças naturais da reprodução sexual: passa-se a assumir o sexo e o gênero como socialmente construídos, um relacionado ao outro. Partindo-se destas perspectiva, é possível questionar a atribuição do feminino exclusivamente aos corpos biologicamente categorizados como fêmeas, assim como do masculino aos corpos cuja fisionomia os qualifica como machos, como se feminino e masculino fossem propriedades naturais. Investigando estas naturalizações, Butler (1990) desenvolve a teoria da performatividade6. De acordo com esta teoria, acerca de todos os seres sociais existem expectativas e ensinamentos que orientam as pessoas que nascem com genitais considerados femininos a incorporar as disposições femininas, assim como socializam as pessoas que nascem com genitais considerados masculinos para se apropriarem das disposições de gênero masculino. Desse modo, afirmar que o gênero é performático significa que, assim como atores interpretando papéis em uma encenação teatral, a forma como homem e mulher se apresentam ao mundo também é de ordem performática.

88

A categoria “homens”, desse modo, não precisa ser entendida como inerente aos corpos compreendidos como masculinos, bem como a categoria “mulheres” não necessariamente pertence aos corpos considerados femininos, uma vez que “homem” e “mulher” são noções elaboradas, internalizadas, imitadas. Os aparatos reguladores dos corpos, incorporados como eleições individuais, são, entretanto, advindos “de condições que nenhum de nós criou de forma voluntária” (BUTLER, 2004, p. 148). Em direção de entendimento que reforce tais constatações, pode-se citar os apontamentos de Lipovetsky, os quais indicam que, desde a infância, as mulheres são descritas pelos seus pais como bonitas, engraçadas, mimosas, enquanto os bebés do sexo masculino são caracterizados como robustos, grandes, “vigorosos”. Um bebé vestido de azul é descrito como forte e activo; o mesmo bebê vestido de cor-de-rosa é considerado gracioso e delicado (2000, p. 187).

Assim, percebe-se que a mulher é ensinada a desenvolver uma relação especial com o belo. Ao se observar o cenário social atual, é fácil perceber que há um padrão de perfeição estética que é cultuado, midiatizado e amplamente desejado. Por isso, ainda que alguns estudiosos defendam que, atualmente, os produtos midiáticos veiculam uma pluralidade de representações do feminino, advinda das possibilidades de escolha conquistadas pelas lutas feministas (BRAGA, 2003, p. 5), bem como da liberdade proporcionada pelo capitalismo (MEMÓRIA, 2012, p. 7), neste trabalho se considera que, predominantemente, o padrão estético contemporaneamente oferecido pode ser traduzido no modelo de pessoa magra, leve e “turbinada” (DEL PRIORE, 2009, p. 79), o qual é constantemente reforçado na fotografia, no filme e na televisão, por exemplo, reafirmando o papel estético da mulher moderna e ditando as formas que ela deve possuir ou almejar. Sob este ponto de vista, sugere-se que, se no século XXI algumas mulheres puderam conquistar a independência de seus pais, maridos e de valores conservadores como os da igreja, agora se encontram em meio ao bombardeio de valores estéticos propagados pelas imagens midiáticas. Para Del Priore (2000, p. 11), a preocupação de outrora em salvar a alma foi substituída pela preocupação em salvar o próprio corpo da rejeição social. O tormento não é mais “o fogo do inferno”, mas a balança e o espelho. Desse modo, mesmo que as representações midiáticas veiculem avanços das mulheres em relação às limitações patriarcais, continuam repetindo modelos de comportamento que insistem em associar o feminino à objetificação, revelando “permanências e retrocessos” (LEITE, 2012, p. 15).

mais e a natureza, e o canal GNT19, já que oferece uma programação voltada à saúde e à beleza. Além disso, confessa que adoraria participar do Big Brother Brasil20, porque gosta de aparecer na mídia. No que tange à internet, em consonância, todas as entrevistadas asseguraram consumi-la diariamente. Além disso, interagir na rede social Facebook21 e realizar buscas no site Google22 foram citadas por todas como as atividades mais realizadas na internet. Amanda afirma que, ao chegar em casa, a primeira coisa que faz é verificar seus e-mails e, logo após, acessa seu Facebook, que para ela é considerada “a mídia do momento”. Além disso, no site Google, faz buscas relacionadas, geralmente, aos assuntos do trabalho, que são também seu tema de estudo acadêmico: as relações de gênero. Bianca conta que, da mesma forma que Amanda, toda vez que chega em casa, a sua primeira ação é ligar o computador e se conectar à internet para acessar seu Facebook e ver se recebeu algum recado de suas amigas. Sobre esta rede social na internet, comenta que vê muitas pessoas vivendo relacionamentos amorosos e que tem o desejo de vivenciar um. Além disso, Bianca utiliza o site Google para obter informações, especialmente sobre medicamentos, receitas de comida e itens de beleza. Quanto à Aline, esta confessa que da internet não desconecta nunca. Durante sua jornada de trabalho, fica constantemente no computador. Fora da empresa, passa a maior parte do tempo respondendo e-mails do trabalho e interagindo no Facebook. Através do Google, busca informações relacionadas ao seu emprego ou a alguma necessidade do momento como, por exemplo, o planejamento das férias ou a busca por alguma música. Também gosta de acessar o site de compras Ebay23, para conferir os vestidos que estão à venda. Não compra, mas gostaria de tê-los. Bárbara, em relação à internet, proferiu comentários semelhantes às demais entrevistadas. Através da rede social Facebook, que é uma de suas formas de lazer preferidas, Bárbara conversa com os amigos, publica as suas fotos e curte as dos seus contatos. A partir do site de buscas Google, acessa sites de moda e maquiagem. Para ela, “internet hoje é tudo”.

Discussão Consumo de mídias No que diz respeito aos meios, dentre as entrevistadas, a televisão e a internet são os mais consumidos. No que tange à televisão, Amanda conta que costuma tê-la ligada constantemente, mesmo que o volume esteja no silencioso, como se esta fosse uma companhia. Ela considera o canal aberto da Rede Globo7 o seu favorito, por ter programas interessantes. Quando não está sintonizada neste, gosta de olhar o canal Viva8, porque reprisa os programas que fizeram sucesso na Rede Globo, como o programa humorístico Sai de Baixo9, citado por Amanda como um dos seus programas preferidos. Ao assistir TV, procura, principalmente, entretenimento e notícias. Por isso, além dos já citados, acompanha os programas A Liga10 e CQC11, no canal Bandeirantes12. Às vezes, quando tem tempo, afirma olhar a telenovela Amor à Vida13. Em 2010, contou brevemente a sua história de vida nos relatos que apareciam no final da telenovela Viver a Vida14. Para isso, foi indicada por uma ONG de Porto Alegre. Declara que aceitou participar com o intuito de dar visibilidade ao movimento trans. Bianca, da mesma forma que Amanda, pontua a Rede Globo como seu canal favorito, porque a qualidade dos programas ofertados pela emissora agrada a entrevistada. Prefere os noticiários e as telenovelas, como o Jornal Nacional15 e Amor à Vida. A respeito desta trama, confessa que, ao assisti-la, se imagina nas cenas românticas. Entretanto, diferente das outras entrevistadas, a televisão não ocupa grande parte de seu cotidiano, já que seus turnos de trabalho são alterados a cada semana e, por isso, não consegue acompanhar os programas. Quanto à entrevistada Aline, assistir televisão é uma das suas formas diárias de descanso. Seu canal favorito é Discovery Home & Health16, pois têm vários programas de decoração e moda, que são seus preferidos. Os reality shows17 são os mais sintonizados por ela, em especial um voltado à produção de vestidos de noiva. Além deles, através da televisão gosta de acompanhar a vida das modelos e ver “coisas bonitas”, como documentários sobre a história de vida da estilista Coco Channel. Aline confessa ser uma modelo frustrada. A entrevistada Bárbara, ao discorrer sobre a televisão, conta que gostava muito da programação da Rede Globo. Porém, hoje considera o canal “político demais”, ou seja, se tornam pauta somente os assuntos que são de interesse da emissora. Por isso, atualmente, ela prefere sintonizar o canal Bandeirantes pois, assim como Amanda, gosta de programas como A Liga, porque o considera bem abrangente. Outro canal citado foi o National Geografic18, por seus programas sobre ani-

Beleza, corpo e cuidado de si A partir das falas das entrevistadas, a impressão que se teve foi a de que não seria possível discorrer sobre o feminino sem abordar a beleza. No contato com elas, constatou-se que as características utilizadas para descrever a mulher que gostariam de ser se relacionam de forma evidente aos atributos corporais. Amanda, por exemplo, conta que gostaria de ser uma mescla entre a beleza da modelo transexual Roberta Close, pois é considerada um ícone que a marcou quando começou

89

7

Rede de televisão brasileira do grupo Globosat, é a segunda maior rede de TV do mundo

8 9

Canal de televisão por assinatura brasileiro Gravado no palco de um teatro paulistano, permite a interação com o público

10 Programa televisivo humorístico que trata os fa-

tos políticos, artísticos e esportivos da respectiva semana de forma satírica e humorística

11 Ainda que este trabalho não adote integralmente o pós-estruturalismo, a teoria da performatividade é aqui considerada adequada para se explorar a transgeneridade

12 Rede de televisão brasileira pertencente ao Grupo Bandeirantes de Comunicação

13 Exibida no horário nobre da Rede Globo (20132014)

14 Exibida no horário nobre da Rede Globo (2010) 15 Telejornal brasileiro, produzido e exibido pela Rede Globo

16 Canal de TV por assinatura dedicado à beleza, ao bem estar e à vida em família

17 Programas televisivo com programas baseados na vida real

18 Canal de TV por assinatura com programas educacionais, culturais e científicos

19 Canal de televisão por assinatura brasileiro, com foco para os assuntos do universo feminino

20 Reality show exibido pela Rede Globo, no qual

participantes ficam confinados em uma casa cenográfica, sendo vigiados por câmeras 24 horas por dia

21 Website de relacionamento social, em que as

pessoas criam perfis para, através deles, compartilhar informações com seus contatos

22 Oferece serviço de busca de conteúdo na web 23 Empresa de comércio eletrônico

a experienciar o universo feminino, e a inteligência da atriz Fernanda Montenegro. Bianca gostaria de ser a cantora Whitney Houston, já que a diva manteve sempre a pele bem cuidada e o cabelo lindo. Aline escolheria a beleza da modelo Linda Evangelista, que sempre mudava o estilo dos cabelos, e a atitude da estilista Coco Channel, uma das primeiras mulheres a ter coragem de usar calças. Bárbara cita a cantora Beyoncé, porque ela tem beleza, cuida da família, dança e canta bem. Um aspecto que se destacou nas respostas foi o fato de citarem, de forma espontânea, como mulheres que gostariam de ser, exclusivamente pessoas ligadas ao universo pop midiático. Quando estimuladas a buscar uma referência de mulher na família, Bianca e Amanda citam a mãe, Aline a irmã e Bárbara não menciona ninguém, o que pode indicar uma aproximação maior com os modelos midiáticos de mulher e afastamento dos modelos familiares. Todas declaram manter certos cuidados com a aparência e a saúde. Amanda afirma que já fez algumas plásticas, de modo a obter feições consideradas mais femininas. Hoje, comenta que é muito atarefada, gostaria de ter tempo para fazer atividades físicas, mas o único cuidado que consegue ter é com a alimentação. Bianca declara que, se pudesse, “viveria” em uma clínica de estética para aperfeiçoar seu corpo, pois quanto mais bonita, mais atrai os olhares masculinos. No entanto, devido aos seus recursos financeiros, essa não é uma possibilidade em sua vida. Seu principal cuidado é com os cabelos, nos quais faz escova progressiva para alisá-los. Aline conta que implantou próteses de silicone nas mamas para levantar sua autoestima e há cerca de vinte anos mantém uma rotina de cuidados com a alimentação, o cabelo e a pele. Ela classifica suas preocupações com a aparência como “normais”, já que apesar de desejar ter um corpo semelhante ao da modelo Gisele Bündchen, jamais faria loucuras para se assemelhar à ela. Bárbara, que trabalha como modelo, confessa: “realmente me cuido bastante, sou bem vaidosa”. Além de já ter realizado intervenções cirúrgicas, controla a alimentação, pratica exercícios físicos, dorme oito horas por dia e faz drenagens corporais semanais em um spa. Percebe-se que a preocupação das entrevistadas com a beleza supera a preocupação com a saúde e, mesmo que existam cuidados com esta, eles se relacionam às melhorias estéticas. Ao serem questionadas acerca de existência de uma obrigação das mulheres em serem bonitas, todas concordam que ela existe. Amanda e Bárbara alegam discordar totalmente da obrigação, pois a primeira a classifica como um sacrifício, enquanto a segunda critica o preconceito que há com mulheres feias, gordas e baixas. A modelo confessa acreditar que muitas de suas conquistas foram mais fáceis para ela, em razão da sua boa aparência. Aline declara que concorda em partes com esta obrigação, considerando-a negativa por tornar um dever a depilação, o salto alto, o cabelo comprido e a maquia-

90

gem. Contudo, ao mesmo tempo, acredita que a cobrança é positiva, porque a mulher “bem apresentada” tem “valor” e “poder”. Para ela, ser mulher é ser “um enfeite maravilhoso”. Bianca é enfática ao afirmar que concorda com a obrigação, uma vez que, além de ser mãe e esposa, a mulher precisa, “no mínimo”, se “valorizar”, cuidar do corpo e da beleza, para que o homem não se envolva com outra pessoa. Quando indagada sobre qual mulher não gostaria de ser, Bianca assegura: mulher feia. Percebe-se que, se por um lado todas as entrevistadas cultivam o ideal de corpo vigente, despendendo recursos, em menor ou maior quantidade, para dele se aproximar, por outro, Amanda e Bárbara se mostram críticas em relação ao desejo de aperfeiçoamento de seus corpos, pois reconhecem que existem cobranças sociais que as motivam. Em contrapartida, Aline e Bianca aparentam estar mais persuadidas pelas imagens dominantes de beleza feminina que reafirmam o papel estético da mulher moderna, como pontua Del Priore (2006, p. 11), considerando os cuidados estéticos quase como uma obrigação. Para Aline, a mulher pode e deve utilizar a beleza como um vetor de valorização de si, uma vez que esta é uma forma de conquistar a notoriedade social e o “poder” que já existem no masculino, em conformidade com o que constata Lipovetsky (2000, p. 122). A fala de Bianca indica que a beleza não possui o mesmo valor no masculino e no feminino, já que somente a mulher deve manter-se bela para o seu par. Caso ela se torne feia, perde seu valor e é substituída, não importando os outros valores que possui. É a beleza que importa. A respeito do que a mídia mostra sobre o que é ser mulher, todas destacaram a exploração dos atributos corporais. Aline e Bárbara usam substantivos no aumentativo para desaprovar o que é mostrado acerca do corpo feminino, como “peitão”, “cabelão”, “bundão”, “coxão”. Bianca e Amanda criticam a nudez feminina oferecida pela mídia, sendo que esta caracteriza-a como machista e preconceituosa. Quanto à mulher representada na publicidade de produtos masculinos, esta é predominantemente percebida como detentora de uma beleza exagerada, voltada ao apelo sexual. Para Amanda e Bárbara, os corpos femininos, geralmente seminus e em poses provocantes, representam um modelo de perfeição corporal que não é encontrado nas mulheres “reais”. Portanto, para além da persuasão, essas imagens são uma fonte de ilusão. Aline acredita que o desnudamento dos corpos, nesses anúncios, auxilia na vulgarização do feminino. As três discordam das representações dos corpos femininos destinados a vender os produtos masculinos, pois acreditam que deveria haver espaço para as mulheres “feias”, ou seja, fora do padrão dominante. Bianca é a exceção. Esta é a única que concorda com as imagens nos anúncios para o público masculino, quando afirma que “o que é bonito é pra ser mostrado”, desde que não transmita uma mensagem maliciosa.

meios, especialmente pela publicidade, a maioria delas é crítica. E criticar o padrão de beleza veiculado pode ser um modo de as entrevistadas se posicionarem como não conformadas por ele. Contudo, ao falarem de si, dos seus cuidados com a aparência, apontam que não querem ser uma mulher qualquer, mas uma mulher “interessante” (como pontua Aline), que esteja em consonância com o padrão dominante. Ou seja, racionalmente elas podem criticar a norma da beleza, mas acabam se aproximando dela. Embora não seja possível afirmar que a mídia tenha uma participação decisiva no delineamento das percepções, percebe-se que os consumos midiáticos de cada uma se refletem nas suas disposições. Apesar de indicarem ter admiração pelas mulheres de sua família, citam de forma espontânea, como mulheres que gostariam de ser, mulheres ligadas ao universo pop midiático. Independente da posição que ocupam na estrutura social, as concepções de beleza feminina parecem ser bastante inspiradas no âmbito da mídia. Desse modo, sugere-se que, em alguma medida, elas se acercam das representações ofertadas pelos meios de comunicação. Por fim, é possível concluir que as questões que envolveram a beleza podem ser pensadas a partir do conceito de familiaridade, advindo das representações sociais de Moscovici (2000). Isso ocorre porque percebe-se que, através da manipulação dos atributos corporais, há um esforço para serem reconhecidas como mulheres, ou seja, para dar ao seu corpo uma feição familiar à categoria “mulher”, enquadrando-o nas imagens do feminino que já são reconhecidas, ou seja, com as quais já existe familiaridade. Aproximando-se do conceito de consumo (CANCLINI, 1997), compreende-se que a adoção do padrão dominante de beleza pode ser uma forma de se integrarem ao grupo de referência “mulheres”, comunicando que são mulheres, bem como se distinguindo da categoria “homens”. Nesse sentido, pontua-se que as pessoas transgêneras se submetem aos aparatos reguladores do gênero, a partir da incorporação das disposições femininas. Mas também o fazem as mulheres que não são transgêneras. Todas estão sujeitas aos rígidos esquemas regulatórios binários.

Acerca da representação da mulher na publicidade de produtos de beleza, um pensamento semelhante é desenvolvido pelas entrevistadas. A maioria discorre sobre atributos corporais exageradamente exaltados. Mas, se para os produtos masculinos é a sexualização dos corpos femininos que se destaca, aqui é a ornamentação, já que as características mais citadas se referem à maquiagem, roupas e penteados. Ao criticar o elevado modelo de perfeição feminina que aparece nos anúncios, Amanda menciona as manipulações do Photoshop, um programa de edição de imagens, enquanto Bárbara aponta que, nesta publicidade, não aparece “uma mulher normal, uma mulher que é o padrão brasileiro”. Em contrapartida, Bianca assegura que por estar sempre bonita nestas publicidades, a mulher “aparece onde ela tem que aparecer”, concordando com as representações. Desse modo, associa naturalmente a beleza ao “belo sexo” (LIPOVETSKY, 2000, p. 109). Dessa forma, acerca do feminino nas publicidades, tanto de produtos masculinos quanto de beleza, para a maioria das entrevistadas aparece um conflito entre as representações oferecidas e as que gostariam de ver. Ou seja, no geral, elas declaram que não se reconhecem e que não se sentem representadas. Sobre a mídia estimular um padrão de beleza, as respostas seguem o mesmo viés que as anteriores. Amanda, Aline e Bárbara concordam que existe uma exaltação ao corpo magro, com silhueta fina, bumbum avantajado e seios fartos, reafirmando o padrão de perfeição física “abençoado pela mídia” que é verificado por Del Priore (2000, p. 79). Amanda ainda ressalta um outro padrão, o do corpo muito magro que incita a anorexia. Por outro lado, Bianca discorda das outras, afirmando que não existe um padrão, mas que as imagens mostradas pela mídia abrangem muitos tipos de mulher, em consonância com Braga (2003, p. 20). Todas as entrevistadas percebem que existe uma cobrança para que as mulheres sejam bonitas. Sem clivagem de classe, metade concorda abertamente com a obrigação, demonstrando consonância com as normas do gênero que pregam a “valorização” da mulher a partir da beleza, enquanto a outra metade discorda da cobrança. Todavia, a partir de suas falas, todas indicam moldar, em maior ou menor grau, seus corpos de acordo com as normas dominantes. Porém, ao discorrerem sobre a forma como a mulher é representada na mídia, a maioria se demonstra crítica sobre o padrão de beleza propagado.

Conclusão Acerca da beleza, percebe-se que as entrevistadas têm opiniões conflitivas. Quando incitadas a refletir sobre a mulher ofertada pelos

91

RONSINI, Veneza Mayora. Mercadores de sentido: consumo de mídia e identidades juvenis. Porto Alegre: Sulina, 2007.

Referências BRAGA, Adriana A. Corpo e Mídia: fragmentos históricos da imprensa feminina no Brasil. In: I Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho. Rio de Janeiro, RJ. 2003.

_____. A perspectiva das mediações de Jesús Martín-Barbero (ou como sujar as mãos na cozinha da pesquisa empírica de recepção. Anais. XIX Compós – Rio de Janeiro, RJ – junho de 2010.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. _____. Deshacer el género. Barcelona: Paidós, 2004.

YANAGISAKO, Sylvia Junko; COLLIER, Jane Fishburne. Toward a unified analysis of gender and kinship. Gender and kinship: Essays toward a unified analysis, p. 14-50, 1987.

CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

YIN, Robert K. Estudos de Caso: planejamento e métodos. São Paulo: Bookman, 2010.

DEL PRIORE, Mary. Corpo a corpo com a mulher: pequena história das transformações do corpo feminino no Brasil. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000. _____. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006. GOMES, Itania Maria Mota. Efeito e recepção: A interpretação do processo receptivo em duas tradições de investigação sobre os media. Rio de Janeiro: E-papers, 2004. JACKS, Nilda. Tendências latino-americanas nos estudos de recepção. Revista Famecos. Porto Alegre. nº 5. Nov/1996. KULICK, Don. Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008. LEITE, Fernanda Capibaribe. Configurando o “Eu-Mulher”: A Construção do Sujeito no Processo de Empoderamento para as Mulheres. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Fortaleza, CE – 3 a 7/9/2012. LIPOVETSKY, Gilles. A Terceira Mulher. Permanência e Revolução do Feminino. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Rio de Janeiro, Vozes, 2003. QUADROS, Waldir J. de; ANTUNES, Davi J. N. Classes sociais e distribuição de renda no Brasil nos anos noventa. Cadernos do CESIT, n. 30, 2001.

92

Diálogo entre produção e recepção em Teen Wolf

Sarah Moralejo da Costa l UFRGS

12 12 12

Introdução A produção cultural comercial, feita por grandes corporações voltadas principalmente para entretenimento, busca ocupar uma variabilidade de mídias como parte da estratégia de divulgação de seus produtos a fim de atingir um maior público. Essa forma de distribuição de conteúdos hoje se adapta a uma outra lógica, que busca não somente a utilização paralela e sobreposta de plataformas midiáticas, mas a conjunção de suas características e potencialidades de forma a configurarem uma rede convergente de conteúdos. A convergência midiática prevê a disposição da produção de maneira a formar núcleos de narrativa dispostas em mais de uma mídia que, ao mesmo tempo em que são independentes, se complementam: o universo transmídia. Essa produção fragmentada se apoia sobre a inteligência coletiva para uma melhor articulação e associação de seu conteúdo com informações complementares a partir das apropriações promovidas pelo consumidor estimulado pelo capital afetivo. Este, muitas vezes, se envolve com a narrativa o suficiente para não somente consumi-la, mas também produzir sobre esse universo, construindo a produção participativa. Apesar da maior eficiência comercial que a produção convergente pode gerar, uma vez que a redundância do universo cada vez mais presente e complexo seduz um público ávido por mais da narrativa apresentada, gerando mais capital afetivo, a produção transmídia ainda é mais cara e exige mais dos produtores do que a produção tradicional. Isso não quer dizer que não há uma grande circulação de conteúdos adjacentes à narrativa e produção participativa também relacionadas à produção que não é transmídia. Esse é o caso da série de TV Teen Wolf, que será aqui analisada. Como uma produção seriada audiovisual televisiva, ela se configura como produto cultural atraente a um espectador que está habituado a consumir o formato transmídia, a buscar fontes de material extra sobre o universo narrativo e a produzir sobre aquilo que mais o apetece. Apesar de não ser uma narrativa transmídia tradicional, a logística de produção da série possui derivações e apresenta algumas características que buscam intenso contato

93

Uma prévia do texto foi apresentada no GT Ficção Televisiva e Cinema, da II Jornada Gaúcha de Pesquisadores da Recepção

A série é o principal produto de uma produção que conta atualmente também com um programa de entrevistas, Wolf Watch, e um programa de curiosidades, After After Show, sendo que este último é veiculado somente no site da MTV e a partir do aplicativo da emissora para dispositivos móveis. Como derivações dentro do universo narrativo da série, ambas produções não constituem novas narrativas, mas sim são núcleos de informações acerca do universo ficcional, caracterizando um processo crossmedia. Sua importância para a relação com o público, porém, o que será analisado mais além, merece destaque. A MTV, Music Television, demonstra uma grande preocupação com a construção musical da série enquanto parte de sua identidade. Durante a transmissão da série, em uma tarja que surge ao rodapé do episódio na própria TV, em algumas cenas é indicada qual é a música que está tocando e as músicas de cada episódio são disponibilizadas para stream em uma página específica5 no site da emissora. Além disso, a partir da quarta temporada, há um DJ residente no Wolf Watch, que, além da trilha do programa, faz comentários sobre a série e sua trilha sonora. No mesmo sistema de informações contidas em um rodapé em tempo real à transmissão da série, pode-se evidenciar também a presença de hashtags6. Estas chamam atenção pelo fato de não sinalizarem somente os termos oficiais da série, como o título e o título do episódio, mas também frases utilizadas pelos personagens em cenas específicas e referências ao contexto de uma determinada situação desenvolvida pontualmente. Esse tipo de recurso provoca uma resposta do público marcada ainda mais pelo imediatismo entre a transmissão da série e seu processo de fruição. Ele não é muito eficiente para promover a série, uma vez que somente aqueles que já possuem algum contato com o conteúdo que está sendo veiculado podem compreender a relevância do termo da tag, mas pode indicar com mais exatidão o âmbito de circulação da série e o momento e local em que parte do conteúdo está sendo consumida e comentada. Apesar de não possuir derivações narrativas, Teen Wolf apresenta uma atenção peculiar com sua audiência, o que já pode ser indicado pelas informações complementares presentes já na transmissão com a narrativa, buscando um diálogo mais direto com o público conectado à web. Além disso, suas duas produções complementares dão continuidade a esse movimento. Wolf Watch é um programa de entrevistas que vai ao ar pela MTV imediatamente após a transmissão de Teen Wolf, com duração de meia hora. Apresentado pela atriz Jill Wagner, o programa começou a ser transmitido juntamente com o início da segunda parte da terceira temporada, em 2014. A presença da atriz tanto é em si mesma

com o público desse tipo de conteúdo e dispõe de um movimento de diálogo e apropriação da produção participativa como parte da construção de seu próprio universo narrativo.

1

2 3

“El desafío con la transmediación es, entonces, que la finalidad no sea siempre mercantil, y que otros tipos de objetivos culturales, estéticos y sociales propios, y por supuesto objetivos políticos y queridos por las audiencias, puedan servirse libremente de las posibilidades comunicativas del ecosistema comunicacional contemporáneo. Investigar opciones y estrategias para fortalecer y ampliar una cultura de participación cada vez más sustantiva con viejas y nuevas pantallas, dentro de redes, es una tarea importante y muy necesaria, que apunta a la construcción de una inteligencia colectiva.” Tradução livre pela autora http://www.mtv.com/shows/teen_wolf/video/ Foram utilizadas hashtags oficiais da série, como #TeenWolf, os títulos dos episódios, nomes de personagens e atores, bem como as sugeridas pela própria série no decorrer dos episódios, que apareciam durante a transmissão. A partir destas, foram encontradas produções de fãs que foram observadas para a análise aqui desenvolvida; se essas produções possuíam hashtags próprias, estas também foram utilizadas para aprofundamento das buscas

4

Último episódio aqui considerado foi exibido no dia 04 de agosto de 2014. Essa restrição foi feita devido à data de finalização do presente artigo

5

http://soundtrack.mtv.com/post/category/shows/teen_wolf/

6

Hashtags são tags ou palavras-chave ou termos associados a uma informação, tópico ou discussão que se deseja indexar de forma explícita em sites como Twitter, Facebook, Google+, Instagram e Tumblr. São compostos pela palavra-chave do assunto antecedida pelo símbolo cerquilha (#), o que permite que virem hiperlinks dentro da rede, indexáveis pelos mecanismos de busca

O desafio com a transmediação é, então, que a finalidade não seja sempre mercantil, e que outros tipos de objetivos culturais, estéticos e sociais próprios, e, claro, objetivos políticos e desejados pelas audiências possam servir livremente das possibilidades comunicativas do ecossistema comunicacional contemporâneo. Investigar opções e estratégias para fortalescer e ampliar uma cultura de participação cada vez mais substantiva com velhas e novas telas, dentro de redes, é uma tarefa importante e muito necessária, que aponta a construção de uma inteligência coletiva (GOMEZ, 2011, p. 395)1.

A comunicação estabelecida a partir dessa iniciativa de apropriação provoca consequências no processo de fruição e consumo da série. Essas características a particularizam e, entre junho de 2013 (início da terceira temporada) e junho de 2014 (início da quarta temporada), foi feita uma observação sobre as estratégias da produção e as respostas que a audiência poderia ter em suas manifestações nas redes sociais. Essa observação constituiu-se de acompanhamento da transmissão e demais produções associadas à série a partir do site oficial da MTV2 e monitoramento das reações dos fãs a partir de hashtags3 e páginas específicas no Twitter e no Tumblr, como as utilizadas por atores ou fãs citados pela própria produção, como será detalhado abaixo. Essas duas redes sociais em específico foram selecionadas por apresentarem um grande fluxo de produção de fãs.

O universo Teen Wolf Teen Wolf é uma série de TV norte-americana produzida e distribuída pela MTV desde 2011, baseada no filme de mesmo nome dirigido por Rod Daniel, lançado em 1985. A série, que atualmente está com 55 episódios4, já foi renovada para a quinta temporada. Apesar de muitas aproximações com o enredo do filme, a série, porém, apresenta algumas modificações que indicam um desenvolvimento mais focado em narrativas cíclicas, com o tema de vingança e o paralelo entre lobisomens e outras criaturas míticas e caçadores de seres sobrenaturais. A partir dessa dicotomia, e contando com um universo maior do que as questões de um adolescente, o que é a temática central do filme, é possível perceber o desdobramento da série para além do universo apontado inicialmente no cinema, inclusive apostando na construção de uma mitologia própria.

94

uma referência à série, uma vez que ela interpreta uma personagem na primeira temporada, como também serve para realocá-la junto ao público, uma vez que sua personagem retorna na quarta temporada. O programa traz cerca de 2 a 4 entrevistados por edição, sendo que em geral há a presença de um convidado de outra série da MTV que não Teen Wolf, propondo apresentar as outras produções da emissora ao público já fidelizado da série. Além das entrevistas em si, há jogos, curiosidades e informações sobre o último episódio, o futuro da série e detalhes da produção. No final de cada programa, a apresentadora chama para participar via videoconferência um fã que se destacou a partir de sua atividade online, seja por ter produzido algo com grande impacto acerca da série, seja por ter tido alguma manifestação singular que chamou a atenção da emissora. Entre estes se destacam Former Vandal, que compôs e gravou um clipe para a música “War”, vinculada inicialmente pelo Youtube7 e, depois de convite, pelo site da emissora junto às composições que integram a trilha sonora oficial da série, ele possui ainda outras composições que posteriormente foram compostas para o show e veiculadas pela emissora; Maeve Kelly, que compôs um álbum de músicas em homenagem à série e foi vinculado também à página8 que contém a trilha oficial da série; e Dave9, que criou um game a partir do universo da série e foi convidado por Jill Wagner em nome da MTV para desenvolver um jogo oficialmente. A partir da quarta temporada da série (segunda temporada de Wolf Watch), o programa também conta com uma recapitulação do episódio anterior da série desenhado e animado por Kendra Wells e narrado por Kai e Amanda, conhecidas a partir de seu canal no Youtube como “Wolf Pack Girls”, três fãs da série contratadas pela MTV. Em dezembro de 2011, a MTV promoveu no Facebook uma campanha entre fãs para que um fosse escolhido para uma pequena participação como ator na série. A vencedora foi Shantal Rhodes, que, além da participação prometida no episódio 9 da segunda temporada, fez também participações nos episódios 2 e 11 da terceira temporada. Ela também passou a ancorar um programa de entrevistas na web ao lado de Tyler Oakley chamado The FANtastic Show, que permaneceu sendo veiculado no site da emissora até 16 de agosto de 2013, com o fim da primeira parte da terceira temporada. Quando a segunda metade da temporada foi ao ar, em janeiro de 2014, teve início a transmissão de Wolf Watch, e, paralelamente via web, o programa menor de entrevistas foi nomeado After After Show, apresentado por Morgan Evans e Lohantony. Todos os apresentadores do programa são, antes de profissionais de televisão ou relacionados à série, personalidades que possuem boa visibilidade em seus canais pessoais no Youtube e no Twitter. Isso

se mostra como uma tentativa de aproximação com o público online, reforçado pelo fato de que tanto as entrevistas quanto outros quadros do programa, como o Pack React, que mostra a reação dos fãs ao último episódio, são pautados por material, perguntas e pedidos postados pelos fãs na rede, que chegam à emissora por meio de hashtags específicas aliadas a propostas lançadas pelos programas. Uma das entrevistas que se destacam na produção mostra o caso de Katie Myers, uma professora norte-americana que utilizou material da série e o pensamento de alcateia que a narrativa constrói entre os lobisomens para ajudar crianças que possuem famílias desestruturadas a se sentirem à vontade no ambiente escolar e melhorar seu rendimento. A professora foi convidada pela produção da série a fazer uma pequena participação como atriz no episódio 19 da terceira temporada, que foi ao ar em 17 de fevereiro de 2014. Esses não são os únicos casos em que a produção oficial da série envolve a produção de fãs como parte da construção do seu universo, mas são casos pontuais no período aqui analisado que apresentam um maior envolvimento da emissora e dos produtores junto à produção participativa.

Conflitos A MTV, no que se refere à configuração do universo de Teen Wolf, busca cada vez mais a produção feita pelos fãs da série, trazendo o que é considerado uma parte do que compõe as reações dos receptores dentro da lógica convergente para integrar sua produção oficial. Essa estratégia de relacionamento, porém, apresentou três grandes conflitos entre os anos de 2013 e 2014, que serão apresentados aqui. O primeiro caso teve início em 6 de junho de 2013. Ian Bohen, ator permanente da série desde a primeira temporada, fez o seguinte comentário no Twitter sobre um caso de estupro de uma jovem de 16 anos por um grupo de homens na Califórnia: “Hey, pais. Ensinem seus meninos como tratar propriamente uma mulher, e a suas meninas como ser uma dama. A merda que eu estou lendo nos jornais me deixa doente.”10 Ele foi duramente criticado pelos usuários da rede, principalmente pelo fato de que a frase que postou pode ser entendida como uma acusação ao comportamento da vítima pelo crime que ela sofreu. Ele fez dois posts em uma página criada no Tumblr especificamente para esse objetivo, o primeiro tentando expor que o conceito de “lady” não era ofensivo, entendendo que a revolta contra sua declaração se devia ao fato de ele estar indicando às mulheres um comportamento que poderia ser entendido como castrador e negativo; e

95

7

https://www.youtube.com/watch?v=AtH1lsj7H3c

8

http://soundtrack.mtv.com/post/fan-of-teen-wolf-creates-an-album-inspired-by-the-show/

9

Episódio 12, 24 de março de 2014. Seu sobrenome não foi divulgado

10 “Hey Parents. Teach your boys how to treat

women properly, and your girls how to be ladies. The shit I’m reading in the news makes me sick.” Tradução livre pela autora

11 “I’m done with twitter and tumblr.” Tradução livre pela autora

12 “I am 1701% done with tumblr.” Tradução livre pela autora, disponível em: https://twitter.com/Lunsfuhd/status/342841401983246337

13 Ship é um termo que se refere a casais formados

entre personagens dentro de uma narrativa, sendo uma contração da palavra inglesa “relationship”. O fã que apoia um casal é chamado de shipper. Canon se refere ao conteúdo veiculado dentro da narrativa, todos os fatos e informações que compõe oficialmente a história, sendo o termo originário dos estudos da liturgia teológica. Fanom é toda informação gerada fora do canon, portanto, não oficial. Um ship não canon é um relacionamento entre dois personagens que não ficam juntos dentro da narrativa oficial, mas que podem ser pareados pelos fãs

14 http://www.mtv.com/news/1872137/teen-wolf-fandom-feat-award/

15 A palavra fandom é formada a partir da con-

tração das palavras inglesas fan e kingdom (ou domain, não há consenso sobre a origem da contração), se referindo ao universo criado pelos fãs. Ela pode indicar o grupo de fãs em geral, de forma genérica, como em: “Eu tenho muitos ships favoritos, eu sou do fandom há muito tempo.”, ou pode indicar um universo ficcional em específico “Eu estou nos fandons de Harry Potter, Sherlock e Teen Wolf. Mas eu gosto mesmo é do fandom Sterek.”

16 http://www.dailydot.com/fandom/teen-wolf-tyler-posey-insults-sterek-weird/

17 “I think Sterek is a bizarre, weird, twisted thing,

and I think that anyone who pays more attention to Sterek than the show, um, isn’t watching the show for the right reasons”. Tradução livre pela autora

18 https://www.fanfiction.net/tv/Teen-Wolf/ - dados colhidos em 02 de Agosto de 2014, às 22h

19 http://archiveofourown.org/tags/Teen%20

Wolf%20(TV)/works - dados colhidos em 02 de Agosto de 2014, às 22h

20 “I’m a strong independent shipper who don’t need no canon”. Tradução livre pela autora

o segundo se desculpando porque ele não compreendia porque seu tweet havia sido tão mal recebido, se não era esse o caso. A página em que estavam ambos os posts foi tirada do ar poucos dias após a discussão, assim como o tweet que iniciou o debate e todos os outros relacionados à discussão feitos pelo autor, inclusive o tweet com que ele encerrou o debate: “Eu estou feito com o twitter e o tumblr.”11 Um tweet que ele retweetou no dia seguinte reforça essa ideia e permanece em sua timeline: “Eu estou 1701% feito com o tumblr.”12 Essa postura demonstra não só um despreparo de como se relacionar com o público online bem como a negação explícita de qualquer diálogo possível entre as duas instâncias. O segundo caso não chegou a se configurar em conflito, mas gerou tensão entre produtores e fãs da série. Fãs de um dos ships não canon13 da série, Stiles e Derek (Sterek), fizeram uma campanha de produção de fanworks a fim de arrecadar verba para doação para abrir um santuário de lobos. A produção feita por fãs, porém, não pode ser legalmente comercializada devido às leis de direitos autorais, o que levou os organizadores do Sterek Campaign Charity Project a procurar a produção da série pedindo que abrissem mãos dos direitos comerciais sobre a produção filiada à campanha e foram atendidos em seu pedido. Os fãs arrecadaram 25 mil dólares.14 O terceiro caso se configura como o conflito mais explícito entre produção e fandom15 da série. No dia 18 de fevereiro de 2014, Tyler Posey, o ator que interpreta o protagonista da série, deu uma entrevista16 em que afirmou: “Eu acho que Sterek é uma coisa bizarra, estranha e distorcida, e eu acho que qualquer um que presta mais atenção a Sterek do que à série, hum, não está assistindo a série pelas razões certas.”17 Stiles e Derek é o ship mais produtivo dentro do fandom de Teen Wolf, apesar de não ser canon e não envolver os protagonistas da série. A título de comparação, nos dois principais sites de postagem de fanfiction atuais, Sterek possui 9.900 fanfictions no fanfiction. net18 e 27.503 no Arquivo for our own19, enquanto Scotson (Scott e Allison), o ship canon com os protagonistas da série, possui, respectivamente, 7.700 e 4.686. Assim, a afirmação do ator causou grande impacto no fandom da série. Entre as muitas manifestações no Twitter, Tumblr e Facebook sobre a entrevista, uma frase se destacou devido à sua constante repetição: “Eu sou um shipper forte e independente que não precisa de nenhum canon”20. Essa frase tem grande impacto pela ruptura explícita do fã com relação à produção. Ao evidenciar que sua capacidade de produzir com base em algo que é independente da produção oficial da série para o seu próprio consumo e deleite, o fã prioriza a sua própria produção à do universo oficial da narrativa.

Outra perspectiva dada por essa frase é o fato de que ela é uma paráfrase de um tema utilizado pelo movimento feminista: “Eu sou uma mulher forte e independente que não precisa de nenhum homem.”21 Apesar de essa adaptação não se referir ao feminismo, o fato da apropriação ocorrer demonstra um conhecimento prévio da frase resgatada de seu contexto. Esse fato, associado ao primeiro conflito relatado aqui com relação à declaração de Bohen, demonstra que o fandom é crítico não somente com relação aos domínios da ficção e as relações comerciais que envolvem o processo de produção e consumo de um produto cultural em específico, mas também com relação a aspectos políticos e sociais, como a situação da mulher, por exemplo.

Considerações finais A MTV, enquanto uma emissora de TV comercial, visa o lucro a partir da venda de seus produtos. Teen Wolf, por não ser uma produção transmídia, possui uma menor presença nas mídias enquanto produto audiovisual e, consequentemente, um menor alcance junto ao público. Porém, ao analisar a logística de distribuição da série, percebe-se claramente que a emissora busca fidelizar seu público a partir da aproximação com seus mais diversos tipos de manifestação. Ao transformar o público e sua produção como parte do produto oficial, a emissora, em primeiro lugar, incrementa sua própria produção agregando conteúdo que não possui grande custo de criação, uma vez que é originário da produção participativa, e que possui grande aceitação junto à audiência da série, tendo sido criado por esta. Em segundo lugar, cria-se um bem estar junto ao consumidor ao reconhecer que ele também é capaz de produzir algo com qualidade boa o suficiente para ser reconhecido no mesmo patamar que a produção oficial. O efeito disso é não só o despertar do público de que sua produção é valorizada, criando a mesma valorização com relação à emissora devido ao seu posicionamento, como também há a profissionalização desses produtores de conteúdo, já que sua produção não só é evidenciada como incorporada, junto com seus criadores, ao núcleo oficial da série. Isso indica um processo de empoderamento desse público a partir de seu reconhecimento enquanto produtor. A emissora, que detém os direitos legais de distribuição e comercialização do conteúdo, passa a partilhá-lo com seu público. Essa partilha poderia ser considerada simbólica e parcial se não fosse a iniciativa do próprio público de torná-la efetiva ao pressionar o âmbito da produção para abrir mão de seus direitos comerciais sobre a obra em prol de sua vontade, como ocorreu no episódio da Sterek Campaign. Se a emisso-

96

ra se vê no direito de comercializar a produção dos fãs, os fãs se veem no direito de comercializar a produção da emissora, como exemplificado com esse caso. Esse tipo de apropriação que o público faz do conteúdo oficial não é inédito, todo o processo de deslocamento e redistribuição de produção entre mídias, como a disponibilização de downloads ilegais da série, ou a captação do conteúdo para manipulação visual ou audiovisual na produção participativa, são exemplos de como a audiência ultrapassa barreiras comerciais para satisfazer suas próprias demandas. Porém, a legalidade viabilizada a partir do recuo da produção oficial, cedendo de seus direitos para estabelecer uma cortesia junto aos seus fãs, aponta para o aumento da força que a audiência é capaz de exercer sobre o produtor. Isso não significa, porém, que a produção oficial estimula completamente a produção dos fãs. A declaração de Posey pode indicar, em um primeiro momento, um despreparo do elenco em lidar com a relação de afetividade do público com a narrativa – e, consequentemente, o capital afetivo valorizado pela emissora –, como pode ser compreendida a manifestação de Bohen também. Mas, por se configurar como um ataque direto justamente ao grupo de fãs que inclui o grupo organizado que criou o desconforto anterior à emissora, os fãs Sterek, pode ser interpretado também como uma tentativa de reduzir o poder de influência e articulação desse grupo de fãs.

Ao tentar estabelecer um diálogo mais efetivo com seu público, almejando um aumento da responsividade dos fãs com relação à produção participativa, em qualidade e quantidade, a fim de alimentar sua própria produção, Teen Wolf acaba por estimular também o sentimento de pertencimento da obra a esse público e a sua capacidade de participação para além de um núcleo periférico à sua configuração. A produção oficial, porém, demonstra um despreparo logístico para lidar com uma audiência cujo conhecimento crítico vai além do envolvimento afetivo com a obra, dotada de ferramentas tecnológicas e organizacionais de produção, e que possui autoconsciência de sua capacidade de influir sobre o sistema da produção oficial do universo ficcional da série.

Desde a dimensão de interatividade, então, há que entender na investigação que a convergência não é um só sentido e dimensão; isto é, a convergência não é só tecnológica, é também uma convergência cultural, cognitiva, linguística, situacional e estética, que se dá na confluência dos dispositivos materiais técnico-digitais, tanto desde a emissão inicial, como desde a recepção, e logo desde as diferentes emissões-recepções entre os diferentes usuários e também desde os dispositivos perceptivos e mentais dos sujeitos envolvidos (GOMEZ, 2011, p. 393).22

21 “I’m a strong independent woman who don’t need no man”. Tradução livre pela autora

22

A articulação a que se propõe o fandom de Teen Wolf demonstra uma interpretação sociodiscursiva de sua relação com o produtor. Não só a narrativa é apropriada concretamente para sua própria produção, como também comercialmente e simbolicamente para a produção de significados que ultrapassam os limites delimitados entre produtor e receptor: essa produção simbólica tanto acaba sendo apropriada pelo produtor e incorporada à narrativa em um ciclo de ressignificação que reforça padrões identitários com o público, quanto reflete na relação de consumo entre produção e audiência questões que extrapolam a demanda da narrativa, abrangendo problemáticas ideológicas e sociais.

97

“Desde la dimensión de interactividad, entonces, hay que entender en la investigación que se realice que la convergencia no es en un solo sentido ni dimensión; esto es, la convergencia no es solo tecnológica, es también una convergencia cultural, cognoscitiva, lingüística, situacional y estética, que se da en la confluencia de los dispositivos materiales o tecnológicos-digitales, tanto desde la emisión inicial, como desde la recepción, y luego desde las diferentes emisiones-recepciones entre los diferentes usuarios y también desde los dispositivos perceptuales y mentales de los sujetos involucrados.” Tradução livre pela autora

Referências CANCLINI, N. G. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002. _____. Culturas híbridas. México: Ed. Grijalbo, 1990. ESCOSTEGUY, A. C., JACKS, N. Comunicação e Recepção: Uma visão latina americana. São Paulo: Hacker Editores, 2005. GÓMEZ, G. O. La condición comunicacional contemporánea. Desafíos latinoamericanos de la investigación de las interacciones en la sociedad en red. In: JACKS, N. (coord./ed.). Análisis de recepción en América Latina: un recuento histórico con perspectiva al futuro. Quito. CIESPAL, 2011. JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009. LOPES, M. I. V. de. Uma agenda metodológica presente para a pesquisa de Recepção na América Latina. In: JACKS, N. (coord./ed.). Análisis de recepción en América Latina: un recuento histórico con perspectiva al futuro. Quito. CIESPAL, 2011. MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2001. _____. Reubicando el campo de las audiencias en el descampado de la mutación cultural. Desafíos latinoamericanos de la investigación de las interacciones en la sociedad en red. In: JACKS, N. (coord./ed.). Análisis de recepción en América Latina: un recuento histórico con perspectiva al futuro. Quito. CIESPAL, 2011. SCHRODER, K. Audience are inherently cross-media: Audience Studies and the crossmedia Challenger. TOALDO, M.; JACKS, N. Consumo midiático: uma especificidade do consumo cultural, uma antessala para os estudos de recepção. In: XXII Encontro Anual da Compos, 2013. Salvador. Anais. Salvador, 2013.

98

Martín-Barbero, Certeau e os Estudos Culturais notas sobre o

Cotidiano

13 13 13

Márcia de Castro Borges l UFSM

“(...) a cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não é uma “arqueologia”. A cultura é uma produção. Tem suas matérias-primas, seus recursos, seu “trabalho produtivo”. (...) Mas o que esse “desvio através de seus passados” faz é nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar.” (HALL, 2003, p. 44)

Com tal afirmação, Stuart Hall indica que o ensinamento do século XXI é através dos permanentes deslocamentos, configuração da escolha dos nossos interlocutores culturais, com base na experiência da história e da memória. O propósito deste texto é analisar os laços que unem as ideias dos Estudos Culturais com o pensamento de Martín-Barbero e Certeau no que tange à noção de cotidiano – uma questão referente à investigação sobre recepção por brasileiros imigrantes em festivais de cinema brasileiro em Nova York, como lugar de construção de identidade(s) através da sociabilidade e da memória. Ao buscar a compreensão do singular cenário cultural constituído nos festivais de cinema brasileiro, na contemporaneidade recente da cidade de Nova York, pretende-se identificar em tal processo que categorias relativas à cultura estão presentes na formação de identidade desses sujeitos receptores, pressupondo-se uma circularidade cultural1. A leitura e análise dos autores dos Estudos Culturais, de Martín-Barbero e Certeau constitui passo fundamental do estudo de doutoramento em desenvolvimento, para estruturação do corpus teórico. No entanto, em curto prazo, tais reflexões contribuirão na preparação da qualificação e dos instrumentos que serão utilizados na primeira abordagem investigativa ao campo de estudo. Em termos gerais, nosso objetivo é perceber como ocorre o diálogo entre esses autores no que refere à noção de cotidiano; já, em termos mais específicos, estabelecer conexões entre a noção de cotidiano e a recepção de festivais de cinema brasileiro, em suas especificidades sócio-histórico-culturais.

99

Uma prévia do texto foi apresentada no GT Ficção Televisiva e Cinema, da II Jornada Gaúcha de Pesquisadores da Recepção

1

Inspirado na obra de Bakhtin, Ginzburg utiliza o termo “circularidade”, para falar da comunicabilidade entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas na Europa pré-industrial. Essa comunicação era dialógica, com “influência recíproca” (GINZBURG, 1987, p. 13)

Castells (1999), em “A sociedade em rede”, refere-se à análise das identidades contemporâneas construídas através de um jogo de forças delineado por relações de poder, que para ser compreendido demanda distinguir entre identidade e papel social: No que diz respeito a atores sociais, entendo por identidade o processo de construção de significados com base em um atributo cultural, ou ainda em um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual (ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado. Papéis [...] são definidos por normas estruturadas pelas instituições e organizações da sociedade. A importância relativa desses papéis no ato de influenciar o comportamento das pessoas depende de negociações e acordos entre indivíduos e essas instituições e organizações. Identidades, por sua vez, constituem fontes de significado para os próprios atores, por eles originadas, e construídas por meio de um processo de individuação. [...] Em termos mais genéricos, pode-se dizer que identidades organizam significados, enquanto papéis organizam funções [...] (CASTELLS, 1999, p. 22-23).

Para o autor as identidades organizam significados e por sua vez moldam e atribuem sentido à nossa memória através da negociação dos papéis sociais, por isso o autor sustenta que identidade é a autorrepresentação que cada um constrói para si. Classificando três tipos de construções coletivas de identidades presentes na vida moderna: Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais [...] Identidade de resistência: criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos [...] Identidade de projeto: quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social (CASTELLS, 2001, p. 24).

Stuart Hall (2002) por sua vez elabora um panorama de diferentes perspectivas para a compreensão do sujeito em diferentes contextos, estabelecendo três concepções de identidade: a Iluminista, a sociológica e a pós-moderna. O sujeito do Iluminismo baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo

0 1 0

“centro” consistia num núcleo interior [...] A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com “outras pessoas importantes para ele” [...] o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam [...] É definida historicamente [...] A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia (HALL, 2002, p. 10-13).

São os estudos culturais nos anos 60 os pioneiros a teorizar sobre o receptor, quando da criação do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea de Birmingham por Richard Hoggart, Raymond Williams e Edward Thompson. Ana Carolina Escosteguy (1998, 2000, 2001) reporta-nos que, “se originalmente os Estudos Culturais foram uma invenção britânica, hoje, na sua forma contemporânea, transformaram-se num fenômeno internacional. Os estudos culturais não se confinaram na Inglaterra nem nos Estados Unidos, espraiando-se para a Austrália, Canadá, África, América Latina, entre outros territórios” (ESCOSTEGUY, 1998, p. 87). Os estudos culturais não se atrelaram a um campo disciplinar único, dialogando com a Antropologia, Sociologia, Filosofia, História, Teoria Literária, Comunicação, entre outros, refletindo a insatisfação com os limites de algumas disciplinas, referendando a interdisciplinaridade. Inicialmente constituindo uma produção de base marxista, nos anos 80 incorporaram o pós-estruturalismo e nos anos 90 atuaram e refletiram questões apontadas pelo pós-modernismo, dessa forma privilegiam as pequenas narrativas, a discussão das identidades multifacetadas, o local e o hibridismo. Seus autores afirmam que os processos culturais estão intimamente vinculados com as relações sociais, lócus de diferenças e lutas sociais, combatendo uma visão elitista da cultura. Escosteguy (1998, p. 88) adverte que os Estudos Culturais devem ser observados tanto do ponto de vista político, na tentativa de constituição de um projeto político, quanto do ponto de vista teórico, isto é, com a intenção de construir um novo campo de estudos. Se da perspectiva política é sinônimo de “correção política”, podendo ser identificado como a política cultural dos vários movimentos sociais da época de seu surgimento, da perspectiva teórica resulta da insatisfação com os limites de algumas disciplinas, propondo, então, a interdisciplinaridade. A partir dos anos 80, com a expansão da globalização e o desenvolvimento das Novas Tecnologias da Comunicação, era quase antagônico guiar-se pela lógica de Adorno e Horkheimer (1985), que

vislumbrava um padrão passivo na recepção. Nesse contexto, as ideias acerca de Walter Benjamin (1969) referentes ao processo de recepção pelas massas, para as quais existiam variedades simbólicas e culturais, com papel significativo na construção do sentido. Considerando Benjamin, “(...) o pioneiro a vislumbrar a mediação fundamental que permite pensar historicamente a relação da transformação nas condições de produção com as mudanças no espaço da cultura, isto é, as transformações do sensorium dos modos de percepção, da experiência social.” (MARTÍN-BARBERO, 1987, p. 72) Os Estudos Culturais buscaram centrar a metodologia de approach de outros ramos disciplinares, por exemplo, em Cultura e Sociedade de Raymond Williams, nota-se a contribuição significativa ao tratar a cultura como uma categoria fundamental na inter-relação entre literatura e pesquisa social. Sob essas bases o debate se inclina fundamentalmente para o campo da antropológica da cultura, “agora como o “(...) processo inteiro” por meio do qual os significados e definições são socialmente construídos e historicamente transformados, com a literatura e a arte como sendo apenas um tipo de comunicação social – especialmente privilegiado.” (HALL e TURNER apud ESCOSTEGUY, 2000, p. 140). O surgimento de propostas teóricas nas quais a análise da cultura não pressupõe subordinação entre culturas, ou seja, não há a ideia da dominação de uma cultura por outra, direcionam pra um caminho de trocas entre diferentes grupos sociais e culturais. Identificamos nesta perspectiva os autores dos Estudos Culturais, Certeau e Martín-Barbero.

e do cotidiano vivido. Assim há uma troca de referências subjetivas ao conversarem sobre os filmes que gera um repertório compartilhado acerca do cinema brasileiro; e (por que não?) de si e do Brasil. Considerando que as referências de cada um são constituídas por sua experiência de vida cotidiana antes e depois de migrar, ou seja, por suas trajetórias pessoais, inferimos que a sociabilidade gerada pelo acontecimento do festival se traduz em representações negociadas a partir das imagens movimento apresentadas nos filmes e as memórias individuais e coletivas. O público do festival é diverso em classe social, gênero, faixa etária, origem regional brasileira, religião, escolaridade e áreas profissionais, por exemplo. Tais distinções operam especificidades cotidianas expressas em hábitos, formas de se relacionar e de se comportar (falar, comer, vestir, etc.), bem como modos de consumir e produzir desses imigrantes/receptores dos festivais de cinema brasileiro. Assim, verificamos nesta audiência um consumidor atuante que produz sentido na sua recepção aos filmes, em uma perspectiva apontada por Canclini, Certeau e Martín-Barbero. Martín-Barbero, no que tange aos estudos de recepção, inova ao destacar a criatividade dos sujeitos na relação com os meios: a complexidade da vida cotidiana como espaço de produção de sentido. Segundo o autor, as investigações no âmbito da recepção devem primar por um aprofundamento qualitativo de perspectiva teórico-metodológica distinta às pesquisas de audiência, dos usos e gratificações, dos efeitos, por exemplo. Distinguindo seu pensamento das abordagens funcionalistas, pois os estudos da recepção buscam realizar uma análise integral do consumo, compreendido enquanto conjunto dos processos sociais de apropriação dos produtos. Assim propõe uma revisão da concepção de consumo:

O que está em jogo hoje é uma profunda mudança no sentido da diversidade. [...] O processo de globalização que agora vivemos, no entanto, é ao mesmo tempo um movimento de potencialização da diferença e de exposição constante de cada cultura às outras, de minha identidade àquela do outro. Isso implica um permanente exercício de reconhecimento daquilo que constitui a diferença dos outros como enriquecimento potencial da nossa cultura, e uma exigência de respeito àquilo que, no outro, em sua diferença, há de intransferível, não transigível e inclusive incomunicável (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 60-61).

[...] nem toda forma de consumo é interiorização dos valores das outras classes. O consumo pode falar e fala nos setores populares de suas justas aspirações a uma vida mais digna [...]. Daí a grande necessidade de uma concepção não-reprodutivista nem culturalista do consumo, capaz de oferecer um marco para a investigação da comunicação/cultura a partir do popular, isto é, que nos permita uma compreensão dos diferentes modos de apropriação cultural, diferentes usos sociais da comunicação (MARTÍN-BARBERO, 1987, p. 290).

A partir de uma ‘quase’ observação participante, não organizada e não acadêmica, em algumas edições dos festivais desde 2004, percebi uma intensa sociabilidade entre os grupos imigrantes no período do festival (agendamento do cotidiano profissional e familiar pra ver os filmes, encontros marcados pra antes e depois do(s) filme(s), busca de estratégias para passes de convidados, postagens de texto e imagens em seus perfis nas redes sociais, presença nas festas de fim do dia organizadas pela produção evento), a qual verte uma memória compartilhada pelos grupos em sociabilidade, de suas histórias

Martín-Barbero, ao tratar da telenovela, desenvolve uma perspectiva da recepção enquanto espaço de negociação de sentidos, visando compreender os usos que os indivíduos fazem desse produto midiático paradoxal ao cotidiano de cada um, na medida em que é próximo e irreal. Sob o prisma do autor as mediações constituem o

101

lócus que possibilita “(...) compreender a interação entre o espaço da produção e da recepção: o que se produz na televisão não responde unicamente a requerimentos do sistema industrial e à estratagemas comerciais, mas também a exigências que vem da trama cultural e dos modos de ver” (MARTÍN-BARBERO, 1992, p. 20). A cultura da memória, permanente valorização do cotidiano vivido, também é encontrada na mídia e contribui para direcionar os processos de identificação do sujeito em relação ao outro. Nesse sentido, a mostra de cinema brasileiro do Museum of Modern Art (MoMA) constitui um bom exemplo, pois em sua estrutura programática reserva espaço significativo pra uma exibição da obra de um cineasta brasileiro – escolhido pra ser homenageado em cada edição. Tal retrospectiva autoral constitui uma forma de memória coletiva acerca do cinema brasileiro, e em contato com as memórias individuais oriundas do cotidiano de cada sujeito conformam uma memória negociada, partilhada acerca de diversos fatos, temas e questões. Considerando que “(...) é que a identidade cultural ganha importância como categoria de análise nas investigações sobre a recepção, pois se trata de verificar como os conteúdos massificados são consumidos no cotidiano, que é atravessado pelas práticas sociais, cuja origem encontra-se na memória coletiva.” (JACKS, 1995, p. 160). Desta forma, as concepções dos historiadores Agnes Heller2 e Henri Lefèvre3 contribuíram no intento de perceber e apresentar o cotidiano enquanto espaço das atividades rotineiras, propício à banalidade e alienação, bem como um lugar contraditório, dual, um espaço flexível à constituição de formas de resistência político-sócio-culturais. Sendo assim, podemos inferir que os filmes assistidos geram práticas de reprodução e/ou de resistência diretamente relacionadas com vida cotidiana dos sujeitos.

2

“A vida cotidiana não está fora da história, mas no centro do acontecer histórico: é a verdadeira essência da substância social” (HELLER, 1992, p. 20).

3

“Tratando-se de cotidiano, trata-se portanto de caracterizar a sociedade em que vivemos, que gera cotidianeidade (modernidade). Trata-se de defini-la, de definir suas transformações e suas perspectivas, retendo entre os fatos aparentemente insignificantes, alguma coisa de essencial (...) o conceito torna-se o fio condutor para conhecer a sociedade, situando cotidiano no global” (LEFÈVRE, 1991, p. 35).

Em seu artigo De los medios a las practicas, Martín-Barbero (1990, p. 11-13) inspirado na teoria geral das práticas sociais de Bourdieu, sugere que os três lugares de mediação propostos em De los medios a las mediaciones sejam transformados em três dimensões – sociabilidade, ritualidade, tecnicidade – sem relacionar, entretanto, os termos cotidianidade familiar, temporalidade e competência cultural com as novas dimensões propostas (RONSINI, 2011, p. 78).

Michel de Certeau, outro historiador, vislumbrou para além do olhar dicotômico de cultura, quando ressaltou que no processo de recepção as mensagens são traduzidas, resultando em múltiplas versões com significados subjetivos oriundos das práticas cotidianas. O que ele denominou cultura plural. Expressa em um cotidiano que “(...) está semeado de maravilhas, espuma tão fascinante, nos ritmos prolongados

102

da língua, quanto à dos escritores ou dos artistas. Sem nome próprio, todas as espécies de linguagens dão origem a essas festas efêmeras que surgem, desaparecem e retornam (CERTEAU, 2000, p. 245). Certeau afirma, ainda, que são das práticas cotidianas que emergem as possibilidades de resistências: na interação com o mundo ao redor, no uso do tempo, dos saberes, das habilidades. Para o autor a cultura comum e cotidiana constituem apropriações (ou reapropriações), em que “(...) o consumo ou recepção como ‘uma maneira de praticar’, apontando para a necessidade de extrair das práticas cotidianas, ‘do seu ruído’, as ‘maneiras de fazer’, que majoritárias na vida social, não aparecem muitas vezes, senão a título de ‘resistências’ ou de inércias em relação ao desenvolvimento da produção sócio-cultural.” (CERTEAU, 1994, p. 16-17). Considerando a relação entre táticas e estratégias no campo social, proposta por Certeau (1994, p. 93-95): as táticas seriam procedimentos que usam as referências de um lugar próprio e transformam o lugar próprio em espaços dinâmicos, as resistências do sujeito às estratégias impostas; por sua vez, os procedimentos que controlam o lugar são definidos como estratégias (oriundas do desejo, do calculado, planificado). Discurso legitimizado que gere a relação desse sujeito de poder com os outros sujeitos em suas relações sociais. Assim, as táticas são cotidianas e diversas, verificam-se em toda e qualquer atividade humana objetivando neutralizar as estratégias do poder. A tática atua nas brechas da estrutura hegemônica, de forma ágil e não previsível. As táticas são dinâmicas e perecíveis. Frisando que “Essa é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante.” (CERTEAU, 1994, p. 39). Se as estratégias são organizadas pelo poder, as táticas, por sua vez, revelam a ausência de poder. Desta forma, na perspectiva de Certeau, o cotidiano dos receptores propicia diversos usos da mídia, constituindo versões do que foi exibido, que se elaboram em relação aos seus modos de vida. Assim, “(...) a análise das imagens difundidas pela televisão (suas representações) e os tempos dedicados a assistir televisão (um comportamento) devem ser completados pelo estudo daquilo que esse consumidor cultural fabrica durante essas horas e com essas imagens.” (CERTEAU, 1994, p. 93). Na trilha desta ideia, os consumidores dos festivais de cinema brasileiro em Nova York também são passíveis de construir suas próprias versões acerca do(s) filme(s) exibido(s) dependendo da produção de significados que estabelecerem com o tema/questão/forma da narrativa fílmica. Martín-Barbero (2001) segue o pensamento de Certeau, no que refere à produção de sentido pelo consumidor.

A tentação do apocalipse e a volta ao catecismo não deixam de estar presentes, mas a tendência mais secreta parece ser outra: avançar tateando, sem mapa ou tendo apenas um mapa noturno. Um mapa que sirva para questionar as mesmas coisas – dominação, produção e trabalho – mas a partir do outro lado: as brechas, o consumo e o prazer. Um mapa que não sirva para a fuga, e sim para o reconhecimento da situação a partir das mediações e dos sujeitos (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 300).

Ao explicar os usos desses consumidores culturais, Certeau (1994) distingue as categorias performance e competência. A performance extrapola a competência (ato de ver, ler, compreender), pois forma uma teia de lugares e relações sobre essas atitudes, através de apropriações e reapropriações presentes nas práticas cotidianas. Ao falar das praticas de leitura, Certeau clarifica que tais apropriações permitem lugares de incerteza e invenção entre o produto que é oferecido pela mídia (no nosso caso os filmes) e o produto re-significado no universo simbólico do consumidor cultural. Longe de serem escritores, fundadores de um lugar próprio, herdeiros dos servos de antigamente, mas agora trabalhando no solo da linguagem, cavadores de poços e construtores de casas, os leitores são viajantes; circulam nas terras alheias, nômades caçando por conta própria através dos campos que não escreveram, arrebatando os bens do Egito para usufruí-los. A escrita acumula, estoca, resiste ao tempo pelo estabelecimento de um lugar, e multiplica a sua produção pelo expansionismo da reprodução. A leitura não tem garantias contra o desgaste do tempo (a gente se esquece e esquece); ela não conserva ou conserva mal a sua posse, e cada um dos lugares por onde ela passa é a repetição do paraíso perdido (CERTEAU, 1994, p. 269-270).

Então, na recepção dos festivais de cinema, os sujeitos tenderiam a não se restringirem ao consumo passivo dos produtos da indústria cultural, estrategicamente ofertados; podendo estabelecer formas inventivas e criativas de interação cultural. Na medida em que “(...) a recepção não é apenas uma etapa do processo de comunicação. É um lugar novo, de onde devemos repensar os estudos e a pesquisa de comunicação” (MARTÍN-BARBERO,1995, p. 39). Néstor Garcia Canclini (1997) também desenvolve a ideia do consumo, enquanto um lugar de produção de conhecimento, com consumidores culturais autônomos. Nesse sentido, o autor congrega com a noção da comunicação como ato criativo simbólico-cultural, no qual os consumidores são potencialmente ativos e demandados em suas competências criativas. Assim, o cotidiano constitui um espaço privilegiado de produção de significados, e através do consumo efetiva suas potencialidades criadoras no âmbito da cultura. Evidenciando que “Foi esse tipo de trabalho que colocou de forma clara que

103

diferentes culturas possuem lógicas e estratégias diferentes para ter acesso ao real e validar seus conhecimentos, mais intelectuais em alguns casos, mais ligadas à sensibilidade” e à “imaginação” em outros.” (CANCLINI, 1997a, p. 28). Nesse caminho, o tratamento das questões relativas à comunicação e aos meios a partir das mediações culturais é uma demanda urgente para Martín-Barbero. Levando em conta as trajetórias dos movimentos sociais na América Latina, percebe-se que a presença de visibilidade nas mediações, especialmente em lugares como: a cotidianidade familiar, a temporalidade social e a competência cultural. Assim, “As conseqüências desse novo entendimento foram as aproximações das noções de cultura e comunicação, resultando nas mediações como objeto de estudo; a escolha do cotidiano como espaço-tempo de análise; o reconhecimento dos receptores populares como sujeitos capazes de produção de sentido.” (JACKS, 1995, p. 152). O presente papel da noção de cotidiano, em relação aos processos midiáticos de recepção, gera caminhos diferentes, porém não antagônicos. Como nos adverte RONSINI (2011, p. 82) Vale observar que, apesar da divisão existente entre a perspectiva do consumo, filiada à Néstor García Canclini, e a dos usos sociais, filiada à Martín-Barbero, os termos recepção e consumo são utilizados freqüentemente como sinônimos para indicar o conjunto dos processos sociais de apropriação dos produtos da mídia. Mesmo que sejam perspectivas distintas, a designação “recepção” na América Latina, segundo Escosteguy e Jacks (2005, p. 106-107), pode ser aplicada como um termo amplo para englobar vertentes de estudos que tratam da relação dos meios de comunicação com as audiências.

Considerações Finais Partindo das ideias de Castells (2001) e Hall (2002), é possível identificar as questões e a relevância do conceito de identidade, ao refletir sobre aquelas que envolvem o cotidiano e as noções de interculturalidade, já que os processos identitários, bem como os interculturais, são permeados pelas relações de poder. O lugar privilegiado para abordar as mediações tende a ser o cotidiano. Espaço-tempo este que nem está desvinculado da estrutura realçada pelo marxismo nem fica imune aos apelos da indústria cultural, mas ultrapassa esses limites para dar sentido à vida e condições para a subsistência do indivíduo. Aí, os estudos de recepção, que visam a compreensão da complexidade real em que está imerso o sujeito, encontram os elementos simbólicos que realizam o contato do indivíduo com seu campo social (JACKS, 1995, p. 153).

Nesta perspectiva, o importante na pesquisa será detectar o uso que os consumidores dos festivais de cinema fazem dos filmes assistidos e do evento em que participam. Certeau (1994) propõe inclusive “estudo daquilo que o consumidor cultural ‘fabrica’ durante essas horas de consumo e com essas imagens”; situando o consumo no centro da vida cotidiana, abordando a ‘fabricação’ escondida e dissimulada pela própria lógica do sistema produtivo que “não deixa aos consumidores um lugar onde possam marcar o que fazem com os produtos”. Assim, verifica-se uma contraposição entre produção racionalizada e produção qualificada de consumo. Tendo em vista que a produção planejada e racional do cinema atua, em paralelo a um consumo pertencente a uma produção, silenciosa, livre, que se estabelece nas brechas e a partir dos modos de vida dos sujeitos, de significações dadas a partir de outros referenciais culturais, dos usos particulares. Verificamos então, na perspectiva de Certeau (1994) e Martín-Barbero (2003), consumidores culturais não passivos que produzem seus próprios significados com base na oferta dos meios de comunicação de massa. Enxergamos um sujeito produtor de significado a partir dos significados da mídia. [...] Assim, a comunicação se tornou para nós questão de mediações mais que de meios, questão de cultura e, portanto, não só de reconhecimento. Um reconhecimento que foi, de início, operação de deslocamento metodológico para rever o processo inteiro da comunicação a partir de seu outro lado, o da recepção, o das resistências que aí têm seu lugar, o da apropriação a partir de seus usos [...] (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 28).

Referências CANCLINI, Néstor G. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 3.ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. _____. El mal estar en los estudios culturales. Fractal, México, ano 2, v.2, nº6, p.45, jul/set/1997a. Disponível em: http://www.fractal.com. mx/F6cancli.html CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia sociedade e cultura. Vol. II: O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra. 2001. _____. A era da informação: economia sociedade e cultura. Vol. I A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CERTEAU, Michel de. A cultura no Plural. Campinas: Papirus, 2000. _____. A invenção do cotidiano. Vol. 1: Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. ESCOSTEGUY, Ana C. Estudos Culturais: uma introdução. In: SILVA, T. (Org.) O que é afinal Estudos Culturais. Belo Horizonte, Autêntica, 2000. _____. Uma introdução aos estudos culturais. Revista Famecos, v. 1, n. 9, p. 87-97, 1998. HALL, Stuart. Pensando a Diáspora: reflexões sobre a terra no exterior. In: SOVIK, Liv (Org.). Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: UNESCO Brasil, 2003. _____. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo, Ática, 1992. JACKS, Nilda. Pesquisa de recepção e cultura regional. In: SOUZA, Mauro (org). Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 1995. LEFÈVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo, Ática, 1991. MARTIN-BARBERO, Jesús. Globalização comunicacional e trans-

104

formação cultural. IN: MORAES, Dênis de. (Org.). Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 57-86. _____. Dos meios às mediações - Comunicação, cultura e hegemonia. Trad. Ronald Polito, Sérgio Alcides. Rio: Editora UFRJ, l997 360p. _____. América Latina e os anos recentes: o estudo da recepção em comunicação social. In: SOUZA, Mauro (org). Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 1995, p.39. RONSINI, Veneza M. A perspectiva das mediações (ou como sujar as mãos na cozinha da pesquisa empírica em recepção). IN: GOMES, I. M. M.; JANOTTI Jr, J. Meios de Comunicação e os Estudos Culturais. EDUFBA, 2011. PP. 75-98

105

Sobre os autores i Amanda Rosieli Fiúza e Silva é graduada em Comunica-

ção Social – Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected]

siva). Pós-graduada Lato Sensu em Marketing e Comunicação pela Faculdade Estadual de Ciências Econômicas de Apucarana. [email protected]

i Antonio Fausto Neto é doutor em Sciences de La Comuni-

i Fabio Cruz é pós-doutor em Direitos Humanos, Mídia e

cation et de L’information - École des Hautes Études en Sciences Sociales (França), com estudos de pós-doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília e graduado em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Pesquisador 1A do CNPq e membro do Comitê Científico do CNPq (área de comunicação). Professor titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos; professor do Centro Universitário Franciscano. Professor Colaborador do Mestrado Profissional em Jornalismo da Universidade Federal da Paraíba. Presidente do Centro Internacional de Semiótica e Comunicação (CISECO). Cofundador da Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós). E-mail: [email protected]

i Daniela Schmitz é pós-doutoranda em Comunicação da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), bolsista PNPD-CAPES. Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação e Informação também da UFRGS. Possui mestrado em Ciências da Comunicação e graduação em Publicidade e Propaganda pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. É membro do Núcleo de Pesquisa Comunicação e Práticas Culturais (UFRGS). E-mail: [email protected]

i Dulce Mazer é doutoranda no Programa de Pós-graduação

em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista CAPES. Mestre em Comunicação e bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina. Membro do Núcleo de Pesquisa Cultura e Recepção Midiática (UFRGS) e do OBITEL (Observatório Íbero-Americano de Ficção Televi-

Movimentos Sociais (Universidade Pablo de Olavide – Sevilha/Espanha). Doutor em Cultura Midiática e Tecnologias do Imaginário pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com mestrado em Comunicação e Práticas Sócio-Políticas e especialização em Teoria do Jornalismo e Comunicação de Massa, ambas também pela PUCRS. Possui graduação em Comunicação Social - Jornalismo e Publicidade e Propaganda pela Universidade Católica de Pelotas. Professor adjunto do curso de graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Pelotas. E-mail: [email protected]

i Fernanda Scherer é mestranda do Programa de Pós-gradu-

ação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), bolsista FAPERGS/CAPES. Graduada em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda pela UFSM. E-mail: [email protected]

i Jiani Bonin é professora e pesquisadora do Programa de

Pós-graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Realizou pós-doutorado junto ao Programa de Estudios en Comunicación y Ciudadanía, do Centro de Estudios Avanzados da Universidad Nacional de Córdoba e doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. É coordenadora do Grupo de Pesquisa PROCESSOCOM (Unisinos/ CAPES/ CNPq 2002-2008). Foi professora visitante da Universidade Autônoma de Barcelona (UAB-Espanha) em 2005 e 2007, no Departamento de Publicidad y Comunicación Audiovisual e integrou a equipe do Programa Acadêmico de Cooperação Internacional Brasil-Espanha (Unisinos-UAB) sobre mídia,

106

interculturalidade de migrações transnacionais, financiado pela CAPES (Brasil) e Ministerio de Educación y Ciencia (Espanha). É pesquisadora participante da Rede Temática AMLAT, Comunicação, Cidadania, Educação e Integração na América Latina (CNPq). E-mail: [email protected]

i Jonária França é doutoranda no Programa de Pós-gradu-

ação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria. Mestre em Ciências da Comunicação pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da Universidade Federal do Amazonas, especialista em gestão de pessoas pela Universidade Gama Filho e jornalista graduada pelo Centro Universitário Nilton Lins. E-mail: [email protected]

i Laura Hastenpflug Wottrich é doutoranda do Programa

de Pós-graduação em Comunicação e Informação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Comunicação e graduada em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal de Santa Maria. Bolsista CAPES. Membro da Rede Obitel (Observatório Iberamericano de Ficção Televisiva) e do grupo de pesquisa PROCESSOCOM (Unisinos). E-mail: [email protected]

i Liliane Brignol é professora do Departamento de Ciên-

cias da Comunicação, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde integra o corpo docente do Programa de Pós-graduação em Comunicação. Doutora e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Graduada em Comunicação Social - Jornalismo pela UFSM. Em 2007, realizou estágio de doutorado sanduíche no Departamento de Comunicação Audiovisual e Publicidade da Universidade Autônoma de Barcelona (Barcelona, Espanha), com bolsa CAPES, vinculada ao projeto de Cooperação Internacional Brasil-Espanha (CAPES - MECD - 077/04). E-mail: [email protected]

i Márcia de Castro Borges é doutoranda no Programa de Pós-

-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Possui Licenciatura e Bacharelado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas. Participou do Projeto POA IMAGINADA (2007-2010) na FABICO-UFRGS. Atuou como assistente de pesquisa da Coordenação Nacional do INCT Observatório das Metrópoles IPPUR/UFRJ. E-mail: [email protected]

i Maria Immacolata Vassalo Lopes é doutora e mestre

em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), onde graduou-se em Ciências Sociais. Realizou seu pós-doutoramento na Universidade de Florença, Itália. Professora titular da Escola de Comunicações e Artes da USP. Coordena o Centro de Estudos de Telenovela da USP e o Centro de Estudos do Campo da Comunicação da USP. Criadora e coordenadora da rede de pesquisa internacional OBITEL (Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva) e da rede de pesquisa OBITEL-Brasil. Presidente de IBERCOM - Associação Ibero-Americana de Comunicação (2012-2015). Membro da Comissão Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da USP. Foi representante da área de Comunicação no CNPq (2004-2007). Membro do Conselho Curador da INTERCOM como ex-presidente da entidade. É pesquisadora 1A do CNPq. E-mail: [email protected]

i Mariângela Toaldo é doutora e mestre em Comunicação

Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com graduação em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda pela Universidade Luterana do Brasil. Professora Adjunta da Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É conselheira do Conselho Nacional de Auto Regulamentação Publicitária (CONAR) desde 1998. E-mail: [email protected]

i Marlon Santa Maria Dias é mestrando no Programa de Pós-

-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), bolsista CAPES. Graduado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFSM. E-mail: [email protected]

i Nilda Jacks é doutora e mestre em Ciências da Comunicação

pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em Comunicação na University of Copenhagen e na Universidad Nacional da Colombia. Possui licenciatura em Artes Plásticas pela Universidade Federal de Santa Maria, assim como graduação em Comunicação Social e Bacharelado em Arte decorativa pela mesma universidade. É professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e bolsista de Pesquisa nível 1 do CNPq. E-mail: [email protected]

i Rafael Foletto é doutorando e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista do CNPq. Realizou estágio de doutorado sanduíche (bolsa CAPES) no Departamento de Publicidade, Relações Públicas e Comunicação Audiovisual da Universidade Autônoma de Barcelona (UAB - Espanha), integrando o Observatório e Grupo de Pesquisa de Migração e Comunicação - MIGRACOM (UAB). Graduado em Comunicação Social - Relações Públicas e em Ciências Sociais, ambas pela Universidade Federal de Santa Maria. Membro do Grupo de Pesquisa PROCESSOCOM (CNPq/ CAPES/Unisinos) e da Rede Temática de cooperação, comunicação, cidadania, educação e integração da América Latina (Rede AmLat). E-mail: [email protected] i Sandra Rubia da Silva é doutora em Antropologia Social

pela Universidade Federal de Santa Catarina, com estágio de doutorado-sanduíche no University College London (UCL). Mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Fede-

107

ral do Rio Grande do Sul. Docente do Departamento de Ciências da Comunicação e do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Santa Maria. Concluiu seu pós-doutorado pela ECO-UFRJ em 2015. É membro do Grupo Interinstitucional de Estudos de Cibercultura (CNPq). E-mail: [email protected]

i Sarah Moralejo da Costa é doutoranda em Comunicação

pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista CAPES. Mestre em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Graduada em Comunicação Social – Jornalismo também pela UNESP. Professora convidada na Pós-graduação em Televisão e Convergência Digital da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Membro dos núcleos de pesquisa Comunicação e Práticas Culturais e Obitel. E-mail: [email protected]

i Viviane Borelli é professora do Departamento de Ciências da

Comunicação, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde integra o corpo docente do Programa de Pós-graduação em Comunicação. Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, quando foi bolsista do Porticus Program for Research in Media Religion and Culture (EUA). Mestre em Ciência do Movimento Humano pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), na área de mídia e esporte, como bolsista do CnPq. Graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela UFSM, quando integrou o PET Comunicação. E-mail: [email protected]

Universidade Federal de Santa Maria Departamento de Ciências da Comunicação Editora Facos - 2015

Paulo Afonso Burmann Reitor

Paulo Bayard Dias Gonçalves Vice-Reitor

Mauri Leodir Löbler Diretor do CCSH

Sandra Rúbia da Silva

Chefe do departamento de Ciências da Comunicação

Comissão Editorial Ada Cristina Machado da Silveira (UFSM) Eugênia Maria Mariano da Rocha Barichello (UFSM) Flavi Ferreira Lisbôa Filho (UFSM) Maria Ivete Trevisan Fossá (UFSM) Sonia Rosa Tedeschi (UNL) Susana Bleil de Souza (UFRGS) Valentina Ayrolo (UNMDP) Veneza Mayora Ronsini (UFSM) Paulo César Castro (UFRJ) Monia Maronna (UDELAR) Marina Poggi (UNQ) Gisela Cramer (UNAL) Eduardo Andrés Vizer (UNILA)

108

Título Capa

Coordenação editorial Assistente editorial

Projeto gráfico e diagramação Revisão

Pesquisa em recepção Relatos da segunda Jornada Gaúcha Maurício Lavarda do Nascimento Liliane Dutra Brignol e Viviane Borelli Marlon Santa Maria Dias Ronei Bueno da Cruz Liliane Dutra Brignol, Marlon Santa Maria Dias e Viviane Borelli

109

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.